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Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 183 Eduardo C. B. Bittar 1. Histórico do tema A discussão do tema não é uma inova- ção nos meandros teóricos do Direito 1 . Pode- se mesmo dizer que a sede dessas discus- sões já se encontra entre os pensadores gre- gos, sobretudo a partir dos sofistas e de Só- crates (séc. V a.C.), que haviam detectado a origem da discussão na oposição entre nó- mos e phýsis, oposição que somente tomou proporções cada vez mais significativas na literatura filosófica após o advento de Pla- tão e Aristóteles (séc. IV a.C.) 2 . Por sua vez, os romanos sediavam a discussão na opo- sição entre ius gentium e ius civile (séc. II a.C. a II d.C.), sendo que os medievais (Santo Agostinho, Abelardo, São Tomás de Aqui- no) somente trouxeram diferenciais religio- sos para esses conhecidos conceitos por meio da idéia da existência da lex divina (séc. V a XII d.C.) (Vide BITTAR, 2000). Com Gro- tius (séc. XVII d.C.), com seus contemporâ- neos e com a tradição posterior (Maquiavel, Jean Bodin, Hugo Grócio, Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Spino- za, Puffendorf), o racionalismo moderno universaliza a razão humana 3 e encontra os fundamentos para a discussão do tema, Direito natural: sentido natural versus sentido cultural Eduardo C. B. Bittar é Doutor pelo Departa- mento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Consultor Científico da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/ SP, Professor de Filosofia do Direito e de Metodologia da Pes- quisa Jurídica. Sumário 1. Histórico do tema. 2. O academicismo do tema. 3. O sentido do jusnaturalismo. 4. Críticas ao jusnaturalismo e à idéia de natureza. 5. A natureza, a cultura e os direitos naturais. 6. Ló- gica natural e lógica cultural. Conclusões.

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  • Braslia a. 38 n. 152 out./dez. 2001 183

    Eduardo C. B. Bittar

    1. Histrico do temaA discusso do tema no uma inova-

    o nos meandros tericos do Direito1. Pode-se mesmo dizer que a sede dessas discus-ses j se encontra entre os pensadores gre-gos, sobretudo a partir dos sofistas e de S-crates (sc. V a.C.), que haviam detectado aorigem da discusso na oposio entre n-mos e phsis, oposio que somente tomoupropores cada vez mais significativas naliteratura filosfica aps o advento de Pla-to e Aristteles (sc. IV a.C.)2. Por sua vez,os romanos sediavam a discusso na opo-sio entre ius gentium e ius civile (sc. II a.C.a II d.C.), sendo que os medievais (SantoAgostinho, Abelardo, So Toms de Aqui-no) somente trouxeram diferenciais religio-sos para esses conhecidos conceitos pormeio da idia da existncia da lex divina (sc.V a XII d.C.) (Vide BITTAR, 2000). Com Gro-tius (sc. XVII d.C.), com seus contempor-neos e com a tradio posterior (Maquiavel,Jean Bodin, Hugo Grcio, Thomas Hobbes,Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Spino-za, Puffendorf), o racionalismo modernouniversaliza a razo humana3 e encontraos fundamentos para a discusso do tema,

    Direito natural: sentido natural versussentido cultural

    Eduardo C. B. Bittar Doutor pelo Departa-mento de Filosofia e Teoria Geral do Direito daFaculdade de Direito da Universidade de SoPaulo, Consultor Cientfico da Comisso deDefesa do Consumidor da OAB/ SP, Professorde Filosofia do Direito e de Metodologia da Pes-quisa Jurdica.

    Sumrio1. Histrico do tema. 2. O academicismo do

    tema. 3. O sentido do jusnaturalismo. 4. Crticasao jusnaturalismo e idia de natureza. 5. Anatureza, a cultura e os direitos naturais. 6. L-gica natural e lgica cultural. Concluses.

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    secularizando a noo de direitos funda-mentais eternos, naturais e imutveis, cujaprimeira consagrao se deu com a Decla-rao dos Direitos do Homem e do Cidado(1789). Desde esse perodo, a questo passaa se tornar ingrediente indispensvel de todaa busca jusfilosfica, no deixando mais dese encontrar nos manuais de filosofia dodireito como pgina indispensvel de refle-xo (cf. BOBBIO, 1995, p. 15-23).

