Diários de Leituras - A Construção de Diferentes Diálogos

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Diários de Leituras - A Construção de Diferentes Diálogos

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    DIRIOS DE LEITURAS: A CONSTRUO DE DIFERENTES DILOGOS NA SALA DE AULA*

    Anna Rachel Machado **

    O leitor curioso e interessado aquele que est em constante conflito com o texto, conflito representado por uma nsia incontida de compreender, de concordar, de discordar conflito, enfim, onde quem l no somente capta o objeto da leitura, como transmite ao texto lido as cargas de sua experincia humana e intelectual. (Srgio G. Duarte, in Delmiro Gritti, Sobre o livro e o escrever, 2002: 156).

    Resumo: O objetivo central deste artigo o de divulgar, para alunos em formao, professores e pesquisadores de ensino de leitura, um instrumento eficaz para esse ensino, pouco conhecido no Brasil e no mundo: o gnero dirio de leituras. Para isso, desenvolverei as seguintes aes: a) discusso das possveis razes desse desconhecimento e do esquecimento desse gnero por parte dos experts elaboradores de prescries para o trabalho educacional, com base na teoria vigotskiana; b) apresentao de minha definio de dirio de leitura; c) discusso de uma concepo de leitura de base bakhtiniana, subjacente ao trabalho escolar com o dirio de leituras; d) sugesto de uma forma de orientar a produo dos dirios pelos alunos; e) sugesto de um modo de discuti-los e de avali-los; g) apresentao e discusso de trechos de dirios de leitura de alunos, exemplificando alguns dos fenmenos que ocorrem com a adoo do dirio de leituras para o desenvolvimento das capacidades de leitura dos alunos.

    Palavras-chave: dirio de leituras, gnero, dialogismo, compreenso responsiva ativa, ensino-aprendizagem.

    Introduo

    Todos ns, que exercemos o ofcio de professor no Brasil, estamos habituados a ouvir e a ler crticas permanentes sobre o ensino de leitura na escola, como se essa, sozinha, pudesse resolver os problemas do ensino brasileiro. Atualmente, com os exames de avaliao institucionalizados, vemos essas crticas aumentarem, com a divulgao espetacularizada dos resultados negativos que nossas crianas e jovens neles obtm, o que estaria, para muitos que aceitam a validade desses testes, revelando a falta do desenvolvimento de suas chamadas competncias de leitura ou de seu letramento

    * Agradeo a leitura atenta e aos comentrios de Maurcio rnica e de Llia dos Santos Abreu-Tardelli,

    que muito contriburam para a verso final deste captulo. **

    Professora do Programa de Estudos Ps-Graduados em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem LAEL da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo - PUC/SP.

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    funcional, afirmao essa que traz, em seu bojo, uma crtica aos procedimentos utilizados pelos professores para o ensino de leitura.

    Entretanto, dificilmente encontramos sugestes de formas alternativas para esse ensino, que possam substituir e/ou complementar o tradicional uso de questionrios de compreenso e interpretao ou da produo de resumos de textos. Foi exatamente essa ausncia que me levou a pesquisar, h mais de dez anos, a utilizao da produo dos chamados dirios de leitura como uma dessas formas alternativas. As concluses a que cheguei que, de fato, essa produo e sua posterior discusso na sala de aula configuram-se como artefatos disponibilizados pelo professor para seus alunos, artefatos esses que podem, quando apropriados pelo aluno, constiturem-se em verdadeiros instrumentos1 tanto para o desenvolvimento de suas capacidades de leitura quanto para a instaurao de novos papis para o professor e para os alunos nas aulas de leitura.

    Essas concluses no se baseiam apenas em teorias e pesquisas, mas, sobretudo, em minha prpria experincia de produtora de dirios de leitura e em vrias experincias didticas j desenvolvidas por outros pesquisadores e professores2. Dentre elas, destaco a que se encontra descrita e analisada no livro de minha autoria O dirio de leituras: a introduo de um novo instrumento na escola (Machado, 1998). Entretanto, estranhamente, a divulgao desse instrumento para o ensino-aprendizagem de leitura ainda no chegou at grande maioria dos professores brasileiros. Esse fato tem constantemente provocado questionamentos dos prprios professores e de alunos de cursos de ps-graduao, a quem, vez ou outra, levo a experienciarem o processo dessa produo em workshops ou em cursos especficos.

    As respostas que podem ser dadas a esse questionamento so vrias, mesmo que ainda parciais e sujeitas a revises. Fundamentalmente, considero que qualquer instrumento de ensino que seja desenvolvido e teorizado no ambiente acadmico s acaba por chegar aos professores por um processo de transposio didtica3 (Bronckart, 1993), que implica uma seleo e uma transformao dos conhecimentos cientficos em conhecimentos a serem ensinados, o que envolve desde as prescries institucionais que norteiam o trabalho do professor at os livros didticos que as seguem. Para a elaborao dessas prescries, normalmente so convidados, pelas instncias governamentais, experts das diferentes disciplinas, que, dentre suas atribuies,

    1 Estamos utilizando aqui os conceitos de artefato e instrumento, tal como os utiliza Clot (2004). O

    artefato pode ser qualquer ferramenta material ou simblica, disponibilizada pelos conceptores de um determinado trabalho para ser utilizado pelo trabalhados na realizao de uma determinada atividade de trabalho. Entretanto, esse artefato pode no ser utilizado, pode ser utilizado de uma forma diferente da prevista, s se tornando um real instrumento para a atividade, quando o trabalhador apropria-se do artefato, tomando-o para si e utilizando-o de acordo com suas reais necessidades e interesses. 2 Dentre inmeras, citamos algumas que j foram postas em pblico, como a de Buzzo (2003) e Coelho

