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ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Discurso de Recepção ao Acadêmico Otávio de Faria Muito moço ainda quando vistes Alberto de Faria chegar, nesta Academia, para ocupar o lugar certo e justo. E também vistes quando chegaram dois outros escritores da vossa Casa, Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima, aqui trazidos pela contribuição à Literatura e a presença na inteligência brasileira. A Academia, pois, não será uma expectativa para quem a conhece, e por assim dizer na intimidade, desde a adolescência. Mas, se três escritores de vossa casa conquistaram uma tradição para a vossa família, nesta Academia, é certo que a Academia, por sua vez e por isso mesmo, não perdeu um só dos vossos trabalhos como escritor de ensaios, dramaturgia e romances. Foi daí, dessa observação ininterrupta que começa com a publicação de Maquiavel e o Brasil até O Indigno, que sobreveio a certeza de que éreis tão digno desta Academia quanto o foram os outros escritores da vossa casa. O nosso orgulho de vós, pois, começou antes de vossa própria eleição. E vos asseguro que desse orgulho participou o melhor dos companheiros – Levi Carneiro – sempre a exigir como reivindicação vosso direito a esta Academia. Maior seria o orgulho pudesse ter ouvido, em vosso elogio, a humana configuração de todas as suas virtudes. E maior ainda o orgulho fosse possível vos ver, agora, na Cadeira 27, a Cadeira de Joaquim Nabuco que ele ocupou durante 36 anos. O destino quis e decidiu que Levi Carneiro, um dos maiores dos vossos admiradores, tivesse a vós como o substituto. O destino, que é uma das motivações de vossa sondagem intelectual para o reconhecimento da criatura, esse destino fez com que nos encontrássemos – e precisamente em 1936 – no ano mesmo da eleição de Levi Carneiro. Trinta e seis anos de amizade e convivência e diálogo que, agora nos pondo um face ao outro, obriganos a lembrar os que, não fosse a morte, aqui estariam para vos aplaudir. Sei e juro que, embora tomados pela morte, Cornélio Penna e Lúcio Cardoso – os de cada dia e todos os anos – não devem estar distantes. Mas, se há os que se dispersaram pela morte, há os que mais se uniram à sombra desse longo tempo. Grandes e vários são os valores humanos. Nós que os trabalhamos como romancistas, conhecemos a todos. Autoridade temos, em consequência, para dizer que nenhum outro superará o único capaz de explicar e justificar a contemporaneidade: a amizade, precisamente a amizade, essa amizade que se estabeleceu e consolidou em torno das ideias e da Literatura. Difícil ou quase impossível reerguer os debates, as teses e as colocações, tudo o que foi durante tantos anos a matéria do nosso diálogo. E diálogo tão vosso quanto de Cornélio Penna, tão de Lúcio Cardoso quanto de Rachel de Queiroz – que espero ver dentro de pouco tempo, aqui, eleita como vós, membro desta Academia –, o diálogo do nosso pequeno grupo que apenas a morte conseguiu desfazer. Não é hora, porém, de recordar. Esse lado exterior, histórico e biográfico, não deve interessar ao autêntico escritor que tem na obra a verdadeira vida. A exegese dessa obra em busca da contribuição e irradiação, o exame verticalmente crítico que possa atingir a consciência da criação, isso é o que realmente importa. E sobretudo importa para que confirme que a Literatura é hoje um veículo de reconhecimento do homem e do mundo mais importante que as Ciências e a Filosofia. E vós, Sr. Otávio de Faria, sois o exemplo do escritor de obra assim indispensável para a compreensão do homem como um ser da condição e da sociedade. Interessado numa concepção em bloco, espécie de reino que o velho Julien Benda situaria como o da rebelião da vida contra as ideias, tamanho o fundo escafândrico que não a conformaremos sem a visão

Discurso de Recepcao Ao Academico Otavio de Faria

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  • 3/25/2015 Academia Brasileira de Letras - Adonias Filho - Discurso de Recepo ao Acadmico Otvio de Faria

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    ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

    Discurso de Recepo ao Acadmico Otvio de Faria

    Muito moo ainda quando vistes Alberto de Faria chegar, nesta Academia, para ocupar o lugar certo e

    justo. E tambm vistes quando chegaram dois outros escritores da vossa Casa, Afrnio Peixoto e Alceu

    Amoroso Lima, aqui trazidos pela contribuio Literatura e a presena na inteligncia brasileira. A