    2. O academicismo do tema

    Mas, nessa perspectiva, a questo do di-reito natural tem sido tratada muito acade-micamente. Com isso, desenraizou-se a pr-pria noo de natureza de seu vis etimol-gico primordial. Aps a crtica racional scorrentes jusnaturalistas do sculo XVII,perdeu-se a verdadeira caracterstica domovimento, que fazia decorrer do dadonatural a origem dos direitos. Nesse in-terregno, na medida em que se somam e seavolumam correntes antagnicas ao jusna-turalismo, a questo da natureza como refe-rncia para a discusso dos direitos se tor-nou mero compndio de opinies supera-das, histria ultrapassada da filosofia dodireito, eco de vozes de tempos distantes,ou seja, questo para o conhecimento e aerudio de juristas.

    Ora, ao se discutir a noo de direito na-tural, deve-se reavivar o que h de nuclearem sua definio, ou seja, a idia de nature-za (natura, naturaleza, nature..., que temalgo de natus, do nascente, do nascido, dovir luz, do germinar, do brotar...). A perdada semntica do termo natureza, incorpo-rado que foi no bojo da expresso direitonatural, provocou a eroso do valor que seagrega e que se carrega no mesmo.

    Sabe-se que o termo est sujeito a am-bigidades, a controvrsias, e por isso de-vem-se inventariar seus possveis signifi-cados, como lio preliminar acerca dotema. Assim:

    No pensamento ocidental, Natu-reza possui vrios ssentidos:

    princpio de vida ou princpio ativoque anima e movimenta os seres. Nes-se sentido, fala-se em deixar agir aNatureza ou seguir a Natureza parasignificar que se trata de uma foraespontnea, capaz de gerar e de cui-dar de todos os seres por ela criados emovidos. A Natureza substncia(matria e forma) dos seres; essncia prpria de um ser ou aqui-lo que um ser necessria e univer-salmente. Neste sentido, a natureza dealguma coisa o conjunto de qualida-des, propriedades e atributos que adefinem, seu carter ou sua ndoleinata, espontnea. Aqui, Natureza seope s idias de acidental (o que podeser ou deixar de ser) e de adquiridopor costume ou pela relao com ascircunstncias; organizao universal e necessriados seres segundo uma ordem regidapor leis naturais. Neste sentido, aNatureza se caracteriza pelo ordena-mento dos seres, pela regularidadedos fenmenos ou dos fatos, pela fre-qncia, constncia e repetio deencadeamentos fixos entre as coisas,isto , de relaes de causalidade en-tre elas. Em outros termos, a Natureza a ordem e a conexo universal e ne-cessria entre as coisas, expressas emleis naturais; tudo o que existe no Universo sem ainterveno da vontade e da ao hu-manas. Neste sentido, Natureza ope-se a artificial, artefato, artifcio, tcni-co e tecnolgico. Natural tudo quan-to se produz e se desenvolve sem qual-quer interferncia humana; conjunto de tudo quanto existe e percebido pelos humanos como omeio ambiente no qual vivem. A Na-tureza, aqui, tanto significa o conjun-to das condies fsicas onde vivemos,quanto aquelas coisas que contempla-mos com emoo. A Natureza o mun-do visvel como meio ambiente e como

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    aquilo que existe fora de ns, mesmoque provoque idias e sentimentos emns; para as cincias contemporneas, aNatureza no apenas a realidadeexterna, dada e observada, percebidadiretamente por ns, mas um objetode conhecimento construdo pelasoperaes cientficas, um campo obje-tivo produzido pela atividade do co-nhecimento, com o auxlio de instru-mentos tecnolgicos. Neste sentido, aNatureza, paradoxalmente, torna-sealgo que passa a depender da interfe-rncia ou da interveno humana, poiso objeto natural construdo cientifica-mente (CHAU, 1999, p. 291-292).

