Diplomacia Financeira - o Brasil e o FMI

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  • 7/31/2019 Diplomacia Financeira - o Brasil e o FMI

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    Diplomacia financeira: o Brasil e o FMI, de 1944 a2002

    Paulo Roberto de Almeida

    Captulo 4 de meu livro:

    Relaes internacionais e Poltica externa to Brasil: histria e sociologia da

    diplomacia brasileira

    (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, Segunda edio; em fase de

    publicao)

    1. Os dois conceitos de Bretton Woods: instituies e polticas

    O conceito de "sistema de Bretton Woods", geralmente tomado no singular,

    refere-se, em realidade, a duas problemticas distintas mas relacionadas entre si. Por um

    lado, num sentido estrito, a noo remete ao papel e ao funcionamento de duas

    organizaes internacionais criadas em meados do sculo XX para administrar as

    relaes financeiras e monetrias internacionais. Por outro, num sentido mais amplo, ela

    se refere tambm, ou principalmente, s polticas implementadas por essas instituies

    no plano multilateral e nas suas relaes com os pases membros, e que constitui, de

    longe, o aspecto mais evidenciado na literatura especializada ou no jornalismo corrente,

    em vista da sensibilidade poltica normalmente despertada por essas polticas

    aparentemente "impostas" desde Washington.

    Com efeito, o primeiro sentido remete s duas instituies de carter monetrio e

    financeiro, o Fundo Monetrio Internacional e o Banco Internacional de Reconstruo e

    Desenvolvimento, criadas em 1944 como resultado da conferncia de Bretton Woods

    (New Hampshire, nos Estados Unidos) e convertidas em agncias especializadas das

    Naes Unidas (embora com estatuto especial e diferente das demais entidades

    intergovernamentais). Em um sentido estrito, esse "modelo" refere-se a um determinado

    ordenamento monetrio que vigorou durante uma fase circunscrita da histria

    econmica mundial (1946-1973), qual seja, o esquema de paridades cambiais fixas (mas

    ajustveis), baseado no padro ouro-dlar, embora o conceito tambm possa referir-se,

    de modo geral e desde essa primeira fase, s polticas econmicas aplicadas pelas duas

    organizaes econmicas internacionais com sede em Washington. Existem, contudo,

    diferenas notveis entre as funes desempenhadas e as polticas recomendadas porcada uma delas, assim como deve ser feita uma distino temporal entre o regime

    http://pralmeida.tripod.com/academia/01Livros/2FramesBooks/57UFRGS2002.htmlhttp://pralmeida.tripod.com/academia/01Livros/2FramesBooks/57UFRGS2002.htmlhttp://pralmeida.tripod.com/academia/01Livros/2FramesBooks/57UFRGS2002.htmlhttp://pralmeida.tripod.com/academia/01Livros/2FramesBooks/57UFRGS2002.htmlhttp://pralmeida.tripod.com/academia/01Livros/2FramesBooks/57UFRGS2002.html
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    monetrio em vigor durante aquela etapa histrica e o sistema de flutuao cambial, no

    administrado pelo FMI, em vigor desde 1973.

    J o outro conceito, relativo ao "sistema" ou "modelo de Bretton Woods", de

    ordem mais poltica do que monetria e refere-se atuao prtica e operacional " por

    vezes "ideolgica" " das duas organizaes criadas em 1944 para cuidar das moedas e

    das finanas internacionais, mas que acabam necessariamente por envolver-se na

    administrao prtica da vida econmica dos pases membros, da derivando uma srie

    de implicaes polticas (e jurdicas) que tendem a despertar, por vezes, mais paixes do

    que racionalidade nos debates polticos e econmicos conduzidos na esfera domstica

    desses pases. Esse papel, paradoxalmente, comeou a ser mais realado quando veio a

    termo o modelo "clssico" de Bretton Woods, no incio dos anos 70, e quando tambm

    se opera a passagem do ciclo de crises financeiras predominantemente cambiais (e que

    envolviam igualmente pases desenvolvidos) para crises de balano de pagamentos

    (tpicas de pases em desenvolvimento), ocorrendo um refinamento das polticas de

    condicionalidades e o debate poltico em torno de sua consistncia ou adequao s

    realidades nacionais dos pases membros. O Brasil tem sido frtil nesse tipo de debate,

    praticamente desde meados dos anos 50 do sculo XX, at os dias que correm, a julgar

    pela veemncia de certos argumentos eleitorais. Com efeito, desde os anos 1950 pelo

    menos, o FMI tem sido um dos mais freqentes "bodes expiatrios" utilizados

    politicamente no Brasil, situao que tem sido entretanto corrigida gradualmente no

    perodo recente.

    Numa parte inicial, este ensaio tratar em primeiro lugar dos arranjos monetrios

    do ps-Segunda Guerra, abordando depois o problema do financiamento internacional,

    para concluir com uma avaliao da experincia histrica das duas instituies de

    Bretton Woods, ao encerrar-se o ciclo histrico do "sistema de Bretton Woods" quando

    da crise do sistema, no incio dos anos 1970, e ao penetrar o mundo no "no-sistemafinanceiro internacional" na qual ele se encontra desde ento. Numa parte subsequente,

    sero discutidos os aspectos prticos das polticas monetrias e modelos de poltica

    econmica geralmente recomendados pelas instituies de Bretton Woods, com

    destaque para o FMI. A parte mais importante do texto, entretanto, se ocupa

    exclusivamente do Brasil, com um histrico, no sentido lato, das relaes institucionais

    e "polticas" entre o FMI e os governos brasileiros. A parte final retomar o debate

    sobre o desenvolvimento do modelo de Bretton Woods no meio sculo decorrido desdeo final da Segunda Guerra Mundial, com nfase na posio do Brasil.

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    2. O sistema monetrio internacional desde a conferncia de Bretton Woods

    Os esquemas monetrios, bastante diferentes entre si, experimentados no

    perodo posterior Segunda Guerra Mundial, devem ser vistos no contexto evolutivo do

    sistema monetrio internacional no sculo XX, que abandonou o regime relativamente

    estvel do padro ouro, em vigor entre o final do sculo XIX e a Primeira Grande

    Guerra, tentou sem sucesso retornar a um regime mais previsvel e estvel nos anos 20,

    ainda baseado no ouro, para penetrar no caos monetrio dos anos 30, caraterizado por

    desvalorizaes cambiais macias, controles extensivos sobre os movimentos de capital

    e suspenses temporrias ou indefinidas da conversibilidade. O FMI foi criado em

    Bretton Woods para assegurar a estabilidade das taxas de cmbio, prover socorro

    temporrio a seus membros em caso de desequilbrios de balana de pagamentos e

    facilitar os pagamentos nas transaes correntes internacionais (livre circulao dos

    fluxos de divisas para a remunerao de fatores, isto , comrcio de bens e servios, no

    a liberalizao dos movimentos de capitais). O Brasil participou da conferncia de

    Bretton Woods, tornando-se membro fundador do FMI e do BIRD, muito embora tenha

    utilizado-se da permisso "temporria" (preservada durante mais de 50 anos) para

    manter determinadas restries a pagamentos correntes, assim como utilizou-se do

    recurso, teoricamente ilegal, da dualidade cambial e das taxas mltiplas de cmbio

    durante vrios momentos de sua histria monetria recente.

    Os EUA e a Gr-Bretanha foram os principais, se no exclusivos, arquitetos da

    conferncia de Bretton Woods e, muito embora no tenham sido aprovadas as propostas

    do economista britnico John Maynard Keynes, tendentes a instituir uma moeda

    contbil de referncia internacional (o bancor), houve acordo quanto ao retorno a um

    regime de paridades correlacionadas entre as moedas (fixas, mas ajustveis, aps

    aprovao dos membros), tomando como base o dlar, ou seu equivalente em ouro, razo de 34 dlares por ona de ouro. O governo dos Estados Unidos se comprometeu

    solenemente a converter, por uma durao indefinida, todos os haveres em dlares

    detidos pelos demais membros a essa taxa fixa, uma promessa relativamente irrealista

    na medida em que no levava em conta as variaes no volume e no custo de produo

    de ouro, o crescimento das reservas em dlar de terceiros pases em relao aos haveres

    em ouro dos Estados Unidos (no se contou com o fenmeno inflacionrio) ou os

    diferenciais de produtividade em relao a pases mais dinmicos, que reduziriam opoder de compra do dlar. Ao implementar o regime de Bretton Woods, em 1946, o

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    Brasil declarou ao FMI a paridade de 18 cruzeiros por dlar, em vigor alis desde 1939,

    e a manteve fixa, a despeito da eroso inflacionria, at 1953, quando introduziu o

    regime de flexibilidade cambial (taxas mltiplas), depois da experincia de leiles

    cambiais com gio a partir de 1947.

    Na verdade, o chamado "sistema de Bretton Woods" nunca funcionou em sua

    forma pura, ou apenas funcionou durante um espao de tempo estritamente limitado, em

    funo dos enormes desequilbrios econmicos acarretados pela Segunda Guerra. O

    mundo vivia uma "penria de dlares" " os Estados Unidos eram ento responsveis por

    25% da produo mundial e grande parte dos fluxos comerciais " e muitos pases, em

    especial os europeus, no aderiram a um regime de livre conversibilidade seno no final

    dos anos 50, depois que alguns deles " a Frana e a Gr-Bretanha, por exemplo "

    realizaram, sem a autorizao do FMI, desvalorizaes cambiais importantes, muitas

    vezes maiores que os limites autorizados no convnio constitutivo do Fundo. A rigor, o

    modelo de paridades fixas e controladas pelo FMI s vigorou no decorrer dos anos 60,

    quando outros problemas se acumularam " como os dficits contnuos nas transaes

    correntes dos EUA, que imprimiram mais dlares do que suas reservas em ouro

    poderiam suportar " a ponto de colocar esse modelo sob presso contnua.

    No incio dos anos 60, a ausncia de recursos suficientes para que o FMI lidasse

    com crises financeiras nos prprios pases desenvolvidos " como a crise da libra

    esterlina em 1960-61 ", fez com que "acordos gerais de emprstimos" fossem

    negociados entre os principais bancos centrais, dando origem ao chamado Grupo dos

    Dez. Desde meados dessa dcada, o governo americano solicitou a seus principais

    parceiros superavitrios que contivessem dentro de estritos limites a converso em ouro

    de suas enormes reservas em dlar, no que foram atendidos por pases complacentes (e

    dependentes militarmente) como a Alemanha e o Japo, mas contestados por

    "dissidentes" como a Frana do General De Gaulle, que mantinha uma certa nostalgiapor essa "relquia brbara" (no dizer de Keynes) representada pelo ouro. Outros

    problemas eram representados pela ausncia de liquidez internacional em nveis

    adequados, para responder ao crescimento do comrcio mundial, por exemplo, o que se

    tentou contornar pela criao de uma nova moeda de referncia internacional, o "direito

    especial de saque", em deciso adotada durante a conferncia do FMI realizada no Rio

    de Janeiro em 1967 e que entrou em vigor no incio dos anos 70.