    (no prelo) e outras que ainda no se encontram divulgadas, como as de Gama (2003-2004), no curso Dirio Reflexivo de Leitura: Morte e Nordeste na obra de Joo Cabral de Mello Neto, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; nas de Motta (2004), nos cursos de extenso da COGEAE, da PUC/SP, O papel do coordenador no processo reflexivo do educador e Educando para Cidadania - Escola e Incluso; nas de Souza (2002-2004), no Colgio de Aplicao da UFG, na de Baraldi (2002-2004), no curso de extenso da COGEAE, da PUC/SP, Leitura: do dever ao prazer? ; na de Conde (2004), em Oficinas de Leitura para crianas no Ncleo Scioeducativo da Seara Bendita. Atualmente, est sendo desenvolvido o Projeto O Dirio de Leitura e sua utilizao no II Ciclo de Formao da Escola Fundamental Plural,coordenado pela Prof. Dila Pires, que atinge 3000 alunos da escola pblica. 3 O termo transposio didtica por ns compreendido como o conjunto das transformaes que um

    determinado corpo de conhecimentos cientficos invariavelmente sofre, com o objetivo de ser ensinado, implicando, necessariamente, determinados deslocamentos, rupturas e transformaes diversas nesse conjunto de conhecimentos, e no como uma mera aplicao de uma teoria de referncia qualquer (Bronckart & Plazaola Giger, 1998)

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    selecionam uma determinada teoria de aprendizagem, determinados contedos a serem ensinados4, determinados procedimentos a serem desenvolvidos pelos professores, prefigurando os papis que professores e alunos devero assumir, as aes e as atividades a serem desenvolvidas para se atingir a finalidade educacional que lhes colocada pela instituio governamental como sendo a mais vlida.

    Evidentemente, toda essa seleo que se processa , inexoravelmente, determinada pelas preferncias tericas desses mesmos experts. Assim, vemos que nas reformas educacionais brasileiras levadas a cabo no final da dcada de 90, esses experts privilegiaram o ensino dos chamados gneros pblicos (BRASIL. MEC/SEF, 1998), esquecendo-se do valor heurstico da escrita dos chamados gneros privados5. Mesmo em relao ao ensino de produo dos gneros pblicos, no se tem dado a nfase necessria s dimenses e escolhas pessoais, ao do sujeito orientada a partir de si mesmo, apropriao do gnero por si e para si, sua estilizao, tudo isso sendo fundamental para sermos proficientes em um gnero pblico e sendo este o sentido maior da funo do signo para Vigotski: s quando verdadeiramente apropriado, que ele se constitui em um instrumento para o sujeito agir sobre o mundo e sobre si mesmo, fazendo desse si mesmo um objeto de pensamento e de ao.

    Alm da preferncia de nossos experts pelos gneros pblicos, parece ainda haver uma compreenso equivocada a respeito do dirio de leituras, que o leva a ser considerado como um gnero monolgico (como se pudesse haver esse tipo de gnero), no se reconhecendo que, mesmo que seja um gnero privado no processo inicial de sua produo, ele se configura como um artefato que pode tornar-se instrumento de reflexo, desencadeador de mltiplos dilogos internos e externos-, como veremos posteriormente. Alm disso, parece haver uma concepo errnea de que o dirio de leituras seria depositrio apenas dos sentimentos do leitor. Essa concepo sobre o dirio, embora no verdadeira, revela, implicitamente, um certo mentalismo e intelectualismo diretamente relacionados adoo de uma psicologia de fato cognitiva, mesmo que se declare, de forma explcita, a adoo da psicologia vigotskiana. Os que tomam essa posio, na verdade, negam o papel das emoes no desenvolvimento humano, no compreendendo que la tradition vygotskienne est tout entire attache llaboration dune thorie de la conscience, reliant, dans lactivit, la pense, le langage et les motions du sujet6 (Clot, 2000:15) e no levando em considerao a afirmao do prprio Vygotsky, segundo a qual Ce sont prcisment les passions qui constituent le phnomne fondamental de la nature humaine7 (Vygotsky, 1993/1998: 267).

    Alm da existncia dessas concepes errneas sobre o dirio de leituras, como algumas das respostas possveis no aceitao e no divulgao da produo de dirios de leitura para os professores, outra resposta ainda possvel, que est relacionada ao fato de no conhecermos, at hoje, nenhum autor estrangeiro que tenha desenvolvido um trabalho de pesquisa e de teorizao sobre seu uso na escola, tal como o fizemos. Essa inexistncia de autores consagrados do exterior que valorizem essa

    4 Exemplo mais claro disso a seleo dos elaboradores dos PCNs de Lngua Portuguesa para o Ensino

    Fundamental do conceito de gnero para ser transposto para o ensino. 5 Nessa linha de pensamento, Nickerson et al. (1985) consideram que a relao entre escrever e pensar

    dupla: ao mesmo tempo em que escrever exige pensar, escrever tambm um veculo para pensar. Em outras palavras, escrever no s desenvolver pensamentos totalmente completos, mas uma ao que fornece um meio para que esses mesmos pensamentos possam ser trabalhados. 6 a tradio vigotskiana est totalmente ligada elaborao de uma teoria da conscincia, relacionando,

    na atividade, o pensamento, a linguagem e as emoes do sujeito (traduo da autora). 7 So exatamente as paixes que constituem o fenmeno fundamental da natureza humana. (Traduo

    da autora.

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    produo, no lhe fornece uma chancela internacional, que, infelizmente, parece ainda ser decisiva para os rumos da pesquisa e da educao nacionais.