    Vistos e estudados esses possveis signi-ficados, histricos, conceituais e filosficos dotermo natureza, h que se considerar o quesegue, no sentido do especfico tratamento dapalavra natureza agregada idia de direito.Assim, para essa finalidade, dentro dos qua-drantes deste estudo, natureza pode signifi-car: 1. mundo natural; 2. natureza individualhumana; 3. natureza scio-poltica prpriada humanidade.

    Os direitos, conforme o entendimento ea significao da palavra natureza, decor-reriam ou da prpria constituio do mundonatural (sentido 1), ou da natureza racionaldo homem (sentido 2), ou da natureza scio-poltica humana (sentido 3). Assim:

    1. Mundo natural: movido porleis fsicas, bioqumicas... possui suageometria pr-determinada, em faceda criao e do surgimento do homem,e permanece em contnua e dinmicamutao. O mundo natural, com suaregncia, com suas regras, com suaspresses, com suas caractersticas...imprime condies para a vida emgeral, inclusive para a vida humana.Essas condies formam um conjun-to de dados que determinam a exis-tncia humana, fixando-se, assim, umconjunto de diretrizes para o compor-tamento humano que so o extrato das

    experincias humanas com o meio am-biente. Leis inderrogveis e comuns atodos e a tudo (animais, homens, ve-getais, minerais...) ditam as condiesda prpria existncia no mundo fsi-co, condicionando a prpria formaodo direito e das normas jurdicas. Pen-se-se na maternidade e na paternida-de, noes que movimentam os reinosanimal, vegetal e hominal luta pelapreservao da espcie. Pense-se noinstinto de defesa que abala tambmesses trs reinos, em face de agressesadvindas do mundo exterior, para oque cada grupo possui seus mecanis-mos de defesa que permitem repeliratentados integridade individualdos membros da espcie;

    2. Natureza individual humana:conjunto das condies que isolame caracterizam o homem como serracional, limitado e frgil como in-divduo em face da necessidade de in-teragir com o meio que o cerca (nin-gum sobrevive sem comer...; se doen-te, mister a cura...; a vida funciona apartir de um ciclo em que pessoas nas-cem, crescem, desenvolvem-se e mor-rem...). Assim, cada individualidadeconvive com um conjunto de condi-es que lhe so peculiares em face desua exclusiva individualidade (con-dies fisiolgicas, dinmica orgni-ca, estrutura corporal, caractersticasfsicas da espcie, pulsao regular davida, anlise corporal humana...), que,de uma certa forma, comunga dasmesmas condies que limitam e cons-trangem os demais seres humanos(doenas, carncias, necessidades,princpios, dificuldades...). Da a for-mao de direitos mnimos, lastreadosem experincias mnimas e comuns atodos os indivduos, tendentes a pro-teger o indivduo em face de suas ne-cessidades e condies peculiares (tra-balhar sob condies desfavorveisleva ao adoecimento; a falta de medi-

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    camento ou cura para molstias podecausar a morte...);

    3. Natureza scio-poltica da hu-manidade: caracterstica natural dosseres humanos, a gregariedade daespcie aparece como fator de agluti-nao dos indivduos, que se somampara dividirem convvio e se possibi-litarem mutuamente os benefcioscomuns(sempre seguidos dos malef-cios inerentes ao convvio) que nopoderiam gozar se estivessem no mo-dus vivendi do isolamento, ou mesmodo convvio puramente grupal. Da acriao de direitos apropriados pararegulamentarem o convvio social demodo a perpetu-lo, garantindo-se oartifcio e a cultura humana, garan-tindo-se ainda a ligadura da vida so-cial, em prol da espcie e da realiza-o da prpria natureza humana, oque s alcanado pela restrio deliberdades individuais para o ganhona somatria das finalidades comunse coletiva. O primeiro e inegvel ind-cio dessa natureza o ncleo familiare a dependncia alimentar, psico-afe-tiva, estrutural do homem frente fa-mlia.

    Por vezes, essas noes se entrelaam, porvezes se complementam, por vezes se exclu-em na argumentao, isso como forma de seprovar a existncia de categorias prvias aqualquer tipo de determinao da vontadehumana, e antes mesmo de qualquer poss-vel vontade do legislador, em face dos veto-res que parecem reger a conduta humana.