    3. A crise do sistema monetrio internacional e o "no-sistema" ps-1973

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    O sistema de Bretton Woods entrou finalmente em colapso em agosto de 1971,

    quando, sem prvio aviso, os EUA declararam no mais honrar o compromisso

    assumido em 1944 e suspenderam unilateralmente a conversibilidade do dlar em ouro.

    Esforos tendentes a restaurar o equilbrio com base em novas paridades fracassaram e,

    desde 1973, com as modificaes pertinentes introduzidas no convnio constitutivo do

    FMI, a economia mundial vive num regime de ausncia total de paridades

    correlacionadas, ou seja, num "no-sistema" monetrio internacional. De fato, embora a

    maioria dos pases adote o regime de flutuao cambial, vrios outros, em especial

    pases em desenvolvimento, continuam a vincular suas moedas a algumas divisas fortes,

    geralmente o dlar, como na Amrica Latina, mas tambm, no caso de outras reas

    geogrficas, ao deutsche mark(e agora ao euro) ou ao iene.

    O regime de flutuao pode ser totalmente livre " como no caso das principais

    moedas internacionais ", o que no impede eventuais intervenes dos bancos centrais

    nos mercados, ou ento em regime de bandas ajustveis, cuja referncia de variao

    pode estar eventualmente ligada a uma cesta de moedas. O prprio "direito especial de

    saque" do FMI, moeda puramente contbil, tem seu valor determinado em funo da

    variao relativa de um coquetel de moedas, com base no dlar, no iene, na libra, no

    franco francs e no marco alemo, as duas ltimas substitudas pelo euro desde 1999.

    Uns poucos pases, finalmente, adotam um regime de conversibilidade pura, modelo

    "caixa de converso" (ou currency board), que pode estar baseado numa moeda de

    curso forado (como a ndia em relao libra, durante o regime colonial ingls) ou

    livremente adotada como referncia nica por razes de poltica monetria (como o

    dlar, na experincia argentina iniciada em 1991).

    A "anarquia" monetria e cambial vivida desde o desmantelamento do modelo

    de Bretton Woods e os perigos inerentes aos regimes de flutuao, "sujos" ou "limpos"

    (isto , com ou sem interveno das autoridades financeiras), podem levar a umaconcentrao dos regimes monetrios nacionais em torno das trs grandes moedas da

    atualidade, o dlar, o euro e o iene (esta podendo ser substituda, no futuro, pelo

    renmimbi chins). A perda de "soberania monetria" pode assim implicar em reduo "

    controlada ou involuntria, dependendo das circunstncias econmicas de cada pas " do

    nmero de moedas nacionais ou at mesmo conduzir renncia antecipada moeda

    nacional, como nos fenmenos de dolarizao na Amrica Latina (Panam, Equador, El

    Salvador e ameaas na Argentina). Quaisquer que sejam as solues adotadas pelospases individualmente, ou por grupos de pases (como no caso dos blocos comerciais, a

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    exemplo da Unio Europia que adotou uma moeda nica, podendo servir de referncia

    para experincia semelhante no mbito do Mercosul), parece evidente que o regime de

    paridades fixas conhecido como "modelo de Bretton Woods" no tem chances de

    renascimento no futuro previsvel, muito embora os regimes monetrios baseados em

    taxas ajustveis e correlacionadas continuem atraentes em razo de sua aparente

    promessa de estabilizao cambial, algo to desejvel como a preservao do poder de

    compra de uma moeda.

    4. Condicionalidades econmicas e soberania nacional: o modelo de Bretton Woods

    O outro conceito relativo ao "modelo de Bretton Woods" de ordem mais

    poltica do que monetria e refere-se atuao prtica e operacional " por vezes

    "ideolgica" " das duas organizaes criadas em 1944 para cuidar das moedas e das

    finanas internacionais. As premissas das quais partiram os economistas e diplomatas

    da Gr-Bretanha e dos Estados Unidos, ao proporem o sistema econmico multilateral

    identificado com Bretton Woods " e que compreendia tambm uma entidade voltada

    para o comrcio, efetivamente criada em Havana em 1948, mas nunca ratificada em seu

    formato original e apenas implementada como Organizao Mundial do Comrcio, em

    1995 " eram as de um sistema baseado, tanto quanto possvel, na abertura dos mercados

    em regime de economia privada (muito embora concesses tenham sido feitas a

    esquemas de planejamento estatal), na livre conversibilidade das moedas, na ausncia

    de discriminaes (clusulas de nao-mais-favorecida e do tratamento nacional) e de

    restries quantitativas ou de barreiras no-tarifrias ao comrcio de bens e servios,

    assim como na definio e manuteno de polticas econmicas slidas e responsveis,

    de molde a evitar graves desequilbrios internos ou externos que pudessem

    comprometer a economia mundial e os fluxos de comrcio entre os pases.

    No tinha sido prevista, a despeito do que se cr habitualmente, a liberdade demovimentao dos capitais exclusivamente financeiros, cuja administrao no faz

    parte, at 2001, do mandato atribudo pelos pases membros ao FMI: sua jurisdio

    compreende to somente a livre circulao dos capitais para pagamentos correntes. O

    Banco Mundial, por sua vez, deveria ocupar-se dos financiamentos de longo prazo a

    taxas reduzidas, de forma a permitir investimentos de um certo vulto a pases desejosos

    de engajar recursos em obras de infra-estrutura ou em projetos de lenta maturao. De

    fato, ao longo dos anos, ambas as instituies tiveram algumas de suas funescolocadas em situao de overlapping, com o FMI fazendo emprstimos para "ajuste

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    estrutural" das economias colocadas em situao de graves desequilbrios financeiros,

    como no caso dos choques do petrleo dos anos 70 (ainda que a prazos mais reduzidos

    do que os crditos do BIRD), e o banco provendo recursos exclusivamente financeiros,

    no para construir casas ou estradas, mas para sanar deficincias de balano de

    pagamentos (como no prprio caso da crise financeira brasileira de 1998-99, que foi em

    parte contida com financiamentos parciais do BIRD e do BID).

    O aspecto crtico, porm, envolvido no chamado "modelo de Bretton Woods"

    prende-se, mais freqentemente, s recomendaes de poltica econmica formuladas

    pelo FMI (e muito acessoriamente pelo BIRD) quando da aprovao de crditos stand-

    by ou da concesso de crditos e financiamentos estruturais, que podem significar a

    "imposio" de alguma condicionalidades ditas "neoliberais" pelos adversrios do dito

    "consenso de Washington". Existem muitos equvocos nas acusaes dirigidas ao FMI,

    cujas polticas no so exatamente ditadas pela sua burocracia tcnica, mas geralmente

    pelo conselho de diretores, que representam a maioria do capital acionrio, obviamente

    dominado pelas economias mais importantes do planeta (um "diretrio poltico" no

    muito diferente do Grupo dos 7). Esses pases entretm, como seria de se esperar, um

    certo consenso em torno de "polticas responsveis", caracterizadas pela liberalizao

    dos intercmbios, pela diminuio da interveno do estado na economia, solidez das

    polticas fiscais, realismo cambial e ausncia de restries notveis aos fluxos reais e

    financeiros.

    A despeito dos mtodos por vezes rgidos de implementao do ajuste, a

    ortodoxia monetria e financeira contudo aplicada de comum acordo com as

    autoridades econmicas do pas que solicita um crdito de emergncia, com alguma

    flexibilidade em relao a aspectos particulares do "pacote de socorro". Assim, o FMI

    pode "conceder" a manuteno de regimes menos flexveis de administrao cambial "

    bandas ou sistema de paridade fixa " quando normalmente seus tcnicos recomendam adesvalorizao e um regime de flutuao, ou ele pode concordar com a manuteno

    temporria de subvenes estatais a determinados setores, quando a pura ortodoxia

    recomendaria seu desmantelamento puro e simples. De modo geral, os programas de

    ajuda financeira do FMI " com desembolsos condicionados ao cumprimento de

    determinadas metas " so elaborados tendo em vista a correo de desequilbrios

    insustentveis no plano fiscal ou nas transaes externas, situaes que deveriam de

    toda forma ser enfrentadas voluntariamente pelos pases em dificuldades temporrias.

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    Da mesma maneira, alguns dos crditos concedidos pelo Banco Mundial podem

    vir acoplados a algumas condicionalidades de ordem econmica, mas elas se referem no

    mais das vezes ao bom desempenho do projeto, sua implementao responsvel,

    retornos verificveis e, se possvel, a correo de alguns desajustes estruturais nos

    planos fiscal ou tributrio que podem implicar em mudanas na legislao nacional de

    pases dotados de mquinas administrativas especialmente deficientes ou claramente

    corruptas. A "boa governana", o combate corrupo, o desenho de polticas setoriais

    ou de projetos especficos que sejam ambientalmente sustentveis e socialmente

    responsveis tornaram-se algumas das condicionalidades do BIRD e dos bancos

    regionais que respondem a crticas formuladas pela opinio pblica e por organizaes

    no-governamentais. Desse ponto de vista, o "modelo de Bretton Woods" h muito

    deixou de representar a pura expresso da "ortodoxia econmica" para ingressar num

    certo "consenso global" de poltica slidas, eficientes e "socialmente sustentveis".

    5. O "modelo de Bretton Woods" e a "nova arquitetura financeira internacional"

    O problema da maior parte das propostas em torno da chamada "nova

    arquitetura financeira internacional" que elas no so realisticamente factveis, ou

    ento pecam por excesso de condicionalidades polticas (como, por exemplo, a demanda

    por uma reviso radical dos objetivos e mtodos de trabalho das instituies de Bretton

    Woods), que simplesmente no se realizaro. No h penria de propostas para reformar

    a arquitetura financeira internacional, mas "muitas dessas propostas so contraditrias e

    mutuamente incompatveis". 1[1] Os pases do G-7 apresentam individualmente ou em

    grupo suas sugestes; o Grupo dos 20, um foro provisrio de pases avanados, em

    transio e em desenvolvimento, vem elaborando uma srie de relatrios com esse

    mesmo objetivo; o ex-Diretor-Gerente do FMI, Michel Camdessus, tinha avanado

    idias nessa direo e os representantes da academia e do mundo financeiro, a comearpor George Soros, tambm no deixam de emitir os mais diversos e mirabolantes

    esquemas de "revitalizao", de "transformao radical", quando no de "abolio" das

    principais instituies do setor financeiro multilateral.