    Academia, pois, no ser uma expectativa para quem a conhece, e por assim dizer na intimidade,

    desde a adolescncia. Mas, se trs escritores de vossa casa conquistaram uma tradio para a vossa

    famlia, nesta Academia, certo que a Academia, por sua vez e por isso mesmo, no perdeu um s

    dos vossos trabalhos como escritor de ensaios, dramaturgia e romances. Foi da, dessa observao

    ininterrupta que comea com a publicao de Maquiavel e o Brasil at O Indigno, que sobreveio a

    certeza de que reis to digno desta Academia quanto o foram os outros escritores da vossa casa. O

    nosso orgulho de vs, pois, comeou antes de vossa prpria eleio.

    E vos asseguro que desse orgulho participou o melhor dos companheiros Levi Carneiro sempre a

    exigir como reivindicao vosso direito a esta Academia. Maior seria o orgulho pudesse ter ouvido, em

    vosso elogio, a humana configurao de todas as suas virtudes. E maior ainda o orgulho fosse possvel

    vos ver, agora, na Cadeira 27, a Cadeira de Joaquim Nabuco que ele ocupou durante 36 anos. O

    destino quis e decidiu que Levi Carneiro, um dos maiores dos vossos admiradores, tivesse a vs como

    o substituto.

    O destino, que uma das motivaes de vossa sondagem intelectual para o reconhecimento da

    criatura, esse destino fez com que nos encontrssemos e precisamente em 1936 no ano mesmo da

    eleio de Levi Carneiro. Trinta e seis anos de amizade e convivncia e dilogo que, agora nos pondo

    um face ao outro, obriga-nos a lembrar os que, no fosse a morte, aqui estariam para vos aplaudir.

    Sei e juro que, embora tomados pela morte, Cornlio Penna e Lcio Cardoso os de cada dia e todos

    os anos no devem estar distantes. Mas, se h os que se dispersaram pela morte, h os que mais se

    uniram sombra desse longo tempo.

    Grandes e vrios so os valores humanos. Ns que os trabalhamos como romancistas, conhecemos a

    todos. Autoridade temos, em consequncia, para dizer que nenhum outro superar o nico capaz de

    explicar e justificar a contemporaneidade: a amizade, precisamente a amizade, essa amizade que se

    estabeleceu e consolidou em torno das ideias e da Literatura. Difcil ou quase impossvel reerguer os

    debates, as teses e as colocaes, tudo o que foi durante tantos anos a matria do nosso dilogo.

    E dilogo to vosso quanto de Cornlio Penna, to de Lcio Cardoso quanto de Rachel de Queiroz

    que espero ver dentro de pouco tempo, aqui, eleita como vs, membro desta Academia , o dilogo do

    nosso pequeno grupo que apenas a morte conseguiu desfazer.

    No hora, porm, de recordar.

    Esse lado exterior, histrico e biogrfico, no deve interessar ao autntico escritor que tem na obra a

    verdadeira vida. A exegese dessa obra em busca da contribuio e irradiao, o exame verticalmente

    crtico que possa atingir a conscincia da criao, isso o que realmente importa. E sobretudo importa

    para que confirme que a Literatura hoje um veculo de reconhecimento do homem e do mundo mais

    importante que as Cincias e a Filosofia. E vs, Sr. Otvio de Faria, sois o exemplo do escritor de obra

    assim indispensvel para a compreenso do homem como um ser da condio e da sociedade.

    Interessado numa concepo em bloco, espcie de reino que o velho Julien Benda situaria como o da

    rebelio da vida contra as ideias, tamanho o fundo escafndrico que no a conformaremos sem a viso

  • 3/25/2015 Academia Brasileira de Letras - Adonias Filho - Discurso de Recepo ao Acadmico Otvio de Faria

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    total de vossa obra.

    No ser difcil perceber, em consequncia, porque o ensasta antecede o ficcionista na inquirio de

    problemas e teses. O escritor que estreia com Maquiavel e o Brasil em 1931 e h 41 anos a trabalhar

    sem temer as mudanas e ferir a coerncia , j denunciava pelo universalismo da catolicidade os

    compromissos brasileiros de romancista. A preocupao social que densamente se reflete no Destino

    do Socialismo, ao invs de anular, revigora e amplia aquela catolicidade. No tardaria, porm, e com o

    estudo crtico de Dois Poetas Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes , a prova da vocao

    literria nesse ensasta nascido para a anlise das ideias e dos acontecimentos sociais. E essa vocao

    tudo ultrapassa e de tal modo que, no ano decisivo para a obra que 1937, o ensasta de Cristo e

    Csar se integra no romancista de Mundos Mortos.