    3. O sentido do jusnaturalismo

    Dessa forma, aps esse resgate da pr-pria proposta conceitual do termo nature-za, o jusnaturalismo, no importa de quetendncia se trate (sofstica, aristotelismo,hobbesiana, lockiana, puffendorfiana, gro-ciana...), passa a fazer mais sentido, umavez resgatado o mago do desafio por seustericos proposto.

    De fato, o jusnaturalismo afronta o posi-tivismo, na medida em que enxerga funda-mentos anteriores vontade do legisladorcomo balizamentos e estruturas necessriaspara a conformao dos direitos. Assim, an-tes de se aceitar que o Direito fruto do arb-trio do legislador, que produto nico e ex-clusivo de uma penada do legislador, que mero ato de imposio unilateral de or-dem e poder, que pura manifestao cere-brina do legislador (justa ou injusta, certaou errada, totalitria ou democrtica, vicia-da ou virtuosa, corrupta ou proba...), passa-se, com o jusnaturalismo, a remeter a ori-gem de todo direito a esquemas prvios prpria vontade do legislador.

    Para o jusnaturalismo, o legislador, naverdade, possui papel secundrio; eleapndice do processo de criao da legisla-o, captulo de somenos importncia naformao do texto normativo. Isso porquesua funo servir de instrumento para amanifestao ou das leis do mundo natu-ral, ou da natureza individual humana, ouda natureza scio-poltica humana. Seupapel se resume ao de um observador etradutor das necessidades advindas ouda vida em um meio ambiente, ou da vidapropriamente do indivduo, com suas ne-cessidades, ou da vida gregria e coletivahumana. Em qualquer das hipteses, o le-gislador mais observador do que criador.

    Eis a o mrito do jusnaturalismo. Eis aas contribuies do movimento, que cum-pre sejam detalhadas neste momento.

    4. Crticas ao jusnaturalismoe idia de natureza

    No entanto, vale a pena dizer que asprincipais crticas aos conceitos de nature-za, formuladas por opositores das idias na-turalistas em geral, tocam nos seguintes as-pectos:

    1. Natureza como mundo natural: omundo natural possui regras que noservem como exemplos para a condu-ta humana, por sua absoluta impro-

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    priedade para o convvio humano,que diferenciado, nesse aspecto,das demais regras naturais (ex: leido mais forte; seleo natural dos in-divduos de espcies diferentes entresi, assim como de indivduos perten-centes mesma espcie; violnciacomo parte do processo de conquis-tas da fmea para o acasalamento...); 2. Natureza individual humana: oindivduo no pode ser a nica fontede inspirao para a formao de di-reitos, e isso porque o legislador nocria leis para o indivduo, mas simpara coletividades; 3. Natureza scio-poltica humana:se a gregariedade fosse consentnea espcie humana, no convvio socialno haveria lutas, discrdias, confli-tos, disputas, separatismos, divises,anarquismos, assim como no existi-riam tribos e nichos de populaes na-tivas isolados do convvio global.

    A principal querela contra as posturasque admitem a existncia de um direito na-tural, anterior e fundante de todo ordena-mento, o fato de ser o direito natural meraespeculao em face do direito positivado,escrito e documentado. Ora, esse argumen-to no procede porque possvel algo maispalpvel do que a busca pela sobrevivn-cia, que uma regra advinda das condieshumanas e naturais? Seria mais apropria-do dizer que nem todo direito positivo de-corre ou deve sua origem ao direito natu-ral...

    Assim, no obstante essas consideraes,parece que o conjunto de idias jusnatura-listas no perde alento. Sua chama perma-nece resplandecente, em face de sua simpli-cidade e de sua posio claramente objeti-va, pois, acima de tudo, deixa uma s e ni-ca lio: o homem, apesar de ser racional,apesar de ser capaz de moralidade e de au-todeterminao de seu comportamento, umser jungido pelo contexto no qual se encer-ra. E, desse ponto de vista, o argumento irrefutvel.