    No sem razo, o livro do Prof. Eichengreen tem como subttulo "a practical

    post-Asia agenda", querendo ele com isso significar que suas recomendaes so

    voluntariamente modestas para que elas possam ter uma chance razovel de

    1[1] Cf. Barry Eichengreen, Toward a New International Financial Architecture: a practical post-Asiaagenda. Washington: Institute for International Economics, 1999, p. 1.

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    implementao. Ele descarta, de pronto, propostas em favor de uma nica moeda de

    curso internacional, de um banco central mundial, de um "grande" regulador financeiro

    internacional ou uma corte planetria tratando de insolvncias, algo equivalentes a

    quimeras ("pie-in-the-sky schemes"). O novo Diretor-Gerente do Fundo, o alemo Horst

    Kohler, tambm expressou a vontade de introduzir reformas na instituio, mas muito

    provavelmente elas no se traduziro em mudanas significativas no mandato ou na

    forma de atuao da mais vilipendiada das "sisters-in-the-woods". O Banco Mundial,

    por sua vez, j declarou sua inteno de concentrar suas principais operaes em

    programas de combate pobreza nos pases mais necessitados. Ambas as instituies

    passaram a fazer da luta contra a corrupo uma espcie de "condicionalidade informal"

    no processo de aprovao de novos projetos ou emprstimos.

    Depois de meio sculo de existncia continuada, a importncia das duas

    entidades de Bretton Woods continua a ser reconhecida mesmo por seus adversrios

    ideolgicos: na ausncia do FMI ou do BIRD, outros mecanismos e instituies teriam

    de ser concebidos e implementados para enfrentar os problemas das crises financeiras,

    dos desequilbrios de balanas de pagamentos, da ausncia de financiamentos privados

    para determinados projetos de investimento, sem mencionar a ausncia de capacitao

    tcnica de muitos pases mais pobres para sequer desenhar e implementar programas

    amplos de saneamento bsico, de construo de infra-estrutura ou at de implantao de

    redes escolares e de sade preventiva.

    Na verdade, o alegado "modelo de Bretton Woods" no tem tanto a ver com a

    presumida "liberdade dos mercados", mas sim com o mau funcionamento desses

    mesmos mercados, seja na conteno de pnicos bancrios e hemorragias financeiras,

    seja na alocao adequada ou satisfatria de recursos financeiros para determinados

    pases que no contam com aportes voluntrios de capitais privados, sob a forma de

    investimentos diretos, por exemplo, ou que no dispem de condies mnimas paracontrair emprstimos no sistema bancrio comercial. O BIRD e o FMI " que nunca

    chegou a ser um "emprestador de capitais de ltima instncia", como queria Keynes "

    so chamados, precisamente, quando os mercados falharam ou se mostraram incapazes

    de cumprir suas funes alegadamente saneadoras ou corretoras de desequilbrios. Num

    certo sentido, eles so o "anti-mercado", pois que representando uma interveno de

    "tecnocratas" para restaurar situaes de equilbrio instvel e aportando recursos quando

    a "mo invisvel" deixou de faz-lo. Assim, a despeito das iniquidades ainda presentes,e de certa forma persistentes e crescentes, na economia mundial, com um imenso

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    diferencial de recursos e de riqueza entre os pases, instituies como as "duas irms" de

    Bretton Woods podem contribuir para o desenho de uma "arquitetura financeira

    internacional" mais compatvel com os requerimentos de estabilidade macroeconmica

    e as necessidades de financiamento dos pases mais pobres.

    6. O Brasil em Bretton Woods: sem a dimenso do desenvolvimento

    Em maio de 1944, Roosevelt estende ao Brasil o convite para participar, junto

    com 43 outras "naes unidas e associadas", da conferncia que deveria discutir a

    reconstruo econmica do ps-guerra. O Brasil esteve representado em Bretton Woods

    pelo ministro da Fazenda do governo Vargas, Arthur de Souza Costa, que chegou a

    presidir um dos comits (o de "organizao e administrao") da Comisso I da

    Conferncia (que tratava do prprio FMI). Acompanhavam-no, como delegados, entreoutros, Francisco Alves dos Santos Filho, da Carteira de Cmbio do Banco do Brasil;

    Valentim Bouas, poca pertencente Comisso bilateral de Controle dos Acordos de

    Washington sobre a dvida brasileira; Eugenio Gudin, membro do Conselho Econmico

    e Financeiro e do Comit de Planejamento Econmico da presidncia da Repblica;

    Octvio Gouveia de Bulhes, da Diviso de Estudos Econmicos e Financeiros do

    Ministrio da Fazenda; e Vitor Bastian, Diretor do Banco da Provncia do Rio Grande

    do Sul (de onde vinha Souza Costa antes de ser convidado por Vargas para substituirOswaldo Aranha na Fazenda). Faziam ainda parte da delegao o jovem diplomata

    Roberto de Oliveira Campos, ento segundo secretrio da Embaixada em Washington, e

    Santiago Fernandes, economista do Banco do Brasil.

    A delegao brasileira props uma conferncia especfica para promover a

    estabilidade nos preos dos produtos de base, idia que seria retomada na Conferncia

    das Naes Unidas sobre Comrcio e Emprego em Havana e em diversas reunies

    econmicas que, nos anos 50 e comeo dos 60, levam constituio da Conferncia dasNaes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento (UNCTAD). Os esforos do Brasil

    e de outros pases para viabilizar medidas em favor do desenvolvimento econmico no

    encontram eco nos debates. Os acordos de constituio do FMI, por exemplo, assim

    como o Acordo Geral de 1947, no fizeram nenhuma distino entre pases

    desenvolvidos e em desenvolvimento.

    No se tratava, no entanto, de uma discriminao direta e voluntariamente

    perversa: o problema simplesmente no se colocava, na tica dos que convocaram a

    Conferncia de Bretton Woods. A reorganizao econmica e monetria do mundo era

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    um problema a ser resolvido basicamente entre as grandes potncias, que se

    consideravam como as nicas "responsveis pela ordem internacional". Em Bretton

    Woods atuaram essencialmente os EUA e a Gr-Bretanha: todos os demais participantes

    eram meros figurantes.

    7. O FMI em sua primeira fase: inconsistncias sistmicas

    O fato de os acordos de Bretton Woods no trazerem nenhuma distino entre

    pases avanados e pases em desenvolvimento pode ser explicado pelo contexto da

    poca, quando a questo prioritria era a da reconstruo econmica dos pases em

    guerra, a comear pelas potncias capitalistas da Europa. De fato, na primeira fase de

    suas atividades, o FMI desconhece a questo do desenvolvimento e sua prtica corrente

    reflete os problemas prioritrios da estabilizao econmica nos pases europeus. A

    organizao parece ter demonstrado enorme tolerncia para com as desvalorizaes

    manifestamente ilegais praticadas por alguns desses pases (a Frana, por exemplo),

    preocupando-se muito mais com os problemas de taxas mltiplas de cmbio e de

    prticas discriminatrias em matria monetria (controle dos fluxos de divisas) por parte

    dos pases menos desenvolvidos do que com as enormes restries ao cmbio

    prevalecentes nos pases europeus. Esse double standardno deixou, evidentemente, de

    provocar um legtimo mal-estar nesses pases, em especial na Amrica Latina, que

    ressentiam que muito maior ateno era dada s suas prticas restritivas do que s dos

    major powers.

    Nessa primeira fase, a poltica econmica relativamente ortodoxa conduzida

    pelos ministros de Dutra coincide com a filosofia imperante no FMI. Sem embargo, a

    sada de capitais e o esgotamento das reservas em divisas acumuladas durante a guerra "

    processo tambm acelerado pela liberalizao das importaes como meio de controlar

    a inflao " atingem tais propores que o Governo obrigado a reintroduzir medidasde controle cambial em meados de 1947. Apesar disso, ele recusou-se persistentemente

    a alterar a paridade do cruzeiro, uma vez que, de acordo com as regras do Fundo, o

    cmbio estvel era considerado um princpio de bom comportamento econmico.

    Com efeito, para assegurar a estabilidade cambial nas relaes econmicas

    internacionais, o convnio constitutivo do FMI " promulgado no Brasil em maio de

    1946 " no permitia a existncia de moedas flutuantes, nem a introduo de

    depreciaes unilaterais para aumentar a competitividade. O Governo Dutra manteve-seatrelado a esse princpio durante todo seu perodo constitucional, mesmo em face de

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    desvalorizaes "ilegais" realizadas por alguns pases europeus durante a fase de

    penria de dlares do imediato aps-guerra. Uma vez feita a declarao da paridade de

    sua moeda em meados de 1946 " o valor era aquele expresso em termos de ouro (ou

    dlares) em julho de 1944, data da Conferncia de Bretton Woods, e correspondia a

    uma taxa de Cr$ 18,46 por dlar, j em vigor desde 1939 ", ela seria mantida at o

    prximo Governo Vargas, quando se volta a adotar o pouco ortodoxo sistema de taxas

    diferenciadas.

    Na verdade, uma certa heterodoxia no manejo da poltica cambial tinha sido

    introduzida desde meados de 1947, quando, por fora da penria de divisas, se adotou o

    regime de licenas de importao, segundo uma hierarquizao de prioridades. Mas, a

    paridade cambial declarada em 1946 foi mantida at 1953, a despeito da enorme

    inflao registrada nesse perodo. A nica conseqncia dessa adeso um pouco mope

    aos princpios estritos do FMI foi a valorizao da moeda brasileira, embora limitada

    pela inflao mundial e pela desvalorizao das moedas europias no final dos anos 40.

    A primeira operao contrada pelo Brasil com uma das organizaes de Bretton

    Woods foi um emprstimo para um projeto de energia eltrica base trmica contrado

    junto ao Banco Mundial em 1949, por um montante de 75 milhes de dlares. As

    operaes com o FMI no comearam seno na dcada seguinte e parecem ter

    consistido, numa primeira experincia, num simples aval dado em 1954 a emprstimo

    do Eximbank, o banco garantidor de financiamentos s exportaes do governo

    americano, o que foi logrado a despeito do sistema de taxas mltiplas de cmbio ento

    mantido pelo Brasil. Nessa poca, alis, o FMI formula uma recomendao para a

    unificao do regime cambial, o que no entanto no podia ser logrado de imediato em

    vista dos persistentes problemas fiscais e tributrios (a taxa mltipla atuava como um

    adicional tarifrio, pelo menos antes da reforma aduaneira de 1957, que mudou a tarifa

    de especfica para ad valorem). Nas dcadas seguintes, o Brasil viria a ser um dosprincipais clientes de ambas as organizaes, muito embora as relaes com o FMI

    tenham seguido um padro mais irregular do que as operaes quase constantes

    mantidas junto ao BIRD.

