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1 INTRODUÇÃO
O modelo de desenvolvimento assentado nas premissas do capitalismo trouxe além de
alguns avanços tecnológicos, profundas desigualdades econômicas, sociais, além de
profundas mudanças na natureza e no meio ambiente, tudo em nome do lucro e do
“progresso” da humanidade.
Diante a crise ambiental que se tornou evidente nos anos 60, pelo rápido crescimento
econômico e a conseqüente degradação ambiental, pode-se perceber o surgimento da
consciência ambiental, vindo a se expandir nos anos 70, depois da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente, realizada em Estolcomo, no ano de 1972, sendo que nesse
momento foram assinalados os limites da racionalidade econômica e dos desafios da
degradação ambiental, pois percebeu-se que os recursos naturais não eram infinitos como se
acreditava ser, e precisavam de medidas urgentes para proteger a humanidade do avanço
predatório do capitalismo.
A ação do Estado brasileiro segue a lógica do desenvolvimento capitalista neoliberal,
que traz como conseqüências o crescimento da desigualdade, da ilegalidade no uso e ocupação
do solo e a degradação ambiental.
O modelo urbano-industrial intensivo e altamente predatório adotado pelo Brasil
provocou profundas mudanças socioambientais, agravando a exclusão social e a degradação
12
da qualidade ambiental das cidades. As conseqüências estão refletidas no processo de
urbanização das cidades, extremamente rápido e desigual, levando as populações de baixa
renda a ocupar terras periféricas, em geral desprovidas de qualquer tipo de infra-estrutura e
impróprias para moradia como encostas dos morros, nas beiras dos córregos ou igarapés, nas
áreas públicas que ainda não tem um uso público definido, nos loteamentos ilegais ou a se
instalar em áreas ambientalmente frágeis. Pode-se observar que os grupos menos
privilegiados estão mais expostos à degradação ambiental, isso revela uma profunda
desigualdade na distribuição dos custos e benefícios da urbanização, gerados pelo padrão
excludente e segregador do processo de urbanização nos países em desenvolvimento. As
populações vítimas da exclusão social e econômica acabam sendo mais vulneráveis quanto à
exposição desigual, por habitarem em condições ambientalmente inadequadas.
A falta de alternativas habitacionais, seja por parte do mercado privado que não
disponibiliza moradias acessíveis para a população pobre, ou pelo diminuto alcance das
políticas públicas sociais leva ao gigantesco crescimento de invasões de terra.
A cidade de Manaus não foge a regra, enfrenta sérios problemas sociais e ambientais,
estando estes intimamente interligados como analisaremos no decorrer deste trabalho.
As ocupações desordenadas e ilegais fazem parte do cotidiano da cidade de Manaus,
desde a década de 1970, quando houve um aumento populacional de mais de 500%, devido à
implantação da Zona Franca de Manaus, que passou a atrair um grande número de migrantes
que buscavam oportunidade de emprego e melhores condições de vida.
Por falta de políticas públicas voltadas para a questão habitacional e meio ambiente,
uma grande parcela da sociedade pobre e marginalizada teve que invadir terras para fins de
moradia, surgindo assim, por toda a cidade inúmeras invasões, sendo que, a maioria dessas
13
invasões estão localizadas em áreas impróprias para moradia, como encostas, nascentes de
igarapé, barrancos, antigos depósitos de lixo, e desprovidas de serviços essenciais urbanos.
O agravamento dos problemas ambientais presentes nas regiões e aglomerados urbano-
industriais se superpõe aos problemas de infra-estrutura básica e exclusão social,
principalmente nos países de industrialização recente e economia periférica. Com isso,
ampliam-se os movimentos sociais que incorporam a discussão ambiental, sejam eles oriundos
de grupos locais em áreas de risco industriais ou grupos ambientalistas organizados atuando em
níveis regionais, nacionais e mesmo internacionais. Por outro lado, movimentos sociais - de
trabalhadores e grupos sociais discriminados, como negros, mulheres e povos étnicos
tradicionais-, passam a incorporar a questão ambiental em seus discursos e lutas, através do
movimento de justiça ambiental.
O movimento por Justiça Ambiental vem denunciando os problemas das sociedades
profundamente desiguais como a brasileira, que acabam por destinar a maior carga dos danos
ambientais decorrentes do desenvolvimento às populações marginalizadas e vulneráveis.
Há pouco mais de cinco anos, diversas entidades da sociedade civil, entre elas ONG´s,
movimentos sociais, sindicatos e pesquisadores, decidiram juntos fundar a Rede Brasileira de
Justiça Ambiental. Essa rede tem como objetivo principal divulgar o fato de que os impactos
ambientais atingem de maneira diferenciada os diversos segmentos da sociedade, opondo-se,
assim, à idéia, que por muito tempo permeou o movimento ambientalista, de que a degradação
ao meio ambiente seria democrática e, portanto, um problema de igual importância para todos
os membros da sociedade. Sem dúvida, a importância em se ter um desenvolvimento
realmente sustentável deve ser uma preocupação de todos, mas, não é possível ignorar o fato
de que os impactos de um desenvolvimento predatório atingem, na maioria das vezes, as
populações mais vulneráveis. Esse enfoque faz com que as questões ambientais passem a ser
pensadas em termos de distribuição, justiça e eqüidade.
14
A sociedade brasileira conquistou importantes garantias como os direitos fundamentais
sociais expressos na Constituição Federal de 1988 e em convenções e tratados internacionais.
Estando entre o rol dos direitos fundamentais sociais o direito à moradia e o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado essencial a uma sadia qualidade de vida e garantido a
todos. Porém a concretização e o acesso a esses direitos sociais é privilégio de poucos.
Nos países marcados pela extrema desigualdade social, como é o caso do Brasil, os
impactos do processo de globalização econômica neoliberal geram a necessidade de elaborar
formas de proteção dos direitos fundamentais sociais no âmbito do constitucionalismo
contemporâneo.
É sem dúvida um avanço da nossa sociedade o reconhecimento dos direitos sociais,
mas, tais direitos nunca foram objeto de um reconhecimento consensual, além de sempre
terem sido tratados de forma diferenciada, especialmente quanto à sua efetivação através de
políticas públicas insuficientes ou inexistentes.
As políticas públicas sociais no Brasil privilegiavam e priorizavam setores ligados ao
desenvolvimento econômico - via industrialização - enquanto crescia rapidamente o número
da população excluída e marginalizada. Nesse contexto as políticas públicas sociais surgiram
para amenizar as mazelas da economia que elevava os índices de pobreza de grande parte da
sociedade.
A Constituição Federal representou um importante avanço no que diz respeito aos
direitos sócio-ambientais, mas a realidade nos mostra que a concretização desses direitos se
encontra, ainda, muito distantes de serem alcançados, uma vez que, se faz imprescindíveis
demandas de políticas públicas concretas e a participação direta da sociedade.
Nesse sentido, a proposta deste trabalho é inicialmente conhecer os Direitos sociais
expressos na Constituição Federal de 1988, tratando de dois direitos sociais específicos - o
15
direito a moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado -, verificando seus
principiais aspectos teóricos relativos à sua proteção jurídica e posteriormente analisar alguns
problemas práticos à sua efetivação.
Ao mesmo tempo, será feita uma contextualização do processo de urbanização
acelerada e a intensificação das ocupações desordenadas no Brasil e especificamente na
cidade Manaus, considerando que as ocupações são reflexos da violação dos direitos à
moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Tendo este trabalho como principal objetivo identificar de que forma as ocupações
desordenadas em Manaus revelam injustiças ambientais. Utilizaremos para análise o caso da
“invasão” Nova Vitória, que se constitui em um exemplo característico de ocupação
desordenada, localizada na Zona Leste da cidade de Manaus, em uma área de propriedade da
Superintendência da Zona Franca de Manaus, ocupação esta que teve início em 2003, estando
atualmente composta por aproximadamente 5.000 famílias, que além de serem vítimas da
exclusão social e econômica, não dispõem de acesso aos direitos sociais à moradia e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
A escolha do tema justifica-se, pela importância que a garantia de uma sadia qualidade
de vida representa à população, tendo em vista que o direito à vida é matriz de todos os
direitos fundamentais do homem.
16
2 DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: DIREITO À
MORADIA E AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO.
2.1 OS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos” usualmente são utilizados de
forma indiscriminada, como se fossem sinônimos. Paulo Bonavides explica que este último
termo, “direitos humanos” ou “direitos do homem”, costuma ser mais empregado por autores
anglo-saxões e latinos, enquanto que a expressão “direitos fundamentais” é de uso
preferencial entre os publicistas alemães1.
Esclarece J. J. Gomes Canotilho:
As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente
utilizadas como sinônimas. Segundo sua origem e significado poderíamos distingui-
las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos
e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais
são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados
espaico-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza
humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos
fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica
concreta. 2
O processo de formação e consolidação do Direito Internacional dos Direitos
Humanos partiu das premissas de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e,
1 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 560.2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 369.
17
como tais, antecedem todas as formas de organização política, e de que sua proteção não se
esgota na ação do Estado. A partir da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948,
ponto de partida do processo de generalização da proteção internacional dos direitos humanos,
vem se multiplicando os tratados e instrumentos de direitos humanos, como resposta à
expansão de cada vez mais necessidades e carências. 3 A partir de 1948, momento do
surgimento do Direito Internacional de Proteção dos Direitos Humanos diversos países
passaram a incorporar em seus textos constitucionais normas de proteção dos direitos
humanos.
Do ponto de vista material, os direitos fundamentais variam conforme a ideologia, a
modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Ou seja,
cada Estado consagra um rol de direitos fundamentais específicos. Os direitos fundamentais
são, na essência, os direitos históricos que o homem possui em face do Estado. 4
Vários doutrinadores atribuem diferentes conceitos aos direitos humanos
fundamentais, uma vez que resultam da evolução humana, sendo ampliados e modificados a
cada nova conquista.
Norberto Bobbio, em “A Era dos Direitos” destaca a dificuldade de se definir os
direitos humanos, ou seja, encontrar um conceito preciso, pois acredita que:
Direitos do homem é uma expressão muito vaga. Já tentamos alguma vez defini-los?
E, se tentamos, qual foi o resultado? A maioria das definições são tautológicas (...).
Ou nos dizem algo apenas sobre o estatuto desejado ou proposto para esses direitos, e
não sobre o seu conteúdo (...) Finalmente quando se acrescenta alguma referência ao
conteúdo, não se pode deixar de introduzir termos avaliativos: Direitos dos homens
3 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. p. 59.4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 561.
18
são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da
pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização, etc. 5
Não obstante as dificuldades de se chegar a um conteúdo preciso da expressão direitos
humanos, Antonio Enrique Pérez Luño, define os direitos humanos como um “conjunto de
faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da
dignidade, da liberdade e da igualdade, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos
ordenamentos jurídicos em nível humano e internacional”. 6
José Afonso da Silva conceitua os direitos humanos fundamentais como o “conjunto
institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o
respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”.
7
Dada a sua historicidade, ou seja, o fato de variarem ao longo do tempo e do espaço,
os direitos fundamentais foram sendo reconhecidos pelo ordenamento jurídico dos países de
forma gradativa, num processo que pode ser observado através de sua evolução em gerações
(direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta geração).
Vale ressaltar que, ainda que se fale em gerações, não existe qualquer relação de
hierarquia entre estes direitos, mesmo porque todos interagem entre si, de nada servindo um
sem a existência dos outros. Daí porque alguns autores prefiram classifica-los em
“dimensões” ao invés de “gerações”.
Cançado Trindade ao argumentar sobre a universalidade dos direitos humanos, afirma:
5 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 14ª Tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 17.6 LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. Madrid: Tecnos, 2005. p. 50.7 SILVA, José Afonso. Curso de direitos constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 175.
19
O fenômeno que testemunhamos em nossos dias, em meu entendimento, não é o de
uma fantasiosa e indemonstrável sucessão “generacional” de direitos (que poderia
inclusive ser invocada para tentar justificar restrições indevidas ao exercício de alguns
deles, como já ocorreu na prática), mas antes o da expansão, cumulação e
fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente
complementares e em constante interação. 8
A expressão "geração de direitos" tem sofrido várias críticas da doutrina nacional e
estrangeira. Ingo Sarlet afirma que o uso do termo "geração" de direitos pode levar à falsa
impressão da substituição gradativa de uma geração por outra. O processo é de acumulação e
não de sucessão. O autor prefere o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, utilizada
pela doutrina mais moderna. 9 Sendo assim, concordando com o autor Cançado Trindade
utilizarei neste trabalho o termo “dimensões” ao invés de “gerações”.
8 O jurista Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão "gerações de direitos do homem", proferindo na aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, em 1979, buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa - liberdade, igualdade e fraternidade -. Antônio Augusto Cançado Trindade, durante uma palestra que proferiu em Brasília, em 25 de maio de 2000, comentou que perguntou pessoalmente para Karel Vasak por que ele teria desenvolvido aquela teoria, tendo respondido: "Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu de fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa", como tudo que é palavra “chavão”, pegou. Cançado Trindade discorda da tese das “gerações de direitos”, e afirmou que nem o próprio Vasak levou muito a sério a sua tese. O discurso de Vasak logo ganhou fama e outros juristas passaram a repeti-lo e até desenvolvê-lo, como, por exemplo, Noberto Bobbio, que foi um dos principais responsáveis pela sua divulgação. Cançado Trindade cita como exemplo: “o caso dos meninos de rua, é um rechaço à tese de gerações de direitos, porque creio que o próprio direito fundamental à vida é de primeira, segunda, terceira e de todas as gerações. É civil, político, econômico-social e cultural. Em primeiro lugar, essa tese não corresponde à verdade histórica. É certo que houve as declarações dos séculos XVII e XVI1I e a Revolução Francesa, e parece-me que a doutrina brasileira parou por aí. Houve a revolução americana e depois a Declaração Universal. É uma construção perigosa, porque faz analogia com o conceito de gerações. O referido conceito se refere praticamente a gerações de seres humanos que se sucedem no tempo. Desaparece uma geração, vem outra geração e assim sucessivamente. Na minha concepção, quando surge um novo direito, os direitos anteriores não desaparecem. Há um processo de cumulação e de expansão do corpus juris dos direitos humanos. Os direitos se ampliam, e os novos direitos enriquecem os direitos anteriores". Afirma ainda, Cançado Trindade “creio que o futuro, na proteção internacional dos direitos humanos passa pela indivisibilidade e pela inter-relação de todos os direitos”. (Palestra proferida durante o Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional. Cançado Trindade questiona a Tese de Gerações de Direitos Humanos de Norberto Bobbio. Acesso em 22/07/2007 Disponível: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/Cancado_Bob.htm).9 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1998. p. 39. No mesmo entendimento PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo:Max Limond, 2002. p. 149-150 “(...) compartilha-se do entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a equivocada idéia de sucessão ´geracional´ de direitos, na medida em que se escolhe a idéia de expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos, todos essencialmente complementarem em constante dinâmica de interação”.
20
Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os direitos da liberdade, os
primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e
políticos, que em grande parte correspondem, sob um prisma histórico, àquela fase inaugural
do constitucionalismo do Ocidente10.
No momento histórico marcado pelo liberalismo (século XVIII), deu-se o surgimento
e o desenvolvimento dos direitos fundamentais de primeira dimensão, ou seja, direitos que
cuidam da proteção das liberdades públicas - direitos dos indivíduos frente ao Estado como o
direito à liberdade, à vida, à propriedade, à manifestação, à expressão, ao voto, entre outros.
Pode-se observar que os direitos fundamentais de primeira dimensão estão
intimamente ligados ao ideal de liberdade, sendo “(...) direitos que valorizam primeiro o
homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que
compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual”. 11
A segunda dimensão de direitos fundamentais teve sua origem nos movimentos sociais
do século passado, remetendo-se ao ideário de igualdade. Paulo Bonavides afirma que os
direitos da segunda geração “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os
direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas
de Estado social, depois germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do
século XX”. 12 Complementa o autor que os direitos de segunda dimensão estão ligados ao
princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-
los da razão de ser que os ampara e estimula.
10 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 562.11 Ibid., p. 564.12 Ibid., p. 564.
21
Os direitos fundamentais de segunda dimensão exigiram do Estado sua intervenção
para que a liberdade do homem fosse protegida de forma efetiva (o direito ao bem estar social,
o direito à saúde, ao trabalho, à educação, o direito de greve, entre outros).
Em seguida, encontram-se os direitos de terceira dimensão, que remetem à idéia da
solidariedade voltada para a proteção de grupos indeterminados de pessoas, da humanidade e
até mesmo das futuras gerações. Ao comentar os direitos fundamentais de terceira geração,
Paulo Bonavides menciona que:
Um novo pólo jurídico de alforria se acrescenta historicamente aos da liberdade e
da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos
de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos
que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de
um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero
humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo
em termos de existencialidade concreta (...) Emergiram eles da reflexão sobre
temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao
patrimônio comum da humanidade. 13
Há ainda autores que passam a identificar uma quarta geração de direitos, ainda que
não reconhecida pela unanimidade dos doutrinadores. O constitucionalista Paulo Bonavides
defende que esta quarta geração de direitos fundamentais seria resultado da globalização dos
direitos fundamentais, em uma tentativa de universalizá-los no campo institucional, tendo
como exemplos o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Previstos na Constituição Federal de 1988, os direitos sociais são compreendidos
como garantias alcançadas ao longo do tempo e da história, através de lutas sociais e políticas,
tornando assim o rol dos direitos sociais dinâmico e aberto, sujeito a novas ampliações.
13 Ibid., p. 569.
22
Os direitos sociais são uma das dimensões que os direitos fundamentais do homem
podem assumir. Seu objetivo é concretizar melhores condições de vida ao povo e aos
trabalhadores, demarcando os princípios que viabilizarão a igualdade social e econômica, no
que concerne a iguais oportunidades e efetivo exercício de direitos.
Nos países marcados pela extrema desigualdade social, como é o caso do Brasil, os
impactos do processo de globalização econômica neoliberal geram a necessidade de elaborar
formas de proteção dos direitos sociais no âmbito do constitucionalismo contemporâneo.
É sem dúvida um avanço da nossa sociedade o reconhecimento dos direitos sociais,
mas, como afirma Ingo Sarlet “tais direitos nunca foram objeto de um reconhecimento
consensual, além de sempre terem sido tratados de forma diferenciada, especialmente quanto
à sua efetivação”. 14
O autor ressaltar ainda que os efeitos nefastos da globalização econômica e do
neoliberalismo, notadamente os relacionados com o aumento da opressão sócio-econômica e
da exclusão social, somados ao enfraquecimento do Estado, têm gerado a diminuição da
capacidade do poder público de assegurar aos particulares a efetiva fruição dos direitos
fundamentais. Além disso, como conseqüência do reforço da dominação do poder econômico
sobre as massas de excluídos, verifica-se uma situação em que até mesmo a noção de
cidadania como “direito a ter direitos” econtra-se sob grave ameaça, processo sentido maior
grau nos países periféricos e em desenvolvimento. Sendo assim, a crise do Estado Social leva
a existência de uma “crise dos direitos fundamentais”. 15
14 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.1, nº 1, 2001. Disponível em :http://www.direitopublico.com.br. Acessado em 05/08/2007.15 Ibid., p. 7-9
23
A opressão sócio-econômica tem gerado reflexos imediatos no âmbito dos direitos
fundamentais, inclusive nos países desenvolvidos, levando a uma “crise dos direitos
fundamentais”. Dentre esses reflexos destaca Ingo Sarlet:
a) a intensificação do processo de exclusão da cidadania, especialmente no seio das
classes mais desfavorecidas, fenômeno este ligado diretamente ao aumento dos níveis
de desemprego e subemprego, cada vez mais agudo na economia globalizada de
inspiração neoliberal; b) redução e até mesmo supressão de direitos sociais
prestacionais básicos (saúde, educação, moradia, previdência e assistência social),
assim como o corte ou, no mínimo, a “flexibilização” dos direitos dos trabalhadores;
c) ausência ou precariedade dos instrumentos jurídicos e de instâncias oficiais ou
inoficiais capazes de controlar o processo, resolvendo os litígios dele oriundos, e
manter o equilíbrio social, agravando o problema da falta de efetividade dos direitos
fundamentais e da própria ordem jurídica estatal. 16
Dessa feita, pode-se constatar que existe atualmente uma total descrença nos direitos
fundamentais sociais, por parte da maioria da população excluída social e economicamente,
que passam a encarar esses direitos como verdadeiros privilégios de certos grupos.
2.1.1 O regime jurídico aplicável aos direitos sociais na CF/88.
Os direitos sociais surgiram com o objetivo de atenuar e corrigir injustiças sociais pelo
estabelecimento de um sistema de proteção direcionado prioritariamente àqueles que se
encontram em situação de maior vulnerabilidade, especialmente nos países em
desenvolvimento, cujas sociedades são profundamente marcadas por altos índices de exclusão
social. 17
16 Ibid., p. 09
24
A constitucionalização18 dos direitos sociais teve como marco a Constituição de
Weimar19, de 1919, tendo representado, até o final do século XX, a melhor defesa da
dignidade humana, ao complementar os direitos civis e políticos com os direitos econômicos e
sociais.
Segundo Paulo Bonavides, os direitos fundamentais como direitos clássicos da
liberdade foram gerados por uma sociedade que detinha o monopólio ideológico dos
princípios a serem gravados nas Declarações de Direitos, ou seja, nas Constituições. 20
Complementa o autor que, no Estado liberal do século XIX, a Constituição disciplinava
somente o poder estatal e os direitos individuais (direitos civis e direitos políticos) ao passo
que hoje o Estado social do século XX regula uma esfera muito mais ampla: o poder estatal, a
Sociedade e o indivíduo.
A mudança da realidade social e econômica da sociedade no século XIX fez com que a
mera garantia de direitos a serem exercidos contra o Estado não fosse mais suficiente para
permitir a plena realização do indivíduo em seu ambiente social, tendo em vista que os
direitos somente eram exercidos por alguns membros da coletividade, sendo que para os
menos favorecidos faltavam meios que permitissem adquirir tais prerrogativas. A acelerada
industrialização da sociedade, decorrente da Revolução Industrial, e a conseqüente ampliação
e mudança de perfil do mercado de trabalho trouxeram novas demandas dessa parcela da
sociedade excluída e marginalizada.
17 DUARTE, Clarice Seixas. O Direito Público subjetivo ao ensino fundamental na Constituição Federal Brasileira de 1988. Dissertação (Doutorado apresentado ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 38.18 Designa-se por constitucionalização a incorporação de direitos subjectivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra-Portugal, Editora Almedina:1993. p. 499).19 A Constituição dita de Weimar, promulgada em 1919, foi instituidora da primeira república alemã, tendo sido elaborada e votada durante a grande guerra de 1914-1918.20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.231.
25
A decadência do modelo do constitucionalismo clássico começou a tornar-se mais
evidente no fim do século XIX e início do século XX, sendo que esse período é tido como
marco do constitucionalismo social.
A Constituição de Weimar representou decisiva influência sobre a evolução das
instituições políticas em todo o Ocidente, pois buscou formas de equilibrar o conflito
ideológico entre o Estado liberal, em decadência, e o Estado social, em ascensão21. A referida
Constituição se voltou basicamente para a sociedade e não para o indivíduo, buscando
reconciliar o Estado com a sociedade.
A importância desse texto constitucional é notável, vez que deu início a uma nova fase
do constitucionalismo que é a fase do constitucionalismo social, tendo sido o primeiro texto
constitucional que efetivamente concretizou, ao lado das liberdades públicas, dispositivos
expressos, impositivos de uma conduta ativa por parte do Estado, para que este viabilize a
plena fruição, por todos os cidadãos, dos direitos fundamentais de que são titulares.
Fábio Konder Comparato, ao comentar a estrutura da Constituição de Weimar, ressalta
o seu caráter claramente dualista: a primeira parte tem por objeto a organização do Estado,
enquanto a segunda parte apresenta a declaração dos direitos e deveres fundamentais,
acrescentando às clássicas liberdades individuais os novos direitos de conteúdo social. Os
direitos sociais, afirma o autor, “têm por objeto não uma abstenção, mas uma atividade
positiva do Estado, pois o direito à educação, à saúde, ao trabalho, e outros do mesmo gênero
só se realizam por meio de políticas públicas, isto é, programas de ação governamental”. 22
A Constituição Brasileira de 1934, seguindo a linha da Constituição de Weimar,
representou um grande avanço no campo dos direitos sociais, delineando um Estado
intervencionista, subordinando a ordem econômica ao princípio da justiça e da existência
21 Ibid., p. 232.22 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva 2005. p. 189-190.
26
digna23. A Constituição de Weimar influenciou a elaboração de Constituições por todo o
mundo, as quais passaram a sistematizar, em seus textos, os dispositivos pertinentes aos
direitos econômicos e sociais.
Por influência da Constituição de Weimar, os direitos econômicos e sociais dos
indivíduos foram introduzidos no constitucionalismo brasileiro, o que já se fez presente na
Constituição de 1946.
Mas foi com o processo de redemocratização do Brasil, após vinte anos de Ditadura
Militar, que culminou com a promulgação da Constituição de 1988, que os direitos sociais
fundamentais como um todo receberam maior destaque. Além de apresentar um extenso rol
de direitos e garantias individuais (direitos civis e políticos), a atual Carta consagra, ainda,
uma série de direitos econômicos, sociais e culturais.
Os direitos sociais constituem, conforme José Afonso da Silva:
Prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a
realizar a igualização de situações desiguais. Valem como pressuposto de gozo dos
direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao
auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais
compatível com o exercício efetivo da liberdade. 24
De acordo com Mello, a consagração dos direitos sociais retrata a ereção de barreiras
defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos25. Complementa
o autor, afirmando que o Estado ultrapassa o papel anterior de simples árbitro da paz, da
23 BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais. Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988.1.ed. Curitiba: Juruá, 2006. p.58.24 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituição). 1.. ed. 2ªtir. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 199.25 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. In: Revista de Direito Público. Revista dos Tribunais, Ano XIV Janeiro/Junho, 1981. p. 235.
27
ordem, da segurança, para assumir o escopo mais amplo e compreensivo de buscar, ele
próprio, o bem-estar coletivo.
Pois bem, a Constituição de 1988 dedicou um Capítulo específico aos direitos sociais,
estabelecendo, em seu artigo 6º: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia26, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados na forma desta Constituição”.
Além dos direitos sociais acima descritos, a Constituição de 1988 previu,
ineditamente, um capítulo próprio destinado à seguridade social, à ciência e tecnologia, à
comunicação social, ao meio ambiente e aos índios, todos disciplinados no Título VIII – Da
Ordem Social.
José Afonso da Silva sustenta que os direitos sociais poderiam ser classificados como
direitos sociais do homem como produtor e como consumidor. Na primeira classificação,
“direitos do homem como produtor”, teríamos a liberdade de instituição sindical, o direito à
greve, o direito de o trabalhador determinar as condições de seu trabalho, o direito de
cooperar na gestão da empresa e o direito de obter emprego. Na segunda classificação,
“direitos sociais do homem consumidor”, teríamos o direito à saúde, à segurança social, ao
desenvolvimento intelectual, o igual acesso das crianças e adultos à instrução, à formação
profissional e à cultura e garantia ao desenvolvimento da família, que estariam no título da
ordem social27.
Os direitos fundamentais sociais, afirma Ingo Sarlet, passaram a ser entendidos como
uma dimensão específica dos direitos fundamentais, na medida em que pretendem fornecer os
recursos fáticos para uma efetiva fruição das liberdades, de tal sorte que têm por objetivo a
26 A Emenda Constitucional 26, de 14/02/2000, incluiu o direito a moradia no rol dos direitos sociais.27 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 289.
28
garantia de uma igualdade e liberdade reais, que apenas podem ser alcançadas pela
compensação das desigualdades sociais. 28
Destaca Jorge Miranda que por meio dos direitos sociais, objetiva-se atingir uma
liberdade tendencialmente igual para todos, que apenas pode ser alcançada com a superação
das desigualdades e não por meio de uma igualdade sem liberdade. 29
O art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, dispõe que “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Ingo Sarlet entende
que todas as normas relativas a direitos fundamentais são dotadas de um mínimo de eficácia 30
possível, outorgando-lhes, nesse sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas
constitucionais. Isso significa uma exeqüibilidade instantânea derivada da própria
constituição, com a presunção de norma pronta, acabada, perfeita e auto-suficiente.
O legislador da constituinte outorgou às normas de direitos fundamentais sociais uma
normatividade reforçada, e de modo especial, revela que as normas de direitos e garantias
fundamentais não mais se encontram na dependência de uma concretização pelo legislador
infraconstitucional, para que possam vir a gerar plenitude de seus efeitos. O constituinte
pretendeu evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo que os mesmos
“permaneçam letra morta na Constituição”. Além disso, destaca Sarlet que os direitos
fundamentais sociais encontram-se protegidos não apenas contra o legislador ordinário, mas
28 MIRANDA, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.1, nº 1, 2001. Disponível em :http://www.direitopublico.com.br. Acessado em 05/08/2007.29 Ibid. 18.30 José Afonso da Silva, apude Sarlet, afirma que a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. A eficácia e a aplicabilidade são conexos, já que a eficácia é encarada como potencialidade (a possibilidade de gerar efeitos jurídicos) e a aplicabilidade, como realizabilidade, razão pela qual eficácia e aplicabilidade podem ser tidas como as duas faces da mesma moeda. (Ibid., p. 25)
29
até mesmo contra a ação do poder constituinte reformador, já que integram o rol das
“clausulas pétreas”, do art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF. 31
Já o autor José Afonso da Silva afirma que a própria Constituição faz depender de
legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais e
coletivos. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e
individuais são de aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos sociais tendem
a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma
lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. 32
Diante as interpretações divergentes de vários doutrinadores sobre a eficácia dos
direitos fundamentais sociais, optamos pelo posicionamento de Ingo Sarlet, o qual afirma que
mesmo contrariamente ao que propugna boa parte da doutrina, as normas de direitos
fundamentais não podem mais ser considerados meros enunciados sem força normativa,
limitados a proclamações de boas intenções e veiculando projetos que poderão, ou não, ser
objeto de concretização, dependendo única e exclusivamente da boa vontade do poder
público, em especial, do legislador. O autor afirma ainda que, tal postulado – o princípio que
impõe a maximização da eficácia e efetividade de todos os direitos fundamentais – não
implica em desconsiderar as peculiaridades de determinadas normas de direitos fundamentais,
admitindo, dadas as circunstâncias, alguma relativização. 33
De acordo com Sarlet a norma contida no parágrafo 1º do artigo 5º da CF/88, aplicável
a todos os direitos fundamentais – inclusive aos direitos sociais -, apresenta um caráter de
31 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, nº 10, janeiro de 2002. Disponível em :http://www.direitopublico.com.br. Acessado em 05/08/2007.32 SILVA, José Afonso da. Garantias Econômicas, Políticas e Jurídicas da Eficácia dos Direitos Sociais. Disponível em :http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto110.htm. Acesso em 11/06/2006.33 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.1, nº 1, 2001. Disponível em http://www.direitopublico.com.br. Acessado em 05/08/2007.
30
norma-princípio que se constitui em uma espécie de mandado de otimização, impondo aos
órgãos estatais a tarefa de reconhecerem e imprimirem às normas de direitos e garantias
fundamentais a maior eficácia e efetividade possível.
Nesse mesmo sentido, destaca Flavia Piovesan ao tratar da aplicação imediata das
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais:
Este princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais
referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime
jurídico específico endereçado a tais direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos
conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e
garantia fundamental. Este princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante
dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos e
prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário. 34
Ainda no art. 5º, parágrafo 2º, da CF, está disposto que: “os direitos e garantias
expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja
parte”. Verifica-se nesse dispositivo a possibilidade da existência de outros direitos e
garantias fundamentais inseridos ao longo de todo o texto constitucional, como também o fato
de os direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais receberem o mesmo
tratamento dos direitos fundamentais, e passarem a ter aplicabilidade imediata no direito
interno. 35
34 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 59.35 Sarlet classifica os direitos fundamentais em dois grandes blocos: os positivados e os não-positivados. No primeiro estariam inseridos os direitos expressos na Constituição Federal e os expressos em tratados. Já no segundo bloco estariam implícitos (posições fundamentais subentendidas nas normas definidoras de direitos e garantias fundamentais) e os decorrentes do regime e dos princípios (que se referem às disposições contidas no Título I – do art. 1º ao 4º). (SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v.1, nº 1, 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acessado em 05/08/2007).