    Finalmente, essa no divulgao parece-nos ainda estar relacionada ao carter quase que ameaador revolucionrio mesmo da produo e discusso dos dirios de leitura, na medida em que, como veremos, a voz do aluno realmente despertada e na medida em que parecem ser poucos aqueles que verdadeiramente desejam ir alm dos slogans sobre democracia e cidadania na escola e que buscam atribuir ao professor outros papis que no os ditatoriais em sala de aula.

    Contra esse posicionamento, lembramos que a produo at mesmo de dirios ntimos, que escrevemos aparentemente para ns mesmos, uma prtica social bastante desenvolvida por um nmero muito significativo de escritores, filsofos e cientistas, que no se cansam de elencar as vantagens de sua utilizao para o desenvolvimento de sua escrita, de seu trabalho intelectual, de seu desenvolvimento pessoal. J nas pesquisas em educao, diferentes pesquisadores tm demonstrado que da maior importncia que os alunos mantenham dirios de aprendizagem, pois sua escrita seria eficaz para a aprendizagem de diferentes atividades de linguagem, assim como a produo de dirios pelos prprios professores seria um instrumento fundamental para lev-los a refletissem sobre suas prprias prticas. Desse modo, os dirios em geral so vistos como artefatos que podem se constituir em instrumentos para a descoberta das prprias idias, para o desenvolvimento da crtica e da auto-crtica, para o planejamento e preparao de um produto final, para a construo da autonomia do aluno e para o estabelecimento de relaes mais igualitrias entre os participantes das interaes escolares.

    Assim, neste artigo, busco mais uma vez divulgar a produo e a discusso de dirios de leitura na escola (ou em outras situaes de leitura) e esclarecer alguns de seus pontos controversos. Para isso, o captulo est dividido em cinco partes. Na primeira, mostro minha definio do gnero dirio de leitura, diferenciando-o de outros semelhantes a ele. Na segunda, apresento a concepo de leitura de base bakhtiniana que guia o uso do dirio de leituras em sala de aula, em contraste com a situao que aparentemente vigora no ensino de leitura em nossas escolas. Na terceira, sugiro uma forma de orientar a produo dos dirios dos alunos e, na quarta, uma forma de discuti-los e de avali-los. Finalmente, na quinta, apresento trechos de dirios de leitura produzidos no decorrer de uma experincia didtica por minha dirigida, para mostrar alguns dos fenmenos que podemos esperar que ocorram com o uso desse artefato para o desenvolvimento das capacidades de leitura dos alunos.

    1. O que e o que no um dirio de leituras

    Podemos dizer, em um primeiro momento, que o dirio de leituras um texto produzido por um leitor, medida em que l, com o objetivo maior de dialogar, de conversar com o autor do texto, de forma reflexiva. Para produzi-lo, o leitor deve se colocar no papel de quem est em uma conversa real com o autor, realizando operaes e atos de linguagem que habitualmente realizamos quando nos encontramos nessa situao de interao. Algumas dessas operaes e atos possveis so os seguintes: manifestamos nossa compreenso sobre o que nosso interlocutor nos diz; sintetizamos ou fazemos parfrases para confirmar nossa compreenso; quando no ouvimos bem, pedimos ao interlocutor que repita o que disse; quando no compreendemos alguma palavra, algum trecho ou o contedo global do que dito, pedimos esclarecimentos, perguntamos; pedimos justificaes para uma posio qualquer que nosso interlocutor toma diante de uma questo controversa; expressamos diferentes tipos de reaes racionais diante do que ele nos diz: concordamos, discordamos, avaliamos se o que

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    diz est de acordo com as normas sociais vigentes, julgamos se est bem expresso etc.; expressamos nossas emoes e julgamentos subjetivos sobre os contedos e sobre a forma como so expressos; relacionamos o que dito com nossas experincias pessoais ou com a de outras pessoas que conhecemos; damos exemplos de situaes similares; relacionamos o que nos dito com livros que j lemos, com msicas que ouvimos, com peas de teatro e filmes a que assistimos etc. Enfim, como vemos, so inmeras as aes e operaes de linguagem que desenvolvemos em uma interao com linguagem oral.

    Assim, caracterizada a produo do dirio de leituras como uma conversa com o autor do texto, ele se constitui como um texto de caractersticas dialgicas acentuadas, uma vez que no s institui um dilogo entre leitor e autor, mas tambm favorece o despertar do aluno para o dialogismo existente entre diferentes discursos verbais e no verbais que nos constituem, rompendo barreiras estanques entre diferentes domnios de conhecimento. Em sntese, ele leva os alunos a desenvolverem, por meio da escrita, diferentes operaes de linguagem que leitores maduros naturalmente realizam, quando se encontram em situao de leitura.

    Cabe aqui ainda distinguir o dirio de leituras de trs gneros com os quais ele se relaciona e com os quais pode ser confundido: as notas de leitura, os dirios ntimos e os resumos. Em relao s notas de leitura, feitas margem dos livros, ele se distingue delas, pois no constitudo apenas por sintagmas nominais separados, mas de frases completas, relacionadas umas s outras, por pouco que seja, o que obriga o leitor-produtor do dirio a desenvolver um pensamento mais complexo do que a que desenvolve com a simples anotao margem do texto. J em relao s diferenas entre o dirio de leituras e os dirios ntimos e os resumos, ela pode ser facilmente detectada, observando-se os trs trechos abaixo.

    Texto 1. Trecho de dirio de leituras

    Bem, volto ao texto de W. & N. Por que o ttulo me atraiu? bvio! Tenso ! Porque o que tenho vivido nas ltimas semanas. Tenso entre a possibilidade e a impossibilidade de fazer o que penso e quero que seja feito.(...) Ser um professor reflexivo - Na verdade, acho tudo isso muito estranho.