    8. Juscelino Kubitschek d inicio demonizao do FMI

    Uma das etapas mais significativas desse relacionamento tortuoso representada

    pelo rompimento, em 1959, por Juscelino Kubitschek, de um acordo stand-by

    negociado no ano anterior pelo seu ministro Lucas Lopes. Esse gesto de fundo

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    essencialmente poltico e quase demaggico assumiu, na simbologia de uma certa

    histria simplista, ares de declarao triunfalista de independncia econmica por parte

    do Brasil, como se o FMI e, por trs dele, o governo dos EUA tivessem interesse em

    colonizar ou humilhar o Pas, quando o que estava em jogo era to somente o

    cumprimento de certos critrios de desempenho em matria monetria e fiscal. Na

    verdade, Juscelino, j comprometido com o projeto de construo de Braslia pela via

    fcil (e altamente irresponsvel) das emisses inflacionistas no pretendia submeter-se a

    nenhum tipo de controle de gastos (menos ainda de elaborao oramentria normal). O

    fato que as "explicaes" dadas por JK para justificar o rompimento do acordo stand-

    by com o Fundo " o atendimento das exigncias teria redundado, por exemplo, no

    "aniquilamento" do Pas, ele teria de "abrir mo do Plano de Metas" e deixaria o povo

    "passando fome" " passaram a integrar a demonologia da esquerda brasileira em relao

    ao FMI " logo identificado com "fome e misria internacional" " praticamente at os

    dias de hoje, constituindo um caso nico de auto-engano coletivo cultivado de maneira

    persistente durante dcadas a fio.

    Um pouco mais adiante, novo acordo stand-by negociado pelo ministro

    Clemente Mariani com o Fundo em 1961 teve de ser suspenso aps a renncia de Jnio

    Quadros, cuja realizao mais importante na rea econmica foi a unificao dos

    diferentes regimes cambiais em vigor desde a segunda presidncia de Getlio Vargas,

    medida adotada depois de desvalorizao importante da moeda e eliminao de

    subsdios a alguns bens. Os anos tumultuados da presidncia Joo Goulart " primeiro

    sob um regime parlamentarista, depois no sistema presidencialista novamente " no

    constituem uma trajetria uniforme de poltica econmica e portanto no podem ser

    analisados segundo um padro normal de relacionamento com as agncias financeiras

    multilaterais. De resto, o Brasil no chegou a contrair, nessa fase, nenhuma nova

    obrigao financeira com as entidades internacionais, tendo sido entretanto obrigado anegociar emprstimos e financiamentos de curto prazo com governos e entidades

    nacionais de financiamento e depois a renegociar esse crditos, inclusive no mbito do

    Clube de Paris, quando a inadimplncia se manifestou no horizonte.

    9. O regime militar e o FMI: boas relaes, sem dependncia

    O governo militar, sustentado pelas foras conversadoras, bem acolhido pelos

    EUA e integrado por economistas ditos "ortodoxos", passou a viver em termos melhorescom o FMI, de que so exemplo os sucessivos acordos stand-by negociados

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    praticamente ano a ano entre 1965 e 1972. De fato, esses acordos no eram necessrios

    do ponto de vista estrito da balana de pagamentos, justificando-se apenas como uma

    espcie de "selo de qualidade" das polticas econmicas implementadas nessa fase de

    estabilizao. Dos quase 570 milhes de DES concedidos nessa poca em oito

    operaes anuais, o Brasil sacou apenas 150 milhes (em duas tranches de 75 milhes

    cada, as primeiras, sem condicionalidades), contentando-se o governo com o aval do

    FMI para fins de renegociao da dvida com credores oficiais. O BIRD, a partir dessa

    poca, tambm passou a emprestar com maior liberalidade ao Brasil, assim como a

    AID, a agncia oficial de ajuda ao desenvolvimento do governo dos EUA, ou o

    Eximbank.

    A fase do chamado "milagre econmico brasileiro", entre 1967 e a primeira crise

    do petrleo, em 1973, coincide com o ingresso de importantes fluxos de investimento

    estrangeiro, tendo o governo atuado inclusive no sentido de restringir o excesso de

    entradas, de maneira a no provocar surtos inflacionrios na economia brasileira.

    Mesmo depois do incio de problemas na balana de pagamentos, com a triplicao dos

    preos do petrleo e a continuidade das grandes obras de infra-estrutura e dos

    investimentos estatais patrocinados pelo governo "desenvolvimentista" de Geisel, o

    governo evitou fazer apelo ao FMI, preferindo socorrer-se nos euromercados, ento

    regurgitando de petrodlares que passaram a ser reciclados em condies extremamente

    generosas para com os tomadores (taxas de juros praticamente negativas, em face da

    acelerao da inflao nos pases centrais). De resto, o FMI teve papel pouco ativo na

    fase de grandes turbulncias dos anos 70, atingido ele mesmo pela alterao quase

    completa dos fundamentos que tinham presidido sua atuao institucional desde a

    assinatura dos acordos de Bretton Woods: o regime de paridades fixas e a

    conversibilidade do dlar em ouro a uma taxa estvel.

    A nova crise do petrleo, em 1979, agravou ainda mais a situao das transaescorrentes do Brasil, numa fase em que as taxas de juros passam a ser flutuantes e de fato

    aumentam extraordinariamente a partir da poltica do Federal Reserve de atrair capitais

    para os EUA. O governo Figueiredo, novamente com Delfim Netto frente da

    economia, hesitou entretanto em recorrer ao FMI, na medida em que o apelo teria um

    enorme custo poltico. Ele s o fez quando a situao j tinha sado de controle, com

    escassez de capitais voluntrios a partir da guerra das Malvinas (maio de 1982) e

    sobretudo com o deslanchar da moratria mexicana em agosto desse ano. Entre o inciode 1983 " quando um acordo dito EFF (extended Fund facility) negociado " e o final

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    do regime militar, o Brasil beneficiou-se de crditos emergenciais do Fundo mas no

    conseguiu cumprir a maior parte das exigncias e requerimentos formulados pelo staff

    do rgo e estabelecidos por sua diretoria pois que no obtinha condies polticas para

    um conjunto de reformas tendentes a desindexar a economia brasileira e a colocar as

    contas pblicas sob controle. O ministro Delfim Netto negociou e renegociou meia

    dzia de cartas de intenes para sustentar um acordo stand-by que nunca foi

    implementado em forma integral.

    Mais grave porm que os conflitos distributivos de ordem interna era o problema

    da dvida externa, tanto a oficial, que teria de ser renegociada no mbito do Clube de

    Paris, como a comercial, para a qual os instrumentos de coordenao ainda eram

    incipientes e improvisados. A estrutura dos emprstimos consorciados, envolvendo

    dezenas, seno centenas de bancos " os chamados "syndicated loans" " era obviamente

    uma dificuldade: um comit assessor dos bancos credores foi rapidamente constitudo,

    mas seu funcionamento deixava bastante a desejar em face das disputas entre os

    prprios bancos para um tratamento preferencial para os seus crditos. A inadequao

    dos mecanismos institucionais para o encaminhamento adequado do problema da dvida

    externa era patente. Por um lado, os bancos privados tinham sido extremamente

    irresponsveis ao conceder emprstimos sobre emprstimos aos governos dos pases em

    desenvolvimento, na suposio absurdamente anti-histrica de que estados soberanos

    no vo bancarrota e no declaram moratria. Eles estavam esperando que o governo

    dos EUA e o prprio FMI garantisse pelo menos o pagamento dos juros por parte dos

    pases devedores, algo que esteve sob risco em diversas ocasies. Por outro lado, o FMI

    estava apenas equipado para tratar de desequilbrios temporrios de balano de

    pagamentos, no para administrar um processo prolongado de renegociao de dvidas

    soberanas e comerciais.

    O problema da dvida externa de meados dos anos 80 foi mais empurrado para afrente a partir de uma srie de novos emprstimos e de reescalonamentos por parte da

    banca privada " entre eles, mega-operaes conduzidas pelo Citi e pelo Morgan no

    incio de 1983 " do que de fato resolvida por via da cooperao institucional entre o

    governo brasileiro e o Fundo, objeto de um grande emprstimo nessa mesma poca,

    logo suspenso em face do descumprimento brasileiro de uma srie de metas. Tem incio

    nesse perodo um novo captulo do que se poderia chamar, livremente, de "novela

    financeira do Brasil", isto , a sucesso infindvel de visitas de misses tcnicas doFundo, enviadas ao Brasil para examinar as contas e propor novas metas que tampouco

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    seriam cumpridas. O aspecto risvel do folclore em torno das "misses do FMI" esconde

    o que de fato passou a constituir a essncia de uma outra srie de componentes da

    demonologia brasileira em torno dessa instituio: as condicionalidades impostas como

    parte de uma conspirao de banqueiros e governos poderosos para obrigar o Pas a

    reembolsar uma dvida ilegtima e impagvel.

    Os anos 80 tambm assistiram ao surgimento de "vises alternativas" para o

    tratamento da dvida, inovando em relao abordagem estritamente financeira nas

    experincias histricas precedentes. Foros informais de consulta como o "consenso de

    Cartagena" (1984) " de que participou o Brasil, mais pela sua diplomacia do que pelas

    suas autoridades financeiras " impulsionaram esse tipo de "politizao" da questo da

    dvida, mas deve-se reconhecer que seus resultados prticos foram bastante modestos, a

    despeito mesmo de terem os pases do G-7 passado a aceitar como inevitveis os

    esquemas de reduo do principal e dos juros, em especial para os pases mais pobres

    altamente endividados. Essas iniciativas de abatimento da carga da dvida oficial

    passaram a ser conhecidos pelos nomes das cidades nas quais o G-7 realizava suas

    reunies anuais: "menus" de Toronto, de Londres, de Npoles e de Lyon, nenhum deles

    aplicado ao Brasil, em vista das dimenses de sua economia e de sua posio mais

    slida do ponto de vista das contas externas.

    A descoordenao poltica e operacional em torno do problema da dvida

    externa dos pases emergentes era de fato muito grande, envolvendo muitos atores

    dotados de pouca inspirao e muita transpirao: FMI, Banco Mundial, Tesouro

    americano, Federal Reserve, Departamento de Estado, agncias garantidoras de crditos

    comerciais, outros governos credores " geralmente europeus, mas tambm os japoneses

    e canadenses " ademais, obviamente, dos bancos privados, centenas deles, a comear

    pelos grandes de Wall Street e da City londrina. Um certo grau de energia por parte dos

    funcionrios americanos e tambm um pouco de sorte " assim como a prpriacooperao dos principais devedores, a comear pelo Mxico e pelo Brasil " evitou o

    pior: o colapso do sistema financeiro internacional. O esquema no evitou contudo a

    estagnao e a crise nesses mesmos pases, dando origem ao estigma da "dcada

    perdida". Oportunamente, a introduo do princpio do reescalonamento com desconto

    do valor face " ou fixao de juros ", tal como consubstanciado no Plano Baker,

    permitiu a lenta reabsoro dos casos mais graves de inadimplncia financeira, com

    perdas desigualmente distribudas entre os credores e os tomadores (varivel segundo oscasos).