31
Vale ressaltar o posicionamento defendido pela autora Flávia Piovesan em favor da
natureza constitucional dos direitos enunciados em tratados internacionais de direitos
humanos em que o Brasil seja parte, por força da natureza materializante aberta dos direitos
fundamentais.
A autora afirma que por força do art. 5º, parágrafos 1º e 2º, a Constituição Federal de
1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais uma hierarquia de norma
constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que
apresentam aplicabilidade imediata. A autora ressaltar que, enquanto os demais tratados
internacionais têm força hierárquica infraconstitucional, nos termos do art. 102, III, “b” da
CF, os direitos enunciados em tratados internacionais e proteção dos direitos humanos detêm
natureza de norma constitucional. Os tratados internacionais de direitos humanos objetivam a
salvaguarda dos direitos do ser humano e não têm como objeto a proteção de prerrogativas do
Estado. Já os tratados internacionais comuns buscam o equilíbrio e a reciprocidade de
relações entre Estados-partes. Essa distinção, na opinião da autora justificaria a força
hierárquica diferenciada dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. 36
Nesse sentido, Cançado Trindade afirma que os diversos sistemas de proteção de
direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos, pois do aparato de
proteção existente, é possível utilizar, num caso concreto, aquele que melhor proteja a
dignidade do ser humano. Afirma ainda o autor:
O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado
expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar
para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de
“conflitos” entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui em
segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos em dimensão
tanto vertical (tratados e instrumentos de direito interno), quando horizontal (dois ou
36 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limond, 2003. p. 45-47.
32
mais tratados). (...) Contribui, em terceiro lugar, para demonstrar que a tendência e o
propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos
direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção. 37
Em síntese, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos
Humanos e o Direito interno, adota-se o critério da norma mais favorável à vítima. Os direitos
internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar, somar e
fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no
plano normativo constitucional. 38
De acordo com Alessandra Bontempo o princípio da primazia ou prevalência da
norma mais benéfica à proteção dos direitos humanos é consagrado nos instrumentos
internacionais, como pode ser observado no artigo 5º (2) do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e no art. 5º (2) do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, assim expresso: “não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos
humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte no presente Pacto
em virtude de leis, convenções, regulamento ou costumes, sob pretexto de que o presente
Pacto não os reconheça em menor grau”.
A Constituição Federal de 1988 assume expressamente os direitos provenientes dos
tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil se obriga. E através da Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, foi acrescentado no seu texto, o parágrafo 3º do art. 5º,
dispondo: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
37 Ibid., p. 41.38 Ibid., p. 54-55
33
O catálogo de direitos fundamentais, fruto dos direitos expressamente previstos em
nossa. Constituição, nos documentos internacionais incorporados ao ordenamento jurídico
brasileiro e aqueles decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados é bastante
extenso. Assim, o maior problema hoje não está no campo da declaração de direitos, mas na
sua concretização.
Norberto Bobbio defende que o principal desafio relativo aos direitos do homem
encontra-se no campo de sua efetividade:
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, não é tanto o de
justificá-los, mais o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político. (...) Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas
jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são
esses direitos, qual a sua natureza e seu funcionamento, se são direitos naturais ou
históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-
los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente
violados. 39
Trataremos, a partir de agora, de dois direitos sociais específicos: o direito a moradia e
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, verificando os principiais aspectos
teóricos relativos à sua proteção jurídica para, no próximo capítulo, analisarmos alguns
problemas práticos à sua efetivação.
2.2 O DIREITO À MORADIA COMO UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DE
NATUREZA SOCIAL
39 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 14ª Tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24-25.
34
2.2.1 Os instrumentos normativos internacionais que reconhecem o direito à moradia
como um direito humano
O direito à moradia é um direito humano protegido pela Constituição Brasileira e
pelos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos. Os cidadãos brasileiros
são titulares desse direito e, como tais, estão aptos a exigirem sua promoção e o seu
cumprimento junto aos organismos nacionais e internacionais de proteção40.
O direito à moradia é reconhecido como um direito humano em diversas declarações e
tratados internacionais dos quais o Estado Brasileiro é parte.
Antes de analisarmos os principais documentos que reconhecem, em seus textos, o
direito à moradia como um direito humano necessário e indispensável para uma existência
digna, faz-se necessário diferenciar, no aspecto jurídico, os efeitos que as declarações e os
tratados e convenções internacionais possuem.
Nelson Saule Jr. afirma que as Declarações são estabelecidas por resoluções que não
acarretam obrigações legais aos países signatários. As Declarações resultam em
compromissos políticos, que não têm natureza vinculante para os Estados. Nos tratados e
convenções, pelo contrário, os compromissos assumidos pelos países têm natureza vinculante,
isto é, tem força legal, acarretando obrigações e responsabilidades ao Estado pela falta de
cumprimento das obrigações assumidas. 41
40 SAULE Jr, Nelson.Direito à moradia no Brasil, Relatório Nacional da Plataforma Brasileira dos DhESC. Disponível em: http:www.unhabitat.org/downloads/docs/2649 61742 03.05.20.Analisis%20Brasil%202003.doc. Acessado em 25/10/06. 41 SAULE Jr., Nelson. Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Instituto Polis, São Paulo: Max Limond, 1999. p. 73.
35
Uma particularidade relativa aos direitos enunciados em tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos incorporados pelo ordenamento jurídico brasileiro é o seu
status de norma constitucional, integrando e complementando o catálogo dos direitos e
garantias previstos na Constituição de 1988.
De acordo com o entendimento de Flavia Piovesan, por força do princípio consagrado
no parágrafo 1º do artigo 5º da CF de 1988, torna-se possível a invocação imediata de tratados
e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de
edição de ato com força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos
internacionais. Sendo que, essa incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos
pelo Direito brasileiro traz como conseqüências: de um lado, permite ao particular a
invocação direta dos direitos e liberdades internacionalmente assegurados e, por outro, proíbe
condutas e atos violadores a estes mesmos direitos, sob pena de invalidação. Destaca ainda, a
autora que, consequentemente, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda
norma preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a vigência. 42
Os tratados internacionais de direitos humanos fundamentam reconhecem o direito à
moradia como um direito humano, passando a ser um direito integrado e positivado no direito
brasileiro, em razão do Estado Brasileiro ser parte dos pactos e convenções internacionais.
Feita estas considerações preliminares analisaremos a seguir a proteção do direito à
moradia no aparato internacional de proteção aos direitos fundamentais.
Carta das Nações Unidas
42 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 99.
36
A Carta das Nações Unidas foi assinada por representantes de 50 países na
Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, realizada em São Francisco,
em 26 de junho de 1945, entrando em vigor no dia 24 de outubro daquele mesmo ano, sendo
ratificada em 21 de setembro de 1945 pelo Brasil.
A partir da Carta da ONU, processou-se uma onda de transformações no Direito
Internacional, inaugurando-se um novo modelo de relações internacionais. A Carta da ONU é
um importante documento deste século no tocante à matéria do reconhecimento e preservação
dos direitos fundamentais do indivíduo do mundo pós-guerra, momento em que era preciso
evitar que atrocidades ocorridas durante a guerra se repetissem, garantindo que as gerações
vindouras não sofressem seus efeitos.
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVEMOS
preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço
da nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e
pequenas e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações
decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser
mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de
uma liberdade ampla . 43
A Carta da ONU contém as principais disposições com relação à manutenção da paz e
segurança internacionais, dando prioridade ao estabelecimento das condições necessárias para
a efetivação da justiça e o respeito às obrigações decorrentes da assinatura dos tratados
internacionais. A Carta também garante as condições necessárias ao progresso social e
43 Preâmbulo da Carta das Nações Unidas. Podendo ser consultado em http://dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/cartonu.htm. Acessado em 10/05/2007.
37
melhorias nas condições de vida, enfatizando a defesa dos direitos humanos e das liberdades
pessoais, utilizando-se da cooperação internacional.
A criação da ONU teve como um de seus objetivos instituir a cooperação internacional
para solucionar os problemas que afetavam a todos. A Carta da ONU é um documento de
extrema importância na proteção do direito à moradia no Brasil, pois, apesar de não ter tratado
expressamente, em seu texto, do direito à moradia como um direito humano fundamental,
definiu uma estrutura internacional de proteção dos direitos humanos ligados à proteção dos
direitos sociais.
Declaração Universal dos direitos humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada pela Assembléia Geral
da ONU, em 10 de dezembro de 1948, pela aprovação unânime de 48 Estados, com 8
abstenções. A Declaração Universal é uma das principais conquistas das Nações Unidas no
campo dos direitos humanos, tendo sido proclamada “como o ideal comum a ser atingido por
todos os povos e todas as nações...”. 44
De acordo com Fábio Konder Comparato, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, como se percebe da leitura de seu preâmbulo45, foi redigida sob o impacto das
44 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. Saraiva, 4 ed. São Paulo/2005. p. 23245 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Preâmbulo - Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo; Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum; Considerando ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso,à rebelião contra a tirania e a opressão; Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação
38
atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial. A Declaração, retomando os ideais da
Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, enfim, em
âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da
solidariedade entre os homens, como ficou consignado em seu artigo I46.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, fonte inspiradora do sistema de
proteção internacional dos direitos humanos, reconhece o direito à moradia como um direito
humano, com base no artigo XXV, que dispõe sobre o direito a um padrão de vida
adequado47:
1. toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios
de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
Sendo assim, pode-se afirmar que a pessoa humana somente terá um padrão de vida
adequado se os direitos à alimentação, ao vestuário, à moradia, saúde e seguridade forem
assegurados e respeitados.
Nelson Saule Jr. ressalta que a Declaração Universal não esgota e não elenca todos os
direitos humanos48, pois esses direitos foram constituídos num momento histórico da
com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades; Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso. (Ibid., p. 231.)46 Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo I - todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (Ibid., p.222).47 Ibid., p.222.48 Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Norberto Bobbio afirma que “os direitos elencados na Declaração não são os únicos e possíveis direitos do homem: são os direitos do homem histórico, tal qual se configurava na mente dos redatores da Declaração após a tragédia da Segunda Guerra Mundial, numa época que tivera início com a Revolução Francesa e desembocara na Revolução Soviética”. (NORBERTO, Bobbio. A Era
39
humanidade, em que se buscava recuperar um período de paz, com o final da Segunda Guerra
Mundial49.
Assegura o autor que o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e
o direito ao desenvolvimento sustentável, embora não preconizados na Declaração Universal,
são exemplos de direitos humanos que se constituíram face às transformações econômicas e
sociais das últimas décadas50. Daí porque não foram reconhecidos naquele momento. Tal
aspecto só comprova o caráter histórico dos direitos humanos, acima referido.
Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais
O Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais é o principal
documento de proteção aos direitos sociais no âmbito da ONU – Organização das Nações
Unidas.
O direito à moradia está incluído no rol dos direitos sociais e tem por objetivo garantir
a todo ser humano o direito a uma moradia adequada, sadia e dotada de infra-estrutura e
serviços públicos urbanos (água, esgoto, coleta de lixo, drenagem, iluminação pública,
varrição, transporte, telefonia, etc).
O processo de especificação e de aperfeiçoamento dos direitos estabelecidos na
Declaração Universal tem como marco os Pactos Internacionais de direitos civis e políticos e
dos Direitos. Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992. p. 33).49 SAULE Jr., Nelson. Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Instituto Polis, São Paulo: Max Limond, 1999. p.75. 50 Ibid., p. 75
40
o Pacto dos direitos econômicos, sociais e culturais, ambos instituídos pelas Nações Unidas
em 1966, e com entrada em vigor em 03 de janeiro de 1976, tendo sido ratificados pelo Brasil
em 24 de janeiro de 1992.
O Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e cultural teve como objetivo
incorporar os dispositivos da Declaração Universal sob a forma de preceitos juridicamente
obrigatórios e vinculantes. O Pacto criou obrigações legais aos Estados-partes, ensejando
responsabilização internacional em caso de violação dos direitos que enuncia. 51
Através do Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos
previstos no artigo XXV, da Declaração Universal52, passam a ter tratamento específico e
força vinculante para os Estados signatários do documento.
O direito à moradia encontra-se expressamente reconhecido como um direito humano
no artigo 11 do Pacto, que estabelece:
1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um
nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação,
vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas
condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a
consecução desse direito, reconhecendo, neste sentido, a importância essencial da
cooperação internacional fundada no livre consentimento.
51 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p.168.52 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art. XXV - 1.Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
41
No artigo 2º. do Pacto, cada Estado Parte compromete-se a adotar medidas, tanto por
esforço próprio como pela assistência e cooperação internacional, que visem
progressivamente, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no Pacto.
De acordo com Nelson Saule Junior, a adoção do termo “progressivamente” no Pacto
Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais, significa que os Estados devem
tomar medidas, implementar políticas, programas e planos visando a realização contínua e
gradual, sempre no sentido ascendente desses direitos. Destaca o autor que os Estados não
podem se isentar das obrigações imediatas e responsabilidades decorrentes do Pacto, sob pena
de descumprir e desrespeitar os compromissos que legalmente assumiram perante a
comunidade internacional. Os Estados Partes têm a obrigação legal de instituir organismos e
instrumentos para a promoção de políticas públicas de modo a tornar pleno o exercício desses
direitos53.
De acordo com Flávia Piovesan os direitos sociais, econômicos e culturais, nos termos
que estão concebidos pelo Pacto (art. 2º, parágrafo 1º), apresentam realização progressiva, ou
seja, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que tem por obrigação adotar
medidas econômicas e técnicas, isoladamente e por meio da assistência e cooperação
internacional, até o máximo de seus recursos disponíveis com vistas a alcançar
progressivamente a completa realização dos direitos previstos pelo Pacto. Os Estados-partes
não se comprometem a atribuir efeitos imediatos aos direitos enumerados no Pacto, mas os
Estado se obrigam meramente a adotar medidas, até o máximo de recursos disponíveis, a fim
de alcançarem progressivamente a plena realização desses direitos.54
53 SAULE Jr., Nelson. Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Instituto Polis, São Paulo: Max Limond, 1999. p.77.54 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p.169-172.
42
Sendo assim, o Estado Brasileiro tem a obrigação, no que diz respeito ao direito à
moradia, de elaborar uma legislação, criar instrumentos, programas e planos de ação sobre
política habitacional de modo a garantir esse direito para os seus cidadãos55.
Os direitos garantidos pelo Pacto são aplicação progressiva, considerando que não
podem ser implementados sem que exista um mínimo de recursos econômicos disponível e
principalmente não podem ser implementados sem que representem efetivamente uma
prioridade na agenda política nacional. Dessa obrigação da progressividade na implementação
dos direitos sociais, econômicos e culturais decorre a chamada “cláusula de proibição do
retrocesso social”, na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo da
implementação desses direitos, ou seja, a cláusula proíbe o retrocesso ou a redução de
políticas públicas voltadas à garantia de tais direitos. 56 Conforme a Recomendação Geral nº
03, item 09, do Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “qualquer medida
deliberadamente regressiva requer a mais minuciosa consideração e deverá ser completamente
justificada em relação ao total dos direitos previstos no Pacto Internacional de Proteção dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no contexto da utilização do máximo dos recursos
disponíveis”.
Clarice Duarte destaca que a noção de progressividade dos direitos sociais não pode
ser confundia com a possibilidade de sua não aplicação:
De acordo com o que está previsto no próprio Pacto, cabe ao Estado adotar medidas
até o máximo de seus recados disponíveis (art. 2º), o que significa o dever de executar
avanços concretos em prazos determinados. Assim, a progressividade cria um
empecilho ao retrocesso da política social do Estado que, tendo alcançado um certo
nível de proteção dos respectivos direitos, não pode retroceder e baixar o padrão de
55 Ibid., p. 7856 “O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem enfatizado o dever dos Estados-partes de assegurar, ao menos, o núcleo essencial mínimo relativamente a cada direito enunciado do Pacto, cabendo aos Estados o dever de respeitar, proteger e implementar tais direitos”. (Ibid., p. 171)
43
vida da comunidade, já que a cláusula do não retrocesso social protege o núcleo
essencial dos direitos sociais. 57
Comparato afirma que os direitos declarados pelo Pacto de direitos econômicos,
sociais e culturais, têm por objeto políticas públicas ou programas de ação governamental e
políticas públicas coordenadas entre si. Complementa o autor que a elevação do nível e da
qualidade de vida das populações carentes supõe, no mínimo, um programa conjunto de
medidas governamentais no campo do trabalho, da saúde, da previdência social, da educação
e da habitação popular58. Por serem interdependentes esses objetos sociais, a não realização de
um deles compromete a realização de todos os outros.
O fato de terem por objeto a realização de políticas públicas torna a acionabilidade dos
direitos sociais questionável para alguns autores. De acordo com Flavia Piovesan, os direitos
fundamentais sociais, econômicos e culturais são acionáveis e demandam séria e responsável
observância. No entanto, a comunidade internacional continua a tolerar freqüentes violações
aos direitos sociais, econômicos e culturais. Sendo que a violação a esses direitos é resultado
tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental como da ausência de pressão
internacional em favor dessa intervenção. A autora afirma ainda que a violação dos direitos
sociais, econômicos e culturais é um problema de ação e prioridade governamentais e
implementação de políticas públicas, que sejam capazes de responder a graves problemas
sociais. 59
57 DUARTE, Clarice Seixas. O Direito Público subjetivo ao ensino fundamental na Constituição Federal Brasileira de 1988. Dissertação (Doutorado apresentado ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p.61.58 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 4 ed. 2005. p. 334.59 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito Constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 175-176.
44
Com efeito, democracia, estabilidade e paz não podem conviver com condições de
pobreza crônica, miséria e negligência. Além disso, essa insatisfação criará grandes e
renovadas escalas de movimentos de pessoas, incluindo fluxos adicionais de
refugiados e migrantes, denominados ´refugiados econômicos´, com todas as suas
tragédias e problemas. (...) Direitos sociais, econômicos e culturais devem ser
reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade. 60
A globalização econômica está associada, inclusive no Brasil, à supressão de
conquistas sociais, à exclusão de vastas parcelas da sociedade dos benefícios do progresso e a
consolidação de profundas desigualdades sociais e econômicas. Os mecanismos
internacionais de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais pouco lograrão sem
modificações profundas nas sociedades nacionais, ditadas pelos imperativos da justiça social,
para que todos possam se beneficiar do progresso social.
Agenda 21
A Agenda 21 foi elaborada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, tendo como
objetivo regulamentar o processo de desenvolvimento com base nos princípios de
sustentabilidade. 61
60 Flavia Piovesan destaca o alerta do Statement to the World Conference on Human Rights on Behalf of the Comnittee on Economic, Social and Cultural Rights. (Ibid., p. 177) 61 A partir da década de 1980 difundiu-se o termo desenvolvimento sustentável, tendo sido difundido como novo paradigma na conferência mundial sobre a conservação e o desenvolvimento sustentável eqüitativo, realizada no Canadá, em 1986, tendo como princípios: integrar conservação da natureza e desenvolvimento; satisfazer as necessidades humanas fundamentais; e perseguir equidade e justiça social. O Relatório Brundtland, de 1987, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, retoma o conceito de desenvolvimento sustentável, dando-lhe a seguinte definição: desenvolvimento que responde às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades. (MONTIBELLER FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: Meio ambiente e custos sociais do moderno sistema produtor de mercadorias. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. p. 47-48).
45
No capítulo 7 da Agenda 21, estão expresso itens referentes ao direito à moradia,
como o item 6 - “O acesso a uma habitação sadia e segura, é essencial para o bem-estar
econômico, social, psicológico e físico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das
ações de âmbito nacional e internacional”. Este mesmo item estabelece que o direito à
moradia é um direito humano básico, que está inserido na Declaração Universal de Direitos
Humanos, e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e estima que
pelo menos um bilhão de pessoas não tem acesso a uma habitação sadia e segura. A previsão
do direito à moradia num documento que tem como objeto primário a proteção do meio
ambiente demonstra a relação de profunda interdependência entre esses dois direitos.
A Agenda 21 não é um documento normativo, pois não obriga as Nações signatárias,
mas é um documento ético que se reduz a um compromisso por parte deles, sendo assim, não
é um documento técnico, mas político. A Agenda 21 transformou-se em instrumento de
referência e mobilização para a mudança do modelo de desenvolvimento em direção de
sociedades cada vez mais sustentáveis.
Infelizmente uma das maiores críticas à Agenda 21 relaciona-se com o seu caráter
genérico e às dificuldades de implementação prática. A Agenda não está sendo muito
utilizada devido a pouca ou nenhuma implementação de ações voltadas a efetiva defesa
ambiental.
As Conferências Mundiais têm proporcionado grande mobilização, sobretudo da
mídia. A participação ativa da sociedade civil nessas Conferências Mundiais, principalmente
através das ONGs, e movimentos sociais, tem contribuído para pressionar as Nações Unidas e
os Estados a assumirem as agendas da sociedade.
Agenda Habitat
46
A Agenda Habitat foi adotada pela Conferência das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos – Habitat II, que foi realizada em Istambul, em junho de 1996, tendo
como objetivos principais: instituir padrões de habitação adequada para todos, e o
desenvolvimento sustentável em um mundo em urbanização. A Agenda estabelece um
conjunto de princípios e metas que vão nortear esses dois objetivos.
O direito à moradia foi o principal tema e objeto de debates e de negociações entre os
países e organizações não governamentais presentes na Conferência do Habitat II.
No preâmbulo da Agenda é reconhecido o acesso à habitação sadia e segura, dotada
dos serviços básicos, como condição essencial para uma vida digna e para o bem estar físico,
psicológico, social e econômico das pessoas.
O direito à moradia encontra-se expresso no capítulo II, parágrafo 13, que dispõe:
Nós reafirmamos e somos guiados pelos propósitos e princípios da Carta das Nações
Unidas e nós reafirmamos nosso compromisso de assegurar a plena realização dos
direitos humanos a partir dos instrumentos internacionais, em particular nesse
contexto o direito à moradia disposta na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, e provido pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, a Convenção sobre todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança, levando em conta que o
direito à moradia incluído nos instrumentos internacionais acima mencionados deve
ser realizado progressivamente. Nós reafirmamos que todos os direitos humanos,
civis, culturais, econômicos, políticos e sociais são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados.
Os compromissos sobre a Adequada Habitação para Todos estão expressos no
Capítulo III, tendo sido o direito à moradia reconhecido no parágrafo 24, como segue:
47
Reafirmamos nosso compromisso para a plena e progressiva realização do direito à
moradia, provido por instrumentos internacionais. Neste contexto, nós
reconhecemos a obrigação dos governos de capacitar as pessoas para obter habitação
e proteger e melhorar as moradias e vizinhanças. Nós nos comprometemos com a
meta de melhorar as condições de vida e de trabalho numa base sustentável e
eqüitativa, pelo qual todos terão adequada habitação, sadia, segura, protegida,
acessível e disponível, que inclui serviços básicos, facilidades e amenidades, e o
gozo de liberdades frente a discriminações de moradia e segurança legal de posse.
Nós devemos implementar e promover este objetivo de maneira plenamente
consistente com as normas de direitos humanos.
Nos termos da Agenda Habitat, os Governos devem tomar apropriadas ações para
promover, proteger e assegurar a plena e progressiva realização do direito à moradia62.
A definição de moradia adequada encontra-se no parágrafo 43 da Agenda, dispondo
ser aquela que “possui privacidade, espaço, acessibilidade física, segurança, incluindo
segurança da posse, durabilidade e estabilidade estrutural, iluminação, ventilação e
aquecimento, infra-estrutura básica, suprimento de água, saneamento e tratamento de
resíduos, apropriada qualidade ambiental e de saúde, e adequada localização com relação ao
trabalho e serviços básicos, devendo todos esses componentes terem um custo acessíveis e
estarem disponíveis a todos os seres humanos”.
62 Sobre o assunto comenta Saule Jr. que “essa obrigação de tornar efetivo o direito à moradia, de forma progressiva significa que o Estado brasileiro tem que criar meios materiais indispensáveis para o exercício desse direito. Para realização progressiva do direito à moradia são necessárias as seguintes medidas: - adoção de instrumentos financeiros, legais, administrativos para a promoção de uma política habitacional; - a constituição de um sistema nacional de habitação descentralizado, com mecanismos de participação popular; - revisão de legislações e instrumentos de modo a eliminar normas que acarretem algum tipo de restrição e discriminação sobre o exercício do direito à moradia; - a destinação de recursos para a promoção da política habitacional. A realização progressiva como obrigação, produz de imediato os seguintes efeitos: a faculdade de o cidadão exigir de forma imediata, as prestações e ações constitutivas desse direito, face a inércia do Estado, que pode gerar a inconstitucionalidade por omissão; o direito de acesso à Justiça, mediante ações e processos judiciais eficazes destinados a proteção do direito à moradia; o direito de participar da formulação e implementação da política habitacional.” (SAULE Jr., Nelson. Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Instituto Polis, São Paulo: Max Limond, 1999. p. 94).
48
De acordo com o parágrafo 44, do Capitulo IV, o direito à moradia é reconhecido
como um direito humano, desde a adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948, o direito à moradia tem sido reconhecido como um importante componente do direito a
um nível adequado de vida. Todos os Governos sem exceção, têm a responsabilidade no setor
de habitação de proteger, assegurar e promover: a expansão do suprimento de moradias;
regulamentação e incentivos ao mercado para construção de casas a preços acessíveis;
provisão de subsídios para locação e outras formas de assistência à moradia para os mais
necessitados; apoio a programas habitacionais para as comunidades de base, cooperativas e
associações sem fins lucrativos; promoção de programas voltados aos sem teto e outros
grupos vulneráveis; utilização de financiamentos e outros recursos públicos e privados de
forma inovadora; criação e promoção de incentivos ao setor privado para investimento no
mercado de habitação mais baratas, voltadas a atender à demanda de moradias tanto no
regime de locação como no de propriedade; desenvolvimento de modelos de ocupação
territorial sustentáveis.
O Brasil é signatário de vários tratados e convenções sobre assentamento humano e
meio ambiente, além da Agenda 21 e da Agenda Habitat. Os tratados internacionais integram
o nosso ordenamento jurídico por força do que dispõe o § 2º e o § 3º do art. 5º da Constituição
Federal. Sendo assim, os princípios do desenvolvimento sustentável, da participação popular e
do direito à moradia integram o nosso ordenamento jurídico, sendo que tal direito foi
recepcionado no art. 6º da Constituição Federal através da emenda constitucional nº. 26/2000,
sendo incorporado ao rol de direitos sociais fundamentais.
2.2.2 O reconhecimento do direito à moradia na CF/88
49
A Comissão das Nações Unidas para Assentamentos Humanos estima que 1,1 bilhão
de pessoas estão agora vivendo em condições inadequadas de moradia, apenas nas áreas
urbanas. No Brasil, estima-se que 6,5 milhões de brasileiros não têm acesso a uma moradia
digna. 63
Fernando Aith afirma que o processo de generalização da proteção internacional dos
direitos humanos trouxe, em seu bojo, a proteção do direito à moradia. O primeiro passo para
a proteção do direito à moradia foi o reconhecimento formal de que todo ser humano necessita
de uma moradia para ter uma existência digna. 64
De acordo com o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, todos têm
direito a um lugar adequado para viver, ou seja, todos têm o direito humano a uma moradia
segura e confortável, localizada em um ambiente saudável que promova a qualidade de vida
dos moradores da comunidade.
O direito a uma moradia adequada está vinculado a outros direitos humanos, que são
interdependentes, de forma que a não realização de um deles compromete a realização de
todos os outros. Ou seja, sem um lugar adequado para moradia, torna-se difícil manter a
educação, o emprego e a saúde, aumentando-se, assim, a exclusão social, ambiental e
econômica das pessoas que não têm acesso à moradia.
Fernando Aith conceitua o direito à moradia como o direito humano fundamental de
acesso à moradia habitável, sadia, segura, protegida e acessível, com fornecimento de água
potável, sistema de saneamento e serviços públicos básicos. 65
63 BRASIL. Ministério das Cidades. Déficit Habitacional no Brasil. Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Políticos e Sociais. Belo Horizonte: 2001. 64 AITH, Fernando Mussa Abujamra. O Direito à moradia e suas garantias no sistema de proteção dos direitos humanos. Dissertação - Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - São Paulo, 2001. p. 77.65 Ibid., p. 34.
50
O Comitê da ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, recomendação
Geral nº 4, adotado em 1991, identificou sete componentes básicos para que uma moradia
possa ser considerada minimamente adequada: I) segurança no direito de propriedade, que
garanta a proteção contra os despejos forçados; II) disponibilidade de serviços, equipamentos
e infra-estrutura, tais como água, esgoto, coleta de resíduos sólidos, energia para cocção,
iluminação, dentre outros; III) disponibilidade a preços acessíveis, para que o preço da
moradia seja compatível com o nível de renda da população e não comprometa a satisfação de
outras necessidades básicas das famílias; IV) habitabilidade, no sentido de fornecer aos seus
moradores espaço adequado, protegendo-os de fatores climáticos e garantindo a sua segurança
física; V) acessibilidade a todos os grupos sociais, levando em conta as necessidades
habitacionais específicas de idosos, crianças, deficientes físicos, moradores de rua, população
de baixa renda etc.; VI) localização que possibilite o acesso ao emprego, a serviços de saúde e
outros equipamentos sociais; e VII) adequação cultural, de modo a permitir a expressão das
identidades culturais. 66
O direito à moradia foi explicitamente incorporado à Constituição Federal por meio da
Emenda Constitucional n° 26, de 14 de fevereiro de 2000, que estabelece no artigo 6° da
Constituição Federal que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição”.
A constitucionalização do direito à moradia convalida a indissociabilidade entre a
garantia de condições de vida digna e o bem-estar do ser humano, seguindo expressão já
consagrada pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Do
mesmo modo, acolhe proposição da 2ª Conferência sobre Assentamentos Urbanos (Habitat II)
66 MORAIS, Maria Piedade; GUIA, George Alex da; PAULA, Rubem de. Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004). Acessado em 15/06/2007. Podendo ser consultado no http:/www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicações/bpsociais/bps
51
promovida em 1996 pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Istambul, na Turquia,
que recomendou a todos os países participantes, entre eles o Brasil, o destaque normativo do
direito à moradia em suas constituições.
A Constituição Federal estabelece ainda, no art. 23, inciso IX que é dever do Estado,
nas suas três esferas, promover programas de construção de moradias e melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico. O direito à moradia também faz parte das
necessidades básicas dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que devem ser atendidas
pelo salário mínimo (art. 7, seção IV).
Conforme visto anteriormente, a Constituição Federal dispõe, em seu artigo 5º,
parágrafo 1º, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”. Considerando que o direito à moradia está expressamente reconhecido na
Constituição Federal como um direito humano fundamental, concluí-se que o direito à
moradia tem aplicação imediata.
De acordo como Fernando Aith não há dúvida que tal dispositivo aplica-se também
aos direitos sociais, pois embora inserido no parágrafo 1º do art. 5º, que define os direitos e
deveres individuais e coletivos, o dispositivo contém ordem clara no sentido de que todos os
direitos e garantias fundamentais que a Constituição defende possuem aplicação imediata. A
vontade do legislador foi clara, tanto que inseriu um texto que claramente abrange não só os
direitos e as garantias fundamentais do art. 5º, como também aqueles direitos e garantias
expressos no artigo 6º ou ao longo do texto constitucional. 67
O direito à moradia foi reconhecido como direito humano fundamental ao estar
expresso no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” da Constituição Federal. Sendo
assim, o direito à moradia além de ter aplicação imediata, é uma norma de eficácia plena.
67 AITH, Fernando Mussa Abujamra. O Direito à moradia e suas garantias no sistema de proteção dos direitos humanos. Dissertação - Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - São Paulo, 2001. p. 96.
