256
CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ” DIALOGUS Revista dos cursos de História e Pedagogia ISSN 1808-4656 Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012 p. 1-256

DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 1

CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ”

DIALOGUSRevista dos cursos deHistória e Pedagogia

ISSN 1808-4656Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012 p. 1-256

Page 2: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

2 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

FICHA CATALOGRÁFICADIALOGUS (Graduações em Geografia, em História e em Pedagogia – Centro Universitário “Barão

de Mauá”) Ribeirão Preto, SP – Brasil, v.8, n.1-2, jan/dez 2012. Semestral

14,7 X 20,7. 256p.

2012, v8 n.1-2ISSN 1808-46561. Educação. 2. História. 3. GeografiaI. Centro Universitário Barão de Mauá.II. Cursos de Graduação em Licenciatura em História, em Geografia e em Pedagogia.CAPA: “Folia de reis Altinópolis” / Joyce Felipe Cury

DIALOGUS é uma publicação semestral dos cursos deHistória e Pedagogia mantidos pelo Centro UniversitárioBarão de Mauá, Ribeirão Preto, SP. Solicita-se permuta.As opiniões emitidas são de responsabilidade dos autores.É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desdeque citada a fonte.

EXPEDIENTE

ChancellerProf. Dr. Nicolau Dinamarco Spinelli (in memorian)ReitoraProfa. Dra. Dulce Maria Pamplona GuimarãesVice-ReitorProf. João Alberto de Andrade VellosoPró-Reitora de EnsinoProfa. Me. Valéria Tomás de AquinoPró-Reitora de Pós graduação, extensão e Iniciação científicaProfa. Dra. Joyce Maria W. GabrielliPró-Reitor AdministrativoAntônio Augusto Abbari DinamarcoCoordenadora de Graduação em HistóriaProfa. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira RosaCoordenador de Graduação em PedagogiaProf. Me. Cícero Barbosa do Nascimento

Comissão EditorialProf. Ms. Cícero Barbosa do NascimentoProfa. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira RosaProf. Ms. Rafael Cardoso de Mello

Conselho Editorial

Andréa Coelho Lastória, profª Drª (USP)Antônio Carlos Lopes Petean, prof. Dr (UFU).Aparecida Turolo Garcia, profª Drª (USC)Beatriz Ribeiro Soares, profª Drª (UFU)Charlei Aparecido da Silva, prof. Dr.(UFGD)Dulce Maria Pamplona Guimarães, profª. Drª. (CUBM)Edvaldo Cesar Moretti, prof. Dr. (UFGD)Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP)Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP)Humberto Perinelli Neto, prof. Dr. (UNESP)Ivan Aparecido Manoel, prof. Dr. (UNESP)José Luís Vieira de Almeida, prof. Dr. (UNESP)Lélio Luiz de Oliveira, prof. Dr. (USP)Marilia Curado Valsechi, profª Drª (UNESP)Maria Lúcia Lamounier, profª Drª (UNESP)Nainora Maria Barbosa de Freitas, profª Drª (CUBM)Pedro Paulo Funari, prof. Dr. (UNICAMP)Robson Mendonça Pereira, prof. Dr. (UEG)Sedeval Nardoque, prof. Dr. (UFGD)Silvio Reinod Costa, prof. Dr. (CUBM)Solange Vera N. Lima D’Água, profª Drª (UNESP)Taciana Mirna Sambrano, profª Drª (UFMT)Vera Lúcia Salazar Pessoa, profª Drª (UEG)

Page 3: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 3

PREFÁCIO

O CBM cumpre sua missão e batalha por seus objetivos por meio devárias ações, planejadas e executadas pelos coordenadores e docentes juntoaos discentes, de acordo com o perfil de cada um de seus cursos. Uma destasações, com certeza uma das mais exitosas, compartilhada pelos cursos de Históriae Pedagogia, é a publicação da revista Dialogus, indiscutivelmente responsávelpor estes cursos cumprirem a máxima do ensino universitário de que todoconhecimento produzido deve circular e ser divulgado. E o fazem cada vez melhor,com qualidade inquestionável e dedicação ímpar.

A abertura do presente volume é realizada pela entrevista concedida pelojornalista e historiador Luis Carlos Eblak ao jornalista e graduando de Históriadeste Centro, Guilherme Pires de Campos.

Na sequência, deparamo-nos com artigos com temas bastante atuais,polêmicos e diversificados. Agrupamos esses artigos em dois grandes dossiês. Oprimeiro abarca questões referentes às cidades, ao patrimônio cultural e às relaçõesde poder da Igreja a partir da discussão das tramas políticas nas provínciaseclesiásticas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Assuntos correlatos e objetos deestudo de autores arquitetos, historiadores, geógrafos e cientistas sociais.

O segundo está relacionado à Educação. Educadores, cientistas sociais,historiadores e advogada tratam da escrita biográfica; gêneros textuais no mundovirtual; representações das escolas no século XIX; violência e educação eeducação na normatização brasileira frente aos direitos humanos.

À diversificação da formação soma-se à da origem dos autores, o queamplia o alcance dos diálogos, enriquece, em mais uma dimensão, a discussãodos temas e consequentemente contribui para o avanço do conhecimentocientífico.

Reitoria do Centro Universitário Barão de Mauá

Page 4: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

4 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Apresentação do primeiro e do segundo número do oitavo volume

Ao entregar mais um volume deste periódico, a Comissão organizadorada revista Dialogus comemora mais uma coletânea de artigos, entrevistas eresenhas, responsável pela materialização e divulgação das pesquisas aqui postasa comunidade acadêmica.

Este clima de comemorações se deve ao fato de mantermos a qualidadede nossos artigos, de buscar novos horizontes e qualificar mais e melhor operiódico. A isso, registramos a forte presença de nossos colaboradores, queauxiliam no trabalho de realização dessa Revista.

Iniciamos desta vez com a entrevista realizada por Guilherme Camposcom Luís Carlos Eblak. Sem fugir de nenhum questionamento, o entrevistadocomenta sobre a relação entre os campos do jornalismo e da história.

Para este volume, optamos por condensar os dois números do mesmoano. Assim sendo, apresentamos dois dossiês: “Gestão e espacialidade urbana” e“Patrimônio Cultural: diálogos interdisciplinares”.

Sobre o primeiro, fica evidente a diversidade de estudos sobre o urbanoe os processos históricos (ou estratégias) de espacialização das cidades brasileirasno século XX. Na tênue relação da compreensão do conceito de cidade do passadoe da cidade que queremos para o futuro, Danila Battaus, Adriana Silva e JucelinoLima, produziram, cada qual ao seu modo, apontamentos sobre investigaçõesdeste universo.

Para o segundo dossiê este volume propôs um interessante diálogo entrediversas perspectivas patrimoniais; seja na discussão patrimonial da cidade deRibeirão Preto, tanto no artigo de Dulce Palladini quanto de Delson Ferreira eAurélio Guazzelli, seja nas contribuições para compreensão de um patrimônioferroviário (Marcelo Carlucci) ou ainda na relação sempre bem vinda entreeducação e patrimônio cultural, nos escritos de Adriana Godoy.

Na costumeira sessão de artigos, a Dialogus traz neste volumecontribuições na área de História e Religião, com dois artigos. Nainôra Freitas eSandra Molina trouxeram, individualmente, perspectivas enriquecedoras sobre acriação da Província Eclesiástica de São Paulo e sobre a relação entre o poderpolítico e religioso do Estado português e a província carmelita fluminense noséculo XVIII, respectivamente. Ainda em História, salientamos a excelente reflexãosobre as biografias, produzida por Juliana Lavezzo.

Por fim, na área destinada as produções em Educação, temos maisquatro textos. De Marilda Moura, sobre os gêneros textuais no mundo virtual, de

Page 5: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 5

Michelle Garcia, estudiosa das relações entre Direitos Humanos e a normatizaçãobrasileira na educação, dos autores Marcos Silva e Aristéia Kayser, cujo objetivofoi o de refletir sobre a interface entre poder, violência e educação em HannahArendt e por último, mas não menos importante, a contribuição de Rodrigo Oliveiraquanto as representações da escola a partir do romance “Til” (José de Alencar) edo conto “Contos de Escola” (Machado de Assis).

Comissão Editorial

Page 6: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

6 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

SUMÁRIO/SUMMARYENTREVISTA/INTERVIEW

13 Jornalismo e História - duas visões sobre o fato: entrevista comLuís Carlos EblakJournalism and History – two sides of the facto: interview with LuísCarlos Eblak.Guilherme Pires de CAMPOS

DOSSIÊ/SPECIAL“Gestão e espacialidade urbana”

27 Médias cidades, grandes problemas: as facetas do uso eapropriação do solo urbano em Sobral/CE.

Medium towns, big problems: the facets of use and ownership of urban landin Sobral/CE.Juscelino Gomes LIMA

43 Arquitetura e urbanismo participativos: experiências de ChristopherAlexander e seus contemporâneos na segunda metade do séculoXX.Architecture and Urbanism Participatory: Experiments from ChristopherAlexander and his contemporaries in the second half of the century XX.Danila Martins de Alencar BATTAUS

59 A Gestão das Redes de Cooperação em Projetos de CidadesCriativas.Management of the cooperation network in creatives cities projects.Adriana SILVA

Page 7: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 7

DOSSIÊ/SPECIAL“Patrimônio cultural: diálogos interdisciplinares”

77 Apontamentos para a preservação do patrimônio recente: reflexõessobre a liberdade criativa na arquitetura moderna de Ribeirão Preto,SP.Notes for the preservation of the recent patrimony: reflections on the creativefreedom in the modern architecture of Ribeirão Preto, SP.Dulce PALLADINI

91 O trem e a cidade disciplinar.The train and disciplinary city.Marcelo CARLUCCI

107 Conhecer para valorizar: o patrimônio cultural como conteúdo doensino de História.Know and then valorising: the culture heritage as content of teaching history.Adriana Cristina de GODOY

119 Patrimônio imaterial e referências culturais em Ribeirão Preto:história, teoria e primeiros resultados de trabalho de pesquisa decampo.Intangible Heritage and Cultural References in Ribeirão Preto: history, theoryand first results of research work in the field.Delson FERREIRA;Aurélio Manoel Corrêa GUAZZELLI.

Page 8: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

8 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ARTIGOS/ARTICLES

139 A criação da Província Eclesiástica de São Paulo.The creation of the ecclesiastical province of São Paulo.Nainôra Maria Barbosa de FREITAS

157 Entre anéis e batinas: o avanço do Estado português sobre aprovíncia carmelita fluminense na transição do século XVIII parao XIX.Among rings and cassocks: The advancement of the state in the CarmeliteProvince of Rio de Janeiro, during the transition from the eighteenth to thenineteenth century.Sandra Rita MOLINA

177 A trajetória da escrita biográfica e suas problemáticas ao longo dahistória.The path of the biographical writing and its problematics throughout history.Juliana Aparecida LAVEZO

193 As interfaces entre poder, violência a educação no pensamento deHannah Arendt.The interface between power, violence and education in the thought ofHannah Arendt.Marco Aurélio SILVA;Aristéia Mariane KAYSER

203 Educação: gêneros textuais no mundo virtual.Education: gêneros textuais no mundo virtual.Marilda Franco MOURA

Page 9: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 9

219 Duas representações da escola na literatura do século XIX no Brasil.Two representations of school in brazilian literature of séc. XIX.Rodrigo Marques de OLIVEIRA

235 Educação na normatização brasileira frente aos direitos humanos.Education in Brasil normatization in front of Human Rights.Michelle Soares GARCIA

322 Índice de autores/Authors index.

323 Índice de Assuntos.

324 Subject Index.

325 Normas para publicação na revista DIALOGUS.

Page 10: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

10 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 11: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 11

ENTREVISTA/INTERVIEW

Page 12: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

12 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 13: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 13

JORNALISMO E HISTÓRIA - DUAS VISÕES SOBRE O FATO:ENTREVISTA COM LUÍS CARLOS EBLAK

Guilherme Pires de CAMPOS*

O acontecimento é explosivo, novidade que ‘soa’, como se dizia no século XVI. Comsua fumaça abusiva, ele preenche a consciência de seus contemporâneos, masquase não dura, e o máximo que vemos dele é a chama (BRAUDEL, 2011, p. 90).

As palavras de Fernand Braudel, da segunda geração da escola dosAnnales, movimento francês da primeira metade do século XX, refletem o pensa-mento do historiador sobre o fato como acontecimento dentro de uma sociedade.Para o autor, o fato isolado pode não significar nada se não for analisado em umperíodo de longa duração, dentro de um contexto, conjuntura e estrutura. O even-to por si, como, por exemplo, o aumento de preços do café serve exclusivamenteao homem de seu tempo e se resume a ele mesmo. Mas se colocado na curva dotempo e espaço, pode mostrar tendências, experiências e identificar modos deprodução, a cultura de determinado grupo ao redor das práticas agrícolas, enfim,servir ao presente, revelando continuidades ou rupturas. Já ao jornalismo, consi-derado parte das ciências sociais, o fato do dia, o chamado factual, é o principalobjeto de estudo.

Pierre Nora (1974), da terceira geração da escola dos Annales, concor-daria com Fernand Braudel ao dizer que o fato por si mesmo não transforma oacontecimento em história. Para isso é preciso que o episódio seja conhecido.“Os (mass) media transformam em atos aquilo que não teria sido senão palavrasao ar. Dão ao discurso, à declaração, à conferência da imprensa, a solene eficá-cia do gesto irreversível” (NORA, 1974, p. 182). Sendo assim, os meios de comu-nicação de massa, ao escolher o que noticiar, seriam os monopolizadores dainformação, transformando os acontecimentos em projeções, em espetáculo.“Os mass media fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimentomonstruoso” (NORA, 1974, p. 183). A informação teria, portanto, perdido a neutra-lidade, servindo apenas como um saber interrogativo, sem sentido e totalizante.

Sua teoria mostra que o acontecimento representa menos pelo que tra-duz e mais pelo que revela. O fato seria então o que permite compreender anatureza da estrutura e o funcionamento do sistema, dentro da proposta metodo-lógica de Braudel (2011). “O acontecimento tem como virtude unir num feixe* Jornalista e graduando em história pelo Centro Universitário Barão de Mauá.

Page 14: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

14 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

significações esparsas. Ao historiador cabe desuni-los para voltar da evidência doacontecimento à colocação em evidência do sistema. Pois a unicidade para quese torne inteligível postula sempre a existência de uma série que a novidade quea novidade faz surgir” (NORA, 1974, p. 191).

Inegável é que a cobertura jornalista dos acontecimentos, do evento queacaba de acontecer, mudou diante da velocidade da transmissão da informação. Oadvento da internet transformou a relação de transmissor e receptor de mensagem. Agrande massa de ferramentas de publicação transformaram espectadores em auto-res de informação. Sendo assim é possível falar em monopólio nos dias de hoje?

O manual da Folha de S.Paulo (2006), um dos principais jornais do país,traz no texto que as demandas de leitores por reportagens mais detalhadas, me-lhor debatidas entre todos os lados da mesma história, aumentam todos os dias aexigir qualidade. O acesso à informação tornou os consumidores de notícia depassivos para ativos. Logo, o público tem papel fundamental na produção dasnotícias, na qualidade da informação e nos temas abordados.

É preciso mais originalidade na identificação dos temas a ser objeto de apuração,bem como uma focalização mais precisa de sua abordagem. Pesquisas de opiniãoajudam a conhecer um pouco melhor as necessidades do público e aproximar davivência concreta do leitor a pauta do jornal. Mas não substituem o discernimentonecessário para detectar a ocasião jornalística nos fatos que reúnam o geral e oespecífico, em que um processo relevante ou emergente apareça entrelaçado comsua manifestação mais sintomática e humana. Essa preocupação deveria nortear aelaboração do jornal, da pauta à edição (FOLHA DE S.PAULO, 2006, p. 15).

O trecho do manual revela a participação da sociedade na construçãoda informação. A importância dada a determinados fatos refletem costumes, hábi-tos, modos de se relacionar, de produzir. Essas notícias divulgadas em veículoscomo jornal, TV, rádio e internet podem, ao longo do tempo, ser analisadas comofontes na construção da história. Sendo assim, jornalismo e história não teriammomentos de encontro na abordagem dos fatos?

Para participar deste debate convidamos o jornalista e historiador, editordo jornal Folha de S.Paulo, caderno Ribeirão, professor e mestre em históriasocial pela USP, Luís Carlos Eblak. A conversa foi gravada, editada e autorizada aser publicada pelo entrevistado.

GUILHERME: Como definir o fato jornalístico?

Page 15: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 15

EBLAK: O conceito fato jornalístico se desenvolve desde quando o jornalismo pas-sou a ter importância na sociedade. Os estudiosos pesquisam os chamados valo-res-notícia a partir do século XVII. Basicamente, o jornalismo existe para contarhistórias para sua comunidade, sua sociedade. No decorrer dos últimos 400 anos,o jornalismo se aprimorou para escolher quais eventos são fatos ou não. Obviamen-te que no século XVII a noção de fato ainda era muito crua, mas o que interessavapara a sociedade daquela época é muito parecido com o que interessa hoje.

GUILHERME: O que é um valor-notícia?

EBLAK: É um conjunto de critérios que definem o fato jornalístico. Trata-se deuma área de estudos chamada teorias do jornalismo. Até aqui, não estamos falan-do de história.Cito alguns valores-notícia que já estavam presentes em jornais do século XVII:notoriedade (celebridade); proximidade (tudo o que acontece dentro de uma comu-nidade); relevância; novidade. Tudo isso já existia como critério para definição denotícia há 400 anos. Estou considerando a notícia como sinônimo do fato jornalísti-co. Outro exemplo: a morte de um rei lá no século XVII, a morte de um nobre...

GUILHERME: Tinha um peso...

EBLAK: Tinha... Isso era noticiável, relevante para a sociedade da época. Assimcomo hoje em dia. Se morrer uma celebridade, essa notícia vai ter um peso. Semorrer um cidadão comum vai ter outro peso. Se tiver outros valores-notícia vãofazer com que esse fato seja mais importante do que outro. Por exemplo, se ocidadão morre de um jeito cruel. Aí entra em cena o elemento do sensacionalis-mo, que, por sinal, está nas origens do jornalismo. Muitos jornais que existiam naEuropa no século XV só divulgavam essas notícias monstruosas, horrorosas. NaFrança, esses jornais eram chamados de “occasionells”, no século XVI, e de“canards”, no XIX.

GUILHERME: Isso por quê? Interesses?

EBLAK: Todo veículo de comunicação existe por causa de um público. Essepúblico consome notícia desde que o jornal é jornal. Não dá para falar em interes-se econômico de um jornal do século XVII, porque ainda não se tem a ideia dejornal como negócio. A ideia de jornalismo como negócio surge no século XIX, naEuropa. Curiosamente, nos EUA, o boom da imprensa é sensacionalista, a cha-

Page 16: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

16 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

mada yellow press, mais tarde chamada no Brasil de imprensa marrom. O sujeitovendia ou não um jornal de acordo com o interesse do público. Você tem umpúblico que se interessa por isso.

GUILHERME: Interesse público ou do público?

EBLAK: A definição mais simples de jornalismo é contar histórias para um públi-co. Tem muito jornalista que propõe três categorias para definir os critérios denoticiabilidade: o interesse público, que é a notícia de interesse coletivo; o interes-se do público, que são notícias mais sensacionalistas ou as chamadas fait divers;e as notícias de serviço público, que tem utilidade para o público. Mas a definiçãode notícia é complexa, não pode ficar apenas nessas categorias. Tem um autoralemão, o Tobias Peucer1, que publicou em 1690 o texto “Os relatos jornalísti-cos”, considerado a primeira tese sobre jornalismo. Já naquela época falava so-bre noticiabilidade, ou seja, o que leva algo a ser notícia ou não. É curioso que elefaz uma relação com a história (o historiador obviamente não gosta disso). Paraele, o jornalismo é uma espécie de história confusa, é uma história narrada deforma embaralhada, fragmentada. O jornalismo que se praticava na época eradiferente, o jornal era diferente, era quase um livro...

GUILHERME: Pierre Nora diz que o fato histórico precisa ser divulgado para setornar acontecimento. Isso se aplica ao fato jornalístico?

1 Alemão, autor da tese de doutorado “Relações e relatos de novidades”, de 1690, produziu o que ficouconhecido como o primeiro manual de redação do jornalismo. Fez análise sobre a imprensa de sua época,desenvolveu estudos sobre o conceito de notícia e as relações entre jornalismo e história. Para isso o autorlevou em conta o contexto vivido de reforma política - com o protestantismo contestando a autoridade da igrejacatólica e da burguesia em ascensão econômica, ganhando poder e disputando cada vez mais espaço na“coisa pública”. Para Sousa (2013), essas mudanças influenciaram o desenvolvimento da imprensa, com atransformação das técnicas da tipografia e da indústria do papel. É no séc. XVII que a notícia passa a ser vistacomo um negócio, associada à propaganda em jornais e folhetins, fator que provoca uma necessidade deconsumo de informação por parte de leitores.Peucer dizia que a divulgação da notícia seguia um rançomedieval, já que o que chamava a atenção eram fatos que envolviam pessoas importantes, o que se passavaem determinado reino, batalhas, acontecimentos com nobres e mortes. Ele se referia a uma imprensanoticiosa, que hoje chamaríamos sensacionalista. Em sua tese o bom jornalista era o que redigia o fato demaneira clara e concisa, que evitava confusão na ordem sintática, tinha cautela ao recorrer às fontes e evitavaa transmissão de boatos e mitos caluniosos e difamatórios. O autor definia os acontecimentos da história deduas formas distintas: a de um fio condutor e de coisas esparsas. O jornal nada mais era do que históriasdesordenadas, constituída por miscelânea de assuntos. Por isso acreditava que o papel do jornalista seassimilava ao do historiador, já que fazer jornalismo era “construir a história da vida diária, fazer a historiografiados acontecimentos relevantes dos fatos históricos mais importantes” (SOUSA. 2013. p.37).

Page 17: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 17

EBLAK: Sim, também, só que a diferença do jornalismo é o factual. Fato e factual,a rigor no dicionário, não deveriam ter diferença. Mas no mundo jornalístico factualé o fato recente, do dia. A partir do século XIX o jornalismo se pauta muito no factual.Então notícia passa a ser o que é novo. Eu falava do Tobias Peucer. Ele já via isso,que naquela época já se tinha a ideia de notícia como algo novo. Aliás a origem dapalavra notícia vem de novidade. Do século XIX e XX pra cá essa novidade passa aser diária. Então a notícia no jornalismo, o fato jornalístico passa a ser os fatos do dia,principalmente quando ele se torna diário. A novidade então é mais um valor-notícia.No século XVII não havia jornalismo diário e sim a notícia da semana, do mês e atédo ano. O jornal “quente” era anual, com novidades dentro daquela periodicidade. Eneste século XXI, já é instantâneo por conta da internet. Então, sim, notícia só énotícia quando ela passa a ser divulgada. Mas há exceções. Você tem fato jornalís-tico de uma época histórica. Algum fato novo que surja do regime militar brasileiro(1964-85), por exemplo. Hoje existe a Comissão Nacional da Verdade, que eventu-almente possa descobrir fatos novos. O jornalista que visitar um arquivo público, dedocumentos históricos, pode descobrir uma novidade histórica e isso passa a serum fato jornalístico e eventualmente possa ser também um fato histórico.

GUILHERME: Já que os factuais são notícias fragmentadas, o jornalismo teriacondições então de juntar os pontos e entendê-los em um contexto maior, emuma conjuntura, assim como faz a história?

EBLAK: O desafio do jornalista hoje – e eu diria que sempre foi – é não escreverhistórias confusas. Ele tem de conseguir os fatos do dia, ou os fatos da semana, oque é importante para a comunidade, para o país, da melhor forma possível, ecolocá-los em contexto, com explicações, mas isso no dia-a-dia falta, não estãopresentes. O jornalismo tenta isso desde que surgiu.

GUILHERME: E já conseguiu?

EBLAK: Não, essa é uma luta terrivelmente perdida. O jornalista não consegueisso. Quando consegue sucesso, a edição ou o repórter são reconhecidos. Masisso é muito difícil, raro.

GUILHERME: E porque não consegue?

EBLAK: Isso depende de cada época. Hoje, um dos motivos é a agilidade danotícia e a obrigatoriedade de o jornalista seguir essa velocidade. O jornalista não

Page 18: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

18 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

pode falar assim: “agora eu vou explicar direito isso aqui, por exemplo, e deixar decobrir outros acontecimentos”. Os fatos continuam acontecendo. O jornal X deixade dar determinada notícia. O Y e o Z vão dar. É praticamente impossível vocêignorar o ritmo das notícias, deixar de dar a maioria dos fatos que todos publicampara contar direito determinada história da semana passada.

GUILHERME: É uma crise constante entre o tempo que se tem para apurar eescrever a notícia, o dead-line, e o espaço, número de linhas, que existe no jornal,ou o tempo da TV e o rádio... Ir além então seria o papel da história?

EBLAK: Se fosse possível definir as principais características do jornalista, numahipotética biografia profissional, ou num hipotético dicionário das profissões, euacho que duas palavras caberiam nesse verbete: arrogância e prepotência. Issoestá muito presente na profissão, até mesmo porque o jornalista precisa conven-cer o público de que suas histórias são verdadeiras. Outro fator importante nesseverbete: o jornalista é um cara que quer abraçar o mundo, quer dar todas asnotícias, o que é impossível. Quando um trabalho jornalístico é criticado por umhistoriador ou um cientista político, esses profissionais não estão equivocados. Agente erra muito na profissão. Até mesmo porque se produz no calor da hora. Enão há como fugir disso. Outro aspecto: é preciso focar em um ponto para contaruma história. É como fotografar um objeto, não tem como fotografar tudo. Você vaiter um recorte. Para construir uma história no jornalismo é a mesma coisa. Já ahistória tenta fazer diferente, mas nem sempre consegue também. Quando o PierreNora faz uma crítica às notícias divulgadas pela mídia de massa é preciso pontuar.Nora começa o texto falando que “a história contemporânea é filha degenerada deuma história mais nobre”. Para ele, história mesmo é a Antiga, a Medieval e Moder-na. Faz parte de um grupo de historiadores, que defende que só se pode fazerhistória desses períodos porque, argumentam eles, é preciso estar distante dosobjetos de estudo para poder descrevê-los. Quando eu fiz história, no começo dadécada de 1990, tive professores que criticavam a história sobre a Segunda GuerraMundial (1939-45). E a gente estava falando de quarenta anos. Nem se falava emhistória do tempo presente. Falava-se apenas em história contemporânea. Era co-mum um professor (de história contemporânea) ensinar até o século XIX. Qualquercoisa que ia além disso era ciências políticas, por exemplo, mas não história.

GUILHERME: É possível dissociar a história do tempo presente do jornalismo?

EBLAK: São áreas distintas. O fato histórico é um. O fato jornalístico é outro. Cada

Page 19: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 19

um tem o seu “manual de redação”. Um dos professores que eu tive na graduaçãofazia uma definição separando os conceitos de jornalismo e história. O fato histó-rico é definido como um conceito coletivo, daquilo que interessa a um maiornúmero de pessoas. Por exemplo, você vai definir porque o suicídio do GetúlioVargas é um fato histórico e o suicídio de um cidadão comum não é. O objetivo dohistoriador é estudar o presidente da República, saber que a morte dele causouuma série de consequências, que um golpe militar foi adiado por isso, comoacreditam alguns historiadores. O fato jornalístico, por outro lado, não necessari-amente. Ele também passa pelos fatos históricos. É notícia aquilo que é diferentede tudo. Uma das críticas que se faz ao jornalismo é que milhares de coisasimportantes, como a fome, a pobreza, ficam sem ser divulgadas porque não hánovidade naquilo. Vamos pensar na violência. O primeiro crime violento de umadeterminada pessoa numa localidade pode não ser manchete, mas estará nojornal. O segundo crime violento já será a capa do jornal. O terceiro crime violentoem uma semana talvez seja retratado com olhar da frequência. A partir do décimocrime já não é mais notícia, porque não é mais novidade. Só voltará a ser desta-que quando o recorde de homicídios for batido. Mas as pessoas ainda continuammorrendo. Tem um filme clássico para entender o jornalismo. Em “A Montanhados Sete Abutres”, narra-se a história de um jornalista que, cansado de não vernada acontecer, acaba inventando um fato. Há uma cena em que o jornalistaexplica para o novato algo assim: cem mil pessoas passando fome na China nãoé notícia. Mas a história de uma pessoa passando fome, aí sim começa a ser algomais interessante jornalisticamente falando. Inclusive esse é um valor-notícia, apersonalização da pauta. Para a História, interessa contar uma grande tragédia,que matou cem mil pessoas de fome, por exemplo. São campos distintos. Voltan-do ao Peucer, o jornalismo do século XX vem bagunçar a ideia que se tinha dehistória, que partia das fontes documentais. Até então o historiador tinha de certaforma um monopólio de contar histórias do passado. E ele estava habituado comesse monopólio. A partir do século XX, com a mídia de massa, o jornalismo ba-gunça essa base de conceito de história.

GUILHERME: Mas dependendo da forma como é feita a cobertura jornalística deum fato, dependendo do grau de importância de um único evento dado pelaimprensa, isso pode forjar uma comoção na sociedade e daí se tornar um fatohistórico?

EBLAK: Pode. Não me ocorre nenhum exemplo agora...

Page 20: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

20 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

GUILHERME: O caso da Escola Base2...

EBLAK: Sim, esse pode ser um exemplo de um fato importante a ser contado nahistória da imprensa. Demonstrou um grande erro por parte de vários veículos decomunicação, que tem a ver com essa pressa do jornalismo de divulgar informa-ções. Mas enfim, é perfeitamente possível, comum até, que, ao divulgar um determi-nado fato sem grande importância, esse acontecimento ganhe projeção mesmosem “merecê-lo”. Acho interessante quando o Nora reclama que a mídia de massatem um “monopólio da história”, porque no século XX a mídia de massa se torna umfenômeno inegável para o historiador. Ele está reclamando da mídia de massa.Curiosamente, hoje, nós, jornalistas, vivemos momento histórico similar porque es-tamos reclamando das redes sociais e de um tipo de jornalismo que nasceu comelas. Reclamamos que há um jornalismo profissional e outro, “amador”. Ou seja,perdemos já há algum tempo, desde a época do surgimento da internet e do apare-cimento dos blogs, o monopólio do furo, da notícia. Da mesma forma, o historiadorperdeu o monopólio das histórias do passado, o jornalista perdeu o monopólio decontar histórias do presente. Os jornais, o telejornalismo, radiojornalismo, na medi-da em que surgiam, foram os grandes responsáveis por contar histórias diferentespara a sociedade. E hoje você não precisa mais de jornalistas para contar históriasdo presente. As redes sociais, sobretudo, e a internet como um todo, desde a décadade 1990, vêm quebrando o monopólio que o jornalista tinha. Até na década de 1950,se algo de importante acontecia, as pessoas corriam para banca para comprar ojornal. Dali pra frente o jornalismo impresso perde esse monopólio para o radio e aTV, mas todos fazem parte do que podemos chamar de jornalismo tradicional. Hojeesse jornalismo está ficando para trás. E não é só o jornalista de impresso queperdeu o poder. Hoje um sujeito divulga uma notícia ao vivo do seu celular.

GUILHERME: E não necessariamente ele é um profissional. Pode ser apenasum observador...

EBLAK: De modo algum. Assim como existe uma briga grande entre jornalistas2 “Escola Base” foi uma escola particular de São Paulo, capital, alvo de denuncia, em 1994, de que seusproprietários e o motorista abusavam sexualmente de alunos de quatro anos. Apesar de os acusados a todoo momento negarem o crime, eles foram retratados em jornais de todo o país como culpados, antes mesmode terem sido julgados. Contudo, no desenrolar do processo foi provado que os suspeitos eram inocentes.Mas a escola foi fechada e a imagem pública dos responsáveis pela escola nunca mais foi a mesma. Ocaso virou sinônimo do que “não” fazer em uma cobertura jornalística. Hoje é o exemplo de como o olharparcial de veículos de comunicação de massa podem causar uma comoção nacional e social, e pressionara poder público (neste caso a polícia) a tomar uma série de atitudes sugestionadas. Em 2005 a Rede Globo,O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e a Revista IstoÉ foram condenado a pagar milhões aos donos.

Page 21: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 21

“profissionais” e “amadores”, existem jornalistas que se metem a escrever história,como o Elio Gaspari, o Laurentino Gomes e vários outros. Citei apenas dois dosquais eu gosto, mas existem muitos jornalistas que se meteram a escrever história.O historiador fica enciumado, diz que “não tem metodologia, isso e aquilo”. Mas oque a academia deveria repensar é que o jornalista tem feito sucesso como conta-dor de história do passado basicamente porque ele sabe escrever bem. Essa é adiferença. O que não quer dizer que o historiador não saiba escrever bem. No Brasil,o Sérgio Buarque de Hollanda, na Europa, o Eric Hobsbawm, o Jacques Le Goff,todos escrevem bem, atraem a atenção. Mas na maioria dos casos, acho, o acade-micismo atrapalha. Penso que o historiador deveria deixar isso de lado.

GUILHERME: Deveriam democratizar a informação?

EBLAK: Isso. O artigo científico é muito chato para o grande público. O jornalistanão tem essa marra. Mas essa é uma questão menor. O que interessa é o seguinte.O Laurentino Gomes não é um historiador, ele não produz história e diz isso ementrevistas. “Eu não descobri nenhum fato inédito lendo documentos”, ele diz. O quechama atenção é a capacidade dele em pegar um emaranhado de fatos e fazer asconexões. Ele pegou uma série de estudos feitos sobre a época entre 1808 e 1822e recontou a história dando uma conexão de fatos jogados. E isso não é um privilé-gio do jornalista. Se você pegar grandes nomes das ciências humanas do início doséculo XX, eles têm essa capacidade. Em Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes doBrasil é um livro que, acho, se fosse um projeto de pesquisa hoje não seria aprovado.Diriam: “É muito complexo. Você não vai conseguir escrever em três anos e meio.”

GUILHERME: São áreas que se cruzam o tempo todo...

EBLAK: Tem fato que já nasce como histórico. É inegável você considerar o 11de setembro como fato histórico. Quando aconteceu todo mundo sabia que seriaum fato histórico. Os EUA, a maior potência até então do mundo, serem atacadosda forma como foram, com certeza um fato histórico. E a partir do momento que ojornalista escreve o fato histórico ele está invadindo a história. Mas não tem comoser diferente. O jornalista vai contar de uma maneira. O historiador de outra. Sefosse depender da visão do Pierre Nora, talvez a gente tivesse que esperar algunsséculos para contar essa história. Mas não. O jornalista vai narrar esses fatos namedida dos acontecimentos, em tempo real, e há demanda por essa informação.Então essa discussão de contrapor o jornalismo à história é uma discussão quenão deveria seguir nesse sentido. Cada área do conhecimento tem a sua defini-

Page 22: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

22 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ção de fato. No direito, fato é que está na lei. O jornalismo trata o fato da suamaneira. Muitas vezes invade a área do historiador, mas o jornalismo continuatendo a sua especificidade.

GUILHERME: Com a tecnologia mudando a cada momento, é possível que issose embaralhe mais?

EBLAK: É possível, não, bagunça inevitavelmente de vez! Dentro do jornalismo agente se cobra muito por contar histórias fragmentadas, porque às vezes a gente seesquece de continuar dando foco à determinada história. A gente, muito voltado para ofactual, acaba esquecendo histórias relevantes, que têm valor-notícia, mas que ficampra trás. Uma das funções do historiador é organizar essas histórias confusas e emba-ralhadas. Aliás, é obrigação do historiador fazer isso. O jornalista se cobra, mas ele nãoconsegue. O jornalismo passa por uma crise. O modelo de jornalismo está em xeque.Porque o modelo de negócio do jornalismo se sustenta pela publicidade no impressoe esses anúncios mais receita com assinantes. Trata-se de um modelo de negóciosque surgiu no século XIX e se consolidou no XX. Com o surgimento da internet e apossibilidade de você divulgar notícias pela internet você coloca em xeque esse mo-delo de negócios. O problema está no fato de você não conseguir, na internet, amesma rentabilidade que em um veículo impresso consegue, que uma rádio conse-gue, que uma TV consegue. Nesse tradicional modelo de negócios do jornalismo,tem um aspecto importante: quanto mais anunciantes um veículo tiver, geralmente eleserá mais independente, o que dá a ele um peso muito grande numa democracia. Ojornalismo é importante nas sociedades democráticas. Basta citarmos o caso Water-gate e os documentos do Pentágono, nos EUA, no século passado. Com o modelo seesgotando e sem outro no lugar, o jornalismo vive esse impasse.

GUILHERME: Diríamos assim então: o jornalista bagunça. O Historiador tentaligar os pontos. Mas o desafio do jornalista é dar as notícias de forma menosconfusa possível...

EBLAK: Isso. Quando eu comecei a fazer jornalismo não tinha computador. Vocênão sabe o que é isso. Não tinha internet, não tinha Google. A gente escrevia ashistórias conversando com as pessoas. E não tinha celular - era mais difícil falarcom as pessoas. Tinha que achar o telefone fixo do cara ou ir até ele. E também,por outro lado, a gente tinha o monopólio da informação. A gente escrevia algumacoisa e aquilo era ou se tornava importante. Hoje em dia quase tudo está na internet.Até por isso o jornalismo perde poder e influência. O problema é que tem muito lixo

Page 23: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 23

na internet. Tem muita gente que diz que escreve notícia e não escreve. Tem genteque faz isso de sacanagem ideológica ou porque simplesmente é um amador equer ser um jornalista. Antes o que saía no jornal era sinônimo de verdade e, mesmoque não fosse real, tinha peso grande. Por vários fatores isso se perdeu.

GUILHERME: Até porque o público mudou.

EBLAK: Mudou muito. O público quer fazer história, não é mais a parte passiva dacomunicação. Ele quer se comunicar também. Ele tem blog, Facebook, Twitter.Ele também pode ser autor. Isso mudou todo mundo. Até pouco tempo atrás vocêtinha certo conforto em relação às fontes para escrever sobre determinado perío-do da história. Tinha documentos, livros, artigos científicos. Mas dependendo doperíodo que você escreve está tudo na internet.

GUILHERME: Ou está na boca da pessoa. Seria o caso da História oral?

EBLAK: Exatamente. A história oral enfrentou preconceito quando se começou afazer história. Eu participei de um dos grupos pioneiros de história oral na décadade noventa, com o professor José Carlos Sebe Bom Meihy. Ele sofria preconceitopor isso na Academia. A história tradicional não via uma entrevista como um docu-mento histórico.

GUILHERME: Mas o valor é tão grande quanto...

EBLAK: Eu sou suspeito pra falar. Fiz história e jornalismo. Gosto dos dois e sou umleitor dos livros de história. A formação que eu tenho eu devo à história, mas eu soujornalista profissional, então eu estou nos dois lados. E essa discussão de que ojornalista não sabe fazer história... O fato é que alguns sabem melhor do que umhistoriador. Mas isso não é importante. O importante é a história. Briga de ego não éimportante. Hoje você tem gente que faz um furo jornalístico que não é jornalista. Edaí? Se a notícia é importante para a sociedade é importante que ela seja divulgada.Para o historiador não. Ele está na academia, em outro ambiente. Então, em minhaopinião, os dois são complementares. Eu sempre vi dessa maneira.

CAMPOS, Guilherme Pires de. Journalism and history – two sides of the facto: inter-view with Luís Carlos Eblak. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.8, n.1 e n.2, 2012, p.X-X.

Page 24: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

24 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 25: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 25

DOSSIÊ/SPECIAL

“Gestão e espacialidade urbana”

Page 26: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

26 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 27: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 27

MÉDIAS CIDADES, GRANDES PROBLEMAS: AS FACETASDO USO E APROPRIAÇÃO DO SOLO URBANO EM SOBRAL/CE

Juscelino Gomes LIMA *

RESUMO: Este artigo pretende discutir o fortalecimento da especulação imobili-ária e a promoção da desigualdade socioespacial na cidade de Sobral, a partir daatuação de dois principais agentes modeladores do espaço urbano: os promoto-res imobiliários e o Estado. A promoção desta discussão revela não só um novoconteúdo urbano que vem sobrepondo-se às cidades médias, particularmente,as sertanejas cearenses, como evidencia diferentes impactos sobre sua popula-ção.

PALAVRAS CHAVE: Cidade média; Sobral; Solo urbano.

INTRODUÇÃO:

O evolutivo quadro da urbanização brasileira vem permitindo o estabele-cimento de novas articulações inter-regionais, estando a Região Nordeste comoum recorte espacial nacional de transformações profundas, fato que vem ense-jando um quadro de superações de letargia e atrasos, com destaque às áreassertanejas, tornando-as dinâmicas em vários aspectos, destacadamente, na de-senvoltura das cidades em médias, que no Brasil emergem como uma novaconfiguração do espaço urbano, denominado de “segmento urbano não metro-politano” (DAVIDOVICH, 1995), marcando uma nova dimensão urbana no Brasil.

Nesse direcionamento, apresenta-se a cidade de Sobral/CE, urbe trans-formada dinamicamente pelo viés capital e como tantas outras de seu lequeclassificatório e dentro de seu quadro regional, vêm desempenhando “um papelpolítico, econômico e social de crescimento para toda uma região” (SPOSITO,2009, p.19), fato que tem redimensionado consequências sobre a forma, conteú-do e organização de uso/ocupação de seu solo urbano.

Nesse ínterim, a presente comunicação objetiva discutir o fortalecimentoda especulação imobiliária e a promoção da desigualdade socioespacial nacidade de Sobral, a partir da atuação de dois principais agentes modeladores doespaço urbano: os promotores imobiliários e o Estado.* Mestrando em Geografia, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, Sobral/CE, Brasil.

Page 28: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

28 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Para o alcance dos objetivos valemo-nos de ricas discussões já elencadaspor (RODRIGUES; HOLANDA, 2012; ASSIS, 2010; MARIA JUNIOR; HOLANDA, 2010)e junto a estes, análises documentais junto à prefeitura e órgãos envolvidos em taldinâmica, bem como a parte empírica de visitação/investigação in lócu.

O artigo é constituído de três seções: (i): O Ceará entre momentos: fasespara dinâmica de transformações em Sobral/CE; (ii) As facetas do uso e apropri-ação do solo urbano em Sobral/CE; (iii) Para não concluir; Finaliza a composi-ção, a listagem das referências bibliográficas.

Na primeira seção é discutido as fases de formação e organização sóci-oterritorial do Ceará e seus rebatimentos sobre a composição da cidade de So-bral. Para a segunda seção é apontado as diferentes facetas e condições quemarcam o uso e apropriação do solo urbano em Sobral. No terceiro e ultimomomento desta discussão optou-se por concluir de uma forma não acabada,haja vista as dinâmicas que a cidade em destaque é cada vez mais dinâmica emsuas perspectivas de crescimento e desenvolvimento e suas influencias em nívelregional dentro do quadro territorial da porção norte do estado do Ceará.

O Ceará entre momentos: fases para dinâmica de transformações em So-bral/CE

De ponto inicial, entendemos ser necessário fixar um olhar cartográficode localização de Sobral, conforme se vê na fig. 1 abaixo, pois, possibilita vê-lacomo algo estratégico que é somado a sua incursão de formação e organizaçãosocioterritorial, narradas em paginas a seguir, fatos que justificam as dinâmicasde transformação sobre a cidade.

As condições sóciohistóricas orquestradas em espaços interiores doCeará, notadamente, as que ajudaram a desenhar a cidade de Sobral, estreadasa partir de sua colonização no séc. XVI e amplamente desenvolvidas até o fim doséc. XX nos apresenta elementos de um quebra-cabeça, com peças perfeita-mente encaixantes que se ligam para o além de seus formatos – o do conteúdo.

Nesse direcionamento, a formação e consolidação da urbe sobralense ede tantas outras do interior do Nordeste do Brasil, considerando os similares pro-cessos de colonização são respaldadas pela ideia de que as cidades são “aexpressão concreta de processos sociais na forma de um ambiente físico” (Har-vey, 1972 apud CORRÊA, 2010).

Raciocinando nesse direcionamento, então há de se conceber de formasintética que a cidade é um reflexo da sociedade. A cidade aqui objetivada e quevai de encontro com este entendimento são as denominadas médias. Contudo,

Page 29: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 29

quando lançamos um olhar sobre esta terminologia, veremos que a mesma es-tanca de relance para qualquer despercebido, no critério de grandeza. Quandofalamos em cidades grandes, medias ou pequenas, nossa memória recorre a seutamanho físico e como tal, abarcando diferentes possibilidades de sua exponen-cialidade urbana (tamanho populacional, produtividade, influências, etc.).

A despeito destas terminologias que elucidam vetor de grandeza, muito jáse tem refletido, particularmente, quando se trata das cidades médias, momentodialético entre diferentes estudos e áreas onde parece ausentar-se um consensono uso e validade deste termo, uma vez que:

Existem vários autores que tratam da questão das cidades médias e,através de seus estudos, pode-se notar que é difícil chegar a uma definição. Noentanto, se for considerado apenas o fator populacional, pode-se destacar algu-mas posições. Na visão da CEPAL1 cidade média é considerada como sendo

Fonte: O autor, 2013.

Fig.1: Localização do Municipio de Sobral/CE.

1 Ver CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. El rostro de La urbanización enAmérica Latina y el Caribe. Serviço de informação da CEPAL – Comunicado de imprensa. In: Conferenciaregional sobre el programa de Hábitat. Chile, 2000. Disponível em: <http://www.eclac.cl/cgibin/getProd.asp?xml=/prensa/noticias/comunicados/1/5041/P5041.xml&xsl=/prensa/tpl/p6f.xsl>

Page 30: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

30 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

aquela cidade que apresenta uma população entre 50 mil e 1 milhão de habitantes;já para Soares (2005)2, as cidades médias são representadas por um tamanhopopulacional entre 200 mil a 1 milhão de habitantes; por sua vez Maricato (2001)3

coloca entre os limites de 100 e 500 mil habitantes [...] (STAMM et al, 2010, p. 73).Não querendo aprofundar aqui esta discussão, mas apenas esclarecê-la,

a titulo de parte de um diálogo inicial, é notório enxergar que sua fomentação termi-nológica é carregada de um longo percurso dialético de existência, advindo daitalvez a sua incapacidade de fundamentar nossos objetivos nesta parte do trabalho.

Assim, adotaremos o critério demográfico do IBGE que afirma ser estascidades, as que se enquadram na totalidade de habitantes que vão de 100 a 500mil habitantes, onde a cidade de Sobral, pela ultima averiguação do Censo desteórgão em 2010, registrou-se 166.310 habitantes. Associado a este critério, acredi-tamos também ser necessário:

Uma preocupação em considerar outros elementos e, a nosso ver, adefinição de cidade média deve ter por base além do critério demográfico, asfunções urbanas das cidades relacionadas, sobretudo, os níveis de consumo e ocomando da produção regional nos seus aspectos técnicos (FREIRE, 2011, p.37).

Justamente ao considerar estes outros elementos é que percebemos Sobrale tantas outras de seu leque classificatório que as mesmas, no transcorrer do séc. XX,são fruto das diferentes políticas de reordenamento territorial acontecidas em diferen-tes governos, ou melhor, dizendo, diferentes períodos desenvolvimentistas4. Estes, es-tão inseridos no contexto nacional de transformações socioespaciais, via industrializa-ção e que costuraram e processaram-se em três fases distintas a saber:

A primeira engloba o início do século XX até a criação da Superintendên-cia de Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE e é resultante do fortalecimentoda proto-indústria na segunda metade do século XIX. A segunda é demarcadapelo intervencionismo institucional da SUDENE e demais órgãos e pelos projetosde integração nacional e industrialização. E, por último, responde o período pós-SUDENE, marcado pela desaceleração das políticas industriais experimentadanas últimas duas décadas (ALMEIDA, 2012, p.10).

De todo modo e por diferentes décadas do séc. XX, os gestores locais, se

2 Ver SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Cidades médias e aglomerações urbanas: a nova organizaçãodo espaço regional no Sul do Brasil. In: I Simpósio Internacional Cidades Médias: dinâmicas econômicase produção do espaço urbano. Anais. Presidente Prudente: Unesp, 2005.3 Ver MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.4 Este termo tem forte ligação e inserção do Ceará, via investimentos e infraestruturas, em diferentesgovernos, a partir de 1960, encaixada em diferentes altos e baixos momentos de desenvolvimentoeconômico e social do Brasil.

Page 31: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 31

apresentaram como principais articuladores das políticas industriais e desenvolvi-mentistas5. É a partir destas, que se dão os alicerces de crescimento e conteudiza-ção das cidades médias sertanejas, em particular relevo, Sobral, no Ceará. Nessedirecionamento, diferentes ações marcaram-se como esforço da extensão de umapolítica nacional, onde entre a representação estatal maior e a menor:

O Nordeste ensaiou um grande surto de desenvolvimento via indução industrial,transformando a região numa produtora de bens intermediários - Surgiram pólosprodutivos especializados como o petroquímico e cloroquímico, na Bahia, o metal-mecânico, em Pernambuco, o complexo de salgema e sucro-alcooleiro, em Alagoas,o complexo minero metalúrgico, no Maranhão, o pólo têxtil e de confecções deFortaleza e o agroindustrial no perímetro irrigado do Médio São Francisco, dentreoutros (Op.Cit. 2012, p.11).

Visualiza-se ai, o esforço do Estado na confecção de uma das mais ousa-das e dialéticas formas de políticas públicas para “salvar” o Nordeste, de suaslastimações e atrasos. A forçosa tentativa de colocar o Brasil e seus “recortes”territoriais na dianteira da Divisão Internacional e Territorial do Trabalho, conside-rando a dinâmica capitalista no mundo pós Segunda Guerra, fez:

Os investidores, com o beneplácito do Estado, aumentam a articulaçãoindustria/agricultura, visando a integração de mercados. Onde o capital financei-ro nacional e internacional se fez ampliar especulativamente e produtivamente(HOLANDA, 2007, p.94).

As ações e projeções de investimentos e orientações para tal no Nordes-te, via SUDENE contribuíram de forma exemplar para uma reconfiguração espa-cial do Nordeste brasileiro e obviamente, de cidade interiores do estado do Ceará,a exemplo de Sobral que fora mediada pelo cortejo da implantação dos “Fixos eFluxos”, tal qual aponta Santos (1996, p. 141).

Para a consecução da implantação em destaque uma sequência degovernos que se deu do inicio de 1960 até a primeira metade de 1980, denomina-do de período coronelista6 muito contribuiu ao quadro econômico e organizativodo ponto de vista espacial do Ceará. Virgilio Távora, por exemplo, ao governar o

5 Este termo tem forte ligação e inserção do Ceará, via investimentos e infraestruturas, em diferentesgovernos, a partir de 1960, encaixada em diferentes altos e baixos momentos de desenvolvimentoeconômico e social do Brasil.6 Este período corresponde ao momento da vivências políticas no Brasil, marcada pelos ditames dosgovernos militares e que no caso do Ceará, movimentou-se pela troca de poder entre os governadoresVirgílio de Morais Fernandes Távora (1963-1966); Plácido Aderaldo Castelo (1966-1971); César Cals deOliveira Filho (1971-1975); José Adauto Bezerra (1975-1978); Virgílio de Morais Fernandes Távora(1978-1982) e Luiz de Gonzaga Fonseca Mota (1983-1987).

Page 32: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

32 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Ceará por duas vezes, possibilitou ações materiais sobre o estado, repercutindonos deslocamentos dos investimentos as cidades do interior, refletindo-se emSobral, pois o mesmo promoveu “a construção de rodovias ligando cidades dointerior, do Baixo Jaguaribe que, algumas décadas mais tarde, torna-se um “novoespaço da produção globalizada” no Estado do Ceará e atrai grandes gruposindustriais como a Grendene” (ARAUJO, 2007, p. 101).

É importante lembrar que associado aos fixos e fluxos que passam a“correr” aos espaços interiores do Ceará, a partir de 1970 em diante, este governoe os outros que se intercalaram no jogo político, notabilizaram-se também pelaprática da política dos incentivos fiscais. Esta prática energizou as movimenta-ções de investimentos em parques industriais, direcionados primeiramente àRegião Metropolitana de Fortaleza – RMF, mas em seguida, direcionou-se àscidades do interior, momento que exigiu destas uma tessitura espacial organiza-da para o recebimento dos circuitos de investimentos materiais ancorados napresença imaterial do território investido.

Na segunda metade da década de 1980 em diante, o Ceará assistiu aofim da era dos ditos governadores coronelistas e a diminuição do poder das fa-mílias oligárquicas até então operantes no seio social e econômico cearense e seviu mergulhada na fase de governança empresarial, marcando a era do “Governodas Mudanças7”, que reunia um elenco patrimonial de novos políticos que ventila-ram novos pensamentos e virtudes ao Ceará, marcados pelas:Propostas de moder-nização do Estado em todas as esferas, indo ao encontro do grupo de investidoresemergentes que passam a atuar no Nordeste graças ao avanço do meio técnico-cientifico-informacional, ocorrendo o reforço da inserção do lugar/região ao mundocontemporâneo, por meio da política neoliberal – flexibilidade, competitividade,privatização, modernização, descentralização (HOLANDA, 2010, p. 87).

A defesa da economia de mercado e a lógica da propriedade privada deprodução dentro da perspectiva modernizante elaborada pelos discursos e açõesmodernizadoras vieram emoldurar um novo tempo, uma nova era, uma nova basede ser e estar do Ceará frente a conjuntura mundial que arquitetava os ditames daeconomia mundial pré década de 1990.