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    Entretempos, no Brasil, a conduo do processo de entendimentos com o Fundo

    foi bastante errtica e irregular: logo depois do descumprimento das metas acertadas no

    acordo de facilidades ampliadas (EFF) do incio de 1983, nova misso do FMI veio ao

    Brasil para tentar convencer as autoridades brasileiras a desindexar a correo

    automtica dos salrios, alm obviamente de estabelecer metas precisas para a reduo

    da inflao. Como relatado em uma histria oficial do FMI cobrindo esse perodo, "Os

    brasileiros tinham resistncia a esse tipo de requisito e o seu duradouro e altamente

    influente diretor executivo, Alexandre Kafka, reclamou que esse nvel de envolvimento

    estrutural na poltica econmica era pouco apropriado e no tinha precedentes". 2[2] A

    partir da " e a despeito de renegociaes conduzidas no mbito do Clube de Paris " os

    desencontros entre o Brasil e a comunidade de credores oficiais e privados foram

    freqentes, atravessando inclusive a mudana de regime poltico do incio de 1985, at

    culminar na famosa moratria de 1987, quando o Brasil, pela primeira vez em muitas

    dcadas, declarou a impossibilidade de continuar honrando seus compromissos

    externos.

    10. O Brasil redemocratizado e o FMI: ms relaes, com dependncia

    Em janeiro de 1985, como forma de pressionar por novas facilidades creditcias,

    o governo brasileiro anunciou que estaria suspendendo o pagamento de juros sobre a

    dvida oficial bilateral at o reescalonamento dessas dvidas, ao que o Clube de Paris

    respondeu que o estabelecimento de um acordo stand-by com o FMI era a condio

    necessria para faz-lo. A substituio de Francisco Dornelles por Dilson Funaro em

    meados desse ano no foi particularmente bem sucedida em termos de entendimentos

    com o FMI e com os demais credores oficiais e privados. A novela da dvida e o bal de

    misses do Fundo ao Brasil continuou pelos meses seguintes, sem qualquer progresso

    substantivo na conduo das renegociaes e com muito pouco progresso no tratamentoconceitual do problema. O presidente Sarney adotou uma retrica anti-Fundo, ao

    declarar em setembro de 1986 " descartando o fato de que o Brasil de fato no cumpria

    nenhum plano com a instituio " que "as frmulas do FMI para o Brasil simplesmente

    no funcionam. Elas nos conduziram mais dramtica recesso em toda nossa histria".3[3]

    2[2]

    Cf James M. Boughton, Silent Revolution: the International Monetary Fund, 1979-1989. Washington:International Monetary Fund, 2001, p. 373.3[3] Cf. Boughton, op. cit., p. 455.

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    A moratria declarada em fevereiro de 1987, envolvendo o pagamento de juros

    dos emprstimos de mdio e longo prazo dos credores privados, chocou o mundo e o

    FMI, mas de fato ela era inevitvel: a dvida total era ento de 121 bilhes de dlares e

    as reservas brutas tinham cado dramaticamente de US$ 9,25 bilhes no final de 1985

    para menos de 4 bilhes no momento da moratria. Uma renegociao indita " isto ,

    sem o aval do Fundo e sem um stand-by em vigor " tinha no entanto sido concluda com

    o Clube de Paris um ms antes, o que permitiu algumas acomodaes at que o ministro

    Funaro fosse substitudo por Luiz Carlos Bresser Pereira em abril de 1987. Este no

    pretendia renegociar com o Fundo antes de acomodar a situao dos banqueiros

    privados, aos quais pediu um novo emprstimo-ponte a taxa de juros zero: levou zero

    emprstimo. Seus encontros com funcionrios americanos para discutir seu plano de

    "debt relief" para o Brasil " de fato de "securitizao" da dvida " foi recebido com um

    "non-starter", a comear pelo prprio Secretrio do Tesouro James Baker, que recusou

    em setembro desse ano desvincular o esquema "voluntrio" de reduo de dvidas

    privadas dos arranjos com o FMI. O mais extraordinrio que esse esquema conceitual

    veio depois a ser consubstanciado no chamado Plano Brady, do nome do sucessor de

    Baker frente do Tesouro. O episdio revela, em todo caso, que o crdito poltico e

    financeiro do Brasil estava prximo de zero e, provavelmente, com poucas perspectivas

    de melhoria.

    Esse tipo de guerrilha financeira sem vitrias nem vencedores continuaria pelo

    resto da dcada, at que a gesto Marclio Marques Moreira na Fazenda, no princpio

    dos anos 1990, seguida mais adiante pela de Fernando Henrique Cardoso na mesma

    pasta " com Pedro Malan designado como negociador oficial da dvida externa "

    permitiu dar incio a uma nova fase no relacionamento do Brasil com a comunidade

    financeira internacional. Um pouco antes dessa poca, o Fundo e as prprias autoridades

    americanas j estavam convencidos que era preciso separar a estratgia do tratamento dadvida dos interesses dos banqueiros privados, o que foi logrado em 1989 atravs do

    Plano Brady, que previa precisamente uma estratgia mais flexvel para o "debt relief" e

    para o apoio do FMI aos novos esquemas de facilitao da renegociao dos crditos

    oficiais e dos emprstimos privados.

    No intervalo, o sucessor de Bresser na Fazenda, Mailson Ferreira da Nbrega,

    assinou uma carta de intenes com o Fundo, em junho de 1988, prevendo a negociao

    de um novo acordo stand-by e antecipando negociaes com banqueiros e o Clube deParis. Em agosto, o Brasil conseguiu sacar uma tranche de 365 milhes de DES de um

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    total de mais de 1 bilho aprovados, mas isso foi tudo. As turbulncias polticas do final

    do governo Sarney e as expectativas geradas pela nova Constituio, entretanto,

    minaram os esforos do ministro Mailson em prol de acordos consistentes e durveis

    com aqueles parceiros. Da mesma forma, uma carta de intenes negociada em

    setembro de 1990, j no Governo Collor, no teve implementao em virtude das

    demais inconsistncias do plano de estabilizao introduzido em maro desse ano. Mas

    o ministro Marclio Marques Moreira logrou concretizar um reescalonamento no mbito

    do Clube de Paris em 1992, mesmo sem dispor do aval do FMI.

    11. Encontros e desencontros dos anos 90: o FMI e as crises financeiras

    Com a presena de Fernando Henrique Cardoso na conduo dos negcios da

    Fazenda, a partir de maio de 1993, e uma brilhante equipe de assessores econmicos em

    postos estratgicos do governo Itamar Franco, foi possvel conduzir, pela primeira vez

    em muitos anos, um processo realista e consistente de ajuste estrutural que, via

    desindexao planejada da economia, acabaria levando ao plano Real, passando pela

    soluo parcial do problema da dvida em abril de 1994 e a subseqente suspenso

    oficial da moratria. Um acordo com o Clube de Paris em 1992 tinha contornado a

    situao dos crditos oficiais.

    O primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, eleito de forma espetacular

    em outubro de 1994, fundamentalmente em virtude do sucesso do Plano Real, inicia em

    1995 sua gesto com um desafio externo de grande amplitude: controlar os efeitos da

    crise do Mxico de dezembro daquele ano e garantir a manuteno da estabilidade

    cambial, o que foi obtido mediante pequeno ajuste na poltica de valorizao cambial do

    perodo inicial do programa de estabilizao. Introduziu-se o sistema de bandas e a

    prtica de correes ou ajustes ("minidesvalorizaes" disfaradas) dentro da banda, de

    maneira a compensar parte da eroso inflacionria e a valorizao de fato pela qualpassou o Real a partir de sua introduo nos segundo semestre de 1994. No plano

    internacional, o governo FHC comea a propor, mediante carta do presidente a seus

    parceiros do G-7, medidas de controle dos capitais volteis, tendo recebido uma certa

    receptividade em alguns setores.

    Ao mesmo tempo, entretanto, o G-7 tambm propunha a liberalizao dos

    movimentos de capitais, rea que nunca fez parte da jurisdio do FMI, consoante o

    esprito "keynesiano" que presidiu aos acordos de Bretton Woods, voltados basicamentepara a liberalizao dos pagamentos correntes ( excluso, portanto, dos fluxos

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    voluntrios de ativos). As autoridades monetrias brasileiras, a despeito de uma adeso

    conceitual ao princpio da liberalizao progressiva e cautelosa desses fluxos, no

    concordavam com a idia de abandonar de vez o monitoramento nacional desses

    capitais, uma vez que, escolado pelos desequilbrios persistentes que o Pas conheceu

    praticamente desde a inaugurao da repblica, o Brasil sequer tinha operado, quando

    da ratificao dos acordos de Bretton Woods, a liberalizao completa de seus

    pagamentos correntes (fazendo uso das excees previstas no Artigo 14 do convnio

    constitutivo do FMI, para derrogar s obrigaes previstas no Artigo 8, aceito

    integralmente apenas recentemente).

    O ministro da Fazenda Pedro Malan tambm expressou restries ao carter

    amplo do sistema de disseminao de dados, argumentando que sua divulgao poderia

    ser fator de instabilidade, em lugar de contribuir para a estabilizao dos mercados

    financeiros. Em todo caso, consoante seu novo papel internacional e de liderana na

    diplomacia dos pases em desenvolvimento mais dinmicos, o Brasil foi convidado em

    1996, junto com outros sete pases emergentes, a ingressar no BIS (o que foi efetivado

    em 1997), assim como a participar, mais tarde, de esquemas restritos de discusso das

    turbulncias financeiras (como o G-22 e o G-20).

    Comeando pelo Mxico em 1994-95, continuando na sia dois anos depois,

    estendendo-se Rssia em agosto de 1998 e logo em seguida ao Brasil, uma srie de

    crises financeiras abalou o sistema internacional. Elas no foram as primeiras, nem

    sero as ltimas de uma srie que Charles Kindleberger chamou de "manias, pnicos e

    colapsos" do capitalismo. 4[4] Os mercados geralmente funcionam, mas eles podem

    enfrentar rupturas, o que requer interveno governamental para prover estabilidade. O

    dilema que se os mercados sabem que alguma ajuda vir, eles vo quebrar mais

    freqentemente e funcionar de maneira menos eficiente. Este o debate atual em torno

    do chamado moral hazard, comportamento de risco dada a existncia de um "salvador".

    12. Outubro-dezembro de 1998: o Brasil volta ao FMI

    Quando a crise financeira internacional atingiu igualmente o Brasil, no

    seguimento da moratria russa de agosto de 1998, e ameaou propagar-se a outros

    pases emergentes, o sistema internacional ficou ele prprio sob risco de colapso, o que

    4[4] Cf. Charles Kindleberger,Manias, panics, and crashes: a history of financial crises. New York: BasicBooks, 1978.