    Sempre fui assim, MAS POR QUE, DE REPENTE, ESSA TENSO MAIOR? O problemas na aula so mais ou menos os mesmos. As respostas mais ou menos as mesmas. Ser? Ser que no estou sabendo observar, avaliar? "Ver com olhos novos". (Oswald ). Ser que meus esquemas anteriores no esto permitindo? Acho que a avaliao melhor vir dos alunos que vivenciaram o primeiro e o segundo semestre. (...) A academia acaba com essa coisa chamada criao. De qualquer tipo que seja. Outro livro importante me vem cabea. Os ltimos Intelectuais", do Jacoby. Sabe quem so? Os nascidos antes de ns. A academia fez de ns "bancrios inteligentes". (...) Exato! Necessrio crucial reforms da Instituio, das normas, das condutas, dos espaos, de TUDO!! preciso ter espaos (fsicos, mesmo) para trocar.

    Texto 2. Trecho de resumo

    Canetti (1965) assinala que o aspecto positivo que encontra na manuteno do dirio o de ele possibilitar a fala consigo mesmo, ou com um outro "eu", que , nas suas palavras, "o interlocutor cruel". Para o autor, ao mesmo tempo em que

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    este seria o interlocutor mais exigente, apontando-nos nossas prprias mentiras e falsificaes, ele seria tambm o mais verstil, pois teria a possibilidade de assumir diferentes funes dialgicas. Assim, para Canetti, a prtica da escrita diarista deveria ter o carter de dilogo aberto e franco do escritor consigo mesmo, com suas mltiplas faces e com os outros que o rodeiam, dilogo em que no se deve permitir o adormecimento da auto-crtica, com o diarista tratando-se a si mesmo at mesmo com mais rigor que um outro o faria.

    Texto 3. Trecho de dirio ntimo

    Reflexo do dia inteiro: engraado como a solido de fato, verdadeira, me d uma certa calma, mesmo que seja um pouco melanclica. Tambm, no d pra no ficar melanclica ouvindo os Morlenbaum com o Sakamoto E a calma vem da necessidade de cuidar de mim mesma nos mnimos detalhes : de fazer compras, lavar roupa, lavar loua, economizar. Pequenos problemas concretos do cotidiano, que no deixam muito espao para o imaginrio, nem para a carncia. E talvez da distncia dos problemas dos outros nossa volta. E talvez do fato de se ter poucas coisas, poucas roupas, poucos acessrios, poucos sapatos, pouco espao pra comida, pouco de tudo. E talvez ainda da falta de Internet em casada desconexo com o mundo conhecido e com a conexo com outros mundos.

    Observe-se que, no trecho 1 (dirio de leituras), as vozes do leitor e do autor do texto lido se contrapem visivelmente, em um dialogismo explcito, como podemos ver a seguir:

    Autor: Ser um professor reflexivo Leitor: Na verdade, acho tudo isso muito estranho. Sempre fui assim, MAS PR QUE, DE REPENTE, ESSA TENSO MAIOR?

    s vezes, entretanto, essa dialogia envolve outros autores e to imbricada que no podemos nem mesmo separar, com absoluta certeza, a voz do leitor da voz do autor do texto lido, como no trecho A academia fez de ns "bancrios inteligentes". (...) Exato! Necessrio crucial reforms da Instituio, das normas, das condutas, dos espaos, de TUDO!! preciso ter espaos (fsicos, mesmo) para trocar. visvel a a voz de Paulo Freire em bancrios inteligentes, mas no sabemos se ela se encontra no texto lido ou se foi mobilizada pelo leitor. J na expresso Exato!, identificamos a voz do leitor, mas, em Necessrio crucial reforms da Instituio, das normas, das condutas, dos espaos, de TUDO!! preciso ter espaos (fsicos, mesmo) para trocar.

    J no trecho 2 (resumo), observa-se nitidamente que o leitor-produtor busca assinalar, repetidamente, que a responsabilidade enunciativa do autor do texto lido, marcando essa responsabilidade com a utilizao de discurso direto (Canetti assinala que...) ou com discurso segundo (para Canetti..., para o autor...). Enfim, no trecho 3 (dirio ntimo), no encontramos nenhuma referncia direta ou indireta a nenhum texto, mas sim, a vivncias e reflexes pessoais a partir dessas vivncias.

    Esclarecidas as diferenas entre esses trs gneros, mesmo que resumidamente, passemos discusso sobre a concepo de leitura que orienta o que concebemos como dirio de leituras e que guia a elaborao das instrues para sua produo e discusso.

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    2. O processo de leitura com compreenso X a situao do seu ensino na escola

    Em primeiro lugar, para discutir a concepo de leitura que adotamos, necessrio considerar que os estudos da sociologia e da etnologia da leitura mostram-nos que a leitura no pode ser mais vista como um ato solitrio de um indivduo isolado, mas como uma prtica social (Privat, 1995; Chartier, 1985/1993). Portanto, essencial que, em sala de aula, busquemos disponibilizar para nossos alunos o maior nmero possvel de artefatos que permitam a criao de espaos em que os diferentes discursos sobre a leitura possam circular, para que ela seja socialmente experenciada.