    O momento, efetivamente, decisivo.

    O teorista Otvio de Faria, como logo depois Mrio de Andrade o chamar, no fugir das ideias sociais

    e a vocao mesma no permitir qualquer escapismo. O que h, ao lado da transferncia dos

    problemas para a fico, e a partir de Mundos Mortos, a pluralidade da dimenso temtica, quando

    os episdios imediatos se articulam com a viso intemporal do homem, da vida e do mundo. A

    confisso est em Cristo e Csar e inequvoca a exclamao: Sinto-me cristo, catlico mesmo, at

    s entranhas e no sangue que me corre nas veias!.

    A preparao intelectual j se fizera no ensasta, a posio j fora tomada, estabelecera-se mesmo

    uma cobertura arstica. O crtico de poesia j neste momento se identificava com um dos fundadores

    do Chaplin Club e que no tinha como evitar o relacionamento da novelstica com o cinema.

    Ostensivas, efetivamente, as relaes da Fico com o Cinema. E o autor de Significao do Far-West e

    de Pequena Introduo Histria do Cinema sabia que, servindo-se da imaginao novelstica como de

    uma matria-prima, favorecendo ao Romance a conqusita de um imenso espao fora de si mesmo, o

    Cinema no apenas necessitava como aprendia com o ficcionista. O processo de contar, a tcnica

    narrativa, a atmosfera, o episdio, a personagem caracterizada, a montagem, o flashback e o prprio

    screenplay foram elementos da Fico que o Cinema incorporou sua linguagem e seu artesanato. Os

    ficcionistas do passado observa John Gassner tiveram extraordinrio senso cinematogrfico. E o

    grande exemplo, se fosse pedido, seria Tolstoi.

    A vossa preparao intelectual, Sr. Otvio de Faria, inclusive com a correlao artstica entre a

    Novelstica, a Poesia e o Cinema, estava completa quanto tivemos o romance Mundos Mortos. E, nessa

    formao, a parte religiosa que ser uma constante e o agente imediato da problemtica inteira. O

    compromisso cristo, em uma palavra, que submerge na procura extrema das mais graves questes

    do homem. O bigrafo e divulgador de Lon Bloy autor desse livro justo e compreensivo que

    Fronteiras da Santidade chegar ao romance e ao teatro fiel ao compromisso com o Cristo. A vossa

    nica pea de teatro, Trs Tragdias Sombra da Cruz, muito esclarece esse compromisso que,

    tangido pela inquietao religiosa, articula em vossas prprias palavras as foras de vida e as foras

    de pensamento. o encontro, sombra da Cruz e dos vossos autores preferidos Pascal e

    Dostoievski, Kierkegaard e Lon Bloy , mas o encontro com a trgica e obscura zona existencial.

    Inevitvel pois, seria inevitvel que esse encontro ao qual se somaria a vossa vocao socialmente

    participante vos levasse ao processo da tragdia burguesa. O romancista que abre o ciclo com

    Mundos Mortos h 35 anos a fixar o processo da burguesia brasileira em saga de crise e danao , e

    em consequncia dessa reprojeo crist na devassa social, logo se integrava no grupo de vrtice dos

    ficcionistas catlicos. As aproximaes justificam as afinidades e o vosso entrosamento, quando no

    com o Romance catlico, pelo menos com a catolicidade. No me interessa agora, e aqui, o debate

    sempre aberto se h ou no um romance catlico. Interessa-me o vosso encontro e quero repetir

    o vosso encontro com a fico existencialmente inquiridora e contempornea de Mauriac, Bernanos,

    Malgue, Chesterton, Graham Greene e Mario Pomilio.

    Perdoai-me a tentativa de anlise, Sr. Otvio de Faria, mas a concluso que vs e os outros

    romancistas cristos como Dostoievski escolheram o mais nu de todos os palcos. No h cenrios em

    quaisquer dos lados. mesmo o espao bblico que mostra a criatura na condio de sofrimento,

    entregue sua prpria liberdade para a salvao, herdeira de pecados e solido e angstia. O exame

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    do comportamento nas reaes, percepes e sensaes se torna, pois, uma captao to psicolgica

    quanto interiorizante. E, como resultado imediato, surge a absoluta falta de gratuidade dessa

    escavao que a contingncia social mais dramatiza.