  • 7/31/2019 Diplomacia Financeira - o Brasil e o FMI

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    levou a reunies de emergncia das autoridades do G-7 e do FMI. 5[5]Um pacote de

    ajuste fiscal, estritamente monitorado pela instituio foi a condio essencial para se

    lograr uma ajuda financeira do FMI e de pases-membros do G-7 e do BIS.

    Essa ajuda inaugurou uma nova modalidade de interveno das instituies

    financeiras internacionais, j que se tratava de disponibilizar recursos para reforar as

    reservas internacionais do Brasil em carter preventivo, ou seja, antes que se

    manifestasse uma inadimplncia de fato, seguida de eventual decretao de moratria,

    como no caso anterior da Rssia. Ela antecipou a utilizao da chamada Supplemental

    Reserve Facility (SRF), instrumento de crdito inovador, pois que destinado justamente

    a evitar a sustentao ps-crise dos desajustes de balano de pagamentos.

    A montagem de um esquema de sustentao financeira em favor do Brasil

    tornou-se inevitvel quando, no bojo das crises asitica e russa, os capitais de

    emprstimo e de crdito comercial tornaram-se repentinamente escassos, operando-se,

    ao contrrio, uma retirada em massa de volumes considerveis de recursos antes

    aplicados de forma voluntria na economia brasileira. As reservas brasileiras

    comearam a diminuir de forma dramtica, de algo como 72 bilhes no perodo anterior

    crise russa para menos de 40 bilhes em meados de novembro de 1998. A

    dependncia financeira do Brasil ficou evidenciada a partir de 1996, quando o dficit

    nas transaes correntes atingiu cerca de 3,27% do PIB, de um patamar relativamente

    confortvel de aproximadamente 0,3% no comeo do Plano Real. Em novembro de

    1998, o dficit acumulado em doze meses j atingia 34 bilhes de dlares, ou seja,

    4,43% do PIB, colocando em relevo a necessidade de um aporte suplementar de

    recursos institucionais, adicionalmente ao volume de investimentos diretos e de aportes

    por motivo de privatizaes (que em 1998 atingiram, de forma conjunta, um volume

    recorde de 24,5 bilhes de dlares).

    O pacote de ajuda, anunciado finalmente em 13 de novembro de 1998, tinhasido montado em plena assemblia anual das instituies de Bretton Woods, no ms de

    outubro, e complementado por contatos diretos das autoridades financeiras do Brasil

    com seus parceiros das principais economias desenvolvidas e com funcionrios do FMI.

    Ademais de 9 bilhes de dlares das instituies multilaterais de crdito (BIRD e BID),

    o Brasil se habilitou a receber cerca de 20 bilhes de dlares no espao de trs meses a

    partir de novembro de 1998 e at 32 bilhes no prazo de um ano, do FMI e de membros

    5[5] Ver o livro de Paul Blustein, The Chastening: Inside the Crisis that Rocked the Global FinancialSystem and Humbled the IMF. New York: Public Affairs, 2001

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    do BIS, dependendo do nvel de suas reservas internacionais e do grau de

    implementao do pacote de ajuste fiscal. Ele se comprometeu ento a manter uma

    firme disciplina monetria, mas preservou os fundamentos de sua poltica cambial,

    baseada num regime flexvel de desvalorizaes internas a uma banda de flutuao

    administrada pelo Banco Central. Esse regime cambial seria, em janeiro de 1999,

    radicalmente alterado em sua forma de funcionamento, no decorrer da crise sucessiva

    do modelo implantado em julho de 1994 e ligeiramente ajustado em abril de 1995,

    adotando-se a partir de ento um regime de flutuao que revelou-se relativamente

    satisfatrio.

    O carter original do pacote de apoio financeiro das instituies internacionais

    e do grupo de 20 pases que dele fizeram parte se situou em seu carter hbrido,

    concebido parcialmente como acordo stand-by clssico e, de maneira indita,

    parcialmente como um instrumento de tipo preventivo, podendo ser acionado sem as

    condicionalidades normalmente associadas a esse tipo de acordo. Em outros termos,

    parte dos recursos foi liberada para integrar as reservas do Brasil, independentemente da

    necessidade de cobertura de obrigaes cambiais imediatas. Outras caractersticas

    inovadoras foram o maior custo de uma parte do dinheiro disponibilizado " em relao

    s taxas normalmente praticadas pelo FMI ", exigncia vinculada s condies sob as

    quais o Congresso dos Estados Unidos aprovou o pacote de recursos adicionais para a

    recomposio do capital do FMI e para a integralizao dos "New Arrangements to

    Borrow", estes adicionais aos recursos providos sob o "velho" esquema dos General

    Arrangements to Borrow (GAB, isto , acordos gerais de emprstimos entre bancos

    centrais), administrado geralmente no quadro do BIS.

    Durante a montagem do pacote, que foi revisto em maro de 1999 para acomodar

    a desvalorizao da moeda brasileira e a mudana de regime cambial, muito se falou

    sobre a participao do setor privado, ou seja, o eventual envolvimento de bancoscomerciais na criao de um fundo adicional de contingncia para utilizao pelo Brasil

    e outros pases eventualmente necessitados. No foi possvel lograr acordo sobre os

    aspectos metodolgicos dessa participao proporcional dos grandes bancos comerciais,

    inclusive porque essa perspectiva estava levando essas instituies a diminurem

    preventivamente sua exposure no Brasil, comportamento que resultou na brutal reduo

    adicional, entre 1998 e princpios de 1999, das linhas de financiamento e de crdito

    comercial normalmente utilizadas pelas empresas para sustentarem investimentos eoperaes de comrcio exterior.

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    A recuperao econmica, na esteira da desvalorizao, foi bem sucedida e, em

    abril de 2000, o Banco Central anunciou a queda dos juros e o pagamento antecipado

    (10 bilhes de dlares) dos montantes sacados (20 bilhes) sob o pacote de 1998. Em

    meados de 2001, contudo, com o agravamento da crise argentina e o aparecimento de

    novas incertezas nos mercados financeiros, o Brasil retirou nova "fatia" da linha de

    crdito stand-by ainda aberta, agregando 2 bilhes de dlares s disponibilidades

    liberadas pelo acordo com o FMI. Para o Brasil, a deteriorao argentina, combinada a

    problemas conjunturais " crise energtica " e a dificuldades estruturais " como a baixa

    competitividade externa, a despeito da desvalorizao " representou uma ameaa real ao

    equilbrio de um ciclo que vinha prometendo uma fase virtuosa.

    A poltica monetria, confrontada uma vez mais ameaa de presso

    inflacionria" em funo da queda no cmbio, entre outros fatores " teve de fazer apelo

    novamente prtica dos juros altos, como forma de evitar uma excessiva fuga de

    capitais. Nessas condies, comeou a delinear-se a continuidade do programa de

    assistncia financeira do FMI, que normalmente deveria encerrar-se em novembro de

    2001, o que foi efetivamente implementado em agosto desse ano, mediante novo acordo

    preventivo prevendo a liberao de mais de 15 bilhes de dlares, para reforo de

    reservas internacionais e garantia contra novos ataques especulativos contra o real. Pela

    utilizao desse emprstimo, o Brasil estava pagando entre 4,5% e 5% de juros anuais

    por 25% do valor do emprstimo e 7,5% pelo restante.

    Esse novo acordo de emprstimo por parte do FMI " equivalente a cerca de 400%

    da cota do Brasil junto ao Fundo e vlido para o perodo de setembro de 2001 a

    dezembro de 2002 " deveria permitir cobrir, pelo menos parcialmente, as necessidades

    em divisas decorrentes de pagamentos devidos pelo servio da dvida, pela amortizao

    de ttulos que venham maturidade nesse perodo, bem como outras necessidades da

    balana de transaes correntes, se os investimentos diretos no atingissem patamaressatisfatrios em termos de volume e ritmo de entrada. Somados aos recursos disponveis

    nas prprias reservas do Pas, bem como aos fluxos e disponibilidades das instituies

    multilaterais de crdito, esse montante deveria dar um horizonte de segurana

    administrao das contas pblicas e externas do Brasil. De fato, a situao conheceu

    relativa estabilidade, a ponto de o Brasil se permitir pagar antecipadamente ao FMI, em

    abril de 2002, cerca de 4,2 bilhes de dlares, um montante similar ao que ele havia

    sacado preventivamente em setembro de 2001.

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    Em meados de 2002, no entanto, com o recrudescimento da crise no Cone Sul "

    inexistncia total de qualquer acordo entre a Argentina e o FMI, drenagem quase

    completa do sistema bancrio uruguaio, com fechamento de agncias e bloqueio de

    depsitos, como na Argentina, alis ", ademais das incertezas derivadas do processo

    eleitoral brasileiro " que tendia a favorecer os candidatos presidenciais da oposio " ou

    do chamado "terrorismo econmico" provocado pelo pnico de inadimplncia brasileira

    junto aos chamados "formadores de opinio do mercado" " tambm conhecidos como

    "especuladores de Wall Street" " o Brasil se viu novamente engolfado na voragem da

    crise financeira, com um declnio abrupto e significativo da paridade do real em relao

    ao dlar. J no ms de junho, o governo decidiu sacar cerca de 10 bilhes de dlares do

    acordo em vigor, e obteve do FMI a reduo do montante requerido como reservas de

    garantia (que ento passaram de 20 a 15 bilhes de dlares).

    Com a deteriorao do cenrio financeiro, o governo optou por negociar em pleno

    perodo eleitoral, como tinha ocorrido em 1998, um novo acordo de sustentao

    financeira com o FMI, acertado em 7 de agosto de 2002, previamente a sua aprovao

    pela diretoria executiva do Fundo em setembro seguinte. Segundo o novo acordo, que

    substituiu o anterior e foi o terceiro concludo nas duas administraes FHC, o Brasil

    passou a dispor, por um perodo de 15 meses a partir de sua assinatura, de cerca de 30

    bilhes de dlares adicionais (em torno de 23,4 bilhes de DES) para utilizao em caso

    de necessidade, sendo que 20% desse valor (em torno de 6 bilhes de dlares) poderiam

    ser utilizados j em 2002. Em estipulao suplementar ao acordo, o piso das reservas

    em divisas foi reduzido em 10 bilhes de dlares (para apenas 5 bilhes), o que liberou

    de imediato quantia equivalente para utilizao na eventual amortizao de obrigaes

    externas do Pas ou para reforo das operaes de interveno do Banco Central no

    mercado cambial. Registre-se contudo que, em junho de 2003, o Brasil deve devolver

    cerca de 10 bilhes de dlares desse emprstimo. Em contrapartida, para garantir asustentao fiscal dos novos arranjos, o Brasil se comprometeu a manter o nvel do

    superavit primrio em 3,75% do PIB em 2003 e sua previsvel reconduo nas diretrizes

    oramentrias de 2004 e 2005. Pouco depois de acertado esse pacote, o Banco

    Interamericano e o Banco Mundial anunciaram igualmente que estavam estendendo

    novos crditos ao Brasil.