Dar entrada do Ceará nessa nova compostura desenvolvimentista reque-reu planejamentos por parte do governador Tasso Jereissati. E uma dos princi-pais é via regionalização do estado, como forma de descentralização de novas

7 Encabeçado por Tasso Ribeiro Jereissati, este governo é uma sequencia de ações políticas no Ceará eque objetivou entre outros a ruptura com o clientelismo e assistencialismos propalados pelos governoscoronelistas e influenciado pelas fortes famílias de conteúdo oligárquico.

Page 33: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 33

oportunidades de gerenciamento e conhecimento de potencialidades de investi-mentos, tal qual a elaborada pelo Instituto de Planejamento do Ceará – IPLANCE,no momento da execução do I Plano das Mudanças, de 1987-1991 e que adotoucomo critérios condicionadores: contingentes populacionais, sistemas viários,atividades econômicas, etc.

Como resultado da incursão de gerenciamento regional, obteve-se 20Regiões Geográficas Administrativas – RG, que incluía o reconhecimento e des-taque de sete Áreas de Desenvolvimento Regional – ADR’s: Especial, Litoral, Valedo Jaguaribe, Cariri, Sertão dos Inhamuns, Sertão Central e Sobral/Ibiapaba. Es-ses recortes costuraram possibilidades intercâmbios, a partir de suas potenciali-dades e investimentos diferenciados e ampliados em governos seguintes.

Destes investimentos e escolhas da espacialização da produção no es-tado, destacadamente, as localizadas fora da Região Metropolitana de Fortaleza,denominada de ADR Especial, nos anos de 1990, viu-se que a de Sobral – ADRSobral/Ibiapaba era:

Composta de 20 municípios e se apresenta bastante diversificada noramo industrial, por envolver municípios de aspectos econômicos, sociais, políti-cos e naturais distintos, havendo um predomínio de produtos alimentares, vestuá-rios, calçados e artefatos de tecidos, com destaque para o setor calçadista e maisrecentemente, imobiliário e de artefatos da construção civil, respondendoai pela dinâmica espacial de maior uso e necessária para o desenvolvi-mento regional norte (IDEM, 2010, p. 89 – Grifo nosso).

Com efeito, os anos finais de 1990 e, notadamente, as primeiras déca-das que compõem o sec. XXI marcam sobre a cidade de Sobral uma atmosferade transformações que resultam das movimentações políticas e de investimen-tos, fruto de tempos e condições anteriores já apontadas.

Pela visualização pondera-se que as políticas entremeadas nos processosde reorganização espacial no Ceará possibilitam mais que um rearranjo, uma es-pacialização dos eventos econômicos que deram vida e notoriedade a vários cen-tros urbanos fora da Região Metropolitana de Fortaleza – RMF. Essa espacializaçãofora importante, pois além de doar autonomia fora dos quadrantes de influência dacapital, estimulou o desenvolvimento e apêndices comerciais e produtivos, incre-mentando valores e resignificando o sentido de viver e investir no sertão.

Sobral nesse contexto é abarcado por diversos equipamentos comerci-ais e de serviços até então exclusivos da/na capital, influenciando gostos, deci-sões de compra e a definição de consumo que se heterogeniza pelo fato de amassa populacional para tal ter origem diversas, advindo daí, costumes e condi-ções financeiras de acesso desigual que marcam os cenários dos PIB’s e com

Page 34: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

34 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

este a ciranda de desenvolvimento que se edifica e se reflete na organizaçãoespacial e de consumo de seu solo urbano.

As facetas do uso e apropriação do solo urbano em Sobral/CE

A organização urbana e territorial na urbe de Sobral é fruto de uma amal-gamação de valores e condições construídas no passado, processados no modode produção capitalista, que entre outras caracterizações, a faz fragmentada earticulada, mesmo que contraditória e simultaneamente, onde “[...] cada uma desuas partes mantém relações espaciais com as demais, ainda que de intensida-de muito variável” (CORRÊA, 2002, p. 0 7).

Essa articulação das partes tem correlação direta, quer seja com seupassado de formação/organização, quer seja pela via palpável, materializada pelacirculação de pessoas, mercadorias, capitais e a constante e renovada artificiali-zação de seus espaços de circulação, como meio e condição ao alcance denovas projeções e ligações com espaços exteriores e interiores, alimentadoresde sua dinâmica de renovação espacial.

No processo de renovação urbana, encontramos em Corrêa (IDEM, 2002),o elencar de cinco principais agentes modeladores do espaço urbano que seagrupam em algumas categorias, tais como: Os proprietários dos meios de pro-dução, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o Estado e os gru-pos sociais excluídos. O reconhecimento destes se faz de suma importância noprocesso de compreensão da organização espacial urbana, pois:

No estágio atual do capitalismo, os grandes capitais industrial, financeiroe imobiliário podem estar integrados indireta ou diretamente, nesse caso emgrandes corporações que, além de outras atividades, compram, especulam, fi-nanciam, administram e produzem o espaço urbano (IBIDEM, 2002, p. 13).

Para a análise e discussão objetivada nessa comunicação, recortamosas ações possibilitas por e a partir das presenças de dois agentes principais: ospromotores imobiliários e o Estado. Nesse sentido, os primeiros, na cidade deSobral operam sob diversas ações, quer seja de forma parcial, quer seja de formatotal, realizando entre outras:

a) incorporação, que é a operação-chave da promoção imobiliária [...];b) financiamento, que visa a compra do terreno a partir da formação de recursos mone-tários provenientes de pessoas físicas e jurídicas [...];d) construção ou produção física do imóvel [...]; ee) comercialização ou transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro, agoraacrescido de lucros [...] (CORRÊA, op. cit, 2002, p. 25).

Page 35: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 35

Nessas condições, destacamos a valorização e ampla remodelação imo-biliária recente na cidade por tais agentes sobre os bairros: Renato Parente, NossaSenhora de Fátima, Derby Club, Junco, Coração de Jesus, Pedrinhas, DomingosOlimpio, Pedro Mendes de um total de 34 bairros que compõe a urbe sobralense.

A remodelação em curso é canalizada entre outros, a partir dos apelos/discursos midiáticos e de marketing, denotando senso de segurança, felicidade econtato com a natureza, tal qual se observa o exemplo da fig.2 abaixo, pois refor-çar-se a ideia de que “morar nestes locais representa sinônimo de qualidade devida e que segurança e conforto são essenciais na sociedade atual” (RODRI-GUES; HOLANDA, 2012, p.51).

Fig. 2: Agentes Imobiliários na mercadorização do solo urbano, Bairro Várzea Alegre

Fonte: LIMA, 2013.

O apelo midiático anterior além de contribuir para a parcelificação dosolo urbano em Sobral reforça o papel de importância que a cidade possui, en-quanto núcleo urbano do sertão cearense que pulsa desenvolvimento/transfor-mações, onde o loteamento divulgado é expresso nos meio de comunicação,conforme se observa onde na fig. 3 abaixo.

Page 36: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

36 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Fig. 3: Chegada de novos empreendedores imobiliários em Sobral

Fonte: Jornal Diario do Nordeste, 05/10/2012.

Conforme se coloca na matéria, a cidade de Sobral fora escolhida pelaconstrutora para o investimento do novo empreendimento imobiliário pelo fato deser considerada a maior economia do interior do Estado, fato que inaugura emespaços adjacentes a esta obra e em outros cantos da cidade uma ciranda deacumulação de terrenos que são alimentados pela prática da especulação imo-biliária, a exemplo dos terrenos da fig. 4 abaixo:

Fig. 4: Espaços de especulação imobiliária – Bairro Várzea Grande

Fonte: LIMA, 2013.

Page 37: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 37

No sentido inverso, têm-se os bairros mais segregados, como Alto Cristo,Dom José COHAB I e II, Sumaré, entre outros, que se marcam pela “concentraçãomais carente e onde a oferta de serviços é mais deficitária” (ASSIS, 2010, p.174).Esta carência é representada pela ausência eficaz de serviços de limpeza, bemcomo da falta de infraestruturas nas ruas, o que termina corporificando sobreestes uma condição imagética negativa em acerca de sua composição e apre-sentação, frente ao cenário de transformações na cidade, fato que se percebenas figuras 5 a seguir.

Fig. 5: Bairro Vila União com visível ausência de infraestrutura

Fonte: LIMA, 2013

Considerando então o sentido da reorganização e dinâmica urbana emexposição, vê-se que o centro da cidade se dirime a uma condição mais comerci-al do que residencial, ensejando no resto da cidade, o brotar de novos subcentros,resultando ai em uma reestruturação intraurbana, que como despacho final emSobral, credenciam-se novos aportes infraestruturais e circulatórios, visualizadosa partir da presença de importantes avenidas e bairros como: Av. Dr. Guarany(bairro Derby), Av. John Sanford (bairro Junco) e Av. do Contorno (bairro Campodos Velhos) com importantes implantações de núcleos de comércio, via super-mercados e pequenos comércios instalados nessas áreas para onde o Estadodirecionou seus investimentos com a duplicação de avenidas requalificação depraças, construção de parques, entre outros benefícios (IDEM, 2010, p.177).

Alimenta-se nesse direcionamento um olhar aguçado que nota às vezesas ações dos promotores em tela, confundir-se com o do Estado, já que este “em

Page 38: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

38 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

diversas instâncias e na maioria dos casos, visa e trabalha para criar condiçõesque viabilizem o processo de acumulação e reprodução das classes sociais esuas frações” (PAEZ, 2006, p. 43).

Assim, na cidade de Sobral, acelera-se a “corrida” na aquisição de terre-nos que venha alimentar o mecanismo de mercadorização do solo urbano eretroalimentação para os investidores, a exemplo do que se observa de formadinâmica no bairro Renato Parente, a partir das fig. 6 abaixo.

Fig. 6: Residências de alto valor no bairro Renato Parente

Fonte: LIMA, 2013.

Este bairro em Sobral é um dos que mais se expande e materializa novasformas de consumo e recortes do solo urbano, alimentando investidores, degra-dando novos espaços de natureza, uma vez que o mesmo está aos “pés” da Serrada Meruoca, o que instiga aos novos residentes ter contato mais intimo com anatureza.

Como resultado sobre a edificação do solo urbano deste bairro, felicita-se sua localização ao possibilitar residir nos limites verdes da cidade, mas quevisivelmente materializa condições segregantes de acesso e uso do solo, uma vezque as residências em sua grande maioria são padronizadas em seus estilos, oque explicita o vetor social dos seus inquilinos.

Para não concluir

A forte atuação dos agentes em destaque, além de condicionar um revi-goramento do capital imobiliário e a posterior exacerbação do valor do solo urba-no e acesso a moradia na cidade, expõe outra faceta negativa que é o forçamentode alocação de moradia e vivências por parte de um sem número de desafortuna-

Page 39: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 39

dos sociais nas piores partes infraestruturais na urbe em tela, reproduzindo umaciranda de condições sub humanas que transvestem uma imagem sempre nega-tiva destes espaços em constante ocupação.

Lembrando então que a mancha da cidade de Sobral à medida que seexpande, leva consigo as nuances que perfazem o poder de atuação dos agentesnarrados e seus respectivos objetivos, mas também incrementa disparidadesambientais em diferentes pontos e circunstâncias, exaurindo o meio natural e suacomposição, alimentando um conjunto de fragilidades em meio a este “carnaval”de retaliação e consumação da malha urbana, uma vez que associam-se para asfragilizações em detalhe, a existência e execução das atividades industriais rei-nantes na cidade.

Nesse encaminhamento, Sobral, dada a narrativa exposta, tem o uso deseu solo redimensionado para além do senso capital de consumo, mas tambémde segregação de uma coletividade que usa a cidade, não usufruindo dela doponto de vista infraestrutural e imageticamente como as partes ditas mais ricasusufruem. Desenha-se assim na cidade uma realidade, várias facetas.

A realidade é que a cidade se exponencializa e também ajuda a dinami-zar e além de congratular condições e produtividades econômicas entre diferen-tes cidades na parte Norte do Estado do Ceará. Estas, arquitetam-se na variedadede serviços, comércios e atividades industriais, fato que demanda em Sobral umamaior parcelificação e uso do solo urbano, momento que consubstancia as váriasfacetas em seu processo organizativo, como se narrou em páginas anteriores.

Considerando estas ideias é que nesta parte desta comunicação opta-mos em não denominá-la de conclusões e ou considerações finais, pois enten-demos ser este processo além de dinâmico, também duradouro e persistente,fato que ilustrará sempre novos diálogos, com novos sujeitos e condições, mo-mento que nos permitirá novas reflexões nos convidando de forma insistente, acontinuar este debate.

LIMA, Juscelino Gomes. Medium towns, big problems: the facets of use and owner-ship of urban land in Sobral/CE. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.8, n.1 e n.2, 2012,pp. X-X.

ABSTRACT: This communication discusses the strengthening of property specu-lation and promote sociospatial inequality in the city of Sobral, from the action oftwo main modeling agents of urban space: the developers and the State. Thepromotion of this discussion reveals not only a new urban content that comes

Page 40: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

40 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

overlying the medium cities, particularly the hinterland of Ceará, as evidenced bydifferent impaction on its population.

KEYWORDS: City average; Sobral; Urban Land.

Referências:

ALMEIDA, Humberto Marinho de. Práticas espaciais, gestão seletiva e o de-senvolvimento territorial no Ceará. In: XV CISO - Encontro Norte e Nordeste deCiências Sociais Pré-ALAS Brasil, 2012, Teresina - PI. XV CISO - Encontro Nortee Nordeste de Ciências Sociais Pré-ALAS Brasil, 2012. v. único.ARAUJO, Nancy Gonçalves de. A industrialização no Ceará: breves considera-ções. Instituto de Estudos Sócioambientais. Boletim Goiano de Geografia. 2ed.Goiânia: UFG, 2007, v. 27, p. 97-114.ASSIS, Lenilton Francisco de. Especulação imobiliária e segregação socioespa-cial na cidade de Sobral. In: HOLANDA, V. C. C. de.; AMORA, Z. (Org.). Leituras esaberes sobre o urbano: cidades do Ceará e Mossoró no Rio Grande do Norte.Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010, p. 165-187.CORRÊA, Roberto. Lobato. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2010.______. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 2002.DAVIDOVICH, Fany. Considerações sobre a urbanização no Brasil. In: BECKER,Berta et al (Org). Geografia e Meio Ambiente no Brasil. São Paulo/Rio deJaneiro: Hucitec, 1995, p. 79-96.FREIRE, Heronilson Pinto. O uso do território de Sobral, Ceará pelas institui-ções de ensino superior. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Gradua-ção em Geografia, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2011.HOLANDA, Virginia Célia Cavalcante de. Modernizações e espaços seletivosno Nordeste brasileiro. Sobral: Conexão Lugar/Mundo. Tese de Doutorado.Programa de Pós Graduação em Geografia Humana, Universidade de São Pau-lo. São Paulo, 2007.______. Sobral – CE: de cidade do sertão às dinâmicas territoriais da cidademédia do presente. In: H. Virginia. C.H; A. Zenilde. B,. (Org.). Leituras e SaberesSobre o Urbano: cidades do Ceará e Mossoró no Rio Grande do Norte. 1°ed. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2010, v. , p. 75-94.

Page 41: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 41

PAEZ, Luciano Gagliardi. Dinâmica Territorial no Município de Niterói: umfoco na emergência dos condomínios fechados da Região Oceânica. Disserta-ção (Mestrado em Demografia) – Fundação IBGE (ENCE). Rio de Janeiro, 2006.RODRIGUES, A. H. V.; HOLANDA, VC.C. As feições da especulação imobiliá-ria e a produção do espaço da cidade média de Sobral-CE. Revista da Casade Geografia de Sobral, v. 14, p. 44-55, 2012.RODRIGUES, JÉSSYCA. Bairro Planejado em Sobral inicia zoneamento delotes. Diário do Nordeste, 05/10/2012. Caderno Regional. Disponível em:http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1188869SANTOS, Milton. Espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1996.SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Para pensar as pequenas e médiascidades brasileiras. Belém: FASE/ICSA/UFPA, 2009. v. 1.STAMM, C. ; WADI, Y. M. ; STADUTO, J. A. R. . São as cidades médias respon-sáveis pelo espraiamento espacial da riqueza nacional?. Revista REDES(Santa Cruz do Sul. Impresso), v. 15, p. 66-91, 2010.

Page 42: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

42 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 43: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 43

ARQUITETURA E URBANISMO PARTICIPATIVOS: EPERIEN-CIAS DE CHRISTOPHER ALEXANDER E SEUS CONTEMPO-

RANEOS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

Danila Martins de Alencar BATTAUS*

RESUMO: O universo da Arquitetura e Urbanismo Participativos contém um capítu-lo particular e repleto de experiências notórias que se desdobrou, especialmente, apartir dos anos 1950, nos ambientes Europeu e norte-americano. Alguns profissio-nais – como Christopher Alexander - destacaram-se nesse cenário, sobretudo porintroduzirem a relação direta entre o Arquiteto e o usuário final de edifícios residen-ciais, educacionais, entre outros, o que se pretende discutir neste trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Christopher Alexander; Arquitetura Participativa; UrbanismoParticipativo; Desenvolvimento de Comunidade; Arquitetura de Comunidade.

1. Arquitetura e Urbanismo como campo profissional na segundametade do século XX.

Durante o século XX, inúmeros fatores influenciaram a propagação deprocessos participativos no âmbito da Arquitetura e do Urbanismo, em diferentespaíses e, consequentemente, com diferentes contextos e resultados. No ambienteeuropeu, por exemplo, alguns marcos do envolvimento dos profissionais dessa áreabem como das sociedades em geral, foram os processos de reconstrução de edifi-cações, bairros e até mesmo cidades, após a Primeira e Segunda Guerra Mundial.

Após a Segunda Grande Guerra, ocorrida durante 1939-1945, alguns ca-sos de cidades europeias necessitaram de reconstrução completa, em razão dasdimensões da destruição bélica dessa guerra. “Nesses casos, o problema da iden-tidade da cidade e de sua continuidade física e cultural se resolve com a conserva-ção daquilo que permaneceu intacto ou recuperável e na reconstrução mais livre,segundo os princípios modernos, daquilo que se perdeu” (CALABI, 2012).

Segundo a autora, da metade do século XIX ao início do XX, o urbanismo

* Universidade de São Paulo; Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos; Grupo de PesquisaURBIS – São Carlos / SP / Brasil; Pós-doutoramento com bolsa Programa Pós-doutorado Júnior –CNPq, supervisão Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade.

Page 44: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

44 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

se forma nas cidades europeias como um campo disciplinar com característicasespecíficas, assim como a geografia, economia urbana, entre outras áreas, es-tando diretamente ligado ao processo de Industrialização, configurando cenáriosnovos nos territórios urbanos. Já nas décadas de 1940 em diante, o ambienteurbano padecia não mais dos impactos nocivos da industrialização desenfreada,mas da necessidade de instrumentos e profissionais que reconstituíssem aquiloque se perdera com os desmandos bélicos.

Para CALABI (2012), a reconstrução foi o termo abarcado nos anos 1940,inicialmente preconizada por países como França, Inglaterra, Alemanha, Holan-da e Polônia, reconhecendo-se o profissional urbanista como “do bem”, atravésde “elaborações conceituais e organizativas importantes”. (p.289) A autora enfati-za a importância que tiveram os planos introduzidos na época como o de PatrickAbercrombie para o Reino Unido, além do lema da descentralização da grandeLondres através das New Towns e, na França, a presença de grandes e homogê-neos bairros. Em conjunção com esta visão, TAFURI (1980) comenta as NewTowns implementadas na Inglaterra e, também, os programas de construção denovas edificações, sobretudo as institucionais como escolas, por exemplo.

A ordem adotada era a de reconstrução do que era existente antes daguerra, com exceção dos locais que necessitavam de alguma desconcentraçãopopulacional ou intervenção sanitária. A presença do urbanismo foi essencialnesse processo e, os Arquitetos, passaram a refletir sobre o ambiente construídoe suas implicações, por exemplo, manifestando suas intenções em publicaçõesque divulgavam as intervenções urbanas.

Os movimentos introdutórios de participação nesses processos de re-construção das cidades, bairros, entre outros, difundiram-se aglutinados à conso-lidação de comunidades, peremptoriamente em razão dos vínculos estabeleci-dos entre indivíduos constituintes dessas comunidades e o ambiente ocupadopor elas. Torna-se necessária, portanto, a reflexão sobre o que representaramesses termos na cultura e sociedade da época.

2. O Desenvolvimento de Comunidade e Arquitetura de Comunidade

As primeiras referências atribuídas ao termo Desenvolvimento de Comu-nidade ou Community Development se deram na Inglaterra, no final da década de40 do século XX, quando se concluía que se tratava de um movimento destinadoà promoção de melhor qualidade de vida nas comunidades, mediante sua parti-cipação e iniciativa ou, ainda, a partir do estímulo ou indução por meios técnicosapropriados (apud KRUG 1984).

Page 45: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 45

SOUZA (2000) confirma a origem do termo, mencionando que a Inglaterra “foio primeiro país a se interessar pelo Desenvolvimento de Comunidade”, em um momentocujo contexto social, político e econômico convergia para a reestruturação da ordemsocial então estabelecida, a partir de ações missionárias e ideias humanistas.

No Brasil, segundo Safira Bezerra Ammann, “o embrião do Desenvolvimentode Comunidade é gestado ainda na década de 1940, quando a Inter-American Inter-national Educacional Foundation, Inc. – USA firma acordos com os Ministérios deAgricultura e de Educação, com o fim de formar especialistas para a implantação deprogramas comunitários nas áreas rurais e urbanas” e, na sequência, a autora colocaque, a partir dos anos 50 do século XX, este processo se institui como instrumento“capaz de favorecer o consentimento espontâneo e a adesão das classes subordina-das às Políticas Sociais definidas pelo Estado” (AMMANN, 2003, p. 09).

Embora seja demonstrada a ambiguidade de definições e vertentes identifi-cadas a respeito do DC (Desenvolvimento de Comunidade) no Brasil, considera-seque o processo tenha sido aqui introduzido na década de 1940, muito embora, naprática, tenha se difundido no final da década de 1950 e início de 1960 (SOUZA, 2000).

Na década de 1950, muitos organismos internacionais passaram a manifes-tar interesse em subsidiar os processos participativos em países subdesenvolvidoscom assessoria técnica. Neste processo, entendia-se ser a comunidade a unidadebásica de trabalho, onde se deveria introduzir novas técnicas, costumes, como diretri-zes dos Programas implementados. Buscava-se o respeito à cultura local, porém,paralelamente, se concluiu que as tradições podiam bloquear os ideais de progressodas comunidades.

Neste contexto, autores analisam em que medida o DC contribuiu com umprojeto de liberação das camadas populares e, não, como um mecanismo de domi-nação. O desenvolvimento, contudo, passa a ser visto como crescimento econômicoe progresso técnico. Essa realidade, adiante, passa a levantar a questão do desenvol-vimento agora tido como crescimento e bem-estar social para toda a população, oque influencia o novo pensar sobre o DC.

Observa-se, contudo, que o DC, nesta primeira fase, foi qualificado como umprocesso introduzido por membros externos à comunidade, de acordo com pressu-postos teóricos e técnicos que deveriam se aplicar a diferentes casos, sem ser consi-derada a importância da própria comunidade na definição e implantação de ações.

Reforça-se, portanto, o entendimento de que o DC deve ser visto comoum processo metodológico, constituído de técnicas e instrumentos de aplicação,baseados nas características específicas da comunidade, em um estudo siste-mático dos problemas existentes e das potencialidades que podem ser fomenta-das para o desenvolvimento local.

Page 46: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

46 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Community Architecture (Arquitetura de Comunidade) é um termo que foraaplicado a uma variedade de movimentos e correntes filosóficas nos Estados Unidose Europa, durante o século XX. (BATTAUS, 2005) Embora seja denominada Arquitetu-ra de Comunidade, pode-se dizer ser muito semelhante ao D.C., pois há uma partici-pação efetiva da população nas intervenções realizadas por meio deste processo.

Analisando-se esses aspectos, observa-se ser essencial a aproximação en-tre o arquiteto e o morador, objetivando-se a adequação da habitação às necessida-des de cada família. Acredita-se na hipótese de que, quando a comunidade participado planejamento de suas próprias residências, não busca apenas adequá-las às suasexpectativas momentâneas, mas às futuras e prováveis necessidades.

Tom Woolley (1986) afirma que, em alguns casos observados, os usuári-os de unidades habitacionais produzidas em processos participativos, mostra-ram-se muito mais satisfeitos com o produto por terem participado do controle, doque pela proposta em si.

Entende-se que a participação dos cidadãos surgiu, portanto, como ummecanismo de exteriorizar o processo de projeto e planejamento de construções,onde importantes problemas sociais foram debatidos em audiências públicas. A ideiaera de que planejamento, no seu mais amplo sentido, deveria ser pluralístico e partici-pativo e que as comunidades necessitavam de profissionais na área jurídica paraauxiliá-los a descentralizar políticas e controlar o meio ambiente que lhes pertencia.

Por volta de 1970, os grupos e ações comunitários floresceram. Váriosorganismos existiam nos EUA e eram providos de assistência técnica de Universi-dades para inúmeros bairros, cooperativas de alimentação, clínicas de saúde eprojetos de reformas de edificações, onde participavam estudantes e voluntários,financiados por programas governamentais (BATTAUS, 2005).

Na interpretação de DEL RIO (1990), diversos fatos ocorridos em todo omundo em meados de 1970 foram importantes para a consolidação do DesenhoUrbano como uma forma de atuação profissional para o arquiteto e urbanista. Dentreestes, está a instituição da prática de participação popular na gestão das cidades e naprodução de habitações com a contribuição dos usuários nos projetos1.

Neste aspecto, o mesmo autor menciona exemplos ocorridos simultane-amente, em todo o mundo, de experiências da participação popular: a) em 19651 GOODEY (1980) destaca, na época, o crescente “distanciamento dos políticos das reais necessidadesda população. Os governos viram-se, então, obrigados a lidar com a participação popular nos processosde planejamento, mesmo porque se conscientizaram que esta seria uma solução mais populista e econômicado que o enfrentamento direto. Evidentemente, esta participação viria tomar várias formas, desde a co-optação até a utilização de mão-de-obra comunitária barata para as obras, não sendo ́ per se´, garantia deinfluência nos processos de tomada de decisões.” (apud DEL RIO 1990, p.31)

Page 47: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 47

é aprovada uma lei, na Grã-Bretanha, tornando obrigatória a participação da po-pulação na confecção de planos diretores; b) nos EUA, a legislação institui aobrigatoriedade da execução de relatórios de impacto ambiental contando com aparticipação da população nos locais onde seriam empregadas verbas do gover-no federal (1969). Anos seguintes, o mesmo ocorreria com as comunidades quesofreriam processos de urbanização e, deste modo, definiriam as prioridades deemprego dos recursos; c) estas correntes de prática da participação popular nosEUA se estenderam às universidades, originando cursos de formação profissionalem Planejamento Comunitário (Community Planning) (DEL RIO, 1990).

3. Christopher Alexander e seus contemporâneos

O cenário da produção arquitetônica e urbanística no decorrer do séculoXX, no contexto internacional, contou com um rol de profissionais, especialmentena segunda metade do século, que se aproximaram fortemente dos mecanismosde participação popular, de qual ordem fossem. Dentre esses nomes, destacam-se Lucien Kroll (referência à “arquitetura aberta” e ao raciocínio do “participativis-mo”2), Ralph Erskine (processo de projeto no interior de empreendimentos quegarantissem a participação do usuário3) e Christopher Alexander que, segundotexto de autoria do grupo MOM (“Morar de Outras Maneiras” – UFMG), “a críticase volta mais para a produção de massa desprovida de características individuais;o que os levou a trabalhar com participação direta dos usuários nos projetos”4

(MOM, s/d).Christopher Alexander nasceu em Viena, Áustria, em 1936. Com pais

arqueólogos clássicos, no início da segunda guerra mundial (1938), mudou-separa a Inglaterra. Cresceu em Oxford e começou a falar inglês aos 6 anos, segun-do GRABOW (1983); graduou-se em Matemática e, posteriormente, tornou-seArquiteto pela Universidade de Cambridge (Inglaterra).

Durante a década de 1950 mudou-se para Harvard (EUA), com o intuitode aperfeiçoar sua formação profissional. Ainda de acordo com GRABOW (1983),o primeiro livro publicado por Alexander foi “Community and Privacy: towards a2 “Lucien Kroll, arquitetura aberta nos anos 70” disponível em http://notasurbanas.blog.com/2010/12/20/lucien-kroll-arquitetura-aberta-nos-anos-70/.3 Trata-se da parceria com Vernon Gracie na produção do Byker, bairro residencial situado na periferia dacidade de Newcastle, Inglaterra, no período de 1973 a 1978 por um processo participativo em larga escala.(COMERIO, 1987)4 Segundo QUEIROZ (2004), essas idéias surgiram na década de 60 do século XX, ganharam ênfase nasdécadas seguintes (70 e 80) e foram abandonadas na década de 1990.

Page 48: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

48 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

New Architecture of Humanism”, cujo título traduzido, remetia à introdução de fer-ramentas para a constituição de uma “nova Arquitetura”, voltada às necessidadeshumanas das comunidades.

Esse eixo disciplinar da nova arquitetura havia apenas iniciado, pois Ale-xander difundiu o apego aos projetos que caracterizam as verdadeiras expectati-vas e necessidades dos usuários em todo seu legado. Em 1965, por exemplo,publicou o texto “The City is not a Tree” difundido a vários países, em todo omundo, cujo conteúdo centrou-se na formulação de severa crítica ao modelo decidade ora defendido pelos Arquitetos Modernistas: a cidade funcional.

Para Alexander, as cidades possuíam características naturais essenciaisà vida de seus habitantes e, portanto, os arquitetos não deveriam concebê-lascom “a simplicidade estrutural de uma árvore”, nem tampouco distorcer a con-cepção real do que é uma cidade, com sua complexidade estrutural natural e suarealidade social5.

No que concerne aos processos participativos, o legado de ChristopherAlexander é, sem dúvida, uma referência. Contrapondo-se ao planejamento ur-bano moderno, ligando-se ao Advocacy Planning (conceituado a seguir), Alexan-der produziu a obra “Urbanismo e Participação”6, afirmando que o processo deplanejar e construir em uma comunidade pode resultar em um ambiente ajustadoàs necessidades humanas, guardando-se alguns princípios: Participação – ondeas decisões do que e como se vai construir estão a cargo dos usuários; Coorde-nação – continuidade do processo de planejamento de modo a facilitar a apreen-são e funcionamento dos trabalhos para os participantes (CARVALHO, 2011).

Advocacy Planning se traduz como um tipo de planejamento ou urbanis-mo participativo, instituído em prol de determinadas causas, como intervençõesurbanas que alterem significativamente o modo de vida de moradores locais7,suas características físicas, econômicas ou sociais. É provável, nesses casos,que na medida em que a população envolvida seja prejudicada por tais interven-ções, algo deva ser feito para evitar os prováveis malefícios.

5 Alexander enfatiza, no texto citado, que a ideia de sobreposição ou interseção, a ambiguidade, amultiplicidade de aparências e a semitrama não são entes menos ordenados ou menos disciplinados quea “árvore” rigidamente constituída; ao contrário, o são mais. E representam uma abordagem muito maisdensa, mais robusta, mais sutil e mais complexa das estruturas.6 Título traduzido da versão em espanhol intitulada “Urbanismo y Participación“.7 Segundo LACAZE (1993), “(...) a prática do urbanismo participativo desenvolveu-se de maneira difusae espontânea nos anos 60, a princípio nos países anglo-saxônicos, onde é muitas vezes designado pelonome de advocacy planning. Espalhou-se depressa pelos países desenvolvidos, em ligação estreita como movimento ecológico que compartilha muitos de seus desafios” (p.57).

Page 49: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 49

No caso de grandes intervenções urbanas, não bastam apenas medi-das emergenciais e simples. Em situações deste tipo, se faz necessário apoiotécnico compatível com a natureza do problema, por meio da participação deprofissionais como urbanistas, sociólogos, ambientalistas, advogados, entreoutros, somado a subsídios de órgãos de Planejamento Urbano. Pode-se di-zer que alguns tipos de profissionais, neste caso, atuam como “advogados” doPlanejamento.

O advocacy planning indica, antes de tudo, a formalização de um proces-so oriundo de organização coletiva, uma vez que se associa a uma iniciativa porparte da prória população envolvida nas ações em questão. Constitui-se, portan-to, uma ferramenta fundamental nas relações entre Poder Público. Iniciativa Pri-vada e Sociedade Civil, onde o urbanismo participativo promulgará a prática daanuência do cidadão para com as decisões técnicas e administrativas (BAT-TAUS, 2005).

Para Christopher Alexander, a participação dos usuários nos processosde projeto fora condição primeira para o bom êxito da atuação profissional doArquiteto. No entanto, segundo ele, esta participação estava diretamente relacio-nada aos meios de interação desses indivíduos com os elementos componentesdo projeto, a partir de repertório arquitetônico, de construção e de outras experi-ências de processos participativos. Como ferramenta de entendimento, por partedos usuários, das prerrogativas e componentes dos projetos elaborados pelosArquitetos, Alexander propõe uma sintetização de conceitos básicos da Arquitetu-ra, a qual denominou Linguagem de Padrões (QUEIROZ, 2004).

ALEXANDER (1979) expõe a necessidade de se observar os componen-tes fundamentais do meio ambiente, em primeiro lugar, como “coisas fundamen-tais”, às quais denomina padrões. Conjuntamente, considera a importância de secompreender os processos generativos desses padrões, suas “fontes”, essencial-mente como linguagens. Deste modo, o autor aponta ser possível utilizar-se deum processo comum para a produção de “edifícios vivos”, mas não se deve utili-zá-lo mecanicamente. (p.24)

Tais padrões foram amplamente investigados por Alexander e suaequipe, junto ao Center for Environmental Structure (CES), em Berkeley/Cali-fórnia (EUA) e compõem uma de suas valiosas obras, o livro “A Pattern Lan-guage”, publicado originalmente no idioma inglês, pela editora Oxford Uni-versity Press; anos seguintes, foi traduzido para: o espanhol (Gustavo Gili,1980), alemão em 1982 e, posteriormente, japonês pela Kajima Institute Pu-blishing Co. Ltd. no ano de 1984.

Page 50: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

50 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

“A linguagem de padrões” é uma extensa obra que reúne um conjunto de253 (duzentos e cinquenta e três) padrões8, ou seja, referenciais ideais para se-rem utilizados nos processos de projeto de edificações, áreas externas e comuni-dades. Este montante de padrões subdivide-se em temáticas específicas, basica-mente definidas por escalas projetuais como região, cidades, bairros, áreas co-muns externas e o edifício.

Observa-se, na produção de Alexander, um exemplo notório da aplica-ção desses conceitos: o plano para a Universidade de Oregon (UO), Eugene,Estados Unidos – que “partindo do pressuposto de que é impossível prever comprecisão natureza e magnitude das mudanças, em lugar de uma imagem fixa,estática, estabeleceu-se um processo com base no qual as decisões relativas aodesenvolvimento físico poderiam ser tomadas a qualquer momento no decorrerdo tempo” (PAVESI, 2011, p.18).

Tratou-se de um processo participativo para constituição das instala-ções físicas do campus da Universidade de Oregon, onde Alexander considerou,dentre outros princípios, que:

• Somente as pessoas podem guiar o processo de crescimento or-gânico de uma comunidade;

• Participação pode significar qualquer processo no qual os usuáriosde um ambiente ajuda a construí-lo; o tipo mais “modesto” de participação éaquele onde o usuário se posiciona como cliente diante do arquiteto e, o mais“complexo”, quando o usuário constrói o ambiente por si próprio (autoconstru-ção);

• Usuários de um edifício sabem mais sobre suas necessidades doque qualquer outra pessoa e, portanto, o processo de participação tende criarlugares que são melhores adaptados às funções humanas do que aqueles cria-dos por um processo de planejamento centralizador;

• Sempre que as pessoas têm a oportunidade de mudar o ambienteao seu redor, o fazem, divertem-se e ganham enorme satisfação pelo que fizeram(ALEXANDER, 1978).

Esse campus passou por rápido crescimento, ocasionando conflitos coma construção de edifícios de custos altos e com relação a aspectos tecnológicos.Tudo isso denotava a necessidade do Plano de Desenvolvimento, a fim de torná-lo algo vivo e saudável. Neste sentido, Alexander sugere um processo de planeja-mento completamente novo.

8 Fonte: www.patternlanguage.com; o site apresenta nominalmente todos os padrões, classificando-os deacordo com a escala de projeto em que se inserem.

Page 51: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 51

Na visão de Christopher Alexander, os usuários do campus poderiam serconsiderados uma comunidade, cuidando do meio ambiente por si mesmas etendo certo controle sobre suas próprias vidas e, para tanto, aponta seis princípi-os que constituíram a prática do projeto de Oregon:

1. Princípio da ordem orgânica (Organic Order)

2. Princípio da participação (Participation)

3. Princípio do crescimento a pequenas doses (Piecemeal Growth)

4. Princípio dos padrões (Patterns)

5. Princípio de diagnoses (Diagnosis)

6. Princípio de coordenação (Coordination)

O arquiteto descreve, no livro “The Oregon Experiment”, todo o processo quedesenvolveu junto à Universidade de Oregon, imprimindo sua visão do que seriam osparâmetros ideais para os procedimentos de diagnóstico de problemas e potenciali-dades do local, de inter-relação com funcionários, docentes, diretores e alunos, enfim,de elaboração e finalização de projetos. Alexander, inclusive, demonstra o valor daparticipação dos usuários do campus no processo de projetos, por meio de desenhosesquemáticos em mapas e outras formas de ilustração, por eles realizados.

Lançado em 1975, este livro consiste no relato aprofundado dessa experiên-cia em um projeto de aplicação dos conceitos incorporados pelo Arquiteto em suaprodução, em especial, no que diz respeito ao crescimento orgânico e à participaçãodo usuário.

Cabe lembrar que, de acordo com os autores9, The Oregon Experiment (vol.3) compõe uma série de três livros – incluindo The Timeless Way of Building (vol. 1) eA Pattern Language (vol. 2) – elaborada pelo Center for Environmental Structure e quedescreve uma atitude inteiramente nova para a Arquitetura e o Planejamento, comoum trabalho alternativo para as ideias da época sobre esses temas. Esperavam, por-tanto, que houvesse uma substituição das ideias e práticas da Arquitetura Moderna.

Originalmente, foi publicado no ano de 1975, na língua inglesa e, poste-riormente, traduzido para outros idiomas10: francês (Editions Du Seuil) em 1976;no ano seguinte, 1977, para o japonês (Kajima Institute Publishing Co., Ltd.) e

9 A versão original do livro apresenta, como autores, Christopher Alexander, Murray Silverstein, ShlomoAngel, Sara Ishikawa e Denny Abrams.10 Fonte: www.patternlanguage.com

Page 52: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

52 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

italiano (Officina Edizioni) e, em 1980, a Editorial Gustavo Gili, S.A. publicou aversão em espanhol.

Outras experiências compreendem o currículo de Alexander, no que tan-ge a processos participativos na Arquitetura e Urbanismo. Em Mexicali (México),por exemplo, o arquiteto implementou seus métodos na construção de um assen-tamento comunitário, realizado em 1976, por meio de mutirão. Em artigo sobre oProjeto Mexicali11, Alexander comenta a experiência de dois estudantes que revi-sitaram o Conjunto em Mexicali, para contatar as famílias que lá residiam e sabercomo viam o empreendimento 7 anos depois de pronto; ambos queriam avaliar oquanto a equipe de Alexander teria se sucedido bem naquele projeto e, também,o quanto havia cometido de “erros”.

O tempo percorrido de uso do conjunto envolveu as famílias, segundo asobservações da avaliação e notou-se o fato daquelas famílias terem dado conti-nuidade real ao processo de projeto e construção. A forma original das casas foibastante alterada, quase não se reconhece mais, em grande parte delas. ParaAlexander, isto é o “triunfo” do projeto e prova de seu sucesso.

O livro “The Production of Houses”, também de sua autoria, conta a histó-ria de Mexicali, onde as famílias construíram suas casas e aponta para a hipótesefirmada por Alexander, de que esses empreendimentos habitacionais podem sermelhores desde que os padrões de controle sejam profundamente mudados.

Na década de 1980, Alexander desenvolveu outro significativo processoparticipativo junto a uma “comunidade universitária” no Japão, cuja descrição ecomentários completos são o conteúdo de sua mais recente obra, o livro “TheBattle for the Life and Beauty of the Earth” (2012). Tratava-se do projeto de umCampus Universitário em Eishin, que abrigaria uma instituição sediada em Tó-quio e que desejava ampliar suas instalações em um novo espaço.

Nesse projeto, o arquiteto e sua equipe envolveram um extenso grupo deusuários locais, criando uma Linguagem de Padrões específica, buscando cap-tar o que os membros daquela comunidade tinham em seus corações. (ALEXAN-DER, 2005) Esse grupo, composto por representantes da comunidade: públicoem geral, estudantes, professores, administradores, reuniu-se inúmeras vezescom Alexander e equipe; o objetivo principal era o de ajudar os usuários a desvin-cular-se da imagem que tinham do antigo local de trabalho (em Tóquio), poden-do descrever o ambiente que aspiravam como “campus universitário ideal”.

Segundo o autor, foi um processo insistente, porém resultou em rica ex-periência de aplicação da Linguagem de Padrões e salienta que os “desenhos11 ALEXANDER, C. “Mexicali Revisited“. Revista Places, vol. 1, number 4.

Page 53: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 53

verbais” desenvolvidos a partir da narrativa das necessidades dos usuários, apósamadurecidos, auxiliaram no projeto final. Porém, para Alexander, tudo ganhoucomplexidade maior quando se voltou o desenho para o “solo”, pois utilizou-se deum procedimento característico de sua arquitetura: a implantação do projeto inloco.

Nesse e em outros projetos de sua autoria, Alexander e equipe auxiliaramos usuários envolvidos na demarcação da planta do(s) edifício(s) no terreno, pormeio de bandeiras e estacas, assim poderiam “sentir-se” caminhando pelo cam-pus antes mesmo de ser construído. Com isto, as pessoas puderam visualizarcomo ficariam os volumes edificados, as áreas comuns e as particularidades dosedifícios poderiam ser imaginadas.

Muitas foram, além dessas, as contribuições reais de Christopher Alexan-der no cenário da Arquitetura e do Urbanismo Participativos, no contexto latino-americano inclusive, como no Peru e, também, no Brasil. Não restam dúvidas,portanto, diante da riqueza de sua visão a respeito das necessidades humanas,de que conhecer sua produção é uma oportunidade especial.

É importante considerar que, simultaneamente à atuação de Alexanderacerca de processos participativos, outros profissionais da área firmaram-se de-fensores de semelhante postura. Contemporâneo a ele, cita-se o exemplo deRalph Erskine, arquiteto que teve sua trajetória profissional particularmente de-senvolvida na Suécia.

Membro do TEAM X12, Erskine foi um importante precursor da participa-ção do usuário nas definições de projeto de edificações, comunidades e bairros.Erskine considerava de fundamental importância a participação do usuário finalna concepção de um edifício e, também, que tratava-se de um tipo de ajuda queo Arquiteto podia prestar à comunidade. Segundo COLLYMORE (1983), sua obratinha 2 preceitos: os edifícios devem se relacionar diretamente com as pessoas eo clima que os envolvem.

Era o que se esperava dos preceitos da Arquitetura dos anos 1920 e 30,porém, Erskine considerou que tais ideias que deveriam girar em torno de novastécnicas e materiais, renderam-se às demandas de clientes, da indústria da cons-trução, sob uma “nova arquitetura” bastante formal, excessivamente suntuosa,distante das reais necessidades das pessoas que poderiam ser requeridas nosprocessos de projeto e tomadas de decisão.

12 Grupo de arquitetos constituído nas primeiras décadas do século XX, especialmente a partir dodesenvolvimento dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), ocorridos durante anosexpressivos do Movimento Moderno.

Page 54: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

54 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Erskine considerava que os arquitetos deveriam dialogar com os usuári-os, no intuito de se resultar em edifícios coerentes com as necessidades de quemos iria ocupar. O mecanismo da participação através da consulta, para ele, eraum direito daqueles que viveriam em um ambiente, com trocas de informaçãoimportantes entre arquitetos e usuários.

Um de seus trabalhos emblemáticos nesse aspecto foi o Byker, assenta-mento residencial em New Castle, Inglaterra. A comunidade solicitara a ele oprojeto de 3 mil casas e outros edifícios e, o Arquiteto, criou um estúdio onde serealizaram as reuniões para definições do que seria demolido, conservado, en-fim, mantendo-se as relações e vínculos existentes. Essa ideia de estúdio erabem diferente do que se praticava na época, pois grande parte dos arquitetosconsiderava fundamental a distância entre seu trabalho e o cliente. Nesse caso,os usuários participaram dos desenhos, definiram etapas sequentes de urbaniza-ção, apresentando queixas e perguntas (COLLYMORE, 1983).

Ralph Erskine desenvolveu, também, um Plano para revitalização deMärsta na Suécia, em 1968, em razão da construção de um novo aeroporto emEstocolmo. Compunha uma equipe de 4 arquitetos, com um plano de desenho eparticipação proposto por Johannes Olivergren; o local foi dividido para os proje-tos onde os arquitetos eram os interlocutores das ideias dos usuários (COLLYMO-RE, 1983).

Christopher Alexander assessorou o plano dos EUA e, Erskine, em suaprimeira reunião, registra o autor, levou folhas de papel com suporte gráfico paraauxiliar as ideias dos moradores. Todos os arquitetos trocavam informações so-bre os trabalhos e, em 1968, se deu o ponto de partida do plano de Erskine.

Outros trabalhos dele ocorreram com participação e, quando não sepodia contatar diretamente os futuros usuários de um empreendimento comoresidencial multifamiliar, indústria, ou outro edifício, Erskine adotava métodos depesquisa sociológica, buscando retratar as necessidades dos ocupantes. CO-LLYMORE (1983) considera os antecedentes da formação de Erskine como, emcerta medida, responsáveis pela sua atenção aos processos participativos, à in-ter-relação entre o arquiteto e o morador; coloca que, em razão de sua mudançapara a Suécia, por ser estrangeiro, deveria descobrir como o país funcionava, suaeconomia, questões políticas e sociais, costumes, a fim de que pudesse projetaredifícios que se adequassem a tais características locais.

Os métodos de investigação de Erskine foram desenvolvidos com tama-nho estudo que, por consequência, se adaptariam ao processo de projeto dequalquer edificação: “Os espertos comprometidos no planejamento têm que com-preender que os habitantes também são espertos em sua própria situação, ne-

Page 55: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 55

cessidades e aspirações” (COLLYMORE 1983, p. 24).A primazia que os arquitetos modernos manifestaram – como colocara Alexander– durante décadas, Erskine também contestou, pois incorporou em toda sua tra-jetória a ideia de que o Arquiteto deve estar engajado em discussões no mesmonível que os demais participantes, como moradores, por exemplo, buscando uni-ficar as conclusões sobre as reais necessidades de um projeto.

4. Considerações finais e atualidade temática

Embora se tenha refletido aqui sobre Processos Participativos na Arquite-tura e Urbanismo ocorridos há décadas, muito se tem discutido acerca dessatemática hoje no Brasil, inclusive. A participação, enquanto prática de cidadania,neste país, ainda demonstra singela expressão.

É bem verdade que se pode considerar o “ato participativo” como meca-nismo de ação de processos democráticos, os quais têm “pouca idade” no casobrasileiro: cerca de três décadas. No tocante ao Urbanismo Participativo, obser-va-se que a implantação do “Estatuto da Cidade” (Lei Federal n. 10.257/01), navirada do século XX-XXI, foi um momento impresso na agenda desse tema.

Entretanto, em 12 anos passados da aprovação e difusão dessa lei emtodo o território nacional, com denotada presença do Estado no sentido de auxili-ar as gestões públicas na utilização dos instrumentos urbanísticos previstos e,sobretudo, de capacitar profissionais da área para o uso pertinente dos mesmos,muito se espera em avanços da participação no Brasil.

Em se tratando da Arquitetura Participativa, algumas importantes experi-ências estão catalogadas na literatura e compõem esse quadro, em particular,em processos de mutirão desenvolvidos há décadas neste país. No entanto, éimprescindível focalizar a notoriedade da obra de profissionais, aqui menciona-dos, que incorporaram a relação direta entre Arquiteto-Usuário/Cliente como fer-ramenta de trabalho, melhor dizendo, como inspiração para o ato de projetar.

BATTAUS, Danila Martins de Alencar. Architecture and Urbanism Participatory:Experiments from Christopher Alexander and his contemporaries in the secondhalf of the century XX. DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: The universe of Architecture and Urbanism Participatory has a parti-cular chapter and full of notorious experiences which happened, especially, fromthe 1950’s, in Europe and North America. Some professionals – as Christopher

Page 56: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

56 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Alexander – contrasted in that context, mainly because they introduced the relati-onship between Architects and user of residential, educational and other kinds ofbuildings, which this paper intends to discuss.

KEYWORDS: Christopher Alexander; Architecture Participatory; Urbanism Partici-patory; Community Development; Community Architecture.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXANDER, C. “The city is not a tree”. Architectural Forum, V. 122, n. 1, abrilde 1965, p. 58-62 (Parte I) e n. 2, maio de 1965, p. 58-62 (Parte II), 1965.______. et al. “Urbanismo y participacion : el caso de la Universidad deOregon”. tr. de Josep Muntañola i Thornberg. Barcelona, Gustavo Gili, 1978.______. “Modo intemporal de construir”. Barcelona, Gustavo Gili, 1979.______. “A pattern language; un lenguaje de patrones : ciudades, edifici-os, construcciones”. Barcelona, Gustavo Gili, 1980.______. “The Nature of Order: an essay on the art of building and the natureof the universe”- book 3. Berkeley, Center for Environmental Structure, 2005.______. “The Battle for the Life and Beauty of the Earth”. Inglaterra, OxfordUniversity Press, 2012.AMMANN, S. B. “Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil”.São Paulo: Cortez, 2003.BATTAUS, D. M. A. “Desenvolvimento de Comunidade: processo e partici-pação”. São Paulo, 2005. Tese (doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – FAU,USP.CALABI, D. “História do Urbanismo Europeu: questões, instrumentos, ca-sos exemplares”. São Paulo, Pespectiva, 2012.CARVALHO, M. O. “Planejamento urbano, participação e comunicação”. Ar-tigo do Seminário Urbanismo na Bahia, 2011. http://www.ppgau.ufba.br/urba11/ST3_PLANEJAMENTO_URBANO,_PARTICIPACAO_E_COMUNICACAO.pdf.Acesso em 02/02/2012.COLLYMORE, P. “Ralph Erskine”. Barcelona, Gustavo Gili, 1983.

Page 57: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 57

COMERIO, M.C. “Design and Empowerment: 20 uears of Community Archi-tecture”. Revista Built Environment, volume 13, Inglaterra, Alexandrine Press,1987.DEL RIO, V. “Introdução ao Desenho Urbano nos processos de Planeja-mento”. São Paulo, Pini, 1990.GRABOW, S. “Christopher Alexander: the search for a new paradigm in ar-chitecture”. Stocksfield Boston : Oriel Press, 1983.KRUG, J. G. “A mobilização comunitária: presença dos seminários de de-senvolvimento de comunidade”. São Paulo: Cortez, 1984.LACAZE, J. P. “Os métodos do Urbanismo”. Campinas – SP, Papirus, 1993.MOM (s/d). “Arquitetura e Participação: a caminho da produção de interfa-ces e não de espaços acabados” - http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/10_ar-quitetos/quadro.htm. Acesso em 01/02/2012.PAVESI, A. “Campi Universitários e Sustentabilidade: elementos e orienta-ções para o planejamento”. São Carlos/SP, 2011. Relatório de pós- doutorado– IAU, USP.

QUEIROZ, M. “O experimento com a Escola de Música da UFBA: um pro-cesso participativo utilizando a linguagem de padrões de Christopher Ale-xander”. Cadernos PPG-AU/UFBA, Vol. 3, No 1, 2004.SOUZA, M. L. “Desenvolvimento de Comunidade e participação”. São Pau-lo: Cortez, 2000.SOUZA, M. L. de. “Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamentoe à gestão urbanos”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.TAFURI, M. “Modern Architecture” – vol 2. London, Academy Editions, 1980.WOOLLEY, T. “Community Architecture”. Paper do Institute of Community Stu-dies Housing Co-Ops Research Seminar, 22 de Novembro de 1986.

Page 58: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

58 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 59: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 59

A GESTÃO DAS REDES DE COOPERAÇÃO EM PROJETOSDE CIDADES CRIATIVAS

Adriana SILVA*

Resumo: Para o IPCCIC, Instituto Paulista de Cidades Criativas e IdentidadesCulturais, criado em janeiro de 2013, muitas propostas em busca de transformaras cidades em lugares criativos só são possíveis por meio da criação de Redes deCooperação. Essa afirmação tem como base experiência vivenciada no períodode 2009 a 2012, na Secretaria da Cultura de Ribeirão Preto. Composta por pes-quisadores de várias instituições de ensino, a Rede possibilitou a realizaçãode parte do inventário de Referências Culturais da cidade. Atualmente, o IPCCICtrabalha na criação de novas Redes com o objetivo de viabilizar vários projetos naárea da Economia Criativa. Essencialmente, o Instituto se estrutura como umaRede de ligações entre os muitos representantes culturais e, em outros casos,entre estes e o poder público.

Palavras-chave: Rede de Cooperação; cidade criativa; política pública.