52
Existem normas que possuem aplicação imediata, oferecendo aos cidadãos garantias concretas
para a defesa do direito à moradia, mas existem também normas definindo algumas garantias
do direito à moradia sem conter os elementos suficientes para que possam ser consideradas
como de aplicação imediata. Sendo que essas normas são eficácia limitada, pois dependem de
normas infra-legais. 68
O direito à moradia é de aplicação imediata e eficácia plena, sendo assim, de imediato
o Estado Brasileiro tem a obrigação de adotar as políticas, ações e demais medidas
compreendidas e extraídas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito,
em especial aos que se encontram no estado de pobreza e miséria. Contudo, essa obrigação
não implica o dever de prover e dar habitação para todos os cidadãos de forma imediata e
integral, mas significa, sim, o dever de constituir políticas que garantam o acesso de todos ao
mercado habitacional, constituindo planos e programas habitacionais com recursos públicos e
privados para os segmentos sociais que não têm acesso ao mercado e vivem em condições
precárias de habitabilidade sem uma vida digna. 69
O Direito à moradia, como integrante da categoria dos direitos econômicos, sociais e
culturais, para ter eficácia jurídica e social, pressupõe a ação positiva do Estado, através de
execução de políticas públicas, em especial voltadas à promoção de ações e políticas urbanas
68 José Afonso da Silva, apud Fernando Aith, afirma haver três tipos de normas constitucionais, no que se refere à sua classificação quanto à eficácia e aplicabilidade, sendo : I – as normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; II) as normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição e IV) as normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, em geral dependentes de integração com outras normas infraconstitucionais para operaram a plenitude de seus efeitos. As normas de eficácia plena possuem na Constituição normatividade suficiente para assegurar a sua incidência imediata, não estando, portanto, dependentes de providências normativas posteriores para a efetiva proteção dos direitos por elas assegurados. Já as normas de eficácia contida, embora possuam normatividade suficiente para produzir os efeitos necessários à proteção dos direitos nelas reconhecidos, prevêem a edição de meios normativos capazes de lhes reduzir a eficácia e a aplicabilidade. As normas de eficácia limitada são as que não receberam do constituinte normatividade suficiente para a aplicação, deixando ao legislador infraconstitucional a competência de completar a sua regulamentação. (Ibid., p. 95)69 SAULE Jr., Nelson. Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Instituto Polis, São Paulo: Max Limond, 1999. p.96.
53
e habitacionais, com o objetivo de prover a todos os seres humanos que vivem em seu
território com moradias adequadas, a fim de garantir-lhes uma vida digna. 70
Entretanto, apesar dos avanços obtidos com o reconhecimento do direito à moradia na
Constituição Federal e em outros normativos legais, o seu grau de efetividade no Brasil ainda
é bastante desigual entre os diferentes grupos socioeconômicos. Ainda existe no país uma
vasta gama de necessidades habitacionais não satisfeitas, configurando violações do direito à
moradia, que incidem, sobretudo, nas camadas mais pobres da população. Nas áreas urbanas
brasileiras ainda há 59,7 milhões de brasileiros que convivem com pelo menos um tipo de
inadequação habitacional, como pode ser constatado no gráfico abaixo. 71
Gráfico 1 – População urbana / tipo de inadequação de domicílio - 2004
70 AITH, Fernando Mussa Abujamra. O Direito à moradia e suas garantias no sistema de proteção dos direitos humanos. Dissertação - Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - São Paulo, 2001. p. 128.71 MORAIS, Maria Piedade; GUIA, George Alex da; PAULA, Rubem de. Monitorando o Direito à Moradia no Brasil (1992-2004). Podendo ser consultado no http: www.ipea.gov.br. Acessado em 15/06/2007.
54
A falta de políticas públicas bem definidas e claras, somadas à atual política
econômica do governo são fatores que têm contribuído para o aumento da pobreza da
população do Brasil. Em nosso país existem milhões de pessoas sem teto, sem emprego, sem
alimentação, sem escola, e que não tem como comprovar nenhum tipo de renda financeira ou
endereço fixo. Isto porque os projetos sociais destinados às famílias de baixa renda não atinge
nem de perto essas camadas sociais.
A atual política desenvolvimentista, caracterizada pela exclusão social e ambiental,
eleva o número de pessoas morando em áreas de risco. Por falta de alternativa habitacional,
seja pela concentração de terrenos urbanos de propriedade privada ou pela alta especulação
dos mesmos, leva a população carente a construir abrigos nos morros, nos fundos de vales,
nas beiras de rodovias e de vias de alta velocidade e outros lugares inadequados para o seu
habitat. Para essas pessoas não existe o direito à moradia digna, o que realmente existe é a
luta pela sobrevivência.
2.3 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO
DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DE NATUREZA SOCIAL
2.3.1 Evolução da Proteção Jurídica do meio ambiente
A degradação do meio ambiente esteve sempre presente desde quando se iniciou a
concentração populacional e as atividades humanas, aprofundou-se quando da implantação da
indústria moderna e se intensificou enormemente, sobretudo, a partir dos anos 60.
55
A pressão das diversas atividades humanas sobre a natureza até por volta dos anos 60
do século XX, no quadro do mundo capitalista, embora relevante, não havia atingido uma
situação crítica ou possuía caráter localizado ou, ainda, não possuía a característica de
irreversibilidade, o que bloqueava o despertar da consciência ecológica coletiva. A
intensificação, a partir da década de 60, do processo de industrialização altamente impactante
sobre o meio ambiente, seja quanto à exploração de recursos naturais, e quanto à poluição que
suas atividades geram, aliada ao aumento da concentração espacial das atividades produtivas e
da população, ampliou a problemática ecológica e fez surgir, na sociedade, a preocupação
com o presente e o futuro do meio ambiente. Nesse período começa a chamada revolução
ambiental norte-americana, dando início a crescente e continua preocupação de parte
significativa da população com os problemas de deterioração ambiental. 72
De acordo com Enrique Leff, a crise ambiental se torna evidente nos anos 60,
refletindo a irracionalidade ecológica dos padrões dominantes de produção e consumo,
marcando assim, os limites do crescimento econômico. Portanto, a degradação ambiental se
manifesta como sintoma de uma crise de civilização da razão tecnológica sobre a organização
da natureza. 73
A naturalista norte-americana Rachel Carson, em 1962, denunciou pela primeira vez a
crise ambiental, com a publicação do livro intitulado a Primavera Silenciosa (sobre a
revolução verde e os altos riscos para a saúde e o meio ambiente gerados pelo uso intensivo
de agrotóxicos) 74 sendo que a preocupação com o meio ambiente se expandiu nos anos 70,
72 MONTIBELLER FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: Meio ambiente e custos sociais do moderno sistema produtor de mercadorias. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. p. 79-8173 LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p 16.74 Além das denúncias feitas por Raquel Carson, são também símbolos do processo de reconhecimento da crise ambiental, a descoberta da dioxina, substância química altamente perigosa, como contaminante presente no herbicida “Agente Laranja”, largamente utilizado em plantações e na Guerra do Vietnã; eventos como acidentes químicos e radiativos como Seveso (1976), Harrisburg (acidente nuclear ocorrido em Three Mile Island, Pensilvância em 1979), Bhopal (vazamento de gás tóxico de uma fábrica de pesticidas, que matou 3.300 pessoas em 1984 e Chernobyl (1986), assim como os debates globais acerca dos impactos da poluição química no
56
depois da Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, celebrada na cidade de
Estolcomo, em 1972, onde foram assinalados os limites da racionalidade econômica e os
desafios da degradação ambiental. 75
A Declaração de Estolcomo76 estabeleceu com clareza que o homem tem direito
fundamental à vida saudável, num ambiente de qualidade, impondo a obrigação de proteger e
melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras e estabeleceu um dever de cuidado
com o ambiente.
O homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o
qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se
intelectual, moral, social e espiritualmente. Em larga e tortuosa evolução da raça
humana neste planeta chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da
ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de inúmeras
maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o cerca. Os dois aspectos do
meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do
homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida
mesma.
A partir da Conferência de Estocolmo, a comunidade internacional tomou consciência
das questões ambientais planetárias e da necessidade de defender o ambiente. Por esta razão, a
aquecimento global do planeta e no buraco na camada de ozônio).75 LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p.19.76 “Também foi em Estolcomo que, pela primeira vez, o meio ambiente se constituiu em tema principal de uma reunião de governos de diversos países, com destaque para o fato de que as questões políticas, sociais e econômicas mais amplas se inseriram no mesmo palco da questão ambiental. Daí a razão pela qual o conceito de meio ambiente inicialmente proposto na agenda de Estocolmo (que restringia as questões ecológicas em sentido estrito) passou a englobar também problemas como fome e pobreza; o que ocorreu a partir da reação dos países do Sul, derivando daí uma perspectiva global e ampliada dos problemas ambientais. Desse modo, se atribui à Conferência de Estocolmo o mérito de, a partir dali, passar a se visualizar a necessidade de adoção de novos instrumentos e políticas globais no tratamento dos problemas ambientais, em razão da percepção surgida quanto à interdependência planetária de todos os seres vivos. O seu lema, Uma Terra Só, bem demonstra isso”. (DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental em crise. Curitiba: Juruá, 2003. p. 45).
57
conferência foi considerada ponto de partida do movimento ambientalista internacional, sendo
que, a partir dela, várias convenções de caráter internacional foram adotadas. 77
Em 1980, a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos
(UICN) refere-se pela primeira vez à noção de “desenvolvimento sustentável”, por ocasião da
publicação de sua “Estratégia Mundial para a Conservação”. A continuação de muitos
fenômenos de degradação ecológica, a insuficiência de resultados práticos obtidos dez anos
após a Conferência de Estolcomo, e o agravamento da situação econômica das populações de
grande parte do mundo, levaram a Assembléia Geral das Nações Unidas a criar em 1983, uma
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, com a finalidade de avaliar os
avanços dos processos de degradação ambiental e a eficácia das políticas ambientais para
enfrentá-los.
A referida Comissão publicou um documento intitulado “Nosso Futuro Comum”
(CMMAD, 1988), também conhecido como “Relatório Brundtland”, estabelecendo que:
“Todos os seres humanos têm o direito fundamental a um meio ambiente adequado à sua
saúde e bem-estar”. Foi incluído no relatório Brundtland a definição do conceito de
desenvolvimento sustentável – aquele que responde às necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de responder às suas próprias necessidades.
O Relatório Brundtland oferece uma perspectiva renovada à discussão da problemática
ambiental e do desenvolvimento. Tal relatório foi elaborado no bojo da Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em
junho de 1992. Nesta conferência foi elaborado e aprovado um programa global, conhecido
como Agenda 21, para regulamentar o processo de desenvolvimento com base nos princípio
77 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 30.
58
da sustentabilidade78. Desta forma foi sendo configurada uma política para a mudança global
que busca dissolver as contradições entre meio ambiente e desenvolvimento.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem já reconhecia, em 1948, em art. 25,
que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família a
saúde e o bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis”. Por ocasião da Declaração Universal, o direito ao meio
ambiente não foi reconhecido como um direito humano, pois, naquele momento, a crise
ambiental ainda não havia sido percebida com a gravidade que pautou os movimentos
ambientalistas da década de 1960. Foi por esta razão que a questão ambiental não fez parte da
pauta de reivindicações necessárias à garantia da dignidade humana constante da Declaração
de 1948. Hoje a consciência ética da humanidade evoluiu no sentido de reconhecer que o
homem só pode conseguir assegurar a si e à sua família os direitos descritos na própria
Declaração se lhe for assegurado um meio ambiente sadio.
Mas o direito ao meio ambiente sadio propriamente dito só ganhou um enfoque
mundial a partir da década de 1970, tendo em vista a preocupação de grande parte dos países
com a possibilidade concreta de um colapso nos ecossistemas naturais que permitem a vida
humana na Terra, em face do uso incontrolável e predatório dos recursos naturais por parte do
homem, não respeitando a natureza e sua capacidade de regeneração.
Vinte anos depois da Conferência de Estocolmo, houve a realização, no Brasil da
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio
de Janeiro, em 1992, contando com a presença de 178 países e 100 chefes de Estado. Foi o
momento do despertar da atenção tanto dos Governos, como da sociedade civil em geral, para
a necessidade de buscar soluções para os problemas ambientas de caráter global, tendo em
78 LEFF, Henrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 20.
59
vista que nenhum outro evento voltado para questões ambientais havia conseguido congregar
tantas lideranças mundiais. O Fórum Global das ONG´s, realizado na mesma ocasião da
Conferência, reuniu 4.000 entidades da sociedade civil de diversos países, o que igualmente
jamais havia acontecido.
A Conferência do Rio e o Fórum Global das ONG´s, popularmente denominados de
ECO-92, teve como resultado a aprovação de diversos documentos, englobando convenções e
declarações de princípios, dentre eles a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente
e o Desenvolvimento, a Convenção sobre Mudanças Climáticas79, a Declaração de Princípios
sobre Florestas e a Convenção sobre a Biodiversidade. 80
Dentre os documentos aprovados pela Conferência do Rio, o mais importante foi a
Agenda 2181, que tinha por objetivo traçar um planto de ações político-normativas de
promoção do desenvolvimento sustentável e política ambiental a serem adotadas pelos
Estados até o século XXI. Esta Agenda procurou auxiliar os Estados na procura de soluções
para o problema da mudança climática, da poluição, do desmatamento de florestas, do efeito
estufa, da gestão de recursos naturais, da desertificação, entre muitos outros perigos que
assolam a humanidade e tanto preocuparam a comunidade ambiental.
Cinco anos após a ECO-92 foi realizada, na cidade o Rio de Janeiro, a RIO + 5, tendo
como objetivo avaliar os avanços na área ambiental, tendo se concluído que as iniciativas
propostas em 1992, como a Agenda 21, se revelaram tímidas e pontuais, e que os Estados não
79 Os chefes dos Estados participantes da Convenção assumiram o compromisso de redução de emissões de poluentes da atmosfera aos níveis de 1990. Esses gases são responsáveis pela elevação da temperatura na Terra. (TEIXEIRA, Orci Paulino Teixeira. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 31).80 Os chefes dos Estados assumiram o compromisso de protegê-la, se comprometeram a paralisar o processo de extinção das espécies e se dispuseram a aplicar em seus países a Agenda 21. (Ibid., p. 33)81 Destaca-se na Agenda 21 a seção “Dimensões sociais e econômicas, composta pelos capítulos 2 à 8: 2- Cooperação Internacional para Acelerar o Desenvolvimento Sustentável dos Países em Desenvolvimento e Políticas Internas Correlatas; 3 – Combate à Pobreza; 4 – Mudança de Padrões de Consumo; 5 – Dinâmica Demográfica e Sustentabilidade; 6 – Proteção e Promoção das Condições da Saúde Humana; 7 – Promoção do Desenvolvimento Sustentável dos Assentamentos Humanos; 8 – Integração entre Meio Ambiente e Desenvolvimento na Tomada de Decisões.
60
estavam honrando os compromissos assumidos, tendo em vista que a crise ambiental
continuava marcadamente crescente no mundo globalizado.
Destaca-se, ainda, no ano de 1997 o encontro realizado em Kyoto no Japão, onde
diversos países assinaram o Protocolo de Kyoto82, que trata das alterações climáticas em todo
o Planeta, sendo que os Estados participantes assumiram o compromisso de reduzirem suas
emissões de gases do efeito estufa.
O último grande evento, em questões ambientais, foi realizado pela ONU na cidade de
Johannesburgo, na África, no ano de 2002, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, conhecida como RIO + 10, a fim de avaliar a efetivação dos compromissos
assumidos na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro em 1992.
A preocupação dos chefes de Estados com a crescente degradação ambiental
possibilitou o aumento das ações voltadas à proteção do meio ambiente, mas ainda estamos
longe de alcançar os objetivos e compromissos firmados nas diversas Conferências e Cúpulas
realizadas em diversos países.
Tendo em vista a escassa implementação de políticas públicas para a efetiva defesa
ambiental, a Agenda 21 está sendo pouco utilizada, inclusive no Brasil.
Entretanto, deve-se destacar, como pontos positivos desses movimentos, realizados
mundialmente, o surgimento e a difusão da consciência ambiental, tornando mais enfática à
82 “Passado algum tempo, o balanço continua negativo, não se alterando o grave quadro da extinção das espécies, e nem ocorrendo as necessárias mudanças nas matrizes energéticas. Os Estados Unidos, principal emissor de poluentes, aumentaram em mais de 10% suas emissões de gases sobre o nível de 1990; a Ásia, em mais de 50%; o Japão, em 7,6%; e a América Latina em média 40%”. (DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental em crise. Curitiba: Juruá, 2003. p. 52).
61
preocupação em proteger, preservar e defender o meio ambiente83, o que em si já representa
um grande avanço na história da humanidade.
2.3.2 O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Os direitos fundamentais surgem no século XVIII, fruto do desenvolvimento da
sociedade humana e dos movimentos econômicos, sociais e políticos da época.
De acordo com Cristiane Derani, um direito é fundamental quando seu conteúdo
invoca a construção da liberdade do ser humano, sendo que essa liberdade não é uma
liberdade genérica e abstrata, mas é aquele conjunto de elementos mantenedores e
estabilizadores da sociedade. 84
A respeito dos Direitos Fundamentais, observa Cristiane Derani:
Direito Fundamental, em seu sentido inicial, era um direito oposto contra o Estado
e perante o Estado. A liberdade se desenvolvia na resolução dualista
Estado/sociedade civil. Entretanto, os avanços da sociedade industrial frustraram as
expectativas da sociedade do século XVIII, ao revelar outras ameaças à liberdade
que o exercício do poder de império do Estado e mostrar a inviabilidade da
concretização de liberdades como campo isolado da atividade individual. O
desenvolvimento das atividades sociais não se mostrava capaz de respeitar aquele
conjunto de direitos fundamentais erigido. Constatou-se que as liberdades
escolhidas pelo Estado de Direito não eram ameaçadas pelo poder do Estado
83 “... aspectos essenciais na compreensão inicial do conceito de meio ambiente e que podem assim serem resumidos: 1 – ainda que o conceito de meio ambiente não possua a precisão científica tradicionalmente esperada, o certo é que pressupõe a interação homem-natureza, essência de sua compreensão; 2 – o conceito de meio ambiente pressupõe uma visão holística, não-fragmentária, que oferece uma nova compreensão de mundo a partir de sua integralidade, complexidade e mutabilidade; 3 – em qualquer conceituação de meio ambiente deve ser ultrapassar o modelo antropocêntrico passado, a partir de uma vertente ética onde se privilegiem interesses públicos abrangentes em termos de espaço e de tempo”. (Ibid, p. 72).84 DERANI, Cristiane. Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: Direito Fundamental e principio da atividade econômica. In: Temas de Direito Ambiental e Urbanístico. FIGUEIREDO, Jose Purvin (org.). São Paulo, Max Limond, 1998. p. 94.
62
apenas, mas pelos efeitos das atividades sociais. Não havia garantia da efetivação
dos preceitos individuais do início do Estado Moderno. Novos direitos deveriam ser
postos no ordenamento jurídico para garantir uma real liberdade. 85
Para a autora, a insuficiência dos preceitos legais para garantir a liberdade levou ao
surgimento dos chamados Direitos Sociais ou coletivos. Os direitos fundamentais sociais
vinculam o Estado na sua atividade legislativa, executiva e judiciária, assim como vinculam
igualmente a comunidade na orientação das suas atividades. Sendo assim, os direitos
fundamentais sociais passam a vincular o Estado e a comunidade, que passam a agir na
conquista efetiva da liberdade juridicamente fixada. 86
A concretização do direito fundamental social pelo Estado e pelos cidadãos é um
mandamento explícito no art. 225 da Constituição Federal, ao impor ao Poder Público e à
coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras
gerações. 87
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que tem como objetivo a
defesa dos recursos ambientais de uso comum, ou seja, o patrimônio da humanidade,
indispensáveis para uma vida digna, faz parte do rol dos direitos fundamentais, postulados na
Constituição Federal88, por ser essencial à sadia qualidade de vida. Sendo assim, o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental por ser essencial à vida
humana.
85 Ibid., p. 94.86 Ibid., p. 95.87 Ibid., p. 95.88 “Não é demais assinalar que o direito ao meio ambiente equilibrado constitui-se em direito fundamental da pessoa humana, ainda que não figure expressamente no art. 5º da CF, justamente porque visa à sadia qualidade de vida, ou, em outras palavras, visa a assegurar direito fundamental que é a vida.” (ROSSIT, Liliana Allodi. O meio ambiente de trabalho no Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo; LTR, 2001. p. 55).
63
O direito ao meio ambiente sadio foi elevado ao nível de direito fundamental do ser
humano por meio da Declaração de Estocolmo, em 1972, citando em seu primeiro princípio:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de
condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida
digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse
meio para as gerações presentes e futuras. 89
Pode-se observar no princípio acima, o reconhecimento do direito de todos os homens ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida. Por ocasião da
Declaração de Estolcomo, tratou-se, também, de instituir a obrigação do homem de proteger e
melhorar o meio ambiente para as atuais e futuras gerações.
Como visto anteriormente, os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a
manifestar-se em três dimensões sucessivas, que traduzem um processo cumulativo e
qualitativo. Nesse sentido, Sarlet afirma que “desde o reconhecimento nas primeiras
Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas transformações, tanto no que
diz com o seu conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação”. As
dimensões são complementadas através de um processo cumulativo no qual uma dimensão
não substitui a outra, mas vem com ela interagir, o que significa dizer que cada dimensão é a
expressão de um momento histórico, não é mais ou menos importante que a outra, nem que se
possa estabelecer uma relação de hierarquia entre elas. 90
89 DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental em crise. Curitiba: Juruá, 2003. p. 86.90 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 48-49.
64
O direito fundamental à vida há de ser considerado em três dimensões91. A primeira
dimensão é referente ao direito do ser humano de não ser privado de sua vida (seria o direito à
vida propriamente dita, pertencente à área dos direitos civis e políticos) a segunda, consistente
do direito de todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um
padrão de vida decente (direito à saúde, à educação, à previdência social, à cultura, ou seja, o
rol dos direitos sociais) e a terceira, considerados os direitos de solidariedade, marcados por
sua dimensão e titularidade difusa (são os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao
desenvolvimento, ao meio ambiente saudável e sustentável e à qualidade de vida, o direito à
conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação).
De acordo com Paulo Bonavides, os direitos de terceira dimensão tendem a cristalizar-
se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos
interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. 92
Nesse mesmo sentido, afirma Ingo Wolfgang Sarlet, que na terceira dimensão, são
concebidos os direitos à humanidade, isto é, direitos que transcendem o individual e o
coletivo. São aqueles em que os interesses individuais ou privados se subordinam a interesses
da maioria ou públicos, em prol do bem-estar social. 93
Dessa maneira, Orci Paulino B. Teixeira94 destaca que, para uma perfeita compreensão
da evolução do direito através de suas dimensões, deve-se atentar para a finalidade dos
próprios institutos jurídicos. Cada um deles, em sua criação e implementação na busca da
efetividade jurídica e social, encontrou um fundamento e uma razão de ser num determinado
91 A respeito da terminologia dimensão e geração, afirma SARLET, “Ressalta-se, todavia, que a discordância reside essencialmente na esfera terminológica, havendo em princípio, consenso no que diz com o conteúdo das respectivas dimensões e ‘gerações’ de direitos...” (Ibid, p. 49)92 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006. p.569.93 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 53.94 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 80.
65
momento histórico, a exemplo do direito ao meio ambiente, que almeja a sadia qualidade de
vida e, em última instância, a defesa da vida em todas as formas. Seguindo esta idéia, o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem a finalidade de proteger a
vida humana e a sadia qualidade de vida, fundamentais à sobrevivência do homem,
destinatário do direito. 95
2.3.3 O reconhecimento do meio ambiente sadio na CF
Pela primeira vez na história das Constituições Brasileiras, o direito ao meio ambiente
teve tratamento constitucional específico e detalhado. A Constituição Federal de 1988,
marcadamente ambientalista e considerada como uma das mais avançadas sobre o tema,
introduziu um capítulo próprio sobre o meio ambiente, sendo este capítulo um dos mais
avançados e modernos.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, trata do direito ao meio ambiente
estabelecendo:
95 O Supremo Tribunal Federal se posicionou no mesmo sentido que Teixeira: “A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Direito de terceira geração. Princípio da solidariedade. O direito à integridade do meio ambiente. Típico direito de terceira geração. Constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade”. Considerações doutrinárias. (transcrição parcial de ementa oficial). MS 22164/SP – Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, DJU 17.11.1995 3920). Disponível em http://www.stf.gov.br.
66
Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
Pode-se observar no dispositivo acima que a intenção do legislador foi de consagrar o
meio ambiente ecologicamente equilibrado96 como um direito de todos, incluindo às presentes
e futuras gerações, passando a ser considerado bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo ao Estado97 e à coletividade um dever: a defesa e preservação do
meio ambiente.
De acordo com Marise Duarte, o objeto tutelado como direito de todos não é o meio
ambiente em si, ou qualquer ambiente, mas, o meio ambiente qualificado, o equilíbrio
ecológico do meio ambiente, devendo ser compreendida também a qualidade de vida em
todas as formas, sendo essa qualidade que se converteu em bem jurídico, definido
constitucionalmente como bem de uso comum do povo. 98
A Constituição de 1988, ao tratar do meio ambiente ecologicamente equilibrado como
um direito fundamental do qual todos são destinatários e ao estabelecer a existência de um
96 Marise Duarte, “(...) na tentativa de encontrar o sentido da expressão meio ambiente ecologicamente equilibrado destaca: a) a noção de meio ambiente a partir da ralação de interdependência entre o homem e natureza, o que ocorre de forma dinâmica, sistêmica e mutante e b) que a tutela ao direito ao meio ambiente sadio não se constitui numa simples garantia à vida humana, mas se estende à manutenção das bases que sustentam a vida de todas as suas formas (incluindo-se aí as demais espécies de seres vivos). Disso decorre que ao considerar o meio ambiente como direito, com a qualidade de ser ecologicamente equilibrado, quis o constituinte tutelar não qualquer ambiente, mas aquele que resultasse de um equilíbrio entre as (dinâmicas) relações travadas entre o homem e a natureza e que, portanto, impusesse a proteção e defesa para às presentes e futuras gerações” (DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental em crise. Curitiba: Juruá, 2003. p. 92). 97 “Os direito fundamentais exigem comportamentos positivos do Estado, embora a contraposição indivíduo-Estado não desapareça, na medida em que os direitos não são em si direitos contra o Estado, mas sim direitos assegurados pelo Estado através do exercício do Poder de Polícia Estadual. Por meio de leis e de atos administrativos, os direitos fundamentais são cumpridos pela ação do Poder Público, que deve definir e executar as políticas de defesa ambiental para que todos possam usufruir um ambiente hígido”. (TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 90).98 DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio ambiente sadio: direito fundamental em crise. Curitiba: Juruá, 2003. p. 92.
67
bem que tem duas características específicas – o fato de ser de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida -, inovou no sentido de criar um terceiro gênero. O objeto
desse direito, em face de suas peculiaridades e de sua natureza jurídica, não se confunde nem
com os bens públicos e muito menos com os bens privados.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo e
como tal deve ser tratado, cabendo ao Estado um papel primordial em dirimir os eventuais
conflitos no uso dos recursos ambientais. O Estado deve portanto defender e preservar o meio
ambiente natural (fauna, águas, ar, solo, ambiente marinho) e construído (as cidades, o meio
rural, o patrimônio cultural e o ambiente do trabalho), não como um bem que integre o seu
patrimônio – o que pode ou não ocorrer –, mas sim dentro de uma perspectiva global, como
um bem de todos. 99
O bem ambiental criado pela Constituição Federal de 1988 é, pois, um bem de uso
comum, um bem que pode ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites
constitucionais. Para que um bem possa ser considerado ambiental, ele deve ser, além de uso
comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Os bens essenciais à sadia qualidade de
vida são aqueles fundamentais à garantia da dignidade da pessoa humana, que constitui um
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (CF/88, art. 1, III) e, que estão
relacionados com os direitos fundamentais referidos no artigo 6º da Constituição: o direito à
educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção da
maternidade e à infância e, à assistência aos desamparados.
Assim é que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado integra o rol dos
direitos fundamentais sociais consagrados na Constituição Federal de 1988, tendo como
destinatários as presentes e futuras gerações. Sendo assim, todos os indivíduos podem exigir a
99 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles. Elementos balizadores da ação estatal da defesa dos bens ambientais para as presentes e futuras gerações. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin (org.). Temas de Direitos Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limond, 1998. p. 139-143.
68
defesa contra atos lesivos ao meio ambiente, tendo em vista que a preservação do meio
ambiente é de fundamental importância para a garantia da manutenção da vida humana. O
homem é destinatário do ambiente ecologicamente equilibrado e, nesta condição, também o
são as gerações presentes e futuras. 100
Dessa forma, pode-se afirmar que a norma constitucional que constituiu o direito ao
meio ambiente sadio possui uma natureza individual, coletiva e difusa101, ou seja, embora seja
de titularidade difusa, o direito ao meio ambiente é também de titularidade individual, pois
admite uma dimensão individual, quando a lesão ou probabilidade de lesão violar também
interesse privado102. Ingo Sarlet trata do assunto afirmando que “o direito a um meio ambiente
saudável e equilibrado, em que pese seu habitual enquadramento entre os direitos de terceira
dimensão, pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo um dano ambiental
que venha a atingir um grupo dificilmente quantificável e delimitável de pessoas (indivíduos)
pode gerar um direito à reparação para cada prejudicado”. 103
As normas ambientais constitucionais visam assegurar o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, sendo que nessa condição mantêm a sua unidade com suporte no
princípio, dentre outros, da dignidade da pessoa humana, já que são direitos fundamentais.
Nesse mesmo entendimento, Sarlet, afirma que a base dos direitos fundamentais na
100 “O preceito constitucional confere a todos o direito ao meio ambiente sadio, o que significa que não serão somente as pessoas individualmente consideradas os titulares desse direito, mas também as pessoas coletivas e ainda as pessoas indeterminadas. A proteção jurídica em matéria ambiental tanto se refere a indivíduos como a associações representativas dos seus direitos e interesses.” (SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 18).101 Os direitos coletivos lato sensu, referidos na Carta Magna, ganharam definição legal infraconstitucional com o advento da lei 8078/90, que estabeleceu em seu art. 81, parágrafo único, inciso I o que são interesses difusos: I – interesses ou direito difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, o transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Assim sendo, o bem ambiental configura um direito difuso, não limitado ao interesses privados ou públicos. O titular do bem ambiental é a humanidade. Trata-se, pois de um direito transindividual, de natureza indivisível, cujos titulares são pessoas indeterminadas. 102 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 88.103 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª. Ed. Ponto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 366.
69
Constituição de 1988 radica sempre no princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana, e que a coerência interna do sistema dos direitos fundamentais encontra justificativa
na sua vinculação com os princípios ou valores fundamentais do ordenamento jurídico. Em
relação à eficácia dos direitos fundamentais, assume o papel relevante a norma contida no art.
5º, § 1º, da CF de 1988, de acordo com a qual todos os direitos e garantias fundamentais
foram elevados à condição de normas jurídicas diretamente aplicáveis e, portanto, capazes de
gerar efeitos jurídicos imediatos104.
Sendo assim, pelo fato do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado ser uma norma que assegura a preservação da própria vida humana, e de não
depender de regulamentação, concluí-se que esse direito possui aplicabilidade imediata.
A regra constitucional do direito ao meio ambiente é acompanhada pelos princípios da
sadia qualidade de vida e da vida com dignidade, e pela aplicabilidade imediata - princípios
que dão eficácia plena à norma de direito ambiental. Portanto, cabe ao Poder Público dar
maior eficácia à norma constitucional que outorga aos indivíduos o direito ao ambiente
ecologicamente equilibrado e que reconhece seus princípios básicos. 105
No sistema do direito ambiental brasileiro, a cláusula da proibição do retrocesso,
deriva do reconhecimento da progressividade dos direitos sociais, e tem por objetivo proteger
o núcleo do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – melhorar a
qualidade ambiental recuperando áreas degradadas e defender o meio ambiente
ecologicamente equilibrado -, por se tratar de uma garantia assegurada aos indivíduos das
presentes e futuras gerações. O princípio da proibição do retrocesso visa inviabilizar toda e
104 Ibid., p. 78 e 79.105 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 121-122.
70
qualquer medida regressiva em desfavor do meio ambiente, como exemplo a abolição de
normas protetivas ao meio ambiente. 106
A preocupação com o meio-ambiente decorre da progressiva deterioração das
condições de vida, do avanço técnico na capacidade de verificar e estimar esse processo e de
um avanço do pensamento humano, hoje capaz de perceber a importância da manutenção dos
ecossistemas para a própria preservação da espécie humana, tendo como conseqüência o
surgimento de novos valores a serem tutelados. Esses fatores levaram ao surgimento de novos
direitos.
Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma, comentando a relação entre o surgimento de
novos direitos sociais e o aprimoramento tecnológico das sociedades:
(...) as exigências que se concretizam na demanda de uma intervenção pública e de
uma prestação de serviços sociais por parte do Estado só podem ser satisfeitas num
determinado nível de desenvolvimento econômico e tecnológico; e que, com relação à
própria teoria, são precisamente certas transformações sociais e certas inovações
técnicas que fazem surgir novas exigências, imprevisíveis e inexeqüíveis antes que
essas transformações e inovações tivessem ocorrido. Isso nos traz uma ulterior
conformação da socialidade, ou da não-naturalidade, desses direitos. 107
A degradação ambiental, o risco do colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da
pobreza são sinais eloqüentes da crise no mundo globalizado. A crise ambiental veio
questionar a racionalidade e os paradigmas teóricos que impulsionaram e legitimaram o
crescimento econômico, negando a natureza. Portanto, a degradação ambiental se manifesta
106 Ibid., p. 123-124.107 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 14ª Tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 76.
71
como sintoma de uma crise da civilização, marcada pelo modelo de modernidade regido pelo
predomínio do desenvolvimento da razão tecnológica sobre a organização da natureza. 108
A crescente crise ambiental nos mostra a escassa implementação, no Brasil, de
políticas públicas, voltadas para a efetiva defesa do meio ambiente. O direito ao meio
ambiente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida é exclusivo de uma minoria, sendo
que a maioria da população não pode dispor do bem ambiental “de uso comum do povo”.
A urbanização irregular, as construções de grandes metrópoles com concentração
humana e atividades a ela relacionadas levaram à ruptura do equilíbrio ambiental. Isto é,
romperam o equilíbrio que decorre do limite da aceitabilidade do risco de dano ambiental que
deve atender a dois critérios básicos: o ambiental e o econômico. 109
Nesse sentido, Rocha afirma que as atividades urbanas afetam o meio ambiente com a
transformação de espaços naturais em áreas urbanas, com a extração e a degradação dos
recursos naturais e com a liberação de resíduos domésticos e industriais. O autor afirma ainda
que, esta situação determinou a instituição das funções sociais e ambientais da cidade. 110
A desigual distribuição do poder econômico e político entre alguns poucos países (no
plano internacional) ou proprietários (no plano local) decorre em grande parte da adoção de
108 LEFF, Henrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 15.109 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Ed., 2006. p. 48.110 Destaca Rocha que “de acordo com o art. 182, caput, da Constituição Federal, a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes. Significa realizar as funções de habitação, condições adequadas ao trabalho, recreação e de circulação humana. O pleno desenvolvimento dessas funções deve ser compreendido como o direito à cidade. A função ambiental atua sobre a cidade para concretizar o seu fim: efetivar o bem-estar dos habitantes da cidade e o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A cidade cumpre sua função ambiental quando garante à todos o direito ao meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado, propiciando a existência de áreas verdes e equipamentos públicos, espaços de lazer e cultura, transportes públicos, esgotamento sanitário, serviços de água, luz, pavimentação de vias públicas, etc”. (ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Direitos Fundamentais na constituição de 1988. Disponível em: http://www.apamagis.com/publicações/cad_dout/caderno_dout 1 fase/dir_fundamen.htm). Acesso em 22/05/2007).
72
modelos ecologicamente insustentáveis da sociedade industrial, contribuindo para o
agravamento de desigualdades sociais.
A busca do meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui hoje paradigma da
atuação político-administrativa do Poder Público, tendo este o dever de defender e preservar o
meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum de todos. O conceito de bem
de uso comum pressupõe uma utilização conjunta dos elementos que constituem o meio
ambiente, tais como a água, o ar, bens de interesse público, essenciais à sadia qualidade de
vida. Sendo assim, os Poderes Públicos não podem e não devem privilegiar um determinado
usuário em detrimento de outro, todos devem ter o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. 111
Da mesma forma, o Poder Público também tem o dever de garantir a proteção do meio
ambiente urbano, ordenando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade,
garantindo o bem estar da população através de uma política de desenvolvimento urbano.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial a sadia qualidade
de vida é um direito fundamental, garantido a todos independente de raça, sexo, cor ou
religião, mas, infelizmente a realidade nos mostra que essas garantias constitucionais não
estão sendo aplicadas na prática. O acesso aos recursos ambientais não esta sendo garantido a
todos, pois uma grande parcela da sociedade além de serem vítimas da exclusão social e
econômica não dispõe de uma sadia qualidade de vida.
Antes de tratarmos no próximo capítulo sobre as ocupações desordenadas, vale
ressaltar a clara vinculação que existe entre o meio ambiente e as relações sociais, uma vez
que há uma apropriação desigual dos recursos e riquezas naturais. A exclusão social e a
111 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles. Elementos balizadores da ação estatal da defesa dos bens ambientais para as presentes e futuras gerações. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin (org.). Temas de Direitos Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limond, 1998. p. 141-143.
73
segregação ambiental estão intimamente relacionadas, apresentando-se como um dos mais
graves problemas enfrentados pelos países em desenvolvimento, onde há uma grande
concentração de pobreza: nas periferias urbanas loteadas ilegalmente, nas favelas onde moram
milhões de brasileiros, nos cortiços localizados em áreas centrais degradadas, transporte
precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento
doméstico, difícil acesso aos serviços de saúde, maior exposição ás enchentes e risco de vida
por desmoronamentos, etc.
3. OCUPAÇÃO URBANA DESORDENADA E (IN) JUSTIÇA AMBIENTAL
As chances de uma vida nunca são igualmente distribuídas. Não conhecemos
nenhuma sociedade na qual todos os homens, mulheres e crianças tenham as mesmas
prerrogativas e gozem dos mesmos provimentos. Não conhecemos sequer uma em
que todos os homens tenham o mesmo status. Provavelmente esta condição não é
possível. (Origens da Desigualdade - RALF DAHRENDORF) 112
3.1 URBANIZAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO
A cidade é o lugar da história, pois foi na cidade que, numa primeira fase, a burguesia
se desenvolveu e exerceu seu papel revolucionário, e nela também nasceu o proletariado
industrial, ao qual vai caber principalmente a tarefa de executar a revolução socialista e de
realizar o homem universal. 113
112 DAHRENDORF, Ralf. O conflito social moderno: um ensaio sobre a política da liberdade; Tradução, Renato Aguiar e Marco Antonio Esteves Rocha. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., São Paulo: Edusp, 1992. p. 40. 113 CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 15.
74
A sociedade industrial é urbana e a cidade é o seu horizonte. As cidades produzem
metrópoles – espaços de concentração de capital, de meios de produção, e locus da gestão do
próprio modo de produção -, conurbações114, cidades industriais e grandes conjuntos
habitacionais, mas, no entanto fracassa na ordenação desses locais. A Revolução Industrial é
quase imediatamente seguida por um impressionante crescimento demográfico das cidades,
por uma drenagem dos campos em benefício de um desenvolvimento urbano sem
precedentes.115
A cidade é o lugar onde se reúnem as melhores condições para o desenvolvimento do
capitalismo, uma vez que o seu caráter de concentração, de densidade, viabiliza a realização
com maior rapidez do ciclo do capital, ou seja, diminui o tempo entre o primeiro investimento
necessário à realização de uma determinada produção e consumo do produto.
A segunda metade do século XX é marcada por uma urbanização acelerada nos países
de economia dependente, e suas cidades manifestam todo tipo de problemas, relacionados ao
“inchaço” populacional em que vivem. Os ritmos acentuados de crescimento populacional
urbano e a concentração de capital nacional e internacional nas metrópoles para a criação de
infra-estrutura necessária à reprodução capitalista, promoveram um aumento crescente de
população não empregada que se “aloja” nos maiores centros urbanos (não sendo possível
falar que tal população “habita” os maiores centros urbanos). 116
A cidade transformou-se em sede do capital, ou seja, um lugar onde se aglomera a
produção, se congestiona o consumo, se amontoa a população e se degrada a energia. Como
conseqüência, o capitalismo trouxe consigo, além de alguns avanços tecnológicos, profundas
desigualdades econômicas, sociais e profundas mudanças na natureza e no meio ambiente,
114 O termo conurbação foi criado por Patrick Geddes, para designar as aglomerações urbanas que invadem uma região toda, pela influência atrativa de uma grande área. (Ibid., p. 01.)115 Ibid., p. 01-03.116 SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto, 2000. p. 70.
75
que foram fustigados de tal forma como nunca se viu em milhares de anos na História
humana. Florestas desapareceram, rios secaram, organismos e animais foram e estão sendo
extintos, tudo em nome do lucro e do “progresso” da humanidade.
Enrique Leff afirma que os processos urbanos se alimentam da exploração dos
recursos naturais, da desestruturação do entorno ecológico, do dessecamento dos lençóis
freáticos, da sucção dos recursos hídricos, da saturação do ar e da acumulação de lixo. Além
disso, a concentração urbana permitiu desvalorizar a força de trabalho nos centros industriais,
subvalorizando a natureza, explorando o meio rural e oprimindo suas populações. 117
Para Manuel Castells a crise urbana provém da crescente incapacidade da organização
social capitalista de assegurar a produção, distribuição e gestão dos meios de consumo
coletivos necessários à vida cotidiana, da moradia, às escolas, transporte, saúde, etc. Os
serviços coletivos necessários para atender o modo de vida suscitado pelo desenvolvimento
capitalista não são suficientemente rentáveis para serem produzidos pelo capital, com vistas à
obtenção de lucro. 118 O sistema capitalista não tem como prioridade o oferecimento de
condições mínimas de sobrevivência para a população, a sua prioridade é e sempre será o
lucro.
De acordo com Milton Santos, a globalização119 é o ápice do processo de
internacionalização do mundo capitalista. Um mercado avassalador dito global é apresentado
como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são
117 LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 288.118 CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. Tradução de Gloria Rodriguez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 20.119 A globalização é um dos processos de aprofundamento da integração econômica, social, cultural, política, com o barateamento dos meios de transporte e comunicação dos países do mundo no final do século XX e inicio do século XXI. É um fenômeno observado na necessidade de formar uma Aldeia Global que permita maiores ganhos para os mercados internos já saturados.
76
aprofundadas. O mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma
cidadania verdadeiramente universal. 120
Destaca o autor que, no final do século XX, e graças aos avanços da ciência, o mundo
torna-se unificado – em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação
humana mundializada. A globalização marca um momento de ruptura no processo de
evolução social e moral que se vinha fazendo nos séculos precedentes, uma vez que o
progresso técnico aparecia, desde séculos anteriores, como uma condição para realizar essa
sonhada globalização com a mais completa humanização da vida do planeta, contudo, quando
finalmente esse progresso técnico alcança um nível superior, a globalização se realiza, mas
não a serviço da humanidade. Nesse sentido, a globalização que nos é imputada, mata a noção
de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva de cada um por si, como se
voltássemos a ser animais da selva, reduzindo ainda as noções de moralidade pública e
particular a um quase nada. 121
Os grupos hegemônicos passaram a justificar a globalização como sendo um avanço
do processo civilizatório para o capitalismo, mas, na realidade o que se pode constatar é que a
globalização impõe-se à maior parte da humanidade como uma globalização perversa.
Não existe uma definição de globalização que seja aceita por todos, mas pode ser
caracterizada basicamente como um processo ainda em curso de integração de economias e
mercados nacionais sob a égide do neoliberalismo caracterizado pelo predomínio dos
interesses financeiros, pela desregulamentação dos mercados, pelas privatizações das
empresas estatais, e pelo abandono do estado de bem-estar social. A globalização passa a ser
responsável pela intensificação da exclusão social - aumento do número de pobres e de
desempregados - e por provocar crises econômicas sucessivas, arruinando milhares de pessoas
120 SANTOS, Milton. Por uma globalização: do pensamento único á consciência universal. Rio de Janeiro:Record, 2002. p. 19.121 Ibid., p. 64.
77
e empresas. A globalização é chamada de "terceira revolução tecnológica" (processamento,
difusão e transmissão de informações) e acredita-se que a globalização define uma nova era
da história humana.
Milton Santos destaca que, para a grande maioria da humanidade a globalização está
se impondo como uma “fábrica de perversidades”. A fome deixa de ser um fato isolado ou
ocasional e passa a ser um dado generalizado e permanente; quando os progressos da
medicina e da informação deviam propiciar uma redução substancial dos problemas de saúde,
milhões de pessoas morrem todos os dias, antes do quinto ano da vida; nunca na história
houve um tão grande número de deslocados e refugiados; bilhões de pessoas sobrevivem sem
água potável; o fenômeno dos sem-teto, curiosidade a primeira metade do século XX, hoje é
um fato banal, presente em todas as grandes cidades do mundo; o desemprego é algo tornado
comum; acabar com o analfabetismo ficou mais difícil do que antes; a pobreza cada vez mais
aumenta assustadoramente. 122
A globalização e o neoliberalismo, conforme Milton Santos, disseminam a pobreza
numa escala global, pobreza esta quase sem remédio, trazida não apenas pela expansão do
desemprego, como, também, pela redução do valor do trabalho. A produção maciça da
pobreza aparece como um fenômeno banal, sendo que uma das grandes diferenças do ponto
de vista ético é que a pobreza de agora surge, impõe-se e explica-se como algo natural e
inevitável. Essa pobreza é produzida politicamente pelas empresas e instituições globais,
sendo que estas, de um lado, pagam para criar soluções localizadas, parciais, segmentadas,
como é o caso do Banco Mundial, que, em diferentes partes do mundo, financia programas de
atenção aos pobres, querendo passar a impressão de se interessar pelos desvalidos, quando,
122 Ibid., p. 59.
78
estruturalmente, é o grande produtor da pobreza, e isso se dá com a colaboração passiva ou
ativa dos governos nacionais. 123
O que caracteriza as cidades contemporâneas, sob os efeitos da globalização, é
justamente a profunda desigualdade social na exposição aos riscos ambientais, pois além das
incertezas do desemprego, da desproteção social e da precarização do trabalho, os
trabalhadores são submetidos aos riscos de moradia em encostas perigosas, beira de cursos d
´água sujeita a enchentes, áreas contaminadas por lixo tóxico, situadas sobre gasodutos ou sob
linha de transmissão de eletricidade. Além disso, têm o acesso desigual aos recursos
ambientais como água, saneamento e solo seguro. 124
A crise ambiental mostra a necessidade de revalorizar o fato urbano a partir da
racionalidade; de romper a inércia crescente da urbanização e repensar as funções atribuídas à
vida humana.
A degradação do ambiente emerge do crescimento e da globalização econômica, e o
agravamento dos problemas ambientais – presentes nas regiões e aglomerados urbano-
industriais – se sobrepõe aos problemas de infra-estrutura básica e exclusão social. A partir
daí ampliam-se novos movimentos sociais que incorporam a discussão ambiental, sejam eles
grupos locais em áreas de risco industriais ou grupos ambientalistas organizados atuando em
níveis regionais, nacionais e mesmo internacionais.
123 Ibid., p. 73.124 ACSELRAD, Henri (org). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 27.
79
3.2 AS CONDIÇÕES URBANAS E HABITACIONAIS NO BRASIL
A urbanização brasileira é resultado do modelo de industrialização e desenvolvimento
vigente nos países em desenvolvimento, heterogêneo e desequilibrado, cujo resultado
materializa-se em uma dinâmica de modernização que recria exclusão social e segregação
territorial para grande parcela da população.125 O processo de urbanização brasileiro e latino-
americano se intensificou a partir da segunda metade do século XX, constituindo-se em um
gigantesco movimento populacional e de construção de cidades para o atendimento de
necessidades de moradia, trabalho, abastecimento, lazer, educação, saúde126.
Esse processo de crescimento urbano intensivo que acompanhou e tornou possível a
industrialização brasileira provocou drásticas transformações sócio-econômicas e espaciais no
país.
A combinação de tais processos - industrialização e urbanização - ocasionou uma
enorme concentração econômica, a qual tem determinado o processo de exclusão sócio-
espacial da maior parte da população do país.
Milton Santos afirma que, com diferenças de grau e intensidade, todas as cidades
brasileiras apresentam problemas parecidos: carência generalizada de habitação, saneamento,
transportes e demais serviços urbanos. Quanto à estruturação, caracterizam-se pela ocupação
de vastas superfícies, entremeadas de vazios, gerando um modelo de ocupação centro-
periferia, onde as carências dessa última criam diferenciais no valor da terra central e
alimentam a especulação imobiliária. Esta, por sua vez, num verdadeiro círculo vicioso,
fortalece o processo de extensão da área urbana, criando novas periferias, e aumentando os
125 SAULE JR, Nelson. Direito à Moradia no Brasil. Disponível em www.unhabitat.org. Acesso em 25/10/2006.126 Ibid., p. 15.
80
problemas. O autor afirma ainda, que, quanto maior a cidade, mais visíveis se tornam essas
mazelas. 127
De acordo com Nelson Saule Jr., a urbanização brasileira nasceu marcada por
reformas urbanas que primavam por obras de saneamento e embelezamento que expulsaram
os pobres para as periferias como solução para eliminar epidemias e higienizar os espaços. Ao
mesmo tempo, obras paisagísticas foram realizadas nas áreas centrais para favorecer a
consolidação do mercado imobiliário capitalista que começava a surgir. O Estado passa a
investir em infra-estrutura para induzir o desenvolvimento industrial (substituição das
importações) e o urbanismo reformador das cidades. A extensão das redes de infra-estrutura
realizada pelo poder público em direção às áreas distantes valorizava as áreas vazias
localizadas neste trajeto, beneficiando as atividades especulativas e penalizando os moradores
das periferias e os contribuintes que, ao final, arcaram com o custo destas obras.128
O modelo de desenvolvimento e expansão que comandou nossa urbanização acelerada
produziu cidades marcadas pela presença das chamadas “periferias” e “favelas”. Essa
urbanização vertiginosa, ao final de um período de acelerada expansão da economia
brasileira, introduziu um novo e dramático significado: as cidades passaram a retratar e
reproduzir as injustiças e desigualdades da sociedade.129
Dezenas de milhões de brasileiros não têm tido acesso ao solo urbano e à moradia
senão através de processos e mecanismos informais – e frequentemente ilegais -,
autoconstruindo um habitat precário, vulnerável e inseguro. Favelas, loteamentos e conjuntos
habitacionais irregulares, loteamento clandestinos, cortiços, ocupações em áreas públicas, nas
127 SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 105 e 106. 128 SAULE JR, Nelson. Direito à Moradia no Brasil. Disponível em www.unhabitat.org. Acesso em 25/10/2006.129 CYMBALISTA, Renato. Refundar o não fundado: desafios da gestão democrática das políticas urbana e habitacional do Brasil. Disponível em: http://www.cidadania.org.br/imprimir.asp?conteudo_id. Acesso em 22/11/2005.
81
encostas e beiras de rios – essas têm sido as principais formas de habitação produzidas
diariamente nas cidades brasileiras, pela maior parte de nossos moradores urbanos. 130
Segundo dados do Censo Demográfico, no Brasil os índices de urbanização vêm
atingindo patamares crescentes. Em 40 anos, entre 1960 e 2000, as cidades brasileiras
receberam 106 milhões de novos habitantes, e 80% da população brasileira concentravam-se
em áreas urbanas. 131
Tabela 1 – Quantidade populacional urbana e rural do Brasil - 1960 e 2000
1960 2000
População urbana 45% 81%
População rural 55% 19%
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE/2000
Dados da ONU indicam que um terço de toda a população urbana mundial vive em
assentamentos precários. Em todo o mundo, cerca de 900 milhões de pessoas passam por
problemas semelhantes aos enfrentados por brasileiros que não têm acesso à moradia digna132.
Desde a década de 80, quando se inicia um período de estagnação econômica, a
precariedade habitacional vem assumindo contornos cada vez mais graves, expressa nas
favelas, que podem ser assim descritas: “... tipo de aglomeração urbana, amplamente
disseminada pelas metrópoles do país, concentra domicílios com elevado grau de carências
socioeconômicas, tanto em termos de oferta de serviços públicos, quanto relativas à infra-
130 Ibid., p. 01131 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 2001.132 BRASIL. Ministério das Cidades. Cadernos de Saneamento Ambiental, nº. 5. Outubro de 2004. p. 13.
82
estrutura urbanística e renda pessoal dos moradores. Além disso, muitas destas áreas estão
também sujeitas a riscos ambientais...”. 133
A autoconstrução de barracos improvisados torna-se cada vez mais freqüente, não
sendo exclusividade das grandes cidades como se acreditava. As favelas e os cortiços
multiplicam-se, especialmente em locais onde as condições de salubridade são precárias e os
terrenos, quase sempre impróprios para moradia.
As relações sociais se degradam na mesma medida do ambiente miserável a que são
sujeitadas, tendo como conseqüência o crescimento generalizado da pobreza e da violência
urbana.
De acordo com Ermínia Maricato, as mazelas decorrentes do crescimento das favelas
são, de alguma forma, percebidas por toda a sociedade. Não há a consciência, no entanto, da
dimensão quantitativa que as favelas estão tomando e nem de suas causas. 134
Nas grandes cidades, as periferias são a materialização de mecanismos de
exclusão/segregação, tais como: habitações insuficientes e de má qualidade, inexistência de
infra-estruturas básicas, baixa possibilidade de acesso rápido e confortável aos lugares de
trabalho, malha viária e equipamentos de transporte coletivo deficientes etc.
Aldo Paviani examina as periferias dos pobres - aqueles espaços gerados por ações
periferizadoras e que tradicionalmente opunham-se ao centro, dotado de toda a gama de
amenidades, infra-estruturas e oportunidades de trabalho - e a periferia “geográfica” - lugar da
favela, geralmente situadas em terrenos insalubres, com forte declividade ou mesmo
inundáveis. 135
133 TORRES, Haroldo da Gama e Marques, Eduardo César. Tamanho Populacional das Favelas Paulistanas. Ou os Grandes Números e a Falência do Debate sobre Metrópole. Disponível em: http://www.centrodametropole.org.br/pdf/abep2002.pdf. Acesso em 22/11/2005.134 MARICATO, Ermínia. Favelas – um universo gigantesco e desconhecido. Podendo ser consultado www.usp/br/fau/depprojetos/labhab/04textos/favelas.doc.Acesso em 25/10/2006.
83
O autor destaca que a periferia pobre, hoje, está infiltrada em todo o tecido
metropolitano e se qualifica desta forma por intermédio de diferenciadas ações no âmbito: 136
a) do trabalho - em algumas metrópoles, os favelados procuram ocupar locais
impróprios para moradia próximo de seu local de trabalho, ou próximo dos locais onde há a
possibilidade de encontrar trabalho informal;
b) da educação – a contínua manutenção de analfabetos ou alfabetizados incompletos,
leva à precarização de vida de grande parte da população. Os analfabetos, na maioria das
vezes, menos esclarecidos, não se habilitam a acessos diversos de moradia, pelo fato de não
terem acesso aos meios para compreensão e captação da realidade à sua volta, não
assimilando as informações necessárias para melhor se posicionarem na tomada de decisões;
c) da moradia - quando há contradições insuperáveis nas diversas políticas
habitacionais que deveriam ser conduzidas com padrões éticos, de forma continuada e com o
propósito de resolver o problema habitacional de modo eficaz. Com o caráter de políticas
habitacionais são implantados “conjuntos habitacionais populares”, “assentamentos para
população de baixa renda”: fixam-se favelas, medidas capazes de atrair os menos
esclarecidos, os que são incapazes de vislumbrar a ações demagógicas de autoridades,
inclusive dos promotores de “mutirões para a casa própria”. As políticas incrementalistas no
setor habitacional revelam as cidades como um caos, quando são extensivamente ocupadas
por setores de moradia de baixa qualidade construtiva, muitas vezes erguidos para atender
clientela entre uma eleição e outra.
d) da cidadania pela qual se conquista o direito à cidade. Para o autor, sob o ponto de
vista sócio-espacial e político considera-se que existe a cidadania conquistada e sua oposta, a
135 PAVIANI, Aldo. A lógica da periferização em áreas metropolitanas. In: Território – Globalização e Fragmentação. Org. SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A. de; SILVEIRA, Maria Laura. São Paulo: HUCITEC, 2002. p. 182-183.136 Ibid., p. 185-188.
84
cidadania dada. Esta emana dos que “assaltaram o aparelho de Estado”, mantendo enormes
contingentes populacionais por meio de políticas assistencialistas e de favorecimento.
A maioria da população vítima da exclusão social e econômica não teve acesso à
alfabetização e à escolaridade, sendo assim, não usufruem das possibilidades de abertura à
consciência política e aos direitos elementares que a cidadania plena oferece, sendo, portanto
presas fáceis dos que lhes concedem “benefícios” e “favorecimentos”, em troca de votos. Por
esse motivo as elites dominantes mantêm e perpetuam a baixa escolaridade, não destinam
recursos para a educação, em todos os níveis de ensino, desestimulando o professorado com
salários aviltantes e baixas condições para a atividade educacional. A cidadania plena é aquela
fruto de conquistas ao longo do processo histórico, no cotidiano, nos entrechoques com forças
repressoras, nas greves, nos protestos de ruas, pelos movimentos sociais e na luta constante
para o incremento dos direitos civis, muitos inscritos na Carta Magna de 1988. 137
3.2.1 Segregação social e degradação ambiental
Toda grande cidade tem um ou vários bairros ruins, onde se concentra a classe
operária. É verdade que muitas vezes a pobreza reside em vielas escondidas bem
perto dos palácios dos ricos, mas em geral a ela é destinado um terreno à parte onde,
longe do olhar das classes mais felizes, ela tem de, bem ou mal, ajeitar-se sozinha.
(...) As ruas são normalmente nem planas nem pavimentadas; são sujas, cheias de
detrito vegetais e animais, sem esgotos nem escoamento de água, mas, em troca,
semeadas de poças estagnadas e mal cheirosas. 138
O processo de urbanização concomitante à industrialização assumiu uma série de
características, dentre elas a concentração de terra, renda e poder. A “industrialização com
137 Ibid., p. 185-187138 O problema das grandes cidades foi abordado por Friedrich Engels, que denunciou a miséria e a segregação do proletariado urbano nas cidades industriais inglesas. (CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 141).
85
baixos salários” é um mercado de moradias restrito e concentrado. O custo da reprodução da
força de trabalho não inclui o custo da mercadoria habitação, fixado pelo mercado privado.
Ou seja, grande parte da população urbana brasileira não tem condições de comprar uma
moradia no mercado privado legal, sendo assim, a favela ou lote ilegal, combinados à
autoconstrução, foram partes integrantes do crescimento urbano sob a égide da
industrialização. 139
Cenecorta e Smolka, em um trabalho que discute as características do mercado de
terras na América Latina, afirmam defendem que a oferta insuficiente de terra servida140 a
preços acessíveis para os pobres urbanos e a necessidade de regularização das ocupações
ilegais em áreas urbanas são duas das questões mais importantes da agenda latino-americana
de política fundiária. As razões da ilegalidade decorrem tanto do baixo rendimento de uma
grande parcela da população urbana, bem como da reduzida oferta de terras no âmbito do
mercado imobiliário formal, uma vez que os empreendedores imobiliários não têm interesse
nem incentivos para investir nesse segmento do mercado. 141
Afirmam ainda os autores que os extratos mais pobres da população urbana são
“empurrados” para a informalidade, buscando terra urbana através de mecanismos ilegais,
informais, irregulares ou clandestinos, devido a seus baixos rendimentos. 142 Pode-se afirma
que essa situação, enfrentada por uma ampla camada da população urbana, é em geral
considerada como um fator explicativo da dificuldade associada à aquisição de terra no
mercado formal.
139 ARANTES, Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes 2000. p.154 e 155. 140 Os autores Cenecorta e Smolka esclarecem que o termo “terra servida” deve ser entendido em seu sentido mais amplo, como terra designada para o uso urbano e equipada com infra-estrutura básica, incluindo o acesso (ainda que sem pavimentação) à rede viária urbana, iluminação pública, água, sistemas de esgoto e pluvial, bem como serviços de eletricidades e telefonia.141 CENECORTA, Alfonso Iracheta e SMOLKA, Martim O. Acesso à terra servida para a população urbana pobre: o paradoxo da regularização no México. Podendo ser consultado: http://www.eg.fip.mg.gov.br/gestaourbana/arquivos/modulo10/mod10arq1.html.142 Ibid., p. 02
86
A ilegalidade, ao contribuir para a exclusão social, reforça a pobreza urbana,
estabelecendo um ciclo vicioso, demonstrado por Cenecorta e Smolka143, no diagrama abaixo:
O ciclo vicioso da informalidade
Urbanização da pobreza
Necessidades sociais excedendo a base tributária
Ausência de recursos públicos para financiar provisão de serviços
Escassez de terras servidas/urbanizadas
Supervalorização de terras servidas
Preços não acessíveis
Ocupações de terra ilegais/irregulares
Custo de vida mais alto
Aumento da pobreza urbana
Segundo Raquel Rolnik, a exclusão social é vista como uma forma de analisar como e
por que indivíduos e grupos não conseguem ter acesso ou beneficiar-se das possibilidades
oferecidas pelas sociedades. A noção de exclusão considera fatores ligados tanto aos direitos
sociais quanto a aspectos materiais, abrangendo, portanto, não apenas a falta de acesso a bens
e serviços – que representam a satisfação de necessidades básicas -, mas também a ausência
de acesso à segurança, justiça, cidadania e representação política. 144
143 Ibid., p. 03144 ROLNIK, Raquel. Exclusão territorial e violência. Podendo se consultado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88391999000400011. Acessado em 30/11/2006.
87
A ilegalidade em relação à posse da terra, além de fator de segregação social da
população de menor renda, é o principal agente do padrão de segregação espacial que
caracteriza as cidades brasileiras, tendo em vista que diversas localidades urbanas possuem
diferentes preços, estabelecidos pelo mercado imobiliário. As áreas com melhor localização
são as mais caras e são ocupadas pela população que tem renda para arcar com esses custos145.
A população de menor poder aquisitivo tende a ocupar áreas desvalorizadas no mercado
imobiliário, como a periferia urbana, carente de equipamentos públicos sociais, além de
regiões ambientalmente impróprias para moradia.
As áreas ocupadas por favelas146 estão marcadas pela ilegalidade e a conseqüente
ausência de direitos. Maricato ressalta que essa situação implica em uma exclusão ambiental e
urbana, ou seja, as áreas ocupadas por favelas são áreas mal servidas pela infra-estrutura e
serviços urbanos como água, esgoto, varrição, transporte, telefonia, coleta de lixo, drenagem,
iluminação pública, etc.147
Maricato ressalta, ainda, que o processo de exclusão não se refere apenas ao território,
mas seus moradores são também vítimas de preconceito. Em geral essa população é mais
pobre, o número de negros e de mães solteiras é maior do que a média da cidade e, pela falta
de endereço formal, torna-se mais difícil encontrar um emprego. A autora acredita que o solo
ilegal parece construir a base para uma vida ilegal e esquecida pelos direitos e benefícios
urbanos. Daí concluí-se que a “exclusão é um todo”: territorial, ambiental, econômica, racial e
cultural, etc.148
145 PEREIRA, Gislene. A natureza (dos) nos fatos urbanos: produção do espaço e degradação ambiental. In: Natures Sciences Sociétés. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 3, p. 33-51, jan/jun. 2001. Editora da UFPR. 146 Para Maricato, o conceito de favelas que é utilizado no texto se refere à situação totalmente ilegal de ocupação do solo, sendo uma conseqüência da situação jurídica que define uma relação social: o ocupante não tem qualquer direito legal sobre a terra ocupado correndo o risco de ser despejado a qualquer momento.147 MARICATO, Ermínia. Favelas – um universo gigantesco e desconhecido. Podendo ser consultado www.usp/br/fau/depprojetos/labhab/04textos/favelas.doc.Acesso em 25/10/2006.148 Ibid., p. 02
88
Outra grave conseqüência que decorre desse expressivo crescimento das ocupações
ilegais está relacionada ao meio ambiente. As favelas estão localizadas, muito
frequentemente, em áreas ambientalmente frágeis: beira de córregos, fundos de vales
inundáveis, áreas de mangues, encostas íngremes, áreas de proteção ambiental, entre outras.149
A relação entre pobreza e degradação do ambiente caracteriza a discussão sobre os
problemas ambientais nas cidades brasileiras. De acordo com Herculano, “a pobreza e a
deterioração ambiental formam um círculo vicioso, no qual um é causa do outro”. A pobreza e
a degradação ambiental não são percebidas (...) “enquanto inerentes à lógica perversa de um
modo de produção concentrador, mas como percalços inesperados e perversos, passíveis de
serem contornados e controlados através de ajustes e correções”. 150
A população de maior renda tende a beneficiar-se do processo de produção da cidade e
os mais pobres permanecem à margem, por não disporem de recursos financeiros que
permitam sua inserção nesse processo.