    5. A natureza, a cultura eos direitos naturais

    Certamente, no se define o direito natu-ral simplesmente a partir do conceito de na-tureza, uma vez que esta pode ser definidade modo simples, para os efeitos desta pes-quisa, como o conjunto dos processos fsi-cos, bioqumicos, orgnicos que produzemas condies para o equilbrio dos elementos.O direito natural no deflui direta e inconse-qentemente do conceito de natureza, por-que a prpria natureza humana se definede modo diferenciado em meio ao mundonatural. O homem se diferencia por ser agen-te capaz de cultura, e esse o verdadeiroestatuto do ser humano.

    Entender simplesmente que a naturezadefine o conceito de direito natural redu-zir as potencialidades humanas (psquicas,intelectivas, sociveis, interativas, produti-vas, artsticas, ticas...) ao dado natural. Ora,o ser humano est mais afeto ao construdoque ao dado. A palavra direito significa algoda ordem da cultura, e no um simples dadodo mundo natural (cf. reflexo de REALE,1999).

    Mas isso no conduz esse discurso aoextremo de se dizer que o ser humano estacima ou alm da natureza. Ora, o homem parte da natureza, e dela depende, a ela sesubmete, dela no se pode livrar. Se os ani-mais so totalmente dependentes das pr-determinaes genticas, instintivas e dosprocessos naturais, no se encontra o ho-mem na mesma condio. O homem se valeda natureza (para alimentar-se, abastecer-se, habitar, manipular elementos qumicos,aperfeioar materiais, desenvolver produtose tcnicas...), podendo sobre ela intervir, en-gendrando novos artifcios que condicio-nam sua existncia.

    Ao desenvolver suas capacidades, o ho-mem tem demonstrado at mesmo ser ca-paz de destruir o prprio ecossistema que oabriga, acabando por construir sua prpriafinitude. Isso demonstrao de que o afas-tamento excessivo da natureza (por igno-

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    rncia, por desprezo, por desleixo, por gann-cia...) s pode trazer prejuzos e jamais bene-fcios ao homem. O homem filho da terra e aela se v vinculado umbilicalmente. Romperesse cordo construir a prpria destruio,seja de seu meio, seja de si mesmo.

    Assim, entre a excessiva vinculao na-tureza (situao em que o homem se v re-duzido condio quase animal, estandototalmente dependente e merc dos pro-cessos naturais, sendo rudimentar os modosde vida e inexistente ou insignificante o de-senvolvimento racional e tcnico) e a exces-siva desvinculao da natureza (situaoem que o homem se aparta da natureza, com-preendendo-a e dominando-a a ponto demenosprez-la e destru-la, pervertendo suaprpria condio mundana e construindoo vazio que conduz autodestruio), moraa tolerante e virtuosa serenidade do meiotermo.

    Em equilbrio com os processos naturais, possvel vislumbrar uma forma de progres-so que mantm intacta a matriz e a geratrizde todo o existente mundano: a natureza.Seres humanos no esto obrigados a vive-rem para ela e por ela, mas no se podemdesobrigar de viver com ela. O mais tolo fi-lho do progresso tecnolgico no se esque-a: a matria que compe seu corpo se pu-trefaz e retorna terra; o ar que se respira uma combinao de elementos qumicosnaturais; a alimentao possui sempre porbase primeira elementos naturais indispen-sveis para a manuteno orgnica. O ho-mem pertence, irrefutavelmente, ordemdas coisas naturais. O que se h de esperar,portanto, que da lucidez humana surjamatitudes compatveis com o respeito do quelhe prprio.

    6. Lgica natural e lgica cultural

    Deve-se afirmar que a ordem do natural,a lgica do natural, no necessariamentea lgica humana; o homem no est adstri-to lgica que comanda os processos natu-rais. Mas negligenciar completamente os

    exemplos dados pela natureza como refor-o s tendncias prprias do homem ce-gar os prprios olhos a uma realidade aces-svel e palpitante.