    No h concesses. E, em consequncia, nenhum artifcio que possa sacrificar o reconhecimento

    daquela criatura que na palavra de Camus sobre Kafka em si mesma congrega a vida cotidiana e a

    inquietao sobrenatural. A busca, e porque socrtica no sentido de um s pensamento em todas as

    posies conflitantes, a busca dialtica. E quanto mais que, nu o palco e nele a criatura de Deus na

    violncia interior das crises e dos conflitos, a conscincia a nossa humana conscincia que se

    converte em matria de fico. As linhas maiores, apesar da ao episdica que subsista do lado de

    fora, esto no plano da conscincia. E no ser por outro motivo que, em consequncia desse plano,

    pesado sempre de expectativas e aflies, alguns dos vossos principais personagens so sacerdotes

    catlicos. As duas rbitas do carter trgico, e como diria Charles Osborne McDonald o analista

    excepcional da retrica da tragdia , precisamente a das afeies normais e a das paixes ilgicas

    conformam a individualidade dos vossos que so como os heris trgicos da Renascena.

    O romancista, que ir descer conscincia para existencialmente atingir o ser na destinao e na

    liberdade, iniciava o ciclo esse extraordinrio ciclo da Tragdia Burguesa com um dessespersonagens, o padre Lus. O ciclo, senhoras e senhores, e como acabamos de verificar, j se abriu.

    Um tempo literrio novo que imps a tragdia precisamente porque a figura superou o cenrio e o

    problema superou o episdio. O grande romancista, que sois vs, acaba de tomar nas mos as leis da

    existncia para, atravs do processo de uma classe social, invadir os maiores problemas do homem.

    Dar-se- a abertura atravs do romance Mundos Mortos, porta de entrada de um universo dramtico evivo, matriz de todos os caminhos posteriores que configuram o ciclo a Tragdia Burguesa , hojeuma das bases mais importantes da fico em Lngua Portuguesa. Frente aos adolescentes, heris

    comuns que sempre retornam nos 12 romances publicados e j a vs denunciavam como um

    extraordinrio criador de homens, o impacto do lanamento no pode ser ignorado. O romance surgia

    quebrando a rotina novelstica porque, se por um lado mantinha a tradio imediata, subordinando a

    inquirio social descoberta dos valores humanos, pelo outro transmitia nossa fico um contedo

    metafsico ao descer na conscincia e no sangue para animar as questes religiosas em termos de

    pecado e salvao, de culpa e castigo, na transposio da vida em representao de tragdia. Tornou-

    se impossvel para muitos, e ento, alcan-lo em sua prpria efervescncia temtica.

    No tardaria a provar-se, entretanto, que o romance Mundos Mortos mesmo em sua antonomia, forado ciclo, isolado em sua prpria rbita no fora escrito para um tempo certo. Demonstra-o, agora,

    sua durao. Essa resistncia talvez se explique como uma consequncia da apreenso existencial

    atravs da vivncia episdia. Fazendo-o mover em uma atmosfera complexa e densa, com o foco

    direto nos problemas da adolescncia da sociedade carioca do nosso sculo, o romancista superava a

    linha novelstica comum ao estabelecer o exame por dentro sem perder os contatos sociais. A tragdia

    burguesa, na fixao literria, em uma palavra, comea em suas pginas.

    Nele, sempre um romance de crise em consequncia de sua vinculao com a adolescncia, abrem-se

    como caminhos os eixos maiores do ciclo ficcional. O ciclo, em consequncia, no poderia dispens-lo.

    As criautras que vo andar, e vo crescer em sofrimentos e paixes, esto nascidas nos conflitos dos

    seus captulos. Acionando-as, personagens em seus prprios roteiros, sujeitas ao bem e ao mal, o

    romancista no as abandona sem explic-las na interferncia que se far clssica em sua obra

    como um participante em compromisso com certos valores da vida. E talvez por isso que o romance

    Mundos Mortos no perdeu sua dimenso excepcional. Sem esmorecer na responsabilidade de aberturado ciclo, a esse ciclo continua a manter como o ponto de partida.