IntroduçãoO presente artigo foi originalmente apresentado no Simpósio Temático

“Patrimônio Cultural: reflexões interdisciplinares sobre referências culturais edesenvolvimento”, proposto para acontecer durante o VI Simpósio Internacionalde História: Culturas e Identidades. Este espaço de debate se mostrou muitooportuno para a apresentação de material produzido a partir de várias experimen-tações na área da Cultura, em especial, as que relatam o trabalho em Redes deCooperação e o conceito de Cidades Criativas.

Após ter ocupado o cargo de Secretária da Cultura do município de Ri-beirão Preto, no Estado de São Paulo, por quatro anos, de 2009 a 2012, e tendovivido as relações entre o dever fazer e o poder fazer, permito-me afirmar que ohiato existente entre estas duas condições, com foco nas ações do gestor públi-co, deve ser encurtado a partir da criação de Redes de Cooperação, modelo deatividade que sugere a interdisciplinaridade, a aproximação do Poder Público edos agentes sociais e a realização de programas, projetos e ações muitas vezesimpensáveis senão por meio da cooperação.* Doutora Mestre em Educação pela UFSCAR; Presidentente do IPCCIC – Instituto Paulista de CidadesCriativas e Identidades Culturais; e-mail: [email protected]

Page 60: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

60 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

O IPCCIC – Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturaissurgiu como uma proposta de continuidade de um trabalho cultural iniciado den-tro da gestão pública, porém, em novo formato. Fundado em janeiro de 2013,especialmente para ser o lugar onde as redes de cooperação se estabelecem, oInstituto tem como objetivo diagnosticar as realidades culturais dos municípios eatuar na transformação das cidades em lugares criativos mantendo sempre acultura como matéria-prima do processo de mudança e consolidação.

Para conduzir o leitor, inicialmente serão apresentados alguns referenciaisque localizam os conceitos de rede e de cidade criativa, posterior serão narradasalgumas experiências com os dois temas, no caso de rede, a criação da Rede deCooperação Identidades Culturais e a Rede de Pontos de Cultura, no caso de cida-de criativa, uma proposta defendida para o distrito de Bonfim Paulista, pertencenteao município de Ribeirão Preto e, ao concluir, considerações que buscam apontarcaminhos para o desenvolvimento da cultura apoiada na Economia Criativa.

Este trabalho se propõe a reunir a experiência do fazer e a da pesquisa, jáque esta autora, inicialmente pesquisadora da área da Educação, com estudosem Teoria Crítica, especificamente indústria cultural, se fez, temporariamente,gestora pública em cargo de decisão no setor da cultura. Após 2012, de volta aocampo da pesquisa, como membro do IPCCIC, entidade que tem como principalfunção estudar as referências culturais das cidades e a partir de pesquisa dediagnóstico propor programas de ação na área da Economia Criativa, observa-seum encontro de saberes complementado pela multidisciplinaridade dos paresque se somam ao Instituto e a possibilidade de análises sobre as variações meto-dológicas de gestão que interligam poder público e sociedade organizada. Estacomunicação propõe, com base em um referencial teórico específico, oferecerum relato em primeira pessoa e objetiva fazê-lo de maneira a conduzir o leitor aavaliar como o trabalho cooperado, organizado em redes multi-institucionais, podecontribuir com o fazer cultural, seja na esfera pública ou como atividade dosdemais setores da economia.

Redes e Cidades Criativas: a interdisciplinaridade como base

Começaremos por reconhecer o estado da arte do conceito de Rede. Osociólogo espanhol Manuel Castell chamou a atenção do mundo com sua trilo-gia sobre a “Era da Informação”, tornando-se, segundo o Social Sciences CitationIndex, o pesquisador mais citado no período de 2000 a 2006. Naquele momento,o tema ainda não dizia respeito a tantos milhões de pessoas.

Page 61: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 61

[...] la historia sólo está comenzando, si por ella entendemos el momento en que, trasmilenios de batalla prehistórica con la naturaleza, primero para sobrevivir, luegopara conquistarla, nuestra especie ha alcanzado el grado de conocimiento yorganización social que nos permitirá vivir en un mundo predominantemente social(CASTELLS, 1999).

Castell, ao tratar de Rede, o fez com destaque para as novas tecnologiasde informação e de comunicação como elementos da reestruturação econômi-ca vivida a partir do final do século XX, começo do XXI, mas seu trabalho alicerçatodo um debate sobre este formato de organização social.

C. Rubim, Pitombo e O. Rubim (2005), ao pesquisarem Políticas e Re-des de Intercâmbio e Cooperação em Cultura no Âmbito Ibero-Americano aler-tam que:

Não existe ainda um conceito de rede amplamente aceito e compatível com a diver-sidade de organizações e contextos em que o termo é utilizado. Embora este seja otempo das redes, muito pouco conhecimento foi organizado e difundido sobre amorfologia, as possibilidades e os limites dessas novas formas de organização social.Como resultado, muitas redes hoje existentes acabam recebendo outras denomina-ções: fóruns, coletivos, movimentos, consórcios, comitês, articulações são algunsexemplos. O inverso também é verdadeiro: muitas das redes atuais não são nadaalém de velhas organizações com nova roupagem ou mesmo simples conjuntos deelementos (RUBIM, PITOMBO, RUBIM, 2005).

Para Martinho (2003) a figura da rede é a imagem mais usada paradesignar ou qualificar sistemas, estruturas ou desenhos organizacionais caracte-rizados por uma grande quantidade de elementos (pessoas, pontos-de-venda,entidades, equipamentos etc.) dispersos espacialmente e que mantêm algumaligação entre si, mas também alerta, nem tudo o que apresenta estes três aspec-tos – quantidade, dispersão geográfica e interligação – é rede. Para exemplicarele explica que um comércio com uma loja matriz e várias filiais, organizadas demaneira hierárquica, com elevado grau de subordinação poderia ser chamadade “rede”, mas não passa de uma organização tradicional em forma de pirâmide,com uma base muito ampla. Ao fazer esta constatação, Martinho lamenta osmuitos equívocos afirmando que essa confusão na definição de Rede fragilizaseu verdadeiro poder criador de ordens novas e seu caráter libertador.

Quando tudo é rede, estruturas velhas e novas, modos convencionais e modos inovado-res de fazer, estratégias de opressão e estratégias de libertação confundem-se sob umapretensa mesma aparência. Se não puder estabelecer algumas distinções, o conceito derede deixa de ter sentido e passa a não servir para nada (MARTINHO, 2003).

Page 62: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

62 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Martinho iniciou seu estudo sobre Rede a partir das leituras do físicoFritjof Capra, autor de “A Teia da Vida”, de quem, ele carrega a afirmação de queonde quer que se encontrem sistemas vivos – organismos ou comunidades deorganismos - pode-se observar que os componentes estão arranjados à maneirade Rede. Sobre Castell, Martinho afirma não se tratar de um defensor da Redecomo sistema de organização, mas um analista que apresenta uma série dealertas quanto à possibilidade da trama dos fluxos de capitais e informação seconfigurar em um estágio ultra-avançado do capitalismo.

Por outro lado, tomando por base a Globalização, as Redes podem seapresentar como a rota de fuga do capitalismo ultra-avançado sugerido por Cas-tell. É nisso que acredita Martinho (2005) ao concluir que as redes tornaram-se aprincipal forma de expressão e organização coletiva, no plano político e na articu-lação de ações de grande envergadura, de âmbito nacional ou internacional, dasONGs e dos novos movimentos sociais.

Em seu estudo sobre Rede, ainda se utilizando das contribuições deCapra, Martinho nos convida a entender outro termo comum aos que atuam nestecenário de cooperação. Trata-se do conceito horizontal. Capra afirma em seusescritos que não existe hierarquia na natureza. Embora não possa ser afirmado omesmo quanto às sociedades humanas, a horizontalidade é uma meta dos gru-pos que se organizam em rede.

Fachinelli e Moinet (2000) mostram a necessidade de se estabelecercritérios para definir o que verdadeiramente se configura como Rede. Segundoos dois, para que a rede ganhe corpo, é necessário que um projeto concreto,coletivo, voluntário, proporcione uma dinâmica específica às relações pré-exis-tentes. Além disso, para adquirir uma dimensão estratégica, uma rede deve inte-ragir com o campo de ação no qual ela se inscreve.

A rede deve dotar-se de uma realidade operacional. Esta repousa sobre a capaci-dade dos animadores de conferir-lhe: meios práticos de ação como material, local,orçamento, sistema eletrônico de comunicação; uma cultura de funcionamento consi-derando-se algumas regras, ética, repartição de papéis; recursos à trocar comoinformações, influência, conhecimentos, disponibilidades, agendas de endereços(FACHINELLI; MOINET, 2000).

Para convidar o público a participar do evento de inauguração da Casadas Redes, em Brasília, ocorrido nos dias 18, 19 e 20 de junho de 2013, osintegrantes do coletivo Fora do Eixo, movimento criado em 2008 por agentes dacultura que se entendiam fora do circuito comercial dos grandes centros, elabo-raram um convite digital, em que definem:

Page 63: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 63

As redes são formas de organizações sociais que melhor representam as dinâmicassocioculturais configuradas nesta primeira metade do século XXI. Suas práticasarticulam políticas desenvolvidas a partir de laboratórios produtivos, quegeram tecnologias sociais e processos sustentáveis em torno de organizações epessoas envolvidas (e-mail recebido pela pesquisadora, 10/06/2013. Grifo mantidodo original).

No mesmo material digital, eles escrevem que:a Casa das Redes é um espaço colaborativo que desenvolve ações e tecnologiassociais visando a potencialização e o fortalecimento das redes socioprodutivas detodo Brasil e de outros países da América Latina. Trata-se de um ambiente deconfluências entre redes, grupos e interessados em processos de colaboraçãocultural, de trocas de saberes, compartilhamento de experiências e construção demetodologias (op. cit.)

Em especial, no universo da política, Fleury e Ouverney (2007), citandoBörzel (1999) ressaltam que as explicações teóricas sobre as redes de políticaspodem ser divididas em duas correntes distintas, ainda que não mutuamenteexcludentes: a escola da intermediação de interesses e a escola de governança.

Para alguns autores, ainda segundo Fleury e Ouverney, as redes são umaferramenta útil para explicar a união de atores interdependentes, enquanto paraoutros a inovação estaria no deslocamento do objeto da análise, passando-se doator individual ao padrão de vínculos e interações como um todo.

Nossa experiência, a ser narrada em tópico a seguir, tem como solo fértiltoda a trajetória do conceito de rede. O aprimoramento do modelo foi vivenciadoao longo do período de quatro anos, desde a implantação, no município de Ribei-rão Preto, das duas Redes nesta comunicação analisadas; Identidades Culturaise Pontos de Cultura.

É proposta também deste texto, apresentar uma variação do modelo derede para a aplicabilidade do projeto de transformação das cidades em espaçoscriativos. Para tanto, se faz necessário contextualizar o termo Cidade Criativa quesurge como uma derivação do conceito de Economia da Cultura, inicialmenteempregado, em 1988, na Austrália, mas que tem como representativo difusor, ojornalista Britânico John Howkins. A Inglaterra se fez o berço da Economia Criativa,a partir da atuação de Chris Smith e da política de “New Labour” de Tony Blair.Para Howkins (2001), o divisor de águas da Economia Criativa é o potencial degerar direitos de propriedade intelectual, expandindo sua abrangência dos direi-tos autorais para desenhos industriais, marcas registradas e patentes, ou seja,toda ação resultante do processo criativo.

Page 64: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

64 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

É importante indicar que existem pontos de intersecção entre as duaspropostas; Economia e Cidade criativas, mas embora todas as ações da Econo-mia Criativa favoreçam a cidade, nem todas as propostas que objetivam transfor-mar uma cidade em lugar criativo se apresenta metodologicamente como umaação de Economia. Isso significa afirmar que é possível planejar uma cidadecriativa com práticas desassociadas à economia. Esta ressalva se justifica, nestemomento, somente para situar o leitor quanto às modalidades do tema. Paraentender Cidade Criativa, no entanto, é mais apropriado fazê-lo a partir de umabreve imersão ao universo da Economia, que para o IPCCIC, se apresenta comoo meio que pode viabilizar as propostas criativas de uma cidade.

Para melhor estabelecer a base deste novo conceito, optamos, nestacomunicação, por oferecer dados disponibilizados pelo universo acadêmico,econômico e político a fim de estabelecer relações entre os conceitos de CidadeCriativa, Identidade Cultural e as políticas públicas, propondo um entendimentode como a união de práticas criativas podem fortalecer a economia, em especial,com a criação de emprego e renda local, reconhecer as referências culturais,dinamizar o setor artístico e criar possibilidades concretas para o acesso aosdireitos culturais.

Segundo dados da Organização Mundial do Comércio – OMC, em 2006,a Inglaterra apresentava o maior crescimento na área, com taxa de 8% ao ano,além de participação de 8,2% no PIB e 6,4% da força de trabalho empregada.Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento(Unctad), realizada em 2006, definiu-se que a Economia Criativa tem o potencialde fomentar o crescimento econômico, a criação de empregos e os ganhos deexportação, ao mesmo tempo em que promove a inclusão social, a diversidadecultural e o desenvolvimento humano.

Richard Florida e Irene Tinaglia (2010), professores da Carnegie MellonUniversity, em Pittsburg, realizaram, no ano de 2005, um trabalho que indica existiruma relação positiva e crescente entre economia criativa e produtividade. Dos 45países pesquisados por eles, o Brasil ficou em 43ª posição, na frente apenas daRomênia e Peru e atrás da Argentina, México, Chile e Uruguai. A partir de algunscruzamentos de dados desta pesquisa é possível inferir que há uma forte relaçãoentre criatividade e produtividade, pois os 10 primeiros países com maior índicede produtividade são também os que mais investem em Economia Criativa.

UNESCO divulgou, em 2005, que apenas três países: Reino Unido, Esta-dos Unidos e China, produzem 40% dos bens culturais comercializados no mer-cado mundial, incluindo livros, esculturas e outros objetos de arte e decoração,CDs, filmes, videogames. África e América Latina participam nesse mercado com

Page 65: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 65

4%. Para a entidade, conforme publicação de 2005, desenvolvimento é o proces-so de ampliação das escolhas. Com base nisso, nos países africanos e latinoamericanos, onde a exclusão social tem uma relação forte com os índices decriminalidade e há uma dificuldade evidente em alocar a mão de obra poucoqualificada em atividades urbanas, ampliar as escolhas no setor cultural podeatrair jovens de baixa renda e pouca escolaridade por meio de programas dequalificação e geração de primeiro emprego.

Meleiro e Fonseca (2012) afirmam que embora os países emergentes eem desenvolvimento consigam ter participações expressivas em áreas específi-cas, ainda há um vasto território inexplorado de possibilidades, que podem serobjeto de políticas públicas, concebidas e implementadas num ambiente de co-operação internacional, especialmente a chamada Cooperação Sul-Sul.

Ainda segundo esses autores, entidades como o Convênio Andrés Bello,a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização dos Estados Iberoamericanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), o Centro Regionalpara a Promoção de Livros na America Latina e no Caribe (CERLALC), o PNUD, aUNESCO e a UNCTAD desenvolvem uma série de estudos visando subsidiarprogramas públicos de desenvolvimento desta economia. Alguns desses estudosmostram que gradualmente vem crescendo a oferta de dados estatísticos dosegmento na região, como consequência de uma maior determinação políticados governos em promover iniciativas no setor. As economias mais desenvolvidas,como Brasil, Argentina, México, Colômbia e Chile, têm concentrado os maioresesforços nos últimos anos, o que vem pouco a pouco se espalhando para ospaíses vizinhos.

A Argentina tem protagonizado um grande incremento de sua indústria do cinema eaudiovisual, onde também se inclui a produção publicitária, adotando uma estratégiaque tem se mostrado vitoriosa, que contempla o fomento da produção nacional apartir de uma taxa para exibição de produções estrangeiras, com intermediaçãotécnica do INCAA – Instituto Nacional de Cine e Artes Audiovisual – instituição ampla-mente legitimada pela comunidade cinematográfica local. Não por acaso, a cinema-tografia e, de modo geral, a indústria do cinema e audiovisual da Argentina atualmen-te é respeitada em todo o mundo, sendo reconhecida por muitos como a maisimportante da America Latina (MELEIRO & FONSECA, 2012, p. 44).

No Brasil, as iniciativas são concentradas em movimentos específicoscomo os localizados nas cidades do Rio de Janeiro, de São Paulo e de algumascapitais do Nordeste. Ações da sociedade organizada, como o projeto Criaticida-de, que concentra informações sobre o tema, difundem experiências e realizaações pontuais quando apoiados por outras instituições, com destaque para a

Page 66: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

66 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

atuação da economista e urbanista Ana Carla Fonseca Reis, mantêm o tópico emdebate.

A partir de uma proposta do Governo Federal, desde 2011 o assunto foiincorporado ao Ministério da Cultura, que criou, em 2012, uma Secretaria especí-fica para o acompanhamento e estruturação do assunto.

A novidade dos conceitos provoca incertezas e muitas dúvidas, em espe-cial, quanto à sua abrangência. Tendo o elemento “desenvolvimento regional”como um pilar da proposta da Economia Criativa, Arjo Klamer, professor da Eras-mus University Rotterdam, durante curso oferecido na Faculdade de Economia,da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto, em agosto de 2012, deixouimplícita a permissão de variação conceitual a partir das especificidades do lo-cal.

A Inglaterra foi o primeiro país a definir as áreas empreendedoras com-preendidas em uma proposta de Economia Criativa, mas isso não limita releituraslocais, permitindo, desta forma, que o Brasil tenha sua própria lista de empreendi-mentos vinculados às Ações e Indústrias Criativas.

Para melhor compreensão, faz-se necessário traçar uma linha diferenci-al entre a Inglaterra, primeiro modelo, e o Brasil. Para os ingleses, conformedifundido pelo Ministério de Economia Criativa, criado em 1997, são indústriascriativas aquelas que têm na sua origem a criatividade e individualizam habilida-des e talento, e que tenham habilidade para produzir riqueza por intermédio dapropriedade intelectual (DCMS).

No Brasil, o conceito foi apresentado em documento publicado peloMinC. Na cartilha que delineia o Plano da Secretaria da Economia Criativa, de-pois de uma longa introdução sobre a necessidade de pensar o termo a partir dabrasilidade desejada, definiu-se como sendo setores criativos todos aqueles cu-jas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador devalor simbólico, elemento central da formação do preço e que resulta em produ-ção de riqueza cultural e econômica e a Economia Criativa é definida com foconas dinâmicas culturais, sociais e econômicas, construídas a partir do ciclo decriação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens eserviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de suadimensão simbólica.

O programa de Economia Criativa Britânico compreende como ativida-des motrizes: Arquitetura, Arte e antiguidades, Jogos de computador, Artes, Design,Moda, Cinema e Vídeo, Música, Espetáculos de arte, Editoração e publicações,Software e TV e Rádio. Estas atividades respeitam os critérios de sua definiçãoexposta acima, mas também de relevância econômica para o Reino Unido – vale

Page 67: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 67

destacar a importância de “antiguidades” (abrangendo leilões e feiras de arte), demenor importância para o caso brasileiro.

O Brasil, para definir o escopo dos setores criativos, se pautou nas contri-buições apresentadas pela UNESCO, em 2009, e a partir delas, elencou as ativi-dades a serem compreendidas pelas políticas públicas do governo: no campo dopatrimônio – patrimônio material, imaterial, arquivos e museus. Na área das ex-pressões culturais – artesanato, culturas populares, culturas indígenas, culturasafro-brasileiras e artes visuais. Nas artes de espetáculos – danças, música, circoe teatro. No campo do audiovisual e do livro, da leitura e da literatura – cinema evídeo, publicações e mídias impressas. Nas criações funcionais – moda, design,arquitetura e arte digital.

O pensamento do BNDES, que também possui setor específico paraavaliações e incremento de projetos criativos, foi expresso pelo seu presidente,Luciano Coutinho, em 2012.

Hoje se reconhece que quanto mais denso, diverso e rico o conteúdo cultural deuma sociedade, maiores as suas possibilidades de desenvolvimento. O vigor dasmanifestações culturais mais enraizadas permite sua preservação e difusão e poderepresentar uma significativa alternativa de inclusão produtiva, seja pelas oportuni-dades de criação de emprego e renda, seja pela ampliação do acesso e da qualifi-cação desses serviços. Em consonância com o Plano Brasil sem Miséria, destaque-se, ainda, a capacidade de estimular o desenvolvimento de outras atividades produ-tivas associadas às atividades culturais. Estes atributos são particularmente impor-tantes em países como o Brasil, de vastas riquezas e diversidade natural, patrimoniale cultural, fruto de um território de dimensões continentais e da fusão de múltiplasetnias (COUTINHO, Plano da Secretaria da Economia Criativa, 2012).

Em relação à trajetória dos pensadores econômicos brasileiros, CelsoFurtado, que foi Ministro da Cultura, entre 1986 a 1988, já abordava a relaçãoentre criatividade e economia em seu texto “Criatividade e Dependência na Civi-lização Ocidental”:

[...] as sociedades necessitam de meios de defesa e adaptação, cuja eficácia refletea aptidão de seus membros para formular hipóteses, solucionar problemas, tomardecisões em face da incerteza. Ora, a emergência de um excedente adicional abreaos membros de uma sociedade um horizonte de opções; já não se trata de repro-duzir o que existe, e sim de ampliar o campo do que é imediatamente possível [...] Onovo excedente, constitui, portanto, um desafio à inventividade... Em sua dupladimensão de força geradora de novo excedente e impulso criador de novos valoresculturais, esse processo libertador de energias humanas constitui a fonte última doque entendemos por desenvolvimento (FURTADO, 2008).

Page 68: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

68 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Por fim, após breve contextualização da Economia Criativa, retomamosReis (2011), para quem talvez a maior contribuição de toda esta questão queenvolve a economia e a cidade criativa, seja perceber que, no âmago de tudo,reside a capacidade criativa do ser humano.

Com isso, abrem-se as portas para o surgimento de novas soluções, de novasprofissões e de novos desenhos de urbanos, transformando nossas cidades frag-mentadas em espaços mais convivíveis e alinhavando tecidos sociais esgarçados(REIS, 2011).

Algumas experiências que fortalecem a ideia de gestão por Rede

A Rede de Cooperação e Identidades Culturais foi criada em RibeirãoPreto em 2009, dentro da Secretaria Municipal da Cultura, para dar conta de umademanda reprimida: a realização do inventário das referências culturais da cida-de. A ideia de implantação da Rede surgiu como resposta à falta de pessoaltécnico de formação multidisciplinar no poder público para a realização do inven-tário. A base conceitual do trabalho, um problema também naquele momento, seresolveu por meio de um convênio firmado com o Iphan – Instituto do Patrimônio,Histórico, Artístico Nacional que forneceu a metodologia do INRC – InventárioNacional de Referências Culturais e disponibilizou a presença de duas técnicasdo órgão para qualificar, semestralmente, toda a equipe.

Para compor a Rede foram convidadas instituições de ensino superior,pública e privadas, entidades organizadas e empresas. A aceitação mostrou que aproposta seguia o caminho correto. Com um calendário de atividades estruturadodentro das possibilidades dos pesquisadores, que destinavam 20 horas/aulasmensais ao projeto, foram criados grupos de trabalho específicos com demandasdelineadas pela coordenação realizada por técnica da Secretaria da Cultura.

A cada doze meses de atividade a Rede gerava um relatório com informa-ções que eram divulgadas para a comunidade por meio de eventos de entrega dodocumento, difusão por mídias eletrônicas e impressão de material especialmentedistribuído aos envolvidos e à imprensa. Uma coleção de livros formada por 12 obrasfoi publicada no período de três anos e outras duas publicações mais abrangentesresumiram os principais apontamentos das pesquisas realizadas. Os dados geradosnos relatórios eram assimilados aos programas políticos da prefeitura. Um exemplopara ilustrar, foi a liderança da Secretaria da Cultura no programa de revitalização docentro da cidade. Todo o projeto para esta ação tomou como base as contribuiçõesapresentadas pelo inventário realizado na região. Assim como o trabalho de diagnós-tico das potencialidades culturais do distrito de Bonfim Paulista.

Page 69: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 69

A composição da Rede sofreu alterações ao longo do processo, mas umnúcleo duro de doze profissionais se manteve durante os três anos analisados.Como agente deste projeto, hoje avaliadora da experiência, concluo que as ativi-dades praticadas em defesa do patrimônio material e imaterial de Ribeirão Preto,em especial, na forma de registro, não teria se viabilizado sem a formação daRede. O trabalho dos pesquisadores, professores universitários, o financiamentoda iniciativa privada e a atuação do poder público foram elementos indissociáveisda iniciativa.

Outro exemplo de formação de Rede no mesmo período foi a Rede dePontos de Cultura. Um convênio entre a Secretaria da Cultura e o MinC financioua seleção por meio de edital e manutenção de dez Pontos de Cultura e um Pontãodurante três anos. Com um valor repassado de R$ 60 mil reais por ano aos Pontose R$ 175 mil ao Pontão, as entidades se organizaram para o cumprimento de umaagenda de projeto que gerou uma ação em rede permitindo troca de experiência,formação colegiada, compartilhamento de infraestrutura, realização de ativida-des coletivas, formação de plateia a partir da interação das entidades, consciên-cia crítica sobre os direitos e os deveres dos agentes culturais, já que após orecebimento, tinham todos que cumprir um calendário e fazer a prestação decontas.

Ao longo do programa uma entidade foi desconveniada por uso indevidodos recursos, outra precisou devolver quantia aplicada fora da programação e atémesmo estes desconfortos de gestão serviram para o aprimoramento dos gruposenvolvidos.

O programa foi criado pelo Governo Federal e desde a saída do presi-dente Lula segue ameaçado quanto à sua manutenção. Os problemas de varia-ção de nível de formação entre as entidades contempladas sugere uma desqua-lificação, assim como ocorreu em Ribeirão Preto, mas o programa, ao proporação em rede, fortalece as relações nos municípios, permite a descentralizaçãodas atividades culturais, troca o lugar o protagonista, que até pouco tempo eratotalmente centralizado indevidamente no poder público e, muito importante, pos-sibilita a chegada da cultura em áreas periféricas, muitas vezes desprovidas deofertas culturais.

Novamente sem a formação deste modelo de gestão em rede, os resul-tados alcançados não se viabilizariam. Publicações realizadas a cada ano desdea formação da rede dão conta da dinâmica alcançada, da produção culturalrealizada e o diagnóstico mais conveniente, o apoderamento das informaçõeslevando ao empoderamento da cultura, fato que permitiu que muitas das entida-des se consolidassem como proponentes em outros programas dos entes federa-

Page 70: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

70 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

tivos e concebessem formatos próprios de sustentabilidade.Estes exemplos devem ser considerados como propostas diferenciadas

do fazer cultural, balizando outras iniciativas como se faz dentro do IPCCIC, queao experimentar a gestão em rede se consolida como entidade fomentadora domodelo. Seus técnicos conciliam a experiência a uma nova expertise, a da Cida-de Criativa, para agir mediante à missão delineada. Ainda que embrionária, aproposta de criação de um programa de Economia Criativa para proteger o patri-mônio cultural e dinamizar o distrito de Bonfim Paulista, mostra-se atrelado àgestão de rede. A cooperação tem sido apresentada como estratégia que capaci-ta grupos a partir das trocas multidisciplinares praticadas, torna possível as açõesrealizadas por muitos cidadãos que, individualmente, qualquer agente social nãoconcretizaria e cria ambientes mais propícios à criatividade e à inovação.

As potencialidades não dinamizadas do distrito de Bonfim Paulista diag-nosticadas pela pesquisa são as características rurais que dão lugar a excelentespropostas de atividades do turismo ecológico, gastronomia e a preservação dahistória do homem cancioneiro. Tratam-se de possibilidades que incrementam aEconomia e que estão vinculadas à criatividade, mas também se referem à pro-postas que certamente são mais viáveis se realizadas em formato de cooperaçãoatingida por meio da implantação de redes de interesse comum.

Considerações finais

O texto apresentado sugere um movimento. Começa ao narrar as ativida-des praticadas na Secretaria da Cultura do município de Ribeirão Preto, no perí-odo de 2009 a 2012 e segue com a criação do IPCCIC, Instituto Paulista deCidades Criativas e Identidades Culturais, em 2013. O comum entre estas duasiniciativas é o envolvimento de vários atores sociais semelhantes, a defesa dealguns pressupostos, como a certeza de bons resultados de ações cooperadas,mas, especificamente o que mais interessa nesta narrativa sequencial é o apren-dizado continuou apesar das variações de modelos de gestão.

O grupo que conduz as diretrizes do Instituto se formou a partir de convi-vência adquirida na Secretaria da Cultura. Sem qualquer predisposição à rivali-dade, muito diferente disto, com toda a preocupação aparente de continuidade, oIPCCIC surge como alternativa de não rompimento de proposta exitosa praticadapelo governo em outro momento. O sucesso pode parcialmente ser medido coma publicação do livro Paisagem Cultural do Café, em agosto de 2013, que reuniuos resultados das pesquisas da Rede de Cooperação Identidades Culturais e, pormeio de elaboração de projeto aprovado no Proac – Programa de Apoio à Cultura

Page 71: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 71

do Governo do Estado de São e captação de recursos via ICMS viabilizou estraté-gica e financeiramente a difusão do material.

O material, disponibilizado também pela internet, deixa aparente o mesmomovimento observado nesta comunicação. Ele tem como abertura texto que apre-senta a Rede e uma conclusão de sugere a manutenção desta e a criação de novasredes como alternativa para a consolidação de uma Ribeirão Preto Criativa.

Ao concluir, convidamos o leitor a sempre que diante de uma bifurcaçãoentre o fazer e o não fazer considerar as possibilidades de um trabalho em rede.Definitivamente este é um modelo que materializa uma frase usada no mundo dodesigner em que se afirma que juntos somos todos mais inteligentes do quequalquer um de nós sozinhos.

SILVA, Adriana. Management of the cooperation network in creatives cities projects.DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

Abstract: According to IPCCIC – State of São Paulo Institute of Creatives Citiesand Cultural Identities, founded in january 2013, many proposals with the aime totransform cities into creative places will only be possible through the creation ofcooperation network. This statement is based on experience lived in the periodfrom 2009 to 2012, in the Secretariat of Culture of Ribeirão Preto. Composed ofresearchers from various educational institutions, the networks has made it possi-ble to carry out part of the Cultural References Inventory of the city. Currently, IPC-CIC works in creating new networks in order to facilitate various projects in theCreative-Economy area. Essentially, the Institute is structured as a network of con-nections among the many cultural representatives and, in other cases, betweenthem and the government.

Keywords: Cooperation network; creative city; public policy.

ReferênciasBÖRZEL, T.A. Qué tienen de especial los policy networks? Explorando elconcepto y su utilidad para el estúdio de la gobernacion europea. 1977. Disponí-vel em:<http://revista-redes.rediris.es/webredes/textos/policynet.pdf>. Acesso em:maio de 2013.CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.CARMO Jr., J. Aldo do; MORAES, Júlio Luchesi. How magic is Cinema? Asses-sing the effects of the artistically successful cinema cluster in Paulínia, Brazil. ACEI

Page 72: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

72 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

– Association for Cultural Economics International. 2012. Disponível em: <http://www.regionalstudies.org/uploads/RSAI_2012_Moraes_Final.pdf>. Acesso em:04 set. 2013.CASTELLS, Manuel. La Era de la información: economía, sociedad y cultura.Vol. I La sociedad red. Tradução: Carmen Martiínez Gimeno. Madrid: Alianza Edi-torial, 1999.CAVALCANTI, Paula Arcoverde. Sistematizando e comparando os enfoquesde avaliação e de análise de políticas públicas: uma contribuição para a áreaeducacional. Tese de Doutorado. Unicamp. 2007.DIAS, Reinado; Matos, Fernanda. Políticas públicas: princípios, propósitos eprocessos. São Paulo: Atlas, 2012.EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005, p. 204.FACHINELLI, Ana Cristina & MOINET, Christian Marcon Nicolas. A prática dagestão de redes:( uma necessidade estratégica da Sociedade da Informação.2000. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/socinfo/info14.htm>.Acesso em: 01 jun. 2013.FLEURY, Sonia; OUVERNEY, Assis Mafort. Gestão de Redes: a estratégia deregionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Tradução de Ana LuizaLopes. Porto Alegre: L&pm Editores. 2010.FREY, Klaus. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes àprática da análise de políticas públicas no Brasil. Revista Planejamento e PolíticasPúblicas, Brasília: IPEA. Número 21, junho de 2000. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/viewFile/89/158>. Acesso em: 01 jul. 2013.FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutu-ral. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000HOWKINS, John. The Cretaive Economy. USA: Penik, 2001.KRAMEL, Arjo. Value of Culture. Michigan University. 1997.MARTINHO, Cássio. Redes uma introdução às dinâmicas da conectividadee auto- organização. Brasília: Editora WWFBrasil, 2003.MELEIRO, Alessandra & FONSECA, Fábio. Economia criativa: análise setorial.Revista Nemero. 2 mar. 2012. Disponível em: <http://www.pragmatizes.uff.br>.Acesso em: 20 ago. 2013.

Page 73: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 73

MINISTÉRIO DA CULTURA. Plano da Secretaria da Economia Criativa – Polí-ticas, Diretrizes e Ações – 2011 a 2014. Disponível em: ,www.minc.gov.br>. Acessoem: 02 set. 2013.OLIVEIRA, Zita. Economia Criativa. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/economia-criativa/4662/#ixzz23zd1FWeW.> Acesso em 16/03/2013.PASSADOR, C. S.; FERREIRA, V. da R. S.; PASSADOR, J. L. Produção acadêmicasobre redes no Brasil. In: Anais do XXIV Simpósio de Gestão da InovaçãoTecnológica da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa emAdministração. Gramado, out. 2006.PASSADOR, J. L.; CUNHA, J. A. C. da. A formação de alianças e redes interorgani-zacionais. In: PASSADOR, C. S.; PASSADOR, J. L. (orgs). Gestão Pública e de-senvolvimento no século XXI. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2008.REDE de Cooperação Identidades Culturais. Blog oficial. Disponível em: <http://redeidentidadesculturais.blogspot.com.br/>. Acesso em: 25 jun. 2013.______. Relatório Fase 1 do INRC. 2010. Disponível em: < http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/relatorio.pdf.>. Acesso em: 10 set. 2013.REIS, Ana Carla Fonseca Org. Economia criativa: como estratégia de desenvolvi-mento - uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo. Itaú Cultural, 2008.______. Cidades Criativas – soluções inventivas – O papal da Copa, das Olimpí-adas e dos museus internacionais. Garimpos de Soluções e Fundarpe, São Paulo,2010.______. Cidades Criativas: burilando um conceito em formação. Revista Iara –Revista de Moda, Cultura e Arte. N.01, abril de 2011. Disponível em:<www.revistaiara.com.br/arquivos/noticias/arquivos/183/anexos/PDF.pd>. Acessoem: 20 set. 2013.______. Cidades Criativas – da teoria à prática. SESI SP Editora.2012.RUBIM, Antonio Albino Canellas, PITOMBO, Mariella & RUBIM, Iuri Oliveira. Polí-ticas e Redes de I ntercâmbio e Cooperação em Cultura no Âmbito I bero-Ameri-cano, 2005. Disponível em:<http://www.cult.ufba.br/arquivos/cult_politicas_e_redes.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2013.SANTOS-DUISENBERG, E. Economia Criativa: uma opção de desenvolvimentoviável? In: REIS, A.C.F. (org.). Economia Criativa como estratégia de desenvol-

Page 74: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

74 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

vimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural, 2008.SCHNEIDER, Volker. Redes de políticas públicas e a condução de socieda-des complexas. Tradução Hermílio Santos. Civitas, Porto Alegre, v. 5, 2005. Dis-ponível em:<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/33/1605.>Acesso em: março de 2013.SERAFIM, Milena Pava; DIAS, Rafael de Brito. Análise de Política: uma revisão daliterature Policy Analysis: a review. Cadernos Gestão Social – Revista do CentroInterdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social – Rede de Pesquisadoresem Gestão Social. Volume 3, janeiro a junho de 2012.SILVA, Adriana.; ROSA, Lilian R. O. (orgs.) Patrimônio Cultural do Café da terravermelha. Ribeirão Preto: Fundação Instituto do Livro, 2012b.SILVA, Adriana; ROSA, Lilian R. O.; SILVA, Michelle C. C. et al. Projeto PaisagemCultural do Café: experiências com a metodologia do Inventário Nacional de Re-ferências Culturais (INRC). Labor & Engenho, Campinas [Brasil], v.6, n.2, p.77-96, 2012a. Disponível em: <www.conpadre.org> e <www.labore.fec.unicamp.br>.Acesso em 12 jun. 2013.SMCRP – Secretaria Municipal da Cultura de Ribeirão Preto. Programa Cafécom Açúcar. Disponível em: <http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/i14cafe_acucar.php>. Acesso em 10 set. 2013.UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Developmente. The Crea-tive Economy Report. 2008. Disponível em: <www.unctad.org/en/docs/ditc2008cer_en.pdef.>. Acesso em: 20 ago. 2013.UNESCO Institute for Statistics – Internacional Flows of Selectede Culural Goodsand Services, 1994-2003. Defining and Capturing the Flows of Global Cultu-ral Trade. Montreal: 2005. Disponível em: <www.uis.unesco.org/template/pdf/cscl/Intl Flows_EN.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2013.

Page 75: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 75

DOSSIÊ/SPECIAL

“Patrimônio cultural: diálogos interdisciplinares”

Page 76: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

76 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 77: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 77

APONTAMENTOS PARA A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIORECENTE: REFLEXÕES SOBRE A LIBERDADE CRIATIVA NA

ARQUITETURA MODERNA DE RIBEIRÃO PRETO, SP 1

Dulce PALLADINI*

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal a apresentação de elementosque sustentem a importância da preservação da arquitetura moderna de RibeirãoPreto/SP. Preservar levando ao tombamento parcial destas obras? Como? Porquê? As arquiteturas modernistas marcam um período promissor da cidade, nãosó com os arquitetos locais como também com arquitetos paulistas. Elas de-monstram o período de desenvolvimento social e urbano junto com as instala-ções de várias indústrias, como também o crescimento do período agropecuárioda cidade. Assim, há intensão em preservar evitando que haja descaracterizaçãodas arquiteturas. Pois, muitas delas estão adquirindo novas funções.

PALAVRAS- CHAVE: Arquitetura Moderna, Preservação, Ribeirão Preto.

Introdução

As reflexões sobre a preservação das arquiteturas modernas brasileiras,especificamente demonstradas na cidade de Ribeirão Preto, SP baseiam-se naação DOCOMOMO2:

[...] cujos objetivos são a documentação e a preservação, das interpretações plásti-cas significativas do Movimento Moderno da Arquitetura Brasileira e suas manifesta-ções diversificadas quanto às formas e os materiais.

No 9º. Seminário DOCOMOMO Brasil, Brasília, junho 2011, um dos ei-xos tratou da preservação do patrimônio recente, em particular o remanescente da

1 Trabalho originalmente apresentado no V Fórum Mestres e Conselheiros: Agentes multiplicadoresdo Patrimônio Belo Horizonte/MG entre os dias 19 e 21 de agosto, promovido pela UniversidadeFederal de Minas Gerais.*Professora especialista da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Centro Educacional Barão de Mauá,Ribeirão Preto/ SP; Presidente do CONPPAC (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural doMunicípio de Ribeirão Preto ); Membro do IAB, núcleo Ribeirão Preto/SP.2 DOCOMOMO: organização não governamental, com representação em vários países, fundado em1988 na cidade de Eindhoven – Holanda, ligado às causas preservacionistas. O núcleo brasileiro foi criadoem 1992. Atualmente, o Comitê Executivo é ligado ao programa de pesquisa e pós-graduação emarquitetura – PROPAR – UFRGS e segue os princípios definidos pelo DOCOMOMO Internacional.

Page 78: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

78 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

arquitetura moderna brasileira. Com base neste debate este artigo apresenta algunsexemplos de arquiteturas modernas, no período dos anos 1960-1980, em RibeirãoPreto – SP, de arquitetos locais ou não. A partir desse evento iniciamos em RibeirãoPreto uma ação de identificação e tratamento de informações sobre estas arquite-turas na cidade, incluindo residências, edifícios públicos e particulares.

Acreditamos que uma reflexão geral sobre estas edificações auxiliará naampliação do conhecimento a respeito deste tipo de arquitetura, ajudando namanutenção da sua integridade e a permanência física destas obras. Esperamosque este artigo gere dados que subsidiem futuras políticas públicas de preserva-ção voltadas para o patrimônio cultural recente, especificamente o modernista,promovendo discussões junto aos órgãos municipais de preservação, incluindo oCONPPAC/RP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural deRibeirão Preto.

É necessário explicar, conduzir o pensamento. Pois, poucas são as pes-soas fora da área de arquitetura e urbanismo que reconhecem, aceitam ou enten-dem o valor da arquitetura moderna.

Difundir a importância desse período da arquitetura, levar a reconhecer asua organização formal, o emprego dos materiais e a evolução técnica por elasapresentadas, estão entre os objetivos deste artigo.

Segundo Paulo Ormindo D. de Azevedo e Nivaldo Vieira de A. Júnior, nolivro, Conceituações Contemporâneas do Patrimônio (2011, p. 10):

- O conceito atual de patrimônio cultural, que inclui tanto as manifestações materiaisquanto imateriais, antigas e novas, de forma integrada, não pode excluir qualquerperíodo, incluindo o contemporâneo.- A diversidade, mais que a unidade, é um dos valores do patrimônio cultural e comotal deve ser preservada;- A questão do patrimônio deve ser tradada dentro de sua dimensão urbana e/outerritorial e usando os instrumentos do planejamento- A requalificação do patrimônio edificado é indissociável da recuperação da qualida-de de vida de seus ocupantes- É urgente a regulamentação dos novos instrumentos de preservação previstos naconstituição de 1988 e a competência da legislação vigente, especialmente no que serefere aos conjuntos urbanos;- As politicas do setor devem integrar os três níveis de poder, a sociedade civilorganizada e o setor privado;- As decisões relativas a grandes intervenções em monumentos ou sítios urbanosdevem ser compartidas com a comunidade;- Na restauração do patrimônio edificado devem, sempre que possível, ser utilizadas

Page 79: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 79

as tecnologias construtivas tradicionais; e.- Os diálogos como este, entre autoridades e a sociedade civil, em particular com osarquitetos, urbanistas e gestores urbanos devem ser realizados rotineiramente.

Com base nestas premissas, entendemos que ao preservar e conservaras arquiteturas modernas são evitadas futuras lacunas dentro do processo evolu-tivo das características básicas do desenvolvimento, não só da arquitetura comotambém do urbanismo. Obras que são marcos pontuais importantes no processohistórico e cultural do município de Ribeirão Preto, SP.

Como exemplo deste tipo de arquitetura, apresento um conjunto de resi-dências dos arquitetos Barreto e Segnini desenvolvido no período das décadas de1960, 1970 e 1980 e, alguns edifícios públicos de arquiteto local Durval Ferreira,A Casa de Cultura, edifícios particulares de diversos arquitetos paulistas nesseperíodo. Ao analisar estas obras, pretendo contribuir para a constituição de umacervo memorialístico sobre a arte de construir em Ribeirão Preto – SP – culturahistórica local, novos vetores da evolução social instigada pela arquitetura.

Análise e compreensão da arquitetura brasileira modernista – um conhe-cimento.

No dicionário, o verbete “patrimônio” significa: qualquer bem material oumoral, pertencente a uma pessoa, instituição ou coletividade. O conceito de patri-mônio histórico nasceu com a modernidade, ganhando na contemporaneidadeuma grande dimensão, definindo ou redefinindo ações. O que conservar? Comoatribuir valor? Pela comunidade ou pelos órgãos oficiais? Há valores econômicoscontemporâneos e históricos que devem adequa-se sempre aos novos usos, trans-formando o patrimônio em um bem histórico cultural e resgate de memoria deforma que seu uso seja atual e este patrimônio cultural com sua excepcionalidadeestética e sua ligação a um fato memorial da história entregue a vida da sociedade.Mas, infelizmente há pouca integração entre os três níveis de poder: federal, estadu-al e municipal e, até mesmo com as comunidades locais e setor privado.

Portanto, a questão patrimonial é fundamental para a sociedade brasilei-ra. Como resolver a problemática? Os arquitetos, os historiadores, os cidadãos eos profissionais que planejam e projetam o que desejam? Constroem nestesimóveis patrimoniais? Como resolver?

Ficar a mercê de soluções que demoram, castigam entre a burocraciageral e a realidade urgente da comunidade, evitar as deteriorações que possamocorrer e ocorrem.

Page 80: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

80 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Preservar melhor o nosso passado para que o futuro das nossas cidadestenham um patrimônio a preservar interagindo com as transformações urbanas esociais. Gerar uma política de preservação que seja atuante e não uma grandeação burocrática em nome de memória e história.

O conceito atual de patrimônio cultural compreende as manifestaçõesmateriais e imateriais antigas e novas de forma integrada. Muitas e diferentestendências buscam caminhos, muitas vezes antagônicos.

O patrimônio deve ser tratado dentro da dimensão urbana e sempre utili-zando os instrumentos de planejamento existentes na cidade para que haja ocu-pação de forma criativa. A noção de recuperação e requalificação de um patrimô-nio edificado deve ter como objetivo maior prevalecer a vida dos bens.

A regulamentação de novos instrumentos de preservação deve ser atual,complementando especialmente os conjuntos urbanos com visão do século XXI,incluindo todas as interferências nos sítios urbanos. Os monumentos devem com-partilhar com as comunidades, atender as necessidades locais. Por isso, desta-camos a importância da existência de Conselhos de Preservação, cujo diálogocom as autoridades e a sociedade civil deve ocorrer efetivamente, visando à me-lhoria da cidade.

Em entrevista para a Revista Revide, de Ribeirão Preto, sobre o projeto“Cidade Limpa”, é possível exemplificar o complexo processo de entendimentoentre o poder público e os Conselhos de Preservação, que são representantes dasociedade civil:

Sobre a lei Cidade Limpa – olhar a cidadeAs pessoas possuem rotinas.Diariamente, é realizado um planejamento, individual, de como será o seu dia.Organizamos o nosso viver, habitar, trabalhar e lazer e, muitas vezes, esquecemosou e deixamos passar despercebidamente o local em que vivemos – nossa cidade.O CONPPAC – Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município deRibeirão Preto tem, dentre um de seus escopos, a prioridade em participar e olhara nossa cidade, entendendo-a como organismo de muitos. Por esse motivo, a Lei12.730 de 11 de janeiro de 2012, implantada esse ano, denominada “Cidade Limpa– Ordenação da Paisagem Urbana”, levantou tantos questionamentos e de certamaneira está fazendo, Positivamente, que a cidade como um todo, repense ospadrões que vinham sendo Adotados como meios de comunicação visual, bem comoa manutenção das edificações, Imóveis em geral, e não somente os tidos como devalor patrimonial, de cunho histórico – Cultural e / ou arquitetônico, para a cidade.O CONPPAC não teve participação direta na elaboração da lei, porém através deseus conselheiros, membros que representam entidades significativas na sociedade

Page 81: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 81

civil de nossa cidade, tais como a ACIRP – Associação Comercial e Industrial deRibeirão Preto, ONG Vivacidade, IAB – RP (Instituto de Arquitetos do Brasil – NúcleoRibeirão Preto), entre outras, tem conhecimento e participação, não só acompa-nhando a aplicação da lei e também desenvolvendo trabalhos junto a seus associa-dos, no sentido de orientá-los e auxiliá-los tecnicamente e juridicamente sobre o quea lei padroniza.A cidade, em um primeiro momento, tem um impacto negativo perante a aplicação dalei, porem não prejudicial. Pois, quando se padroniza, ocorre ordenação de impactovisual e caráter de manutenção, diretamente implica-se em planejamento. E, anda-mos com o “mal” hábito de darmos soluções, providencias sem planejarmos, o quedespende investimento financeiro e de tempo de todos, seja de maneira coletiva –pela administração pública – seja particular, - o comerciante, empresário.Como a aplicação da lei é para todo o município e ainda recente, os seus frutos aindaestão para serem colhidos. Naturalmente e gradativamente serão perceptíveis.Exemplo já evidente tem em imóveis na região central da cidade, como os dosendereços: Rua Barão do Amazonas esquina com General Osório; Rua São Sebas-tião entre Ruas Visconde de Inhaúma e Tibiriçá; Rua José Bonifácio.Nas avenidas comerciais como a Presidente Vargas, Independência, Meira Junior,Dom Pedro, Prof. João Fiúsa, 13 de Maio e outros eixos comerciais da cidade,gradativamente a paisagem urbana será transformada e, nós, cidadãos poderemosperceber as edificações e ter novas referencias urbanas e reaver outras (RevistaRevide. Entrevista com Dulce Palladini. Outubro, 2012).

Restauração, revitalização, requalificação de um patrimônio é possívelusar tecnologias construtivas tradicionais ou não. Dependerá da proposta que oprojeto determina. Para o arquiteto Joao Calafate “revitalização de um espaçodegradado envolve dar vida nova a ele, com mesma função ou uma nova função”.“Perguntar o que preservar é saber ler o prédio - sua arquitetura – e reconhecer oque restaurar e onde a opção é entrar com uma arquitetura nova.”

Não devemos preservar por preservar, olhar o projeto e ver o que é neces-sário intervir, portando, estudar as necessidades de uso, transformar o patrimôniosem denegri-lo ou fazer da intervenção algo acima do patrimônio existente, isto é,uma grande e nova integração entre as partes. Respeitar o passado, criar umconceito de arquitetura local.

Conceituando

Documentar é um processo cuja finalidade é descrever, inventariar, foto-grafar, analisar desenhos formando um minucioso conjunto de dados do qualqueremos provocar observações e análises.

Page 82: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

82 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Esta documentação permite que se obtenha um estudo que leve emconta a preservação e a conservação do bem que se deseja manter as caracterís-ticas fundamentais de beleza estética, reiterando uma síntese de regularidadetécnica e liberdade criativa.

As obras de arquitetura moderna de Ribeirão Preto deste período (anos1960 – 1980) nos mostram o caminho percorrido pelos arquitetos modernos bra-sileiros, após a fase inicial impregnada dos conceitos corbusianos.

A criação plástica destes arquitetos é capaz de transgredir as considera-ções estritamente utilitárias ou construtivas. É reafirmar a famosa frase de LucioCosta: arquitetura é “construção concebida com intenção plástica particular emfunção de uma época, um meio, uma técnica e um programa determinados3.”Será que podemos afirmar: que a ideia base acompanha a liberdade criativajunto com os elementos do programa, mais a regularidade técnica com a poten-cialidade vantajosa, muitas vezes, da visão estrutural do arquiteto. Todas essasespeculações em arquitetura moderna brasileira levaram os arquitetos a umaautonomia geométrica e material.

Arquitetos e projetos

Dentre os arquitetos que são abordados neste texto estão Joaquim Cláu-dio de Oliveira Barreto e Francisco Segnini Jr. Barreto, como é conhecido, fale-ceu em 1985 e nasceu em Araraquara, SP. Formou-se pela faculdade de Arquite-tura e Urbanismo do Mackenzie (F.A.U. Mackenzie) no ano de 1967. Foi professorda Faculdade de Arquitetura do Mackenzie; pertenceu à diretoria do IAB-SP noperíodo de 1982/1983 e foi vice-presidente do IAB-SP no período de 1984/1985.Suas obras inserem-se no movimento arquitetônico moderno dos 1970/1980,seguindo as características compositivas da arquitetura paulista.

Segnini Jr. também nasceu em Araraquara. Graduou-se em Arquitetura eUrbanismo pela Universidade de São Paulo (FAU-USP) em 1965. Foi professor doDepartamento de Tecnologia da Arquitetura na FAU-USP e coordenador da Co-missão de Coordenação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da USP (COCAU).

Juntos, Barreto e Segnini assinaram o projeto na residência de AndersonGattás, construída em 1971, e localizada na Rua Nélio Guimarães esquina comRua Mantiqueira Nº 983. – Alto da Boa Vista. Como medidas apresenta: área doterreno: 360,00m²; área ocupada: 146,35m²; área da edificação: 262,65m². Umaanálise prévia da edificação que ainda está em uso considerou-a conservada e3 Lucio Costa, Ïmprearu et importance de la contribucion brélieme au developpement actuel de l ‘architecturecontemporaine in l ‘arquiteture d”aujourd ‘hui, 42-43, 1952, p. 4

Page 83: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 83

um típico exemplo de construção modernista. Foi premiada com a Menção Hon-rosa pelo IAB-SP no ano de 1974.

Figura 1: Elevação da residência Anderson Gattás; esquina das Ruas Nélio Guimarães comRua Mantiqueira – Foto: Felipe Matioli, 2012.

Quadro de caracterização arquitetônica Anderson Gattás

O projeto desta residência apresenta cinco dormitórios, sendo um comsuíte. Quatro deles localizam-se na parte superior da residência e apenas um naparte inferior (quarto dos empregados). No andar inferior, encontramos a sala dejantar e visita integradas, separada apenas por um pequeno lance de escada;

Paredes externas(fechamento):

Aberturas:

em alvenaria de tijolos sem revestimento e concreto aparente.

grandes aberturas formadas por perfis metálicos nas coresprimárias amarela e vermelha; folhas das portas em compensadode pinho; utilização de venezianas nos dormitórios; presença deelementos de iluminação indireta – sheds da cobertura; utilização

de portão.