    J do ponto de vista sociocognitivo, quase consensual a idia de que a compreenso um processo de interao entre um leitor ativo e um texto, em que as caractersticas desse leitor interagem com as do texto para produzir uma significao que especfica ao contexto na qual a atividade de leitura se realiza. essa uma das razes pelas quais diferentes leitores tm compreenso diferenciada de um mesmo texto, assim como um mesmo leitor compreende um mesmo texto de forma diferente, conforme o contexto de leitura em que se encontre. Desse modo, necessrio termos claro que o contexto da leitura escolar, conforme aponta Dolz (1994), tem uma caracterstica particular, uma vez que sempre se caracteriza por apresentar um objetivo duplo: de um lado, o objetivo que o prprio texto projeta e, de outro, o objetivo da situao escolar na qual a leitura se desenvolve, que sempre o de se ensinar-aprender alguma coisa. Portanto, podemos compreender que no temos o mesmo processo de leitura quando lemos um artigo de opinio em casa, abrindo o jornal, por escolha pessoal, para conhecermos o posicionamento de um determinado colunista sobre o assunto polmico do dia, e quando lemos o mesmo artigo em sala de aula, xerocado ou no livro didtico, em obedincia a uma prescrio do professor, com a finalidade de fazermos uma determinada tarefa escolar.

    Lembremos ainda que, no processo de construo do significado, o leitor mobiliza diversas capacidades de linguagem que envolvem diferentes tipos de conhecimentos: conhecimentos sobre o mundo, sobre o funcionamento da linguagem em diferentes nveis, sobre os gneros de discurso etc. Em relao a esse ltimo tipo de conhecimento, em uma perspectiva bakhtiniana, j quase consensual entre os pesquisadores de ensino-aprendizagem de lngua materna e estrangeira a tese de que esse conhecimento essencial: Se conhecemos o gnero ao qual o texto a ser lido pertence, somos capazes de construir um conjunto de expectativas que guiam e facilitam a leitura, mais ou menos prevendo o que o texto nos dir. Por exemplo, quando comeamos a ler um romance e o identificamos como tal, assumimos uma espcie de contrato de leitura com o autor, que diferente do contrato estabelecido para a leitura de uma notcia de jornal. Enquanto que, para a leitura do romance, assumimos que estamos diante de um mundo ficcional em que as regras do mundo cotidiano no prevalecem; para a leitura da notcia, assumimos que se trata de um relato real de fatos recentemente ocorridos e em que, portanto, essas regras devem ser respeitadas.

    Ora, se a mobilizao de todos esses conhecimentos, da forma que o leitor j os tm, fundamental para a construo do significado, necessrio que, nas atividades de ensino de leitura, criemos situaes que provoquem essa mobilizao, assim como nos permitam detectar os conhecimentos e capacidades que os alunos ainda no tm ou no desenvolveram e que ainda devem ser explorados, expandidos e/ou desenvolvidos. Alm disso, o aluno deve ser sempre incitado a estabelecer relaes necessrias entre seus conhecimentos prvios e as informaes que o texto lhe traz.

    Entretanto, ao contrrio dessa concepo de leitura, que assumimos, anlises de interaes na situao escolar de leitura (Coracini, 1996) mostram-nos que, ainda hoje,

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    em muitos casos, podemos detectar a concepo de que o texto teria uma significao nica e imutvel, que teria sido depositada pelo autor "no texto", significao essa que poderia ser recuperada sem nenhum erro ou engano pelos bons leitores. Observa-se ainda que, freqentemente, o professor representado (e se representa) como aquele que conheceria a real significao do texto e como o mais capaz para recuper-la, enquanto o estudante aquele que deveria, por meio das prescries que lhe so dadas, recuperar a significao, que o professor ou o livro didtico estabelecem como sendo a "boa" ou a correta. Alm disso, os pesquisadores observaram ainda que, raramente, nas discusses dos textos em sala de aula, os estudantes expressam-se por sua prpria iniciativa e que quase nunca fazem uma avaliao sobre as atividades de leitura que lhes so propostas, no se criando espaos para que as diferentes histrias de leituras de cada aluno e suas diferentes interpretaes venham tona8.

    Ora, se queremos desenvolver as capacidades de leitura de nossos alunos, ser que essa forma de ensino adequada? Para podermos responder a essa questo, precisamos refletir um pouco mais sobre a questo da compreenso em geral.

    Para isso, retomamos a concepo desenvolvida por Bakhtin/Voloshnov (1929/1981), transportando-a para a questo da leitura em particular. Esses autores estabelecem a distino entre uma compreenso passiva e uma compreenso ativa, assinalando que a primeira no implicaria uma resposta do sujeito, enquanto a segunda seria uma verdadeira forma de dilogo, no qual, a cada palavra que estamos buscando compreender, fazemos corresponder uma srie de nossas prprias palavras, mesmo que apenas interiormente, sem expresso externa. Mais ainda, para eles, "quanto mais numerosas e substanciais forem essas palavras, mais profunda e real ser a compreenso" (Bakhtin/Voloshnov, 1929/1981: 131-132). Compreendemos aqui que, nesse processo, instaura-se um primeiro conflito, entre o que autor diz e o que o leitor lhe responde, ao interpret-lo.

    Partindo dessa distino entre esses dois tipos de compreenso, podemos afirmar que as atividades nas aulas de leitura, tal como caracterizadas por pesquisadores brasileiros, podem ser vistas como propcias ao desenvolvimento de uma compreenso mais passiva do que ativa e levantar a hiptese de que uma forma de transformar essa atividade seria a introduo de um novo artefato que pudesse nos auxiliar para essa transformao. Como em qualquer situao em que agimos com a linguagem, a situao escolar de leitura est sempre associada a um determinado gnero e, geralmente, a resumos e a questionrios de compreenso e/ou interpretao, que, da forma como tm sido utilizados, e sem a disponibilizao de outros gneros, parece estar contribuindo para a instaurao e manuteno dessa compreenso passiva.

