13
O DIÁRIO DA EVA

Diario Eva

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Ilustração do livro de Mark Twain 'Diário do Adão & Eva'

Citation preview

Page 1: Diario Eva

ODIÁRIO

DA EVA

Page 2: Diario Eva

1

Tenho quase um dia de idade. Cheguei ontem. Pelo me-nos, é isso que penso. E com certeza que deve ser as-sim, porque se antes de ontem tivesse havido dia eu re-cordar-me-ia , ou então é porque não estive presente.

Naturalmente pode ter acontecido ter havido um dia de que eu não me tenha dado conta. Penso que a forma mais acertada é anotá-lo de imediato para não dar oportunidade a confusões, pois um instino secreto diz-me que , no futuro, estes pormenres serão importantíssimos para os historiadores. Eu sou uma experiência; uma experiência em estado puro. Ninguém pode entender tão profundamente quanto eu esta sensação de construir um simples ensaio. Acerca disto sinto-me profundamente segura. Afirmo que sou uma experiên-cia, e nada mais.

E, se sou uma experiência, serei o total dessa experiência? Serei o todo? Não, creio que não. O que me rodeia faz parte da mesma experiência. Eu sou a parte principal, não tenho dúvidas. Mas o resto também tem um sentido. A minha sobrevivência está assegurada? Deverei manter-me alerta e cuidar de mim? Isto que acabei de dizer parece-me ser o mais conveniente. Existe uma voz instintiva que me recomenda que esteja constantemente alerta, pois esta é a base de toda a supremacia. (Esta frase é muito feliz, dada a minha juventude.) Hoje, tudo me parece melhor do que ontem.

Efectivamente, com a pressa de concluir as coisas, as montanhas ontem fi-caram meio estropeadas e cheias de rugosidades. O aspecto de alguns vales era detestável, já que nelese se enconteavam muitos materiais e desperdícios. As obras de arte, nobres e sublimes, não devem depender das exigências de uma necessidade. E haverá obra de arte mais nobre e sublime do que este majestoso mundo?

Supreende-me como, apesar do pouco tempo disponível, o resultado se aproxima tanto da perfeição. É certo que temos muitas estrelas nalguns lugares e muito poucas noutros, mas tais excessos e carências poderão reme-diar-se gradualmente. Disso não há dúvida. A lua soltou-se ontem à noite. Foi escorregando e caiu para fora do sistema. Esta perda é lamentável. Sinto o coração despedaçado quando penso nisto. Entre as partes ornamentais da obra, nada há de tão belo como a lua, e nada está tão acabado como ela. É pena que não tivesse ficado bem presa! Se a pudéssemos recuperar... Mas como adivinhar onde caiu? Quem a encontrar vai, concerteza, ficar com ela. Desconfio que eu faria o mesmo.

A minha conduta assenta em príncipios de honestidade, mas começo a dar-me conta de que o amor pela beleza constitui o centro da minha vida.

Page 3: Diario Eva

Sinto uma verdadeira paixão pelas coisas belas. Dadas as circunstâncias, seria perigoso que me confiassem uma lua pertencente a outra pessoa, se essa pessoa ignorasse que a lua estava em meu poder.

De dia e com sol, eu devolveria uma lua que tivesse encontrado perdida, com medo que alguém me visse. Mas se a encontrasse de noite, inventaria desculpas para não a devolver, e ocultaria a minha descoberta ao resto do mundo.

São tão lindas e românticas as luas!Se tivéssemos cinco ou seis, eu nunca entraria no meu quarto e passaria as

noites debaixo de uma árvore a contemplá-las.Também gosto das estrelas. Queria poder agarrar algumas para pôr no cabelo.Mas acho que isso é impossível. Ficariam supreendidas por saberem a enorme

distância a que se encontram, já que, à primeira vista, parecem estar muito perto. Ontem à noite, por exemplo, quando sairam e eu as conhecia, agarrei num ramo para retirar algumas, mas o ramo não chegava lá e espantou-me muitíssimo.

Larguei o ramo e comecei a a tirar pedrinhas, mas não resultou. O que acon-tece é que sou esquerdina, falta-me a pontaria. Talvez que com um bocadinho de persistência tivesse conseguido o meu objectivo. Na verdade, devo dizer que utilizei recursos muito imaginativos, como o de fazer pontaria contra uma es-trela que não me agradava, para ver se o projéctil lá chegava.

Mas tudo se revelou inútil, ainda que me tivesse aproximado bastante do meu objectivo. Eu via a sombra de pedrinha entrar quarenta e até cinquetas vezes na zona revestida de ouro.