    13. O Brasil, a globalizao financeira e o sistema de Bretton Woods

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    Que lies podem ser retiradas das crises financeiras internacionais dos anos 90

    e incio do novo milnio e qual o papel que nelas assumiu o FMI? Como pode a

    comunidade internacional conviver com a realidade dos capitais volteis e que tipo de

    medida, se alguma, poderia ser introduzida para combater seus efeitos indesejados?

    Pode-se pensar na introduo de mecanismos e instrumentos para controlar os

    movimentos de capitais, a exemplo do que se fez na Malsia no auge da crise e do que

    prope a "Tobin tax", um hipottico imposto sobre os capitais especulativos ? Os

    programas de ajuste do tipo dos propostos pelo FMI so convenientes ou resguardam a

    soberania nacional em matria econmica?

    O pensamento de esquerda, obviamente, prefere ver as "razes estruturais" das

    crises financeiras na volatilidade de capitais e na instabilidade dos mercados

    financeiros, numa era de globalizao incontrolada e de capitalismo predatrio,

    propondo em conseqncia o retorno aos controles de capital e a centralizao cambial,

    com tendncias explcitas ao protecionismo comercial. Os prprios responsveis do G-7

    reconhecem que se deve propor medidas concretas para diminuir os eventuais efeitos

    nefastos da globalizao, que no recusada, mas que tender doravante a ser

    promovida de maneira mais cautelosa, pelo menos na vertente financeira. Em seu

    acompanhamento rotineiro das economias dos pases membros " exames sob a gide do

    Artigo IV ", o FMI sempre adverte para a inconsistncia dos indicadores em

    determinadas reas, mas a entidade no pode, por vontade prpria, substituir as

    autoridades nacionais na implementao das medidas requeridas.

    No que se refere "Tobin tax", a condio essencial de sua eficcia parece

    residir em seu carter universal, o que pode ser difcil de assegurar. Medidas para

    "controlar" capitais volteis, a exemplo do que se tentou na Malsia, nem sempre so

    eficazes, cabendo aos prprios pases interessados diminuir a dependncia de fundos de

    curto prazo, equilibrar sua base fiscal e oramentria e corrigir eventuais distorescambiais ou de competitividade que podem afetar o estado das transaes correntes. O

    atual debate sobre uma "nova arquitetura do sistema financeiro internacional", efetuada

    inicialmente no mbito indito de um G-22 (de que participou o Brasil), sugeriu

    medidas preventivas e de correo dos principais desequilbrios associados

    globalizao dos fluxos financeiros, mas ele dificilmente elude a necessidade de que

    cada pas mantenha uma boa gesto de seus "fundamentals".

    Uma consulta aos trabalhos e declaraes do G-7 e das instituies financeirasinternacionais no perodo anterior crise e no seu seguimento imediato revelaria, de

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    fato, uma preocupao primacial com ameaas localizadas de desestabilizao que

    possam representar riscos de crises sistmicas. No perodo subseqente, foram

    acelerados os debates e tomadas providncias prticas em diversas reas: no prprio

    FMI, atravs de um sistema de disseminao de dados por meio da Internet e de fundos

    emergenciais; no BIS, pela reviso e reforo das medidas prudenciais relativas a

    crditos e emprstimos bancrios. Ampliou-se tambm o sistema de consultas e de

    "preveno" em vrias esferas: no prprio G-7, no G-10, na OCDE e em encontros

    informais, como o esforo patrocinado pelos EUA no mbito do G-22, congregando os

    pases dos G-7 e de quinze outras economias emergentes (entre elas o Brasil) na

    definio de uma "nova arquitetura do sistema financeiro internacional". Em outubro de

    2000, o novo Diretor-Gerente do FMI, Horst Kohler, convidou um seleto grupo de

    consultores informais, entre eles o presidente do Banco Central do Brasil, para

    participar de um esforo de reflexo dedicado reviso da atuao do Fundo no setor

    financeiro e de mercado de capitais.

    Um aspecto eventualmente "positivo" dessas crises financeiras pode ser

    localizado, no plano institucional, no reforo das tendncias cooperao internacional

    em matria regulatria " como revelado no programa de trabalho do G-20. nova

    instncia de coordenao informal de medidas tendentes a reformar, consensualmente, a

    chamada "arquitetura financeira internacional" " e, em termos prticos, numa nova

    legitimidade atribuda s medidas de interveno nos mercados. Entretanto, nunca se

    viu com bons olhos o estmulo criao de "fundos regionais", alm do GAB-NAB

    (new arrangements to borrow, introduzidos em 1997) e das modalidades clssicas de

    interveno do FMI (agora reforadas por um mecanismo emergencial), para

    sustentao de economias temporariamente em dificuldades.

    A eventual implementao de "fundos de contingncia" de mbito regional

    sempre foi recusada pelos pases do G-7, uma vez que isso poderia aumentar o grau demoral hazard " ou de irresponsabilidade poltica " na conduo das polticas

    macroeconmicas nacionais e das prprias estratgias de lending das instituies

    financeiras privadas. Essa hiptese, aventada pelo Japo na primeira fase da crise

    asitica e depois pelo Brasil no bojo da terceira fase dessa crise, depois da moratria

    russa, parece hoje afastada dos esquemas de sustentao financeira em elaborao " pela

    pssima reao despertada na Europa, nos EUA e no FMI ", muito embora os pases

    asiticos, membros ou no da ASEAN, tenham procurado se "oferecer", recproca e

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    generosamente, linhas de crdito emergenciais, em condies facilitadas, ou seja algo

    como um NAB informal e temporrio.

    De forma geral, portanto, os esquemas de cooperao impulsionados pelo FMI

    no terreno institucional e pelo BIS, nos campos prudencial e de preveno e diminuio

    de desequilbrios graves nos sistemas financeiros nacionais, visam a diminuir os riscos

    de crises sistmicas, sem impedir os benefcios da globalizao, da liberalizao e da

    competio. A ideologia do chamado "consenso de Washington" continua a ser a da

    liberalizao dos fluxos de capitais, mesmo se se reconhece, atualmente, a necessidade

    de "salvaguardas" adequadas a movimentos errticos e desestabilizadores. Com efeito,

    em meio aos lances j dramticos da crise asitica, autoridades do G-7, reunidas em

    Hong Kong em outubro de 1997, continuavam a proclamar o objetivo da liberalizao

    dos movimentos de capitais, mediante processo de reforma do convnio constitutivo do

    FMI, que deveria culminar nas reunies de 1998. O agravamento da crise naquela

    regio, sua extenso preocupante Rssia e seus efeitos nefastos na Amrica Latina

    afastaram tal deciso, sem que diversos representantes das instituies de Bretton

    Woods deixassem de proclamar a inteno ltima de, a despeito das turbulncias,

    impulsionar uma substancial abertura e liberalizao dos mercados financeiros e de

    capitais.

    Essa agenda "liberal" de globalizao financeira combina-se com a crescente

    afirmao da necessidade de crescimento e desenvolvimento para todos as economias,

    em especial a dos pases mais pobres. Aqui, se chegou a proclamar, desde a assemblia

    do FMI de Washington, em outubro de 1996, uma "parceria global" para o

    desenvolvimento, objetivo que deve ser entendido no contexto dagood governance, dos

    direitos humanos e da luta sem trguas contra a corrupo. O G-7 instruiu seus

    representantes na OCDE a finalizarem uma conveno sobre medidas penais aplicveis

    em caso de corrupo da parte de funcionrios governamentais, que foi efetivamenteconcluda em dezembro de 1997, inclusive com a assinatura do Brasil. Para os pases

    mais pobres, as "boas notcias" foram, no plano multilateral, a implementao da HIPC

    initiative (Highly Indebted Poor Countries, programa da reduo das obrigaes de

    pagamento da maior parte da dvida externa das economias mais pobres altamente

    endividadas), a continuidade do ESAF (Enhanced Structural Adjustment Facility), um

    aumento e reviso das quotas sem afetar seus direitos nos boards dessas instituies

    (medidas adotadas em Hong-Kong), assim como a promessa do G-7 de continuar oprograma de reduo das dvidas oficiais. O Brasil teve modificado para baixo (mas

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    muito pouco) seu poder de voto no FMI, em virtude de um aumento no exatamente

    equiproporcional das quotas, mas preservou sua representao. Pouco depois, ele

    lograva contudo um pequeno aumento (de 1,7 a 2,2% do capital total) em sua

    participao acionria no Banco Mundial, assegurando assim uma "cadeira cativa" no

    diretrio dessa instituio.

    De forma geral, as crticas formuladas contra o FMI refletem, paradoxalmente,

    um "consenso" entre a esquerda indignada e a direita isolacionista e "liberal"

    outrance, ambas interessadas em solapar o "poder", a seus olhos irresponsvel e

    usurpado, que deteriam as instituies financeiras internacionais em geral e o FMI em

    particular. Embora bem-vindas de um ponto de vista conceitual, pois que servindo a

    aperfeioar os parmetros analticos e prescritivos do receiturio do FMI, essas crticas

    no apresentam muito valor operacional, uma vez que, no h, no momento atual,

    nenhuma alternativa mais adequada ao papel desempenhado pelo FMI em casos de

    desequilbrio temporrio de balana de pagamentos. Pode-se contudo pensar, no mdio

    prazo, numa mudana em sua forma de atuao, o que poderia ser facilitado pela nova

    convergncia de interesses entre pases do G-7 e mercados emergentes em torno de uma

    agenda que recusa as formas mais extremadas de liberalizao dos mercados financeiros

    (a recusa do "fundamentalismo de mercado", como criticado pela esquerda). No se

    descarta, contudo, a necessidade, para todos os pases, de serem mantidas polticas

    slidas na reas fiscal, monetria e cambial, assim como a continuidade das polticas de

    aperfeioamento dos sistemas de vigilncia e de administrao de crises localizadas nos

    sistemas financeiros e bancrios (com a eventual aplicao do princpio do

    monitoramento, pelo FMI e pelo BIS, dessas medidas prudenciais), como garantia da

    manuteno de um equilbrio estvel em suas economias.