Conforme aponta Maricato, a natureza e a localização dos investimentos,
governamentais em primeiro plano, e privado em segundo, regulam quem e quantos terão o
direito à cidade. Ela influi ainda nas características da segregação territorial e na qualidade de
vida de cada bairro.151
De fato, as áreas onde predomina a população de baixa renda nas cidades brasileiras
caracterizam-se pela deficiência dos serviços urbanos básicos, precária situação sanitária e
habitações inadequadas, o que gera, na maioria das vezes, uma situação ilegal.
149 Ibid. p, 02150 HERCULANO, Selene. Resenhando o debate sobre a justiça ambiental: produção teórica, breve acervo de casos e criação da rede brasileira de justiça ambiental. In: Desenvolvimento e meio ambiente: Riscos coletivos – ambiente e saúde. Curitiba/PR: Editora da UFPR, nº 5, 2002. p. 145.151 MARICATO, Ermínia. Favelas – um universo gigantesco e desconhecido. Podendo ser consultado www.usp/br/fau/depprojetos/labhab/04textos/favelas.doc.Acesso em 25/10/2006
89
Ermínia Maricato discute a oposição entre cidade real e cidade legal, demonstrando
que o uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificações em meio urbano atingem mais de 50%
das construções nas grandes cidades brasileiras, se considerarmos as legislações de uso,
ocupação e parcelamento do solo, zoneamento e edificação. As razões da ilegalidade
decorrem tanto do baixo rendimento de uma grande parcela da população urbana, como da
reduzida oferta de terras no âmbito do mercado imobiliário formal, uma vez que os
empreendedores imobiliários não têm interesse nem incentivos para investir nesse segmento
do mercado. 152
A autora afirma, ainda, que, “(...) é preciso considerar que as periferias das cidades
cresceram mais do que os núcleos centrais, o que implica um aumento relativo das regiões
pobres. A ilegalidade na ocupação do solo torna-se uma verdadeira máquina de produzir
favelas e agredir o meio ambiente. O número de imóveis ilegais na maior parte das grandes
cidades é tão significativo que a cidade legal (cuja produção, pode-se dizer, é capitalista)
caminha para ser, cada vez mais, espaço da minoria”. 153
De acordo com Nelson Saule Junior, a cidade marcada pela desigualdade social e pela
exclusão territorial não é capaz de produzir um desenvolvimento sustentável. Afirma o autor
que o direito ao desenvolvimento e o direito a um meio ambiente sadio devem ter o
desenvolvimento sustentável como princípio norteador. O princípio do desenvolvimento
sustentável fundamenta o atendimento das necessidades e aspirações do presente, sem
comprometer a habilidade das gerações futuras atenderem suas próprias necessidades. A
política de desenvolvimento urbano deve ser destinada para promover o desenvolvimento
sustentável, de modo a atender as necessidades essenciais das gerações presentes e futuras. O
152 MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Podendo ser consultado http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000200013&Ing=ennrm=iso. Acesso em 02/09/2006.153 MARICATO, Ermínia. Urbanização na periferia do mundo globalizado. Podendo ser consultado: http://www.scielo.br/scielo.php?pid. Acesso em 22/11/2006.
90
atendimento dessas necessidades significa compreender o desenvolvimento urbano como uma
política pública que torne efetivo os direitos humanos, de modo a garantir à pessoa humana
uma qualidade de vida digna. 154
3.2.2 Ocupações Desordenadas e o Déficit Habitacional
O modelo de desenvolvimento e expansão que comandou a urbanização acelerada no
Brasil produziu regiões marcadas pela presença de ocupações ilegais.
Conforme aponta Maricato, são diversas as denominações para ocupações ilegais
utilizadas nas diversas regiões do Brasil: chamadas “áreas de posse” em Goiânia, “vilas” em
Porto Alegre e Curitiba, “invasão” em Brasília e “favelas” em vários Estados como São
Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, etc. Deve-se notar, contudo, que os movimentos
sociais que lutam pela moradia rejeitam o termo “invasão”, por considerá-lo ofensivo,
optando por adotar o termo “ocupação”. A autora considera que o termo “invasão” retrata a
ocupação, em áreas públicas ou privadas, por falta de alternativas, na maioria absoluta dos
casos. 155
Na cidade de Manaus, o termo comumente utilizado para denominar as ocupações
ilegais é “invasão”, mas utilizaremos neste trabalho a denominação ocupações, uma vez que o
termo “invasão” carrega consigo uma conotação pejorativa.
154 SAULE JR, Nelson. Direito à Moradia no Brasil. Disponível em www.unhabitat.org. Acesso em 25/10/2006.155 ARANTES, Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes 2000. p. 153.
91
De acordo com Edésio Fernandes, dezenas de milhões de brasileiros não têm tido
acesso ao solo urbano e à moradia, senão através de processos e mecanismos informais – e
frequentemente ilegais -, resultando em um habitat precário, vulnerável e inseguro. Favelas,
loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços,
ocupações em áreas públicas, nas encostas e beiras de rios – essas têm sido as principais
formas de habitação produzidas diariamente nas cidades brasileiras, pela maior parte de
nossos moradores urbanos. 156
De fato, a rede urbana brasileira é extremamente desigual e concentrada. Enquanto
treze municípios com mais de um milhão de habitantes respondem por cerca de 20% de toda a
população brasileira, temos cerca de 4.600 municípios com menos de 20 mil habitantes
concentrando menos de 30% da população do país. 157
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Censo 2000,
as favelas existem em todos os municípios com população superior a 500 mil habitantes e em
80% das cidades cuja população está entre 100 e 500 mil habitantes.
Após a realização, pelo IBGE, do Censo 2000 Brasil, a Fundação João Pinheiro em
parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), elaborou o
estudo Déficit Habitacional no Brasil 2000, tendo como finalidade dimensionar e qualificar
esse problema no Brasil. 158
A pesquisa partiu do conceito de que “todo mundo mora em algum lugar”, sendo que
os índices produzidos para caracterizar as necessidades habitacionais brasileiras abarcaram o
“déficit habitacional” e a “inadequação de moradias”.
156 FERNANDES, Edésio. Por uma política e um Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável: uma proposta inicial para consulta e ampla discussão. Disponível em: http:/www.irib.org.br/print/salas/boletimel743a.asp. Acesso em 22/11/2005157 BRASIL. Ministério das Cidades. Caderno de Saneamento Ambiental nº. 5. Outubro de 2004. p. 13.158 BRASIL. Ministério das Cidades. Déficit Habitacional no Brasil – Municípios Selecionados e microrregiões geográficas. Belo Horizonte/2004.
92
O conceito de “déficit habitacional” está diretamente ligado às deficiências do estoque
de moradias, isto é, às moradias sem condições de serem habitadas, seja devido ou à
precariedade das construções, seja ao fato de terem sofrido desgaste de sua estrutura física. O
déficit habitacional pode ser entendido, portanto, como o “déficit por reposição do estoque”,
referindo-se aos domicílios rústicos159, acrescidos de uma parcela devida à depreciação dos
domicílios existentes, e como “déficit por incremento de estoque” que contempla os
domicílios improvisados (locais destinados a fins não-residenciais que sirvam de moradia, o
que indica claramente a carência de novas unidades domiciliares) e a coabitação familiar.160
Agrega-se aos dois componentes acima citados o que se costuma denominar “ônus
excessivo com aluguel”, que corresponde ao número de famílias urbanas, com renda familiar
de até três salários mínimos, que moram em casa ou apartamento e que despendem mais de
30% de sua renda com aluguel.
Já o conceito de “inadequação de domicílios”, de acordo com o Ministério das
Cidades, se aplica àquelas habitações que não proporcionam aos seus moradores condições
desejáveis de habitabilidade. Em outras palavras, os domicílios com carência de infra-
estrutura, com adensamento excessivo de moradores, com problemas de natureza fundiária,
em alto grau de depreciação ou sem unidade sanitária domiciliar exclusiva. Tais fatores não
implicam a necessidade de construção de novas unidades.
Entenda-se por carência de infra-estrutura a situação daqueles domicílios que não
dispõem de: iluminação elétrica, rede geral de abastecimento de água com canalização
interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo.
Quando o domicílio apresenta um número médio de moradores superior a três
indivíduos por dormitório, ocorre o chamado “adensamento excessivo”. Deve-se esclarecer
159 Domicílios rústicos não apresentam paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, o que resulta em desconforto para seus moradores e risco de contaminação por doenças e devem, portanto ser repostos. (Ibid., p. 07)160 Ibid., p. 07
93
que o número de dormitórios corresponde ao total de cômodos, que são todos os
compartimentos integrantes do domicílio separados por paredes, inclusive banheiros e
cozinha. Não são considerados os corredores, alpendres, varandas abertas e outros
compartimentos utilizados para fins não residenciais, como garagens e depósitos.
Sobre a evolução do déficit habitacional brasileiro, Nelson Saule afirma que os dados
apontam um incremento absoluto no número de unidades habitacionais, que passam de
5.374.380, em 1991, para 6.656.526, em 2000, representando um acréscimo de 21,7%,
durante a década e um crescimento de 2,2% ao ano. Ou seja, o déficit habitacional aumentou
em geral e aumentou principalmente para os moradores na faixa mais baixa da renda mensal
familiar recebida. Verifica-se a necessidade de uma política de subsídio à política
habitacional, tendo em vista que os mecanismos de mercado e as políticas públicas têm sido
insuficientes para a solução do problema. 161
Vale ressaltar que, de acordo com os dados do Ministério das Cidades (2006), no
Brasil, há um total de cerca de 5 milhões de imóveis desocupados, ao passo que o déficit
habitacional nacional se aproxima de 7 milhões de unidades habitacionais - urbanas e rurais -
o que mostra que a concentração de terras é alarmante nesse país, constituindo mesmo uma
das maiores do mundo.
Segundo dados da Fundação João Pinheiro - FJP, o déficit habitacional em Manaus no
ano de 2000 está estimado em 68.108 (sessenta e oito mil, cento e oito) domicílios. No
entanto, segundo dados da Secretaria de Estado de Política Fundiária - SPF, somente nos anos
de 2002, 2003 e 2004, surgiram 100 (cem) ocupações irregulares, sendo que 16 dessas
ocupações foram consolidadas, gerando assim, aproximadamente 23.450 (vinte e três mil,
161 SAULE JR, Nelson. Direito à Moradia no Brasil. Podendo ser consultado pelo site: www.unhabitat.org. Acesso em 25/10/2006.
94
quatrocentos e cinqüenta) lotes, o que representaria mais de 34% do déficit habitacional
estimado pela FJP.
Tabela 2 - Relação de “invasões” consolidadas em Manaus – 2002 - 2004.
NOME DA OCUPAÇÃO QUANTIDADE LOTES
ESTIMADOS
1- JESUS ME DEU 3.000
2- RIO PIORINI 2.000
3-CAMPOS SALLES 3.000
4-RIO SOLIMÕES 600
5-PARQUE RIACHUELO 1.500
6-ISMAIL AZIZ 500
7-PARQUE DOS GUARANÁS 700
8-ESPLANADA 800
9-RAIOS DE SOL 300
10-FAZENDINHA 1.000
11-NOVA VITÓRIA 5.000
12-CARBRÁS 3.500
13-PONTAL DA CACHOEIRA 400
14-CELEBRIDADES 400
95
15-NOVO MILÊNIO 450
16-VITÓRIA RÉGIA 300
TOTAL 23.450
Fonte: Secretaria de Política Fundiária do Amazonas - SPF
As invasões não atingem prioritariamente as famílias componentes do déficit
habitacional, mas sim outro segmento social: os desempregados e subempregados que buscam
nas ocupações ilegais uma forma de subsistência, uma vez que o mercado de trabalho passou
a exigir qualificação profissional e nível escolar elevado. Os lotes que foram ocupados
ilegalmente além de suprirem as necessidades de algumas pessoas sem moradia, também são
utilizados como meio para obter uma fonte de renda, ou seja, pessoas sem alternativa
financeira passam a ocupar os lotes para posteriormente vendê-los, sendo essa uma das
poucas alternativas para garantir a sobrevivência.
Isso nos mostra que, na realidade, as “invasões”, além de serem um meio de conseguir
uma moradia, também desempenham outro papel, que é o de propiciar uma fonte de renda
para os “sem-trabalho”, que, por necessidade de subsistência, acabam vendendo a terra
invadida, e voltam a invadir outro local para moradia, gerando assim a “indústria da
invasão”.162
3.3 O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NA CIDADE DE MANAUS: A OCUPAÇÃO DE
ÁREAS IMPRÓPRIAS E SEUS REFLEXOS PARA UMA SADIA QUALIDADE DE
VIDA.
162 Centro pelo Direito à Moradia contra despejos – COHRE. Conflitos Urbano-Ambientais em Capitais Amazônicas: Boa Vista, Belém, Macapá e Manaus. Ano 2006. p. 32
96
A cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, está localizada na Região Norte
do Brasil, no centro geográfico da Amazônia. Dentro da rede de cidades brasileiras, Manaus
representa o 12º maior centro urbano, sendo considerada uma metrópole regional. Segundo
dados do Censo 2000, Manaus apresenta uma população total de 1.403.796 habitantes, com
uma concentração de 99,35% na área urbana – 1.394.724 habitantes. Vale ressaltar que, no
ano de 2000, Manaus passou a ter a metade da população do Amazonas.
Os indicadores de renda, pobreza e desigualdade para a cidade de Manaus podem ser
observados na tabela abaixo:
Tabela 3 - Indicadores de Renda, Pobreza e Desigualdade em Manaus - 1991 – 2000.
1991 2000
Renda per capita Média (R$ de 2000) 276,9 262,4
Proporção de Pobres (%) 23,6 35,2
Índice de Geni (mede o grau de desigualdade na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita),
0,57 0,64
Fonte: Atlas do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH do Brasil
A partir da implantação da Zona Franca de Manaus, através do Decreto-Lei nº. 288, de
28/02/1967, teve início um novo ciclo econômico, com a instalação de um parque industrial
de porte e a consolidação de um setor terciário baseado na comercialização de produtos
importados. A Zona Franca de Manaus foi um momento importante para o processo de
desenvolvimento do Estado do Amazonas, gerando milhares de empregos e postos de
trabalho, diretos e indiretos.
A Zona Franca de Manaus foi responsável pela atração de um grande fluxo migratório
do interior do Estado e de diferentes regiões do país. Em conseqüência, houve um aumento da
97
população em Manaus, levando ao agravamento da questão urbana, da saúde pública e da
exclusão social, processo que provocou a redução da qualidade de vida da maior parte da
população.
O problema fica evidente quando analisamos o crescimento demográfico da
população, uma vez que, em 1970, Manaus possuía 284.000 mil habitantes e, em 2000,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a população deste município
saltou para 1.403.796 de habitantes.
Tabela 4 – Crescimento Demográfico da população de Manaus – 1970 - 2000
ANO POPULAÇÃO
1970 284.000
1980 635.000
1990 1.100
2000 1.403.796
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE 1970-2000
Esse crescimento populacional foi causado pelo gigantesco êxodo rural e pelo fluxo
migratório para a capital, sendo que enormes contingentes populacionais abandonaram seus
locais de origem ancestrais, atraídos pelas expectativas de emprego e melhores condições de
vida em geral resultantes da instalação da Zona Franca de Manaus.
O crescimento acelerado da cidade, a partir da década de 1980, provocou a expansão
indiscriminada da ocupação urbana, com o aumento das ocupações irregulares,
principalmente nas zonas leste e norte, além do agravamento da situação às margens dos
98
igarapés e da deficiência da infra-estrutura urbana, principalmente dos sistemas de esgotos
sanitário, dos serviços e equipamentos sociais básicos. 163
De acordo com nosso sistema jurídico, cabe ao município o ordenamento territorial
urbano e a disciplina do uso do solo nas cidades.164 Contudo, observamos que, nas últimas
décadas, o Município abriu mão dessa prerrogativa e o poder público ficou a reboque das
“invasões”. Não foram desenvolvidas políticas públicas suficientes para enfrentar essa
dinâmica populacional e houve um constante relaxamento no cumprimento das normas
urbanísticas e edilícias previstas na Lei 1.213/75 (Plano Diretor Local Integrado de Manaus –
PDLI). O PDLI, destinado a atender às necessidades da população e da cidade nos próximos
20 anos, deveria ter sido revisado em 1995, mas não foi. 165 Este plano desempenhou um papel
importante apenas nos primeiros anos do processo de expansão urbana que se seguiu à
instalação da Zona Franca e do Distrito Industrial. Entretanto, a ausência de planejamento
continuado e a perda do controle do crescimento da cidade acabaram por determinar a
ocorrência de vários problemas ambientais em Manaus. 166
Dessa forma, por total falta de alternativa habitacional, convivem nos dias atuais na
cidade de Manaus milhares de famílias que residem em barrancos e encostas com riscos de
163 BRASIL. Ministério do Meio-Ambiente. GEO-CIDADES (2002). Relatório Ambiental Urbano Integrado de Manaus. p. 59. 164 Com relação à política habitacional, nos termos do artigo 23, inciso IX, a União, Estados e Municípios devem promover programas de construção de mordias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Compete aos Municípios, com base no art. 30, incisos I, II e VIII, promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e da ocupação do solo urbano. O Município, com base no artigo 182 da CF, é o principal ente federativo responsável pela promoção da política urbana, de modo a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. 165 Durante mais de vinte anos, o PDLI não foi objeto de quaisquer avaliações ou revisões. Após a nova Lei Orgânica do Município, teve início a realização de estudos para adequação da legislação vigente à realidade municipal. Entre 1995 e 1997, foram editadas novas legislações entre as quais merecem destaque a Lei nº 2.79/95 que altera a divisão territorial do Município e estabelece as Áreas Especiais de Interesse Urbanístico, e a Lei nº 353/96 que estabelece normas para regularização de parcelamento do solo para fins urbanos, implantados irregularmente na Área Urbana, e cria as Zonas Especiais de Interesse Social ou ZEIS. (Centro pelo Direito à Moradia contra despejos – COHRE. Conflitos Urbano-Ambientais em Capitais Amazônicas: Boa Vista, Belém, Macapá e Manaus. Ano 2006. p. 31). 166 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. GEO-CIDADES (2002). Relatório Ambiental Urbano Integrado de Manaus. p. 60.
99
desabamento; às margens dos inúmeros igarapés que recortam a cidade; em baixo de fios de
transmissão de eletricidade e também em locais com focos de malária.
Nas últimas três décadas, o município de Manaus vem se deparando com um número
elevado de ocupações irregulares, as chamadas invasões. Segundo dados da Secretaria de
Estado de Política Fundiária, nos anos de 2002 a 2006, ocorreram mais de 140 novas
ocupações ilegais no perímetro urbano. Tal fato demonstra, por um lado, a ausência ou
insuficiência de políticas públicas voltadas para o problema habitacional e urbano, mas, por
outro, evidencia uma forma de segregação espacial e social.
Na década de oitenta, a Zona Norte, pelos seus inúmeros “vazios urbanos” 167, passa a
ser a área escolhida para as invasões, como o Novo Israel, Terra Nova e Santa Etelvina. Essa
opção dos movimentos de ocupação pela Zona Norte da cidade teve seu recrudescimento a
partir do ano 2000, com as invasões: Rio Piorini, Jesus me Deu, Carbrás, Esplanada, Campos
Salles, Pontal da Cachoeira, Ismail Aziz etc.
Ocorre que a grande maioria dessas populações tem baixo nível escolar e pouca ou
nenhuma qualificação profissional, situação que se agrava como resultado dos reflexos que
recebem dos problemas macroeconômicos que abalam a economia nacional e global. Essa
combinação, aliada a outros fatores - ausência de políticas públicas, ascensão da política
econômica neoliberal etc. - fez com que milhares de pessoas se vissem sem nenhuma
perspectiva com relação a prover o seu próprio sustento.
Muitas das ocupações ou “invasões” ocorridas nos últimos anos, como acima
afirmado, foram feitas em áreas impróprias para habitação, como encostas, nascentes de
igarapé, barrancos, em baixo de fios condutores de energia ou mesmo em antigos depósitos de
lixo, como o caso do Bairro do Novo Israel, na Zona Norte da cidade.
167 Os “vazios urbanos” podem ser definidos como áreas que não cumprem a função social, servindo apenas como reserva para especulação. Caracterizam-se, grosso modo, pelo estado de abandono das áreas, sendo assim locais propícios para as “invasões”.
100
A luta por moradia está sendo travada pela população de baixa renda, que não tem o
direito de exercer sua cidadania no sentido de ter um teto para morar com dignidade, passando
a habitar locais que são impróprios para moradia, como áreas sem saneamento e coleta de
lixo, em ambientes degradados, com poucos espaços verdes, sem acesso à água de qualidade
ou ar puro.
Após a consolidação das ocupações, diversos bairros da cidade de Manaus passam a
receber algum tipo de saneamento ou infra-estrutura básica, principalmente nas épocas de
campanhas políticas.
A forma desordenada de urbanização da cidade também traz prejuízos ao meio
ambiente, como a moradia nas margens de igarapés, como é o caso do “Igarapé do Quarenta”,
ou de destruição quase que total de áreas verdes, como é o caso de invasões como “Jesus me
Deu”, “Nova Vitória” e outras. A situação torna-se ainda mais dramática pelo fato de esses
danos causados ao meio ambiente serem decorrência da total falta de oportunidade
econômica, reflexo do capitalismo crescente, que leva famílias inteiras a se submeterem à
moradia em locais impróprios, causando riscos à própria vida e ao meio ambiente.
A cidade de Manaus está situada às margens dos Rios Negro e Solimões, sendo
entrecortada por cursos d´agua, rios e igarapés e, como resultado da situação climática e da
cheia do Rio Negro, que ocorre anualmente, surgem situações de inundações e
desmoronamentos, atingindo principalmente as populações que residem nas áreas impróprias
à ocupação.
As transformações fruto do processo de urbanização acelerada de Manaus não foram
acompanhadas por uma política de controle ambiental compatível com seu elevado
101
crescimento urbano. Nesse processo, os cursos d´água que cortam a cidade foram ocupados
sofrendo alterações e degradação, muitas delas irreversíveis. 168
Além das ocupações nas margens dos igarapés, outro grave problema observado em
Manaus é o crescimento da ocupação urbana direcionada para as áreas até então preservadas
com florestas primárias. Os desmatamentos, para fins de ocupações, ocorridos nas últimas
décadas, localizam-se nas Zonas Leste e Norte, regiões periféricas da cidade, onde ocorre
intensa ampliação das fronteiras urbanas e o adensamento de áreas ocupadas. Primeiramente
foram ocupados os espaços no centro da cidade, às margens dos inúmeros igarapés que a
recortam, e depois foram sendo ocupadas e invadidas áreas na periferia da cidade, formando
novos bairros.
Em Manaus, houve uma redução das condições de salubridade dos habitantes, devido
ao intenso crescimento populacional, levando um grande número de pessoas a ocuparem áreas
impróprias para moradia. A insuficiência da infra-estrutura existente fez com que os casos de
doenças de veiculação hídrica, tais como febre tifóide, hepatite A e as diarréias tenham tido
um alto índice de ocorrência na cidade, bem como os surtos de malária e dengue, decorrentes
do intenso desmatamento nas ocupações, levando assim a uma precarização da qualidade de
vida. 169
3.3.1. A legalização das favelas à luz do Estatuto da Cidade
As formas de ilegalidade nas cidades constituem uma das maiores conseqüências do
processo de exclusão social e segregação espacial que tem caracterizado o crescimento urbano
intensivo nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Sendo assim, um número
168 Centro pelo Direito à Moradia contra despejos – COHRE. Conflitos Urbano-Ambientais em Capitais Amazônicas: Boa Vista, Belém, Macapá e Manaus. Ano 2006. p. 29169 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. GEO-CIDADES (2002). Relatório Ambiental Urbano Integrado de Manaus. p. 118
102
cada vez maior de pessoas tem tido de descumprir a lei para ter um lugar nas cidades, vivendo
sem segurança jurídica da posse, em condições precárias ou mesmo insalubres e perigosas,
geralmente em áreas periféricas ou em áreas centrais desprovidas de infra-estrutura urbana
adequada. 170
A discussão crítica sobre a ilegalidade urbana tem ganho destaque nos últimos anos,
especialmente desde a Agenda Hábitat da ONU, que salientou a importância fundamental do
direito urbanístico.
A partir da década de 1970, movimentos populares de luta por moradia propiciaram a
criação do Fórum Nacional de Reforma Urbana. A primeira grande conquista foi a inclusão de
um capítulo na Constituição Federal de 1988 tratando da Política Urbana. Contudo, somente
em 2000, através de Emenda Constitucional n. 26, foi incluído na CF/88 o direito à moradia.
Pela CF/88, os Municípios passaram a ser co-responsáveis por promover as políticas
habitacionais (arts. 21 a 30).
Após longas negociações e adiamentos, foi aprovado pelo Congresso Nacional o
Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo da política urbana (arts. 182 e 183) da
Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Cidade passou a definir o que significa cumprir a
“função social da cidade” e da propriedade urbana, delegando esta tarefa para os municípios,
170 FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a regularização fundiária em favelas à luz do Estatuto da Cidade. In: Temas de Direito Urbanístico 3. Coordenação Geral José Carlos de Freitas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001. p. 190.
103
oferecendo para as cidades um conjunto inovador de instrumento de intervenção sobre seus
territórios171, além de uma nova concepção de planejamento e gestão urbanos. 172
O Estatuto da Cidade visa à incorporação da cidade real à cidade legal, através de
processos de regularização fundiária e urbanística dos assentamentos populares, reconhecendo
os padrões de assentamento vigentes nestes espaços. 173
Raquel Rolnik afirma que as inovações contidas no Estatuto situam-se em três
campos: um conjunto de novos instrumentos de natureza urbanística voltados para induzir –
mais do que normatizar – as formas de uso e ocupação do solo; uma nova estratégia de gestão
que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o
destino da cidade e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas, até
hoje situadas na ambígua fronteira entre o legal e o ilegal. 174
De acordo com o art. 2º da Lei 10.257/01, a política urbana tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as
seguintes diretrizes gerais:
171 Os Instrumentos de intervenção sobre os territórios estão divididos em três campos: a) Instrumentos de planejamento, entre os quais destacam-se o plano diretor; disciplina sobre o parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zoneamento ambiental e gestão orçamentária participativa, além dos Estudos Prévios de Impacto Ambiental e de Impacto de Vizinhança. b) Instrumentos tributários e financeiros, entre os quais se encontra o “IPTU progressivo no tempo”, instrumento utilizado para os casos de não cumprimento das definições municipais sobre parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, ou seja, as áreas vazias ou subutilizadas situadas em áreas dotadas de infra-estrutura estão sujeitas ao pagamento do IPTU progressivo no tempo, embora pouco utilizado ainda, por ser um instrumento que vai frontalmente de encontro aos interesses da especulação imobiliária. c) Instrumentos jurídicos e políticos, entre os quais merece destaque a desapropriação, a instituição de zonas especiais de interesse social, a concessão de direito real de uso, a concessão de uso especial para fins de moradia, o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória, a usucapião especial de imóvel urbano e a regularização fundiária. (ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza. Disponível em www.estatutodaciade.org.br/estatuto/artigo1.html. Acesso em 15/09/2006).172 Ibid., p. 01173 Ibid., p. 02174 Ibid., p. 01
104
(....)
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por
populações de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização,
uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação sócio-econômica da população e
as normas ambientais.
Art. 4º, inciso V:
a) desapropriação;
f) a instituição de zonas especiais de interesse social;
g) a concessão de direito real de uso;
h) a concessão de uso especial para fins de moradia;
j) o usucapião especial de imóvel urbano e
q) regularização fundiária.
Segundo Ermínia Maricato, tanto a Constituição Federal de 1988, em seus capítulos
dedicados à política urbana (arts. 182 e 183), como o Estatuto da Cidade contêm dispositivos
de adequação controvertida. A primeira porque os adversários da chamada Reforma Urbana
preconizada pelos movimentos sociais, conseguiram incluir na redação alguns detalhes que
remetem a aplicação de alguns instrumentos - como o IPTU progressivo para imóveis não
utilizados ou subutilizados - para lei complementar. O segundo porque remeteu a utilização
dos instrumentos de reforma urbana à elaboração de Plano Diretor. Isto é, com exceção dos
instrumentos de regularização fundiária, os demais - que dizem respeito ao direito à habitação
e à cidade - ficam dependentes de formulação contida no Plano Diretor. O que parece ser uma
105
providência lógica e óbvia resultou em um travamento na aplicação das principais conquistas
contidas na lei. 175
A autora acima citada reconhece que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da
Cidade de 2000 constituem paradigmas inovadores e modernizantes no que diz respeito às
relações de poder sobre a base fundiária e imobiliária urbana. Destaca que a questão principal
reside na aplicação dos novos instrumentos urbanísticos trazidos por essa legislação quando
se deseja reestruturar (porque o problema é de estrutura) todo o quadro da produção
habitacional de modo a conter essa determinação da ocupação ilegal e predatória pela falta de
alternativas habitacionais. 176 Ou seja, a dificuldade está em apresentar alternativas para que
grande parte da população não seja forçada a invadir terras para poder morar.
Deve-se salientar a enorme pressão para que respostas sejam encontradas para o
fenômeno crescente de ilegalidade. Contudo, as agências públicas têm se concentrado mais na
cura do que na prevenção do problema, sobretudo no nível municipal. 177
Apesar de resistências, já se observa no Executivo, Legislativo, Judiciário, assim como
na própria sociedade, uma tendência crescente de admissão da regularização urbanística e
jurídica das ocupações ilegais.
Aparentemente, as ações governamentais começam a reconhecer a necessidade de
urbanização e legalização da cidade informal, oferecendo uma melhor qualidade de vida e
segurança fundiária para seus moradores, ficando em segundo plano (e em alguns casos
esquecida) as políticas públicas voltadas para o oferecimento de novas moradias para aqueles
que, sem perspectivas e recursos financeiros, invadem terras para morar. A regularização
175 MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Disponível em www.scielo.br/scielo.php. Acesso em 02/09/2006.176 Ibid.., p. 14.177 FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a regularização fundiária em favelas à luz do Estatuto das Cidades. In: Temas de Direito Urbanístico 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001. p. 194.
106
jurídica completa a melhoria das condições sociais, já que confere mais estabilidade e
segurança ao morador, que pode até livrar-se de uma condição penosa de morador de favela,
condição essa que interfere nas chances de obtenção de emprego, crediário e até salários,
como afirmado acima. 178
De acordo com Edésio Fernandes, no Brasil, quase todos os programas de
regularização de favelas (combinando políticas de urbanização e políticas de legalização) têm
sido estruturados em torno de dois objetivos principais: o reconhecimento de alguma forma de
segurança jurídica da posse para os ocupantes das favelas, bem como a integração sócio-
espacial de tais áreas e comunidades no contexto mais amplo da estrutura e da sociedade
urbana. 179
Contudo, o autor destaca que, com base nos estudos existentes sobre as experiências
de diversas cidades brasileiras, há, com freqüência, um descompasso significativo entre os
objetivos dos programas de regularização e as políticas adotadas. Afirma ainda o autor, que
tais programas têm sido mais bem sucedidos no que toca às políticas de urbanização do que às
políticas de legalização.