Pus de lado a minha desilusão. Parece estranho? A minha juventude justifica-o. Após um breve descanso, agarrei numa cesta e dirigi-me para um certo sítio nas bordas do círculo, onde as estrelas se encontram muito perto do chão.

Esgotada pela fadiga, abandonei a missão. Os meus pés doridos, negavam-se a dar sequer mais um passo.

Neste estado era impossível voltar a casa, não só devido à distância, mas tam-bém por causa do rio. Por sorte, encontrei uns tigres que me deram guarida e passei a noite confortavelmente.

Como esses animais se alimentam de morangos, o seu hálito era doce e agradável. Nunca tinha visto tigres, mas pude reconhecê-los logo devido às ris-cas da pele. Eu gostava de ter uma daquelas peles para pôr em cima da cama.

Hoje, as minhas ideias relativamente às distâncias são bem mais exactas. De-sejava tanto apoderar-me das coisas belas que me atirava para cima delas sem pensar. Às vezes sucedia o contrário, pensava que estavam longe, estendia a mão e era picada pelos espinhos que as protegiam.

Cada experiência era uma lição. E foi assim que formulei uma máxima, sem a ajuda de ninguém. Foi o meu primeiro passo na filosofia:

Mão picada afasta-se das flores.Quem adivinharia tanta maturidade numa pessoa nascida há tão poucas horas?

2

Page 4: Diario Eva

3

Page 5: Diario Eva

Quem adivinharia tanta maturidade numa pessoa nascida há tão poucas horas? Ontem à tarde fui à procura de outra experiência. Tinha vontade de conhecer a razão da sua existência, mas não consegui. Creio que essa experiência é um homem.

É óbvio que nunca tinha visto um homem, mas, devido às características, não podia ser outra coisa. Confesso que o homem me inspirou uma grande curiosi-dade, nenhum outro réptil é tão interessante.

Digo isto na suposição de que seja um réptil, ideia que me ocorre devido às feições que pude entrever: cabelo ondulado e olhos azuis. Quase não tem om-bros. Parece uma cenoura e, quando está parado, expande-se como uma esponja. Ou é um réptil, ou então uma obra de arquitectura.

Ao vê-lo, a minha primeira impressão foi de medo. Cada vez que ele olhava para mim eu desatava a correr, pois pensava que ele me queria caçar.

Mas, pouco a pouco, fui entendendo que o seu único desejo era afastar-se, e assim, quando consegui superar a timidez, segui-o a uma distância de vinte e cinco passos, com uma persistência que acabou por o pôr nervoso e inquieto. Até que, finalmente, no auge da exasperação, ele subiu a uma árvore. Esperei um pouco e, ao ver que ele não descia, fui para casa. Hoje aconteceu a mesma coisa. Eu apareci para o ir buscar à árvore.

DomingoAinda continua entre os ramos. Parece que está a descansar, mas vê-se que o

seu comportamento é um subterfúgio.Descansar ao Domingo? O Sábado é que é o dia indicado para o descanso.O homem parece estar mais preparado para o descanso do que para qualquer

outra coisa. Já estou farta de estar junto à árvore a espreitar o homem. Não per-cebo para que foi criado. Não faz nada.

Que feliz me senti ontem à noite! Devolveram-nos a lua. Calculo que, para procederem assim, devem ser pessoas muito honestas. Mas depois, ela voltou a escorregar e caiu outra vez. Só que agora não me preocupei. Hão-de no-la devolver. Só é preciso ter vizinhos de confiança. Eu gostaria de lhes mostrar o quanto aprecio a sua honestidade.

Enviar-lhes-ia algumas estrelas com muito gosto, já que temos mais do que precisamos. Reparo que estou a falar no plural e deveria fazê-lo no singular, já que o réptil não se preocupa com estas coisas.

Tem gostos vulgares e as suas inclinações não poderiam ser mais violentas. Ontem à tarde, à hora do crepúsculo, descobri que ele tinha descido da árvore e tentava apanhar os coloridos e indefesos peixitos do lago.

Tive que lhe atirar uma pedra e, quando o fiz, ele subiu à árvore e deixou em paz os pobres animaizitos que brincavam inocentemente. Será para isso que serve o homem? Por acaso não terá coração? Será possível que o tenham projectado e fabricado com um objectivo tão cruel? É o que indicam todas as aparências.

4

Page 6: Diario Eva

5

Será para isso que serve o homem? Por acaso não terá coração? As criaturas inofensivas não lhe inspirarão piedade? Será possível que o tenham projectado e fabricado com um objectivo tão cruel?