Cobertura: laje em concreto impermeabilizado; cobertura em duas águas; usode telhas de cimento amianto.

Sistemas (iluminação,hidráulicos):

condutores de água e iluminação aparentes, característica daarquitetura brutalista, onde a intenção do arquiteto era mostrar a

“verdade estrutural dos edifícios”.

Page 84: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

84 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

característica essa da arquitetura modernista paulista. Cozinha, lavabo, lavande-ria, despensa, banheiro de empregados e dois abrigos para carros. O andar su-perior é dividido em dois níveis: um intermediário e um superior. Neste nível inter-mediário encontramos uma sala de estudos, um roupeiro e três dormitórios. Nonível superior (subindo mais um pequeno lance da escada), encontramos maisuma sala e outro dormitório. Todo o andar superior e circundado por vazios (me-zanino) e aberturas que dão para o exterior da residência.

Outra obra relevante da arquitetura modernista de Joaquim Cláudio deOliveira Barreto e Francisco Segnini Jr. é residência M. Marcondes, construídaem 1966, na Avenida Itatiaia esquina com a Rua Floriano Peixoto Nº 999, noJardim Sumaré, em Ribeirão Preto, SP. Este bem está em uso até os dias de hojee apresenta bom estado de conservação. Quanto às suas dimensões: a área doterreno: 1662,66 m²; área ocupada: 586,12 m²; área da edificação: 586,12 m².

De acordo com as palavras de Francisco Segnini Jr., arquiteto que atuouem algumas obras ao lado de Joaquim Barreto, a construção desta residência emRibeirão Preto, uma cidade ensolarada e de clima quente, permitiu a criação deaberturas pouco usuais na cidade de São Paulo; como dormitórios voltados parao sudoeste (boa ventilação e pouco sol). Os seus ambientes protegem-se do sol àprocura de ventilação natural. Conceitualmente, a solução se reporta à arquitetu-ra moderna paulista com lajes impermeabilizadas, paredes de vidro, estruturasindependentes de vedação, etc.

Figura 2: Execução da obra - acervo do arquiteto, 1967.

Page 85: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 85

Quadro de caracterização arquitetônica da residência M. Marcondes.

A Casa da Cultura Juscelino Kubitschek é outro exemplo da arquiteturamodernista na cidade de Ribeirão Preto. Projetada por Durval Soave, que foi pre-sidente da AEAARP, entre 1976 e 1978. Soave formou-se pela FAU-USP em 1962,fez pós-graduação em Engenharia de Segurança do Trabalho. Foi membro doConselho Deliberativo de 1993 a 1997 da AEAARP e foi inspetor do CREA por duasvezes.

Figura 3: Imagens do exterior da Casa da Cultura. Foto: Carolina Simon Data: 03/08/2012

A Casa da Cultura “Juscelino Kubitschek” foi construída em 1976 e inau-gurada em 26 de janeiro de 1977, localizando-se no Morro do São Bento, s/n. Esteimóvel que atualmente apresenta falta de manutenção adequada, é integrante doComplexo Cultural Alto do São Bento, abriga a Secretaria da Cultura de Ribeirão

Paredesexternas:

utilização de concreto aparente, alvenaria de tijolos com reboco epintado; o muro de divisa do terreno na parte intima da residência

fechado por venezianas de concreto.

Aberturas: grandes aberturas em panos de vidro principalmente nas salas deestar e jantar e ao fundo da garagem; presença de aberturas comesquadrias metálicas nas partes onde se encontram os dormitórios;

ausência de portões.

Cobertura:laje impermeabilizada em concreto armado; presença de arcos de

concreto armado fechados por tijolos; cobertura plana.

Page 86: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

86 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Preto, Biblioteca Municipal “Guilherme de Almeida”, Sala de Exposições “Leone-llo Berti”, Escola de Belas Artes “Cândido Portinari”, auditório com capacidadepara 50 pessoas. Atualmente cede espaço para a Oficina Cultural “Cândido Por-tinari”, da Secretaria Estadual da Cultura. Encontra-se no Jardim da Casa daCultura esculturas de Bassano Vaccarini e Thirso Cruz.

Os arquitetos modernistas buscavam o racionalismo e funcionalismoem seus projetos, sendo que as obras deste estilo apresentavam como caracte-rísticas comuns formas geométricas definidas, sem ornamentos; separação en-tre estrutura e vedação; uso de pilotis a fim de liberar o espaço sob o edifício;panos de vidro contínuos nas fachadas ao invés de janelas tradicionais; integra-ção da arquitetura com o entorno pelo paisagismo, e com as outras artes plásti-cas através do emprego de painéis de azulejo decorados, murais e esculturas.

Entre os elementos da fachada podemos citar: uso de vidro; grandesaberturas; concreto aparente; verdade construtiva; simplicidade de formas e ele-mentos; racionalismo e funcionalismo.

Figura 4: Esquema com os principais elementos da fachada da Casa da Cultura. Fotoadaptada de Turismo Brasil.

Características da edificação- Utilização da luz natural (iluminação zenital no interior do prédio)- Planta livre - através de uma estrutura independente permite a livre locação dasparedes, já que estas não mais precisam exercer a função estrutural. No caso desteedifício é essencial por abrigar Exposições e eventos variados, com possibilidade dedivisões por painéis, adequando ao seu uso de acordo com a necessidade.- Fachada livre - resulta igualmente da independência da estrutura, assim, a fachadapode ser projetada sem impedimentos.- Janelas em fita - também consequência da independência entre estrutura e vedações,

Page 87: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 87

se trata de aberturas longilíneas que cortam toda a extensão do edifício, permitindoiluminação mais uniforme e vistas panorâmicas do exterior.

Os grandes vãos contínuos vedados por panos de vidro debruçam-sesobre a paisagem como mirantes contemplativos, capturando, enquadrando erealçando a vista através da arquitetura. Com este artifício, os limites entre interiore exterior se dissolvem, havendo um extravasamento da arquitetura em direção àpaisagem ao mesmo tempo em que a paisagem invade e contamina a arquiteturaao entrar no ambiente, reforçando o sentimento de continuidade entre estes.

Como num quadro, a fachada é um plano além do qual se abre umespaço imaginário que traz luz e vista do entorno, onde o espaço natural exterioré recortado. Assim, a paisagem, que é um patrimônio coletivo, assume também apropriedade estética particular através da janela-quadro, aproximando a naturezada convivência (Os cinco pontos da arquitetura moderna e a paisagem, 2012).

Abaixo, um croqui do arquiteto Le Corbusier exemplifica a apropriaçãoda paisagem no projeto arquitetônico.

Apropriação da paisagem no projeto de arquitetura. Croquis de Le Corbusier.

Considerações finais

Na medida em que arquitetura moderna nasceu dentro de uma negaçãoe contraposição à arquitetura eclética produzida em finais do século XIX, a suapreservação hoje, quando ela mesma já se encontra inscrita na história, noscoloca questões que exigem novos conceitos e instrumentos de ação.

Passado aproximadamente meio século do momento de sua maior pro-dução, a arquitetura moderna deve ser abordada como patrimônio histórico, prin-cipalmente quando as formas de preservação e intervenção forem discutidas esempre amparadas pelos princípios e recomendações das cartas patrimoniais -como em qualquer trabalho de conservação, intervenção ou restauro. A arquitetu-

Page 88: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

88 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ra moderna tinha como premissa atender às novas e crescentes demandas dasociedade, provenientes do amplo desenvolvimento industrial e do intenso pro-cesso de urbanização.

Nesse sentido é possível afirmar que é valioso o patrimônio particular e públi-co existente na cidade de Ribeirão Preto/SP, enquanto obras de arquitetura moderna.

Conceituam o preservar, o resgatar, o registro destas obras e um objetoatual de grande importância, já que são raros os esforços fora da ação do Conse-lho de Patrimônio da cidade (CONPPAC).

Esta herança dos arquitetos modernistas representa memória viva dapesquisa da forma, da técnica e da cor. Faz com que busquemos o envolvimento,um remanejamento de ações que provoque força efetiva no desenvolvimentourbano da cidade sem que quebre a origem do lugar. Esse patrimônio modernopoder levar à comunidade a sensibilidade através de diferentes caminhos oudescaminhos a reflexões estético-qualitativas; pois, representa um momento, umapersonalidade, a própria história da arquitetura do lugar.

A forma mais simples de preservação destes bens seria o tombamentoparcial, no qual preservam-se fachadas e coberturas. Em algumas obras não hánecessidade de tombamento interno, pois o modernismo na arquitetura, na mai-oria das obras, influencia projetos de forma que os elementos arquitetônicos secompletam criando espaços integrados uns aos outros.

Assim, não concluindo, mas fazendo referências ao olhar, poderemosgerar nas novas gerações uma reflexão estética de um passado muito presente,mas totalmente negligenciado por falta de conhecimento formal – estético.

PALLADINI, Dulce. Notes for the preservation of the recent patrimony: reflectionson the creative freedom in the modern architecture of Ribeirão Preto, SP. DIALO-GUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

Abstract: This article aims to present data to support the importance of the preser-vation of modern architecture, Ribeirão Preto / SP. Leading to the partial tippingpreserve these works? How? Why? Modernist architectures mark a promisingperiod in the city, not only with local architects but also with architects São Paulo.They show the amount of urban development and social facilities with variousindustries, as well as the growth of the agricultural period city. Thus, there is inten-tion to preserve avoiding there mischaracterization of architectures. As many ofthem are acquiring new functions.

Keywords: Modern Architecture, Preservation, Ribeirão Preto.

Page 89: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 89

Referências BibliográficasAZEVEDO; Paulo Ormindo D.; JÚNIOR, Nivaldo Vieira de A. Conceituações Con-temporâneas do Patrimônio. Salvador: ADUFBA 2011.CARVALHO, Claudia Suely Rodrigues de. Preservação da arquitetura moder-na: edifícios de escritórios no Rio de Janeiro construídos entre 1930 - 1960. Tesede Doutorado: Orientador Machado, Lucio Gomes. São Paulo, 2006.CAVALCANTI, Lauro (org.). Modernista na Repartição. Rio de Janeiro: UFRJ/MINC – Iphan, 2000.CAVALCANTI, Lauro (org.). Quando o Brasil era moderno: guia de Arquitetura1928 – 1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.LE CORBUSIER. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urba-nismo. Cosac & Naify, 2004.LEMOS, Carlos. O que é patrimônio? São Paulo: Brasiliense, 1981.MARQUES, Denise. A preservação da arquitetura moderna de Belo Horizonte:relato de uma experiência. In: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, BeloHorizonte, v. 12, n. 13, p. 155-163, dez. 2005BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. Trad. Ana M. Goldber-ger. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1981.MONTANER, J.M. La modernidad superada: la expressión em la arquitecturadedespués del movimeiento moderno. Barcelona: Gustavo Gili, 1997.OKSMAN, Silvio. Arquitetura moderna, patrimônio a ser preservado. In: Publica-ção da Associação Viva o Centro. Ano XIII. No 51 . 3o trimestre 2009.Os cinco pontos da arquitetura moderna e a paisagem. Disponível em:<http://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/0812280_10_cap_07.pdf>. Acessoem: 27/06/12.SEGAWA, Hugo: Arquiteturas no Brasil. 1900 – 1990. São Paulo – SP: Edusp,1998.TELLES, Sophia. Arquitetura Moderna no Brasil: o desenho da superfície.Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de filosofia, letras e ciênciashumanas USP, 1998.

Page 90: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

90 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 91: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 91

O TREM E A CIDADE DISCIPLINAR

Marcelo Carlucci*

RESUMO: Este trabalho procura refletir sobre a modernização provocada pelachegada do sistema ferroviário no oeste paulista no que se refere aos hábitos evalores do ambiente rural e do ainda incipiente espaço urbano, disciplinando otempo e o espaço de forma marcante e definitiva. Aliado a um cenário políticofundado no coronelismo, essa nova organização tempo-espacial criada pelo tremse insere num quadro mais amplo de estruturação disciplinar derivada desseplano político específico, porém recorrente no mundo moderno capitalista nosmoldes estudados por Michel Foucault a partir, sobretudo, de suas obras “Vigiar ePunir” e “Microfísica do Poder”.

PALAVRAS-CHAVE: Urbanismo e vias ferroviárias; Patrimônio Urbano; Cidadese Ferrovias.

Estação central da Cia de Ferro Mogyana de Ribeirão Preto, entre 1900 e 1905 (cartãopostal). Fonte: Arquivo Municipal de Ribeirão Preto.

1- A regulamentação da terra

O desenvolvimento econômico das grandes terras incultas dos entãochamados sertões da região sudeste do Brasil em meados do século XIX sedeveu em grande parte à migração de consideráveis levas de retirantes – escra-* Arquiteto, mestre e doutorando na área de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pelo Instituto deArquitetura e Urbanismo de São Carlos (IAUSC) da Universidade de São Paulo, São Carlos, SP, Brasilsob a orientação da Profa. Dra. Telma de Barros Correia.

Page 92: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

92 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

vos e homens livres – provenientes dos estados do Nordeste e Minas Gerais emfunção da decadência do açúcar e do ouro respectivamente na primeira e segun-da região. Essas terras, sobretudo aquelas localizadas na província de São Paulo,então tratadas como “terras devolutas não exploradas”, eram destino de pioneirosque ali se apossavam das glebas sem dono e tentavam o início de uma novaatividade econômica. Mas esse fluxo de pioneiros ao Oeste Paulista se explicatambém por uma nova organização do sistema de manejo e disposição jurídicadas terras devolutas no Brasil levada a cabo pela Lei de Terras de 1850.

Antes dessa lei as terras eram subdivididas entre os representantes do po-der local a partir das antigas sesmarias. Nesse sistema, inicialmente, as terraseram doadas pela coroa ao requerente com a condição de que este se obrigava apovoá-las e cultivá-las num prazo de dois anos; caso não o fizesse a propriedadeseria revertida ao patrimônio público. Em 1822 a doação de sesmarias passa a serproibida e a posse direta e material torna-se, então, a única forma de tornar-seproprietário de uma unidade rural. A regularização jurídica dessa posse era tãoprecária quanto sua natureza: através de uma escrituração em livro próprio o re-presentante local da Igreja Católica realizava o registro paroquial da propriedade.Nasce neste instante uma curiosa sobreposição de papéis políticos na região: oEstado transfere a propriedade da terra ao posseiro através da chancela do poderreligioso. A “oficialização” dos papéis relativos à posse da terra opera como umreforço do papel político que os latifundiários já exerciam há tempos na região;com o pretexto de organizar as relações jurídicas, o Estado atua nesse momentolegitimando o status da elite econômica e política. Em se tratando de áreas tãodistantes dos centros urbanos e de acesso difícil, esse pleno favorecimento dogrande proprietário rural na dinâmica das relações sociais se tornou inevitável.

A consolidação e legitimação de uma elite latifundiária rural no longínquoOeste Paulista se apoia, portanto, na formulação da Lei de Terras de 1850 promul-gada pelo governo imperial. Havia, ao mesmo tempo, o objetivo claro de promovera demarcação e a regularização fundiária das muitas terras devolutas existentesno Brasil à época a fim de alavancar o processo de desenvolvimento econômico,ao menos em tese. Na verdade:

[...] a Coroa sempre sofreu pressões por parte da elite cafeeira paulista que domina-va o cenário econômico do país, tendo cedido constantemente aos seus interesses.Estes refletiram na própria lei em questão, que se tornou, portanto contraditória:enquanto visava instaurar a pequena propriedade, dificultou sua aquisição por partedos imigrantes colonizadores (Silva, 2006, p.27).

Page 93: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 93

Assim a legislação que nasce sob o pretexto de disciplinar o uso e aexploração do sertão paulista e inserir a região na esfera civilizatória do capitalis-mo internacional se vê transformada fundamentalmente em instrumento delegitimação e favorecimento da elite econômica local. Segundo Foucault,

[...] o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que elenão pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produzcoisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve”se considerá”lo comouma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que umainstância negativa que tem por função reprimir (Foulcault, 2006, p.8).

A Lei de Terras implanta no Brasil do século XIX um capitalismo tupini-quim onde o livre acesso à mercadoria – que está na raiz da acepção mais liberaldesse sistema econômico –, no caso a terra, se transforma em controle desseacesso para que o trabalhador livre se veja impossibilitado de adquiri-la e o obri-gue a trabalhar para o detentor dos meios de produção a fim de viabilizar suaexistência. Como consequência indireta e amplamente festejada, a Lei induzia aformação de uma reserva de mão de obra para a lavoura cafeeira, órfã dos escra-vos recém-libertos. A posse da terra e seu consequente registro não se faziamapenas pela comprovação da doação realizada no passado; a produtividade esua exploração econômica também habilitavam o proponente a tornar-se donolegítimo da área. A lei, nesse sentido, era precisa ao definir terra produtiva: áreasroçadas, matas queimadas ou ranchos erguidos à margem de pequenas lavou-ras de subsistência não eram reconhecidos como sinais de ocupação. (Silva,2006, p.28). A consequência foi evidente:

[...] O que se observa de fato é que eram excluídas as culturas caboclas e poucosseriam os habitantes mais humildes em condições de proceder a tais benfeitorias emedições [a autora de refere aos requisitos impostos pela lei] a fim e recorrer àsações legais para legitimar suas posses. Com isso a grande propriedade era legiti-mada em detrimento da pequena (Silva, 2006, p. 31).

A obrigatoriedade da demarcação dos limites das terras e do registro desua propriedade atuava com instrumento de legitimação da posse realizada con-suetudinariamente em outros tempos, quando ainda vigorava o sistema quinhen-tista das sesmarias. Demarcá-la e discipliná-la opera em seu conteúdo uma trans-formação significativa: a terra passa a ser mercadoria, passível de compra e ven-da entre entes privados, fazendo com que a Coroa, instância estatal, deixe deatuar nesse ainda incipiente mercado. A posse da terra não significava agoraapenas prestígio social, mas prestígio econômico, parte fundamental do patrimô-nio amealhado pelo fazendeiro. Se antes as terras eram doadas pelo rei, agora

Page 94: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

94 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

elas fugiam de sua esfera de atuação para se inserirem no âmbito das relaçõespatrimoniais privadas.

Vale lembrar, nesse sentido, a proposição marxista da relação direta en-tre a constituição da noção de propriedade privada e a consolidação do poder doEstado:

Dado que a propriedade privada se emancipou da comunidade, o Estado adquiriuuma existência particular junto da sociedade civil e fora dela; mas esse Estado não émais do que a forma de organização que os burgueses constituem pela necessidadede garantirem mutuamente a sua propriedade e os seus interesses, tanto no exteriorcomo no interior (Marx&Engels, p. 68).

Estado e propriedade privada nascem anelados: [...] Os escritores fran-ceses, ingleses e americanos modernos afirmam todos, sem exceção, que oEstado só existe devido à propriedade privada, ideia essa que acabou por seraceite pela consciência comum (Marx&Engels, p. 69).

Parece-nos que no Brasil o nascimento da terra-mercadoria é um movi-mento duplo de inserção do país no contexto capitalista mundial, mas, ao mesmotempo, de institucionalização de um poder estatal suporte da burguesia de então.

A organização jurídica relativa à posse de terra estabelece uma platafor-ma de atuação para outras formas de disciplinarização que viriam a seguir. Ogrande latifúndio rural chancelado e embalado por um Estado benevolente juntode uma política restritiva do acesso a terra pelas camadas menos favorecidas dapopulação que, sem saída, atuariam como vendedores de força de trabalho paraa nascente agroindústria cafeeira, não prescindiriam do reforço logístico que aestrada de ferro traria ao empreendimento. No entanto esse projeto teve um al-cance bem mais amplo do que os limites econômicos que o trouxeram: a organi-zação espacial e os valores sociais da população diretamente afetada pelo tremforam fortemente marcados desde então até a atualidade.

2- Progresso, dominação e desenho urbano

Como parte da estratégia de incorporação de terras devolutas aos seusjá amplos domínios, os grandes latifundiários do café lançavam mão da doaçãode terras à Igreja a fim de constituir os chamados patrimônios religiosos, glebasseparadas de suas propriedades destinadas à construção de uma capela a partirda qual se organizavam quadrículas urbanas cujos lotes seriam transferidos paraos interessados em estabelecer moradia na vila que então se delineava. O objeti-vo da formação destes núcleos de povoamento forjados pela vontade e iniciativa

Page 95: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 95

do fazendeiro (o que se torna uma primeira e importante característica destepovoado, ou seja, sua origem não espontânea nem naturalmente criada por influ-ências diversas como foi o caso das cidades mineiras do ciclo do ouro em MinasGerais) era a valorização e o progresso de suas terras com a possibilidade deatrair mais interessados em habitar e trabalhar em áreas tão remotas como ooeste paulista. Ainda que esse intento tenha sido alcançado em um relativamentecurto período de tempo o acesso a essa nova fronteira eram ainda precário: Nãohavia profissionalização na empreita de abrir e manter estradas; a tarefa de aber-tura de caminhos e picadas, bem como sua manutenção, era confiada pelo go-verno aos inspetores de estradas da província (Girardelo, 2010, p.44).

A precariedade da situação mobilizou as lideranças políticas da região afim de pressionar o Estado na busca de soluções para o problema. Em 1865 écriada a Companhia São Paulo Railway1, uma associação entre o capital privadodos cafeicultores paulistas e empresas de construção civil inglesa. Houve tam-bém a participação do capital público nessa empreitada, ainda que de formaindireta através de desapropriações e emissão de papéis no mercado a fim de co-financiar as obras. O resultado final foi a formação de uma malha ferroviáriasignificativa que se irradiava por toda a região oeste do estado de São Paulo ecujo traçado seguia a lógica do escoamento da produção agrícola convergindo àcidade de São Paulo de onde o café descia ao porto de Santos. Os custos com otransporte do café, antes realizados através de carros de boi, foram reduzidos em20% (Silva, 2006, p. 29); mas essa era apenas uma das muitas vantagens que ocaminho de ferro proporcionava aos seus empreendedores. Além de providencialpara o escoamento da produção, o trem se mostrava lucrativo a partir da comer-cialização de passagens e transporte de cargas para o comércio e pequenasatividades industriais. Sua participação na economia e na geração de empregosnão pode ser desprezada; segundo Cano (1983) (apud Silva, 2006, p.30): “[...]enquanto a indústria paulista empregava 24.186 pessoas em 1907, as ferroviaseram responsáveis pelo emprego de 18.501 trabalhadores em 1910.”

Não seria incorreto supor, portanto, que a estrada de ferro viabiliza eincrementa os processos de desenvolvimento urbano que se delineiam a partir deentão. Tendo os coronéis do café como principais patrocinadores desse progres-so, fica evidente também sua participação na vida pública dessas cidades emer-1 Pioneira na história das ferrovias paulistas, a São Paulo Railway foi seguida por um número significativode subsidiárias a ela – como a Cia Mogiana de Estradas de Ferro ou a Noroeste Paulista – ou de empresasmenores de abrangência regional. Para uma referência mais precisa sobre o assunto ver MORAIS,Marcelo. As vilas ferroviárias paulistas. Dissertação de mestrado. Orientador: Nabil G. Bonduki. Deptode Arq. e Urb. – ESC-USP. São Carlos: 2002.

Page 96: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

96 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

gentes, onde chamavam para si os papéis de atores principais da cena política eeconômica, numa recorrente sobreposição das esferas públicas e privadas:

[...] os coronéis das cidades do interior, como parte de um processo maior,gerenciavam a administração pública sob tutela das elites políticas hierarquicamentesuperiores num processo que, à margem da legislação aparentemente liberal, con-duziu a uma centralização de medidas e interesses (Girardelo, 2010, p.58).

A influência que esse poder centralizado começa a exercer sobre seustutelados aparece de forma mais evidente no próprio traçado urbano levado acabo pelos primeiros Códigos de Posturas Municipais, documentos legislativosemanados das recém-criadas Câmaras Municipais2. Esse desenho imposto pelalegislação municipal era o da quadrícula em xadrez, procedimento que seriaadotado como norma pelo Código Sanitário do Estado de 1894. O “arruador” – namaior parte das vezes um agrimensor prático sem formação superior em enge-nharia ou arquitetura – seria então nomeado como responsável pela demarcaçãodas vias e divisões do espaço urbano; a fim de facilitar seu tecnologicamenteprecário serviço, eram evitadas curvas ou formas de difícil demarcação, daí aquadrícula ser adotada como expressão mais conveniente3. O procedimento ti-nha como efeito direto a possibilidade da transação imobiliária do nascente loteurbano concretizando a noção de terra urbana como mercadoria; indiretamente,por outro lado, simbolizava a instituição de um poder municipal festejado comoempresa modernizadora e civilizadora, mas que, em última análise, levava a caboum projeto de dominação e controle da ocupação fundiária daquelas novas par-2 “No século XIX surgiram os Códigos de Posturas ou as Posturas Municipais, originadas da necessidadede um novo delineamento jurídico que reestruturasse as relações sociais, as relações de produção e aconvivência nas cidades. O espaço urbano como causador de problemas humanos será alvo delegisladores, engenheiros, médicos e sanitaristas que criaram códigos e leis para coibir a proliferação dedoenças e disciplinar o ambiente citadino e a população. A concepção de punição aponta para a ideia deprevenção, ou seja, a pena como um mal positivo e que deve ser corrigido na forma da prevenção. Oscódigos de posturas assumem uma postura correlacional, uma postura preventiva da ordem e dasegurança pública, um conjunto de normas que estabeleciam regras de comportamento e convívio deuma determinada comunidade e sociedade, portanto assumem também uma esfera normativa“.(SCHMACHTENBERG, 2008, p. 199)3 O uso da quadrícula não é prerrogativa desse momento histórico: “Embora as cidades em quadrículatenham existido em diversos períodos da história, da Grécia às vilas da Idade Média, passando pelaChina e pelo Império Romano, o fato é que a cidade reticulada do século XIX é uma experiência que fazparte da expansão capitalista e pode até possuir desenho assemelhado às seus antecedentes, mas asua lógica e princípios são outros. É a face urbana do que ocorria celeremente no campo e que só existeem decorrência deste. A cidade tem seu solo estabelecido como mercadoria, assim como acontecidacom as glebas rurais, ao menos no seu princípio básico de parcelamento e desenho“ (GUIRARDELLO,2001, p.98).

Page 97: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 97

celas de terras urbanas. Aparentemente liberal – o lote urbano podia ser livremen-te negociado e se inseria no princípio do laissez faire – a cidade do oeste paulistado século XIX nasce como um espaço meticulosamente forjado pela disciplina.

Mapa do arruamento de Ribeirão Preto, SP, realizado em 1874.Fonte: Arquivo Público Municipal de Ribeirão Preto

O que nos propomos refletir aqui são os processos peculiares que torna-ram possível o estabelecimento de um “contrato social” entre uma diminuta elitedetentora do poder econômico, político e normativo e uma outra esfera socialrelativamente numerosa e abrangente de atores sociais formada por trabalhado-res livres, escravos libertos, imigrantes, profissionais liberais entre outros; as es-tratégias de que lançou mão essa elite – desde a normatização da posse da terracom a Lei de Terras de 1850 até a organização do espaço urbano – a fim dealcançar seus objetivos; e, por fim, os efeitos que esse poderoso projeto tiveramna constituição de um determinado perfil de cidade4.

A matriz dessa empreitada civilizatória se ligava aos princípios higienistas4 Neste sentido Nestor Goulart Reis esclarece a estreita relação entre desenho urbano e formas de gestãopolítica e social: “É importante destacar que é na escala do tecido urbano que se definem as formas depropriedade de parcelas do solo urbano e a propriedade das edificações. É nessa escala que se definemos espaços de acesso e uso público e as formas de organização coletiva dos espaços. O tecido urbano é,portanto, uma definição geométrica de relações de propriedade e uma definição social das formas de uso.É no tecido urbano que se concretizam as formas de desigualdade na apropriação e uso dos espaços, asformas de segregação social e apropriação dos valores econômicos produzidos pelo uso social.”(REIS,2006, p.59)

Page 98: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

98 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

amplamente debatidos e teorizados naquele momento histórico e formadores dourbanismo como disciplina e ciência. O alargamento das ruas, sua retificação eo controle do projeto residencial com vistas à bem iluminá-lo e ventilá-lo nãoforam prerrogativas das cidades brasileiras, mas de grande parte dos países eu-ropeus e sua rede de influência ao redor do mundo – América, sobretudo. A cria-ção do Código Sanitário Estadual em 1894 foi um importante instrumento derealização desse projeto higienista. Ali estariam determinados vários aspectos doplanejamento urbano das cidades paulistas: a largura das ruas, o formato e otamanho dos passeios (calçadas), as declividades, o ajardinamento, a arboriza-ção, os sistemas de saneamento básico e a iluminação; a lei organizava tambémo uso e a ocupação do espaço – a localização de vilas operárias, as fábricas, oscemitérios e as escolas – para que as atividades “incômodas” – produtoras demau cheiro ou circulação indesejada de pessoas e produtos menos nobres –,ainda que essenciais ao progresso local se apartassem dos espaços limpos ecivilizados da urbe.

3- Organização e controleA regulamentação fundiária levada a cabo pela Lei de Terras e a norma-

tização de um desenho urbano controlador e disciplinador em meados do séculoXIX no Brasil não podem ser entendidos como fenômenos distintos dos agencia-mentos urbanos embasados pelas formulações teóricas e científicas provenien-tes de pensadores e cientistas europeus da época. Nesse sentido, as reflexõesfoucaultianas a respeito do nascimento da medicina social (capítulo homônimoda sua obra “Microfísica do poder”) ao longo dos séculos XVIII e XIX esclareceme contextualizam o quadro brasileiro.

Já no início do seu trabalho – na verdade uma de suas conferênciasrealizadas em Paris nos anos 60 – Foucault lança sua hipótese de reflexão:

[...] que o capitalismo, desenvolvendo”se em fins do século XVIII e início do séculoXIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, forçade trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmen-te pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo (Foucault,2006, p. 47).

A fim de elucidar essa hipótese se debruça primeiramente sobre a ascircunstâncias e condições que propiciaram a gênese do Estado para em segui-da refletir sobre como esse poder se efetiva e se consolida através justamente dosdispositivos médicos, higienistas e científicos com um viés fortemente disciplina-dor. Essa reflexão parece guardar estreita relação com as estratégias políticas

Page 99: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 99

usadas no contexto histórico descrito neste trabalho. Como lembra Telma Cor-reia: “As técnicas de controle do meio e os dispositivos disciplinares produzidos apartir do saber médico subsidiaram a idealização de espaços modelares e corre-tivos por homens do século XX” (Correia, 2004, p.25).

Segundo Foucault, os alemães teriam, frente aos países europeus, asupremacia do desenvolvimento de uma noção mais madura e consistente deEstado em função de suas próprias características: áreas menores com forma-ções políticas pouco definidas e uma escassa tradição na estruturação de umcorpo policial ou um exército atuante:

[...] Foi na Alemanha que se formou, no século XVIII, bem antes da França e daInglaterra, o que se pode chamar de ciência do Estado. A noção de Staatswissenschaft5é nitidamente alemã e sob o nome de ciência do Estado pode se agrupar duascoisas, que surgem, nesta época, na Alemanha: por um lado, um conhecimento quetem por objeto o Estado [...] por outro lado, uma expressão que significa o conjuntodos procedimentos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos paramelhor assegurar seu funcionamento (Foucault, 2006, p. 48).

Foucault acredita que o Estado Moderno se desenvolveu melhor ondefaltaram o desenvolvimento econômico e a estruturação política. No caso especí-fico da Alemanha essa formação da noção de Estado nasce atrelada à normatiza-ção médica enquanto profissão, procedimento e lida com o “corpo social”; haviaentão uma preocupação acentuada com a medição e o controle das epidemiasa fim de que o Estado se constituísse como entidade saudável e eficiente. O foconão era o corpo individualizado, mas o conjunto de corpos que constituiriam, emúltima análise, a sociedade alemã; a ciência médica neste caso constrói e afirmaa noção de Estado.

Em relação à França Foucault vê diferenças nesse processo. Paris co-meça a pensar na necessidade de unificar o poder municipal em fins do séculoXVIII 6 movida pelos inconvenientes comerciais que essa situação impunha e,principalmente, pelos conflitos cada vez mais frequentes entre ricos e pobres,uma situação complexa levada a cabo pelo desenvolvimento incessante da cida-5 Palavra alemã que significa “ciência política” ou “política econômica” (N. do autor).6 O autor lembra como se organizava politicamente a cidade naquela época: “Paris, por exemplo, nãoformava uma unidade territorial, uma região em que se exercia um único poder, mas um conjunto depoderes senhoriais detidos por leigos, pela Igreja, por comunidades religiosas e corporações, poderesestes com autonomia e jurisdição próprias. E, além disso, ainda existiam os representantes do poderestatal: o representante do rei, o intendente de polícia, os representantes dos poderes parlamentares. O rioSena, por exemplo, e suas margens, estava sob a soberania do prévôt des marchands. Mas bastavaultrapassar essas margens para se estar sob outra jurisdição, a do lugar“tenente de polícia ou a doparlamento.” (Foucault, 2006, p.50)

Page 100: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

100 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

de pré-industrial. O controle desses conflitos sociais cada vez mais presentes nocotidiano parisiense de fins do século XVIII era condição básica para que a cida-de não implodisse frente a um estado de coisas insustentável.

O medo passa a conviver com uma latente forma de cidadania: “Nasce o quechamarei medo urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai secaracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas que estão se constru-indo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população nume-rosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios, que se tornamcada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos,das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo operigo de desmoronar” (Foucault, 2006, p. 53).

O antídoto a esse “veneno social” será o que autor chama de medicinaurbana, uma resposta ao caos instalado que, partindo de procedimentos médicose científicos voltados à profilaxia e tratamento de doenças e problemas de sane-amento básico da cidade acabam por definir uma forma de ação do poder públi-co frente ao corpo social, visto então como o paciente necessitado de ajuda pararecuperar-se. Os cemitérios, isolados dos centros urbanos, passam a abrigarcadáveres em caixões individualizados e identificados, organizando e controlan-do os mortos e suas temíveis infecções; o mesmo deveria ocorrer com os mata-douros 7; a recomendação básica era liberar a circulação da água e do ar atravésde largos e lineares bulevares, pontes desobstruídas e margens de rios retificadase saneadas.

Esse quadro seria característico nas cidades europeias do final do sécu-lo XVIII. O século seguinte colocaria nova questão a ser tratada: os podres reivin-dicantes de direitos básicos inspirados pela Revolução Francesa e consideradosos principais responsáveis por aterrorizantes surtos epidêmicos seriam o alvopreferencial das políticas públicas a fim de garantir a segurança da burguesia,que, ameaçada por uma insurreição de insatisfeitos, se esforçava por criar meca-nismos de assistência a esses miseráveis. Foucault fala em “assistência-contro-le” que se traveste de “assistência-proteção”, ambas materializadas nas campa-nhas de vacinação e controle de epidemias. Curiosamente as camadas popula-7 Curioso notar como essa modernização só alcança o interior do estado de São Paulo em fins do séculoXIX, segundo descreve Girardelo, 2010, p. 211, falando sobre a modernização eclética da região: “(...)outro Cemitério é construído distante da cidade e ao fim de uma longa avenida, que, na maioria das vezes,terminava no portal de acesso a esse local, que seria topônimo de saudade, consolação, boa morte (...)espaço murado e regularizado, dotado de ruas e avenidas (...) no novo espaço nada de covas rasas, mastúmulos bem construídos que só poderiam receber corpos em caixões de madeira (...) quanto ao matadouroficaria mais longe ainda em razão do cheiro e dos ruídos“.

Page 101: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 101

res destinatárias desse esforço burguês em controlá-las reconhecem ou pres-sentem a estratégia política a ele subjacente e reagem sistematicamente comolembra o autor:

[...] creio que seria interessante analisar, não somente na Inglaterra, mas em diver-sos países do mundo, como essa medicina, organizada em forma de controle dapopulação pobre, suscitou resistências. É, por exemplo, curioso constatar que osgrupos de dissidência religiosa, tão numerosos nos países anglo”saxões, de religiãoprotestante, tinham essencialmente por objetivo, nos séculos XVII e XVIII, lutar contraa religião de Estado e a intervenção do Estado em matéria religiosa. Ora, o quereaparece, no século XIX, são grupos de dissidência religiosa, de diferentes formas,em diversos países, que têm agora por objetivo lutar contra a medicalização, reivin-dicar o direito das pessoas não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seupróprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer comoquiserem. Esse desejo de escapar da medicalização autoritária é um dos temas quemarcaram vários grupos aparentemente religiosos, com vida intensa no final doséculo XIX e ainda hoje (Foucault, 2006, p. 57)..8

Como síntese destes dois momentos, o nascimento de um Estado Naci-onal alemão consubstanciado pelo fazer médico e uma medicina urbana france-sa, se manifesta na Inglaterra do século XIX através de uma corrente de políticapública fortemente centrada no controle da saúde e do corpo das classes maispobres a fim de torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classesmais ricas. É sobre esse princípio que Foucault acredita terem se estruturadogrande parte dos planejamentos urbanos levados a cabo em todo o mundo:

[...] Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco flexível e a medi-cina urbana francesa era um projeto geral de controle sem instrumento preciso depoder, o sistema inglês possibilitava a organização de uma medicina com faces eformas de poder diferentes segundo se tratasse da medicina assistencial, administra-tiva e privada, setores bem delimitados que permitiram, durante o final do século XIXe primeira metade do século XX, a existência de um esquadrinhamento médicobastante completo (Foucault, 2006, p.60).

O controle e a disciplina dos corpos, segundo Foucault, passam então ase mesclar e fazer parte integrante do projeto político dos Estados nacionais deforma quase espontânea e intuitiva. Em sua outra obra referencial sobre o assunto– Vigiar e punir – o controle sobre o corpo é meticulosamente analisado:

8 No caso da Brasil, as insurreições populares conhecidas como “a revolta da vacina” no Rio de Janeirono início do século XX, quando da vacinação obrigatória contra a varíola, foram uma dessas reverberaçõesdo fato levantado por Foucault.

Page 102: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

102 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula eo recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder,está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, nãosimplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, comas técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assimcorpos submissos e exercitados, corpos dóceis (Foucault, 1987, p. 164).

Ao pensar a disciplina como a arte de distribuir os corpos no espaço,Foucault se refere mais especificamente às chamadas Instituições totais (esco-las, quartéis, hospitais, conventos ou fábricas); mas o procedimento a que elechama quadriculamento nos parece aplicável ao desenho urbano acima des-crito neste trabalho:

Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuiçõespor grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas,maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quantocorpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições inde-cisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, suacoagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, deantiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde ecomo encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as ou-tras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, domi-nar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (Foucault, 1987, p. 169).

4- O trem e a cidade disciplinada

A influência da implantação dos caminhos de ferro sobre a urbanizaçãodo Oeste Paulista tem sido aceita de forma bastante recorrente em um númerosignificativo de trabalhos acadêmicos e livros9. Sem buscar tomar partido especí-fico neste debate, buscamos relacionar, como possível síntese, aspectos especí-ficos do assunto face às formulações de Michel Foucault em suas obras “Micro-física do poder” e “Vigiar e punir”.

Ao falar sobre “a arte das distribuições” o autor busca entender a relaçãoentre a organização do espaço e suas normas subjacentes com certa intenciona-lidade disciplinar e política proveniente daqueles designados como poderes au-

9 Dentre os autores e obras tratados nas próximas páginas assinalamos como contribuição importante paraesse assunto a tese de livre docência da professora Ana Lúcia Duarte Lanna (Ferrovias, cidade etrabalhadores 1870-1920. São Paulo: FAU-USP, 2002.) onde a relação entre formação urbana e aimplantação de infraestrutura ferroviária ocupa lugar de destaque.

Page 103: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 103

toritários sob cuja égide se congrega numeroso exército de corpos submissos.Quando verificamos a forma como eram organizadas as estações de

trem do oeste paulista ao longo dos séculos XIX e início do XX, fica evidente otraço disciplinador em ação:

A estação obedecia às classificações da companhia [de trem]: primeira, segunda eterceira classes, que correspondiam ao movimento e à arrecadação previstos. As deprimeira classe eram maiores e arquitetonicamente mais requintadas [...] em seguidavinham as de segunda, mais modestas; depois as de terceira, pequenas e simples,onde poucas composições paravam, e, dependendo da empresa, eram construídasem madeira (Girardelo, 2010, p. 157).

Foucault, quando discorre sobre a classificação dos desempenhos es-colares entre os alunos tomada como base de uma estratificação social queespera por aqueles jovens alunos na vida adulta, trata do assunto de forma quaseparalela:

A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar osdesvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; [...] A disciplinarecompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e luga-res; pune rebaixando e degradando. Essa repartição classificatória e penal seefetua a intervalos próximos por relatórios que os oficiais, os professores, seusadjuntos fazem, sem consideração de idade ou de posto, sobre “as qualidadesmorais dos alunos” e sobre “seu comportamento universalmente reconhecido”. Aprimeira classe, dita dos “muito bons”, se distingue por uma dragona de prata; [...]. Asegunda classe, dos “bons”, usa uma dragona de seda cor de papoula e prata;[...].A classe dos “medíocres” tem direito a uma dragona de lã vermelha; às penasprecedentes se acrescenta, se for o caso, o burel. A última classe, a dos “maus”, émarcada por uma dragona de lã parda; (Foucault, 1987, p. 207).

O horário do trem, de suas chagadas e partidas, sua escala, entra na vidada pequena cidade impondo uma nova forma de se relacionar com o tempo:

A ferrovia trazia à cidade outro ritmo de vida, mais moderno, menos modorrento,controlado pontualmente pelo relógio da estação e inteirado das coisas do mundopelo telégrafo. Os novos sons inundavam o ar: apitos, sinos e estrondos furiosos deengate de vagões (Giradelo, 2010, p. 159).

Em Foucault a reflexão sobre o domínio da disciplina do tempo medidosobre o corpo também está presente:

O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário — um quadro geral parauma atividade; é mais que um ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior; é umprograma; ele realiza a elaboração do próprio ato; controla do interior seu desenro-

Page 104: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

104 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

lar e suas fases. Passamos de uma forma de injunção que media ou escandia osgestos a uma trama que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento.Define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento. O atoé decomposto em seus elementos; é definida a posição do corpo, dos membros, dasarticulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, umaduração; é prescrita sua ordem de sucessão. O tempo penetra o corpo, e com eletodos os controles minuciosos do poder (Foucault, 1987, p. 177).

O trem traz consigo a facilidade de trocas e de comunicação com omundo:

A dificuldade de comunicação pela falta de estradas afetará significativamente a vidaurbana [...] mais uma vez o trem praticamente resolverá tais demandas, pois ocorreio se tornaria simples consequência do aumento da importância da cidade(Girardelo, 2010, p. 113).

Ao mesmo tempo, porém, a sofisticação tecnológica agora atualizadapelas comunicações abre caminho para mecanismos disciplinares cada vez maisprecisos e eficientes:

Ao iniciar-se o arruamento destes povoados, foi tomada por base, em todos oscasos, a longa reta originada pela linha da ferrovia, ou mesmo, os limites da divisa daesplanada. Tais demarcações eram físicas, pois fechadas por cerca, como forma deimpedir a entrada dos animais, que poderiam provocar acidentes, quando junto aostrilhos (Girardelo, 2001, p. 144).

Neste caso a cerca da estação de trem simboliza o rol de demandas desegurança na relação do lugar com a via férrea a desenvolverem outras normas ecritérios na disposição do espaço urbano: um lugar surgido a partir do trem jánasce inserido neste amplo processo disciplinar estudado por Foucault:

A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Paraisso, utiliza diversas técnicas. A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação deum local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Local protegido damonotonia disciplinar. Houve o grande encarceramento dos vagabundos e dosmiseráveis; houve outros mais discretos, mas insidiosos e eficientes (Foucault, 1987,p. 168).

A chegada do trem festejada como nova instância tecnológica a favore-cer a qualidade de vida daquelas tão distantes e remotas paragens desencadeiaa inclusão da região nos modos de produção capitalista modernos, onde a produ-ção e a distribuição reclamam expedientes cada vez mais rápidos e eficientes.Talvez o trem tenha realmente realizado exatamente apenas isso: incrementar olucro do grande produtor rural. A promessa do desenvolvimento civilizatório para

Page 105: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 105

todos os outros que ali viviam e trabalhavam se concretizou de forma anacrônica(como está na raiz do próprio conceito de desenvolvimento capitalista segundoMarx): modernos e civilizados sim, mas a custa de suplícios, penas e privações.

CARLUCCI, Marcelo. The train and disciplinary city. DIALOGUS. Ribeirão Preto.v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: This paper intends to reflect about the modernization made by thetrain system in the western São Paulo region linked to habits and values in country-side. It reflects about the treating with time and space in early urban nucleon in theXIX´s. Made by the political arrangements of “coronelismo” the theories of MichelFoucault are used to establish the social and anthropological scenario for thebeginning of the “paulistas” cities.KEYWORDS: Urbanism and train ways; urban heritage; cities and e trains.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:CORREIA, Telma de Barros. A construção do habitat moderno no Brasil.1870-1950. São Carlos: RiMa, 2004.199p.FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 211p.FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,1987. 256p.GUIRARDELLO, Nelson. A formação dos patrimônios religiosos no proces-so de expansão urbana paulista. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.155p.______. À beira da Linha: Formações urbanas da Noroeste Paulista. SãoPaulo: Editora Unesp, 2001. 201p.MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Extraído de: http://livrosbpi.com CEL – Célula de Entretenimento Libertário - Célula BPI BPI – Biblio-teca Pública Independente.MORAIS, Marcelo. As vilas ferroviárias paulistas. Dissertação de mestrado.Orientador: Nabil G. Bonduki. Depto de Arq. e Urb. – EESC-USP. São Carlos: 2002REIS, Nestor Goulart. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas detecido urbano. São Paulo: Via das Artes, 2006. 145p.SCHMACHTENBERG, Ricardo. Código de Posturas e Regulamentos: Vigiar,Controlar e Punir. Anais do IX Encontro Estadual de História. Associação Nacio-

Page 106: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

106 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

nal de História, Secção RGS – ANPUH-RS, 2008. Disponível em http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br. Acesso em 20/06/2011.SILVA, Adriana Capretz Borges. Campos Elíseos e Ipiranga: memórias do an-tigo Barracão. Ribeirão Preto, SP: Editora COC, 2006.

Page 107: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 107

CONHECER PARA VALORIZAR: O PATRIMÔNIO CULTURALCOMO CONTEÚDO DO ENSINO DE HISTÓRIA

Adriana Cristina de GODOY*

RESUMO: Discutimos neste artigo a importância da inserção do conteúdo depatrimônio cultural no local de vivência do aluno, em particular nas aulas deHistória no Ensino Fundamental. Refletindo sobre a função da história como dis-ciplina, nosso objetivo é motivar o interesse deste estudante em relação ao patri-mônio cultural e, por conseguinte, da história local. Ao conhecer uma históriapróxima ao seu cotidiano, que este aluno possa perceber-se como agente histó-rico e participante nas mudanças, observador crítico das permanências e com-preender a importância da preservação de símbolos, fazeres e lugares para amanutenção de uma memória coletiva. A formação do cidadão, uma das prerro-gativas da História Escolar, passa pela valorização do patrimônio cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Ensino de História, História Local.

Introdução

Este artigo propõe a reflexão sobre a relevância do estudo do patrimôniocultural nas aulas de História no Ensino Fundamental. Nosso objetivo é contribuirpara um debate que auxilie no aumento do interesse deste estudante em relaçãoao patrimônio cultural e, por conseguinte, da história local. Ao conhecer umahistória próxima ao seu cotidiano, o aluno percebe-se como agente histórico eparticipante das mudanças, além de observador crítico das permanências. Com-preende que história não é feita apenas pelos “heróis” e figuras de comando, mastambém por aqueles que vivem as suas vidas no cotidiano, porque é nele que ahistória acontece. Aquele que conhece a história local pode refletir sobre ela, bemcomo sobre o global, compreendendo a importância da preservação de símbo-los, fazeres e lugares como a manutenção de uma memória coletiva. Para quealgo seja respeitado é preciso conhecê-lo e compreender sua relevância. A for-mação do cidadão, uma das prerrogativas da história escolar, passa pela valoriza-ção do patrimônio cultural.

* Especialista e Mestranda em Educação; (DEDIC/FFCLRP/USP). FFCLRP/USP e SME/PMRP; e-mail [email protected]

Page 108: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

108 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

A questão do ensino de história e do patrimônio cultural: preservar para quê?

Na obra Apologia da História ou Ofício do historiador, o historiador fran-cês Marc Bloch (2001) relata uma pergunta uma feita por uma criança sobre afunção da história. Questão esta que o inquietou e foi o fio condutor de seu últimolivro, inacabado devido ao seu falecimento. Bloch fazia parte da resistência fran-cesa e era judeu. Foi preso em 1944 pela polícia política do nazismo, a Gestapo,e morto por fuzilamento junto com outros prisioneiros em junho do mesmo ano. Oepisódio referido no início deste parágrafo foi relatado na Introdução deste livro(BLOCH, 2001, p.41):

‘Papai, então me explica para que serve a história’. Assim um garoto, de quem gostomuito, interrogava há poucos anos um pai historiador. Sobre o livro que se vai ler,gostaria de poder dizer que é minha resposta. Pois não imagino, para um escritor,elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Massimplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos. Pelo menos conservareiaqui de bom grado essa pergunta como epígrafe, pergunta de uma criança cuja sedede saber eu talvez não tenha, naquele momento, conseguido satisfazer muito bem.

Segundo Rocha (1999, p.48), esta discussão sobre a serventia da histó-ria deve ser permanente e “se fazer presente como forma de trazer à luz o incons-ciente ideológico do professor, evitando-se, assim, que este se transforme, semque o perceba, num instrumento de alienação.” E destacamos a reflexão cons-tante sobre a sua prática como uma forma de aperfeiçoa-la. A questão propostana obra do ilustre historiador francês pode passar pela cabeça de muitos outrosgarotos e garotas, mesmo que poucos a verbalizem. Normalmente, aqueles queestão se sentindo presos no interior dos muros da escola enquanto o mundoacontece do lado de fora e dentro do seu telefone celular, o qual ele não pode usardurante as aulas, inclusive por imposição legal 1.

Esta questão sobre a função da História ou mesmo o porquê de se estu-dar algo que aconteceu quando eles nem eram nascidos pode ser relacionada àpreservação do patrimônio histórico. O resultado deste tipo de indagação se refle-te no descaso que vemos com as referências culturais, no fato de muitos nãoentenderem a razão de manter “este prédio velho”, ao invés de construir um edifí-cio moderno no lugar como um shopping, por exemplo.

Em nossa prática diária de sala de aula, dos anos finais do ensino funda-

1 No estado de São Paulo, a Lei 12.730 de 11 de outubro de 2007 proíbe o uso de celulares emestabelecimentos de ensino durante o horário de aula. Disponível em: <http://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/130341/lei-12730-07>. Acesso em: 28Set.2013.

Page 109: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 109

mental, algumas vezes nos deparamos com a indagação em relação ao estudoda história, relatada acima. Vivemos em um tempo no qual os olhos estão sempremuito voltados para o futuro, com uma preocupação constante com a inovação.Neste contexto, tudo que é relacionado a um tempo pretérito passa a ser visto, poralguns, como ultrapassado. É preciso que apontemos para a necessidade deolhar para o passado, devido ao fato deste ter, entre outras coisas, alicerçado opresente e o futuro. No ensino de história é necessário que façamos sempre oexercício do ir e vir (passado e presente), situando os eventos no seu tempohistórico e relacionando-os com o nosso momento atual. Deste modo, levamos oestudante a significar este passado e ver-se como participante de uma históriaque está sendo construída. O conhecimento histórico está em constante movi-mento. Assim como as identidades culturais, ele é vivo e pertence aos cidadãos,não devendo ser apropriado pelos grupos dominantes como foi durante muitotempo, como uma história que privilegiava os heróis, datas e fatos ligados a quemestava ou tinha cesso ao poder, deixando à margem uma grande massa formadapelas camadas sociais menos privilegiadas, pelas mulheres, negros e crianças.

Para chegar aos computadores e à Internet, os seres humanos precisa-ram antes conhecer os tipos móveis de Guttenberg2. Um passo importante para aampliação do acesso ao conhecimento. O entendimento deste processo é funda-mental. Nossos alunos devem atentar-se ao fato de que muitos eventos importan-tes aconteceram antes deles terem nascido.

O patrimônio faz parte desta percepção. Ele é uma herança comum, aqual todos devemos conservar, posto que constitui a nossa identidade. No entan-to, para querer conservá-lo, e até se engajar neste movimento, é preciso conhe-cê-lo. Aos nos darmos conta da relevância de uma referência para um grupo depessoas, do qual podemos nos constituir, passamos a ter um sentido de pertenci-mento, tanto do lugar quanto do grupo. De acordo com Martins (2001, p.5), “her-damos de gerações passadas o ambiente no qual vivemos, a cultura dentro daqual fomos criados, as lendas, as canções, os hábitos, a religião, os modos decomportamento, a língua com a qual nos expressamos”. Mesmo cada um tendoa sua singularidade, estes traços nos constituem como povo brasileiro. No nossolocal de morada, essa herança contribui com a nossa identificação como cida-dãos de uma localidade. Entender este aspecto para atentarmos ao fato de queassim como recebemos esse legado, devemos conservá-lo para as gerações

2 Johannes Guttenberg é considerado o criador do processo de impressão que usa os tipos móveismetálicos, conhecido como tipografia. O que alterou o processo de reprodução dos livros, que até o séculoXIV era feito um a um por meio de cópia. Era um processo demorado e caro.