    Esses dois gneros, como todos os demais, podem ser considerados como artefatos socialmente construdos, que, quando apropriados pelos sujeitos, podem se transformar em verdadeiros instrumentos interiores, podendo orientar, pelo menos em parte, o comportamento dos indivduos na situao em que se encontram e na qual devem agir (Schneuwly, 1994). Por esse raciocnio, ao transformarmos um determinado gnero, utilizado freqentemente em uma determinada situao, ou, ao substitu-lo por um outro, poderemos estar fornecendo um novo artefato, capaz de criar condies para a transformao do prprio modo de o indivduo se conduzir em uma determinada situao, quando ele se apropria desse artefato como instrumento interno para seu uso.

    8 Reconhecemos que grande esforo tem sido desenvolvido pelo MEC para a transformao dessa forma

    de ensino, sobretudo com o trabalho desenvolvido pelo PNLD e as aes levadas a cabo em oficinas dirigidas a professores da rede pblica de ensino. Entretanto, dada a arraigada fora dessas concepes, muito se tem de fazer ainda.

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    Nossa posio favorvel introduo da produo e da discusso de dirios de leitura na situao de leitura escolar deriva exatamente da crena de que elas podem levar alunos e professores a outras formas de conduta durante a atividade de leitura escolar e conduzi-los a uma compreenso mais dialgica ou mais ativa. Com isso, aos poucos, o processo dialgico desenvolvido com a escrita e a discusso do dirio pode ser totalmente apropriado pelo aluno, de tal forma que esse processo pode se desenvolver naturalmente em outras situaes, sem ser necessria a produo do dirio9.

    Posta nossa concepo sobre a leitura, a questo que nos resta responder a de como orientar essa produo e essa discusso, o que buscaremos fazer nas prximas sees.

    3. Como orientar a produo de dirios de leitura

    Em primeiro lugar, cumpre salientar que, em qualquer situao de ensino/ aprendizado, necessrio que os alunos saibam exatamente qual o objetivo da atividade que lhes proposta. No caso da produo do dirio, preciso que o professor deixe claro que seu objetivo central o do estabelecimento de um dilogo com o autor, de uma reflexo crtica sobre o que lido. Em segundo lugar, necessrio que os alunos se sintam realmente livres para exporem sua real compreenso sobre o texto e suas reais reaes diante dele. Dessa forma, o professor deve estabelecer um clima de confiana, procurando fazer com que os alunos no fiquem preocupados com a produo de um texto final, acabado, coerente, pelo menos em um primeiro momento, que no se preocupem em responder certo, em fazer o que o professor quer, que no se vejam diante de uma atividade pela qual sero avaliados pelo professor, por meio dos critrios usuais. Ao contrrio, necessrio criar condies para que eles consigam expor-se, conforme ilustramos ao relacionar o dirio de leituras com uma conversa, para que possam emergir os procedimentos reais desenvolvidos durante a leitura. Enfim, que levemos os alunos, nesse primeiro momento, a escreverem mais para si mesmos e para seus colegas do que para ns, seus professores.

    Para isso, de acordo com o nvel de escolaridade, de acordo com os objetivos que se quer atingir e ainda de acordo com os textos lidos, os professores devem conceber instrues claras que orientem seus alunos a:

    a) Indicarem o que julgam mais interessante no texto, tanto em relao forma quanto ao contedo.

    b) Exporem suas dvidas e posicionamentos diante do que o texto prope; c) Explicitarem em que o texto lido contribui para sua aprendizagem, para

    mudanas em sua prtica de leitura ou para a prtica de produo e mesmo para sua futura profisso;

    d) Relacionarem as informaes que o texto lhes traz aos diferentes tipos de conhecimentos que eles j tm, a diferentes discursos com os quais j entraram em contato, a suas diferentes experincias de vida etc.

    Ao final desse processo, os alunos relem seus dirios para selecionarem trechos que contenham observaes ou problemas que gostariam de expor e/ou de discutir com os colegas e com o professor. Dessa forma, preserva-se o carter privado da escrita diarista inicial, no se obrigando o aluno a expor publicamente o que no gostaria de expor.

    9 A conseqncia final da produo diarista expressa no final desse pargrafo derivada de minhas

    discusses com Llia dos Santos Abreu-Tardelli.

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    Caso o professor ainda tenha o objetivo de servir-se da produo do dirio para desenvolver capacidades de produo, os alunos podem ser orientados para reelaborarem seus dirios para torn-los pblicos. Nessa reelaborao, podero omitir o que no querem tornar pblico e seguir orientaes que transformem o dirio inicial em um texto de gnero pblico, como uma unidade comunicativa que apresente coerncia semntica e pragmtica. Nesse caso, o dirio inicial pode servir como ponto de partida para a elaborao de textos pertencentes a outros gneros, como por exemplo, de uma resenha crtica10.

    4. A discusso e a avaliao dos dirios

    Alm da prpria produo dos dirios, fundamental a discusso dos diferentes trechos dos dirios em classe, na qual a forma de conduzi-la pode levar todo processo a ser bem sucedido ou no. Nela, o papel do professor deve ser o de provocar a manifestao de todos, de organizar a discusso, ao mesmo tempo permitindo a expresso das diferentes relaes estabelecidas entre o texto e as vivncias pessoais, mas evitando que a discusso sobre o texto fique em segundo plano em relao a essas vivncias.

    Nesse papel, ele vai estabelecendo relaes entre as diferentes interpretaes, diferenciando-as ou aproximando-as, vai retomando os conceitos cotidianos expressos pelos alunos e reelaborando-os na forma de conceitos cientficos e generalizando-os a partir dos exemplos particulares que vo surgindo e de acordo com os objetivos perseguidos para cada texto lido. Seu papel ainda a de um leitor que, mesmo mais experiente, discute seu prprio dirio com os outros leitores, seus alunos, ouvindo-os atentamente e com eles, de fato, aprendendo.