É o que indicam todas as aparências.Um dos meus projécteis acertou em cheio. Bateu-lhe atrás da orelha. Ele falou.

Ouvi-lo provocou-me um calafrio. É a primeira vez que oiço uma voz humana, não contando com a minha, claro.Não prestei atenção ao que ele disse, mas as suas frases pareciam muito eloquentes. Descobrir que ele possui o dom da pala-vra fez renascer o meu interesse, pois gosto de conversar. Aí, sim, se me deixas-sem, não pararia de falar.

Supondo que o homem é mesmo um réptil, parece-me que gramaticamente lhe corresponde o artigo “o”, do género masculino e número singular.

Supondo que “ele” será a terceira pessoa, também do género masculino e número singular. Além do mais e segundo os casos, terei que dizer “-lhe” ou “-lo”, e se tratar de acções indirectas deverei empregar, “dele”, “para ele”, “a ele”. Ficamos assim. De momento, evitam-se assim as imprecisões.

DomingoDurante toda a semana andei a rondar a árvore, tentando estabelecer uma

relação com o homem. A verdade é que eu tive que fazer as despesas da con-versa, pois ele, timidamente, manteve-se em silêncio. Parecia que a minha pre-sença o incomodava e eu, pela minha parte, fiz um esforço para empregar a sociável palavra “nós”, pois era bem visível que ele se sentia satisfeito por estar incluído neste pronome pessoal.

Quarta – feiraAs nossas relações são fluídas. Cada dia nos conhecemos melhor. Ele já não

foge de mim e isso é um bom sinal, já não dissimula que está contente na minha companhia. Isto agrada-me e eu, pela minha parte, tento ser útil em tudo o que seja possível, para que aumente o apreço que ele sente por mim.

Durantes estes últimos dois dias estive ocupada a pôr nomes a todas as coisas que o rodeiam e é notório que o estou a ajudar, pois faltam-lhe aptidões lin-guísticas. A gratidão dele por tudo o que faço aumenta cada dia.

Nunca lhe ocorre um nome, mas faço de conta que não me apercebo da sua incapacidade. Apresso-me a dar um nome a cada bicho que vemos para que ele não se sinta diminuído e se deixe cair num silêncio envergonhado.

Com este sistema já o safei de muitas situações embaraçosas. Aqui-lo que nele é um defeito é em mim um dom muito especial. Aparece um animal e eu sei logo como se chama. Sem qualquer dúvida, sem pre-cisar de me concentrar, pronuncio imediatamente o nome adequado. Actuo , sem dúvida por inspiração, já que uns minutos antes o animal e o nome me eram completamente desconhecidos.

Page 7: Diario Eva

6

Page 8: Diario Eva

7

Basta-me ver o tamanho de um bicho; basta vê-lo caminhar ou comer; basta ouvi-lo grunhir para que saiba imediatamente a que classe pertence.

Apareceu um elegante gato angora. Pude ver nos olhos do homem que julgava encontrar-se frente a um gato selvagem. Tomei logo conta da situação e, para não humilhar a personagem, pronunciei umas palavras de agradável supresa, sem dar a entender que estava a falar de alto ou a ensinar um ignorante.

Com o tom mais natural do mundo disse:- Se não estou enganada, este é um gato angora.A seguir dei todas as explicações que entendi convenientes para demonstrar

que não me tinha enganado. Pareceu-me notar nele um pouco de amor próprio ferido, mas as sua admiração por mim era por demais evidente. Gostei muito dessa sensação. Antes de adormecer estive bastante tempo a recordar esta sensa-ção tão profunda e plena. Que felizes podemos ser com as coisas mais insignif-cantes, sempre que consideramos que merecemos essa felicidade!

Sexta – feiraPrimeira dificuldade. Ontem ele pareceu querer afastar-se de mim. Notava-se

que desejava que eu não lhe falasse.Isto pareceu-me incrível. Julgei que se tratava de algum mal entendido, porque

a mim agradava-me a companhia dele e também gostava de o ouvir.Como era possível que me tratasse daquela forma, sem que eu tivesse culpa de

nada? Mas era mesmo assim e acabei por me conformar.Nunca tinha sentido nada igual; para mim, estes sentimentos constituíam um

mistério. Mas ao cair da noite, não aguentei a solidão e dirigi-me até à cabana que ele tinha construído. Queria perguntar-lhe qual tinha sido o meu erro, e que poderia fazer para o reparar e recuperar a simpatia dele.