Page 110: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

110 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

futuras. Isso é uma responsabilidade de todos.Mas afinal, o que é patrimônio? Ao procurarmos no Dicionário Básico da

Língua Portuguesa Folha/Aurélio, encontramos a definição de patrimônio como:“1. Herança paterna. 2. Bens de família. 3. Dote dos ordinandos. 4. Riqueza. 5.Complexo de bens materiais ou não, direitos, ações, posse e tudo o que maispertença a uma pessoa ou empresa e seja suscetível de apreciação econômica.6. A parte jurídica e material da azienda”.

Entre as definições acima é difícil escolher uma que represente o con-ceito de patrimônio aqui discutido. O aluno que querendo saber mais sobre oassunto buscasse nesta obra uma definição para a palavra, dentro do discutidoaté então, não a encontraria. Alguns daqueles conceitos podem explica-lo emparte, no entanto nenhum enquadra a questão da coletividade (pública) presenteno patrimônio cultural.Sensibilizar os alunos para a questão da preservação do patrimônio é uma tarefada escola, a qual o ensino de história pode abranger, por isso concordamos comOriá (2001, p.130) e destacamos suas palavras:

Consideramos que a escola e, em particular o ensino de História, tem um papelfundamental nesse processo. É ela, em última instância, o locus privilegiado para oexercício e formação da cidadania, que se traduz, também, no conhecimento e navalorização dos elementos que compõem o nosso patrimônio cultural. Ao socializar oconhecimento historicamente produzido e preparar as atuais futuras gerações paraa construção de novos conhecimentos, a escola está cumprindo o seu papel social.

E este trabalho não precisa ficar apenas no âmbito da história, podeacontecer em conjunto com outros componentes curriculares, como artes, porexemplo, no engajamento da valorização do patrimônio artístico ou a geografia,no ambiental e as ciências, no científico.

Procurar atividades sobre o patrimônio focando em assuntos da atualida-de e temas de interesse do aluno pode ser um caminho. Assim como o patrimônioquando não é imposto, mas eleito pela população, acresce sua relevância epertencimento. Um exemplo disso foi a pesquisa feita pela Rede de CooperaçãoIdentidades Culturais3 em 2010, com intuito de levantar junto à população deRibeirão Preto-SP, quais “as identidades mais importantes, aquelas consideradascomo ícones representativos da cidade”, os quais “todos tem orgulho de mostrar

3 Grupo formado em 2010 por pesquisadores de múltiplas formações ligados a várias instituições de ensinode Ensino Superior de Ribeirão Preto-SP, com o objetivo de “identificar e analisar os elementos que davamespecificidade ao município, características que, juntas, constituíram a paisagem cultural de Ribeirão Preto”(ROSA, SILVA, 2013, p.15).

Page 111: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 111

aos visitantes do município” (ROSA, SILVA, 2013, p.15-16). Algo importante a serlevado em conta, posto que sempre que se pensava em patrimônio histórico eartístico nacional no Brasil relacionava-se àqueles identificados pelo ente públi-co, como de interesse geral.

A questão do patrimônio no Brasil estava relacionada a uma “preocupa-ção com a salvação dos vestígios do passado da Nação, e, mais especificamen-te, com a proteção dos monumentos e objetos de valor histórico e artístico” (FON-SECA, 2005, p.81). De acordo com Fonseca (2005), ele passou a ser consideradorelevante politicamente a partir da década de 1920, quando os grandes museusnacionais já se encontravam em funcionamento, porém sem formas de proteçãodos bens que lá se encontravam abrigados, e alguns em condições de deteriora-ção, tanto que este estado de coisas foi denunciado por intelectuais e pela im-prensa. Este movimento levou à mobilização por uma legislação e um órgão queos preservasse, o SPHAN. Os trabalhos do Serviço de Patrimônio Histórico eArtístico Nacional (SPHAN), órgão governamental de proteção ao patrimônio, fo-ram iniciados em 1937, sendo promulgado pelo Decreto-Lei n. 25 de 30 de no-vembro do mesmo ano, durante o governo do Presidente Getúlio Vargas, emplena Ditadura do Estado Novo. A implantação deste órgão contou com a colabo-ração de intelectuais modernistas como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira eCarlos Drummond de Andrade, segundo o site do, hoje, Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Ao se referir a essa política de preservação que norteou a prática doServiço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), e seus similaresnos estados e municípios, Oriá (2001, p.131) atesta que este “objetivava passaraos habitantes do país a ideia de uma memória unívoca e de um passado homo-gêneo e o de uma história sem conflitos e contradições sociais”, o intuito era o de“forjar uma identidade nacional única para o país, excluindo as diferenças e apluralidade étnico-cultural de nossa formação histórica”. Ainda segundo o autor(ORIÁ, 2001, p.131) foram preservadas “igrejas barrocas, os fortes militares, ascasas-grandes e os sobrados coloniais. Esqueceram-se, no entanto, as senzalas,os quilombos, as vilas operárias e os cortiços”.

Este tipo de classificação também é criticado por Garcia Canclini (2006,p.163), ao analisar a situação na América Latina, que o considera um “patrimôniohistórico constituído pelos acontecimentos fundadores, os heróis que os protago-nizaram e os objetos fetichizados que os evocam. Os ritos legítimos são os queencenam o desejo de repetição e perpetuação da ordem”. Diferente do que sequeria ilustrar com este tipo de imposição, o de uma história homogênea e semconflitos, os espaços de luta e legitimação também precisam ser preservados

Page 112: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

112 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

para a formação de uma identidade coletiva. Ainda para Garcia Canclini (2006,p.195) mesmo que o “patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualda-des em sua formação e apropriação exigem estuda-lo também como espaço deluta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos”. Ou seja, há umdescompasso em meio a essas representações, legando espaços diferenciadosdentro do contexto do patrimônio.

Atualmente, a definição de patrimônio se ampliou e passou a se tratar o“patrimônio cultural”, adotado pelo artigo 216 da Constituição Federal de 1988 4,ampliando o conceito para além dos bens imóveis, inserindo a partir de então osbens culturais, tais como saberes, fazeres e ofícios, além de objetos, artefatos eedifícios. Oriá (2001, p.133) também atenta para o patrimônio artístico, científicoe o ecológico, dentro das diversas dimensões que englobam o ser humano, por-tanto o patrimônio histórico ultrapassou a dimensão da “‘pedra e cal- constituídode bens imóveis, representados pelos edifícios e monumentos”, incluindo-se tam-bém “o patrimônio documental e arquivístico, bibliográfico, hemerográfico, oral,visual, museológico, enfim, o conjunto de bens que atestam a História de umadada sociedade” (ORIÁ, 2001, p.133). Deste modo, o Brasil alinhou-se a um mo-vimento que estava sendo pautado por discussões em outros países, chegando àUNESCO, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para Educação,Ciência e a Cultura. Tal como ocorreu com um patrimônio cultural, o folclore, noperíodo que sucedeu a Segunda Guerra Mundial.

Na década de 1950 houve uma ampla movimentação na área do folclo-re. De acordo com Cavalcanti (2007), com o fim da Segunda Guerra Mundial(1939-1945), a UNESCO (órgão da Organização das Nações Unidas para Educa-ção, Ciência e Cultura) indicou o folclore como agente de atuação em prol da pazmundial, devido a seu fator de compreensão entre os povos e suas diferenças. Apartir de então foi criada uma Comissão Nacional do Folclore no Ministério Exte-rior do Brasil. Este conjunto de iniciativas levou ao início do Movimento Folclórico.4 Por meio do artigo 216, Seção II, da Constituição Federal de 1988: Artigo 216- Constituem patrimôniocultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedadebrasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,ecológico e científico.

Page 113: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 113

Em 1951 foi publicada a Carta do Folclore e com ela a questão do Fato Folclóri-co, e em 1958, o movimento teve o seu apogeu com a Campanha de Defesa doFolclore Brasileiro (CDFB) do Ministério da Educação e Cultura, em prol do fol-clore e das artes populares. Para o Movimento, a industrialização e a moderniza-ção da sociedade eram uma ameaça para o folclore (CAVALCANTI, 2007).

O patrimônio na sala de aula e os sujeitos na história local

Para Fonseca (2005), a constituição de patrimônios nacionais é uma prá-tica característica dos estados modernos que por meio de determinados agentesdelimitam um conjunto de bens no espaço público e a eles é atribuído um valor. Porserem manifestações culturais e símbolos da nação, esses bens tornam-se mere-cedores de proteção, visando a sua transmissão para as gerações futuras.

A educação patrimonial é constituída por bens materiais e imateriais, edela faz parte um processo contínuo de trabalho educativo. Essa educação queobjetiva o trabalho com o patrimônio atende ao princípio da promoção da educa-ção intercultural e de diálogo entre a História e os demais componentes curricu-lares, como já fora mencionado acima. Isso faculta a valorização da nossa cultu-ra, baseada em uma formação dentro de uma diversidade étnica, a qual envolvea cultura afro-brasileira, indígena e europeia.

Na localidade esta identificação com o patrimônio se torna ainda maisnítida, posto que acende a questão do sentido, do porquê da preservação dedeterminado bem, da valorização de fazeres, saberes e ofícios relacionados aocotidiano e ao local de vivência de uma população, da qual os alunos são parte.Atividades que proporcionem o resgate da memória podem contribuir para estasensibilização quanto ao patrimônio como uma herança de todos que precisa serpreservada. Este exercício contribui com a formação para a cidadania. Ao seperceber como herdeiro deste patrimônio e responsável pela sua conservação oaluno poderá mudar a sua relação com este, e, por conseguinte, com a cidade, apartir do momento em que vê o bem público como algo que pertence a todos enão um espaço de ninguém. É uma mudança de pensamento cuja aplicaçãofavorecerá todo o espaço da localidade, pois a falta de cuidado com o que épúblico se dá por esta mentalidade ainda arraigada em muitas pessoas, as quaisjogam papel na rua, no entanto não o fazem nos corredores dos shoppings.

Podemos proporcionar atividades de resgate da memória com os alu-nos. Um exemplo bem conhecido, e difundido pelos professores nos anos iniciaisdo Ensino Fundamental, é a da história pessoal ou mesmo familiar. Este exercíciopode ser feito por meio de entrevistas com familiares, levantamento de documen-

Page 114: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

114 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

tos como certidões, fotografias, recortes de jornais e objetos pessoais. É um tipode atividade que, além do resgate desta história, proporciona o sentimento depertencer àquele núcleo, o convívio entre gerações diferentes e a conversa comescuta atenta da fala de familiares e parentes.

Outra opção é a confecção de árvores genealógicas. Para isso, é neces-sária uma preparação que envolve a arte de construir essas árvores. Podemos,junto com os alunos, buscar informações sobre o que é a genealogia, comoessas árvores são feitas, as pessoas que tem como ocupação a sua construção eaté o resgate e confecção de brasões de famílias (arte heráldica). Deste modo, osalunos passam a conhecer seu uso para escrita de biografias ou para pleiteardupla nacionalidade, usando a árvore para justificar a ascendência estrangeira.Também é importante que durante o trabalho de confecção das árvores, o profes-sor deixe bem claras as possibilidades de arranjos familiares, como a famíliauniparental, as constituídas por novos enlaces, avós ou tios que cuidam das crian-ças, as provenientes de duas pessoas de sexos diferentes ou de uniões homoafetivas, entre outras possibilidades.

Também podemos propor entrevistas com detentores de fazeres e ofíci-os que estão se perdendo, como o de calceteiro, ou visitas aos sítios relacionadoscom a História Local. A Rede de Cooperação Identidades Culturais5 e o InstitutoPaulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC) publicou, em 2013,o livro Paisagem Cultural do Café que traz quatro opções de circuitos culturais nacidade de Ribeirão Preto. Esta obra, sem fins lucrativos, traz um panorama dopatrimônio cultural na cidade e alguns breves históricos dos bens a serem visita-dos nos circuitos. Ela ainda é acompanhada por um mapa no qual é possívelvisualizar estes roteiros, além de um documentário sobre os mesmos. Os profes-sores de História e Geografia das escolas públicas do Município e suas bibliote-cas receberam um exemplar cada, seguido de uma qualificação e uma visitaguiada com os docentes.

Um roteiro deste tipo, em locais onde não há publicações como a citada,também pode ocorrer, por meio da confecção de circuitos próprios feitos comauxílio de pesquisas com os alunos. Deste modo, é incluir visitas de observaçãoà parte histórica da Localidade, a museus de arte e históricos na cidade. Osmuseus tem muito potencial educativo, desde que as saídas a campo sejamfeitas com um objetivo e uma preparação.5 Informações sobre o livro no blog da Rede de Cooperação Identidades Culturais (http://redeidentidadesculturais.blogspot.com.br) e no site do Instituto Paulista de Cidades Criativas e IdentidadesCulturais, no qual é possível fazer o download gratuito do livro e do documentário (http://www.ipccic.com.br/site2/projeto_003/index.htm).

Page 115: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 115

Pensar a história do hocal para o nacional é um exercício para reflexãoquanto à questão da Globalização, cujo um dos aspectos é uma homogeneiza-ção das pessoas, hábitos e costumes. Ao se diminuir a diversidade, busca-seigualar os desejos de consumo. Um adolescente brasileiro pode desejar o mes-mo modelo de telefone celular que um no Japão ou na Rússia. Os lançamentosglobais de aparelhos tecnológicos ilustram este momento. Portanto, ao se identi-ficar com aspectos ligados ao patrimônio na sua Localidade, este aluno cria umaidentidade cultural com o meio em que vive. Por isso, levar o aluno a conhecer opatrimônio cultural do seu Local de vivência é parte da formação de uma cidada-nia ativa, de pessoas críticas e participantes.

Conhecendo o seu patrimônio e reconhecendo a sua relevância, estecidadão, não só do futuro, mas do presente, entenderá as razões de preservaçãodesta herança deixada pelas gerações passadas. Só preserva quem conhece erespeita.Os objetivos de práticas como estas são fazer com que por meio de pesquisasprévias e visitas os alunos percebam a importância do patrimônio e a sua preser-vação, para que possam ver-se como seres humanos que fazem história e são aomesmo tempo herdeiros de um passado e criadores do futuro, o que representaassumir a responsabilidade por este. Assim como levar os alunos à construçãoativa de conhecimento crítico e de apropriação consciente e da consequentevalorização de desta herança cultural, possibilitando o fortalecimento da identida-de e da cidadania.Também é importante quanto à relação com os museus, o fato de aproximar osestudantes destes espaços históricos e artísticos, com o intuito de alterar umconceito, presente entre alguns deles, de que são “depósito de coisas velhas”desconectadas da sua realidade, ou e em relação aos museus de arte, um amon-toado de quadros, com o intuito de que estes sejam espaços de diálogo entre aHistória e a Arte e a vida do aluno.

Considerações Finais

Discutir a importância de o aluno conhecer o patrimônio cultural é umapremissa da qual a história escolar é parte, em especial, a identidade cultural dasua localidade. Ou seja, para o estudante que vive em Ribeirão Preto, por exem-plo, será mais interessante conhecer o boi-de-mamão do Paraná, ou o frevo deRecife e Olinda do que as companhias de folia de reis da sua cidade? Sendo quedestas um vizinho ou mesmo um parente deste estudante podem fazer parte.

Por isso defendemos a valorização do cotidiano e da localidade dentro

Page 116: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

116 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

do Ensino de História nas escolas, abrangendo o patrimônio cultural local. Ocotidiano pode ser definido como aquilo que acontece todos os dias. SegundoLastória e Mello (2008), o estudo do cotidiano nem sempre foi valorizado, masatualmente é visto como umas das categorias centrais, sendo este um cotidianono qual as transformações são possíveis, e não de alienação diária. Uma históriavivida por pessoas comuns, na qual o aluno pode se reconhecer como sujeito ecidadão. Em relação à localidade, este é o local de vivência do aluno, onde estãoas suas referências culturais, e a possibilidade de pensar e agir por uma cidadeque respeite o seu patrimônio e os seus cidadãos.

GODOY, Adriana Cristina de. Know and then valorising: the culture heritage as con-tent of teaching history. DIALOGUS, v.8, n.1 e n.2, 2012, Ribeirão Preto, pp.X-X.

ABSTRACT: In this paper we discuss the relevance of the study of cultural heritageinserted in place of the student experience, in history classes in elementary scho-ol. Our goal is to motivate the interest of this student in relation to cultural heritageand therefore the Local History. By knowing a history next to their daily lives, thisstudent may perceive themselves as historical agent and participant in the chan-ges, critical observer of permanence and understand the importance of preservingsymbols, activities and places to maintain a collective memory. The formation ofthe citizen, the prerogatives of the History School, passes by the appreciation of thecultural heritage.

KEYWORDS: Cultural Heritage, Teaching History, Local History.

REFERÊNCIASBLOCH, M. Apologia da História ou O ofício do historiador. Trad. AndréTelles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 159p.BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-sília, DF: Senado Federal, 1988. 47 p. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf. Acesso em:29Set.2013.BRASIL. Decreto-Lei N.25 de 30 de Novembro de 1937. Organiza a proteção dopatrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso em: 29Set.2013.

Page 117: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 117

CAVALCANTI, M.L. Entendendo o folclore. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/pdf/Maria_Laura/CNFCP_Entendendo_Folclore_Maria_Laura_Cavalcanti.pdf.Acesso em: 02/04/2013.FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1994/1995. 687p.FONSECA, M.C.L. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal depreservação no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC/IPHAN, 2005.296p.

GARCIA CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da mo-dernidade. Trad.: Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 4.ed. São Paulo-SP:EdUSP, 2006. 385p. (Ensaios Latino-americanos)

LASTÓRIA, A.C.; MELLO, R.C. Cotidiano e lugar: categorias teóricas da história eda geografia. Universitas (Fernandópolis), v.4, p.27-34, 2008.MARTINS, M.H.P. Preservando o patrimônio e construindo a identidade.São Paulo: Moderna, 2001. 46p. (Aprendendo a com-viver)ORIÁ, R. Memória e ensino de História. BITTENCOURT, C. (org.). O saber histó-rico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2001. p.128-148. (Repensando oensino).PORTAL IPHAN- Portal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do. Acesso em:29Set.2013.ROCHA, U. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. NIKITIUKI, S.(org.). Repensando o ensino de História. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1999. p.47-66 (Questões da nossa época, v.53).ROSA, L.R.O., SILVA, A.(org.). Paisagem cultural do café: Ribeirão Preto. Ribei-rão Preto-SP, Rede de Cooperação Identidades Culturais/IPCCIC, 2013. 184 p.SÃO PAULO. Lei 12.730 de 11 de outubro de 2007 Disponível em: http://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/130341/lei-12730-07. Acesso em: 28Set.2013.

Page 118: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

118 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 119: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 119

PATRIMÔNIO IMATERIAL E REFERÊNCIAS CULTURAIS EMRIBEIRÃO PRETO: HISTÓRIA, TEORIA E PRIMEIROS RESUL-

TADOS DE TRABALHO DE PESQUISA DE CAMPO.

Delson FERREIRA*

Aurélio Manoel Corrêa GUAZZELLI**

RESUMO: Este trabalho apresenta as reflexões e os resultados parciais de pes-quisa realizada pela Rede de Cooperação Identidades Culturais no município deRibeirão Preto. A Rede surgiu com a finalidade de inventariar as referências cultu-rais de Ribeirão Preto relativas à cultura do café, entre 1870 e 1950. Para a conse-cução do projeto foi adotada a metodologia empregada pelo IPHAN para o INRC– Inventário Nacional de Referências Culturais, que se define por ser um instrumen-to de conhecimento, cujo objetivo é identificar e documentar bens culturais dequalquer natureza, visando o reconhecimento daqueles que representam a diversi-dade e a pluralidade culturais. Além disso, essa metodologia permite que sejamapreendidos os sentidos e significados atribuídos a esses bens pelos moradores dalocalidade, agregando às políticas públicas a noção de referência cultural.

Palavras-chave: Referências culturais; Inventário; Ribeirão Preto.

O TEMA: SUA HISTÓRIA E PERTINÊNCIA.

Este trabalho apresenta as reflexões iniciais sobre os resultados de pes-quisa de levantamento do patrimônio imaterial de Ribeirão Preto e suas principaisreferências culturais, realizado entre 2010 e 2013 pelos pesquisadores do Grupo3 da Rede de Cooperação Identidades Culturais, do Projeto Café Com Açúcar.Seus principais objetivos são os seguintes: refletir, com aportes históricos e teóri-cos, a respeito dos conceitos de “patrimônio imaterial” e “referências culturais”;apresentar os percursos já traçados pela pesquisa etnográfica e o “estado daarte” do trabalho que este grupo de pesquisadores realizou e, por fim, apontar osresultados já obtidos.

As temáticas referentes ao patrimônio imaterial e à cultura popular têmsido alvo, em nossos dias, de intensos debates envolvendo áreas como a história,a sociologia, a antropologia, dentre outras no campo acadêmico, e setores gover-

* Centro Universitário UNISEB; e-mail: [email protected]**Universidade de São Paulo – USP; e-mail: [email protected]

Page 120: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

120 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

namentais responsáveis pelo trabalho com as políticas públicas culturais. Ao lon-go dessas discussões, nenhum conceito desenvolvido foi considerado único edefinitivo, fato que abre um espaço social relevante para novas reflexões, tanto porparte dos pesquisadores, quanto da classe política que trabalha com essas ques-tões no âmbito das políticas públicas de Estado.

O receio da perda do pertencimento faz com que o indivíduo eleja pontesde contato com o seu passado. A contemporaneidade marca a escolha dos teste-munhos diversos e utiliza, para isso, não somente parâmetros estéticos, mas fun-damentalmente os significados simbólicos e identitários. Dessa forma, os bensculturais passaram a representar o lastro no qual cada comunidade se reconhe-ce, servindo de paradigma básico para o fomento à cidadania do reconhecimen-to, por meio de um profundo senso de pertencimento e de permanência histórica.

Cultura popular, patrimônio imaterial e direito à memória constituem,portanto, parte de um processo abrangente de conquista efetiva de uma novacidadania local e planetária no qual estamos inseridos, que é candente nas últi-mas décadas e se relaciona diretamente com o avanço dos direitos humanosfundamentais das gentes, no sentido civil, social e político, para campos como odireito a um ambiente saudável e a preservação e proteção cultural, dentre outros.

A HISTÓRIA DA IDEIA DE PATRIMÔNIO

Um breve histórico sobre a evolução do conceito de patrimônio nos levaà França do século XVIII. Lá, o conceito estava ligado à concepção de monumen-to, em especial às ruínas das culturas clássicas, aos castelos e às igrejas medie-vais. Para Choay (2001), este momento, por excelência, representou o exercícioda memória dos dominantes.

Produzido histórica e socialmente, o conceito de patrimônio cultural vi-gente no decorrer dos séculos XIX e XX foi influenciado pela percepção que cadasociedade tinha das suas próprias experiências, guardando em si várias camadasde significados. Ao longo destes séculos, esse conceito teve seu sentido ampliado,agregando outras representações da cultura material. Nesse período, a preserva-ção traduziu-se na busca de passado comum, capaz de gerar laços identitários noseio dos Estados nacionais em fase de consolidação. A construção e a fundamen-tação das identidades nacionais passavam pela constituição de coleções que setornariam o patrimônio nacional de cada nação. Para Le Goff (1994), este tratamen-to dado ao patrimônio continuava sendo perigoso na medida em que a elite determi-nava, por meio do discurso do conhecimento e da técnica, o que deveria ser tomba-do e incensado pelo exercício de preservação da memória oficial.

Page 121: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 121

Já na segunda metade do século XX, sobrevivente à destruição físicacausada por duas grandes guerras mundiais, a percepção sobre o patrimônioampliou-se ainda mais e de modo consistente, em sua formulação. A Carta deNova Delhi, publicada em dezembro de 1956, já evidenciava que a “garantia maiseficaz de conservação dos monumentos e obras do passado reside no respeito ededicação que lhes consagram os próprios povos” (UNESCO, 1956, p. 1). Odocumento destacou o papel dos Estados na criação e implantação de açõesque favorecessem os sentimentos de pertencimento.

Reconhecendo a complexidade da problemática em torno da preserva-ção do patrimônio cultural, a Carta de Veneza (1964) reavaliou e aprofundou aCarta de Athenas, de 1932. Os monumentos foram reconhecidos como portado-res “de mensagem espiritual do passado [...]”, perdurando no “presente como otestemunho vivo” das tradições seculares (ICOMOS, 1964, p. 1).

O papel do Estado na preservação do patrimônio cultural tornou-se, nosanos posteriores, pauta das discussões internacionais. Em 1967, a Organizaçãodos Estados Americanos, O.E.A., publicou as chamadas Normas de Quito (O.E.A.,1967). No documento, explicitavam-se os efeitos do crescimento sem planeja-mento dos países pobres e em desenvolvimento, no processo de degradação ede abandono dos bens protegidos por lei.

Em junho de 1997, a Carta de Mar Del Plata estabeleceu os princípios eas recomendações sobre o patrimônio intangível para os países do Mercosul.Considerando esta questão uma prioridade absoluta, estavam “convencidos de queo processo de integração concretizado através do Mercosul, que expressa as legí-timas aspirações de nossos povos a uma vida melhor, deve-se sustentar-se sobre adiversidade dos sistemas e subsistemas culturais” (MERCOSUL, 1997, p. 1).

Apenas no início do século XXI, os órgãos oficiais internacionais e brasi-leiros reconheceram que, dentro do que denominavam patrimônio cultural, exis-tia a dimensão do imaterial, superando a antiga “dicotomia entre os bens depedra e cal” e as demais manifestações culturais inseridas na dinâmica da vidacotidiana (INRC, 2000, p. 7).

A relação intrínseca entre a cultura material e imaterial foi destacada porChoay (2001), que defendeu a impossibilidade de compreensão de um monu-mento sem entender a cultura que o produziu. Nesse ponto, reside o patrimônioimaterial, que é vivo, possui movimento e, portanto, é simultaneamente uma forçasimbólica e política que o faz relevante em qualquer discussão ou debate que setrave sobre a questão cultural nos nossos dias.

Para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, opatrimônio imaterial envolve os saberes e as técnicas passadas através de gera-

Page 122: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

122 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ções, as festas, as celebrações, a gastronomia, entre outros (IPHAN, 2000). Estasmanifestações culturais perpassam por um refazer constante, cuja identificaçãoe valorização dependem da memória e do olhar para as minorias que, por déca-das, foram marginalizadas. Partindo do referencial proposto por Burke (2010),pode-se afirmar que os nossos bens intangíveis são intimamente relacionados àsexpressões da cultura popular brasileira, que teria herdado da colonização portu-guesa as memórias do período da Guerra de Reconquista da Península Ibéricareelaborando e traduzindo-as, por exemplo, nas Cavalhadas encontradas atual-mente no interior do Brasil. Como manter vivas essas experiências que, no séculoXXI, tornaram-se únicas? Este é o propósito precípuo das políticas públicas depreservação cultural.

Em 17 de outubro de 2003, por meio da Recomendação de Paris, aUNESCO reconheceu o patrimônio imaterial como aquele que:

[...] se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comuni-dades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e desua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindoassim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana(UNESCO, 2003, p. 4).

O PATRIMÔNIO NO BRASIL

Em países como o nosso, compreender o entrelaçamento entre cultura,patrimônio imaterial e memória é perceber a nossa longa luta pela efetivação deuma cidadania que é parte dos discursos teóricos e acadêmicos e utopia dosengajados nas causas da transformação social. Continuamos em processo deaprendizado civil e, mais do que respostas definitivas, muitas são as questõeslançadas à discussão.

Fonseca (1996) sustenta, referindo-se ao Brasil, que após a fase do antigoSPHAN e atual IPHAN, vindo da década de 1930 e com preocupação centrada nobarroco, até a década de 1970 com concepções pautadas pelo governo militar, épossível observar um movimento de renascimento da questão cultural impulsiona-do pela promulgação da Constituição de 1988, uma vez que ela expressa a percep-ção de que não apenas o Estado, mas também a população é parte interessada eresponsável pela manutenção patrimonial, seja ela material ou imaterial. Assim, otexto constitucional ampliou o conceito de patrimônio cultural, agregando a ele umavisão democrática ligada diretamente à sociedade civil. Mas, o grande e importanteavanço consistiu na incorporação técnica de uma abordagem antropológica dacultura, que colocou em pauta o conceito de referência cultural (INRC, 2000).

Page 123: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 123

Como resultado concreto desse processo, foi baixado o Decreto nº 3.551,de 04 de agosto de 2000, que instituiu o registro de bens de natureza imaterialcomo parte do patrimônio cultural brasileiro. Esse amplo movimento abriu espa-ço para a criação de Conselhos Municipais de Cultura e de Patrimônio, o quepermitiu que a discussão saísse do patamar federal e chegasse ao cotidiano davida dos municípios, aos âmbitos culturais locais.

O PATRIMÔNIO EM RIBEIRÃO PRETO

A preocupação com a preservação do patrimônio iniciou-se, nessa cida-de, ainda no período da ditadura militar. Em 1967, por meio da Lei nº 2002, foicriado o Conselho de Cultura. Entre as suas responsabilidades, ele possuía amissão de “contribuir para a elevação do patrimônio e a mobilização constantedas potencialidades culturais da cidade” (SANTO; REGISTRO, 2002, online).Quatro anos depois, em 1971, foi criado o Conselho de Defesa do PatrimônioHistórico e Cultural do Município. Nesse período, a noção do papel do poderpúblico municipal ainda era muito vaga, restringindo-se à:

adoção de todas as medidas para a defesa dos bens e locais de valor histórico ecultural, cuja conservação se importa em razão de fatos históricos memoráveis, deseu valor folclórico, artístico, documental bem como dos recantos paisagísticos quemerecem ser preservados (SANTO; REGISTRO, 2002, online).

O primeiro bem do município a ser reconhecido pelo poder público foi oTheatro Pedro II. Em 08 de junho de 1973, a edificação foi declarada de valorhistórico pela Lei nº 2.764. Esse teatro foi construído pela Cervejaria Paulista einaugurado em 1930 e, junto a outras duas edificações, o atual Centro CulturalPalace e o prédio comercial Meira Júnior, forma o chamado Quarteirão Paulista,um conjunto de edifícios monumentais na praça central da cidade, cujo projetoarquitetônico é de Hyppolito Gustavo Pujol (SUNEGA, 2011). As característicasarquitetônicas deste teatro, que lhe concederam o adjetivo de “monumental”,pareciam, naquele momento, ser as únicas justificativas para a sua preservação.

Em 15 de julho de 1980, o Theatro Pedro II foi parcialmente destruído porum incêndio de grandes proporções. O episódio passou para a memória da co-munidade como um trauma coletivo. Não só pela destruição provocada pelo fogo,mas, em particular, pela iminência da perda definitiva do bem, ameaçado dedemolição pelo próprio poder público que, sete anos antes, o havia chanceladocomo patrimônio histórico do município. Era um momento de incertezas e deinsegurança; na ausência de políticas públicas de Estado efetivas na ação depreservação patrimonial, o poder público ensaiava os gestos de proteção e fazia

Page 124: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

124 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

vistas grossas à destruição em tempo simultâneo.Essa experiência gerou a certeza de que não se perderia apenas um

exemplar de excepcional valor arquitetônico e estético do ponto de vista material,mas sim, e principalmente, uma referência cultural de grande importância sim-bólica e imaterial. Os ribeirão-pretanos ainda se lembram, nos dias de hoje, con-forme depoimentos obtidos em nossa pesquisa de campo, da tristeza sentida aover o Pedro II pegar fogo.

A possibilidade de ver mais um fio da teia de ligação com o seu passadocomum ser cortado despertou a sociedade civil e gerou ampla reação de gruposorganizados ligados às artes e diversas expressões culturais, que articularamforte mobilização social nas ruas pela recuperação e preservação do teatro “mo-numental” da Praça XV.

Observa-se, a partir de então, o início efetivo de um movimento de buscapor parte da sociedade local da sua memória coletiva. Um percurso errante eenredado no difícil aprendizado do que significava ser parte e partícipe de umalocalidade. Cristiane Framartino Bezerra, integrante dessas mobilizações, diz que:

aos domingos, eram organizados eventos na esplanada do Pedro II pela maioriados artistas da época, como Osvani Andrade, Dino Bernardes Jr, José MauricioCagno, Magno Bucci, Fernando Cachaça, Fe Souza, Débora D’uboc Garcia, sereuniam com megafone, em frente ao teatro, com gritos de protesto alternados companelaço, foi um movimento cultural muito grande. Toda essa movimentação rece-beu o apoio da Câmara de Vereadores, que formou uma comissão de estudos dePró-restauração do Pedro II, e convidou os artistas para aderirem ao movimento.Com o tempo, foram se agregando forças, como o apoio da Fundação RobertoMarinho, Governo Federal e Estadual, grupos de várias vertentes sociais, empre-sários e a sociedade civil (REDE, 2011, Ficha Q30, INRC).

Decorrente do incêndio, o processo de tombamento do Pedro II efetivou-se pelo Condephaat, em 1982, transformando-se no primeiro patrimônio tomba-do pelo governo do Estado de São Paulo na cidade. O seguinte excerto de texto,disponível no sítio eletrônico do Theatro Pedro II, revela com clareza o resultadoda mobilização social da comunidade em favor dessa casa de espetáculos:

Em maio de 1991 teve início a primeira etapa de restauração e modernização doteatro. Em janeiro de 1993 começou a segunda etapa. Um concerto de músicaerudita em abril de 1994 arrecadou US$ 10 mil para a recuperação. Em 1996, oTheatro Pedro II foi reinaugurado.

Segundo o engenheiro José Arthur Damião Joaquinta, responsável pelacondução do processo de reforma, restauração e modernização do teatro, que

Page 125: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 125

hoje trabalha como diretor financeiro da Fundação Pedro II, o início das obras:começou a dar vida novamente ao Theatro; como uma Fênix que renasce dascinzas, o teatro estava praticamente às cinzas, o prédio estava em processo paratentar demolir, enfim, estava relegado ao último pano, fechado, parado, um patrimônio,um bem cultural enorme, então esse fato, esse acontecimento é de muita relevância,porque o Teatro depois de inaugurado teve seu apogeu como teatro, seus dias deglória, ele teve sua decadência e virou cinema, depois de virar cinema ele pegafogo, então eu acho que o fogo, o incêndio foi um divisor de águas, marcou umadécada, ele marcou uma época que o Theatro já estava decadente, para voltar osseus dias de gloria [...] para voltar a reviver como teatro, então o incêndio foi um fatomarcante (REDE, 2011, Ficha Q50, INRC).

A perda material que representou a destruição do Pedro II possibilitou aabertura do olhar coletivo para o imaterial, o despertar do seu significado afetivo.O Estado que, outrora, abandonou o Pedro II em função da omissão da popula-ção, transformou-se no Estado que, graças ao avanço da cidadania e da deman-da dessa mesma população, propõe-se, nos dias de hoje, a estudar, por meio deuma Rede de Cooperação acadêmica, o patrimônio imaterial da cidade.

Este movimento que se observou em Ribeirão Preto possui, de fato, inten-sa ligação com um processo mais amplo que vinha ocorrendo nos planos Esta-dual e Federal brasileiro. O IPHAN, por exemplo, além do tradicional trabalho doPró-Memória, fez importantes parcerias internacionais com a UNESCO, por inter-médio do Monumenta, e com prefeituras, a fim de resgatar os patrimônios locais,como no caso de Ribeirão Preto no projeto denominado Identidades Culturais.

O amadurecimento processual e cidadão do olhar brasileiro sobre aquestão patrimonial permitiu que se criasse, no início do século XXI, um CentroNacional de Referência Cultural acompanhado do Programa Nacional de Salva-guarda do Patrimônio Imaterial. Ele prevê, entre outros aspectos, que a indicaçãode um patrimônio imaterial a ser registrado possa ser realizada por cidadãoscomuns. Após a indicação, um grupo de técnicos dá prosseguimento realizandoum inventário e o posterior registro formal em livros específicos de “Celebrações,Ofícios e Modos de Fazer, Formas de Expressão e Lugares”.

Destaca-se que o Plano de Salvaguarda compreende que não bastadecretar que o patrimônio imaterial está registrado. Há que se frisar a importânciade um suporte econômico que desenvolva a sustentabilidade e garanta a aplica-ção de um plano de continuidade daquele bem cultural. Um bom exemplo deação pelo Patrimônio Imaterial é a capoeira: além da ação legal de salvaguarda,foram criados um Centro Nacional de Capoeira, a fim de ensinar a arte para asgerações futuras; um plano de aposentadoria específico para os velhos mestres;

Page 126: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

126 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

um plano de manejo sustentável da madeira que dá origem ao berimbau; e umprojeto bem fundamentado de divulgação internacional da arte.

Nessa lógica conceitual, insere-se o Inventário Nacional de ReferênciasCulturais – INRC, instrumento de identificação e documentação de bens culturaisde natureza material e imaterial, elaborado pelo IPHAN (INRC, 2000). A aplicação dametodologia de pesquisa do INRC permite, por meio de pesquisa, estudo e registrocatalogado, a incorporação de informações “sistematizadas, produzidas em cadaexperiência de implantação” do inventário pelo IPHAN (INRC, 2000, p. 9).

O PROJETO REDE DE COOPERAÇÃO IDENTIDADES CULTURAIS

A experiência do IPHAN em Ribeirão Preto iniciou-se em novembro de2009. Para a execução do INRC no município, foi criada a Rede de CooperaçãoIdentidades Culturais. Em sua essência, essa Rede tem natureza interdisciplinare interinstitucional e caracteriza-se como um colegiado de pesquisadores, oriun-dos de instituições de Ensino Superior, técnicos do poder público municipal (Pre-feitura Municipal de Ribeirão Preto) e federal (IPHAN) e de outras instituições eórgãos afins.

O trabalho dos pesquisadores é pautado pela Metodologia do INRC eadota como conceito teórico norteador a noção de “referência cultural”. ParaCecília Londres, que escreveu o texto de apresentação do Manual de Aplicaçãodo INRC:

quando se fala em ‘referências culturais’, se pressupõem sujeitos para os quaisessas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva veiodeslocar o foco dos bens – que em geral se impõem por sua monumentalidade, porsua riqueza, por seu “peso” material e simbólico – para a dinâmica de atribuição desentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por simesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitosparticulares e em função de determinados critérios e interesses historicamente con-dicionados (LONDRES, In: INRC, 2000, p. 11-12).

Com base nesse referencial, o INRC tem como objetivo a identificação ea documentação das referências culturais dos ribeirão-pretanos. Busca-se, comprioridade, a compreensão dos sentidos e os significados atribuídos aos bensculturais pelos moradores da localidade.

O inventário tem como recorte territorial o município de Ribeirão Preto eo distrito de Bonfim Paulista. O recorte temático e temporal da pesquisa segue,por sua vez, a fase áurea da cafeicultura na região, entre 1870 e 1950. Em outraspalavras e em termos práticos, a Rede de pesquisadores propõe-se a identificar

Page 127: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 127

as referências que se relacionam direta ou indiretamente com as práticas cultu-rais e socioeconômicas nesse período do café no nordeste do Estado de SãoPaulo. A metodologia do IPHAN empregada envolve três fases: o levantamentopreliminar, a identificação e a documentação das referências (INRC, 2000).

O levantamento preliminar foi realizado a partir de pesquisas em fontesprimárias e secundárias disponíveis em arquivos públicos e pessoais, além deentrevistas que visaram relacionar os bens culturais inventariados na etapa se-guinte. A segunda fase do trabalho foi a de identificação. Seu objetivo constituiu-seem reunir informações, descrever com detalhes as ocorrências relevantes e ma-pear as relações entre a população e os bens já identificados. Esta etapa foidesenvolvida principalmente por meio de entrevistas etnográficas com pessoasenvolvidas direta ou indiretamente com os bens. Por último, a etapa de documen-tação das referências promove uma série de estudos técnicos de consolidaçãoda pesquisa, implicando na criação e autoria individual do pesquisador ou artista,vindo, obrigatoriamente da observação direta dos bens inventariados (IPHAN, 2000).

O corpus metodológico do INRC divide as referências culturais em cincocategorias: celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer, edifica-ções e lugares. A partir dele, com vistas à organização técnica dos trabalhos decampo e de gabinete, os pesquisadores dividiram-se nos seguintes grupos, man-tendo em todo o processo o caráter interdisciplinar: Grupo 1, responsável pelagestão e coordenação do projeto; Grupo 2, dedicado às pesquisas dos marcos epatrimônios edificados; Grupo 3: focado na identificação das demais categorias(celebrações, formas de expressão, modos de fazer e lugares); e Grupo 4, res-ponsável pela descrição e caracterização da paisagem natural do município.

PESQUISA ETNOGRÁFICA, “ESTADO DA ARTE” DO TRABALHO E RESUL-TADOS OBTIDOS

O primeiro conjunto de resultados do trabalho de pesquisa do Grupo 3,apresentado no final de 2011, pode ser definido pelos seguintes parâmetros: inici-almente, os pesquisadores deste Grupo listaram, com base em uma pesquisapreliminar realizada em 20091, os possíveis informantes dentro de cada uma dasquatro categorias no que se considerou o conjunto de referências culturais domunicípio, como se observa no gráfico a seguir:1 Essa pesquisa, conduzida pelos pesquisadores Delson Ferreira e Daniela Tincani, e apresentada emPainel no VII ENECULT do ano de 2011, na UFBa, Salvador, levantou dados preliminares em camposobre as percepções e entendimentos da população do município sobre a identidade cultural de RibeirãoPreto (REDE, 2010, p. 13).

Page 128: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

128 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Fonte: G3 – Rede de Cooperação Identidades Culturais

A partir dos dados preliminares que listaram as referências culturais postasacima, o grupo saiu a campo com a finalidade de realizar as primeiras pesquisaspiloto no formato de entrevistas. Para tanto, o grupo dividiu-se em dois subgrupos quese responsabilizaram pela aplicação dos instrumentos de pesquisa e realizando, aomesmo tempo, o registro em áudio e vídeo de cada uma dessas entrevistas. Taistestes serviram para aferir a aplicabilidade da metodologia do INRC para a situaçãoreal das referências culturais a serem inventariadas em Ribeirão Preto.

Uma vez realizada essa primeira experimentação, o grupo voltou-se para adiscussão e avaliação interna das pesquisas piloto, que redefiniram, por pertinência,sentido, presença ou não dentro do recorte temporal da pesquisa e aprofundamentoda fundamentação teórica, os bens a serem inventariados e a quais categorias perten-ceriam. Redefinidos e incluídos novos bens a serem inventariados, o grupo saiu nova-mente a campo, dessa vez com o propósito de efetivar um levantamento que permitis-se identificar e reconhecer a existência efetiva das referências culturais delimitadasinicialmente pela pesquisa preliminar da Rede de Cooperação.

Este processo, que ocupou o período de trabalho de março a outubro de2011 e chegou a julho de 2012, levou à realização de um conjunto de noventa eseis entrevistas etnográficas, cujos resultados estão documentados em fichas-padrão para cada categoria do INRC e em registros de áudio e vídeo que contem-plam cada bem em sua respectiva categorização e em consonância metodológi-ca com o que é previsto pela metodologia do INRC/IPHAN, concluindo, destaforma, o cronograma de pesquisa que foi proposto pela Rede de Cooperaçãopara ano de 2011/12. O quadro a seguir demonstra o resultado deste percurso detrabalho:

Page 129: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 129

Fonte: G3 – Rede de Cooperação Identidades Culturais

Denominação da Referência Cultural CategoriaAcademia Ribeirão-Pretana de Letras LugarAlfaiate Ofício/modo de fazerAssociação de Socorros Mútuos LugarBosque Municipal LugarCafé de Coador Ofício/modo de fazerCafeteria A Única LugarCalceteiro (assentador de paralelepípedo nas ruas) Ofício/modo de fazerCapoeira Forma de expressãoCarnaval CelebraçãoCatira Formas de expressãoCemitério da Saudade / Marmorista Lugar - Ofício/modo defazerChopeiro Ofício/modo de fazerChoperia Pinguim LugarCírculo Operário LugarClube Esportivo Botafogo LugarClube Esportivo Comercial LugarClube José do Patrocínio LugarCruz do Pedro / Festa da Cruz do Pedro Lugar - CelebraçãoEscola de Samba os Bambas LugarFesta do Café CelebraçãoFundação Educandário “Coronel Quito Junqueira” LugarGarçom (Choperia Pinguim) Ofício/modo de fazerIgreja Nossa Senhora do Bonfim LugarLoja Maçônica Estrella D’Oeste LugarMercado Municipal LugarMestre Cervejeiro Ofício/modo de fazerPastelaria Rios Ofício/modo de fazerPraças (XV, Sete de Setembro, Luis de Camões,Carlos Gomes e Bandeira) LugaresReligiosidade negra (candomblé, umbanda) CelebraçãoSete Capelas LugarSirene/Sereia (Cervejaria Paulista) Forma de expressãoSociedade União dos Viajantes LugarUnião Espírita Kardecista LugarUnião Geral dos Trabalhadores - UGT Lugar

Page 130: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

130 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

O trabalho sistemático com objetos culturais intangíveis e intimamentevinculados aos parâmetros colocados pela etnografia das referências existentesna memória coletiva local, e os seus sentidos e valores sempre atribuídos, envol-veu todos os pesquisadores do Grupo de forma direta, como diz Magnani (2002 e2003), no ato etnográfico de “escutar o outro de perto e de dentro”, ato este quepressupõe, da partida para a coleta de depoimentos ao final do trabalho crítico ereflexivo de transcrição para as fichas do INRC, o respeito ético inteiro do pesqui-sador pelo campo de pesquisa e para com os depoentes que dele fazem parte.

Por isso, como se vê no quadro “Denominação da referência cultural”,dadas às peculiaridades de expressão de diversidade e alteridade contidas nasestruturas intrínsecas de cada uma dessas referências culturais, é fundamentalque se construa mais conhecimento antropológico fundamentado das várias fa-cetas culturais intangíveis que são internas a elas, a fim de que não sejam perdi-das enquanto tal ou, o que seria lamentável, venham a ser transformadas, pormeio de processos de ressignificação, em meras caricaturas acadêmicas e cul-turais que estariam a compor necessidades políticas setoriais nas chamadascomemorações e cerimônias oficiais.

A experiência de campo vivida pelos pesquisadores e a percepção obje-tiva das implicações sociais, culturais e políticas que este trabalho tem para acomunidade local, preparou e qualificou o Grupo para a etapa seguinte previstapela metodologia do IPHAN acima citada, qual fosse a de documentar e promoverestudos técnicos que implicam “na criação e autoria individual do pesquisador ouartista, vindo, obrigatoriamente da observação direta dos bens inventariados”(IPHAN, 2000).

O segundo semestre de 2012 foi concluído com o trabalho documental doInventário do centro da cidade e de Bomfim Paulista, que resultou na publicação doRelatório III para discussão pública em dezembro deste ano. Em trabalho paralelo,os pesquisadores Aurélio Guazelli, Delson Ferreira, Marcos Câmara de Castro eSandra Rita Molina, fundamentados em pesquisa histórica e nas entrevistas etno-gráficas realizadas sobre o “lugar” Cruz do Pedro, escreveram e publicaram o livro“O menino que virou festa: a Cruz do Pedro em Ribeirão Preto”, no qual afirmam quea celebração “Festa da Cruz do Pedro” e o lugar do complexo onde está a Capeladessa celebração podem ser considerados como referência cultural e devem serreconhecidos como patrimônio imaterial da cidade de Ribeirão Preto.

Ainda em 2012, decorrente do trabalho interdisciplinar dos Grupos dePesquisa da Rede, os pesquisadores deste Grupo 3 colaboraram da elaboração,edição e publicação do livro “Patrimônio Cultural do Café da Terra Vermelha”, noqual são apontadas e analisadas (p.20) as relações existentes “entre a história de

Page 131: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 131

Ribeirão Preto, o café e os bens culturais resultantes” dessas relações.No início do ano de 2013, a Rede definiu-se, por consenso entre os seus

Grupos de Pesquisa, pela continuidade dos trabalhos de documentação das refe-rências da terceira etapa, trabalho este que continua nesse segundo semestre, edecidiu dedicar-se, em tempo simultâneo, a um trabalho de pesquisa sobre a“Paisagem Cultural do Café” de Ribeirão Preto, a partir do conceito de “PaisagemCultural” definido pelo IPHAN. A meta de resultado projetada para esse trabalhoconsistiu na organização de um livro, que garantisse a difusão e a socialização doconhecimento construído pelos seus integrantes nos anos anteriores. Juntamen-te com o livro, “Paisagem Cultural do Café - Ribeirão Preto”, publicado e lançadoem agosto deste ano, foi produzido um mapa com uma série de roteiros culturaise turísticos da cidade e um documentário sobre essa “Paisagem Cultural” pauta-dos nos resultados das pesquisas já realizadas por todos os Grupos de Trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos, sob este relato, uma breve visão técnica dos resultados obtidosno trabalho realizado pelo Grupo 3 da Rede de Cooperação Identidades Culturaisnos últimos anos, trabalho este inserido por completo no conjunto maior da pro-dução da Rede. Estes pesquisadores sentem, entretanto, necessidade de levar asua discussão para o âmbito macro das relações políticas e culturais para enca-minhá-lo, como instrumento reflexivo proposto, para além das meras fronteiras dareflexão, ação e intervenção na realidade local da cidade que estudam.

No final do livro, “O menino que virou festa: a Cruz do Pedro em RibeirãoPreto” (p. 68-69), tecemos as considerações que, entendemos, são pertinentes aessa proposta: vivemos tempos de globalização radical de relações sociais ecrises sistêmicas, de Estado mínimo neoliberal ratificado em todos os cantos domundo e de uma pasteurização cultural global sem precedentes. Neste tempo,um movimento consistente de resgate, registro e valorização das expressões cul-turais locais, muitas vezes colocadas em condições marginais, mostra a suaimportância efetiva para a garantia e vivência do direito humano básico à experi-ência coletiva da memória e da real e livre convivência com a alteridade. É nessequando conjuntural amplo que o direito à memória do pertencimento, praticadopor meio da pesquisa, do registro e da sobrevivência preservada do patrimônioimaterial, é fundamental, uma vez que ele refere-se à identidade construída pelaprópria sociedade e não recebida por graça do discurso cultural hegemônico.Sendo assim, o patrimônio, a referência cultural, deixa de ser “ofertado” comoconcessão e passa a ser reivindicado, o que, em si, constitui um exercício político

Page 132: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

132 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

de emancipação e cidadania vividos. Este é o sentido e a finalidade primeira eúltima do trabalho que este Grupo de pesquisadores realiza.

FERREIRA, Delson; GUAZZELLI, Aurélio Manoel Corrêa. Intangible Heritage andCultural References in Ribeirão Preto: history, theory and first results of researchwork in the field. DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

Abstract: The aim of this paper is the presentation of reflections on the partialresults of research undertaken in the municipality of Ribeirão Preto, through theCultural Identities Cooperation Network. The network was formalized with the sig-ning of a technical cooperation agreement which purpose is to identify the culturalreferences of Ribeirão Preto related to the coffee culture between 1870 and 1950.For the project attainment, the methodology used for the INRC IPHAN - NationalInventory of Cultural references was adopted. This is defined as an instrument ofknowledge, which goal is to identify and document cultural goods of any nature,aimed at recognizing those who represent the cultural diversity and plurality. Inaddition, the methodology allows the seizure of the senses and meanings assig-ned to such property by local residents, adding to public policy the notion of culturalreference.

Keywords: Cultural references, Inventory, Ribeirão Preto.

REFERÊNCIASALMANACH ILLUSTRADO DE RIBEIRÃO PRETO – Estatístico, Histórico, Indus-trial, Commercial, Agrícola, Literário, Informações e Variedades. Ribeirão Preto:Sá, Manaia & Cia., 1913.ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO DE RIBEIRÃO PRETO. Documentos doFundo de Intendência. Fundo PMRP, Biblioteca de Apoio.ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO DE RIBEIRÃO PRETO. Histórico de Bon-fim Paulista, 2008.BORGES, Maria Elizia. A pintura na Capital do Café: sua História e a Evoluçãono Período da Primeira República. São Paulo: UNESP – Franca, 1999.______. Arte Tumular. São Paulo: ECA-USP, 1991 – tese de doutorado.BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradu-ção de Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Page 133: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 133

CAPRI, Roberto. O Estado de São Paulo e seus Municípios. São Paulo: TypPocai & Weiss, 1913. 352 p.CIONE, Rubem. História de Ribeirão Preto. Vol. I, II, III, IV,V. Ribeirão Preto: LegisSumma, 1997. 1030 p.CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.COSTA, Osmani Emboaba da. História da Fundação de Ribeirão Preto. SãoPaulo, 1955.CUNHA, Marcus Vinícius da. O velho Estadão. Ribeirão Preto: Palavra Mágica, 2000.DOIN, José Everaldo. A Belle Époque caipira - problematizações e oportunida-des interpretativas da modernidade e urbanização no Mundo do Café (1852-1930): a resposta do Cemumc. Revista brasileira de História, São Paulo, v. 27, n. 53,jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.phpscriptsci_arttextpidS0102-01882007000100005>. Acesso em: 09 outubro 2010.EMBOABA, Osmani. História da Fundação de Ribeirão Preto. Coleção daRevista de História 1955", São Paulo.FARIA, Rodrigo Santos de. Ribeirão Preto, uma cidade em construção (1895-1930) – o moderno discurso da higiene, beleza e disciplina. Dissertação (mestra-do). Campinas: Unicamp/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2003.FERNANDES, Thathy Mariana. Atividades musicais urbanas em RibeirãoPreto nas primeiras décadas do século XX. Mestrado. UNESP – Franca, 2008FERRAZ JÚNIOR, José Pedrosa. A criação da Orquestra Sinfônica na Ribei-rão Preto dos anos de 1930. 2006. 50 f. Trabalho de Conclusão do Curso (Espe-cialização em História, cultura e sociedade). Centro Universitário Barão de Mauá,Ribeirão Preto, 2006.FONSECA, Maria Cecília Londres. Da modernização à participação: a políticafederal de preservação nos anos 70 e 80. Revista do Patrimônio Histórico e Artís-tico Nacional, Rio de Janeiro: Iphan, nº. 24, p. 153-165, 1996.______. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preserva-ção no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/ Minc-IPHAN, 1997.GAETANI, Marcelo. Arquitetura Residencial no Centro da Cidade de Ribei-rão Preto no Período 1915 a 1945. Dissertação de Mestrado – UniversidadePresbiteriana Mackenzie – São Paulo – 1999.