    Nessa discusso, a exposio das diferentes interpretaes, das diferentes estratgias de leitura, dos problemas encontrados por alguns, das solues encontradas por outros para esses problemas fazem com que os diferentes discursos sobre uma mesma leitura circulem e sejam socialmente avaliados, podendo-se estabelecer conflitos e negociaes permanentes dos diferentes sentidos produzidos, podendo-se gerar, assim, o desenvolvimento contnuo do processo de leitura com compreenso ativa de cada participante, incluindo do prprio professor.

    Esse tipo de discusso implica ainda que o professor no se mantenha no papel de avaliador nico e irredutvel dos dirios, daquele que detm a boa interpretao, na forma tradicional de avaliao, em que se constitui como o nico juiz. Portanto, no devem ser atribudas notas ou conceitos aos dirios produzidos, o que lhes tiraria a condio necessria e essencial para sua produo, que a de permitir que, em um primeiro momento, os alunos se exponham livremente e no para o professor.

    Em substituio a essa forma tradicional de avaliao, o professor poder pedir os dirios - ou apenas uma parte deles, se os alunos assim o desejarem - para l-los, de fato, e responder a eles considerando-os como textos significativos e singulares. Se necessrias, as avaliaes e notas podem ser atribudas a partir de outras atividades derivadas da produo e da discusso dos dirios, como por exemplo, de produes de resenhas crticas.

    Definidas as orientaes possveis para a produo e a discusso dos dirios, mostramos, a seguir, alguns dados de uma experincia didtica com a produo de dirios de leitura para melhor clarificao do que podemos esperar de sua utilizao em sala de aula.

    10 Um exemplo dessa utilizao do dirio para a produo da resenha crtica pode ser encontrado em

    Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2004).

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    5. Fenmenos observados em dirios de leitura produzidos em uma experincia didtica

    Nos dirios de leitura, a escrita mais subjetiva do que em outros gneros relacionados leitura, como os resumos e respostas a questionrios, produzindo-se um texto em que aluno-diarista est diretamente implicado, isto , em que as marcas de subjetividade so muito acentuadas.

    Em relao ao destinatrio, esses dirios mostram que o aluno-diarista se coloca em uma verdadeira relao de dilogo com um interlocutor, que pode ser um(a) amigo(a), o dirio mesmo, o autor do texto lido ou a prpria professora (mas no papel de censora do aluno), tal como se pode ver no trecho Parabns, Paulo, voc passou no teste11. (G.8).

    Neles podemos encontrar uma srie de informaes sobre as estratgias de leitura que o aluno vai utilizando durante o processo de leitura, sobre as relaes que vai estabelecendo entre os seus conhecimentos prvios, entre os textos lidos, entre suas experincias de vida e o que o texto traz. Exemplo disso o trecho abaixo, em que a aluna-diarista, ao ler o texto A Paixo da Linguagem, de Paulo Leminski, estabelece uma relao entre uma das idias nele expostas a polaridade entre Yin e Yang na filosofia chinesa - e uma experincia de vida sua:

    Eu fao parte de um Corpo de Baile, e uma das nossas danas, que foi criao coletiva, se chama Yng-Yang e mostra como a vida flui nesse sentido (L.).

    Outro tipo de estratgia expressa a busca de objetivos para a leitura, como se pode ver no trecho a seguir:

    A partir da leitura do segundo texto, passei a tentar descobrir o que os dois possuiriam de comum. Afinal de contas, por que lemos esses dois textos? (M.).

    Observe-se que, nas discusses, extremamente produtiva a exposio dessas estratgias, que, quando positivas, podem levar outros alunos a se apropriarem delas, ao verem que so produtivas para seus colegas.

    Podemos ainda encontrar reflexes sobre dificuldades de compreenso dos alunos, como veremos no exemplo que vem a seguir, em que a aluna reflete sobre uma de suas dificuldades, mas no a atribui a uma incapacidade sua. Ao contrrio, assume um posicionamento crtico diante da estrutura do texto, o que demonstra que assume uma posio de leitora diferente da habitual na escola, em que o que escrito considerado sagrado e a dificuldade atribuda invariavelmente incapacidade do leitor-aluno. Assim, temos:

    O texto de Jabor, talvez por pegar os exemplos que pega (Xuxa, Rosane, Zlia e Erondina) dificulte a compreenso e a coeso do texto. Elas chamam a ateno por si s e faz com que os argumentos sumam, sejam engolidos por elas. (L.).

    11 Paulo refere-se aqui a Paulo Leminski, o autor do texto que havia sido lido.

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    Da mesma forma, os alunos parecem se sentir livres para fazerem avaliaes subjetivas sobre o texto, expressando seus sentimentos diante das leituras, como em:

    Como bom voc ler um texto satrico inteligente..." (E.2), ou em E saiba, professora, que adorei fazer esse texto. (J.1)

    assim como para expressarem suas dvidas em relao ao texto lido ou em relao a seu prprio texto, como se v, respectivamente, nos trechos:

    a) ...por que 'Dnouement'? O que isto significa? (D.9) b) ...tem piripaques e xiliques ( com x ou ch?). (I.6).

    Essa liberdade ainda permite que o aluno-diarista assuma sua posio diante do texto, at mesmo discordando das afirmaes do autor do texto lido, mostrando o conflito entre essas posies, conforme podemos ver no trecho que segue, no qual a aluna contesta um comentrio de Arnaldo Jabor sobre o excesso de trabalho que Xuxa teria:

    Excesso de trabalho? Quem trabalha mesmo a empresria". (E.6).