Ele deixou-me ficar cá fora, apesar da chuva que caía.Este foi o meu primeiro desgosto.

DomingoEstá um dia magnífico.Sinto-me feliz. Trato, a todo o custo, de não recordar

aqueles dias tão penosos.Apetecia atirar-lhe com uma maçã. Mas é incrível a falta de jeito que tenho

para isto. A minha intenção agradou-lhe e perdoou-me que as maçãs tivessem caído muito longe do lugar onde eu as estava a atirar.

Ele diz que estas maçãs estão proibidas, e que acabará por receber um castigo.

Segunda-feiraHoje de manhã disse-lhe o meu nome, pensando que isso lhe interessaria. Mas

ele mostrou-se indiferente. Que estranho! Se ele me dissesse o seu nome, eu repeti-lo-ia sem parar; sei que para mim, não haveria música igual.

Page 9: Diario Eva

8

Noite após noite, enquanto o sono não me vencer, sentar-me-ei a ver as estrelas.Gravarei na minha memória o quadro desses corpos replandescentes.

Depois da QuedaA recordação do Jardim é como um sonho.Formoso Jardim! Jardim incomparável!Perdi-o para sempre. Os meus olhos nunca mais o verão. Perdi o jardim, mas

ele é meu e estou contente.Ama-me tanto quanto um homem é capaz de amar. Eu amo-o com toda a força

da minha natureza apaixonada, com todo o ímepto da minha juventude e do meu sexo.

Quando me pergunto a mim mesma por que sinto este amor, não sei que re-sponder, nem me interessa explicar.

Suponho que esta espécie de amor não é o resultado da razão e da classificação, como o amor que sentimoes pelos outros répteis ou pelos quadrúpedes.

É aquilo que deve ser.Amo certas aves pelo seu canto, mas não o amo a ele pela sua forma de cantar.

Não. Pelo contrário, quanto mais ele canta, mais intolerável parece a sua dedi-cação à música.

Digo-lhe que cante porque ele gosta e eu quero partilhar e disfrutar de tudo o que seja interessante para ele.

A vontade faz prodígios, e eu consegui vencer o meu desagrado para lhe dar algum gosto.

Por exemplo, ele gosta de leite azedo e eu já comecei a habituar-me.Diz que não o amo pelo seu talento. Que culpa tem ele do seu talento? É como

o Deus o fez, nem mais, nem menos. Basta-me saber que o propósito do Su-premo Criador foi muito sábio.

Com tempo, esse talento desenvolver-se-à, mas parece-me que a obra vai ser muito lenta. Por outro lado, não existe perfeição. Está muito bem assim como é.

Tão pouco o amo pela sua cordialidade e boas maneiras. Vejo os seus defeitos, mas gosto dele tal como é, e, além disso, está melhor de dia para dia.

Seria quase impossível amá-lo pela sua capacidade de trabalho. Sei que é tra-balhador, embora ultimamente o oculte. Não sei por que o faz. Isto provoca-me sofrimento, mas é a única coisa, porque em relação a outros temas, não poderia ser mais sincero e aberto do que é.

Só oculta a sua paixão pelo trabalho. Eu não me conformo com o facto dele ter segredos comigo, e perco o sono a pensar nisto, mas acabarei por ultrapassar, pois não quero que isto seja obstáculo à minha enorme felicidade.

Não o amo pela sua educação, ainda que ele seja um verdadeiro autodidacta. Sabe muito.

Não o amo pelo seu cavalheirismo. Pertuba-me, mas não o critico. O rasgo é típico do sexo e não foi ele que fez o sexo.

Page 10: Diario Eva

9

Page 11: Diario Eva

10

Quarenta anos depois

Peço a Deus, e espero que me conceda: quero abandonar este mundo ao mesmo tempo que ele.Este é um desejo que viverá sobre a terra enquanto houver mulheres amantes.

E, pelos séculos e séculos, esse desejo terá o meu nome.Mas, se algum dos dois tiver que morrer primeiro, quero ser eu a partir. Ele é forte, eu sou fraca. Eu não sou tão necessária para ele, como ele, Adão,é para mim. A vida sem ele não seria vida. Como poderia suportá-la?Este pedido será imortal e elevar-se-à dos lábios de todas as mulheres, enquanto a minha raça subsistir.Sou a primeira mulher, e a última mais não fará do que repetir as minhas pa-lavras.

O Túmulo de Eva

Adão.Onde estava ele, estava o meu Éden.

Page 12: Diario Eva

11

Page 13: Diario Eva

ODIÁRIO

DA EVA