    As turbulncias observadas nos mercados financeiros em 1997 e em 1998, e

    novamente em ao, ainda que de forma moderada, no decorrer de 2001, testaram nomais alto grau a capacidade das autoridades econmicas do Brasil de lidar com os

    efeitos sistmicos da volatilidade dos capitais, potencialmente suscetveis de abalar os

    fundamentos da poltica monetria e principalmente as condies de equilbrio de uma

    balana de pagamentos fragilizada pelos dficits crnicos das transaes correntes. A

    conseqncia mais importante foi, sem dvida alguma, o abandono da poltica de

    estabilidade cambial em 15 de janeiro de 1999 e a adoo, desde ento, de um regime de

    flutuao da paridade do real, cujos parmetros no mais seriam definidos por umabanda de flutuao, mas por uma suposta atuao livre dos mercados (com intervenes

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    pontuais das autoridades monetrias em caso de necessidade). Numa primeira fase, o

    Plano Real e a poltica das autoridades financeiras de ajuste ortodoxo passaram por um

    severo teste, considerando-se os custos temporrios e setoriais introduzidos pelos

    "pacotes fiscais" e pelo aumento brutal dos juros em matria de reduo das

    expectativas de crescimento e de diminuio das condies de investimentos e,

    portanto, de gerao de empregos, para o conjunto da economia brasileira. Numa

    segunda fase, a nova poltica de metas inflacionrias (inflation targetting) foi submetida

    a estreito monitoramento por parte dos mercados e analistas especializados, podendo-se

    dizer que os resultados foram bem melhores do que o esperado.

    Em todo caso, o Brasil ter de continuar administrando essa agenda interna de

    ajuste fiscal e de reduo monitorada das taxas de juros, ao mesmo tempo em que lida

    com as novas demandas externas em matria de coordenao das polticas econmicas

    no mbito do Mercosul e de abertura continuada de seu sistema econmico, em especial

    no setor financeiro. Observe-se em todo o caso que o Brasil, apontado em diversas

    ocasies, como the next one das turbulncias financeiras, saiu-se relativamente bem nos

    exerccios de conteno de crises bancrias, sobretudo porque suas autoridades

    financeiras tiveram a coragem de, recusando o debate "ideolgico", se colocar "contra a

    corrente" da aparentemente majoritria mainstream economics no que se refere

    liberalizao financeira e dos movimentos de capitais. Foram mantidos, por exemplo,

    mecanismos de controles de capitais a serem utilizados em situaes emergenciais,

    como de resto as autoridades financeiras continuam a manipular instrumentos

    suficientes (depsitos compulsrios, por exemplo, ou aumento da taxao temporria

    via IOF) para contrabalanar movimentos bruscos na base monetria.

    Durante o perodo de estabilizao cambial, a fragilidade do dficit externo foi

    em parte contrabalanada com a qualidade das entradas de capital de risco, para

    investimento direto e participao no processo de privatizao. A continuidade dosprogramas de privatizao e de reforma do Estado, a dimenso do mercado interno e do

    Mercosul e a participao crescente em foros e negociaes econmicas relevantes tm

    confirmado o Brasil como um dos mercados emergentes mais atrativos para o investidor

    internacional. O alto endividamento interno pode representar uma ameaa economia,

    mas as oportunidades crescentes derivadas do processo de crescimento endgeno, da

    ampliao do mercado domstico, bem como o entendimento correto com as

    instituies de Bretton Woods parecem descartar, se no os riscos concretos de novasturbulncias financeiras ou cambiais, pelo menos os efeitos mais nefastos da

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    volatilidade dos fluxos de capitais. O acordo definido com o FMI estabeleceu o

    comprometimento das autoridades com uma rpida implementao do programa de

    ajuste fiscal, como condio para a concesso de ajuda financeira pelas instituies

    financeiras e por pases do G-7.

    Em resumo, como poderia o Brasil manter uma participao positiva nos

    debates em curso na agenda financeira internacional, em especial no que se refere

    definio de uma "nova arquitetura do sistema financeiro internacional"? Uma das

    respostas parece ser a tradicional recomendao da mainstream economics: continuar

    fazendo seu "dever de casa" em matria de ajuste fiscal, de melhoria dosfundamentals e

    capacitar-se, pelo seu prprio exemplo de continuidade da poltica de estabilizao, a

    oferecer um exemplo positivo de monitoramento satisfatrio da economia com

    continuidade do processo de crescimento. A capacidade do Brasil de influenciar a

    definio mesma dos novos mecanismos de estabilizao da economia mundial e,

    sobretudo, de participar de sua implementao efetiva manifestamente reduzida, mas o

    controle das nossas prprias turbulncias j representa, por si, uma contribuio

    significativa para a continuidade do processo de integrao regional no Mercosul e do

    "bom comportamento" da economia latino-americana.

    Nos pases dotados de slidas tradies em poltica externa e guiados por

    princpios claros no que toca seus interesses externos " como o caso do Brasil " as

    crises financeiras e os desequilbrios de balano de pagamentos no costumam

    influenciar ou proceder a mudanas bruscas nas grandes linhas da poltica externa.

    Trata-se claramente de fenmeno conjuntural, no suscetvel de transformar

    bruscamente a insero internacional do pas em questo. Naqueles, ao contrrio,

    guiados de maneira impulsiva, com lideranas autoritrias " como se viu em alguns

    pases da sia " essas crises podem afetar no apenas a maneira do pas em causa ver o

    mundo mas por vezes o prprio equilbrio poltico interno.Nos casos medianos, o impacto pode ser significativo, dependendo da

    qualidade dos lderes e das orientaes polticas em curso. Lideranas populistas ou

    esquerdistas tendem a ver uma "ameaa externa", "perdas internacionais" e outros

    efeitos negativos da globalizao. Lderes liberais e de direita tendem a ser mais

    complacentes com a influncia do capital estrangeiro na economia nacional. Num caso

    pode-se ter impulsos protecionistas " inclusive nos prprios pases exportadores de

    capitais " e fechamento efetivo de mercados; em outro, podem ocorrer atitudes maispassivas em face dos desequilbrios externos.

  • 7/31/2019 Diplomacia Financeira - o Brasil e o FMI

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    Em todo caso, no h reaes claramente delimitadas e unvocas. Tudo depende

    do grau de exposure do Pas e dos riscos percebidos, tanto pelos investidores

    estrangeiros, como pelos prprios agentes nacionais, que so alis os primeiros a buscar

    a segurana das aplicaes em moedas fortes em centros financeiros off-shore. So

    finalmente os cidados do Pas que acompanham a administrao diria da poltica

    econmica e que do incio, sem qualquer considerao "patritica" mais elaborada, ao

    chamadoflight to quality, isto , evaso de divisas e de recursos internos em busca de

    paragens mais seguras, ou menos intrusivas do ponto de vista fiscal e menos pesadas do

    ponto vista tributrio.

    Paradoxalmente, o dado prprio e distintivo das crises financeiras internacionais

    que elas so, na verdade, crises basicamente nacionais " derivadas da falta de

    confiana dos agentes, nacionais ou no, isso no importa muito " nos dados objetivos

    de uma economia (os fundamentals) ou na poltica econmica de um determinado

    governo, e que, a partir de um certo momento extravasam as fronteiras de um pas pelo

    chamado efeito contgio que essas perturbaes financeiras apresentam ao envolver o

    elemento fungvel das moedas. O Brasil passou por diversas crises desse tipo, em

    conseqncia de crises financeiras provocadas ou induzidas externamente e que foram

    magnificadas por erros econmicos prprios ou por desequilbrios acumulados nas

    contas internas.

    O registro histrico indica experincias variadas de inadimplncias e de

    moratrias, desde o Imprio aos dias atuais, sem um padro uniforme de

    comportamento. Em geral, o Brasil manteve seus compromissos externos, sem rupturas

    dramticas das obrigaes assumidas com os credores externos. Nenhuma dessas crises

    alterou dramaticamente a qualidade e a direo de sua poltica externa, mas todas elas

    influenciaram de algum modo os elementos de poltica econmica interna, num ou

    noutro sentido, desde o "funding loan" de Campos Sales em 1898 at a "denncia" doacordo com o FMI por Juscelino Kubitschek em 1958. A Histria no tem o dom de se

    repetir, mas ela sempre coloca desafios novos em circunstncias talvez no muito

    diferentes daquelas enfrentadas pelos nossos antepassados.

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    Anexos:Acordos e relaes do Brasil com o FMI, 1944-2002

    Quadro 1

    Brasil: histrico do relacionamento com o FMI, 1944-2002Data Etapas histricas do relacionamento Min. da Fazenda1944 Convnio constitutivo do FMI, em Bretton Woods A. da Souza Costa

    1946 Entrada em vigor do FMI; Brasil ratifica com excees (Art. 8) P. Correia e Castro

    1954 FMI concede aval para emprstimo do Eximbank dos EUA Oswaldo Aranha

    1955 Relatrio do FMI recomenda reforma cambial Eugnio Gudin

    1957 Apoio do FMI reforma tarifria brasileira Jos Maria Alkmin

    1959 Pres. J. Kubitschek rompe com o FMI por razes polticas Lucas Lopes

    1961 Renncia do Presid. Jnio Quadros interrompe acordo Clemente Mariani

    1965-72 Sucessivos acordos stand-by; relacionamento no politizado G. Bulhes/Delf. Netto

    1967 Reunies do FMI-BIRD no Rio de Janeiro; criao dos DES Delfim Netto

    1971 Fim do sistema de Bretton Woods; flutuao de moedas Delfim Netto1974-79 Crises do petrleo; vrios emprstimos bancrios comerciais M. H. Simonsen

    1982 Crise da dvida externa na Amrica Latina; programas de ajuste Delfim Netto(*)

    1984 Suspenso do acordo por no cumpri mento de metas Delfim Netto (*)

    1987 Moratria dos pagamentos externos; suspenso de crditos Dilson Funaro

    1991-92 Tentativas no exitosas de acordo; afastamento poltico Zlia Cardoso Mello

    1992 Retomada dos contatos, mas inexistncia de acordos Marclio M. Moreira

    1992 Brasil logra acordo com Clube de Paris sem aval do FMI M. M. Moreira

    04.1994 Brasil faz acordo com credores privados sem aval do FMI Fernando H. Cardoso

    1993-97 Relacionamento discreto, quase distante, mas sem politizao FHC-Pedro Malan

    1998 (out) Entendimentos com o FMI para um programa de ajuste fiscal Pedro S. Malan13.11.98 Acordo preventivo com desembolso de at US$ 41,5 bi Pedro S. Malan

    08.03.99 Ajuste ao acordo anterior em funo da desvalorizao cambial Pedro S. Malan

    05.04.2000 Reembolso antecipado dos crditos concedidos no acordo Pedro S. Malan

    28.6.01 Saque de US$ 2.007 bilhes (DES 1,6016 bi), do acordo de 1998 Pedro S. Malan

    03.08.01 Anncio da liberao de mais US$ 15 bi, em carter preventivo Pedro S. Malan

    23.08.01 Cancelamento do acordo de 1998 e pedido de novo acordo Pedro S. Malan

    14.09.01 Acordo stand-by at 12.2002: DES 12.144 bi (US$15.650 bi) Pedro S. Malan