    Isso tudo acaba por deixar o aluno mais independente, mais responsvel por seu prprio aprendizado, o que se evidencia quando ele busca interferir diretamente no planejamento da atividade da classe, como se pode ver no trecho:

    Sugesto! Que tal fazermos uma criao coletiva? (L.).

    Como vemos, durante todo o transcorrer desse processo de produo e discusso, o professor pode ir acompanhando a construo de seu aluno como leitor, isto , o desenvolvimento de sua conscincia sobre suas prprias (in)capacidades de leitura e o desenvolvimento das capacidades de linguagem que podem torn-lo um leitor ativo e crtico.

    Assim, o professor pode desviar seu olhar do produto final da leitura como um fim em si mesmo, para observar o aluno, considerando-o como algum que se encontra em um processo de desenvolvimento de suas capacidades internas, que so relacionadas diretamente ao desenvolvimento de novas relaes sociais desencadeadas na atividade de produo e discusso dos dirios.

    Em suma, a produo e a discusso de dirios de leitura permite que o aluno dialogue com o texto, que coloque textos em dilogo, que dialogue com os colegas e com o professor, permitindo-lhe assumir e expressar sua voz. A voz autoritria que nega a emergncia dessa voz simplesmente CEGA o professor para essa que , talvez, a matria-prima mais preciosa de seu trabalho, o que traz conseqncias nefastas no s para o aluno negado, mas tambm para o prprio professor, que acaba por auto-impedir a sua prpria atividade educacional12.

    Referncias bibliogrficas

    BAKHTIN, M. (VOLOCHNOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. 2.ed.. So Paulo: Hucitec, 1981.

    12 Para essa ltima concluso contribuiu de forma decisiva a discusso desenvolvida com Maurcio

    rnica.

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    BRASIL. MEC/SEF. 1998. Parmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introduo aos parmetros curriculares nacionais. Braslia: MEC/SEF. Version PDF, no site www.mec.gov.br, consultado entre 01/08/2004 a 01/09/2004. BRONCKART, J.-P. (1993). Action theory and the analysis of action ineducation. European Association for Research on Learning and Instruction. 5th European Conference, Aix-en-Provence. (mimeo). BRONCKART, J.-P & PLAZAOLA GIGER, I. (1998). La transposition didactique. Histoire et perspectives dune problmatique fondatrice. La transposition didactique en franais: Pratiques, 97: 35-58. BUZZO, Marina. (2003). O dirio de leituras: uma experincia didtica na educao de Jovens e Adultos. So Paulo. 166 p. Dissertao (Mestrado em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem). PUC/So Paulo. CHARTIER, R. (org.). (1993). Pratiques de la lecture. Paris: Payot & Rivages, 1985. (Petite Bibliothque Payot. CLOT, Yves (2004). Comunicao oral. Curso Uma psicologia histrico-culural para a compreenso do trabalho em geral e das prticas educativas como trabalho. (20/09/04 a 24/09/2004). PUC/SP. CLOT, Y. (2000). La fonction psychologique du travail. 2 ed. Paris: PUF, 1999. COELHO, M. do C. P. (no prelo). Leitura de contos literrios por meio da produo de dirios de leitura e a contribuio desta produo para a internalizao das representaes que devem ser mobilizadas pelos aprendizes para a produo de artigos de opinio, Intercmbio, 2005. CORACINI, M. J. (org.). (1995). O jogo discursivo na aula de leitura: lngua materna e lngua estrangeira. Campinas: Pontes. DOLZ, J. (1994). Produire des textes pour mieux comprendre. In: Y. REUTER (ed.), ACTES DU COLLOQUE DE L'UNIVERSIT CHARLES-DE-GAULLE III. Les interactions lecture-criture. Neuchtel: Peter Lang: 219-241. MACHADO, A.R. (1998). O dirio de leituras: a introduo de um novo instrumento na escola. So Paulo: Martins Fontes. MACHADO, A.R.; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L. dos S. (2004). Resenha. So Paulo: Parbola. (Leitura e produo de textos tcnicos e acadmicos). NICKERSON, R. S., PERKINS, D. N. & SMITH, E. E. (1985). The teaching of thinking. New Jersey: Erlbaum. PRIVAT, J.-M. (1995). Socio-logiques des didactiques de la lecture. IN: Jean-Louis Chiss; Jacques David & Yves Reuter (direction). Didactique du Franais: tat dune discipline. Paris: Nathan: 133-145. (Pdagogie). SCHNEUWLY, B. (1994).Genres et types de discours: considrations psychologiques et ontogntiques. In: Yves Reuter (ed.), ACTES DU COLLOQUE DE L'UNIVERSIT CHARLES-DE-GAULLE III. Les interactions lecture-criture. Neuchtel: Peter Lang:155-173. VYGOTSKY (1993/1998).Thorie des motions. tude historico-psychilogique. Paris: LHarmattan.

    Abstract: this article aims at divulging to student-teachers, teachers and researchers who study reading, an efficient instrument to this teaching, not very well-known in Brazil and around the world: the genre reading diary. In order to do that, the following actions will be taken: a) discussing possible reasons for this lack of knowledge and for the forgetfulness of this genre by the experts who develop

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    prescriptions to the educational work, based on Vygotskys theory; b) presenting my own definition of what a reading diary is; c) discussing a reading conception, based on Bakhtin, that underlies the school work with the reading diary; d) suggesting a way to orient students towards the diaries production; e) suggesting a way to discuss and evaluate them; g) presenting and discussing parts of students reading diaries as well as exemplifying some of the events that happen, when we adopt the reading diary to develop students reading capacities.

    Keywords: reading diary; genre; dialogism; active responsive comprehension; learning and teaching.