Maricato, por sua vez, afirma que a democratização da produção de novas moradias e
do acesso à moradia legal e à cidade com todos seus serviços e infra-estrutura exige a
superação de dois grandes obstáculos – terra urbanizada e financiamento – que, durante toda a
história da urbanização brasileira, foram insumos proibidos para a maior parte da população.
180
178 MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Disponível em www.scielo.br/scielo.php. Acesso em 02/09/2006.179 FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a regularização fundiária em favelas à luz do Estatuto das Cidades. In: Temas de Direito Urbanístico 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001. p. 200.180 MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Disponível em www.scielo.br/scielo.php. Acesso em 02/09/2006..
107
Os programas de regularização têm um caráter essencialmente curativo, e precisam ser
combinados com investimentos públicos e políticas sociais e urbanísticas que gerem opções
adequadas e acessíveis de moradia social para os grupos mais pobres que tem tido nas favelas
e nos loteamento periféricos a única forma possível de acesso ao solo urbano e à moradia. 181
A regularização fundiária das invasões na cidade de Manaus está sendo implementada
pelo Poder Público Estadual e Municipal, sendo que ainda de forma incipiente, mas
oferecendo a uma pequena parcela dos moradores de invasões uma maior segurança fundiária.
Desde 2001, o Estado vem regularizando a moradia de famílias que ocupam há mais
de cinco anos terras do Estado, através da concessão de título definitivo, programa que
beneficiará, até o final do ano de 2007, 30 mil famílias.
A prefeitura, a partir do ano de 2007, passou a considerar uma parte do bairro Santa
Etelvina como “Zona Especial de Interesse Social” – ZEIS182, tendo, a partir do ano de 2006
emitido diversas concessões de uso para moradores em áreas da prefeitura.
Enquanto cidadãos, os favelados devem ter acesso garantido a um lugar na sociedade
urbana e a um espaço na cidade. Nesse sentido, essas experiências de legalização das favelas
ou invasões têm um sentido positivo, pois ampliam a cidadania dos seus moradores. Contudo,
tais iniciativas não atingem as raízes do processo de urbanização excludente, verdadeiro
motor de produção contínua de favelas. Ele exige medidas mais amplas. O primeiro passo é
181 FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a regularização fundiária em favelas à luz do Estatuto das Cidades. In: Temas de Direito Urbanístico 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Ministério Público do Estado de São Paulo, 2001. p. 193.182 ZEIS – são zonas urbanas especiais de interesse social que podem conter áreas públicas ou particulares ocupadas por população de baixa renda, onde há interesse público de promover a urbanização e/ou a regularização jurídica da posse da terra, para salvaguardar o direito à moradia. As ZEIS são destinadas prioritariamente para a produção e manutenção de habitação de interesse social, a fim de promover a regularização jurídica da área, a implantação de infra-estrutura urbana e equipamentos comunitários e a promoção de programas habitacionais, incorporando os territórios da cidade informal à cidade legal. (Regularização da Terra e Moradia. O que é e como implementar”. Instituo Polis. 2002)
108
criar consciência social sobre a dimensão e a importância do problema, trazendo para a luz do
dia uma realidade que é desconhecida.183
A ausência de políticas públicas sociais que garantam o acesso à habitação resulta em
imensas massas de desabrigados, os sem-teto, que vivem perambulando pelas periferias
urbanas ou mesmo pelas áreas centrais, onde conseguem desenvolver alguma atividade que
lhes garanta uns trocados, ainda que insuficientes até mesmo para pagar a locação de uma
habitação subnormal, como um cômodo em uma ocupação ilegal qualquer.
Nas cidades brasileiras e, em particular, a cidade de Manaus, observa-se um quadro
crescente de desigualdade e discriminação social, segregação ambiental, desemprego, pobreza
e violência, o acesso aos direitos básicos é privilégio de poucos e os recursos naturais são
cada vez mais dizimados.
A questão que nos parece central sobre a deterioração da qualidade de vida da
população brasileira, ou melhor, da segregação sócio-ambiental não está, certamente, na falta
de recursos públicos, uma vez que estes vêm crescendo ano a ano. A questão central está na
destinação dos recursos públicos que, nos moldes da atual condução do processo de
implementação das políticas públicas, acaba promovendo a concentração da riqueza e
ampliando as desigualdades sociais, sendo as maiores vítimas os segmentos mais
pauperizados das classes subalternas, que pela sua situação econômica, são obrigados a correr
toda sorte e risco sócio-ambientais.
183 MARICATO, Ermínia. Favelas – um universo gigantesco e desconhecido. Podendo ser consultado www.usp/br/fau/depprojetos/labhab/04textos/favelas.doc. Acesso em 25/10/2006.
109
3.4 O MOVIMENTO POR JUSTIÇA AMBIENTAL
A partir da década de 1960, os efeitos devastadores do desenvolvimento começaram a
repercutir, não só no campo das ciências sociais, humanas, e biológicas, como também
chegaram ao tecido social. Da preocupação com o a crise socioambiental deu-se início a um
conjunto de embates e discussões contra as condições inadequadas de saneamento, de
contaminação química de locais de moradia e trabalho, além da disposição indevida de lixo
tóxico e perigoso. Nos anos de 1970, sindicatos, ambientalistas e organizações de minorias
étnicas articularam-se para discutir assuntos relacionados às “questões ambientais urbanas”.184
A constituição do Movimento por Justiça Ambiental teve como marco histórico a
experiência concreta de luta desenvolvida nos Estados Unidos da América (EUA), em Afton,
no condado de Warren Couty, na Carolina do Norte, em 1982. Ao tomarem conhecimento da
iminente contaminação da rede de abastecimento de água da cidade, caso fosse nela instalado
um depósito de bifenil policlorado, os habitantes do condado organizaram protestos maciços,
deitando-se diante dos caminhões que para lá traziam a carga perigosa contendo resíduos
tóxicos. O protesto contra a utilização de sua localidade de moradia para a instalação de um
aterro de resíduos perigosos culminou na prisão de mais de 500 moradores de Afton, que era
composta de 84% de negros.
Alguns outros casos de injustiça ambiental nos Estados Unidos são emblemáticos,
assim como o de contaminação química em Love Canal, Niagara, Estado de Nova York. A
partir de 1978, moradores de um conjunto habitacional de classe média baixa descobriram que
suas casas estavam erguidas junto a um canal que tinha sido aterrado com dejetos químicos
industriais e bélicos. No sul da Lousiana, em uma região conhecida como a Cancer Alley, e
184 ASCELRAD, Henri. Justiça Ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004, p. 23-24.
110
também no cinturão negro do Alabama, se concentram-se incineradores e depósitos de rejeitos
perigosos. O maior aterro comercial de lixo tóxico dos Estados Unidos, que recebe rejeitos
retirados dos procedimentos de descontaminação, está localizado na cidade de Emelle, no
Alabama, onde os negros formam 90% da população e 75% dos residentes do Sumter County.
A localidade do sudeste de Chicago, habitada por 150 mil pessoas, das quais 70% negros e
11% latinos, havia contabilizado em 1991, segundo a Greenpeace, 50 aterros de lixo tóxico,
100 fábricas (das quais 7 indústrias químicas e 5 siderúrgicas) e 103 depósitos abandonados
de lixo tóxico na sua comunidade. 185
A luta de comunidades negras locais, frequentemente isoladas, contra agentes tóxicos
e assentamentos de instalações perigosas, conduziu a Comissão para Justiça Racial a produzir,
em 1987, o primeiro estudo nacional a correlacionar instalações que manipulavam resíduos
com características demográficas. Concluiu-se no referido trabalho que a composição racial
de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos
de rejeitos perigosos de origem comercial em uma área. As empresas escolhiam uma
localidade para fins de construir aterros de resíduos químicos de acordo com a raça de seus
moradores. O peso de tal variável mostrou-se mais forte do que a pobreza, o valor da terra e a
propriedade de imóveis. As localidades com moradores negros eram as preferidas para
construção de fábricas e depósitos de lixos químicos. 186
Foi a partir desta pesquisa que o Reverendo Benjamin Chavez cunhou a expressão
“racismo ambiental” para designar “a imposição desproporcional – intencional ou não – de
rejeitos perigosos às comunidades de cor”. Entre os fatores explicativos de tal fato, foram
185 HERCULANO, Selene. Riscos e desigualdade social: a temática da Justiça Ambiental e sua construção no Brasil. Disponível em http://www.anppas.org.br. Acesso em 22/06/07.186 Os protestos então conduziram a Comissão para Jutiça Racial (Comission for Racial Justice) a produzir Toxic Waste and Race, o primeiro estudo nacional a correlacionar instalações que manipulavam resíduos com características demográficas. Teve como resultado que a raça foi percebida como variável mais potente na predição de onde essas instalações eram localizadas – mais forte que a pobreza. (ASCELRAD, Henri. Justiça Ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 26-45).
111
alinhados a disponibilidade de terras baratas em comunidades de minorias e suas vizinhanças;
a falta de oposição da população local por fraqueza organizativa e carência de recursos
políticos típicas das comunidades de minoria; a falta de mobilidade espacial das minorias em
razão de discriminação residencial e, por fim, a sub-representação das minorias nas agências
governamentais responsáveis por decisões de localizações dos rejeitos. 187
Robert Bullard188 indaga em seu texto “Enfrentando o racismo ambiental” sobre as
razões de algumas comunidades serem transformadas em depósito de lixo enquanto outras
escapam desse destino. O autor afirma que as regulamentações ambientais são rigorosamente
aplicadas em algumas comunidades e em outras não, assim como alguns trabalhadores são
protegidos das ameaças ao ambiente e à saúde, enquanto outros são envenenados, o que autor
define como a “anatomia do racismo ambiental”. 189
Destaca o autor que o EUA, como força econômica e militar dominante do mundo
atual têm gerado massivo bem-estar, altos padrões de vida e consumismo. No entanto, essa
máquina de crescimento tem também gerado resíduos, poluição e destruição ecológica,
mesmo possuindo uma das melhores legislações ambientais do planeta. Todavia, no campo
real, nem todas as comunidades são tratadas de modo igual. Algumas comunidades são
rotineiramente envenenadas enquanto o governo olha para o outro lado. 190
De acordo com Guilherme Purvin “as terras de uma nação pobre constituem um
excelente ‘depósito de lixo’ e qualquer projeto dessa ‘nação-depósito’ visando a adoção de
um novo paradigma econômico será considerado um perigoso entrave para o contínuo
processo de expansão do poderio econômico dos países poluidores. (...) O comércio de
187 Ibid, p. 26.188 Robert Bullard, professor do Clark Atlanta University – EUA, intelectual e ativista norte-americano.189 BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 41-42.190 Ibid., p. 43.
112
resíduos e outras formas de desenvolvimento ambientalmente nocivo está agravando a
desigualdade internacional e ajudando a sustentar as indústrias poluidoras em todo o
planeta”.191
Por conta disso, pessoas negras em todo o planeta precisam lutar contra a poluição da
atmosfera e da água para consumo, e, ainda do estabelecimento de instalações nocivas192, tais
como aterros municipais, incineradores, tratamento e emissão de resíduos perigosos, em áreas
de propriedade privada ou do poder púbico, sendo que, essas áreas geralmente estão
localizadas próximas ao local de moradia dos negros. Robert Bullard observa que há um
padrão de discriminação ambiental que submete determinadas comunidades, com maior
intensidade, a danos ambientais decorrentes das atuais políticas econômicas e de mercado.
Esse fato ocorre tanto em países industrializados, como os EUA, como nos países em
desenvolvimento, que estabelecem políticas públicas e práticas industriais que, ao mesmo
tempo em que garantem benefícios para os países do Norte, direcionam os custos para os
países do Sul. Por conta disso, observa-se que as comunidades mais poluídas são as
comunidades com infra-estrutura desintegrada, ausência de investimentos econômicos,
habitação precárias, escolas inadequadas, desemprego crônico, alta pobreza e sistema de
atenção à saúde sobrecarregada. 193
Como exemplo, o autor destaca que na fronteira dos Estados Unidos da América –
EUA com o México operam mais de 1.900 fábricas de montagem, de propriedade de
empresas estrangeiras, que se aproveitam da mão-de-obra barata, criando subempregos e
191 FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. Curso de Direito Ambiental (interesses difusos, natureza e propriedade). Rio de Janeiro: Portal Jurídico (Gazetajuris), 2006. p. 132-133.192 Robert Bullard traz como exemplo a tragédia de Bhopal que ainda está fresca na mente de milhões de pessoas que vivem próximas a indústrias químicas. O vazamento do venenoso gás de metilisocianto (MIC) EM 1984, na planta industrial da Union Carbide na cidade de Bhopal (Índia), matou milhares de pessoas, tornando-se o acidente industrial mais grave em todo o mundo. Nos EUA, o único lugar onde era produzido o MIC, o Institute Union Carbide, se situava em uma área de West Virgínia habitada predominantemente por afro-americanos, sendo que, em 1985, um vazamento de gás nessa instalação resultou na hospitalização de 135 residentes. (Ibid., p. 44.)193 Ibid., p. 43-44.
113
agravando o nível de poluição local, comprometendo assim a saúde dos trabalhadores e
habitantes da região. A crescente globalização tornou fácil para o capital e as corporações
transnacionais fugirem para áreas com o mínimo de regulamentação ambiental, melhores
taxas de incentivos, mão-de-obra barata e altos lucros, esse fato é definido por Bullard como
uma forma de discriminação institucionalizada. 194
Os movimentos ambientais durante muito tempo se preocuparam com as questões
ambientais apenas relacionadas à preservação, exploração predatória e escassez dos recursos
naturais do planeta. No final dos anos 80, surge, nos EUA, um movimento inovador que
trouxe um novo enfoque das questões ambientais, que passaram a ser pensadas em termos de
distribuição e justiça.
A partir das reivindicações contra a iniqüidade ambiental, o movimento elevou a
Justiça Ambiental à condição de questão central na luta pelos direitos humanos, passando o
movimento ambientalista a incorporar a desigualdade ambiental às desigualdades sociais. A
partir de 1987, organizações de base começaram a discutir mais intensamente as ligações
entre raça, pobreza, poluição e as ligações entre problemas ambientais e desigualdade social.
A Primeira Cúpula Nacional de Lideranças Ambientais de Pessoas de Cor, em 1991,
realizada em Washington, ampliou o movimento por justiça ambiental para além do seu foco
anti-produtos tóxicos, para incluir questões de saúde pública, segurança do trabalho, uso do
solo, transporte, moradias, alocação de recursos e empoderamento das comunidades. A
conferência contou com a presença de mais de 1000 lideranças de base e de diversos países do
mundo, contando com a participação de delegados de 15 países, dentre eles o Brasil. Os
delegados participantes da conferência e aprovaram 17 princípios da justiça ambiental que
foram desenvolvidos para guiar a organização e formação de redes de ONGs.
194 Ibid., p. 46.
114
Nesse sentido, a noção de “justiça ambiental” permitiu uma articulação discursiva
distinta daquela prevalecente do debate ambiental corrente – entre meio ambiente e escassez.
Neste último, o meio ambiente tende a ser visto como uno, homogêneo e quantitativamente
limitado. A idéia de justiça, ao contrário, remete a uma distribuição equânime de partes e à
diferenciação qualitativa do meio ambiente. A denúncia da desigualdade ambiental sugere
uma distribuição desigual das partes de um meio ambiente de diferentes qualidades,
injustamente dividido. 195
A Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) define justiça ambiental
como sendo a condição de existência social configurada através da busca do tratamento justo
e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor,
origem ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço
de políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo, entenda-se que nenhum grupo
de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva suportar uma parcela
desproporcional das conseqüências ambientais negativas resultantes de operações industriais,
comerciais e municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais, locais ou
tribais, bem como das conseqüências resultantes da ausência ou omissão dessas políticas. 196
Enrique Leff ao comentar a categoria de distribuição ecológica, busca compreender as
externalidades197 ambientais e os movimentos sociais que emergem de “conflitos
195 ASCELRAD, Henri. Justiça ambiental e construção social do risco. In: Desenvolvimento e meio ambiente: Riscos coletivos – ambiente e saúde. Curitiba/PR: Editora da UFPR, nº 5, 2002. p. 54. 196 BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental. In: BULLARD, Robert. “Enfrentando o racismo ambiental”. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 41-42.197 Leff define como externalidades a pobreza, a degradação ambiental, a perda de valores e práticas culturais e a equidade transgeracional; a produtividade natural e a regeneração ecológica, a degradação entrópica de massa e energia, o risco e a incerteza. (LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 45). Ainda sobre esse conceito, Cristiane Derani afirma que “durante o processo produtivo, além do produto a ser comercializado, são produzidas externalidades negativas. São chamadas externalidades porque, embora resultantes da produção são recebidas pela coletividade, ao contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado. Daí a expressão ´privatização de lucros e
115
distributivos”. Ou seja, o autor procura explicar, através da distribuição ecológica, a carga
desigual dos custos ecológicos e seus efeitos nas variedades do ambientalismo emergente,
incluindo os movimentos de resistência e justiça ambiental.
Pois bem, distribuição ecológica designa as “assimetrias ou desigualdades sociais,
espaciais, temporais no uso que os humanos fazem dos recursos e serviços ambientais,
comercializados ou não”. A categoria de distribuição ecológica incorpora o conflito gerado
pela distribuição desigual dos custos ecológicos do crescimento e sua internalização através
dos movimentos sociais em defesa do ambiente e dos recursos naturais.
De acordo com Enrique Leff, as preocupações dos países do Norte concentram-se nos
problemas ambientais globais (mudança climática, aquecimento da Terra, chuva ácida, perda
de biodiversidade) fatores que, rompendo os equilíbrios ecológicos do planeta, colocam em
perigo a sustentabilidade do sistema econômico, sendo que seus problemas mais visíveis são o
controle da contaminação e a disposição de rejeitos gerados pelos altos níveis de produção e
consumo. Já nos países do Sul, o ambientalismo não surge da abundância, mas da luta pela
sobrevivência em condições de uma crescente degradação socioambiental. Assim, tanto os
camponeses e os povos indígenas, como a população urbana marginalizada, estão se
organizando e lutando em resposta à extrema pobreza gerada pela destruição de seus recursos
naturais, à degradação de suas condições de produção e à falta de equipamento e saneamento
básico. 198
socialização de perdas`, quando identificadas as externalidades negativas. Nesse sentido, os produtores e fabricantes devem internalizar os custos exigidos para a prevenção, controle e reparação dos danos advindo de sua atividade, devendo redistribuir esses custos entre os compradores e seus produtores. (...) O agente econômico (produtor, consumidor, transportador), que nesta condição causar algum dano ambiental, deve arcar com os custos necessários à diminuição, eliminação ou neutralização do dano, podendo – desde que compatível com as condições da concorrência no mercado – transferir estes custos para o preço do ser produto final”. (DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Editora Max Limond, 1997. p. 158).198 LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 45-46.
116
Enrique Leff destaca, ainda, que atualmente o número de pobres é maior do que nunca
antes na história da humanidade, e a pobreza extrema avassala mais de um bilhão de
habitantes do planeta. O empobrecimento das maiorias é resultado de uma cadeia causal e de
um círculo vicioso de desenvolvimento perverso - degradação ambiental - pobreza, induzido
pelo caráter ecodestrutivo e excludente do sistema econômico dominante. O autor afirma que
os movimentos ambientais “são lutas de resistência e protesto contra a marginalização e a
opressão, reivindicações por direitos culturais, pelo controle de recursos naturais, pela
autogestão de processos produtivos e a autodeterminação de condições de vida”. Estas lutas
pela erradicação da pobreza vinculam a sustentabilidade à democracia; entrelaçam-se com a
reivindicação de identidades culturais, com a reapropriação de conhecimentos e práticas
tradicionais e os direitos das comunidades para desenvolver formas alternativas de
desenvolvimento. O movimento ambiental passou a incorporar às suas demandas tradicionais
novas reivindicações como melhoria da qualidade do ambiente e da qualidade de vida. 199
O termo justiça ambiental é um conceito aglutinador e mobilizador, por integrar as
dimensões ambiental, social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento,
frequentemente dissociados nos discursos e nas práticas. Tal conceito contribui para
reverter a fragmentação e o isolamento de vários movimentos sociais frente ao
processo de globalização e reestruturação produtiva que provoca perda de soberania,
desemprego, precarização do trabalho e fragilização do movimento sindical e social
como todo. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-
se como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e
entidades, como sindicatos, associações de moradores, grupos de afetados por
diversos riscos (como barragens e várias substâncias químicas), ambientalistas e
cientistas. 200
199 Ibid., p. 46200 ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil – uma introdução. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 18.
117
Guilherme Purvin, afirma que o movimento por Justiça Ambiental já começa a
proliferar no Brasil, tendo como ideal a distribuição igualitária dos ônus ambientais
decorrentes da produção e do consumo. Ressalta o autor que a preservação ecológica do
planeta é, realmente, condição para a sobrevivência da humanidade, mas “nada indica que
haja interesse ou mesmo que seja viável distribuir eqüitativamente entre toda a população de
um país e entre todos os países do planeta os ônus dessa preservação, dentro do modelo
econômico capitalista”. Acredita ainda, o autor que a opção pela vida no planeta só possa se
dar com a superação histórica do modelo econômico e social contemporâneo. 201
A Justiça Social constituía o objetivo maior da primeira metade do século XX. No
estado atual do mundo torna-se cada vez mais necessário ampliá-la às dimensões da Justiça
Ambiental em dois aspectos: Justiça no interior da Humanidade presente – significa que as
necessidades essenciais de todos os seres humanos devam poder ser satisfeitas, através de
uma eqüitativa partilha dos recursos do Planeta-; e Justiça para com a Humanidade futura –
significa que os humanos de hoje devem deixar às próximas gerações recursos naturais e
outros, em quantidade e qualidade suficiente para assegurar que esses recursos possam
satisfazer suas necessidades essenciais. 202
3.4.1 Injustiça Ambiental no Brasil
A injustiça ambiental caracteriza o modelo de desenvolvimento dominante no Brasil.
Além do desemprego, da falta de proteção social e da precarização do trabalho, a maioria da
201 FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. Curso de Direito Ambiental (interesses difusos, natureza e propriedade). Rio de Janeiro: Portal Jurídico (Gazetajuris), 2006. p. 133-134. 202 KISS, Alexandre. Justiça Ambiental e religiões cristãs. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (organizadores). Desafio do Direito Ambiental no século XXI Estudos em homenagem a Paulo Afonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 49-59.
118
população brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos locais de
trabalho, de moradia ou no ambiente em que transita.
Os trabalhadores, minorias étnicas, populações tradicionais e grupos sociais mais
vulneráveis estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias perigosas, da falta de
saneamento básico, das más condições de moradia, etc. Os grupos sociais de menor renda, em
geral, são os que têm menor acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à
segurança fundiária. As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e
social, o que, nas cidades, leva à periferização de grande massa de trabalhadores e, no campo,
por falta de expectativa de se obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para os grandes
centros urbanos. 203
No Brasil, país caracterizado pela existência de grandes injustiças, principalmente em
termos de distribuição de renda e acesso aos recursos naturais, o tema da justiça ambiental
vem sendo re-interpretado de modo a ampliar seu escopo, para além da temática específica da
contaminação química e do aspecto especificamente racial da discriminação denunciada.
As gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e neutralizam um conjunto de
situações caracterizadas pela desigual distribuição de poder sobre a base material da vida
social e do desenvolvimento. Os vazamentos e acidentes na indústria petrolífera e química, a
morte de rios, lagos e baías, as doenças e mortes causadas pelo uso de agrotóxicos e outros
poluentes, a expulsão das comunidades tradicionais pela destruição dos seus locais de vida e
trabalho, a existência de populações que ocupam áreas impróprias para moradia, sem
condições de saneamento básico, todas essas situações configuram um quadro constante
injustiça socioambiental. 204
203 ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil – uma introdução. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 14.204 HERCULANO, Selene. Resenhando o debate sobre a justiça ambiental: produção teórica, breve acervo de casos e criação da rede brasileira de justiça ambiental.. In: Desenvolvimento e meio ambiente: Riscos
119
Para Selene Herculano, os propósitos da justiça ambiental não podem admitir que a
prosperidade dos ricos se dê através da expropriação ambiental dos pobres. Este tem sido o
mecanismo pelo qual o Brasil vem batendo recordes em desigualdade social no mundo:
concentra-se a renda e concentram-se também os espaços e recursos ambientais nas mãos dos
poderosos. O exercício da cidadania e a reivindicação de direitos ainda encontram um espaço
relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da luta de tantos movimentos e pessoas em
favor de um país mais justo e decente, sendo que tudo isso se reflete no campo ambiental,
num processo caracterizado pelo desprezo pelo espaço comum e pelo meio ambiente,
processo que se confunde com o desprezo pelas pessoas e comunidades. 205
O ambientalismo brasileiro tem um grande potencial para se renovar e expandir o seu
alcance social. Os movimentos sindicais, sociais e populares, entre outros, também podem
renovar e ampliar o alcance da sua luta se nela incorporarem a dimensão da justiça ambiental
– o direito a uma vida digna e em um ambiente saudável. 206
No Brasil, o marco inicial de sistematização e divulgação da problemática referente à
Justiça Ambiental foi a coleção intitulada “Sindicalismo e Justiça Ambiental”, publicada em
coletivos – ambiente e saúde. Curitiba/PR: Editora da UFPR, nº 5, 2002 144. Juliana Santilli ao comentar sobre o socioambientalismo afirma que: “o socioambientalismo brasileiro nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. (...) Desenvolveu-se a partir da concepção de que, em um país pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental – ou seja, a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos – como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e eqüidade. Além disso, o novo paradigma de desenvolvimento preconizado pelo socioambientalismo deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla participação social na gestão ambiental. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, apud Santilli, trata-se de um novo paradigma de desenvolvimento, eco-socialista, que se contrapõe ao paradigma capital-expansionista. Boaventura descreve as características do paradigma capital-expansionista, em que o desenvolvimento social é medido essencialmente pelo crescimento econômico, assentado na industrialização e no desenvolvimento tecnológico virtualmente infinito, e na descontinuidade total entre a natureza e a sociedade. Já o paradigma emergente, o paradigma eco-socialista, é descrito por Boaventura com as seguintes características: o desenvolvimento social é aferido pelo modo como são satisfeitas as necessidades humanas fundamentais e é tanto maior, em nível global, quanto mais diverso e menos desigual”. (SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Petrópolis, 2005. p. 31-36).205 HERCULANO, Selene. Resenhando o debate sobre a justiça ambiental: produção teórica, breve acervo de casos e criação da rede brasileira de justiça ambiental. In: Desenvolvimento e meio ambiente: Riscos coletivos – ambiente e saúde. Curitiba/PR: Editora da UFPR, nº 5, 2002. p. 145.206 Ibid., 145-146.
120
2000 pela Central Única dos Trabalhadores – CUT/RJ, em conjunto com o Ibase, o Instituto
de Pesquisas e Planejamento Urbano – IPPUR da UFRJ e com o apoio da Fundação Heirich
Böll. O objetivo era estimular a discussão sobre a responsabilidade e o papel dos
trabalhadores e das entidades representativas, na defesa de um meio ambiente urbano
sustentável e com qualidade de vida acessível a todos os seus moradores.
Em setembro de 2001, no Campus da Universidade Federal Fluminense em Niterói,
foi realizado o Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental207, uma das primeiras
iniciativas de cunho acadêmico e político organizada no Brasil, discutindo enfoques teóricos e
implicações políticas da proposta da Justiça Ambiental. O Colóquio teve como objetivo
ampliar o diálogo e a articulação entre sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas e
pesquisadores, no sentido de estimular o fortalecimento da luta por justiça ambiental. Na
ocasião, foi então criada a “Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA”.
A partir da realização do Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, passou-se a
entender por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de
vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento
às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos
tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. 208
Já o conceito de justiça ambiental designa o conjunto de princípios e práticas que: 209
a) determinam que nenhum grupo de pessoas - seja um grupo étnico, racial ou de
classe - suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de
207 Reuniram-se no Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, ONGs, entidades ambientalistas, organizações de afrodescendentes, organizações indígenas e pesquisadores universitários do Brasil, Estados Unidos, Chile e Uruguai. 208 COLÓQUIO INTENACIONAL SOBRE JUSTIÇA AMBIENTAL, TRABALHO E CIDADANIA: Declaração Final. Disponível por http://www.fase.org.br. Acessado em 05/11/2006. 209 Ibid, p. 01
121
operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais,
assim como da ausência ou omissão de tais políticas;
b) asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do
país;
c) asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos
ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como
processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e
projetos que lhes dizem respeito;
d) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e
organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de
desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a
sustentabilidade do seu uso.
Para os representantes do Colóquio, a injustiça ambiental resulta da lógica perversa de
um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição de ecossistemas, de alocação
espacial de processos poluentes, que penaliza as condições de saúde da população
trabalhadora, moradora de bairros pobres e excluídos pelos grandes projetos de
desenvolvimento. Uma lógica que mantém grandes parcelas da população às margens das
cidades e da cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto. 210
Alguns casos de Injustiça Ambiental no Brasil são emblemáticos, como o caso da
“Cidade dos Meninos”, na Baixada Fluminense, área metropolitana do Rio de Janeiro. As
cidades da Baixada ficaram conhecidas como “cidades-dormitórios”, ocupadas
predominantemente por loteamentos clandestinos, de moradia da população pobre, oriunda de
210 ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil – uma introdução. In: Justiça Ambiental e Cidadania. Org. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, Jose Augusto. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004. p. 11.
122
migrações internas. Em 1940 foi fundado um complexo educacional para crianças pobres, em
uma área federal de 19 hectares, localizada no distrito de Pilar, área esta que foi chamada de
“Cidade dos Meninos”. Pouco tempo depois, o Ministério da Saúde instalou dentro do
complexo educacional Cidade dos Meninos uma fábrica que produziria o pesticida conhecido
como “pó-de-broca”, o HCH (Hexaclorociclohexano), 211 para enfrentar a malária, então
endêmica na região. Em 1961, a fábrica cessou suas atividades, abandonando no local
toneladas de matéria-prima (material tóxico), sendo que, com o passar do tempo, tal
substância começou a se espalhar e se infiltrar pelo solo, iniciando um longo processo de
contaminação do meio ambiente e da população, sem solução até hoje. 212
O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) protagonizou no ano de 2000, no
Rio de Janeiro, um conflito fundiário urbano, que envolveu 360 famílias sem moradia, que
estavam provisoriamente nos acampamentos Araguaia e Nova Canudos. Após negociação do
Movimento com o Governo do Estado, as famílias foram retiradas dos acampamentos e
transferidas para um terreno da Companhia dos Distritos Industriais do Estado do Rio de
Janeiro (CODIN) em Campo Grande, com a promessa da construção de um conjunto
habitacional. Durante os sete meses em que ficaram acampados no local, aguardando a
construção das residências, foram afetados por uma contaminação de resíduos tóxicos,
provenientes das indústrias do entorno, que resultou na intoxicação de 63 pessoas, deixando
duas em estado grave. As famílias que ali se encontravam além de serem vítima da exclusão
211 HCH é um pesticida organoclorado, isolado por Faraday em 1825 e que teve suas propriedades inseticidas descobertas em 1942, na França e Inglaterra. Seu uso tornou-se restrito em alguns países e totalmente proibido em outros. No Brasil, tal substância teve sua utilização na agricultura proibida por Portaria Ministerial em 1985, mas continua sendo utilizado em campanhas de saúde pública, na tentativa de erradicação e/ou controle de vários vetores de doenças transmissíveis e endêmicas. (HERCULANO, Selene. Exposição a riscos químicos e desigualdade social: o caso do HCH na Cidade dos Meninos . In: Desenvolvimento e meio ambiente: Riscos coletivos – ambiente e saúde. Curitiba/PR: Editora da UFPR, nº 5, 2002. p. 62). 212 Ibid., p. 67
123
social e econômica, passaram também a vítimas das externalidades dos empreendimentos
industriais, arcando injustamente com o ônus do desenvolvimento. 213
Outro exemplo de injustiça ambiental é o caso do Aterro de Gramacho em Duque de
Caxias, estado do Rio de Janeiro, comunidade composta por descendentes de africanos, que
chega a 80% do total da população. O aterro vem suportando, desde a época do Império, o
lançamento de todo o lixo produzido na área metropolitana do município do Rio de Janeiro e,
mais recentemente, de mais seis municípios vizinhos. O aterro do Gramacho é um dos
maiores aterros sanitários da América Latina e processa diariamente 7.000 toneladas de
resíduos. A esse respeito, há inclusive no Museu do Lixo uma tela chamada “O Negro do
Lixo”, representando os negros que há tempos atrás conduziam o lixo da população abastada
até seu destino final, próximo das comunidades negras e carentes que ali habitavam.