Page 134: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

134 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Guazelli, Aurélio C. ; FERREIRA, D. ; Castro, Marcos Câmara de ; Molina, SandraRita . O menino que virou festa: a Cruz do Pedro em Ribeirão Preto. 1. ed.Ribeirão Preto: Fundação Instituto do Livro, 2012. v. 1. 100 p.GOMES, F. Cravinhos Histórico, Geographico, Commercial, Agrícola. Ri-beirão Preto: Typographia Selles, 1922.GRELLET, Ivone (Textos); NEVES, Antonio Walter Alves e BONFIM, Welfredo Felix(Consultores Históricos). Bonfim Paulista: Edição Histórica. Bonfim Paulista, 1999.GUMIERO, Elaine Aparecida. Ribeirão Preto e o desenvolvimento do seucomércio: 1890 – 1937. 2000. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdadede História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mes-quita Filho, Franca, 2000.IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais: INRC - Manual de Apli-cação. Apresentação de Célia Maria Corsino. Introdução de Antônio Augusto Aran-tes Neto. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000.ICOMOS. Carta internacional sobre conservação e restauração de monu-mentos e sítios. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monu-mentos Históricos. Veneza, maio de 1964.LAGES, José Antonio Corrêa. Ribeirão Preto: da Figueira à Barra do Retiro – opovoamento da região pelos entrantes mineiros na primeira metade do séculoXIX. Ribeirão Preto: VGA Editora e Gráfica, 1996.LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, 4° Ed. Cam-pinas: UNICAMP, 1996.MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etno-grafia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, ANPOCS/Edusc,2002, vol. 17, nº 49, p. 11-29.______. A antropologia urbana e os desafios da metrópole. São Paulo, Tem-po Social – USP, abril de 2003, p. 81-95.MERCOSUL. Carta de Mar Del Plata sobre Patrimônio Intangível. Junho de1997. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=269>.Acesso em: 20 nov. 2011.MOLINARI, Gustavo Augusto. Belmácio Pousa Godinho: vida e obra do compo-sitor paulista: Dissertação - Escola de Comunicações e Artes da Universidade deSão Paulo: Programa de Pós-graduação em Música. São Paulo: USP, 2007.

Page 135: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 135

O.E.A. – Organização dos Estados Americanos. Reunião sobre conservação eutilização de monumentos e lugares de interesse Histórico e Artístico.Novembro/Dezembro de 1967. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=238>. Acesso em: 20 nov. 2011.PREFEITURA MUNICIPAL DE RIBEIRÃO PRETO. Theatro Pedro II. Disponívelem http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/fundacao/teatro/i36historia.php. Acesso em11 dez. 2011.PINTO, Luciana Suarez Galvão. Ribeirão Preto: A dinâmica da economia cafe-eira de 1870 a 1930. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Araraquara:Universidade Estadual Paulista, 2000.REDE de Cooperação Identidades Culturais. Relatório da Fase 1 do INRC.Ribeirão Preto: Secretaria da Cultura, 2010.SANTO, Silvia Maria do Espírito Santo; REGISTRO, Tânia Cristina. A preserva-ção cultural em Ribeirão Preto, SP. Revista Museu, 2002. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/emfoco/emfoco.asp?id=5555>. Acesso em: 30 nov.2011.SILVA, Adriana; ROSA, L. R. O.; FERREIRA, D.; Et All. Patrimônio Cultural doCafé da Terra Vermelha. 1ª ed. Ribeirão Preto: Fundação Instituto do Livro, 2012.v. 1. 136p .SUNEGA, Renata. Quarteirão Paulista: um conjunto harmônico de edifíciosmonumentais. Ribeirão Preto: Fundação Instituto do Livro, 2011. (Coleção Identi-dades Culturais).TINCANI, Daniela Pereira e FERREIRA, Delson. Percepções e entendimentosda população de Ribeirão Preto sobre a sua identidade cultural: pesquisapreliminar. Anais do VII ENECULT, p. 1-14. ISBN: 85-60186-00-X. Salvador: UFBa,3-5 de agosto de 2011.THEATRO PEDRO II <http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/fundacao/teatro/i36principal.php>UNESCO. Conferência geral da Organização das Nações Unidas para aeducação, a ciência e a cultura – 9ª sessão. Nova Delhi: UNESCO, 1956. Dis-ponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.doid234. Acesso em:20 nov. 2011.

Page 136: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

136 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

UNESCO. Conferência geral da Organização das Nações Unidas para a educa-ção. Recomendação de Paris. Paris: UNESCO, 17 out. 2003. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.doid271. Acesso em: 25 nov. 2011.VICHNEWSKI, Henrique Telles. Indústrias Matarazzo em Ribeirão Preto. ColeçãoIdentidades Culturais, volume 2. Ribeirão Preto: Fundação Instituto do Livro, 2010.WORCMAN, Karen; PEREIRA, Jesus Vasquez (Coord.). História falada: memó-ria, rede e mudança social. São Paulo: SESC SP: Museu da Pessoa: ImprensaOficial do Estado de São Paulo, 2006.VELHO, Gilberto. Patrimônio, Negociação e Conflito. In: MANA 12(1), p. 237-248, 2006.

Page 137: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 137

ARTIGOS/ARTICLES

Page 138: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

138 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 139: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 139

A CRIAÇÃO DA PROVÍNCIA ECLESIÁSTICA DE SÃO PAULO

Nainôra Maria Barbosa de FREITAS*

RESUMO: Com este artigo buscamos entender o desmembramento da diocesede São Paulo, ocorrido em 1908, duas décadas depois da separação Estado-Igreja, promovida pela República. A análise da partilha de poder na disputa políti-ca entre as cidades, que seriam eleitas para serem sede de diocese, e a escolhados respectivos bispos titulares revelam os bastidores de uma trama política en-gendrada por vários seguimentos eclesiásticos e civis.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica, São Paulo; Diocese; Bispo.

A criação da Província Eclesiástica de São Paulo ocorreu em 1908 emudou a feição da Igreja Católica paulista, que passou a contar com uma presen-ça mais pontual dos bispos e do aparato administrativo pelo interior do Estado.

A Bula “Diocesium Nimiam Amplitudinem” de 7 de junho de 1908, do PapaPio X, dividiu o território do atual Estado de São Paulo em cinco novas dioceses.O projeto de dividir a diocese passou por vários bispos e algumas disputas, bemcomo a Bula de divisão decorria de um novo posicionamento eclesiástico produ-zido pela separação entre os poderes definida pelo advento da República e daConstituição de 1891. A partir de então, a Igreja entendia que era parte de seupapel na nova realidade que se apresentava ocupar, com seu aparato administra-tivo, o interior do Estado oferecendo o suporte espiritual por meio de sua hierar-quia na medida em que acompanhava o desenvolvimento econômico do país.

O objetivo deste trabalho é analisar a trama política por trás da divisão dadiocese de São Paulo e a criação da Arquidiocese paulista em 1908. A pesquisainicial foi realizada para a tese de doutorado defendida na Universidade EstadualPaulista, campus de Franca-SP, em 2006, sob a orientação do prof. Dr. Ivan Apa-recido Manoel.

Os documentos utilizados para alcançar o objetivo proposto integram oacervo do Arquivo Secreto do Vaticano A.S.V., Arquivo Degli Affari EcclesiasticiStraordinari – A.E.S. e Arquivo Histórico – A.H, localizados na cidade do Vaticano.No Brasil, os documentos consultados pertencem ao Arquivo da Cúria Metropoli-* Doutora, mestre e graduada em História pela UNESP – Franca SP. Professora no Centro Universitário Barãode Mauá – Ribeirão Preto – SP e na Faculdade Católica da Arquidiocese de Ribeirão Preto – Brodowski - SP.– Membro e pesquisadora do IPCCIC Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais.

Page 140: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

140 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

tana de São Paulo - ACMSP, que tem sob a sua guarda os documentos oficiais daNunciatura Apostólica a respeito de São Paulo, as cartas pessoais de bispos e osnúncios apostólicos, memoriais enviados pelas cidades, bem como os relatóriosdos membros da Secretaria de Estado do Vaticano, entre outros documentos deinteresse para os pesquisadores da História da Igreja Católica.

Inúmeros fatores contribuíram para a decisão de dividir a ampla diocesede São Paulo, entre os quais o rápido crescimento do interior, fruto do avanço daslavouras de café na segunda metade do século XIX, que trouxeram o chamadoprogresso. Marco dessa chegada da modernidade estava a ferrovia que impactouprofundamente as ações da sociedade, abrangendo não apenas a rápida circula-ção dos homens e das mercadorias, mas consequentemente das novas ideias.

Depois da publicação do Decreto 119-A da Constituição Republicana de18911, o Estado diretamente não interferiu diretamente nas questões da Igreja, noentanto, observa-se que a Igreja apesar da ruptura manteve em diferentes mo-mentos e locais, de acordo com as necessidades de ambas as partes, uma rela-ção muito próxima com as elites políticas e com o Estado republicano.

Para a Igreja, a situação de “liberdade” com o objetivo de expandir oprocesso missionário e melhorar sua estrutura administrativa, de organização doclero e da pregação religiosa seguia os princípios embasados nas diretrizes queemanavam da Secretaria de Estado do Vaticano. O historiador Ivan Manoel cha-ma de projeto do catolicismo ultramontano

[...] que buscava derrubar as muralhas ameaçadoras, de modo a permitir novamen-te que a história do homem fosse o local do seu aperfeiçoamento moral e espiritual,condição necessária e suficiente para levá-lo a eternidade (MANOEL, 2004, p. 51).

O estudo que se situa no campo da história eclesiástica, institucionalcom o intuito de analisar a normatização de que se cerca a Igreja católica noperíodo em que se encontrava de certa forma vulnerável no Brasil, diante daRepública e da entrada das outras crenças revela-se fundamental para compre-ender uma história mais abrangente que está inserida num campo fora do âmbitosomente da Igreja (HERMANN, 1997, p. 340).

No final do século XIX e no decorrer do século XX, a religião católica deixoude ser o único referencial para compreender o mundo e foi substituída por outrasformas de disciplinamento e novas formas de abordagem na ordem social. O pesqui-sador Giacomo Martina, ao tratar de problemas historiográficos e metodológicos parase estudar a Igreja Católica na Europa no início do século XX, aponta que:1 O Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, extinguiu o Padroado Régio (aliança entre o Estado e a Igrejaherdada da colonização portuguesa) e oficializou a separação entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica.

Page 141: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 141

Difundiam-se, portanto, nos ambientes católicos no início do século, um sentimento demal estar, uma ânsia de atualização, que apresentava todo um amplo leque deatitudes, ligadas entre si [...] uma tentativa de dar novas bases ao cristianismo”(MARTINA, 1997, p. 79).

Outro fator que preocupou as elites eclesiásticas no Brasil do referido perí-odo foi a entrada de novas crenças. O avanço do protestantismo pelo interior doBrasil no final do século XIX e início do XX é inegável, pelos locais em que umarápida urbanização ocorreu, seguindo muitas vezes o curso da ferrovia e o apareci-mento de escolas e templos protestantes (ALMEIDA, 1997). O espiritismo e os cultosremanescentes da cultura africana eram vistos como caso de polícia ou como umaperigosa ameaça a ordem pública e continuavam proscritos (FREITAS, 2006).

A situação da Igreja Católica caracteriza-se pelo embate com a socieda-de moderna. Um relatório de 1898 sobre a diocese de São Paulo descreve que elapossuía 413 sacerdotes, 328 seculares, 85 congregados com 199 freguesias. Umdos pontos abordado pelo relatório diz respeito às relações entre o Estado, a socie-dade laica e a Igreja. A situação daquele momento foi descrita como benéfica:

[...] a pregação do Evangelho tornou-se assídua e o povo tem se esforçado emsustentar com todo o esplendor o culto público [...]. O protestantismo pouco progres-so tem feito nesta diocese. O culto da seita protestante não satisfaz o povo brasileiro,em geral muito devoto da Virgem Maria. O progresso do positivismo diminui. Amaçonaria faz maiores progressos que o positivismo [...] e tem ela produzido seusmales em muitas paróquias (FONTOURA, Documentos avulsos, armário 3).

O relatório foi assinado pelo Cônego Ezechias Galvão da Fontoura quena ocasião exercia o cargo de vigário capitular da diocese. A respeito do protes-tantismo, o texto aponta que a prática não cresceu em São Paulo. A realidade foidiferente, pois nas décadas seguintes, após a separação do Estado com a IgrejaCatólica, o culto protestante entrou pelo interior do país, estabelecendo escolas,distribuindo bíblias, organizando ações sociais com grupos de mulheres, entreoutras atividades de assistência espiritual e material.

Passado o primeiro momento de susto, em que a Igreja viu-se “órfã” datutela do Estado e diante da secularização e da laicização, ela começou a articu-lar mudanças na sua estrutura. Para os pensadores contemporâneos daquelemomento, estas mudanças mesmo que lentas não foram tão perceptíveis.

Em 1910, duas décadas depois do início da República, o padre Desidé-rio Deschand escreveu que para os católicos:

[...] A situação não é tão prospera como imaginaes! Não! Na massa do povo brasi-leiro o sentimento religioso não tem argumentado, tendo antes diminuído em muitos!

Page 142: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

142 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Si a causa religiosa deve a republica algumas liberdades, a republica lhe tem causa-do gravíssimos males” (DESCHAND, 1910, p. 3).

No entanto, em 1910, ano da publicação da obra do padre Deschand, onúmero de dioceses e paróquias instaladas pelo interior do Brasil estava aumen-tando, revelando o esforço da hierarquia da Igreja no intuito de mudar a precáriasituação em que a mesma se encontrava, marcada pela liberdade de culto e oconsequente pluralismo religioso e cultural, mas também pelas próprias defici-ências internas da estrutura eclesiástica herdada do padroado.

A República não trouxe um rápido reordenamento da Igreja. Em SãoPaulo, por exemplo, foi preciso mais de duas décadas para a instalação dasnovas dioceses e, no entanto, São Paulo foi pioneiro em realizar uma divisãoampla do território eclesiástico por meio de um projeto. As outras inciativas dedivisão de um território eclesiástico representa criação de dioceses de formaavulsa como foi o caso de Minas Gerais que no início do século XX contava comquatro dioceses (Mariana – 1745; Diamantina – 1854; Pouso Alegre – 1900; Ube-raba – 1907).

E o Estado? Qual a postura da instituição e de seus membros depois daseparação? Na prática, ocorreram inúmeras ações em que vemos o Estado es-tendendo seus benefícios para a Igreja ou na tentativa de manter as relações emclima amistoso. No início do século XX, o núncio apostólico, em visita ao interiorde São Paulo, recebeu do governo paulista uma deferência que colocou à suadisposição um carro e um vagão especial nas companhias ferroviárias para seudeslocamento. Como o núncio é o representante diplomático do papa e conse-quentemente a mais alta hierarquia da Igreja no Brasil, isto mostra que as rela-ções entre o Vaticano e o governo republicano eram no mínimo amistosas.

Em muitos locais, os dirigentes do Estado se recusavam a contribuir comum auxílio econômico para formar o patrimônio da Igreja. Um costume era asmunicipalidades contribuir para receber os representantes da Igreja em cerimô-nias ou festas de cunhos religiosos, outro muito diferente era contribuir para aformação de patrimônio da mesma.

Estamos falando de dois campos de poder que atuavam e disputavamespaço na sociedade brasileira. De um lado, a jovem República que precisava sefirmar diante da população e defendia as ideias de laicismo e secularização dasestruturas da sociedade, e, do outro lado, a Igreja que carregava uma herançasecular de sua presença no Brasil.

Os republicanos formavam em São Paulo um grupo importante, princi-palmente os agremiados no PRP – Partido Republicano Paulista, com represen-tantes que acreditavam em uma sociedade secularizada, livre das antigas tradi-

Page 143: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 143

ções, ligadas a Igreja Católica.Na primeira década do século XX, algumas cidades paulistas estavam

empenhadas em ganhar poder e status e pleiteavam ser sede de diocese. Comeste propósito, realizaram inúmeras tentativas junto à Santa Sé. As cidades deCampinas e Batatais, que pertenciam ao bispado de São Paulo, saíram à frente,enviando Memorial à Secretaria de Estado no Vaticano, iniciando uma corrida natentativa de receber a honraria de ser sede episcopal.

A disputa entre as cidades paulistas provocou uma ampla troca de cor-respondências, que mobilizou os membros da Secretaria de Estado no Vaticano,o Núncio Apostólico e alguns bispos brasileiros, que foram envolvidos na trama. Amobilização atingiu alguns membros do clero que almejavam ser eleitos bispospara essas novas dioceses.

No governo da diocese de São Paulo, entre 1904-1906, estava D. José deCamargo Barros que inicialmente não se mostrou favorável a esse projeto. Algunsfatores podem ser identificados no conjunto dos problemas que D. José alegoupara não dividir a diocese e que resumimos em um único: dinheiro. Este era ogrande entrave e foi objeto das longas discussões encetadas pela hierarquia daIgreja Católica.

A crise do café em São Paulo, a precária residência episcopal, o parcorendimento da cúria orçado em um conto de réis, segundo o bispo, não permitiamnem mesmo abrigar seus pais, fazendo com que D. José expressasse ao núncioD. Júlio Tonti seu desgosto de ver a diocese dividida. Ele afirmou que aceitariavender o velho palácio episcopal e residir em casa de três ou quatro portas, ou atémorar no seminário, mas isso seria um vexame e motivo de afronta para as famí-lias católicas. Colocava a dignidade do cargo de bispo acima de tudo e, comobispo, não poderia viver em qualquer casinha ou de favores (BARROS, 6 set.1905).

Outra questão abordada por D. José com o núncio é que o cabido dioce-sano concordava com a ideia de que a divisão deveria ser feita devagar, masassim como todos os membros do clero, o bispo e o cabido, mostravam-se obe-dientes à hierarquia, aceitando toda e qualquer resolução do Papa. A obediênciairrestrita ao Papa e as diretrizes da Igreja faziam parte desde finais do século XIXdo conjunto de valores do clero romanizado brasileiro (MANOEL, 2004).

Os habitantes de Campinas enviaram o projeto pedindo a criação dadiocese, alegando a boa localização da cidade, o aumento da população commuitos imigrantes, as facilidades no transporte por conta do entroncamento deferrovias que interligava a cidade a todo o Estado. O pároco da matriz de NossaSenhora da Conceição de Campinas, Pe. Francisco C. Barreto, e D. João BaptistaNery, campineiro e bispo de Pouso Alegre, enviaram carta ao Papa Pio X e ao

Page 144: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

144 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Secretário de Estado do Vaticano, Rafaelle M. Del Val, com um abaixo assinadopedindo a criação da diocese de Campinas. Cento e trinta e nove pessoas assina-ram o documento, dentre elas políticos, empregados públicos, agricultores, capi-talistas (NERY a, 15/01/1904).

O Pe. Francisco C. Barreto vinha desde o ano de 1903 correspondendocom o núncio, a respeito de uma provável diocese, preparando junto com seusparoquianos o patrimônio, enquanto aguardava a decisão do papa. A adesão deD. João B. Nery foi fundamental para que o projeto ganhasse força, uma vez queele passou a trabalhar para a execução do mesmo, escrevendo aos bispos e àspessoas influentes, consultando a viabilidade de uma diocese na cidade de Cam-pinas, trabalhando abertamente para também pressionar a nunciatura no Brasil ea cúria romana (FREITAS, 2006).

Em 1903, a cidade de Batatais, também no interior de São Paulo, enca-minhou seu projeto feito pelo pároco padre José Lafayetti de Godóy, ex-deputadoprovincial de Minas Gerais e pároco da matriz do Senhor Bom Jesus da CanaVerde. O projeto de Batatais foi acompanhado de um abaixo assinado, no qualconstavam vários deputados, juízes, fazendeiros e pessoas conhecidas no cená-rio nacional, bem como o coronel Eduardo Garcia de Oliveira, ex-deputado quecontribuiu na elaboração do projeto (GODOY a, 9 jul. 1903).

O projeto de Batatais alegava a distância da sede da diocese na cidadede São Paulo e o desamparo espiritual em que os católicos do interior se encon-travam. Apesar desta distância, o padre afirmou que conservavam entre eles o queconsiderou como uma inabalável firmeza na fé. O projeto exaltava o bom clima dacidade, apresentava a matriz, a residência adequada para o bispo, o patrimônioem dinheiro para a diocese, a facilidade de deslocamento pela ferrovia Mogiana;bom estado em que a cidade se encontrava pelo empenho da Câmara Municipalpara o embelezamento de suas praças e ruas; ressaltava que o povo era hospita-leiro, de boa índole e bons costumes (GODÓY a, 9 jul. 1903, p.1-5). Uma exigên-cia aparece na correspondência entre o padre e o núncio de que a cidade deBatatais fosse a sede do bispado (GODÓY b, 6 maio 1903, p. 3). Um Memorialcompleto com informações sobre a situação do catolicismo, quadro estatísticoda população e da economia na região foi enviado ao Papa Pio X, acompanhadode um abaixo assinado pelas pessoas mais proeminentes da região (GODOY c,fev 1904, fasc. 111).

Estava lançada a corrida pela divisão da diocese de São Paulo, e a altahierarquia da Igreja passou a se posicionar diante daquelas cidades que busca-vam ser escolhidas para a sede de diocese e de prováveis nomes de candidatosa bispos.

Page 145: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 145

No decorrer dos anos de 1903 a 1904, a mobilização por parte dos inte-ressados levou a uma intensa discussão sobre o desmembramento da diocesede São Paulo que apresentava entraves e interesses econômicos, junto com aparticipação indireta de alguns membros da aristocracia fundiária, que dominavaa vida política e social, apadrinhavam o clero e seus projetos. Os membros doclero padres e bispos participavam da vida política e/ou de agremiações queatuavam no campo social no início do século XX (MICELLI, 1988).

A participação dos membros do clero na vida política não era fato inco-mum no final do século XIX, “[...] não havia senso comum de que a fé exigisse umcompromisso político ou de que a ação política pudesse ser um componentemaior da fé” (MAINWARING, 1989, p. 45).

O engajamento dos fiéis e do clero não passava pelo compromisso obri-gatório de comprometimento com uma sociedade mais justa e fraterna. A missãoda Igreja era cristianizar e impedir o crescimento de outras crenças no meio dosfiéis. Para tanto, a Igreja adotou a atitude no século XIX de nomear para os altoscargos sacerdotes que assumissem a política adotada pela hierarquia da Igreja.

A intensificação das relações com o papado abriu caminho para a con-cretização do projeto de divisão da diocese de São Paulo e da criação outras pelointerior do país.

No Brasil, a Igreja Católica do final do século XIX era muito diferente daIgreja romana nas suas práticas, pois ao longo dos séculos em que esteve sob atutela do Padroado Régio não teve autonomia e manteve estreita dependência dopoder político dos reis de Portugal e depois dos imperadores. A nova fase abriucaminho para estreitar as relações da hierarquia eclesiástica brasileira com oPapado e a Igreja europeia. Aumentou, por exemplo, o número de padres quevinham da Europa e o mais importante: os bispos eram nomeados pelo papa. Anomeação dos bispos e padres e a atuação política interna foram exercidas coma função de expandir e reorganizar a Igreja no Brasil.

Esta política estava elaborada em três níveis: o primeiro situado no Vati-cano; o segundo no Brasil e dentro da Igreja com uma política interna; e o terceirofora do circuito interno da Igreja: política externa. Estes níveis se entrecruzam,mas, acima de tudo, a decisão final ficava no primeiro, ou seja, em Roma. O Papae os cardeais, membros da Secretaria de Estado do Vaticano, aceitavam ou nãoas propostas vindas de fora. Os pareceres dos cardeais davam um voto de vida oumorte para os diferentes projetos. O apadrinhamento do núncio, de bispos e docardeal do Rio de Janeiro também significava muito para o bom andamento deum projeto.

Page 146: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

146 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Em setembro de 1904, os bispos reuniram-se no Santuário de Aparecida,na festa de coroação da Virgem de Aparecida, na 2a Conferência dos Bispos doSul do Brasil. Deste encontro resultou a “Carta Pastoral Coletiva dos Bispos daProvíncia Eclesiástica Meridional do Brasil”. Concomitante ao documento da CartaPastoral, os bispos discutiram o problema da criação de novas dioceses no esta-do de São Paulo.

O jornal Santuário de Aparecida publicou várias notícias sobre o encon-tro, a festa de Nossa Senhora, mas nenhuma referência explícita a respeito dadiscussão de criação de bispados, assunto reservado, possivelmente discutidosomente entre a elite hierárquica da Igreja reunida no encontro, e que não viu anecessidade de divulgar as disputas internas em torno da criação de novas dioce-ses no Estado de São Paulo.

No entanto, os bispos escreveram um documento enviado ao Núncio Apos-tólico, D. Julio Tonti (também esteve presente no encontro de Aparecida), com datade sete de setembro de 1904, expondo as razões pelas quais eram contrários àcriação de novos bispados em São Paulo (IGREJA CATÓLICA, 07/09/1904).

Dentre os bispos que assinaram a carta estavam quatro que, no mês dejaneiro de 1904, haviam enviado cartas a pedido de D. Nery apoiando a criaçãodo bispado de Campinas (D. Silvério Gomes Pimenta, bispo de Mariana; D. Fer-nando de Souza Monteiro, bispo do Espirito Santo; D. Duarte Leopoldo e Silva,bispo de Curitiba; e D. Joaquim Silvério de Souza, bispo de Diamantina). No docu-mento de Aparecida, constavam as assinaturas do cardeal do Rio de Janeiro D.Joaquim Arcoverde e dos bispos D. José de Camargo Barros, de São Paulo, D.Cláudio Ponce de Leon, do Rio Grande, e D. João Francisco Braga, de Petrópolis.Os bispos expuseram quatro razões possíveis para impedir a criação do bispadode Campinas e ainda sugeriram a criação de um novo bispado em Botucatu,alegando que este sim seria viável, visto que a cidade ficava a doze horas de SãoPaulo. Dom Nery foi o único dos presentes que obviamente não assinou o docu-mento.

O teor do documento era:1o. A cidade de Campinas esta a duas horas de estrada de ferro de São Paulo,portanto as mais remotas paróquias da diocese de São Paulo podem ser dirigidas evisitadas pelo bispo diocesano com as mesmas facilidades, com a mesma prontidão,quer o bispo resida em Campinas ou São Paulo. Por este lado não há razão ounecessidade de colocar-se a sede da nova diocese em Campinas.

2o. Pela mesma razão que a cidade de Campinas esta quase as portas de SãoPaulo, sendo ela a sede de uma nova diocese, vai tomar a maior e melhor parte davelha diocese de São Paulo, ficando assim esta antiga e prospera diocese esfacela-

Page 147: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 147

da, não podendo satisfazer aos compromissos que já tem nem de dar ao seu bispouma subsistência decorosa.

3o. A criação de uma nova diocese com sede em Campinas é antipática ao Cabido deSão Paulo, a todas as paróquias do interior do Estado, a todos os párocos e fiéis dasmesmas paróquias, que se fossem ouvidos dariam opinião contrária.

4o. A colocação como sede da nova diocese em Campinas virá dificultar a criação deuma 3a diocese no mesmo Estado de São Paulo, quando isto for reclamado pelo bemda religião” (IGREJA CATÓLICA, 7/09/1904).

A novidade era a sugestão de criação de uma diocese em Botucatu,cidade considerada pelos bispos a mais distante da Sé paulista. O documentodos bispos não expressava a vontade dos fiéis, uma vez que nenhuma consulta foifeita aos mesmos, eles foram se posicionando e mobilizando na medida em queos projetos foram enviados para o Vaticano.

O que aconteceu entre meados de janeiro de 1904 quando os bisposresponderam favoravelmente o pedido de D. Nery e a reunião de setembro que oslevou a mudarem de posição?

O fato de que Campinas estar localizada no entroncamento das duasprincipais ferrovias do país (Paulista e Mogiana) permitiu aos campineiros lançarmão deste argumento justificando as facilidades que o bispo teria para realizarsuas visitas pastorais. Para os bispos contrários à criação da diocese, este motivonão justificava. O local de residência do bispo não era tão importante já que pelaferrovia poderia alcançar facilmente qualquer cidade, seja de São Paulo ou apartir de Campinas. Na mesma ocasião, o projeto de outra cidade, Batatais, tam-bém argumentou a respeito das facilidades proporcionadas pela ferrovia Mogia-na e apontou a proximidade da Paulista.

Campinas representava o centro de uma parte importante região do bis-pado de São Paulo e fonte de boa parte das arrecadações, que ficariam bastantecomprometidas. O bispo de São Paulo necessitava destas rendas e a retiradarepentina das mesmas causaria transtornos. Grandes fazendeiros de café esta-vam instalados na região, compunham o cenário político do momento, com seusdomínios e influências e com sua generosa ajuda à Igreja.

O documento de repúdio ao projeto de Campinas não fez qualquer alu-são à cidade de Batatais, que havia enviado seu Memorial para Secretaria deEstado do Vaticano em 1903, pedindo para ser sede de bispado. Não sabemos seeles consideravam a cidade de Batatais insignificante e sequer a mencionamcomo uma ameaça aos planos de Campinas ou se muitos desconheciam odesejo de Batatais. Acreditamos que o projeto de Batatais era de conhecimento

Page 148: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

148 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

público, uma vez que o assunto fora notícia nos jornais.Em seu memorial, Campinas ressaltava a importância da cidade como

centro regional, sendo a razão para que a cidade fosse a sede do bispado eramuito particular (IGREJA CATÓLICA, Duas palavras sobre o Bispado, A.S.V. A.H.fasc 116, p.1):

O Oeste do Estado de São Paulo conta com oitocentos mil colonos italianos [...] Ora,esses colonos são todos cathólicos, e estavam na sua terra acostumados a ver obispo, a ser por elle visitados, e conseqüentemente viviam como que saturados dereligiã” (IGREJA CATÓLICA, Duas palavras sobre o Bispado do oeste de S. Paulo,fasc 116, p. 5).

A disputa levou a cidade de Campinas a questionar o papel do bispo e dobispado acusando que o único objetivo da cidade de Batatais era atingir o pro-gresso e grandeza em vez de colocar em primeiro lugar os interesses da Igreja edo bispo seu representante.

O texto questiona o papel da cidade de Ribeirão Preto diante da divisãoda diocese de São Paulo. Nos primeiros anos do século XX, Ribeirão Preto des-pontava cada vez mais como um grande centro cafeeiro. O café possibilitava oaumento das atividades comerciais e de incipientes indústrias. Na documenta-ção consultada, o nome de Ribeirão Preto só aparece como candidata à sede debispado por volta de 1907, quando D. Duarte Leopoldo e Silva começou a prepa-rar o projeto de instalação da Província Eclesiástica de São Paulo.

Diante desses fatos, constatamos que em 1903/4 os representantes de Cam-pinas sentiram-se ameaçados com a petição de Batatais, pois a pequena cidadepoderia atrapalhar os planos de Campinas. E como Ribeirão Preto não estava nopáreo, fazer a comparação significava desmoralizar Batatais em sua pequenez diantede outras cidades mais importantes, portanto, aptas a receber o bispo.

Em 1906, os membros da Secretaria de Estado do Vaticano haviam acei-tado criar as dioceses de Botucatu, Campinas, Batatais e Taubaté, desmembran-do-as de São Paulo e criando uma Província Eclesiástica. Os problemas concen-travam-se na questão econômica. Se Campinas, importante fonte de renda dadiocese de São Paulo, e o Santuário de Aparecida ficassem fora da esfera depoder de São Paulo, deixariam a velha Sé aniquilada.

O cardeal do Rio de Janeiro, D. Joaquim Arcoverde, para solucionar oproblema e não prejudicar São Paulo sugeriu ao núncio que a diocese de Cam-pinas fosse implantada mais tarde. O cardeal explicou a proposta por carta envi-ada ao Núncio: a diocese de São Paulo passaria a contar, inicialmente, com oauxílio das ordens religiosas beneditinas e carmelitas, durante cinco anos, com

Page 149: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 149

30 contos de réis anuais, divididos entre as duas ordens.No projeto, os santuários também deveriam contribuir para as despesas

de São Paulo, com quotas assim pré-determinadas:

a) O Santuário de Aparecida contribuiria anualmente com a quantia de quinze contosou com o saldo de seus rendimentos, feitas as despesas do culto.b) Santuário de Pirapora com cinco contos anuaisc) Santuário de Iguape com cinco contos anuaisd) Santuário de Nazareth com dois contos anuais (ARCOVERDE a, 3/5/1906).

O cardeal, na carta acima citada, apresentava outra proposta em quesomente o Santuário de Aparecida ficaria pertencendo a São Paulo. Caso aceitaa proposta, caberia ao bispo terminar o edifício em construção e construir umseminário central para os estudos eclesiásticos superiores como a Filosofia. Ocardeal considerou este projeto melhor que o primeiro, uma vez que o bispo deSão Paulo não dependeria financeiramente das ordens religiosas e nem dossantuários. As novas dioceses não precisariam contribuir e a diocese de SãoPaulo seria elevada à condição de arquidiocese.

Esta proposta foi implantada pelo bispo de São Paulo, D. Duarte, em1908, com algumas modificações. O Santuário de Aparecida ficou pertencendo àdiocese de São Paulo depois de muita discussão e disputa com Taubaté.

Dom Duarte conseguiu do Papa Pio X a elevação do Santuário de Apare-cida à categoria de Basílica. A honraria representava uma forma de compensaçãopara a cidade, que foi palco de disputa entre o bispo paulista e parte do clero deTaubaté.

As rendas do Santuário de Aparecida eram bastante atrativas para seremdesprezadas. A discussão era antiga e D. José de Camargo Barros, antigo bispode São Paulo, apontou a decadência das rendas do Santuário de Aparecida. Elealertava para a necessidade de se criar um patrimônio para a diocese de SãoPaulo (BARROS, 6/6/1906).

Dom José tinha motivos para preocupar-se, uma vez que as rendas deAparecida, em menos de uma década, caíram quase pela metade. Curiosamen-te, as rendas começaram a decair depois da chegada dos missionários Redento-ristas, que assumiram o santuário em 1894, introduzindo novas formas de propa-gar a fé. Toda esta questão requer uma pesquisa aprofundando o tema o que nãoé objeto de nosso estudo. O quadro abaixo das rendas reflete a situação peculiarde preocupação do bispo.

Page 150: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

150 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Fonte: BARROS, D. J. de C. 6 jun. 1906. Quadro com as rendas do Santuário deAparecida, A.S.V. A.H., fasc 711.

Dom José viajou a Roma para visita ad limina levando as propostas decriação dos novos bispados, entre eles o de Botucatu, Campinas e Batatais. Suamorte repentina levou muitas pessoas a pensar no final do sonho, pois o Vaticanoainda não havia concretizado o projeto. Com a criação das novas dioceses, oVaticano elevaria São Paulo à Arquidiocese.

No retorno de Roma, em 4 de agosto de 1906, ocorreu o naufrágio donavio “Sírio” e a morte de D. José na costa africana, encerrando esta etapa dedivisão das dioceses no interior de São Paulo. Para a cidade de Batatais, o sonhode sediar uma diocese ficou tragicamente enterrado no mar, junto com o bispo(FREITAS, 2006, p. 28).

Os membros da Secretaria de Estado do Vaticano e a hierarquia da Igrejano Brasil conheciam o crescente aumento da população no Estado de São Paulo,que exigia medidas mais concretas. O fato de que houvesse somente uma dioce-se na capital incendiava o imaginário daqueles que sabiam o quanto um bispopoderia contribuir para o crescimento espiritual, bem como trazer prestígio políti-co e poder para uma cidade.

A escolha do novo bispo de São Paulo recaiu sobre D. Duarte Leopoldo eSilva, que governava a diocese de Curitiba, mas que conhecia de perto a realida-de de São Paulo. Dom Duarte com o apoio do cardeal D. Arcoverde alterou oprojeto inicial da divisão do território em três cidades para cinco cidades. Aseleitas foram: Campinas, Botucatu, São Carlos, Taubaté e Ribeirão Preto. Para ocardeal Arcoverde, o que D. Duarte “[...] fez em São Paulo foi coisa única, e comoV. Excia. foi hábil e devotado instrumento da Divina Providência [...]” (ARCOVER-

Quadro demonstrativo das rendas do Santuário de Aparecida

1896 179.650$0001897 141.396$0001898 154.080$0001899 108.000$0001900 103.000$0001901 106.000$0001902 94.197$0001903 89.462$0001904 92.620$0001905 86.792$000

Page 151: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 151

DE c, 15 jun. 1906).O cardeal Arcoverde considerava que a cidade de Batatais não tinha

elementos próprios, daí se justificar pela escolha de Ribeirão Preto que foi consi-derada pelos membros da Secretaria de Estado do Vaticano como mais adequa-da (ARCOVERDE b, 10 abr. 1907). O bispo D. Duarte Leopoldo e Silva viu seresforço para executar o projeto recompensado ao ser elevado à condição dearcebispo por meio da Bula “Dioecesium Nimiam Amplitudinem” de 7 de junho de1908 do Papa Pio X, a mesma que criou as novas dioceses.

Fonte: LAURIANO, João. Fundação e instalação do bispado de Ribeirão Preto. (1906– 1909). Ribeirão Preto: Cúria Metropolitana, s/d. p. 46.

O projeto de D. Duarte desencadeou uma corrida pelo cargo de bispo. Onúncio era pressionado pelas indicações de todos os lados: do cardeal, no Rio deJaneiro; dos bispos no Brasil; de outros prelados e até por leigos. Os pareceres deum núncio tinham grande poder de veto sobre os nomes dos eleitos. Os candida-tos passavam por uma sabatina em que, por meio de diferentes pessoas consul-tadas, suas vidas eram esquadrinhadas, como um processo de Gênere, que oshabilitavam para serem sacerdotes. Reitores de seminários, leigos, eram convi-dados a dar seu parecer sobre a conduta dos candidatos.

Às vezes, a nomeação era uma simples transferência como foi o caso deD. Nery. O empenho de D. João Baptista Nery, bispo de Pouso Alegre - MG, quequeria ser nomeado para Campinas, levou-o a trocar uma ampla correspondên-cia em primeira instância pedindo a criação do bispado e alegando não querer,

Mapa da Província Eclesiástica de São Paulo - 1908

Page 152: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

152 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

em hipótese alguma, sua nomeação para Campinas. Fica complicado ver a pu-reza de intenções do bispo trabalhando para a criação da diocese de Campinasquando em outra correspondência encontramos seu pedido: “[...] que humilde-mente fosse nomeado [...] (NERY a, 15/1/1904)”. Dom Nery escreveu ao núncio,ao Papa e aos bispos do Brasil, advogando seu projeto e buscou todas as possibi-lidades para fazer-se entender para criar a diocese de Campinas e depois pediupara ser nomeado para governar a nova diocese dando garantias de patrimônio,construção de seminário, entre outras providências a serem tomadas.

Os bispos que assumiram na Província Eclesiástica de São Paulo, D.João Batista Correa Nery, de Campinas, e D. Alberto José Gonçalves, de RibeirãoPreto, ambos estudaram no Seminário de São Paulo; o de Botucatu, D. LucioAntunes de Sousa, e o de Taubaté, D. Epaminondas Nunes de Ávila e Silva, sãofrutos do Seminário de Diamantina e somente D. José Marcondes Homem deMelo, bispo de São Carlos, era procedente do Colégio Caraça em Minas Gerais,sendo que nenhum deles realizou estudos no exterior. A formação destes novosprelados esteve marcada pelos atritos que a Igreja viveu no final do Império. Noseminário, a vida destes jovens já era indício de quem seriam seus padrinhos e dasuposta carreira que poderiam desenvolver no seio da Igreja (MICELI, 1988, p.109-122).

Escolhidos pela Santa Sé, eles possuíam vínculos com a elite eclesiásti-ca do país e organizaram novas paróquias, associações de leigos, construíramigrejas, criaram pequenos jornais ou boletins informativos, realizaram visitas pas-torais, deram regulamentos às fábricas das matrizes, construíram palácios epis-copais, novas catedrais, incentivaram e contribuíram para a reforma e ou constru-ção de matrizes, colocaram em prática um plano de empreendimentos para aorganização de suas dioceses (FREITAS, 2006).

Os bispos das dioceses paulistas, assim como outros bispos do Brasil,enfrentaram também o crescimento do espiritismo, do protestantismo, da maço-naria e dos avanços da sociedade laica no campo do ensino, bem como astentativas de instituir o divórcio pondo fim ao casamento tal como o concebia aIgreja. Estes e outros males foram relacionados na obra do Pe. Desidério Des-chand que traça uma análise dos problemas da Igreja no Brasil no início doséculo XX.

A presença cotidiana do bispo, orientando os padres e leigos, poderiaressignificar as práticas dos fiéis partícipes das atividades da Igreja como aspromovidas pelas associações laicas. A história da província Eclesiástica de SãoPaulo é indissociável das relações político sociais na dimensão histórico eclesialda fé, com seus desdobramentos práticos e a tentativa de reafirmação da identi-

Page 153: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 153

dade católica por parte de sua hierarquia ao formar novo quadro administrativopara cuidar dos interesses da Igreja no Brasil e mais especificamente no estadode São Paulo.

FREITAS, Nainôra Maria Barbosa de. The creation of the ecclesiastical province ofSão Paulo. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.8, n.1 e n.2., 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: Whit this article we seek to understand the break up of the Diocese ofSt. Paul, which occurred in 1908, two decades after the church-state separation,promoted by the Republic. The analysis of power sharing in the political disputebetween the cities, which would be elected to the seat of the diocese, and thechoice of bishops respective holders reveal the backstage of a political plot engi-neered by various segments ecclesiastical and civil.

KEYWORDS: Catholic Church, São Paulo, Diocese, Bishop.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, V. de. Converter, ensinar e reformar: a missão protestante emRibeirão Preto (1896-1950). Dissertação (Mestrado em História), Franca: Uni-versidade Estadual Paulista – Unesp, 1997.BALDIN, M. A. Pacificador Beligerante: Alberto José Gonçalves – um Padrena Política Paranaense na 1ª. República (1892-1896). Dissertação (Mestradoem História). Franca, Universidade Estadual Paulista – Unesp, 2006.CORREIA, F. de A. História da Arquidiocese de Ribeirão Preto (1908-2008).Edição do autor, 2008.DESCHAND, D. A situação actual da religião no Brazil. Rio de Janeiro, Garni-er, 1910.FREITAS, N. M. B. de. A criação da diocese de Ribeirão Preto e o governo doprimeiro bispo D. Alberto José Gonçalves. Tese (Doutorado em História),Franca, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de História, Direitoe Serviço Social, 2006.HERMANN, J. História das Religiões e Religiosidades. In: CARDOSO, C.F. & VAIN-FAS, R. (orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio deJaneiro: Elsevier, 1997.

Page 154: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

154 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

LAURIANO, Dr. J. Fundação e Instalação do Bispado de Ribeirão Preto. (1906-1909). Ribeirão Preto: Cúria Metropolitana, s/da.MAINWARING, S. Igreja Católica e Política no Brasil. 1916-1985. São Paulo:Brasiliense, 1989.MANOEL, I. A. O Pêndulo da História. Tempo e Eternidade no PensamentoCatólico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.MANOEL, I. A. & FREITAS, N. M. B. de (orgs). História das Religiões. Desafios,Problemas e Avanços Teóricos, Metodológicos e Historiográficos. SãoPaulo: Paulinas, 2006.MARTINA, G. História da Igreja. De Lutero a Nossos Dias. IV- A era contem-porânea. Trad. Orlando S. Moreira. São Paulo: Loyola, 1997.MICELI, S. A Elite Eclesiástica Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

Documentação – Arquivo Secreto do Vaticano – A.S.V.ARCOVERDE a, D. J. A. C. [Carta de D. Joaquim Arcoverde ao Núncio Julio Tonti],3 maio 1906. A. S. V. Congr. Consist, Relat. Dioc. Indíce 1169, n. 687.BARROS, D. J. de C. [Carta de D. José de C. Barros ao Núncio D. Julio Tonti], 6 set.1905. A.S.V. A.E.S. fasc, 129.BARROS, D. J. de C. [Carta de D. José de C. Barros a Secretaria do Estado], 6 jun.1906. A.S.V. A. E. S. fasc, 711.BAVONA, A. [RAPPORTO_di Mons. Nunzio Del Brasile all’ Emo Cardinal Segreta-rio di Stato]. 21 jan. 1908, A.S.V. A.E.S. fasc 141, p. 16/17.GODOY a, J. L. de. [Carta do Pe. José L. de Godoy ao Núncio Apostólico], 9 jul.1903. A.S.V. Nunz. Apost. Fasc 500, n. 101.GODOY b, J. L. de. [Carta do Pe. José L. de Godoy ao Núncio Apostólico], 6 maio1903. A.S.V. Nunz. Apost. Fasc 500, n. 101, p. 1-5.GODOY c, J. L. de. [Memorial de José L. de Godoy a S. S. Pio X], A.S.V. A.H. fev.1904, fasc. 111.NERY a, J. B. [Carta de D. João B. Nery ao Secretario Rafaele M. D. Val], 15 jan.1904 A.S.V. A.E.S. fasc. 116.

Page 155: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 155

IGREJA CATÓLICA. Duas palavras sobre o Bispado do Oeste São Paulo e suasede. A.S.V. A.E.S. fasc. 116, p.1-26.IGREJA CATÓLICA. [Carta dos Bispos ao Núncio], D. Julio Tonti, Aparecida, 7 set.1904. A.S.V. A.E.S., Fasc 116.ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DE SÃO PAULOARCOVERDE b, D. J. A. C., [Carta ao Bispo de São Paulo D. Duarte Leopoldo eSilva], 10 abr. 1907 ACMSP – Pasta Cardeal Arcoverde.ARCOVERDE c, D. J. A. C., [Carta ao bispo de São Paulo] 15 jun. 1906. ACMSP –Pasta Cardeal Arcoverde.FONTOURA, E. Galvão da. 23 jul. 1898. A.C.M.S.P. Documentos avulsos, armário 3.

Page 156: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

156 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 157: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 157

ENTRE ANÉIS E BATINAS: O AVANÇO DO ESTADO PORTU-GUES SOBRE A PROVÍNCIA CARMELITA FLUMINENSE NA

TRANSIÇÃO DO SÉCULO XVIII PARA O XIX

Sandra Rita MOLINA*

RESUMO: De posse de fontes internas à Ordem dos Carmelitas Calçados daProvíncia Fluminense, este artigo pretende revisitar uma documentação publica-da na Revista Trimensal do Instituto Histórico do Rio de Janeiro em 1888 e quetratou do conflito, ocorrido, em fins do século XVIII, entre o Bispo do Rio de Janei-ro, o Vice-Rei e a Província Carmelita Fluminense.

PALAVRAS-CHAVE: História do Brasil; Igreja Católica.

1. A Denúncia no contexto:

No processo de colonização do Brasil a Igreja Católica atuava de manei-ra ritualística, pois que fundada em faustosas demonstrações públicas, exercíci-os de atos externos cotidianos, cultuadora do misticismo, dos santos e marcadapelos procedimentos e interesses laicos (BOSCHI, 1986; BOXER, 1969). Buscandoa substituição desta hegemonia do clero sobre os súditos, o Estado português refor-çou os instrumentos de sua política regalista fortalecendo o poder estatal, remode-lando o clero e eliminando possíveis focos de contestação (CARNAXIDE, 1979;ALMEIDA, 1926). A figura de destaque nessa política foi o Marquês de Pombal,auxiliado por civis e eclesiásticos afinados com os objetivos por ele delimitados.

A administração pombalina reformou e reafirmou os direitos do padroadoportuguês, também chamado regalismo, e se caracterizou por uma mudança deobjetivos do governo português na instrumentalização da religião católica e dosseus agentes (BENEDETTI FILHO, 1990). De fato, através do regalismo, o podercivil passou a controlar o clero de forma a torná-lo um instrumento de dominaçãodo Estado sobre a sociedade (ALTOÉ, 1993).

O objetivo era o de reeducar, transformando de forma definitiva e irrever-sível, seus membros em instrumentum regni, atitude que se constituía numa dire-

* Possui graduação em História e mestrado em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual deCampinas (Unicamp). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (Usp) (2006). Atualmente éavaliadora do Ministério da Educação, colaboradora do Banco Nacional de Itens - Inep e professora titular daUniversidade de Ribeirão Preto do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC).

Page 158: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

158 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ta contestação ao poder eclesiástico autônomo. Uma seqüente legislação viriaenfraquecer o poderio do clero através do controle de seus bens imobiliários ebases econômicas, de sua reeducação e da mudança em seu papel social,buscando reduzir a hegemonia do Estado Eclesiástico em favor do Estado Civil ePolítico. Numa palavra, secularizar a estrutura da sociedade portuguesa e coloni-al reformando a crença religiosa (BOSCHI, 1986, p. 41).

Com seu afastamento do poder, muitas áreas da política lusitana foramalteradas. Entretanto, no que tange aos negócios da religião, o término da admi-nistração pombalina não suspendeu a política de restrições às ordens regulares.Tal perspectiva pode ser observada, em especial, no universo carmelita.

Nas últimas décadas do século XVIII, a Província Carmelita Fluminense,refratária às imposições do governo, travou um embate com as autoridades repre-sentativas do poder metropolitano em terras coloniais: o Vice-Rei D. Luís de Vas-concellos e Sousa e o Bispo do Rio de Janeiro, D. José Joaquim MascarenhasCastelo Branco. A disputa entre estas autoridades e a ordem se configurou emmuitas acusações presentes na Carta Relatório de 23 de maio de 1783 enviadapelo Vice-Rei ao Secretário de Estado e Ministro para os domínios ultramarinosde D. Maria I, Martinho de Mello e Castro (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).Nesse documento, visando à anuência Real para uma intervenção na ProvínciaCarmelita Fluminense, esta autoridade Metropolitana faz um longo relato sobreas atividades desses religiosos no Brasil denunciando que sua relaxação emterras coloniais contribuía para a decadência da ordem1. Empenhado em seuintento, D. Luís de Vasconcellos e Sousa descreveu o estado de dissolução morale agitação política dos Carmelitas, demonstrando a presença de certa tradiçãoque necessitava de urgente alteração antes que produzisse consequências de-vastadoras não só para a ordem como também para a Coroa.

Em função de seu cargo e decidido a cumprir as determinações reais, noque tangia à moralização religiosa, o Vice-Rei já denunciara, por mais de uma vez,ao Conselho Ultramarino, o desregramento dos frades do Carmo da Província doRio de Janeiro. Mas a Carta de 15 de novembro de 1783 foi mais específica: alertoupara os problemas decorrentes da reunião dos Vogaes representantes dos conven-tos Carmelitas quando da realização do Capítulo da ordem no convento da cidadedo Rio de Janeiro2, uma vez que a Província sofria, naquele momento, um processode desagregação devido a um confronto interno entre dois partidos adversários.1 O dicionário BLUTEAU (1789) registra o seguinte sentido para o termo relaxação: “fraqueza ou frouxidão,falta de tensão ou tom que tem a fibra ou nervos no estado de saúde; falta de observância do rigor, da Lei”.2 Vogaes eram os frades eleitos da Província Carmelita Fluminense para exercerem o papel de representantesdos conventos nas eleições Capitulares.

Page 159: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 159

Esclarecia que os Vogaes, quando não conseguiam realizar seus inten-tos, de acordo com suas paixões tumultuavam a realização do Capítulo, criandouma situação na qual se respirava confusão e desordem. O próprio Provincial daordem participara ao Bispo D. José Joaquim Mascarenhas Castello Branco aanimosidade reinante entre os frades e os dissabores que poderiam decorrerdestas discordâncias. Assim, de comum acordo com o Bispo, o Vice-Rei interferiuna reunião religiosa não apenas suspendendo o Capítulo, ação que definiu comoum grande serviço a Deus e à Sua Majestade, como também estabeleceu que oProvincial em exercício ficasse interinamente no cargo até uma definitiva resolu-ção de D. Maria I.

Intrigas, desordem, relaxamento da Província eis o “[...] miserável estadoem que se acha uma corporação religiosa que só serve de descrédito à religião,e de peso e mau exemplo ao estado nesta Capitania” (VASCONCELLOS e SOU-SA, 1783). Com tais adjetivos, o Vice-Rei iniciou sua exposição sobre os fatos queculminaram com a decisão de censura ao Capítulo que deveria realizar-se em 10de maio de 1783. Conforme o estabelecido nas Constituições da Ordem Carme-lita, os Vogaes se reuniram para decidir qual frei ocuparia o posto de Provincialpelo triênio seguinte. Com um olhar pouco benevolente, seu relato transformou areunião dos frades em um campo de guerra onde se defrontavam dois exércitos.O primeiro era liderado por Frei Bernardo de Vasconcellos e o segundo, pelo FreiInocêncio do Desterro Barros que, naquele momento, exercia o poder na Provín-cia do Carmo (BENEDETTI FILHO, 1990).