    O ciclo, agora, j um universo. Vertical, trepidante, violento, mas um universo que, a levantar a

    fisionomia da sociedade burguesa carioca deste sculo, amplia-se de tal modo que no tem como

    evitar o encontro com os maiores problemas do mundo e da vida. No me importam as relaes,

    aproximaes ou correlaes com autores como Balzac, Proust e Galsworthy. Tudo o que importa

    nesse painel ainda incompleto no qual ser possvel perceber o solo tolstoiano tudo o que

    realmente importa o grupo de destinos que reflete um tempo de crises quando os nervos se rasgam

    para a mesma tragdia de misria e nobreza, pecado e inocncia, crime e castigo, instinto e liberdade,

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    f e loucura, Deus e demnio, os polos entre a Sombra da Cruz e o Senhor do Mundo. E no centro

    dessa rotao, que a da vida em todos os abismos, em trs chaves se firma o edifcio novelstico: a

    sociolgica, a psicolgica e a metafsica.

    Trs zonas distintas a fixao de uma classe social, a inquirio nas razes do corao humano, a

    imerso existencial na procura do prprio sentido de Deus , trs zonas distintas, porm, que se

    interpenetram para, no conjunto, no ser possvel acrescentar coisa alguma. Mas o que surpreende, na

    continuidade temtica, na representao mvel, a tcnica narrativa como se fosse a bssola do

    processo inteiro. O romancista no permite que a ao se transporte objetivamente, realizando-se,

    dominada pela realidade que acontece. Condiciona-a movimentao mental, sobretudo o solilquio e

    o monlogo, que sempre pe a personagem em discusso interior antecedendo a cena. Divide-se a

    ao de modo flagrante. O primeiro plano interno, traduzido na descoberta do acontecimento, a

    prova introspectiva, o plano do argumento. O segundo externo, o quadro vivendo em durao

    visual, o plano do episdio. Situada a ao entre o argumento e o episdio, nela se escoram os trs

    movimentos fundamentais sociolgico, psicolgico, metafsico do ciclo ficcional.

    E, atravs desse processo, que tritura a mesma carne em todo o ciclo da Tragdia Burguesa, no

    permite a leitura calma. A densidade especulativa, principalmente em um livro excepcional como O

    Senhor do Mundo, essa anlise dialtica que escava a figura e o problema na linha invarivel do

    pessimismo cristo, no sacrifica o tempo social brasileiro. E, se por um lado fora as portas estreitas a

    ferir o nosso ser todo inteiro, como diria Charles du Bos, pelo outro provoca o debate social com a

    nossa participao e o vosso testemunho. uma atmosfera em convulso o que realmente se move.

    E melhor se completar a vossa presena literria, Sr. Otvio de Faria, quando unimos desesperao

    da Tragdia Burguesa porque nela, efetivamente, a condenao original de todos a desesperao

    das Novelas da Masmorra. A paisagem exterior, aqui, tambm no subsiste. O compromisso cristo,

    esse da auscultao interiorizante no reconhecimento existencial do ser, mais se torna denso no

    intimismo fechado de Memrias de um Co Danado e O Outro.

    J o disse, escrevendo sobre as vossas novelas, que, e a exemplo do ciclo da Tragdia Burguesa, j o

    disse que no se permanecer em condio de leitor porque a vossa personagem, assim cheia de

    humanidade e do mistrio que envolve a criatura, de tal modo nos obriga participao que a vemos

    como parte de ns mesmos. O romancista no volta, pois, e atravs dessas novelas, para retomar o

    tema e o processo como se houvesse necessidade de reviso. No, ele no volta.

    E a est, Sr. Otvio de Faria, porque esta Academia, agora vos acolhe e aclama. Escritor sois de

    vocao e ofcio e, por isso mesmo, no fizeste outra coisa em uma vida inteira seno escrever, ainda

    escrever, sempre escrever. E o que importa, sobretudo o que mais importa, saber que na f e

    testemunho de todos os vossos livros no h apenas uma contribuio decisiva Literatura

    Brasileira. E, se concorrestes para tornar maior o espao da fico de Lngua Portuguesa, foi

    precisamente porque no trastes o grande inquiridor cristo que viera para o exame e o

    reconhecimento da criatura.

    Esta Academia, e como uma Instituio do Pas e do povo que h muito tempo vos esperava, sente e

    sabe que cumpriu o dever. Sois o escritor, em verdade, que confirma o nosso respeito pelos melhores.

    6/6/1972

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