Importante mencionar, a triste e desesperadora realidade das inúmeras famílias que
vivem desse aterro, à espera dos imensos e carregadíssimos caminhões que até ali se
dirigem; chocante, de fato, o contraste entre o movimento das garças e dos braços de
catadores, em acirrada disputa por restos da sociedade – paradoxalmente, a mesma
sociedade que a estes oprime e os marginaliza e fecha os olhos para essa realidade. 214
3.4.2 A distribuição desproporcional de danos ambientais em Manaus
213 PEROBELLI, Kátia. Conflito Ambiental e Luta por Moradia – o caso do depósito de lixo tóxico do Distrito Industrial de Campo Grande, município do Rio de Janeiro. Disponível http://www.anppas.org.br. Acesso em 04/10/2006.214 SANTOS JR, Humberto Adami, LOURDES, Flávia Tavares Rocha. O papel fundamental do advogado na aplicação da Justiça Ambiental e no combate ao Racismo Ambiental . In: Revista de Direito Ambiental. Ano 7, Vol. 27. São Paulo: RT, Julho-Setembro 2002. p. 174.
124
A implantação da Zona Franca de Manaus, em 1967, trouxe um novo ciclo econômico
à cidade, que foi responsável pela atração de um grande fluxo migratório oriundo de todas as
partes do Brasil, resultando, assim, na expansão de novas áreas de ocupações urbanas,
inclusive às margens dos igarapés. Os imigrantes primeiramente ocupavam os espaços no
centro da cidade, às margens dos igarapés, e depois foram ocupando e invadindo áreas na
periferia da cidade, formando assim novos bairros.
Em Manaus, cerca de 70 mil moradias estão localizadas em faixas marginais dos
cursos d´agua, áreas consideradas como de preservação permanente, onde vivem
aproximadamente 300 mil pessoas. A maior parte dessas moradias corresponde a palafitas
precárias, implantadas sobre os espelhos d´água ou em áreas sujeitas a inundação. 215
As ocupações desordenadas levaram a cidade a uma precarização da qualidade de
vida, pois esse enorme contingente populacional e a expansão do Distrito Industrial, com suas
fábricas e indústrias, passaram a fustigar incansavelmente a natureza e o meio ambiente,
agravando assim os problemas de injustiça ambiental, fazendo com que nos dias atuais a
cidade enfrente inúmeras alterações ambientais, como a contaminação de lençóis freáticos, o
desmoronamento de casas e barracos construídos em barrancos e ribanceiras, a contaminação
dos igarapés e mananciais com esgotos e lixo (tanto doméstico quanto industrial), a
contaminação dos peixes por metais pesados nos igarapés do Quarenta (os moradores dos
igarapés pescam os peixes para consumo), a contaminação também por metais pesados de
terrenos do Distrito Industrial e adjacências.
Os igarapés que recortam a cidade de Manaus começaram a passar por problemas de
contaminação principalmente como conseqüência da instalação de empresas com atividade
215 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. GEO-CIDADES (2002). Relatório Ambiental Urbano Integrado de Manaus. p. 119.
125
industrial às margens dos igarapés, sobretudo próximo ao Igarapé do Quarenta, situado na
zona sul da cidade de Manaus.
As indústrias que estão instaladas na Zona Franca de Manaus, além dos incentivos
fiscais, baixos salários, infra-estrutura e leis ambientais frágeis e flexíveis, não tiveram
grandes preocupações quanto ao destino de seus dejetos tóxicos, causando, assim, um
envenenamento dos terrenos, das águas e dos peixes, nas regiões adjacentes ao Distrito
Industrial. Vale ressaltar que essa área é densamente povoada, pois compreende diversos
bairros como: Japiim, Japiinlândia, Aterro do Quarenta, Betânia, Cachoeirinha, Educandos,
entre outros.
A avaliação do impacto ambiental do Igarapé do Quarenta começou a ser feita no
início da década de 90. Os problemas ambientais dos igarapés foram estudados e revelados
por diversos autores, sendo que os estudos realizados até o momento mostram que o Distrito
Industrial de Manaus é o principal responsável pela poluição do sistema hídrico em termos de
metais pesados. Outra causa de poluição é o esgoto sem tratamento e o lixo doméstico, ambos
provenientes das palafitas (casas muitos precárias construídas às margens dos igarapés), como
conseqüência da alta concentração de moradores nas margens dos igarapés.
Um dos primeiros estudos realizados sobre a poluição aquática em Manaus foi de
Sergio Bringel. Destaca o autor que a poluição torna-se um problema mais sério quando há
um crescimento populacional, ou também com a intensidade da industrialização. O grande
receio está no fato de talvez sermos incapazes de controlar essa poluição, pois, com o
desenvolvimento industrial da cidade de Manaus novas indústrias surgiram e, com isso, mais
pessoas. Consequentemente, haverá um aumento de consumo de energia e de despejos de
detritos. 216
216 BRINGEL, Sérgio Roberto Bulcão. Estudo do nível de poluição nos igarapés do Quarenta e do Parque Dez de Novembro. 1986. Relatório Técnico. Instituto de Tecnologia da Amazônia – UTAM, Manaus, 1986. p 8.
126
Um estudo realizado por Tereza Oliveira evidencia a contaminação química por metais
pesados no igarapé do Quarenta, que tem aproximadamente 38 km de extensão e possui várias
nascentes, localizadas em sua maioria na Zona Leste de Manaus. 217 Afirma a autora que, a
observação das condições na área tornou evidente que muitas empresas instaladas no Distrito
Industrial fazem uso dos igarapés para o despejo de seus afluentes, sendo perceptível a
existência nos despejos de constituintes de tintas em suspensão, solventes e alguns resíduos
sólidos. Destaca ainda, que a formulação desses produtos contém uma série de metais pesados
e compostos orgânicos reconhecidamente cancerígenos (thiner, benzina, etc.), que poderiam
contaminar toda a Bacia do Educandos. 218
Karime Bentes, ao coletar várias amostras de solo da região do Distrito Industrial,
observou que as empresas despejam diversos produtos químicos nos igarapés sem nenhum
tipo de tratamento adequado. Afirma, ainda, que é comum encontrar nessa região colorações
de diversos tipos (amarela, negra, azul, etc.) nas águas dos igarapés. Outra característica
marcante é a existência de odores desagradáveis e lixo de diversas espécies: papelão, sacos
plásticos, isopor, pneus e subprodutos industriais. A autora evidenciou em seu trabalho a
existência de substâncias contaminantes encontradas no solo em quantidades elevadas. 219
Um outro estudo realizado por Nívea Guedes, ao longo da microbacia do igarapé do
Quarenta, constatou a existência de vários metais pesados, tais como níquel, ferro cobre,
manganês e cromo em limites acima do que recomenda a Resolução 020/86, do Conselho
Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). 220
217 OLIVEIRA, Tereza Cristina Souza de. Distribuição de metais pesados em sedimentos na região do Distrito Industrial da Manaus. 2002. Dissertação (Mestrado em Química de Produtos Naturais) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2002. p. 16. 218 Ibid., p. 14219 BENTES, Karime Rita de Souza. Estudo de um espodossolo hidromórfico existente na bacia de três igarapes do Distrito Industrial de Manaus. 2001. Dissertação (Mestrado em Química de Produtos Naturais) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2001. p. 23 220 GUEDES, Nívea Cristina de Carvalho. Poluição aquática na microbacia do igarapé do quarenta, Manaus-AM. 2003. Dissertação (Mestrado em Química de Produtos Naturais) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2003. p. 11.
127
Os metais pesados como o zinco, do magnésio, do cobalto e do ferro tornam-se tóxicos
e perigosos para a saúde humana quando ultrapassam determinadas concentrações-limite.
Vale ressaltar que o chumbo, o mercúrio, o cádmio, o cromo e o arsênio são metais que não
existem naturalmente em nenhum organismo, tampouco desempenham funções nutricionais
ou bioquímicas em microorganismos, plantas ou animais. A presença destes metais em
organismos vivos é prejudicial em qualquer concentração. 221
Em estudo realizado com o objetivo de analisar a concentração de metais pesados nos
peixes que vivem no igarapé do Quarenta, observou-se que os teores de cobre encontrados
nesse igarapé variavam de 1,06 mg/g a 79,48 mg/g, enquanto a concentração máxima
permitida pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), é de 30,0 mg/g. As
concentrações de cobre no igarapé do Quarenta chegaram a atingir valores duas vezes o limite
admissível, sendo que os maiores valores foram encontrados nos fígados dos peixes. 222
A contaminação dos peixes por metais pesados se torna ainda mais grave, devido a
cultura alimentar do povo amazonense e também pelos problemas econômicos próprios das
populações excluídas, uma vez que o pescado torna-se um alimento substancial para essas
populações de baixa renda, que geralmente pescam em igarapés nos mais diversos locais da
cidade de Manaus. Nesse sentido, a contaminação dos sistemas aquáticos pode gerar
contaminações dos sistemas nos peixes e nos seres aquáticos. A contaminação pode ocorrer
tanto por meio da cadeia alimentar, ou através do simples contato direto e permanente com o
meio aquático poluído, o que ocorre muitas vezes através das brânquias. 223
O problema resultante dos poluentes está presente no cotidiano das cidades, expondo a
riscos geralmente os pobres, que, sem alternativa habitacional, são obrigados a construir
221 MENDES FILHO, Ivanhoé Amazonas. Injustiça Ambiental: análise da problemática no bairro de Novo Israel/Manaus-AM. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura) Universidade Federal do Amazonas, Manaus 2005. p. 30222 Ibid., p. 63.223 Ibid., p. 62.
128
moradias erguidas nas margens dos igarapés, que muitas vezes são aproveitados para o
despejo de dejetos industriais e domésticos. Sobrevivem em uma situação de total abandono,
sem qualidade de vida, e principalmente impossibilitados de exercer seus direitos sociais à
moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
As populações que vivem em palafitas, sobre os igarapés, além de serem vítimas da
exclusão social e econômica, também são vitimas da injustiça ambiental, uma vez que
recebem uma maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento.
Outro caso expressivo de injustiça ambiental em Manaus é o do bairro de Novo Israel,
localizado na zona norte da cidade, local que vem enfrentando sérios problemas
socioambientais. Desde o início da década de 1970, quando ainda era uma área semi-urbana,
servindo como sítios e chácaras, este local foi usado como lixeira pública pela Prefeitura
Municipal de Manaus, recebendo todo tipo de lixo, desde resíduos industriais, domésticos e
hospitalares, isso até 1986, quando um Decreto Municipal transferiu a lixeira para outro local.
No final de 1987, o local, que antes havia sido uma lixeira, passou a ser ocupado por pessoas
sem alternativa habitacional, tornando-se, pouco tempo depois, um bairro. O bairro de Novo
Israel possui 14.416 habitantes e conta com 3.149 moradias, segundo dados do Censo 2000 -
IBGE.
Ivanhoé Mendes realizou um estudo no Bairro do Novo Israel com o objetivo de
verificar as faces da injustiça ambiental sofrida pelos moradores da área. Em seu estudo,
verificou os problemas ambientais e de infra-estrutura urbana do bairro, analisando a partir do
entorno e do domicílio, condições de moradia e poder aquisitivo, condições de habitabilidade,
instalações sanitárias e de higiene, identificação dos problemas domiciliares referentes às
condições de água e de seu armazenamento, disposição de resíduos sólidos e problemas de
saúde.
129
O autor destaca que o bairro de Novo Israel poderia ser apenas mais um bairro de
Manaus, oriundo dos processos de ocupações ilegais, mas torna-se peculiar devido a um
conjunto de mazelas e iniqüidades perpetradas contra moradores do bairro, destacando-se o
problema da água, tanto no abastecimento, quanto na qualidade - vale destacar que os
moradores utilizam os poços artesianos improvisados para conseguirem água -, lembrando
que o solo era uma antiga lixeira. Além dos problemas da água, inexiste rede de esgotos e de
drenagem, faltam locais adequados para o despejo de resíduos sólidos. Tais problemas são
resultados, principalmente, da precariedade dos serviços públicos e da negligência ou omissão
do poder público oferta de melhores condições de vida da população. Por outro lado,
evidenciam uma lógica de segregação espacial e social, que empurra e imobiliza as classes
ditas subalternas para locais onde deverão pagar com a sua saúde e com as suas vidas. Esse é
o preço a ser pago, para que possam morar na metrópole, relegados a uma terra contaminada
pelo próprio poder público. 224
Guilherme Purvin, afirma que, “as áreas degradadas por aterros sanitários ou nas
proximidades de “lixões” a céu aberto, por seu valor irrisório, constituem uma solução
perversamente cômoda para alojar uma imensa multidão de pessoas socialmente excluídas do
acesso aos bens minimamente necessários para existência digna”. 225
3.5 Discurso x Práxis: o caso da “invasão” Nova Vitória
A capital do Amazonas concentra 500 mil habitantes vivendo em situação de pobreza,
de acordo com dados da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semasc). 226
224 MENDES FILHO, Ivanhoé Amazonas. Injustiça Ambiental: análise da problemática no bairro de Novo Israel/Manaus-AM. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura) Universidade Federal do Amazonas, Manaus 2005. p. 99.225 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Curso de Direito Ambiental - interesses difusos, natureza e propriedade. Rio de Janeiro: Portal Jurídico (Gazetajuris), 2006. p. 138.226 XIMENES, Antônio. Migração sem controle. A Critica. Manaus 17/11/2005.
130
De fato, a cidade de Manaus possui um grande contingente populacional vivendo em
condições precárias de habitação, atingindo atualmente proporções nunca imaginadas, seja do
ponto de vista de ausência de serviços de infra-estrutura, seja considerando-se as condições de
segurança do imóvel. Muitos apresentam risco de desmoronamento, de inundação, de
incêndio devido a ligações elétricas precárias, além do perigo de se contrair moléstias
infecciosas decorrentes do acúmulo de lixo e de condições insatisfatórias de higiene.
Ao ser observada a precariedade habitacional, deve-se levar em conta não somente as
condições do imóvel em si, mas também o que se refere a seu entorno e ao que é
disponibilizado em termos de equipamentos de saúde, educação, cultura, lazer e transportes.
As formas de produção e distribuição da riqueza, bem como a própria organização do
espaço, da infra-estrutura e dos serviços urbanos determinam a qualidade de vida da
população na cidade.
Nas últimas décadas, ocorreu um empobrecimento da população de forma que muitas
famílias não tiveram como arcar com o aumento das despesas de habitação e acabaram
empurradas para as periferias, aglomerados - clandestinos ou não - carentes de infra-estrutura.
Em tais locais passam a residir a mão-de-obra necessária para o crescimento da produção. O
poder aquisitivo da população está distante dos interesses do mercado imobiliário: não há
ofertas para essa faixa da população e ela tem cada vez menos condições de adquirir o que é
ofertado.
A falta de alternativa habitacional leva os socialmente excluídos a buscarem na
“invasão” de terras uma possibilidade de moradia, sendo que essa única alternativa de
moradia que encontram vem causando profundos danos ao meio ambiente e a sadia qualidade
de vida.
131
A trajetória de evolução da urbanização em Manaus nos últimos 20 anos tem sido o
grande desafio no processo de desenvolvimento e preservação ambiental. A cidade de Manaus
é uma zona urbana no meio da floresta e que atualmente está pagando um preço ambiental
muito alto por conta do tipo de expansão urbana que vem sofrendo.
Na cidade de Manaus, as zonas Leste e Norte passaram a ser efetivamente ocupadas
por meio de “invasões” na década de 1980 e são as mais atingidas atualmente pela degradação
ambiental. Essas zonas sofreram impactos ambientais significativos, que ocasionaram perdas
de cobertura vegetal, assoreamento e poluição de igarapés, destruição de nascentes, perda da
biodiversidade e ameaça de extinção de espécies de animais como o Sauim-de-coleira. 227
O processo de “invasão” de áreas para a construção de moradias tem como principal
característica à retirada das árvores e a “limpeza” do terreno. A intensificação desse processo
transformou as zonas Leste e Norte da cidade de Manaus em áreas com pouquíssimo verde, e
com sérios problemas de alagamento, desabamento e vulnerabilidade.
Com o objetivo de verificar o grau de desmatamento do município de Manaus, uma
equipe do Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM) promoveu um estudo dos 18 anos de
desmatamento na área, no período de 1986 a 2004. Dessa forma concluiu-se que 22% da área
urbana de Manaus, cerca de 9.601 hectares, foram desmatados. O levantamento foi feito
apenas na área urbana de Manaus, que corresponde a 4% da área total do município, cerca de
44 mil hectares, sendo que 28 mil já estão desmatados. 228
De acordo com o estudo “a zona leste foi a última a ser ocupada e ainda assim, é a
mais devastada por conta do avanço populacional”. A zona leste tem 16 mil hectares, sendo
que 40% pertencem à Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA. O total de
227 NOGUERIA, Ana Claudia Fernandes; SANSON, Fabio; PESSOA, Karen. A expansão urbana e demográfica da cidade de Manaus e seus impactos ambientais. Anais XIII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Florianópolis, Brasil, 21-26 abril 2007, INPE, p. 5427-5434.228 Jornal Amazonas em Tempo. Manaus está sendo desmatada. Disponível em http://www.emtempo.com.br/ . Acessado em 23/06/2006.
132
área verde de Manaus atualmente é de 15.265 hectares e de área desmatada é de 28.835
hectares. 229
Em seguida será examinado um caso paradigmático de habitantes de uma “invasão”
denominada Nova Vitória, tendo surgido em julho de 2003, localizada na Zona Leste da
cidade de Manaus, na qual as famílias locais passaram a se mobilizar coletivamente,
engajando-se num discurso de reivindicação dos direitos à moradia e a uma sadia qualidade
de vida.
A ocupação ilegal se deu em terras de propriedade da Superintendência da Zona
Franca de Manaus - SUFRAMA, destinadas à instalação de indústrias na zona urbana de
Manaus. Desde então a “invasão” tornou-se alvo de brigas judiciais na tentativa de se retirar
os ocupantes da área.
A área da “invasão” Nova Vitória caracteriza-se como um aglomerado de moradias
precárias, sendo que grande parte das habitações foram construídas em terrenos irregulares
com riscos de desabamento; não dispõem de infra-estrutura, saneamento básico, água
encanada, luz elétrica, transporte, escolas, etc. Ou seja, os equipamentos públicos sociais
básicos não são colocados à disposição dos moradores dessa invasão.
A área, por pertencer à União, é de jurisdição federal. No ano de 2003, a Justiça
Federal decretou a reintegração de posse da área para a SUFRAMA. A referida reintegração
de posse foi cumprida pela Polícia Federal no dia 15/11/2003, com o apoio do Batalhão de
Choque da Polícia Militar do Estado do Amazonas, sendo que na época o número de
moradores na área era de 3.150, de acordo com o levantamento sócio-econômico realizado
pela Universidade Federal do Amazonas.
229 Ibid., p. 01
133
A Policia Federal, munida de um verdadeiro arsenal de guerra - helicópteros, dezenas
de viaturas, metralhadoras, pistolas, cavalos, etc. -, entrou na área da “invasão” e deu-se início
a “batalha”. Os moradores da “invasão” Nova Vitória, ao som do hino nacional entoado por
vozes inconformadas pela rotina de sofrimento, resistiram à reintegração. Todos foram para o
confronto com os policiais. Foi uma verdadeira cena de guerra, uma luta travada entre os
moradores e a polícia. Lutando por seus tetos, os moradores enfrentaram a cavalaria, balas de
borracha, gás lacrimogêneo e cacetetes. Muitos moradores foram lesionados e alguns foram
presos, mas no final da batalha a reintegração foi cumprida. Conseguiram expulsar as pessoas
moradoras da área e todos os barracos foram destruídos por tratores.
Após a reintegração de posse da área, a SUFRAMA não tomou providências para fins
de proteger a área de novas ocupações, sendo que dias depois a área foi novamente invadida
pelos moradores anteriormente expulsos que não tinham para onde ir e haviam ficado nas
calçadas e ruas próximas à “invasão” Nova Vitória.
No decorrer dos anos a Polícia Federal tentou novamente intervir na área, mas as
famílias continuavam a resistir. Os impactos negativos causados pela forma violenta de
expulsão dos moradores da “invasão” Nova Vitória foram muito criticadas pela opinião
pública e até mesmo pelo próprio poder público, como o Ministério Público Federal - MPF.
Constantemente os moradores eram ameaçados de serem expulsos novamente a
qualquer momento. Além de estarem morando em local totalmente inadequado para moradia,
passaram a também viver com o medo de qualquer dia reviver a batalha de expulsão.
A liminar que garantia a reintegração de posse da área invadida que pertence a
SUFRAMA foi suspensa pela Justiça Federal, em outubro de 2005, a pedido do Ministério
Público Federal, que entendeu que o processo de retirada “à força” seria traumático para as
famílias residentes na região. Desde o ano de 2003, quando surgiu a “invasão” Nova Vitória,
134
o Ministério Público Federal, representantes da SUFRAMA e associações de moradores da
ocupação passaram a se reunir constantemente, a fim de discutir uma forma pacífica de
cumprir a reintegração de posse sem deixar os moradores da “invasão” sem moradia.
Várias manifestações já foram realizadas pelos moradores da “invasão” Nova Vitória,
uma delas foi no ano de 2006, em frente ao prédio do Ministério Público Federal, ocasião em
que reivindicavam do poder público que revisse o pedido de reintegração de posse da área.
Entre os moradores que estavam na manifestação se destacou a menor Valéria da Silva Prado,
de 11 anos de idade, afirmando que: “ninguém tem casa em outro canto, não temos para onde
ir. Todos os que moram no Nova Vitória só têm aquele pedaço de terra. Eles estão brigando
por uma terra que é de Deus”. 230
Uma outra cena marcante registrada pela imprensa, foi a de um casal de idosos
chorando e ajoelhados em frente ao prédio do Ministério Público Federal. Ambos declararam:
Aquela é a nossa terra, é tudo o que temos de mais precioso na vida. Não podem nos
retirar daquele local. (Eva Rodrigues, moradora da “invasão” Nova Vitória) Dizem
que vão nos dar casa, mas eu não creio que isto se torne real. Queria mesmo é que
urbanizassem o bairro Nova Vitória. (Manoel Firmino Trindade, também morador da
“invasão”). 231
Ao longo de quase quatro anos de existência da “invasão” Nova Vitória, a
SUFRAMA, os representantes do Ministério Público Federal e os moradores da área não
entraram em um acordo. Devido à constatação da existência de moradias em área de risco de
desabamento, o Poder Executivo optou pelo uso da medida provisória como mecanismo mais
ágil para permitir ao governo do Estado intervir na urbanização da comunidade. A Medida
230 FERNANDA, Maria. Sem-teto firmam resistência. A crítica. Manaus 18 de fevereiro de 2006.231 Ibid., p. C7.
135
Provisória nº 334, de 19 de dezembro de 2006 autoriza a Superintendência da Zona Franca de
Manaus – SUFRAMA a doar ao Governo do Estado do Amazonas a área 1.570.653 milhão de
metros quadrados, localizada na área de expansão do Distrito Industrial, correspondente à
ocupação urbana denominada Nova Vitória.
O Governo do Estado do Amazonas, através da edição da Medida Provisória de nº
334/06, passou a assumir a responsabilidade de realizar uma política de urbanização na área
doada pela SUFRAMA.
Com o objetivo de mensurar o número de habitantes na ocupação, as condições de
habitabilidade e de identificar as famílias que moram em área de risco para que sejam
transferidas para lotes mais seguros, a Secretaria de Estado de Política Fundiária – SPF
realizou, de fevereiro a março de 2007, um levantamento sócio-econômico na “invasão” Nova
Vitória.
Atualmente existem 5.298 famílias que moram na “invasão” Nova Vitória, de acordo
com o levantamento realizado pela SPF. A maioria das residências são de madeira, sendo que
2.707 (61%) das residências possuem apenas 01 cômodo e 792 (17%) possuem dois
cômodos.
Um dos principais problemas apontados pelo levantamento diz respeito ao
abastecimento de água, conforme gráfico abaixo. O levantamento nos mostra que 2.764 (61%)
famílias moradoras da “invasão” suprem suas necessidades de abastecimento de água em
reservatórios e poços fora de sua propriedade, ou seja, saem diariamente em busca de água
para o consumo de sua família.
Gráfico 2 – Situação do abastecimento de água na “invasão” Nova Vitória – 2007
136
Fonte: Secretaria de Estado de Política Fundiária - SPF
Outro problema grave apontado é em relação ao esgotamento sanitário, tendo sido
constatado que 2.025 (44%) não têm qualquer tipo de fossa, despejam seus afluentes
sanitários de forma rudimentar, ou seja, despejam em vala a céu aberto. Cerca de 1.315 (28%)
famílias possuem fossa negra e 1.294 (28%) fossa séptica.
Gráfico 3 – Situação do esgotamento sanitário da “invasão” Nova Vitória - 2007
1655; 36,8%
2764; 61,4%
84; 1,9%
POSSUI POÇO
NÃO POSSUI POÇO
ACESSO A REDE GERAL
137
Fonte: Secretaria de Estado de Política Fundiária - SPF
Em relação à situação empregatícia dos moradores da “invasão” Nova Vitória,
constatou-se que 41% (1.819) das famílias entrevistadas não possuem fonte de renda fixa,
estando o chefe ou o responsável da família desempregado. Enquanto que 24% (1.066) são
autônomos e 32% (1.428) das famílias estão empregados.
O levantamento mostra também a faixa salarial de cada família: 1.344 (32%) famílias
adquirem por mês mais de 1 (um) salário mínimo como renda; 1.182 (27%) famílias ganham
menos de 1 salário mínimo, enquanto 1.355 (31%) famílias sobrevivem sem renda alguma.
Em relação ao local da moradia, o levantamento identificou que 1.215 (21%) famílias
estão com suas moradias localizadas em áreas de risco, como barrancos e encostas.
Ao analisarmos os resultados do levantamento sócio-econômico realizado pela SPF,
podemos afirmar que os dados confirmam a existência de um padrão de desigualdades e
exclusão sócio-ambiental dos moradores da “invasão” Nova Vitória. Os dados obtidos
mostram o nível de precariedade em que os moradores da “invasão” se encontram atualmente,
estando essa situação relacionada ao não acesso aos serviços públicos básicos e aos riscos
ambientais decorrentes do fato de habitarem em uma área não urbanizada.
1315; 28%
1294; 28%
2025; 44%
FOSSA NEGRA
FOSSA SÉPTICA
NÃO TEM
138
Além dos problemas da falta dos equipamentos públicos sociais, os moradores da
“invasão” Nova Vitória sofrem também com outro problema grave que vem constantemente
ceifando vidas humanas, a malária.
A malária sempre foi, desde a Antigüidade, um dos principais flagelos da humanidade.
Atualmente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo menos 300 milhões
de pessoas contraem malária por ano em todo o mundo. Também conhecida como paludismo,
a malária é considerada problema de saúde pública em mais de 90 países, embora com
prevalência diferente. Os mais comprometidos são Índia, Brasil (cerca de 300 mil casos/ano),
Afeganistão e países asiáticos, incluindo a China. Cerca de 2,4 bilhões de pessoas (40% da
população mundial) convivem com o risco de contágio. Dados da Organização Mundial da
Saúde (OMS) indicam que a malária é a doença infectocontagiosa tropical que mais causa
problemas sociais e econômicos no mundo. Por ano, sobretudo na África, entre 500 e 300
milhões de pessoas são infectadas, das quais cerca de um milhão morrem em conseqüência da
doença. 232
A malária ainda persiste como um importante problema de saúde pública no Brasil,
principalmente na Amazônia, e em algumas regiões do mundo, embora muitos países já
tenham conseguido interromper sua transmissão.
Atualmente a malária concentra-se na região da Amazônia Legal, composta pelos
Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Maranhão, Tocantins e Mato
Grosso, que responde por mais de 99% dos casos registrados no país.
Todos os anos, relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e estudos dos
Médicos Sem Fronteiras (MSF) deixam explícita a realidade das "doenças negligenciadas",
expressão designada para aquelas doenças que são deixadas de lado no quadro de pesquisa e
232 Disponível no www.who.int/countreis/bra/es/ (site da OMS em espanhol) Acesso 21/07/05
139
desenvolvimento (P&D) da indústria farmacêutica, justamente porque ocorrem em países
pobres e em desenvolvimento e, assim, não têm como retornar os lucros esperados.
A Malária era considerada uma “doença de pobre”, mas a partir do momento que
começou a atingir as outras classes sociais, começou a se tornar um problema preocupante, a
ponto de se procurar a cura através de incentivos à pesquisa.
Todo esse sofrimento a humanidade deve a dois inimigos que se aliaram há milênios
para seviciar a espécie humana: um protozoário e um mosquito. 233
No Estado do Amazonas, a ocorrência de malária se deu inicialmente em maior
proporção nas regiões interioranas e rurais do Estado. Contudo, devido aos processos
migratórios, a expansão desordenada na cidade, a ausência de infra-estrutura básica e de
investimentos públicos de saúde na prevenção da doença, Manaus vive hoje uma grave
situação de ocorrência de malária. Segundo dados do Sistema de Vigilância em Saúde (SVS)
do Ministério da Saúde, em 2005 o Estado do Amazonas registrou 222.545 casos de malária,
sendo que no ano de 2006 foram registrados 180.290 casos. 234
Em Manaus, onde estão 48% da população do Estado, concentra 40% do total de casos
de malária, sendo que os outros 60% ocorrem em 32 municípios, de acordo com dados da
Fundação de Vigilância em Saúde (FVS/AM).
Não é à toa que as doenças tropicais afetam sobretudo as pessoas pobres, pois esta
classe normalmente se concentra em áreas desprovidas de infra-estrutura, de saneamento
233 A malária é uma doença transmitida pelo mosquito do gênero "Anopheles", que possui 400 espécies. No Brasil, existem três tipos principais de malária: A vivax, a malariae e a falciparum, sendo esta última a forma mais grave, que atinge cerca de 20% das pessoas acometidas da doença. Não existe vacina para a doença, mas o tratamento, à base de comprimidos ainda é eficaz. Apesar do aumento de casos, tem-se conseguido diminuir a gravidade da doença. Disponível em www.funasa.gov.br Acesso em 20/07/2005234 Consulta através do www.saude.org.br/svs. Acesso em 20/07/2005. Situação Epidemiológica da Malária – 2005.
140
básico e de políticas de saúde pública, locais onde outras doenças além da malária, como a
leischmaniose e a febre amarela, encontram condições ideais de propagação.
Os moradores da “invasão” Nova Vitória estão entre as principais vítimas da malária
em Manaus, de acordo com dados divulgados pela Fundação de Vigilância em Saúde –
FVS/AM. Pode-se observar no quadro abaixo os altos índices de casos de malária na
“invasão” Nova Vitória:
Tabela 5 – Comparativo de casos de malária em Manaus e na “invasão” Nova Vitória -
2004 – 2006.
ANO MANAUS “Invasão” NOVA VITÓRIA
2004 55.933 3.343
2005 64.384 2.289
2006 40.622 631
Fonte: Fundação de Vigilância em Saúde – FVS/AM
A elevada proliferação dos casos de malária nessas áreas se dá pela ocupação
desordenada de terras, pelo desmatamento e pela exploração de recursos da floresta sem o
devido cuidado, tudo para dar lugar às construções de barracos. Sem falar na falta de
saneamento básico, de energia elétrica (que é obtida através de ligações clandestinas), sendo
que os moradores utilizam água dos igarapés próximos ao local ocupado, ou água de cacimba,
locais propícios para criadouros do mosquito.