Segundo ele, nos cinquenta anos de hábito, Frei Bernardo de Vasconce-llos amealhara diversos títulos como de Mestre Doutor, Definidor Perpétuo Co-missário do Santo Ofício e ex-Provincial Real. Natural da Capitania do EspíritoSanto era um homem orgulhoso, inquieto e ambicioso. Não se contentou com oProvincialato organizando de tal forma as eleições Capitulares que manipulou aescolha da alta hierarquia da ordem escolhendo frades ignorantes e ambiciosospara postos importantes.

Membro da hierarquia Carmelita, Frei Bernardo tratava os assuntos daordem como se fizesse parte de seus planos particulares de engrandecimentopessoal. Distribuía privilégios a quem não os merecia e desrespeitava gravemen-te as Constituições ao manipular as eleições internas. Além dessas irregularida-des, o Relatório elaborado pelo Vice-Rei denunciava a existência de um ricopecúlio pessoal do religioso fora dos muros conventuais, e a posse intra-clausurade um escravo e dois agregados pardos que exerciam o ofício de alfaiate.O outro líder Carmelita era Frei Inocêncio do Desterro Barros que com trinta anosde hábito acumulou os títulos de Mestre Doutor, ex-Provincial Real Comissário

Page 160: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

160 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

substituto. Natural de Vianna, comandava a alta hierarquia Carmelita construindoseu poder e pecúlio designando para os conventos da Ordem, Priores Rapazesque, por seu despreparo, juventude e conseqüente irreligiosidade, demonstravamde variadas maneiras sua gratidão ao seu benfeitor. Cabe lembrar que, enquantoPriores, tinham acesso à administração dos bens referentes àquele determinadoconvento podendo dividir as rendas desses bens com seus benfeitores:

[...] tais Priores, e do mesmo modo os Fazendeiros incessantemente lhe enviamalguns regalos próprios dos Paizes onde estão situados os conventos, ou da produ-ção das fazendas, que pertençam ao comum, os quais como muitos rios se unem nasua cela, para fazer um mar de abundância em que nada aquele guloso, e a suaquotidiana comitiva; e bem que tais regalos não possam fartar à ambição de semelhanteFrade, são bastantes para dobrar aquela consciência, que bem servida por taismamposteiros, procura firmar-se a fim de os conservar, ou remunerar com algum“Barrete Definitorial”, ou “Capitular”, os seus bons serviços, enviando em seu lugaroutros novos trabalhadores dos seus interesses e dissipadores dos da religião. Ele temna sua cela a mesa farta, para si, para o seu estimado Vencesláu, mulato barbeiro, quetem sido escravo do convento, e ao depois dele dito Frei Inocêncio, foi por estelibertado, e hoje goza na província os mimos, que a lisonja, e o interesse lhe tributam,por ser a mais fácil escada para qualquer Frade subir ao mais alto do coração de quemtudo pode, e tudo dispõe na mesma província; para o moleque do dito Venceslau, paraoutro negro, que também forrou; mas que ainda o acompanha para um Anastácioescravo de Frei João Mariano, para outro negro Anastácio escravo do convento, equase para um pardo forro por nome Isidoro, que foi escravo do convento, e mestre doVenceslau [...] (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).

Como não bastasse o descaso com os princípios básicos da aquisiçãodos privilégios, no caso, mesa farta e inúmeros escravos a seu dispor sustentadospela ordem, esse frade transformou seu poder em uma recorrente troca de favo-res e gentilezas com as pessoas de seu agrado. O relato do Vice-Rei demonstravagrande surpresa com o fato de que frades com a titulação de Mestre Doutores sedeixassem influenciar e até manipular por escravos e libertos que pareciam atuarcom tranquilidade e certa liberdade dentro dos muros do convento.

A julgar pela Carta Relatório, em se tratando de predicados morais, am-bos os frades eram desqualificados. Além disso, os dois líderes disputavam oposto de Provincial com votos irregulares, sobretudo porque haviam sido compra-dos com dinheiro e troca de favores dos Vogaes. Mas havia uma explicação,segundo o discurso bem articulado do Vice-Rei, aquelas monstruosas cabeçaseram fruto de uma situação de descontrole, indisciplina da corporação religiosaque vinha se arrastando desde muito tempo. Como fundamento desta hipótese,

Page 161: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 161

citou uma ocorrência de 1743. Naquele ano, o então Provincial Frei Franciscodas Chagas voltava de uma visita a outros conventos da ordem. Ao chegar à Sededo Rio de Janeiro, foi aprisionado por seus súditos rebelados. Os frades insurretosdepuseram Frei Francisco e elegeram, desrespeitando suas Constituições, FreiFelipe da Madre de Deus para o cargo de Presidente Provincial. O Provincial FreiFrancisco das Chagas ficou ainda por um longo tempo aprisionado e, de acordocom a tradição, foi ameaçado de morte pelos frades.

Frei Francisco das Chagas recorreu então, por meio de seu procurador,Frei Salvador Caetano da Horta, ao Ouvidor Geral João Alves Simões, requerendosua recondução ao antigo cargo, no que foi atendido. Entretanto, os frades rebe-lados não reconheceram a sentença do Ouvidor Geral. Desrespeitaram, dessaforma, não apenas a autoridade eclesiástica de seu antigo Provincial como tam-bém o poder régio. No entender do Vice-Rei D. Luís de Vasconcellos e Sousa,deixava de ser uma situação de insubordinação particular ocorrida em uma or-dem regular: os frades tornaram-se vassalos sediciosos!

O desfecho desse episódio consumou-se com a decisão do GovernadorGomes Freire de Andrade em libertar o Provincial Frei Francisco Chagas quecontinuava sob cativeiro no convento, para o que, recorreu, literalmente, a umaoperação de guerra, cercando o convento com suas tropas. Os frades rebeladosreagiram à sua maneira. Buscaram o Santíssimo Sacramento e ergueram doisaltares; um diante da porta da prisão onde se achava o ex-Provincial e o outro naportaria, de forma que, uma vez exposto o Senhor, a tropa não invadisse o convento.

Simultaneamente, de outro lado do convento, um frade pronunciou afórmula de excomunhão contra a tropa do Governador que aguardava as ordensde invasão. Para libertar Frei Chagas, tornou-se necessário arrombar outras por-tas e muros a fim de que o antigo Provincial pudesse fugir pela janela do cárcereonde se achava. Após a invasão, os frades insurretos saíram com o SantíssimoSacramento em procissão para o convento de Santo Antonio e lá se refugiaramaté quando acharam conveniente, só regressando aos poucos e em pequenosgrupos ao convento do Carmo. Ali, então, se desculparam com o Provincial libertosendo recebidos com toda a afabilidade.

D. Luiz de Vasconcellos e Sousa queixou-se ainda que Frei Chagas re-quereu a punição dos frades rebeldes como assunto particular da Ordem doCarmo, sem, contudo, verificar-se qualquer tipo de castigo por parte das autorida-des religiosas. Sua indignação com o episódio tornou-se mais intensa porque oProvincial Frei Chagas também recorreu ao Rei, D. João V, reivindicando a puni-

Page 162: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

162 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ção dos rebeldes, no que foi atendido3. Todavia, as ordens reais não haviam sidocumpridas pelas autoridades competentes. Dessa forma, elas acabaram por re-ferendar a irregularidade que se estabelecera no Carmo (BENEDETTI FILHO, 1990).

A punição não se concretizou, os abusos continuaram e as autoridadesmetropolitanas mantiveram-se distanciadas das decisões sobre os religiosos. Parao Vice-Rei, essa situação de impunidade originou frades cada vez mais indisciplina-dos e que constantemente desonravam a religião professada. Comprovando estaafirmação, apresentou os acontecimentos ocorridos no ano de 1750 e que abala-ram, uma vez mais, a pretensa tranqüilidade interna do convento do Carmo do Riode Janeiro. Esclareceu que esse novo levante ocorrera por ocasião das eleiçõesque substituiriam o Provincial Frei Francisco Quintanilha, famoso em vida peloirreligiosíssimo governo de nove anos. Para secretário do novo Provincial Frei Ma-nuel Angelo, sucessor de Frei Francisco Quintanilha, foi aceito Frei Inocêncio doDesterro Barros.

Frei Inocêncio tornou-se aos poucos cabeça de um grupo de religiosos,contrapondo-se a outro já citado frade, também famoso pela inobservância religio-sa e que exercia liderança interna no Carmelo, Frei Bernardo de Vasconcelos. FreiInocêncio manipulou as eleições dos Capítulos, elegendo frades incompetentese despreparados, controlando, dessa forma, os bastidores do poder da ordem:

Ainda creio que se achariam testemunhas que presenciaram na fazenda do conven-to da Ilha Grande, chamada Camorim, congregarem-se as escravas mulatas epretas mais vistosas para bailarem à viola, um dos sons mais imodestos e sair oprovincial Frei Inocêncio do Desterro ao campo desafiado por uma delas, aplaudidodos súditos que o acompanharam e que se foram seguindo no baile conforme assuas graduações (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).

Essa situação se repetiu durante a administração do grupo liderado porFrei Bernardo de Vasconcelos, o qual, inclusive, foi eleito Provincial graças aacordos escusos com Frei Inocêncio do Desterro. O discurso do Vice-Rei apon-tou ainda, práticas nas quais os Carmelitas desrespeitavam sua lei maior, ou seja,as Constituições. Pelo Regulamento, cada convento deveria indicar dois partici-pantes: o Prior e seu Sócio (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783, Anexo). Da esco-lha do Sócio participariam pelo menos cinco conventuais (aqueles que possuíamao menos seis meses de residência naquele determinado convento) presididospelo Prior. Para evitar que o Provincial em exercício interferisse na escolha dos3 Em carta de 15 de maio de 1744, endereçada ao Governador e Capitão General da Capitania do Rio deJaneiro, D. João V comunicou que recebera informações de Frei Chagas sobre a conjuração ocorrida noconvento do Carmo, e informes do Governador e do Bispo da Capitania, a partir das quais decidira puniros rebelados (NICHOLSON, 1785-1800).

Page 163: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 163

Sócios e, assim, aumentasse o número de votos a seu favor nos conventos, asConstituições proibiam que se modificasse o número de conventuais nos oitomeses que antecediam o Capítulo. A desobediência a esta norma deveria serpunida com a privação do Ofício, Voz, Lugar e anulação da eleição do Sócio.

As Constituições tinham uma grande preocupação com a função do Só-cio. Ele deveria ser não apenas o acompanhante do Prior, mas, principalmente agircomo fiscal da conduta de seu Superior no decorrer das eleições do Capítulo. OSócio seria o ouvidor das queixas dos frades dos conventos contra o Prior, o Provin-cial ou os Vogaes participantes do Capítulo. Essa questão era tão grave que qual-quer irregularidade anulava a realização das eleições Capitulares. Lembrando es-sas normas, o Vice-Rei já censurara o Capítulo de 1743, quando as eleições dosSócios da Província haviam sido manipuladas pelo Provincial Frei João de SantaTheresa Costa. Citou também outro caso de corrupção moral e manobra eleitoral,perpetrada desta vez pelo Prior do convento de São Paulo, Frei José Xavier que:

[...] além de outros crimes, era compreendido em um público e escandalosoconcubinato intra et extra claustro com uma negra de uma das Fazendas do conven-to que havia forrado; tendo-se conhecido da Visita próxima deste convento, e sepa-rado pelo Visitador daquela cidade para a Vila de Santos a dita Negra por aquelemotivo, como melhor se dirá no seu lugar próprio; e havendo Devassa nesta maté-ria, que tudo o Provincial pretendia engolir para não perder um voto certo, ficaevidente a nulidade do voto do mesmo prior por todas as leis, o do Provincial que oadmitia, e o do Visitador Frei José Pereira de S. Ana que em lugar de procedercontra o que ele mesmo reconheceu culpado, o cobriu com a capa da parcialidade(VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).

Era a manipulação dos valores morais e materiais da ordem nas elei-ções que garantiam, no limite, a manutenção dos privilégios e a vida mundana daalta hierarquia. Dessa forma, a denúncia do Vice-Rei trouxe à luz o alto grau dadegradação política e moral Carmelita, visto que não só desrespeitavam as auto-ridades metropolitanas, mas também descuidavam da manutenção do CultoReligioso, transgredindo as Regras sob as quais juraram viver. Demonstrou, so-bretudo, o alcance da manipulação do poder interno, exercida por elementosperniciosos que precisavam ser punidos a fim de que o prejuízo moral e social daordem e do Estado não fosse maior.

2. A Reforma de 1781:

O embate entre D. Luís de Vasconcellos e os Carmelitas datava de 1779,quando da chegada do Vice-Rei ao Brasil. Logo em 1780, já havia manifestado

Page 164: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

164 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

sua preocupação com a saúde moral da ordem no momento da realização doCapítulo e eleição de Frei João de Santa Thereza Costa para o cargo de Provinci-al 4. Em acordo com o Bispo D. José Castelo Branco determinou uma Reforma naProvíncia Carmelita Fluminense. Na oportunidade, o mencionado religioso foiadvertido sobre a necessidade de reorganização e moralização da Província doCarmo. Aviso inútil, pois, segundo o Vice-Rei, a influência nefasta de Frei Inocên-cio do Desterro, se fizera sentir novamente.

Certamente este frade possuía, em 1780, uma posição fortalecida dentroda ordem capaz de esvaziar as pretensões reformistas do Vice-Rei e do Bispo.Tinha plena ascendência sobre o Provincial Frei João de Santa Thereza Costa, oPrior do convento do Rio de Janeiro Frei João Fiúza e o Mestre dos Noviços e ex-Provincial Frei José Pereira de Santa Ana.

Entretanto, o que o Vice-Rei não documentou na Carta Relatório queelaborou em 1783 era que o próprio Capítulo realizado em 1780 havia se preocu-pado com o Carmo do Rio de Janeiro, tomando medidas que buscavam restabe-lecer a disciplina interna e a moralidade, especialmente com relação ao culto, àobediência às Regras e à administração do patrimônio (Livro Terceiro dos Rela-tórios, 1780, p.12). Por exemplo, destacou-se a necessidade da execução docerimonial das Missas realizadas no primeiro Sábado de cada mês, na qual acomunidade religiosa deveria paramentar-se com suas capas e hábitos comple-tos. Talvez, em razão dos acontecimentos de 1743, proibiram que algum dosfrades, expusessem o Santíssimo Sacramento nas Igrejas.

Também demonstraram preocupação com o excesso de privilégios es-clarecendo, por exemplo, que apesar de os Presidentes terem a responsabilida-de do governo econômico dos conventos delegados aos Priores, nos atos dacomunidade religiosa, não possuíam superioridade alguma. Censuraram tam-bém o recente costume de alguns frades, de cobrarem certa quantia para a rea-lização de qualquer ato da comunidade. O Definitório do Capítulo ordenou, então,que de maneira alguma se pagasse aos frades indiscriminadamente a vela delibra. Essa seria recebida pelo religioso que melhor a merecesse, ao que fossemais digno executando as tarefas na comunidade, nas Igrejas e fora do claustronos enterros (Livro Terceiro dos Relatórios, 1780, p.12 e 14).

O gerenciamento do Patrimônio do Carmo constituía também um itemimportante nas discussões Capitulares, talvez em razão de boatos sobre o interes-4 O Mestre Doutor Fr. João de Santa Thereza Costa era natural do Rio de Janeiro e ocupava o cargo deProvincial quando do início da Reforma. Tinha 41 anos de hábito e era partidário de Fr. Inocêncio doDesterro Barros. Relação de todos os indivíduos de que se compõe a Província do Carmo do Rio deJaneiro em 1783. Livro das Listas de Entradas, 1779/1854, p.2, Arquivo Particular da Ordem, B.H.

Page 165: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 165

se da Coroa na fiscalização desses bens. Assim, o Capítulo de 1780 destacou quea situação dos escravos era preocupante. De acordo com o Definitório, os cativos,abusando da tolerância dos frades fugiam freqüentemente e por um grande espa-ço de tempo. Muitas vezes permaneciam foragidos por todo um triênio, esperan-do que, com a nova eleição dos Prelados, fossem perdoados ao retornar (LivroTerceiro dos Relatórios, 1780, p.15).

Em linhas gerais, as determinações desse ano se voltaram para o esta-belecimento de uma disciplina, economia e otimização dos recursos humanosdisponíveis, preocupações claramente expressas nas minuciosas proposiçõesque abordavam desde as práticas rituais até o tratamento dos escravos: comodeveriam acontecer as Missas Sabatinas Solenes, como os frades presentesestariam paramentados, o lugar dos religiosos nessas cerimônias, as quantiasdestinadas ao vestuário e sustento dos membros da ordem, as normas para aadmissão dos noviços e, também o tratamento que se deveria conferir aos escra-vos foragidos.

Se observado mais atentamente, esse Capítulo criou uma argumentaçãoque permite questionar as informações passadas pelo Vice-Rei à Rainha em suareivindicação por uma Reforma na Província. De outra forma, apesar de confir-mados os cuidados dos frades com assuntos específicos da religião e adminis-tração de seus bens, caberia perguntar: por que em 1783 as mesmas denúnciasabordadas em 1780 ainda persistiam?! É possível imaginar que, apesar das deci-sões do Capítulo de 1780, os problemas disciplinares reincidissem na vida cotidi-ana da ordem porque estavam inscritos na própria história da constituição dosCarmelitas e numa determinada concepção do que deveria ser a vida religiosa nouniverso colonial brasileiro.

Assim, o tema dos privilégios e dos desregramentos foi retomado possi-velmente em razão dos “abusos” cada vez maiores cometidos pelos frades (BLU-TEAU, 1789). A fuga de escravos transformada em ação corriqueira foi lida comoum vestígio do descontrole administrativo dos conventos, por exemplo. Aprovei-tando-se da benevolência dos Priores, os escravos fugiam para gozar curtos perí-odos de liberdade, pois era praxe que os novos administradores perdoassem osfugitivos! A pena determinada em 1780 para essa prática - sua venda - significavaum duro castigo ao escravo. O episódio sugere ainda que ser escravo de umaordem religiosa talvez fosse uma alternativa mais flexível para a escravidão. Apreocupação com a negociação dos escravos fugitivos permite perceber tam-bém a inquietação da alta hierarquia carmelita com a conservação de seu patri-mônio e a fiscalização sobre seus Priores e Presidentes. Possivelmente, as deci-sões disciplinadoras de 1780 significassem não apenas uma tentativa de contro-

Page 166: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

166 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

le dos problemas internos, mas também uma forma de suavizar as notícias sobrea indisciplina Carmelita conhecidas da Coroa evitando uma devassa.

Entretanto, o comportamento Carmelita foi reiteradamente denunciadonas cartas do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcellos e Sousa, desde o início de seumandado em 1779, quando foi informado da existência de um Breve Papal deter-minando uma Reforma do Carmo em Portugal e seus domínios. Provavelmente oVice-Rei tivesse esperança de que esse processo atingisse o Brasil, o que, defato, acabou ocorrendo. Todavia, a Reforma conseguida em 1781 não atendeuseus objetivos uma vez que o Reformador Apostólico Frei José Caetano de Sousa,nomeado pela Santa Sé para a execução das determinações do Breve, foi condes-cendente. Indicou para o cargo de Comissário na Província Carmelita e responsá-vel pela Reforma da corporação ninguém menos do que os frades José Pereira deS. Ana5 e Inocêncio do Desterro Barros, elementos da alta hierarquia carmelita eprofundamente comprometidos com a trajetória de suas irregularidades.

A Carta Relatório esclarece que a Reforma da Província Carmelita Flumi-nense começou em janeiro de 1781 e foi concluída em 1782, o que não significouqualquer ação que alterasse a situação já denunciada. Fugindo das expectativasdo Vice-Rei, o Reformador declarou que a Província do Carmo não se achava emestado de relaxação na real presença de Sua Majestade.

Por outro lado o Comissário Reformador Frei José Pereira de Santa Anaprivilegiou diferentes aspectos, como por exemplo: ordenou que as celas fossemrevistadas e despidas de todos os móveis que parecessem valiosos: como cadei-ras de jacarandá, camas e papeleiras, particularmente a do Provincial considera-da a mais rica de todas. Deixou, como era de praxe, a cargo da administração dosfrades da Província, os sítios, engenhos, escravos e pecúlios pertencentes a al-guns membros da ordem. Estipulou que os escravos particulares dos frades nãoandassem enfeitados e que evitassem cometer escândalos cotidianos na Capelados Terceiros. Finalmente, decretou que os frades se recolhessem para os seusconventos. Mas, suas determinações não foram obedecidas, os frades morado-5 Em Nicholson (1785) conta a biografia de Frei José Pereira de Santa Ana demonstrando uma trajetóriaadequada ao cargo ocupado. Nasceu em 1696 no Rio de Janeiro, professou na Ordem do Carmo e depoisse doutorou em Teologia na Universidade de Coimbra. Foi nomeado pela Santa Sé em 1720 para integraro primeiro Definitório da Província Carmelitana Fluminense, ensinou Teologia e Filosofia no Rio de Janeirosendo admitido como Lente Substituto de Filosofia na Universidade de Coimbra. Era versado em música,foi Presidente do Capítulo Provincial celebrado em Lisboa em 1744 e ocupou o cargo de confessor dosfilhos de D. João V. Entre os anos de 1753 e 1756 foi Prior do Convento do Rio de Janeiro. No período entre1755 e 1758, foi Provincial da Província Portuguesa; de 1758 à 1760 e 1783 à 1784, foi Comissário daOrdem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro. Entre os anos de 1765 e 1768, ocupou o cargo de Provincialda Província Carmelita Fluminense. Foi Mestre de Noviços entre os anos de 1779 e 1780.

Page 167: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 167

res no campos dos Goitacás, onde não tem convento, permaneceram em seussítios ou fazendas, aonde se conservavam pacificamente (VASCONCELLOS ESOUSA, 1783).

Com essas palavras, o Vice-Rei finalizou a exposição sobre a, em suaopinião, pretensa Reforma da Província Carmelita Fluminense. Calcado em seudever de autoridade metropolitana passou a avaliar os episódios narrados. Enten-dia que a relaxação Carmelita originava-se nos abusivos privilégios gozados, emmaior grau pela alta hierarquia, mas que atingiam todos os frades que desobede-ciam as Constituições da Ordem se mantendo ociosos. Muitos ex-Provinciaisconsideravam-se, sem razão, merecedores de prerrogativas e isenções do OfícioDivino e serviços referentes à comunidade. O problema se agravava, pois desres-peitavam todas as leis eclesiásticas e civis: cultivavam a ociosidade e tinham porobjetivo amealhar fortunas para usufruto particular, lesando, tanto o culto e amoral quanto os bens aos quais a Coroa tinha direito. Isso configurava uma imo-ralidade e um abuso.

Nesse processo os Provinciais transformaram-se nos maiores interessa-dos na conservação da imoralidade, pois dessa forma preservavam, além de seusprivilégios, o apoio de seus colaboradores, particularmente nas decisões capitula-res. Em que pese a ira do Vice-Rei, importa observar que da maneira como osacordos internos ocorriam, se estabelecia um atalho na aquisição de títulos nahierarquia Carmelita. Tratava-se das patentes de ex-Provinciais Titulares, de Mes-tres, Presentados de Púlpito com voto em Capítulo, Definidores Perpétuos com votoem Capítulo e Definitório. Tais patentes não constavam das Constituições, mas setransformavam em pontos-chave no controle cotidiano do poder interno à ordem.Isso ocorria porque geralmente os líderes de cada parcialidade utilizavam essesvotos que se tornavam preciosos nas eleições realizadas durante um Capítulo.

Contrariando qualquer expectativa de reforma dessa situação, o Vice-Reiesclareceu que o próprio Reformador Apostólico compactuou com a desordemdemonstrando a conivência da alta hierarquia com o total descontrole das fun-ções internas, o que podia ser testemunhado pelo abandono do coro, no privilégioque muitos possuíam de saírem do convento sem qualquer autorização superior(podendo levar consigo alguns frades); no descaso crescente com as obrigaçõesreligiosas e, sobretudo, na negociação de cargos mais elevados. A possibilidadede adquirir tais posições desestimulava os frades jovens a cumprir as etapas dacarreira eclesiástica via formação intelectual, e os impelia a desenvolver ativida-des onde pudessem acumular um pecúlio para com ele negociar cargos maiselevados, os quais ofereciam oportunidades compensadoras no sentido de au-mentar a riqueza pessoal.

Page 168: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

168 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Esse incentivo que se criara na hierarquia Carmelita de engrandecimen-to material e individual se refletia no cotidiano do convento. De um lado, ficavamno coro cerca de seis frades (inclusive os novatos coristas), o que destoava dadespensa e do refeitório do mesmo convento, que produzia porções para cercade 70 frades. A ordem possuía grandes gastos na manutenção de um corpo religi-oso que não lhe dava nenhum retorno, fosse com trabalhos intelectuais, fosse aotrabalho apostólico frente à sociedade leiga. O descontrole e a corrupção queatingiam a hierarquia de cima a baixo resultavam na deserção cada vez maiordas obrigações conventuais e no progressivo afastamento do cotidiano leigo.Como poderiam frades despreparados e mais interessados no pecúlio materialdo que no espírito prestar algum serviço à população colonial?

Respaldando as opiniões do Vice-Rei, estavam alguns membros do cle-ro secular e regular, decididos a concretizar as instruções do Concílio de Trentoe afinados com a orientação de reformar e moralizar a Igreja instaurada no perío-do pombalino e mantida por D. Maria I. Foi caso do Bispo da Diocese do Rio deJaneiro, D. José Joaquim de Mascarenhas Castelo Branco, e do frade CarmelitaFrei Thomé da Madre de Deus Coutinho, que, concordando com o Vice-Rei,censuraram a “relaxação” e “abusos” dos membros da Ordem.

O empenho moralizador do Bispo teve início em 1775, quando sucedeuD. Frei Antonio do Desterro, falecido no ano anterior. Decidido a melhorar o nívelcultural do clero no Rio de Janeiro, D. José convocou todos os religiosos (secula-res e regulares) para um exame de teologia moral, decisão que não chegou a sercumprida por todos, especialmente pelos Carmelitas que, alegando privilégios eisenções, se recusaram a fazer o exame. Diante da resistência, o Bispo Reforma-dor: proibiu oficialmente aos religiosos pregar nas igrejas da diocese sob pena deexcomunhão, iniciou visitas pastorais e criou conferências obrigatórias para oclero, ministradas pelos frades Franciscanos da Província da Imaculada Concei-ção, com quem tinha um bom relacionamento. Em 1791, criou aulas públicas deRetórica, Filosofia, Geografia, Cosmologia e História e também as confiou aosFranciscanos do convento de Santo Antonio; e fez ensinar e cultivar o Cantochãonos três seminários da Diocese, segundo a orientação estabelecida no Concíliode Trento (BENEDETTI FILHO, 1990).

Os Carmelitas, por sua vez, procuravam fugir ao controle de D. José Joa-quim de Mascarenhas, recorrendo a seu desafeto e concorrente, o Bispo daCapitania de São Paulo Frei Manuel da Ressurreição6, uma autoridade secular6 O Bispo da Capitania de São Paulo Frei Manuel da Ressurreição ocupou o cargo entre os anos de 1772e 1789. Era Franciscano, mas mantinha um relacionamento amistoso e muito próximo com os PrioresCarmelitas discriminados pelo bispo do Rio de Janeiro.

Page 169: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 169

bem menos rigorosa em assuntos disciplinares e que mantinha bom relaciona-mento com os Carmelitas do Rio de Janeiro. Os frades e Noviços Carmelitasfaltosos com a disciplina conventual se transferiam para Casas de São Paulo e,pouco depois já estavam celebrando o Santo Sacrifício da Missa na igreja doCarmo do Rio de Janeiro, tão ignorantes e tão indignos como dantes eram (VAS-CONCELLOS E SOUSA, 1783). Portanto, a imoralidade e despreparo dos fradesCarmelitas tinha também a conivência de alguns membros da alta hierarquia doclero secular ou de funcionários da Coroa, fato que tornava a situação mais grave,pois lhe conferia um sentido político (BENEDETTI FILHO, 1990). Para o Vice-Rei, tais artimanhas demonstravam a corrupção de representantes da autoridademetropolitana, uma vez que o clero secular, em razão do regime de padroado, erasignatário da administração colonial. O Bispo em questão contribuía para a imo-ralidade do Carmo e para o descaso dos frades na assistência à sociedade,infringindo sua tarefa missionária na construção da Colônia.

Enfatizando suas informações sobre o corrupto Bispo, o Vice-Rei eviden-ciava o clima de irreligiosidade vigente também na Capitania de São Paulo. Epara ilustrar o fato, comentou o caso de dois religiosos faltosos que haviam sidoenviados aos conventos de São Paulo e Santos para serem punidos. Tratava-sedos Freis José Alves e João de Santa Bárbara que, após furtivas saídas noturnasdo convento do Rio de Janeiro, sob o disfarce de marinheiros, foram surpreendi-dos pelo Prior e encarcerados em uma cela. Longe de se curvarem ao corretivodo qual eram merecedores, fugiram pelo telhado procurando refúgio no mosteirode São Bento. Quando finalmente se apresentaram, foram embarcados para Santose São Paulo.

Temendo que em São Paulo sua prisão tivesse continuidade, antes mes-mo de recolher-se ao convento, Frei João de Santa Bárbara refugiou-se junto aoBispo da Diocese de São Paulo. O Bispo, além de livrá-lo do castigo, conseguiudo Provincial que o referido Frei fosse admitido ao estudo de Filosofia e, logoapós, ordenado como subdiácono. Pouco tempo depois, o Prior do convento deSão Paulo permitiu que esse frade se licenciasse para a fazenda de Itacica como fim de tratar de umas sarnas. Naquele ano de 1783, três dias antes da festa dePentecostes, Frei João de Santa Bárbara, pretendendo voltar à Itacica, pediulicença ao Presidente do convento. Negado o seu pedido, não levou a proibiçãoem conta e fugiu para a fazenda, retornando somente após os dias santos. E, umavez mais, temendo as conseqüências de seus atos, buscou a proteção do Bispoque interferiu nas regras conventuais e conseguiu que o absolvessem.

Já o outro frade em questão, José Alves, ficara em Santos onde “[...] entroua continuar na sua dissolução e libertinagem até intra clausura, fazendo além

Page 170: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

170 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

disso freqüentíssimas e inumeráveis saídas noturnas para entreter-se com assuas devassidões[...]” (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783). Finalmente, suas saí-das furtivas vieram a público através do depoimento do escravo encarregado deabrir a porta do convento todas as noites para seus passeios noturnos e que porum descuido nesta tarefa foi ameaçado pelo colérico frei passeador (VASCON-CELLOS E SOUSA, 1783). Ainda que tivesse conhecimento desse fato, o Bispo deSão Paulo quis reunir no convento Carmelita desta Vila, os frades João de SantaBárbara e José Alves para o que requisitou esse favor ao Provincial da Ordem. Noentanto, Frei José Alves não esperou a decisão e fugiu de Santos para São Paulo,onde também passou a freqüentar o curso de Filosofia.

Os casos relatados denotam que os religiosos do Carmo, em conivênciacom membros do clero secular e mesmo com outros regulares, contrariando asRegras da Ordem, tinham como preocupação maior a acumulação e o usufrutode bens materiais, assim como dos privilégios da vida laica, colocando a cate-quese e o serviço ao público em um segundo plano. Esse comportamento erauma prática corriqueira e aceita pelo clero e pela sociedade até então. O cursode Filosofia que servia tanto à formação dos frades quanto ao ensino dos leigosparecia mais um refúgio para os indisciplinados do que uma tarefa bem funda-mentada de auxílio à instrução da sociedade local. No relato do Vice-Rei, ficouclaro que o Estado e a ordem religiosa possuíam conceitos conflitantes sobre osserviços a serem prestados à comunidade. Esta postura o púlpito e o confessionárioabandonados. Nos momentos solenes, a Quaresma, por exemplo, eram raros osfrades paramentados presentes nas cerimônias. O socorro espiritual das comuni-dades que cercavam os muros do convento poderia ser considerado inexistente; eo trabalho de assistência (religiosa e educacional), a rigor uma obrigação, transfor-mava-se em um favor a ser concedido de acordo com a disposição dos religiososque dele se esquivavam escudando-se em seus inúmeros privilégios.

Esse foi o caso de Frei Anastácio Furtado que era Mestre Doutor emFilosofia e em 1783 ocupava o cargo de Secretário da Província. Possuía 30 anosde hábito, ao longo dos quais angariara a fama de frade relaxadíssimo. Haviachegado de Paris por volta de 1771, quando foi escolhido por Frei Bernardo deVasconcellos para assumir uma cadeira de Filosofia. Porém, nunca finalizou oscursos que deveria ministrar, pois se ausentava freqüentemente, deixando os en-cargos e as apostilas do Curso a um estudante leigo que ditava a lição aos outrosalunos. Havia o agravante de que os estudantes eram seculares (membros dacomunidade leiga). Como dedicado Fazendeiro, Frei Anastácio dava pouca as-sistência ao convento, aparecendo apenas quando necessitava tratar dos negóci-os de seu engenho ou habitar por poucos dias sua cela para não perder sua

Page 171: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 171

posse. Como garantia desses privilégios, mandava anualmente a prova do açúcarao Provincial daquele tempo e a outros amigos de préstimo. Contudo, no triênioem que assumiu como Provincial Frei Antonio das Chagas Terra, Frei Anastáciofoi denunciado como responsável pela morte de um escravo de sua propriedadeque não resistiu ao castigo dos açoites. Porém, o caso foi abafado:

Contudo, ele confess(ou) com efeito, que o Negro morrera no castigo, porquantoandando fugido, apanhado que foi, o mandara amarrar, e açoutar; mas que não pelasevícia dos açoutes, sim por vir o tal Negro já lá do mato com os poucos açoutes, quecomeçavam a dar-se-lhe, motivo porque não era Réu do homicídio, queindevidamente se lhe havia imputado (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).

Em 1783, ainda exercendo o cargo de Secretário, Frei Anastácio passoua ausentar-se menos do convento, mas de maneira alguma abandonou seu pe-cúlio. Assumiu novamente o curso de Filosofia, mas, mesmo possuindo seustítulos de mestre francês, o resultado dessa tarefa foi ainda pior em razão de seudesinteresse. O exemplo de Frei Anastácio é um testemunho da vivência internada ordem, em flagrante ignorância das Regras, porém afinada com as circuns-tâncias históricas que haviam estabelecido a corporação no Brasil e praticamen-te incorporada pela sociedade colonial até então.

Se essa situação era recorrente nas cidades, o que não ocorreria nasfazendas, indagou o Vice-Rei, onde os frades administradores pareciam tanto oumais despreparados do que os conventuais? Onde se dedicavam exclusivamen-te a tarefas laicas, com os rendimentos das quais pagavam a seus superiores adispensa dos votos e proviam, luxuosamente, suas despesas pessoais das quaisa ordem não se encarregava.

Sua narrativa chega então a uma séria acusação: o patrimônio da Ordemdos Carmelitas se desmantelava em função do constante desmazelo e descasoadministrativo dos frades, Priores, fazendeiros, Provinciais e da apropriação pessoalque esse patrimônio sofria em benefício de seus próprios membros. O sinal maisevidente dessa dissipação residia na dívida encabeçada pelo convento do Rio deJaneiro e que chegava a 26.675$427 réis. A receber, a ordem possuía apenas2.536$000 réis. Essa dívida crescia diariamente com as despesas do convento paraas refeições e tratamento dos frades enfermos. E tais gastos seriam ainda maioresse a Província fosse onerada diretamente com as necessidades pessoais de seusmembros. Dessa forma, era usual que os frades doentes recebessem a assistênciaem dinheiro para que, em particular, cuidassem de seu tratamento e alimentação.Caso o dito frade não possuísse escravos, amigos ou parentes, ficava entregue àprópria sorte, dada a total indiferença dos prelados e subalternos.

Page 172: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

172 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Finalizando seu relato, D. Luís de Vasconcellos faz um levantamento ge-ral dos bens da Província do Carmo, estabelecendo o contraste, do ponto de vistado Estado, entre o potencial da corporação e seu péssimo aproveitamento. Emsua rápida avaliação, a ordem possuía, naquele ano de 1783, seis conventos, umhospício e vinte e oito fazendas, que eram classificadas como excessivamentegrandes, localizadas em excelentes terras e possuindo a seus serviços cerca de735 escravos. Havia também cerca de 300 escravos entre os que serviam aosconventos e os pertencentes como particulares aos frades. Só ao convento do Riode Janeiro pertenciam nove fazendas, setenta e duas moradas de casas, alémdas inúmeras esmolas, enterros, ofícios. Os rendimentos da Ordem Terceira che-gavam a alcançar a soma de 5.000$000 réis (VASCONCELLOS E SOUSA, 1783).

A única possível salvação para a Ordem do Carmo observada pelo Vice-Rei era uma profunda Reforma que apartasse do corpo da instituição os fradesfaltosos, insubordinados e corruptos transformando-a em uma corporação comhábitos mais austeros, que recordasse aos seus membros a importância dosvotos professados, suas obrigações da vida em comum e sua função social. Issoseria possível se os frades não precisassem mais se ocupar da administração dopatrimônio Carmelita.

Em termos administrativos, pode-se considerar que, apesar de ser umrepresentante da política que derrubou o Marquês de Pombal durante o Reinadode D. Maria I, a orientação colonial executada pelo Vice-Rei D. Luís de Vasconce-llos e Sousa e pelo Bispo D. José de Mascarenhas Castelo Branco deu continui-dade ao trabalho empreendido pelo projeto pombalino, ainda presente na admi-nistração do Vice-Rei Marquês do Lavradio, particularmente no que diz respeitoao tratamento dado às ordens religiosas. Visando reforçar o poder da Coroa,privilegiou a atuação do clero secular e sua hierarquia (que possuía uma depen-dência declarada por meio da política regalista) em detrimento do clero regular,que se apresentava autônomo, rico e manipulador do saber e do espírito tanto naMetrópole quanto nas Colônias. Durante o Reinado de D. Maria I, as orientaçõespombalinas sobre as colônias praticamente permaneceram nos dois vice-reina-dos que se seguiram à queda do ministro de D. José I (ALTOÉ, 1993).

O empenho de D. Luís de Vasconcellos e Sousa em moralizar o cleroRegular, em especial a Província Carmelita Fluminense, se explica também pelapreocupação com a formação de súditos leais à coroa portuguesa, que apren-dessem seus deveres através da cultura e principalmente da religião européia.Essa era a função da Igreja no Brasil Colônia, e era justamente essa tarefa que osCarmelitas da Província Fluminense se negavam realizar, mais preocupados comsuas necessidades particulares do que com o Estado português.

Page 173: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 173

E por que deveriam se preocupar, visto que eram autossuficientes e pos-suíam demasiado prestígio junto à Coroa? Nesse sentido, o relato do Vice-Rei foieficiente. Demonstrou que os Carmelitas já não serviam aos fins metropolitanos,e que não eram mais fiéis colaboradores; pelo contrário, seu desregramentoprejudicava o bom andamento da Religião e a segurança pública em terras colo-niais. Assim, procurava afastar qualquer suspeita de que a Carta Relatório fossemotivada por vingança ou outros interesses pessoais, acenando com a possibilida-de de o Estado se apropriar de uma instituição poderosa e rica como a Carmelita einstrumentalizá-la. Nessa tarefa, o Estado Secular não atuava separadamente daIgreja, pois o Bispo Diocesano do Rio de Janeiro assim como alguns membros deoutras ordens e alguns Carmelitas compartilhavam das opiniões do Vice-Rei sobrea Província do Carmo. Ao descrever a ineficácia da Reforma encetada pelos própri-os Carmelitas (como a ocorrida em 1781), D. Luís de Vasconcellos e Sousa aberta-mente sugeriu que uma verdadeira Reforma só poderia ser obtida através de umaintervenção na administração da Ordem. Ela deveria ser conduzida pelo Estado eexecutada pelo clero secular, certamente um súdito mais confiável.

A articulação até aqui descrita, finalmente surtiu efeito originando a maisdrástica e inédita reforma pela qual uma Ordem Religiosa passou no Brasil. UmBreve de Reforma da Província Carmelita Fluminense, emitido em 20 de julho de1784 pelo Arcebispo de Tyro, de comum acordo com a Rainha, colocou o Bispodo Rio de Janeiro, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, nocargo de Visitador e Reformador dos Carmelitas. No dia 16 de fevereiro de 1785,o Bispo acompanhado de seu secretário, do Vigário Geral, do Escrivão do Conten-cioso, do primeiro oficial da Câmara Eclesiástica, do Meirinho geral, do Desembar-gador Ouvidor do Crime, Escrivão, Oficiais de Justiça, Alcaides e Meirinhos chegouàs portas do convento. Dando apoio a esse grupo de cerca de quarenta pessoas,havia um piquete de Cavalaria posto sobre as armas, e o Regimento de Bragançaavisado pelas duas autoridades da Província (LISBOA, 1834-1835).

Enquanto se agrupavam, de um lado os frades no pátio do convento e deoutro o povo fora dos muros, o Bispo, mandou que os religiosos tomassem suascapas e se reunissem na sala onde se realizavam os Capítulos. Ao término daleitura do Breve de Reforma, o Bispo indagou se algum dos religiosos presentesse opunha às ordens da Rainha. Os frades garantiram sua obediência e logoapós, o Provincial assinou juntamente com quatro Definidores sua sujeição, en-tregando simultaneamente o selo da Província e sua jurisdição ao Reformador.Os frades então entregaram as chaves de suas celas.

A invasão do convento com o apoio da cavalaria e finalmente a entregadas chaves são atos simbólicos que demonstram o que politicamente ocorreu, ou

Page 174: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

174 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

seja, tanto a Santa Sé quanto o Estado Secular invadiram todos os espaços daProvíncia Carmelita Fluminense. A partir de então, um Bispo pertencente ao clerosecular passava a ter sob sua jurisdição toda a organização privada da Ordem, e,mais do que isso, podia alterar da forma que julgasse conveniente o cotidiano ecostumes daquela organização que havia feito de sua autonomia frente ao Estadoe à Igreja o ponto de apoio fundamental de sua sobrevivência nas terras coloniais.Como resultado, dos 141 religiosos presentes em 1785, apenas 49 sobreviveramao processo (MOLINA, 1998). Depois da intervenção, a Ordem se transformousubstancialmente para poder sobreviver, mas nunca mais retomou o desempe-nho desenvolvido no período colonial.

MOLINA, Sandra Rita. Among rings and cassocks: The advancement of the state inthe Carmelite Province of Rio de Janeiro, during the transition from the eighteenthto the nineteenth century. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.8, n.1 e n.2., 2012, pp. X-X.

Abstract: Using sources of information from inside the Calced Carmelite Order inthe Fluminense Province, this paper aims to review documents published in theRevista Trimensal do Instituto Histórico do Rio de Janeiro in 1888 (Three-monthlyJournal of the Historical Institute in Rio de Janeiro), which dealt with the conflictbetween the Bishop of Rio de Janeiro, the Viceroy and the Fluminense CarmeliteProvince in the late 18th century.

KEY WORDS: Brazilian history; Catholic Church.

Referências BibliográficasALMEIDA, F. História da Igreja em Portugal. Vol. I, Coimbra, 1926.ALTOÉ, V. “O Altar e o Trono”- Um Mapeamento das Idéias Políticas e dos Confli-tos Igreja/Estado no Brasil (1840-1889). Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, 1993.BENEDETTI FILHO, F. A Reforma da Província Carmelita Fluminense (1785-1800). São Paulo, Dissertação de Mestrado, USP, 1990.BLUTEAU, P. R. Dicionário da Língua Portuguesa. Edição corrigida por Anto-nio Morais, Lisboa: Tip. Régia, 1789.BOSCHI, C.C. Os Leigos e o Poder. Irmandades Leigas e Política Colonizadoraem Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, Col. Ensaios 116, 1986.

Page 175: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 175

BOXER, C. R.. A Idade de Ouro do Brasil, Dores de Crescimento de uma Soci-edade Colonial. 2 ed., São Paulo: Brasiliana/Ed. Nacional, Vol. 341, 1969.BRUNO, E. S. Histórias e Tradições da Cidade de São Paulo, Vol.I, São Paulo:Editora Hucitec, 1984.CARNAXIDE, Visconde de. O Brasil na Administração Pombalina. São Paulo:Edições Brasiliana, Vol. 192, 1979.Dicionário da Língua Portuguesa. Edição corrigida por Antonio Morais, Lis-boa: Tip. Régia, 1789.HOLANDA, S. B.. A Época Colonial, In: Administração, Economia e Sociedade,História Geral da Civilização Brasileira, Tomo I, Volume II, Difel, São Paulo, 1960.LISBOA, B. S. Annaes do Rio de Janeiro com a História Civil e Eclesiástica,até a Chegada de El Rei D. João VI, Rio de Janeiro, Vol. 7, 1834-1835.MAXWELL, K. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Ed. Paze Terra, 1997.MIRANDA, T. C. P. R. Ervas de Ruim Qualidade. A Expulsão da Companhia deJesus e a Aliança Anglo-Portuguesa: 1750-1763. São Paulo: USP, Dissertação deMestrado, 1991.MOLINA, S. R. Des(obediência), barganha e confronto: a luta da ProvínciaCarmelita Fluminense pela sobrevivência (1780/1836). Dissertação (Mestradoem História Social) - Unicamp, Campinas, 1998.

Documentos do Arquivo Particular da Ordem, Belo Horizonte.Carta do Vice-Rei D. Luís de Vasconcellos e Sousa onde se mostra como eramilegítimos alguns Vogaes do Capítulo do Carmo da Província do Rio de Janeiroque se pretendia celebrar em 10 de maio de 1783.Livro Terceiro dos Relatórios dos Capítulos Provinciais e Congregações Definito-riais da Província Carmelita Fluminense, 22 de Abril de 1780, p.12.Livro das Listas de Entradas, Tomadas de Hábito e Profissões dos anos de 1779/1854, p.2.NICHOLSON, Frei Alberto. Compilação. Compilação feita sobre a Reforma doCarmo entre os anos de 1785-1800.

Page 176: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

176 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 177: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 177

A TRAJETÓRIA DA ESCRITA BIOGRÁFICA E SUASPROBLEMÁTICAS AO LONGO DA HISTÓRIA

Juliana Aparecida LAVEZO*

RESUMO: O presente artigo pretende analisar a biografia ao longo da História,dos seus primórdios aos dias atuais, a fim de compreender o percurso pelo qualela passou e as transformações ocorridas neste gênero. A biografia adquiriu vári-as nuances e moldes no decorrer dos séculos e transformou-se assim, em umgênero com várias implicações e problemáticas que também buscou-se discutirneste trabalho. Sendo assim, para a realização deste trabalho selecionou-se umabibliografia específica acerca do gênero biográfico e suas problemáticas, visan-do uma contribuição para a historiografia atual.

PALAVRAS-CHAVES: Biografia.História.Vida

Introdução

O recorde editorial de publicações de biografias nos revela cada vezmais um interesse do público em ler sobre a vida alheia - uma curiosidade quefomenta o mercado editorial. Mais do que demonstrar o interesse de leigos, abiografia se apresenta como um gênero em ascensão, que enche as prateleirasdas livrarias e para a qual também os acadêmicos – de jornalistas a historiadores– têm se voltado. A biografia não se trata, porém, de um gênero recente. Como sesabe, a biografia se faz presente já na Antiguidade Clássica e se distinguia dahistória, dita verdadeira. Plutarco já diria que escrevia vidas e não história, poisnesse período se tinha concepções diferentes entre as duas.

A biografia é um gênero singular, à parte, que desperta paixões por partede biógrafos e leitores. No presente artigo pode-se percorrer pela trilha que ogênero traçou ao longo dos anos e entender as várias visões que se tinha sobreele. De Historia Magistrae à contemplação dos grandes homens, a biografia ser-viu como modelo a ser seguido ou evitado, mostrou vidas exemplares e tambéma vida dos que não tiveram voz nem vez na história, narrou grandes feitos e tam-bém evidenciou o sagrado. Enfim, nas linhas que se seguem busca-se analisar atrajetória da biografia e compreender suas implicações e os desafios postos aos* Bacharela/Licenciada em História pela UNESP de Franca/SP. Graduanda em Pedagogia pela UNESP/UNIVESP de Jaboticabal/SP. Mestranda em História Social pela USP/SP.

Page 178: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

178 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

biógrafos. Entende-se que tal gênero não possui uma história, como comentaSchmidt (2000), mas objetiva-se analisar o gênero enquanto narrativa singular, oumelhor, de como a escrita de vidas foi se configurando ao longo do tempo. Taisconfigurações estão repletas de características de sua época, transportada dobiógrafo para o sujeito biografado, incluindo modelos, ações e feitos ditos comocorretos.

Alvo de críticas, vista durante muito tempo como modelo de história tradi-cional, relegada às enciclopédias e dicionários, a biografia hoje ganha uma novaroupagem. Desde meados do século XX, sob influência da Nova História France-sa e com o advento da Psicanálise, o indivíduo se tornou passível de estudos esujeito destes. Alguns historiadores mencionam que a biografia “retorna” por con-ta do advento da história política. Olhar a história através de uma vida singular setornou recorrente no meio acadêmico, no qual cada vez mais jovens historiadoresse aventuram na difícil tarefa de escrever uma vida. A “volta” de um gênero jáantigo também é discutida nesse projeto, demonstrando as novas formataçõesem que ele se enquadra.

No entanto, algumas problemáticas tornam a biografia um tanto quantopeculiar. Este artigo reporta-se a algumas delas e evidencia ser impossível abor-dá-las exaustivamente aqui, porém, de modo sucinto, fez-se um esboço de algu-mas das precauções a serem tomadas por parte do biógrafo. Temas como arelação indivíduo-sociedade, a narrativa, a temporalidade, a subjetividade, a me-mória, etc., se apresentam aqui enquanto componentes necessários ao entendi-mento do gênero biográfico.

1. A trajetória do gênero biográfico.

A biografia é um gênero textual conhecido por muitos e que vem ganhan-do espaço nas prateleiras das livrarias e bibliotecas do mundo todo. No entanto,não se trata de um gênero recente, a curiosidade sobre a vida alheia também sefez presente em outros tempos e em outros mais longínquos, figurou-se como agrande narrativa dos heróis. Enfim, o debate acerca da biografia não é recente,ele remonta à Antiguidade. A separação entre biografia e História, segundo Levi-llain (2003), é uma herança na historiografia grega, que situava, em polos distin-tos, história coletiva e individual. Entre os antigos, Políbio insistia na necessidadede distinguir biografia e História, procurou insistentemente definir seu método,preocupava-se com a verdade e considerava que os historiadores deveriam evitara dramatização na narrativa tão comum no teatro trágico (LORIGA, 1998, p.228).

Posteriormente, Marx e Braudel percorreram trajetórias individuais a fim

Page 179: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 179

de análises macro orientadas, na busca por entender os processos sociais e nãoas histórias de vida, como se poderia esperar.

Acerca da herança grega da historiografia da qual temos acesso e noque se refere à tentativa de distinguir a verdadeira História, a biografia estarialigada ao panegírico, enquanto a História se propunha a dizer a verdade. Deacordo com Levillain (2003):

História e biografia divergiam aliás para os gregos em seu próprio modo de expres-são: narrativo para a História destinada a mostrar a mudança; descritivo para abiografia dedicada a celebrar ou a estudar a natureza do homem, tarefa que aHistória de bom grado lhe deixava (LEVILLAIN, 2003, p. 145).

A biografia se prestaria ao papel de narrar fatos individuais, enquanto aHistória trataria da história da nação ou meramente da narração dos fatos. Paraos gregos, a distinção era clara m seu próprio modo de expressão: o modo narra-tivo para a História que se dedicaria a mostrar a mudança, enquanto o descritivopara a biografia se dedicaria a celebrar ou estudar a natureza do homem (LEVI-LLAIN, 2003, p.145). Dosse (2005) menciona que a biografia na Antiguidade seprestou ao discurso das virtudes e serviu como modelo moral edificante, queexercia a função de educar e transmitir valores às gerações futuras. Isócrates e,posteriormente, Xenofonte, tornam-se pioneiros em escritos biográficos cujo ob-jetivo é relatar a vida política de suas personagens. A biografia à moda de Xenofon-te é parte da tradição que consideramos como Memoráveis. “A biografia não cortao cordão umbilical que a liga ao imaginário, contrariamente ao gênero histórico.”(DOSSE, 2005, p. 125). A capacidade de invenção, portanto, também era requisi-tada entre os biógrafos antigos.

A linha divisória entre verdade e imaginação nunca é o critério pertinente nesse tipode tentativa biográfica, e o gênero “encomiástico”, pelo qual o interesse biográfico semanifesta, cede espaço a fatos autênticos tanto quanto a relatos míticos ou lendários.Na ordem das disciplinas do saber, a biografia, sempre presa aos acasos dosdestinos singulares, é então um gênero considerado mais popular que o histórico,este em fase inicial (DOSSE, 2005, p. 125-126).