    Observar a lgica natural j atitude lou-vvel para compreender o universo que cer-ca e sustenta a humanidade. Sem uma aten-ta observao que se carrega por experin-cias ambientais de geraes, impossvelnegar ou absorver algo da natureza. Paramanter ou para mudar necessrio, por pri-meiro, conhecer.

    A lgica natural pode ser acolhida quan-do benfica para o homem, dentro de exi-gncias mnimas de razoabilidade e huma-nidade. A lgica natural deve ser destacadaquando se fizerem ntidas as diferenas en-tre o que h de humano e o que h de primi-tivo, instintivo, brutal, irracional... nas coi-sas. Sensibilizar-se para essas diferenas prprio do ser humano, que capaz de ava-liar pelos juzos racionais e axiolgicos ex-perincias, sentidos, ocorrncias, fatos, coi-sas, comportamentos...

    A ponderao do vlido e do invlido,do plausvel e do implausvel para o jogodas relaes humanas deriva da prpria ca-pacidade humana de avaliar e selecionar ovlido e o invlido, o plausvel e o implau-svel, o ponderado e o imponderado.

    Assim, cometer ilcitos e irracionalida-des justificando-se com exemplos retiradosda natureza simples expediente de des-prezvel retrica (ser poligmico porque al-gumas espcies animais o so; ser violentoporque a coragem est na virilidade e nabrutalidade animal dos principais preda-dores tigre como sinnimo de coragem;valer-se do simbolismo e dos comportamen-tos animais e suas expresses para funda-mentar aes humanas; o simbolismo po-pular aquiescer no sentido de que os princi-pais viles de figuras em quadrinhos pos-suem formas animais grotescas, ou possueminspiraes temticas condizentes, como,traioeiro=cobra, livre=ave, certeiro =guia...). Tambm, atribuir sentidos huma-nos a fenmenos naturais para justificar ir-

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    racionalidades construir desprezveis ex-pedientes de fuga comportamental. Ainda,louvar-se das realidades naturais para atri-buir sentido a desvarios pessoais ou coleti-vos construir figuras de sentido artificial.

    Homem e natureza, num certo sentido, dis-tinguem-se. Homem e natureza, num outrosentido, equivalem-se. Ponderar entre as dis-tines e as equivalncias, saber apropriar-sedo que louvvel e saber distanciar-se do queno louvvel, isso prprio do homem. nisso que se deve depositar o poder de dis-cernir entre o bem e o mau, entre o certo e oerrado, entre o justo e o injusto.

    ConclusesAs consideraes presentes so fruto da

    maturao reflexiva a respeito da temticado direito natural, somando consideraescrticas ao esvaziamento da discusso queredundou num mero aparato retrico de dis-cusso de doutrinas. Em parte, essas consi-deraes recuperam o mote da discusso,esclarecem tpicos fundamentais sobre aconceituao da natureza, para ento des-locar o foco das atenes da oposio assu-mida entre direito natural e direito positivo,sugerindo novas perspectivas para o assun-to. Reavaliada a partir das experinciasambientais contemporneas e da criao deuma conscincia ecolgica e holstica, pos-svel reassentar as dimenses do problemae conduzi-lo para novos rumos, colhendoevidncias e servindo-se das mesmas paraa orientao de uma justificvel discussohodierna, que no seja pela mera reprodu-o de idias e valores, mas pela necessidadede se pensar problemas atuais.

    Notas1 Toda a tradio do pensamento jurdico

    ocidental dominada pela distino entre direitopositivo e direito natural, distino que, quanto aocontedo conceitual, j se encontra no pensamentogrego e latino; o uso da expresso direito positivo ,entretanto, relativamente recente, de vez que se

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    encontra apenas nos textos latinos medievais(BOBBIO, 1995, p. 15).

    2 Sobre os conceitos de justia em Plato e Aris-tteles, consulte-se Eduardo Bittar (1999).

    3 A doutrina da Escola consubstanciou-se emquatro pontos fundamentais: 1. O reconhecimentode que a natureza humansa seria fonte do DireitoNatural; 2. A admisso da existncia, em pocasremotas, do estado de natureza; 3. O contratosocial como origem da sociedade; 4. A existn-cia de direitos naturais inatos (NADER, 1997,p. 132).