Ainda que se verifique o empenho das instituições de saúde no combate à malária, ao
que parece não se tem uma política pública urbana de assentamento às famílias com o mínimo
141
de infra-estrutura básica. A malária atinge primordialmente segmentos das classes subalternas
uma vez que é nas áreas de “invasões”, que se concentram a maioria dos casos.
Figura 1 – A “invasão” Nova Vitória
Figura 2 – Habitações precárias na “invasão” Nova Vitória
142
Figura 3 – Habitações construídas em barrancos.
143
Figura 4 – Habitações construídas próximo a um igarapé.
144
Podemos observar que a situação dos moradores da “invasão” Nova Vitória é
dramática: suas casas, construídas nas encostas de barrancos ou em cima de igarapés,
usufruindo de energia elétrica através de ligação clandestina que veio a vitimar nove pessoas
desde o inicio da ocupação, que morreram eletrocutadas. O esgotamento sanitário é
direcionado para o igarapé, sendo que tais populações abastecem sua casas de água através de
poços artesianos precários ou da água dos próprios igarapés contaminados. O lixo doméstico é
jogado sempre nas encostas próximas ao local de moradia, por falta de coleta adequada de
145
lixo. Enfim, tais populações carecem de todos os equipamentos públicos sociais,
sobrevivendo sem a alternativa de uma vida com qualidade e digna.
Além de não disporem do acesso aos direitos sociais à moradia e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, são também vítimas da injustiça ambiental, pelo fato de estarem
arcando desproporcionalmente com o ônus do desenvolvimento. Tendo em vista que alguns
(uma minoria) dispõem de água potável, energia elétrica, saneamento básico, moradias
adequadas, e outros, sem alternativa habitacional, são excluídos e empurrados para as
periferias, onde longe dos olhos da sociedade, sofrem para poder sobreviver. A luta pela vida
dos moradores das ocupações ilegais é incessante. Não podem parar, pois a sobrevivência de
suas famílias depende da força para lutar.
A Medida Provisória que autoriza a doação para o Governo do Estado da área ocupada
pela “invasão” Nova Vitória beneficiará aproximadamente 6 mil famílias residentes no local,
cuja regularização foi promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda
no primeiro turno das eleições do ano de 2006.
Destaca Ermínia Maricato que é notável a tolerância que o Estado brasileiro tem
manifestado em relação às ocupações ilegais de terra urbana.
Essa tolerância pelo Estado em relação a ocupação ilegal, pobre e predatória de áreas
de proteção ambiental ou demais áreas públicas, por parte das camadas populares,
está longe de significar uma política de respeito aos carentes de moradia ou aos
direitos humanos. A população que aí se instala não compromete apenas os recursos
que são fundamentais a todos os moradores da cidade, como é o caso dos mananciais
de água. Mas ela se instala sem contar com qualquer serviço público ou obras de
infra-estrutura urbana. Em muitos casos, os problemas de drenagem, risco de vida por
desmoronamentos, obstáculos à instalação de rede de água e esgotos torna inviável ou
extremamente cara a urbanização futura. 235
235 MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Disponível em www.scielo.br/scielo.php. Acesso em 02/09/2006.
146
Os projetos de habitação dos governos municipais e estaduais não dão conta da
demanda nos grandes centros urbanos, pois não há uma padronização e um planejamento a
logo prazo das iniciativas, que ficam sujeitas a campanhas eleitoreiras e a paralisação de
projetos com a mudança de mandatos dos governantes.
As lutas travadas por uma moradia digna, por um meio ambiente ecologicamente
equilibrado e uma sadia qualidade de vida são contínuas. Parece-nos que nunca vão acabar, e
que tendem cada vez mais a aumentarem.
A classe dominante, através de seus representantes políticos, sejam eles Presidentes,
Governadores e Prefeitos ou membros do Legislativo e Judiciário, transformam as Leis e a
Constituição em meras peças de ficção, uma vez que a elaboração e a implementação de
políticas públicas voltadas para as populações marginalizadas são incipientes, insuficientes e
paliativas, não ocorrendo, por outro lado, cobranças e fiscalizações rígidas pelos setores
públicos que deveriam fazê-lo.
O discurso da classe hegemônica de igualdade, de democracia, de eqüidade ambiental
irradia-se como verdade inconteste. Contudo, o que se percebe na ocupação Nova Vitória é
que faltam ações governamentais com vistas a minorar o grave problema do déficit
habitacional, da injustiça ambiental e da exclusão social.
Rasgam-se os falsos discursos da elite dominante e a Nova Vitória surge como um
exemplo da luta e da resistência das classes ditas subalternas, em defesa de uma sociedade
mais justa, não importando as mazelas, as doenças e o sofrimento a que são diariamente
submetidos.
147
Harnecker, fazendo uma análise marxiana, esclarece que toda sociedade, além de
possuir uma estrutura econômica e uma estrutura ideológica determinada, possui um conjunto
de aparelhos institucionais e normas destinadas a regulamentar o funcionamento da sociedade
em seu conjunto. Estes aparelhos institucionais e normas constituem a estrutura jurídica-
político da sociedade e fazem parte da superestrutura. 236
Nas sociedades de classes, o jurídico-político está assegurado por um aparelho
autônomo: o Estado, que monopoliza a “violência legítima” e cuja principal função é manter
sob a sujeição de uma classe dominante todas as demais classes que dependem dela. O Estado
então é um instrumento de pressão das classes dominantes sobre as classes oprimidas.237
Bobbio, ao analisar a práxis em Marx, a define como atividade prático-crítica, isto é,
como atividade humana perceptível em que se resolve o real concebido subjetivamente. O
termo atividade nos adverte da superação do velho materialismo naturalístico, de origem
iluminística e chegado até Feuerbach, o qual concebia a natureza como um dado intuitivo,
passivamente contemplado. 238
Gramsci, citado por Bobbio, afirma que a Práxis é história, ou melhor, o fazer-se da
história, a sua realização por obra da vontade racional. Isto é, a vontade é racional porque
suscitada por um pensamento historicamente baseado, acolhido pela grande maioria por
responder às necessidades manifestadas num contexto ambiental que é marcado pela
intervenção do homem e se transforma por isso em móbil de ação. 239
236 HARNECKER, Marta. Os conceitos elementares do materialismo histórico. São Paulo: Global Editora. 1986. p. 197-202.237 Ibid., p. 203238 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília. 1993. p. 987-992.239 Ibid., p. 990
148
Portanto, na concepção marxista, a história da humanidade é luta de classes e com ela
se identifica a Práxis, tomada numa acepção onde ela não é mais a Práxis que se modifica,
mas Práxis que modifica.
Para Scherer-Warren, pelo menos três atividades principais são enfocadas por Marx,
em sua busca da Práxis transformadora do social: Práxis que se realiza em conexão com a
atividade teórica; Práxis que se realiza através da atividade produtiva e finalmente Práxis que
se realiza por meio da atividade política. 240
Nesse sentido, na visão marxiana, a passagem de uma teoria crítica para uma Práxis
revolucionária pode se dar através do movimento de libertação da classe social oprimida.
Uma outra alternativa são os caminhos institucionais para a solução de conflitos
sociais. É o que veremos em seguida.
3.6 O controle judicial da omissão do Estado na implementação de políticas públicas
sociais.
Após quase vinte anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, podemos
observar em nosso país a contraposição: de um lado, a dramática realidade vivida pela maioria
da população excluída e marginalizada, que não dispõe de um atendimento de qualidade
mínima nos serviços públicos, que vivem em condições precárias de moradia e alimentam-se
mal ou passam fome; de outro, o descaso dos governantes em relação à efetiva prestação dos
serviços essenciais para uma vida digna. A precária situação em que vivem milhares de
240 SHERER-WARREN, Ilse. Movimentos Sociais – um ensaio de interpretação sociológica. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. 1989. p.24.
149
pessoas em nosso país, evidencia o fracasso do Estado brasileiro em implementar políticas
públicas sociais. Diante os anseios da sociedade em buscar a concretização dos direitos
fundamentais sociais, garantidos em nossa Constituição Federal, tem crescido o debate acerca
da função e dos limites da atuação do Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais.
Os direitos sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos por meio do
Estado, exigindo do Poder Público certas prestações materiais. O Estado, por meio de leis,
atos normativos e da criação real de instalações de serviços públicos, deve definir, executar e
implementar, conforme as circunstâncias, as chamadas “políticas sociais” (educação, saúde,
assistência, previdência, trabalho, habitação, etc.) que facultem o gozo efetivo dos direitos
constitucionalmente protegidos. 241
Dessa forma, a constitucionalização dos direitos fundamentais sociais e a ratificação
de tratados internacionais que dispõem sobre esses direitos para que possam ter efetiva
implementação, impõem ao Poder Executivo que promova, enquanto responsável pelos atos
de administração do Estado, a elaboração de políticas públicas, com o objetivo de promover
condições para que tais direitos possam ser efetivamente usufruídos.
Antes de tratarmos do controle judicial diante da omissão estatal em implementar as
política públicas sociais previstas em norma constitucional, faz-se necessário apresentar
algumas conceituações de políticas públicas.
As bases para o conceito de política pública foram elaboradas por Ronald Dworkin, o
qual afirma que a política (policy) designa “um padrão de conduta que assinala uma meta a
alcançar, geralmente uma melhoria em alguma característica econômica, política ou social da
241 KRELL, Andréas J. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa nº 144, Brasília, Outubro/Dezembro 1999, p. 240.
150
comunidade, ainda que certas metas sejam negativas, pelo fato de implicarem que
determinada característica deve ser protegida contra uma mudança hostil”. 242
Destaca Eduardo Áppio que a finalidade da política pública é assegurar igualdade de
oportunidades aos cidadãos, ou seja, deve-se buscar a promoção da diminuição das
desigualdades socioeconômicas e garantir igualdade real de oportunidades através da atuação
dos órgãos da Administração Pública. Sendo assim, o autor conceitua políticas públicas como
“instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na
sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por
escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna para todos os cidadãos”. 243
A esse respeito, Maria Paula Dallari Bucci afirma que as políticas públicas são
programas de ação de governo para a realização de objetivos determinados num espaço de
tempo certo. Ressalta ainda que:
políticas públicas funcionam como instrumentos de aglutinação de interesses em
torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma coletividade de interesses.
Segundo uma definição estipulada: toda política pública é um instrumento de
planejamento, racionalização e participação popular. Os elementos das políticas
públicas são o fim da ação governamental, as metas nas quais se desdobra esse fim, os
meios alocados para a realização das metas e, finalmente, os processos de sua
realização. 244
Fernando Aith destaca que a promoção e proteção dos direitos humanos e demais
direitos reconhecidos no ordenamento jurídico são realizadas pelo Estado, através da
execução de políticas públicas, sendo que, a elaboração dessas políticas deve seguir os
242 DWORKIN, apud COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998, p. 44.243 APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005, p. 136.244 BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos humanos. In: Direitos Humanos e Políticas Públicas. São Paulo, Polis, 2001, p. 13.
151
ditames da Constituição e dos demais instrumentos normativos do ordenamento jurídico.
Dessa forma, o autor considera a política pública como uma “atividade estatal de elaboração,
planejamento, execução e financiamento de ações voltadas à consolidação do Estado
Democrático de Direito e à promoção e proteção dos direitos humanos”. 245
Compete ao Estado elaborar e planejar as políticas públicas, seja através da
Administração Direta ou Indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia
mista ou fundações), ou através dos demais poderes estatais constituídos (Legislativo e
Judiciário). Esclarece Fernando Aith que o Estado tem por finalidade a garantia dos direitos
dos seres humanos que o integram, e toda e qualquer ação desenvolvida pelo Estado deverá
ser feita no sentido da proteção desses direitos. Já os governos representativos têm por
finalidade executar políticas que busquem a promoção e proteção dos direitos humanos, sendo
que qualquer política pública que não tenha essa finalidade torna-se, imediatamente, uma
política inconstitucional (ou ilegal). 246
Dessa forma, entende-se que o Poder Executivo não poderá se eximir da
responsabilidade de elaborar as políticas públicas sociais, bem como à efetiva implementação
destas, sob pena de descumprir norma constitucional de ordem pública, imperativa, inviolável
e auto-aplicável. Partindo desse posicionamento passaremos para a discussão da possibilidade
do Poder Executivo ser responsabilizado e compelido, por força de decisão judicial, a dar
cumprimento às políticas públicas sociais.
A Constituição Federal de 1988 confere ao legislador uma margem substancial de
autonomia na definição de forma e medida em que o direito social deve ser assegurado. Em
245 AITH, Fernando Mussa Abujamra. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, 232. 246 Ibid., p. 218
152
princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para
substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade.
No entanto, tendo em vista que os Poderes Legislativos e Executivos no Brasil se
mostraram incapazes de garantir o cumprimento racional dos direitos sociais, faz-se
necessária a revisão do dogma da “separação dos poderes” 247 em relação ao controle dos
gastos públicos e da prestação dos serviços sociais básicos do Estado Social. A eficácia dos
direitos fundamentais sociais a prestações materiais depende naturalmente dos recursos
públicos disponíveis, sendo que, normalmente há uma delegação constitucional para o
legislador concretizar o conteúdo desses direitos. 248
Comparato afasta a clássica objeção de que o Judiciário não tem competência, pelo
princípio da divisão dos Poderes, para julgar “questões políticas”. Explica o autor que esse
entendimento negativo teve origem na Constituição de 1934 que vedava “ao Poder Judiciário
conhecer questões exclusivamente políticas” (art. 68 CF/34). Afirmando inclusive, “que essa
clássica falsa objeção de muito já está esclarecida, tendo em vista que se tratava apenas de
uma hermenêutica pobre, quando, na verdade, o que se queria vedar era o controle judicial
sob questões ‘de política’ (lato sensu)”. 249
Ressalta, ainda, Comparato que “o juízo de constitucionabilidade, nessa matéria tem
por objeto não só as finalidades, expressas ou implícitas, de uma política pública, mas
também os meios empregados para se atingirem esses fins”. No atual ponorama jurídico
brasileiro, defende-se que “o juízo de constitucionalidade, nessa matéria, tem por objetivo o
247 Afirma Bontempo que é recorrente no Poder Judiciário o argumento de que a viabilização desses direitos representaria uma violação ao princípio da separação dos poderes, insculpido no art. 2º da Carta de 1988. (BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais. Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988.1.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 266).248 KRELL, Andréas J. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 36, nº 144 out/dez 1999, p.240-241. 249 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998, p. 46.
153
confronto de tais políticas, não só com os objetivos constitucionalmente vinculantes da
atividade de governo, mas também com as regras que estruturam o desenvolvimento dessa
atividade”. 250
Dessa forma, pode-se afirmar que é possível o controle jurisdicional das políticas
públicas, que deverá ser excepcional, ou seja, não será um exame unicamente político – juízo
sobre o meio mais adequado para atender o bem estar coletivo -, sendo apenas admitido um
exame jurídico ou até jurídico-político – contemplação das finalidades predispostas pela
norma. O controle jurisdicional só será aplicado se houver por parte do Poder Executivo
desvio ou abusividade governamental, dentro de um exame de compatibilidade ou não entre a
atividade estatal e os ditames da norma. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Victor
Abramovich, afirmando que “o Poder Judiciário não tem como tarefa projetar políticas
públicas, mas sim confrontar as políticas assumidas com os padrões jurídicos aplicáveis e, no
caso de haver divergências, reenviar a questão aos poderes pertinentes para que eles ajustem
sua atividade”. 251
O reconhecimento dos direitos fundamentais sociais como direitos plenos só se
alcançará quando forem superados os obstáculos que impedem a sua adequada
justiciabilidade. Abramovich entende como justiciabilidade a “possibilidade de reclamar ante
um juiz ou tribunal de justiça o cumprimento ao menos de algumas das obrigações que
derivam de um direito”.
O que qualificará a existência de um direito social como direito pleno não é
simplesmente o cumprimento de uma conduta por parte do Estado, mas, a existência
de algum poder jurídico que possa ser utilizado pelo titular do direito em caso de
250 Ibid., p. 45-46251 ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. In: Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 2, 2005, SUR – Rede Universitária de Direitos Humanos, 2005, p. 205. (Disponível em formato eletrônico no site www.surjournal.org).
154
descumprimento da obrigação devida. Considerar plenamente um direito econômico,
social ou cultural como direito é possível unicamente se – ao menos em alguma
medida – o titular/credor está em condições de produzir, mediante uma demanda ou
queixa, os ditames de uma sentença que imponha o cumprimento da obrigação gerada
pelo direito. 252
A nossa carta Constitucional de 1988 estabeleceu alguns instrumentos jurídicos
capazes de assegurar a concretização dos direitos sociais. Os remédios jurídicos de proteção
aos direitos sociais contra a omissão inconstitucional são: ação direta de inconstitucionalidade
por omissão (art. 103, § 2º) e o mandado de injunção (art. 5º, inciso LXXI). 253 Pode também
ser utilizada como alternativa judicial a Ação Civil Pública, instituída pela Lei 7374/85, e
prevendo-a, no art. 129, inciso III, podendo ser ajuizada no caso de responsabilidade por
danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico, paisagístico, englobando ainda, outros interesses difusos e coletivos. O
mandado de segurança coletivo254 também é um instrumento que vem garantir o acesso à
justiça, expresso no art. 5°, inciso LXX.
252 ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madri: Trota, 2002, p. 37-38.253 Art. 103, § 2º, da Constituição Federal “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. A esse respeito comenta Alessandra Bontempo, a inconstitucionabilidade por omissão corresponde a um non facere, resulta de abstenção, inércia ou silêncio do poder público que deixa de praticar determinado ato exigido pela Constituição. O art. 5º, inciso LXXI, dispõe que “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdade constitucionais, e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. De acordo com Bontempo a concessão do mandado de injunção está condicionada a uma relação jurídica de causa e efeito: a uma causa – a falta de norma regulamentadora – a ordem jurídica atribui uma conseqüência – a inviabilidade do exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. (BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais. Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988.1.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 243 e 247).254 Art. 5º inciso LXX da CF/88: “o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. Mandado de segurança coletivo é ação de rito especial que determinadas entidades, enumeradas expressamente na Constituição, podem ajuizar para defesa, não de direitos próprios, inerentes a essas entidades, mas de direito líquido e certo de seus membros, ou associados, ocorrendo, no caso, o instituto da substituição processual.
155
De acordo com Piovesan e Vieira outra alternativa judicial para defesa dos direitos
sociais é a Argüição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, tendo sua previsão
expressa do art. 102, parágrafo 1º, da Constituição de 1988, instituída em 1999 através da Lei
9.882, que lhe deu aplicabilidade. Esse mecanismo jurídico é utilizado com vistas a reparar
lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental decorrente de ato do poder público, quer sob
as vestes de norma jurídica, quer sob a consideração de política governamental. 255
Em relação à proteção do direito social ao meio ambiente, destaca-se como importante
modalidade de ação judicial a Ação Popular, que tradicionalmente era voltada para a defesa
do patrimônio público, sendo que passou a partir de 1988 a tutelar também o meio ambiente e
o patrimônio histórico e cultural, estando expresso no art. 5º, inciso LXXIII.256
O Poder Judiciário tem a responsabilidade pelo controle jurisdicional das políticas
públicas sociais, principalmente por força do artigo 5º, inciso XXXV da Constituição de
1988, que prevê a impossibilidade de o Judiciário deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão
a qualquer direito. Segundo entendimento de Eros Roberto Graus:
(...) o Poder Judiciário é o aplicador último do direito. Isso significa que, se a Administração Pública ou um particular – ou mesmo – o Legislativo – de quem se reclama a correta aplicação do direito, nega-se a fazê-lo, o Poder Judiciário poderá ser acionado para o fim de aplica-lo. (...) Não se pretende, nisso, atribuir ao Judiciário o desempenho de funções que são próprias do Legislativo – ou seja, a de produção de ato administrativo. O que se sustenta – é, no caso, sob o manto do princípio da supremacia da Constituição – é, meramente, cumprir ao Poder Judiciário assegurar a pronta exeqüibilidade de direito ou garantia constitucional imediatamente aplicável, dever que se lhe impõe e mercê do qual lhe é atribuído o poder, na autorização que para tanto recebe, de, em cada decisão que a esse respeito tomar, produzir efeito. 257
255 PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafios e perspectivas. Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades Nº 15. Universidade de Sevilla. Sevilla - Espanã, abril de 2006. p. 142. (Estando disponível pelo endereço eletrônico http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/282/28281509.pdf).256 Art. 5º, inciso LXXIII, CF/88: “qualquer cidadão é parte legitima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
156
No entanto, ressalta Krell que a estrutura do Poder Judiciário é relativamente
inadequada para dispor sobre recursos ou planejar políticas públicas. Aponta também a falta
de meios compulsórios para a execução de sentenças que condenam o Estado a cumprir uma
tarefa ou efetuar uma prestação omitida. Além disso, há ainda uma certa resistência dos três
Poderes (legislativo, judiciário e executivo) ao controle judicial do mérito dos atos do Poder
Público, seja pelo fato do Executivo não querer ter suas atividade controladas, seja pelo fato
de o Legislativo não querer outro agente criador de direito, ou, ainda, pelo fato de o Judiciário
não querer assumir a responsabilidade desse controle. 258
No Brasil ainda é incipiente o grau de provocação do Poder Judiciário para demandas
envolvendo direitos sociais, o que revela uma apropriação ainda tímida da sociedade dos seus
direitos fundamentais sociais como verdadeiros direitos legais, acionáveis e justiciáveis. De
acordo com Piovesan e Vieira em nosso país apenas 30% dos indivíduos envolvidos em
disputas procuram a Justiça estatal, existindo uma clara relação entre índice de
desenvolvimento humano e litigância, ou seja, é acentuadamente maior a utilização do
Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano. 259
O maior problema que encontramos em nosso país não é a falta de leis ordinárias, mas
a não-prestação real dos serviços sociais básicos pelo Poder Público. A grande maioria das
257 GRAU, apud BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais. Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988.1.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 260.258 KRELL, Andréas J. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 36, nº 144 out/dez 1999. p.251. 259 PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafios e perspectivas. Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades Nº 15. Universidade de Sevilla. Sevilla - Espanã, abril de 2006, p. 145. (Estando disponível pelo endereço eletrônico http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/282/28281509.pdf).
157
normas para o exercício dos direitos sociais já existem, mas a garantia desses direitos esbarra
na formulação, implementação e manutenção das políticas públicas sociais.
Após essas breves considerações, partilhamos do entendimento de parte da doutrina
brasileira que defende o controle judicial da omissão do Estado na implementação de políticas
públicas sociais pelo Poder Judiciário, tendo em vista os graves problemas sociais existentes
em nossa sociedade.
Os problemas e dilemas gerados pelo desenvolvimento industrial revelam uma
crescente tensão e conflitos no âmbito da sociedade marcada pela intensa migração interna,
pela urbanização acelerada, pelas desigualdades regionais, pela crise ambiental cada vez mais
eminente, e principalmente pelo fracasso das políticas públicas sociais. O Estado se mostra
incapaz de cumprir o seu dever de implementar políticas públicas sociais capazes de atender
os direitos sociais, mais especificamente os direitos a moradia e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado da sociedade, tratados neste trabalho. Atualmente, em nosso país
milhares de pessoas ainda sofrem ao sobreviverem em moradias extremamente precárias e
insalubres. Além disso, não usufruem de um meio ambiente ecologicamente equilibrado –
“bem de um uso comum de todos”. Possuem direitos sociais garantidos constitucionalmente,
mas não têm o direito de usufruí-los. O que fazer nessa situação?
As demandas sociais são cada vez mais crescentes em nossa sociedade, mas, esse
problema não se resume em responsabilizar os Poderes, seja Legislativo, Judiciário ou
Executivo, mas em exigir do Estado enquanto ordenador das condições de vida política e
garantidor das condições de sociabilidade, uma reforma política em todas as suas esferas, pois
só assim poderá se discutir de quem é a culpa, e cobrar sua responsabilidade. O Poder
Judiciário não é o milagre por todos esperado para solucionar os problemas da sociedade.
Precisamos do empenho de todos – Estado e sociedade – para podermos alcançar o que José
Reinaldo chama de Justiça Distributiva – pela qual se distribui, proporcionalmente, segundo
158
os méritos, a capacidade, a necessidade, de maneira igual os benefícios e os malefícios da
vida comum. 260
Claro está, pois, que o Judiciário transforma-se em arena de uma luta que o
transcende. Suas decisões têm hoje a importância política de dar visibilidade às
conseqüências concretas desta disputa política, social e econômica em que se encontra
a sociedade brasileira. Mas à falta de soluções gerais, na alteração significativa das
regras do jogo, em termos culturais e jurídicos e práticas concretas, podemos ver-nos
diante de paradoxos incompreensíveis: ou legitimando uma tirania do Legislativo e do
Executivo, cercados por anéis burocráticos e interesses privatísticos, impondo às
classes populares a conta do desenvolvimento nacional, ou legitimando uma ditadura
do Judiciário, que em nome da defesa das liberdade burguesas auxilia a reprodução
das distorções sociais existentes, ou, em nome de uma atuação transformadora sem
meios para agir globalmente, corre o risco de ser entendido como sinalizando o
voluntarismo irracional. 261
Não obstante a evidente incapacidade do Judiciário para resolver sozinho todos os
problemas sociais, é certo que “levar a sério” os direitos sociais implica em admitir a
possibilidade do seu questionamento judicial em caso de inércia do Estado no tocante à sua
implementação.
A globalização, o neoliberalismo e as regras de mercado, juntamente com a crise
econômica mundial trazem reflexos sobre as políticas públicas. Os governos separaram a
economia da sua dimensão social. As políticas públicas difundidas pelo neoliberalismo são
injustas e excludentes, sendo que, ao serem adotadas em nosso país, trouxeram como
conseqüência a destruição da máquina pública e a diminuição de investimentos em políticas
públicas sociais. Dessa forma, observam-se nos dias atuais os descumprimentos constantes
260 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito. In: FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 140 - 141261 Ibid., p. 142.
159
dos direitos sociais, o acirramento das desigualdades, e o agravamento da questão social -
aumento da pobreza, da exclusão, da violência etc.
As políticas públicas no Brasil, até hoje, não conseguiram beneficiar a todos em
igualdade de condições, uma vez que privilegiam uma minoria em detrimento da grande
maioria da população pobre e marginalizada, que somente tem acesso a políticas públicas
sociais compensatórias.
Apesar de todos os problemas apontados, acreditamos na possibilidade de um outro
modelo de sociedade onde as políticas sejam de fato públicas, isto é, em benefício de todos.
Primeiramente os governos devem articular as políticas públicas para garantir uma vida com
mais qualidade e a otimização dos recursos públicos. O Estado Brasileiro deve se
responsabilizar pela formulação e implementação de políticas que integrem saúde, educação,
alimentação e nutrição, moradia, informação pública, saneamento, meio-ambiente, geração de
emprego e de renda, distribuição e acesso à terra.
Além disso, é imprescindível a participação da sociedade organizada (especialmente
os movimentos sociais), propondo e exigindo políticas públicas sociais capazes de propiciar
uma vida digna para todos.
160
4 CONCLUSÃO
O processo de desenvolvimento atrelado à lógica do capital vem gerando
conseqüências danosas para as cidades e os seus habitantes, sobretudo no que se refere à
qualidade do meio-ambiente e à produção de condições de extrema desigualdade social e
econômica. O Estado passou a priorizar os interesses privados prevalecentes nas atividades
econômicas, investindo na produção e na indústria, deixando, muitas vezes, as políticas
públicas sociais relegadas a ações não prioritárias.
No Brasil, a população pobre, marginalizada e vulnerável não tem acesso aos direitos
fundamentais sociais à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, estando às
margens da cidade e da cidadania. Frequentemente encontram-se expostas aos riscos
decorrentes de más condições de moradia, como a contaminação por substâncias perigosas, a
falta de saneamento básico, água e ar puro, além de muitas vezes serem vítimas do
desemprego e da precarização social em geral.
Como conseqüência desse processo, pode-se constatar que existe atualmente uma total
descrença nos direitos fundamentais sociais por parte da maioria da população excluída social
e economicamente, que passa a encarar esses direitos como verdadeiros privilégios das classes
de maior poder econômico.
A não efetivação das políticas públicas sociais relacionadas ao direito à moradia e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado traz como conseqüência as ocupações ilegais. Sem
alternativa habitacional, a população pobre passa a ocupar os espaços desordenadamente.
Sendo assim, as pessoas que vivem em ocupações ilegais, além de serem vítimas da exclusão
social e ambiental, de não terem acesso aos direitos sociais que lhes são garantidos
161
constitucionalmente e por organismos internacionais, são também vítimas da injustiça
ambiental, pois arcam com o maior custo do ônus do desenvolvimento.
Para assegurar o direito à moradia e a proteção do meio ambiente para as presentes e
futuras gerações, é necessário que existam instituições de caráter permanente no âmbito da
administração. Isto porque, a prioridade deve ser a continuidade de políticas de médio e longo
prazo. Ocorre que, numa democracia, pressupõe-se a alternância do poder, o que significa, na
prática, que muitas políticas públicas são deixadas de lado assim que assume um novo
representante eleito, instituindo outras políticas públicas, muitas vezes começando tudo do
zero. Contudo, o serviço público nesses setores deve ser prestado de maneira contínua, o que
significa dizer que não é passível de interrupção.
Isso ocorre pela própria importância de que o serviço público se reveste, o que
implica na sua oferta ao usuário com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e
oportunidade.
A implementação dos direitos fundamentais sociais depende sobremaneira da atuação
estatal nas suas três formas de poder, legislativa, executiva e judiciária. A efetividade dos
direitos sociais depende de uma estruturação do Estado, do amadurecimento da política
econômica e, principalmente, do planejamento a longo prazo. Tais fatores é que permitirão a
concretização dos direitos sociais e das políticas públicas sociais na busca de um ambiente
socialmente justo e ecologicamente equilibrado.
Ao analisar o caso da “invasão” Nova Vitória, constata-se uma conduta omissiva do
Estado no cumprimento das políticas sociais públicas voltadas para a garantia de uma moradia
digna em um ambiente saudável. Tal omissão propiciou o aumento das invasões de terras na
cidade de Manaus.
162
A “invasão” Nova Vitória demonstra de forma crua e perversa a inversão das
prioridades do poder público, que faz obras e melhorias nas áreas nobres da cidade, mas não
realiza nem de forma mínima ações que possam ao menos mitigar o sofrimento e a injustiça
ambiental a que são submetidos as mais de cinco mil famílias residentes na ocupação.
Malária, desabamentos, ausência de água encanada, inexistência de saneamento
básico, falta de urbanização e de equipamentos públicos como escolas e hospitais, constituem
o elevado preço a ser pago pelas classes ditas subalternas para que possam morar na
metrópole. Pela lógica da classe dominante, elas, as classes mais desfavorecidas, deveriam
estar imobilizadas e não realizando ocupações, pelas quais buscam resolver na luta e no
sofrimento uma obrigação que é do Estado.
No entanto, percebemos que a dinâmica das populações empobrecidas é a do combate
e da perseverança, daí o nome da ocupação: Nova Vitória, uma alusão e uma diferenciação da
ocupação vizinha, a Grande Vitória.
Felizmente para os moradores da ocupação Nova Vitória, existe uma luz no fim do
túnel. A área em questão já foi doada ao Governo do Estado do Amazonas e existem recursos
financeiros do Governo Federal para que o Estado realize a urbanização e a regularização da
ocupação. Se isso ocorrer, tal fato demonstrará que as conquistas sociais para essas
populações não vem de cima para baixo, mas sim ao contrário.
É somente através da pressão popular que o poder público realiza o que deveria fazer
como fruto de uma obrigação constitucionalmente estabelecida. Em vista disso, mais do que
nunca, cabe à sociedade civil organizada cobrar dos órgãos fiscalizadores como o Ministério
Público e o Legislativo o cumprimento dessas ações no Nova Vitória, para que palavras como
justiça social e eqüidade não sejam apenas palavras, mas sim direitos inalienáveis.
163
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