A biografia também se apresenta em outros moldes como a hagiografia,escrita da vida de santos que, segundo Certeau (1975), é, a rigor, o discurso dasvirtudes, aproximando-se do maravilhoso e do extraordinário, mas apenas en-quanto eles são signos. Para Dosse (2005), esse gênero literário privilegia asencarnações humanas do sagrado e busca torná-las exemplares ao resto dahumanidade. Nesse discurso, a individualidade conta menos que a personagem,“os mesmos traços ou os mesmos episódios passam de um nome próprio a outro

Page 180: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

180 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

[...] mais do que o nome próprio, importa o modelo que resulta desta ‘tergiversa-ção’.” (CERTEAU, 1975, p. 272). Na hagiografia, portanto, a vida de santos não sereferem ao que aconteceu, mas ao que se faz exemplar no momento de suaredação. (DOSSE, 2005, p. 138)

Sobre a distinção de biografia e hagiografia, Certeau (1975) salienta:Enquanto que a biografia visa colocar uma evolução e, portanto, as diferenças, ahagiografia postula que tudo é dado na origem com uma “vocação”, com uma“eleição” ou como nas vidas da Antiguidade, com um ethos inicial. A história é, então,a epifania progressiva deste dado, como se ela fosse também a história das relaçõesentre princípio gerador do texto e suas manifestações de superfície [...] Do santoadulto remonta-se à infância na qual já se reconhece a efígie póstuma. O santo éaquele que não perde nada do que recebeu (CERTEAU, 1975, p. 273).

O discurso hagiográfico é, portanto, o discurso das virtudes, como jámencionado acima, e esta característica é o que recuperamos da vida dos heróisantigos, apenas se difere por conta de sua versão miraculosa, que “depende deuma lógica alheia a este mundo.” (DOSSE, 2005, p. 139). As hagiografias, segun-do Certeau (1975), procuram investigar a concepção de mundo do hagiógrafo aoconceber seus escritos e não propriamente a vida do santo em si. A combinaçãodos escritos dos atos e dos lugares demonstram uma estrutura própria, que nãobusca apenas analisar e narrar o passado, mas nos apresenta como “testemunhode uma travessia experiencial”, a da relação do sujeito canonizado com o divino.A fim de comparar a hagiografia e a biografia:

A hagiografia enfatiza as descrições espaciais de lugares sagrados para enraizar afigura santa que é seu espírito protetor. Só como meio utiliza a narração. Já abiografia ressalta a narração, o percurso da existência no tempo, e atribui à descri-ção de estados de alma, retratos e balanço das ações ou obras um papel secundá-rio, para animar a lógica narrativa temporal (DOSSE, 2005, p. 138).

Certeau (1975) menciona que, na hagiografia, a trajetória do santo, quandodescrita, apresenta-se com origem nobre, o que seria para o autor um sintoma dalei que organiza a vida do santo. “Enquanto que a biografia visa colocar umaevolução e, portanto, as diferenças, a hagiografia postula que tudo é dado naorigem como uma ‘vocação’, com uma ‘eleição’ ou como vidas na Antiguidade.”(CERTEAU, 1975, p.273)

As mudanças do gênero biográfico começam a ser sentidas do século XIII aoXV e as hagiografias dão espaço às biografias cavalheirescas que, em geral, eramobras feitas sob encomenda, que tentavam celebrar as proezas militares e um estadode espírito dos cavaleiros, revelando suas histórias através de carreiras singulares e

Page 181: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 181

exemplares. “Essas biografias resultam de um processo de laicização tanto quanto detempo.” (DOSSE, 2005, p. 152). O cerne de sua narrativa é a exemplificação e aafirmação da autoconsciência de um grupo social, ela permanece ao gênero épico einspira-se na literatura, surge de uma tensão entre história e ficção.

Essas biografias inauguram um processo de inserção do individualismonuma sociedade ainda estruturada por fortes instituições e de rituais intangíveis.(DOSSE, 2005, p. 153) Entretanto, algumas mudanças se fazem notáveis duranteo século XVI no que se refere à biografia, e, neste caso, o movimento de individu-alização se amplia e busca-se o heroísmo antigo. “Esse período se afasta dasbiografias cavaleirescas e das hagiografias para consagrar-se à paixão pelasbiografias antigas.” (DOSSE, 2005, p. 155) Elas se diferem, no entanto, do queentendemos como biografias, pois frequentemente ignoram a cronologia, nãodiscutem o desenvolvimento da personalidade do sujeito e introduzem materiaisaparentemente irrelevantes, o que nos leva a pensar em uma ausência de forma(BURKE, 1997, p. 84).

Burke (1997) salienta que as biografias deste período estão repletas deanedotas, os chamados topoi, anedotas sobre uma pessoa já contadas sobre ou-tras pessoas. Sendo assim, o autor cita a biografia de Carlos Magno, escrita porEinhard, que se caracteriza por valores heroicos presentes em outros imperadoresromanos.

Para Dosse (2005), a figura do herói que se faz presente nas biografiasconstitui uma simbolização coletiva, abarcando para si, os valores de uma socieda-de e de uma época, ou seja, ela é uma resposta, ou melhor, uma representação dasvirtudes desejadas por determinada sociedade. O herói se cria à luz de seu tempo.

Durante o século XVI, a palavra de ordem do gênero biográfico é honra,mas engloba também os conceitos de virtude e de reconhecimento. O homempassa a ser a somatória de seus atos, porém o que o torna famoso não é apassagem pela carreira militar ou ainda os grandes feitos de armas.

Com o passar do século XVII, a individualização vai se tornando o cernedas biografias, com isso o foco sob alguns indivíduos também se faz valer. A reale-za torna-se centro dos olhares de todos e especificamente o rei obtém papelcentral. “Os projetos de escrita da vida do monarca se multiplicam na medida emque ele encarna, sozinho, o poder estatal.” (DOSSE, 2005, p. 158). Segundo oautor, a tarefa de escrever a vida de um rei era considerada uma necessidadeimperiosa, mas também impossível de se fazer.

No entanto, esse herói se transforma a partir do século XVIII, passando doherói antigo a um simples personagem de uma narrativa, chegando a ficar, atémesmo, banalizado. “As Luzes cederão espaço a outra noção, que aos poucos irá

Page 182: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

182 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

substituir a do herói: trata-se do ‘grande homem’.” (DOSSE, 2005, p. 161). Noentanto, após 1789, a noção de herói antigo é revitalizada e revestida de uma novaroupagem, essa nova assimilação provinha obviamente do desejo pela Revolu-ção em prolongar-se.

Segundo Dosse (2005), a figura do herói durante a Revolução Francesaé posta à prova no decorrer dos acontecimentos revolucionários, “mas essa rela-ção se inverte logo porque a Revolução precisa de seus heróis para se legitimarcom o sangue vertido dos mártires.” (DOSSE, 2005, p. 162). Bonaparte se corpo-rifica como herói dos heróis, torna-se um mito nacional; ele mesmo e os que ocercavam deram as devidas contribuições para a criação de tal imagem, umademonstração de uma elaboração sábia e estratégica.

A Revolução Francesa será responsável pela criação de um novo herói,visto que o fato histórico da revolução era a manifestação da vontade do povo. “Éo próprio acontecimento que brilha e transcende o indivíduo, fazendo dele umherói.” (DOSSE, 2005, p. 161).

No decorrer do século XIX, o fosso entre biografia e História se aprofun-dou, sofrendo influência das emergentes ciências sociais, o que agravaria a figu-ra do herói presente nas biografias, que passou a ter seu caráter semidivino con-testado pela filosofia das Luzes. Dosse (2005) afirma que, apesar disso, o heróinão desaparece de cena e ressalta que sua identidade patriótica é reforçada econhece alguns lampejos nacionalistas a partir da exaltação da coragem emcombates e da disposição a se sacrificar por uma República, ainda às voltas coma guerra. Personagens como Joana d’ Arc, Bayard e Napoleão seriam conclama-dos nas biografias dos “grandes homens”. À luz do XIX, o grande homem é aqueleque coincide sua determinação pessoal com a vontade coletiva de uma época.

Para além de celebrar alguns homens já reconhecidos pela nação, en-contraremos, após a ruptura da Revolução Francesa, um esforço em repertoriaras vidas daqueles que alcançaram certa notoriedade através de sua competên-cia. (DOSSE, 2005, p.169). A biografia se apresentará, portanto, como uma sub-disciplina auxiliar da história, se portará como um subgênero, e se tornará oapanágio de jornalistas, principalmente da pequena imprensa.

Se o século XIX aparece às vezes como a idade de ouro da biografia, isso aconteceporque nos esquecemos de que ele é, acima de tudo, o século da história. A biografianão passa de um parente pobre, de um gênero menor, desdenhado e relegado aalguns polígrafos sem prestígio intelectual. Vê-se isso desde o começo do século,antes mesmo da profissionalização do ofício de historiador, que só ocorre de fato apartir dos anos 1880. O gênero biográfico é repudiado pelos historiadores liberais eromânticos já nos anos da Restauração (1815-1830) (DOSSE, 2005, p.172).

Page 183: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 183

Haverá, portanto, ao longo do século XIX e início do XX, certo abandonodo gênero biográfico por acadêmicos e historiadores, e se aproximará cada vezmais das publicações populares e do discurso escolar. Como afirma Dosse (2005):

A biografia sofre então um demorado eclipse porque, como veremos, o mergulho dahistória nas águas das ciências sociais, graças à escola dos Annales, tanto quanto otriunfo exclusivo da teses durkheimianas, contribuíram para a radicalização de seudesaparecimento em proveito das lógicas massificantes e quantificáveis (DOSSE,2005, p. 181).

A História sofrerá durante o século XIX grande interferência das entãoemergentes Ciências Humanas e a biografia acaba por ser reduzida à mera his-torieta, do relato puramente anedótico, com fins apenas de lazer e entretenimen-to. A suposta cientificidade da História, comum ao XIX, não deixa espaço para quea biografia possa, de fato, aparecer.

Grande parte dos biógrafos, ao longo do tempo, tem se dedicado à vidados artistas, em especial, de pintores. Alguns nomes tornam-se comuns entreessas biografias, como por exemplo: Michelangelo e Van Gogh, na pintura, eMozart, na música. Neste caso, o biógrafo possuía papel duplo: o de entender erelatar a vida do biografado e também conhecer sua obra.

No início do século XX, a importância da História como ciência humanase torna ainda mais relevante e a situação marginal que a biografia passa aocupar, e que se iniciou no século anterior, continua se intensificando. A sociolo-gia, então em voga, busca estudar o coletivo e o tenta fazer a partir de métodosexplicativos que não sejam sociológicos.

O que essa sociologia tenta esclarecer é um certo número de leis intangíveis ecausalidades fortes para demonstrar a legitimidade e a eficácia dessa nova disciplinatida como ciência independente. A partir desses princípios, a variedade humana,individual, deixa de ter pertinência e torna-se mesmo aquilo de que as ciênciassociais devem se precaver (DOSSE, 2005, p. 198).

É em 1929, com o surgimento da Revista dos Annales, que se tornariaescola, que Lucien Febvre e Marc Bloch assimilariam o programa durkheimiano,adaptando-o ao território do historiador. Os dois historiadores não reduzem osestudos biográficos na revista tanto quanto se comenta, mas há de se convir queo peso da biografia diminui ao passo que as análises dos fenômenos em massa,ganham relevância.

O marxismo, enfatizando a leitura holística e a luta de classes, também não reservaàs lógicas individuais um lugar significativo. O gênero biográfico é visto como um

Page 184: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

184 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

antigo legado da burguesia, cujo defeito básico consiste em ocultar os verdadeiroscacifes, mascarando as desigualdades. Torna-se, pois, fonte de alienação para osleitores, a quem se oferece por baixo preço uma pseudovingança com o sonhosobre sua sorte cotidiana (DOSSE, 2005, p.199).

A partir da década de 1960, o estruturalismo se deslocará a uma tempo-ralidade longa e das “relações entre o meio geográfico e o homem seu tributário”.(DOSSE, 2005, p. 205). O acontecimento individual, nessa época, não ganharelevo.

Na década posterior, a terceira geração dos Annales triunfa com a histó-ria das mentalidades, mas não aproxima os historiadores das lógicas individuais,pois privilegia os fenômenos estáveis, supostamente estruturais. A história dasmentalidades priorizou o caráter impessoal, que regula as práticas sociais, po-rém, a oposição entre individual e coletivo resultou em generalizações abusivaspor parte dos historiadores em comparação às análises individuais.

Entretanto, há uma retomada da biografia na década de 1980, conside-rando a comemoração do bicentenário da Revolução em 1989, podemos dizerque esse era o começo de sua reabilitação. Neste período houve um cruzamentode identidades em escalas mais restritas ou mais amplas, a nação não foi, nessaépoca, a única matriz de identidade e os valores exaltados não foram mais dosheróis, mas sim dos grandes homens.

Podemos perceber nessa breve explanação, que o gênero biográficopassou ao longo do tempo por várias transformações quer seja em relação ao seupróprio conteúdo, como, por exemplo, o sujeito biografado - de heróis e grandeshomens a “gente miúda”- até a posição que ocupou como literatura, detentora ounão de uma verdade histórica, vista como a história magistrae vitae ou aindarelegada simplesmente à apropriação inadequada da exposição de algumaspersonagens.

Entendemos, portanto, a biografia atual como o melhor meio de se com-preender a ligação passado e presente, memória e projeto, indivíduo e socieda-de. (LEVILLAIN, 2003, p. 176). Ela pode, também, fazer parte de uma história dadiferença, avançando do um ao múltiplo, do indivíduo ao grupo. Segundo Levillain(2003), é possível nesta biografia apontar diferenças, captar realidades, revelarconstantes através de uma vida. “Tudo irá depender do nível significativo do per-sonagem. E é certo que quanto menos ele se situar entre os protagonistas dahistória, mais o ensinamento tem chance de ser rico.” (LEVILLAIN, 2003, p. 175)

Page 185: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 185

1.2 O “retorno” do gênero biográfico

Durante muito tempo a biografia foi vista como modelo de história tradici-onal – que abarcava a história dos grandes feitos, dos heróis singulares - maispreocupada com os fatos do que com as grandes estruturas. Uma espécie delouvor aos grandes personagens ou uma busca por minimizá-los. No entanto,temos observado uma “volta” da biografia ao gosto de populares e também dehistoriadores, interessados em compreender a história individual. Certo voyeuris-mo talvez, já que a história da vida privada sempre fora alvo de especulações,algumas verdades e mitos, a serem postumamente desvendados e legitimados eexpostos a um grande público ávido pelo assunto.

A biografia foi alvo de críticas de historiadores preocupados com o riscodo abandono da “história-problema”, para o retorno a uma história cronológica,pautada em uma conceituação frágil. (LORIGA, 1998, p. 226). Segundo a autora,os historiadores sociais, mostrando-se insatisfeitos com as categorias interpreta-tivas estruturalistas, buscavam explicações em uma dimensão coletiva, e foram,aos poucos, refletindo sobre os destinos individuais.

Alguns historiadores também contemplaram a biografia como uma sim-ples “ferramenta”, que auxiliaria em análises macro estruturantes, o que a tornariacom uma mera função ilustrativa e sugestiva, a fim de explorar preliminarmenteum problema.

O “retorno” do gênero biográfico ou da narrativa biográfica é vista pormuitos historiadores como um falso “retorno” uma vez que a biografia se faziapresente já na Antiguidade. O que se busca ressaltar aqui, todavia, é que hojeencontramos, nesse gênero, uma problemática renovada, delineada e modifica-da através do tempo que nos propõe debater a historiografia. É digno de notasalientar que o interesse pelas trajetórias individuais ressurge devido ao “descré-dito das totalizações, dos modelos explicativos genéricos e das ideias de sujeitouniversal” (SCHMIDT, 2000, p. 123).

Nas palavras de Schmidt (2000), a biografia está na moda e a explicaçãopara o crescente interesse em personagens do passado estaria na “busca deidentidade de um presente marcado pela aceleração temporal, pela massifica-ção cultural e pela crise das utopias.” (SCHMIDT, 2000, p. 122). Essa emergênciada biografia está relacionada com a crise do paradigma estruturalista em voga nahistoriografia a partir dos anos 60. Apesar das diferenças entre as diversas tradi-ções historiográficas, torna-se perceptível o interesse pelo resgate de trajetóriassingulares nelas, incluindo desde a nova história francesa, a micro-história italia-na, até a historiografia brasileira atual. Trata-se, portanto, de um movimento inter-

Page 186: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

186 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

nacional e presente nas diferentes correntes historiográficas que irá se delinearsob as mais diversas formas e conforme os interesses de sua época, assim como,responder aos pressupostos do biógrafo, ou, ainda, criar exemplos a serem se-guidos pela sociedade.

No que concerne ao biografado, os estudos biográficos têm-se direcio-nado, desde as últimas décadas do século XX, à inserção das classes populares,do indivíduo comum, do sujeito simples, o camponês, o moleiro, a gente miúda, naspalavras de Schmidt (2000). “Nos anos anteriores, a maioria dos historiadores pen-sava que as classes populares não podiam ser objeto da história a não ser numaabordagem quantitativa.” (LORIGA, 1998, p. 225). Tal análise é possível a partir doadvento da História Nova, que se propõe também a análise da história vista porbaixo, pelos excluídos outrora da grande História, os subjugados e sem poder.

Das diferenças das biografias tradicionais às novas, Schmidt (2000), res-salta vários pontos, como, por exemplo: os personagens elencados para serembiografados. Em contraponto às biografias antigas que tinham como persona-gens, grandes homens e heróis, com suas vidas singulares a fim de se tornaremexemplos, as biografias contemporâneas têm como sujeitos, o homem comum.Assim sendo, segundo Schmidt (2000), o sujeito pode ser pesquisado como ummicrocosmo de um estrato social inteiro num determinado período histórico.

Nota-se ainda o interesse em algumas figuras biografadas, como é ocaso de Assis Chateaubriand ou o imperador romano Adriano, por exemplo. Taisescolhas se devem, muito provavelmente, ao interesse comercial, justificando ointeresse do público pelos grandes mitos que, quando biografados, transparecemsuas fraquezas e desejos, tornando-os “humanos”.

Uma segunda diferença apontada por Schmidt (2000) trata-se dos obje-tivos a que essas biografias se propõem. O caráter de louvor ou degenerativo dasbiografias antigas já não se apresenta na atualidade, sendo comum, portanto, asbiografias que trabalham o sujeito histórico incutido em um contexto históricomaior, a fim de estabelecer articulações entre as duas esferas da narrativa. Talponto é abordado pelo autor como algo a ser cautelosamente analisado, a fim deque não se caia no equívoco de separar-se contexto vivido do indivíduo.

Além disso, é necessário ressaltar a forma de construção da narrativabiográfica. A tese da ilusão biográfica de Bourdieu (2006) atesta para a preocupa-ção de se construir uma identidade estável para os personagens biografados.Neste caso, mostra-se a história do indivíduo atrelada ao previsível, ou, no míni-mo, inteligível, parte de um todo bem construído e delineado. É necessário pers-picácia para não cair no equívoco dessa coerência a posteriori. “As próprias fon-tes, sobretudo as de caráter autobiográfico, são ardilosas pois estabelecem uma

Page 187: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 187

consciência e uma coerência retrospectivas sobre um passado não tão linear.”(SCHMIDT, 200, p. 60).

[...] quero defender a ideia de que os biógrafos não devem se fixar na busca de umacoerência linear e fechada para a vida de seus personagens, mas que precisam simapreender facetas variadas de suas existências, transitando do social ao individual,do inconsciente ao consciente, do público ao privado, do familiar ao político, dopessoal ao profissional, e assim por diante, sem tentar reduzir todos os aspectos dabiografia a um denominador comum (SCHMIDT, 2000, p. 63).

Outro aspecto importante a se destacar é o espaço da ficção nas biogra-fias históricas. Tal ponto é muito discutido entre as diferenças das biografiashistóricas e literárias e se faz alvo de discussões acaloradas. Durante muito tem-po, historiadores procuraram não incluir a ficção nas biografias, diferentementeda cinebiografia, que se atém a esse recurso. Levi (2006) comenta que a biografiase constrói no limite da literatura e da historiografia e que se constitui, portanto,um gênero híbrido. Sobre isso, Schmidt (2000) acrescenta que as biografias pro-duzidas no campo da história assumem um compromisso com o real, enquantoque para os cineastas e literatos, a imaginação e a criatividade são melhoresaceitas. Schmidt (2000) conclui que a ficção/invenção nas biografias históricasdeve ser trabalhada com cautela, a partir das fontes e sempre com expressõesque denunciem ao leitor tal espaço inventivo. Expressões como “talvez”, “prova-velmente”, “pode presumir-se” são admitidas nas biografias históricas e sinalizamo caráter de possibilidade e dedução quando as fontes permitem tais suposições.

Por fim, para mencionar alguns trabalhos biográficos de extrema quali-dade produzidos ao longo dos últimos anos, citamos a obra São Luís, de Le Goff;O retorno de Martin Guerre, de Natalie Davis; Guilherme Marechal, de GeorgesDuby; e algumas obras brasileiras, como a de Jorge Caldeira sobre Mauá, oChatô, biografia de Assis Chateaubriand de Fernando Moraes e a de Mirian Gol-denberg sobre Leila Diniz.

1.3 Limites e possibilidades da biografia.

Muitos pesquisadores do gênero biográfico afirmam que ele possui umobjetivo pedagógico na medida em que apresentam os “erros” e “acertos” de umavida, tal modelo também se faz presente na vida dos santos, a hagiografia, quedetém um objetivo moral, o que viria a se tornar um exemplo a ser apreendido.

No entanto, algumas implicações são encontradas quando se biografaalguém, questões que envolvem desde a narrativa até a memória uno ou coletiva.Schmidt (1997), aponta para uma questão recorrente em alguns estudos biográ-

Page 188: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

188 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ficos: presença do contexto. A crítica do autor se refere ao uso costumeiro e, emsua opinião, inapropriado, do panorama sócio-político de uma época, em algu-mas biografias. O contexto apareceria como um capítulo à parte nesses trabalhos,como se fosse o recheio deles, o biógrafo se restringiria a compor capítulos de seutrabalho tendo como foco ora o indivíduo ora o contexto. Tal panorama social seapresentaria, portanto, como pano de fundo para a história do indivíduo, desvincu-lando-se deste, como se fosse algo apartado ou ainda que devesse ser analisadodesfocado do sujeito biografado, o que, de fato, não acontece na “vida real”.

Levi (2006) ressalta que, ao escrever uma biografia, é indispensável am-pliar o leque de relações e de movimentos com os quais a personagem esteveentão em contato, reconstituir em torno dele seu meio, apresentar e multiplicarvidas que tiveram paralelo com a dele. Neste ponto, uma vida só é entendida secompreendermos também seu contexto histórico, pois este justifica o indivíduo,seus possíveis desvios e singularidades (LEVI, 2006, p. 176).

Tal como a questão do “contexto” abordada acima, a biografia tambémpode suscitar certa linearidade ao expor uma vida, descrevê-la como um cami-nho, uma estrada. É o que Bourdieu (2006) chama de ilusão biográfica, termocunhado por ele para designar a disposição de fatos em sentido linear, cronológi-co, criando a ideia de vida determinada, que resultaria no depois. A vida não temuma história, o futuro é algo incerto e não possui um caráter determinável, porisso, algumas frases de efeito presentes nas biografias, como “desde pequeno”ou “sempre”, nos transmite uma noção determinista, como se o indivíduo já nas-cesse predestinado àquilo. Bourdieu (2006) denomina como noção sartriana de“projeto original” esta intenção subjetiva e objetiva de escrever uma vida (BOUR-DIEU, 2006, p. 184).

Bourdieu (2006) explicita que a vida não se constitui em um conjuntocoerente e orientado, não corresponde a uma ordem lógica com um começo,meio e fim. O autor afirma:

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relatocoerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvezseja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existên-cia que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (BOURDIEU,2006, p. 185).

A respeito dessa implicação do gênero biográfico, Levi (2006) irá menci-onar que uma das dificuldades em se escrever uma vida está no fato de que “oshistoriadores imaginam que os atores históricos obedecem a um modelo de raci-onalidade anacrônico e limitado.” (LEVI, 2006, p. 169) Levi (2006) cita que, por

Page 189: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 189

conta de uma tradição biográfica e a própria retórica de nossa disciplina, nos agra-dam modelos que conciliam uma ordem cronológica, uma personalidade coerentee estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas (LEVI, 2006, p. 169).

Levi (2006) discute as novas configurações que moldam a biografia atu-al, e aborda as mudanças decorrentes no século XX sob a luz da recém-nascidapsicanálise, de novas tendências na literatura e ainda da crise da concepçãomecanicista na física. É neste ponto que a identidade é retomada no discursobiográfico e se torna um dos problemas do gênero para os historiadores, devido asua complexidade, sua formação progressiva e não-linear (LEVI, 2006, p. 173).De fato, hoje, a boa biografia não tem mais a pretensão de esgotar o absoluto do“eu”, o historiador deve ter em mente, portanto, que devido ao caráter fragmentárioda identidade do sujeito a ser biografado, não é possível apreender o todo essen-cial do sujeito da descrição.

Em Bourdieu (2006), a identificação da noção de indivíduo estaria pre-sente no nome próprio, pessoal e privado como elemento de distinção do sujeitosocial. Para além de seu uso significativo, o nome próprio não pode veicularnenhuma informação sobre aquilo que nomeia, é por isso que Bourdieu (2006)salienta que ele só pode atestar a identidade da personalidade, “como uma indi-vidualidade socialmente constituída [...] o que evoca o uso habitual que Proust fazdo nome próprio precedido do artigo definido (‘a Albertina de então’ ou ‘a Albertinaencapotada dos dias de chuva)” (BOURDIEU, 2006, p. 187).

Quanto à narrativa biográfica, Borges (2005) assinala que, devido à difi-culdade em estabelecer os fatos, perante suas diversas versões, o importante étentar sempre contrapô-las. Para Borges (2005), os fatos passam por uma sele-ção permanente de tudo aquilo que nos parece significativo, incluindo o que épercebido na vida da pessoa: fatos políticos, econômicos, culturais, etc., desdeque tenham marcado a vida da pessoa. É também de particular relevância asincertezas intuídas, as possibilidades perdidas presentes na biografia. “A sensibi-lidade e a intuição do historiador são muito importantes a fim de aproveitar ausên-cias e vazios com os quais ele se depara em seu trabalho de pesquisa paratambém interpretá-los” (BORGES, 2005, p. 221).

A temporalidade também é fator integrante da biografia e não se esquivadas discussões historiográficas. De acordo com Borges (2005), é um desafiopara o historiador trabalhar com uma cronologia linear (fatos) e com o percursode uma vida que não é linear. A autora deixa claro essa ideia quando nos diz que:

Uma cronologia linear realmente existe em nossas vidas (nasci, fui crescendo etc.,cotidianamente, acordo, me visto, me alimento etc.), mas também há um embaralhar

Page 190: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

190 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

contínuo e constante em nossa mente, pois enquanto me lavo no chuveiro, lembro-me de minha infância, de ontem à noite, penso no que farei daqui a pouco, temo peloque pode me acontecer daqui a seis meses (BORGES, 2005, p. 224).

Algumas biografias atuais inovam no sentido de organização da biografiapor corte temático, a partir de diferentes aspectos e não de seu desenvolvimentotemporal, um tipo de abordagem que inova e se diferencia das biografias tradici-onais, assim como rompe com o senso comum de que a biografia deve em suma,apresentar uma sequência cronológica.

Dessa forma, o biógrafo historiador não produz necessariamente umabiografia do berço ao túmulo, pois muitas vezes não possui fontes históricas paratal trabalho, ou estas se limitam a certo período da vida do biografado. O que seressalta aqui é que se pode fazer biografia histórica sem que se tenha uma gamainfindável de fontes históricas em mãos, pois não há regras dispostas na historio-grafia ou na literatura sobre como deva ser uma biografia ou ainda que esta tenhade se remeter do nascimento à morte do indivíduo.

Assim sendo, percebe-se que na atualidade, a biografia é um gêneropassível de novos moldes e possível de ser reinventado a cada nova escrita. É frutoda produção de escritores, jornalistas e historiadores, que podem ou não incluirficção, simular discursos, deduzir e fantasiar, como podem também se remeterao uso de fontes históricas na tentativa de ser mais fiel possível à verdadeira vidaexperienciada, o que não faz uma mais importante que a outra, pelo contrário,escrever vidas sempre será um desafio e como cita Ricoeur (2000, p. 657 apudDOSSE 2009, p. 11), escrever a vida é outra história, sempre inacabada.

LAVEZO, Juliana Aparecida. The path of the biographical writing and its problema-tics throughout history. DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: The present article intends to analyse the biography throughout His-tory, from its beginnings to today, to comprehend the course whereby it passed andthe transformations ocourred in this genre. The biography acquired many nuan-ces and molds during the centuries to follow and transformed itself in a genre withmany implications and problematics which also intended to discuss in this work.Thus, for the achievement of this work a specific bibliography about the biographi-cal genre was selected, as well as its problematics, aiming a contribution to thecurrent Hstoriography.

KEY-WORDS: Biography.History.Life

Page 191: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 191

Referências BibliográficasBOURDIEU, P. A ilusão biográfica. Paris:1986. In: AMADO, J; FERREIRA, M.M.Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Edi-tora, 1996.BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, CarlaBassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista in Estu-dos Históricos, 1997.CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2010.DOSSE, F. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.GUAZZELLI, Cesar e outros (org.) Questões de teoria e metodologia da Histó-ria. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 2000.LEVI, G. Usos da biografia. 1989. In: AMADO, J; FERREIRA, M.M. Usos e abusosda história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996.LEVILLAIN, P. Os protagonistas: da biografia. In: REMOND, R. e outros (org.) Poruma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.LORIGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos deescalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da FundaçãoGetulio Vargas, 1998.MALLIMACI, F. História de vida y método biográfico. En: Estrategias de Investi-gación cualitativa. Barcelona, Getisa, 2006.SCHMITD, Benito. Construindo biografias. Historiadores e jornalistas: aproxi-mações e afastamentos. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.19, 1997.

Page 192: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

192 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 193: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 193

AS INTERFACES ENTRE PODER, VIOLÊNCIA E EDUCAÇÃONO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

SILVA, Marco Aurélio*

KAYSER, Aristéia Mariane**

RESUMO: O objetivo do presente artigo é fomentar uma reflexão sobre a relaçãoviolência e educação na perspectiva da ilustre filósofa política alemã HannahArendt, esta que defendeu arduamente o pensar sobre a liberdade e suas conse-quências. Arendt menciona a importância da não banalização sobre o fenômenoda violência esta que se caracteriza pela via da sua própria instrumentalidade,sendo assim distingue-se do poder, da força e da autoridade. Portanto, na pers-pectiva da autora a violência contrapõe-se ao poder sendo assim uma reflexãocomplexa que se sustenta pela a via da filosofia política.

Palavras-chave: Educação, violência, política, poder

1.IntroduçãoA educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na políticalidamos com aqueles que já estão educados (ARENDT, 1992).

Hannah Arendt é de origem alemã, optou pela teoria política e não pelafilosofia política. A sua teoria política estava pautada no conceito de pluralismo noque tange a abrangência política. Pois, na base conceitual deste pluralismo esta-va a liberdade e a igualdade política defendida pela aoutora referendo se destaforma a inclusão do outro. Percebe-se, uma aproximação da filosofia de Nietzs-che, Bergson e Paul Ricoeur.

No ano de 1957, publicou “A condição humana”, propondo-se a uma “[...]reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências enossos temores mais recentes” (ARENDT, 1981, p. 13). Já em 1961, publicou“Entre o passado e o futuro”, abordou nesta obra temas como liberdade, autorida-de e a crise na educação e na cultura. Para autora, políticas, leis e convênios sãopautas que devem ser praticadas e adequadas segundo a realidade que permeia* Mestrando em Ciências Sociais - UFSM, Mestrando em Educação - UNISC, Pós Graduação emGestão Educacional e em Educação Ambiental ambas pela – UFSM, Pós Graduação em Mídia naEducação - UFPEL, Santa Maria-RS. [email protected].** Pós Graduação em Gestão Pública da Organização em Saúde em Educação Ambiental ambas pela -UFSM, Santa Maria-RS. [email protected].

Page 194: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

194 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

o social desta forma fazia uma critica a democracia representativa, sendo sendoválido para autora a democracia direta ou sistemas de conselhos aqui percebe-mos uma aproximação coma teoria de Putnam (2000). Arendt, como filósofa con-seguiu transitar pelos principais temas da filosofia contemporãnea, discutindoassim a filosofia existencialista, política, direito e a teoria do totalitarismo, porémenfatizando sempre a ação aplicada na realidade considerando os fatos por meiodos quais tudo se revelaria. Pelo viés desta perspectiva busca enfrentar o proble-ma da legitimidade jurídica.

A experiência deve ser a base do pensamento político, e dentro desseescopo não se pode desconsiderar a história por meio desta é que se verificam asrupturas ou possíveis continuidades, a autora transita entre passado e futuro. Pormeio desta relação a autora tenta explicar que a norma jurídica só tem sentidoquando aplicada.

O escopo da obra “Sobre a Violência”, é acerca da investigação danatureza e das causas da violência. A estrutura da obra é dividida em três partes,sendo que na primeira o autora considera que os acontecimentos políticos noscoloca em um sistema de disputa gerando guerras e violências sendo a primeiraconsiderada como sistema social que dinamiza as outras organizações sociais.E a violência surgiu pela conquista do espaço um exemplo seria uma guerraentre nações visando a conquista de uma sociedade ou sua estruturação. Sendoa paz a justificativa pelo propósito de guerra e sua continuação.

No primeiro capitulo a autora se propõe a análise do poder e da violência,estudando a teoria de vários autores como Marx, este considerou que o Estadoem si é um instrumento regulador da violência. Segundo Arendt (1992),

[...] o que distingue a teoria do próprio Marx de todas as demais teorias em que anoção de ‘fazer a história’ encontrou abrigo é somente o fato de apenas ele terpercebido que, se se toma a história como o objeto de um processo de fabricação ouelaboração, deve sobrevir um momento em que esse ‘objeto’ é completado, e que,desde que se imagina ser possível ‘fazer a história’, não se pode escapar à conse-qüência de que haverá um fim para a história. Sempre que ouvimos grandiososdesígnios em política, tais como o estabelecimento de uma nova sociedade na qual ajustiça será garantida para sempre, ou um guerra para acabar com todas as guer-ras, ou salvar o mundo inteiro para a democracia, estamos nos movendo no domíniodesse tipo de pensamento (p.114).

Já no segundo capítulo se propôs a análise sobre a possível relação edistinção poder e violência e assim propõe parâmetros para o entendimento dosacontecimentos políticos particulares. Neste sentido percebe-se na perspectivateórica de Bobbio (1992), dizendo que os “[...] direitos do homem deverão ser não

Page 195: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 195

mais apenas proclamados ou apenas reconhecidos, porém efetivamente protegi-dos, até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado (p.30)”. A critica daautora é sobre o consenso que a violência seria a manifestação de poder confor-me explicitado por Weber, segundo este autor “[...] o Estado é o domínio de ho-mens sobre homens com base nos meios de violência legítima, isto é, suposta-mente legítima”, pois segundo Arendt (1981), “[...] nenhuma outra atividade huma-na precisa tanto do discurso quanto a ação” (pp.191-2).

Segundo Habermas (1980), ao contrário de Weber, Arendt (1981), “[...]concebe o poder como a faculdade de alcançar um acordo quanto à ação co-mum, no contexto da comunicação livre de violência (p.100). Uma das finalida-des da educação é a não perpetuação de um discurso abstrato, pois deve-seenfatizar este e a ação sendo os sujeitos detentores desta dinâmica caso contrá-rio ela esta justificando a violência seja dentro e fora dela. O poder não pode serperpetuado pela força exemplo é quando vários sujeitos se unem em prol de umobjetivo desta forma se tornam fortes, ou seja, o poder é diferente de força perce-be-se uma aproximação da teoria Locke 2010.

A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade naturale se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoasem juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e pazuma com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfru-tando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela (p. 71 - § 95).

Segundo a autora as definições de poder estaria relacionada ao Estadosoberano (França e Inglaterra), sendo um dos principais representante da Ingla-terra Thomas Hobbes no século XVII e coincidem com a perspectiva da antigui-dade grega que definia a concepção de formas de governo domínio do homemsobre o outro. Todavia, a autora menciona que na contemporaneidade existeuma complexidade conceitual no que tange a definição de poder, o qual ficariarestrito ao uso da força do Estado. A autora é contra as teses do instinto inato noque se refere a dominação e agressividade, as quais são defendidas pelos ilus-tres pensadores Hobbes e Maquiavel.

O poder, segundo Hobbes, é o controle que permite os preços e regular a oferta ea procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder. O indivíduo deinício isolado, do ponto de vista da minoria absoluta, compreende que só pode atingire realizar seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria. Portanto,se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individu-ais, o desejo de poder deve ser a sua paixão fundamental. É esse desejo de poderque regula as relações

Page 196: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

196 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições, porquanto a rique-za, o conhecimento e a fama são as suas conseqüências. Hobbes mostra que,na luta pelo poder, como na capacidade inata de desejá-lo, todos os homens sãoiguais, pois a igualdade do homem reside no fato de que cada uma, por nature-za, tem suficiente potencialidade para matar um outro, já que a fraqueza podeser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesmainsegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d’être do Estado é a neces-sidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado portodos os seus semelhantes (ARENDT, 1989, p. 169).

Arendt (1985), menciona que a “[...] burocracia ou o domínio de um intrin-cado sistema de órgãos no qual homem algum pode ser tido como responsável,e que poderia ser chamado com muita propriedade o domínio de Ninguém” (pp.20-1). Esta é a forma mais vigorante na democracia representativa.

2. Poder e violência na perspectiva de Arendt

Para Arendt (1985), é de reponsabilidade da ciência política a conceitua-ção teórica e a distinção entre os conceitos poder, força, autoridade e violência, osquais não podem ser classificados como antagónicos, e nem como sinôminos pelofato de serem diferentemente entre si, mas se coadunam erroneamente no desen-volvimento da mesma função. Segundo Arendt (op,. cit), é fundamental saber quemgoverna quem? Pois, a atribuição das quatro palavras chave acima mencionadas éindicar quais os mecanismos que o homem utiliza para governar o outro (p.23).

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permaneceralheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios huma-nos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramenteescolhida como objeto de consideração especial. Na última edição da Enciclopédiade Ciências Sociais, a “violência” nem sequer merece menção. Isto indica o quantoa violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto,desconsideradas; ninguém questiona ou examina o que é óbvio para todos. Aquelesque viram apenas violência nos assuntos humanos, convencidos de que eles eram, sempre fortuitos, nem sérios nem precisos (Renan), ou de que Deus sempreesteve com os maiores batalhões, nada mais tinham a dizer a respeito da violênciaou da história. Quem quer que tenha procurado alguma forma de sentido nos regis-tros do passado viu-se quase que obrigado a enxergar a violência como um fenô-meno marginal (ARENDT, 1981, p. 16).

Segundo Arendt (1985), o “poder” significa agir em comum acordo equando desaparece o grupo que o originou também segue esta tendência, por-tanto sendo um fim em si mesmo e as pessoas utilizam desta distorção conceitual

Page 197: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 197

para justificar os fins (p. 24). E observa-se que, a “[...] violência não reconstróidialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila” (Arendt, 1985, p. 12).

Já no que se refere a “Força” deveria ser entendida no âmbito de umalinguagem terminológica, ou seja, abrangendo duas perspectivas a “forças danatureza” ou as “forças das circunstâncias”, desenvolvendo um mecanismo deliberação de movimentos físicos ou sociais. O entendimento sobre o conceito de“Autoridade” é aplicado às pessoas e para que se possa conservá-la é necessárioo respeito seja pela pessoa ou cargo. Já a “Violência” tem por finalidade umcaráter instrumental justificando o propósito da independência natural, mas emseus estágios é substituída para justificar os fins.

Para Arendt (1985), o poder precisa de legitimidade e este deve ser opo-sição a violência, e é emanado do povo que deve manter-se unidos, pois aspectosde violência e comando não cabem dentro deste escopo de projeto. Mas, a soci-edade é acostumada a desenvolver uma relação errônea no que tange a combi-nação da violência com o poder. Entretanto, não se pode concluir que a autorida-de, o poder e a violência estariam no mesmo nível e seriam a mesma coisa. Aviolência não sustenta nenhum sistema ou governo.

O poder só pode ser sustentado pelo apoio daqueles que dão o consen-timento e pelos números. Dentro deste contexto a tirania não se justificaria, ouseja, é impotente, pois a população não lhe confere respaldo. O terror nascedepois da violência e sua finalidade é manter o total controle. A violência não criao poder, mas seus mecanismos podem destruí-lo e assim se justificaria o caráterinstrumental. E segundo Arendt (1985), “A forma extrema de poder é o todos contraUm, a forma extrema da violência é o Um contra Todos” (p. 35).

A violência nunca poderá ser a essência de um governo, mas sim opoder, o qual deve ser legítimo e integro, nesse sentido os cidadãos são os princi-pais aliados. Entretanto, é um processo que se dá na relação entre iguais. Contu-do na perspectiva da autora é pela via da legitimidade é que se compreende aobediência as normas das instituições políticas, as leis que regem a dinâmica deum país. Pois, a finalidade de uma lei é sempre um ato impositivo, observa-se deum lado existe a questão do consentimento o processo punitivo, a sanção aosujeito que deixa de cumprir com as normas da lei.

A autora no capítulo terceiro, se propôs a análise da natureza e da causasda violência. Arendt (op,. cit), entende que a violência não se trata de um atoanimalesco e nem irracional e argumenta, que a violência pode ser originária doódio, todavia, este fenômeno não é automático, pois é criando pelas diversascondições dadas pela razão, ou seja, o senso de justiça.

A linha tênue do fenômeno é as condições e a rapidez que se dá a violên-

Page 198: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

198 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

cia, portanto, a dificuldade é distinguir uma emoção natural e a racionalidade.Pois, se optarmos pela racionalidade humana estamos desenvolvendo um pro-cesso de desumanização do homem (p.35). Para a filosofia as emoções nãoinfluenciariam na racionalidade, o ódio e a violência não podem ser considera-dos como irracionais, mas apenas quando substitutos (p. 36). Segundo Arendt(op,. cit), “Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outroestá ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada o seupróprio curso, ela conduz à desaparição do poder” (p.44).

[...] nem a violência nem o poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestaçãodo processo vital, eles pertencem ao âmbito político dos negócios humanos, cujaqualidade essencialmente humana é garantida pela faculdade do homem para agir,a habilidade para começar algo novo (ARENDT, 1985, p. 94).

A racionalidade da violência esta em alcance de objetivos em curto prazo(ARENDT, 1985). Entretanto, a “[...] prática da violência, como toda ação, transfor-ma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento”(p.45). E assim a autora faz a crítica a burocracia dizendo,

[...] quanto mais burocratizada a vida pública, maior será a atração exercida pelaviolência. Em uma burocracia plenamente desenvolvida, não há como discutir, aquem apresentar reclamações, sobre quem exercer as pressões do poder. A buro-cracia é a forma de poder onde todos são privados de liberdade política, do poder deagir, já que o governo de Ninguém não é a ausência de governo, onde todos sãoigualmente destituídos de poder temos uma tirania sem tira (op,. cit. p. 45).

Para a autora a violência jamais poderá ser a fonte do poder, na verdadesegundo seu entendimento quanto mais violência menos poder, a arena política éo campo dessas relações e do totalitarismo fazendo com que o poder possaaparecer pela via da autoridade sendo inquestionável. Segundo a autora a violên-cia é justificável apesar de ilegítima no entanto deve ser usada em último recurso.O poder legítimo poderá justificar sua ação violenta quando o povo lhe apoiar.

Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem deângulos diferentes. É este o significado da vida pública, em comparação com a qualaté mesmo a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolon-gamento ou a multiplicação de cada indivíduo, com os seus respectivos aspectos eperspectivas. A subjetividade da privatividade pode prolongar-se e multiplicar-se nafamília; pode até tornar-se tão forte que o seu peso é sentido na esfera pública; maseste “mundo” familiar jamais pode substituir a realidade resultante da soma totaldeaspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores.

Page 199: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 199

Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedadede aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabemque vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundomanifestar-se de maneira real e fidedigna (ARENDT, 1981, p. 67).

O fenômeno violência, educação e cultura são multifacetados, porém asvárias formas de violência se apresentam ainda obscuros. Pois, o poder e a vio-lência pertencem a concepção política dos negógicos humanos. A violência ser-ve para dramatizar e enfraquecer o sistema, portanto a proposta da autora é dimi-nuir o efeito da ação e a justa medida é o poder e a política.

3.A repercussão da violência na educação

O esboço do projeto conceitual sobre a violência na perspectiva de Aren-dt é instrumental para assim desenvolver uma critica sobre a compreensão daviolência na educação. Sendo assim como entender que na história da humani-dade houve guerras e os vencedores são ensinados na escola? Como ensina e setorna objetos de políticas públicas casos sensacionalistas, qual o objetivo? Qualo objetivo da educação em se propor a ensinar conteúdos sensacionalistas?

Observem a necessidade de recorrer as outras áreas do conhecimentopara que se possa analisar a complexidade dos fenômenos no que tange a temá-tica violência na educação. Está-se tentando seguir os passos de Arendt na buscada construção teórica sobre o referido assunto, portanto, ressalta que violência eagressividade não são categorizadas da mesma forma, ou seja, não seriam amesma coisa. Sendo assim é necessário distinguir um marco teórico dos discur-sos produzidos, no que tange a violência expressa na educação e, ainda aviolência produzida pela educação, a tendência é classificá-las como a mesmacoisa. A educação deve fazer uma autocrítica de como ela tem conduzido esteprocesso no âmbito da sala de aula, nos cursos de aperfeiçoamento para osprofessores e na sua relação com os estudantes.

3.1 Como se constrói elementos de ação na educação para a superação daviolência?

A teoria arendtiana visa considerar um caminho que seja pela ação e istoé verificado no campo da educação, pois é necessário considerar a realidade daviolência social, e o que se verifica é uma prática cada vez mais recorrente noâmbito das políticas educacionais a pretensão de administrar a violência ou ape-nas amenizá-la. Mas, quais são as consequências desta prática? O fio condutor

Page 200: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

200 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

é tênue e complexo, o exemplo da reflexão teórica desenvolvida por Arendt (1985)na tentativa de uma contraposição violência e poder da mesma forma se propõeaproximar política com a educação visando a criação de alternativas. Na pers-pectiva da autora os negócios humanos surgem a partir de duas esferas estrutu-rantes sendo a ação “práxis” e o discurso em sim “lexis”, esta relação é constitu-tiva e circundante sendo por meio da relação entre essas vertentes que se cons-titui os seres humanos. Sendo assim, a educação quando efetiva o seu discurso eação ela esta se contrapondo a violência revelando desta forma a realidade e aomesmo tempo criando novas relações e realidades. Observa que, Segundo Aren-dt (1981), “A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem oduplo aspecto da igualdade e da diferença. Se não fossem iguais, os homensseriam incapazes de compreender-se entre si (p. 188)”. A educação não pode serredentora da palavra, do conhecimento, não pode ser autônoma ela deve consi-derar os sujeitos como protagonistas ao contrário esta justificando a violência.

Para a autora, a estrutura familiar é um sedimento de uma pré política,pois existe uma organização, onde as pessoas vivem juntas por necessidade.Nesta esfera familiar existe o mais alto grau de desigualdade, fato que os sujeitossão dependentes e existe ainda a figura do outro que é autoritário e comando.Sendo assim a liberdade dentro deste escopo não existiria, quem é livre é aquelecapaz de deixar o lar consequentemente capaz de se envolver na política. Obser-va-se que a força e a violência seriam justificadas neste espaço privado, ou seja,elas não acontecem no espaço público este oportuniza ao sujeito diferentes ex-periências e possibilidades de ser ouvido. O fato é que a vida pública possibilita amais completa diversidade de olhares e entendimentos sobre um mesmo objeto.No âmbito educacional o mundo público não é percebido esta submetido à tutelado privado a educação é resquício da extensão familiar e ainda se constitui umespaço de violência.

A violência na escola só poderá ser diminuida quando considerada comoespaço público de manifestações políticas e de liberdade entre os sujeitos reque-rendo portanto revisão das estruturas educacionais. É fundamentar entender oparadóxo entre educação e sociedade e na perspectiba da educação para otrabalho. Como caracterizar a escola como um espaço público e realmente estapoderá ser considerada assim?

A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise datradição, ou seja, com a crise de nossa atitude perante o âmbito do passado. Ésobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois éde seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua

Page 201: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 201

própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado (ARENDT,1992, pp. 243-244).

Pois, segundo a autora para que seja é necessário considerar e darcondições para a potencialização das ações dos sujeitos é o chamado agir comsignificado. A ação do mundo moderno se caracteriza como responsável pelodeterioração da ação política, ou seja, é enfatizado o sucesso da violência. Atendência da tradição pedagógica do ocidente é um processo de normatizaçãofazendo com que os indivíduos sejam adaptados ao processo de transmissão doconhecimento e pelo viés desta perspectiva é que a escola tem se apresentadocomo transmissora de violência. Desta forma, somos aludidos em acreditar naação, a qual não se apresenta propriamente como tal e o que se verifica é oimpério do silêncio.

SILVA, Marco Aurélio, KAYSER, Aristéia Mariane. The interface between power,violence and education in the thought of Hannah Arendt. DIALOGUS. RibeirãoPreto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

Abstract: The aim of this paper is to foster a reflection on the relationship violenceand education from the perspective of renowned German political philosopherHannah Arendt, who defended this hard thinking about freedom and its conse-quences. Arendt mentions the importance of not trivializing the phenomenon ofviolence that characterized via its own instrumentality, thus distinguished from po-wer, strength and authority. Therefore, in view of the violence author opposes thepower is thus a complex reflection that sustains the route of political philosophy.

Keywords: Education, violence, politics, power.

REFERÊNCIASBOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 14. ed. Rio de Janeiro: Campos, 1992.Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro, forense-Universitária; Riode Janeiro, Salamandra; São Paulo, Edusp, 1981.______. Arendt. Sobre a Violência. Trad. Maria Cláudia Drummond Trindade,Ed. Universidade de Brasília 1985.______. Arendt. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. 5 ed.São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Page 202: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

202 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

______. Arendt. Entre o passado e o futuro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,1992. Habermas, JÜrgen. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Roua-net, S.P. & freitag, B. (orgs.) Habermas. São Paulo, Ática, 1980 (Coleção GrandesCientistas Sociais).LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o gover-no; Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 2010.

Page 203: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 203

EDUCAÇÃO: GÊNEROS TEXTUAIS NO MUNDO VIRTUAL

Marilda Franco de Moura*

RESUMO: Discute-se as configurações pedagógicas a partir das concepções deeducação, por meio de gêneros digitais, a evolução dessa modalidade de ensinoe seus inter-relacionamentos na Era Pós-digital. Enquadrado no pensamento es-tratégico, a educação é um processo histórico, retrata e reproduz a sociedade,mas também projeta a sociedade que se quer. Assim, a educação deixa de serconcebida como transferência de informações e passa a ser norteada pela con-textualização de conhecimentos úteis ao aluno. “Aprendizado rizomático”, umsaber que se reexamina, que revê sua própria identidade, que se reprograma e sereconstrói.

PALAVRAS-CHAVE: Educação; Inovação tecnológica; Gênero digitais; Signo.

Introdução

Sempre que os homens sentiram a necessidade de conservar os instantes que ahistória comporta, a escrita se fez lei. Em todos os tempos, o homem que soubeescrever foi rei (JEAN, 1998).A discussão sobre gêneros textuais no mundo virtual, conhecido também

como gêneros virtuais, tem, nesses últimos anos, levado inúmeros pesquisadoresa se debruçarem em torno de um conceito coerente sobre novos modos de ensi-nar. Neste sentido, este artigo é apenas mais uma das inúmeras contribuições atais estudos.

A educação é um fenômeno complexo, porque histórico, produto do tra-balho de seres humanos, e, como tal, responde à mudanças e aos desafios emdiferentes cenários, contextos políticos e sociais. Nos últimos anos do século XX,surge uma nova maneira das pessoas se comunicarem. O cenário atual é detransformações, causadas pela informatização e automação de inúmeras ativida-* Pós-doutoranda em Estudos Linguísticos/Semiótica pela FLUP - Faculdade de Letras da Universidade doPorto - Portugal, doutorado em Língua Portuguesa - Linguística - Semiótica, pela PUC/SP - PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (2007). Membro dos grupos de pesquisa CPS - Centro de PesquisasSociossemióticas, NUPLIN- Língua, Imaginário e Narratividade (Linguística e Letras - estudo das estruturassintático-semânticas e pragmáticas, linguagem retórica, semiótica, e análise do discurso) PUC/SP, ANPOLLe CASA/Araraquara. É Coordenadora e docente do curso de Letras do Centro Universitário UNISEBCOC - Ribeirão Preto/SP e professora de Língua Portuguesa, Linguística, Análise do Discurso, Produçãode Textos e Didática, no Centro Universitário Barão de Mauá.

Page 204: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

204 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

des, surgimento de novas formas de estabelecimento de contato e circulação deinformações, as correspondências pessoais - antigas missivas manuscritas - e ostextos oficiais e comerciais – datilografados – foram substituídos pelas corres-pondências virtuais.

Novas demandas educacionais e revisões nos metódos pedagógicospululam diante das transformações contemporâneas e urge a necessidade de sepensar a inserção das mediações tecnológicas nas práticas de ensino formal.

Essa pesquisa considera a necessidade de se buscar, por meio da tec-nologia, uma metodologia de ensino que vá além da sala de aula. Um espaçovirtual, com diferentes gêneros textuais e linguagens, por exemplo, sites informa-tivos, textos históricos, geográficos, bíblicos, políticos, musicais ou publicitários.Em todos os textos, há um olhar analítico diversificado, semântico e sintático, masesse olhar não pressupõe a obrigatoriedade de uma disposição linear e ordenadade sentidos, pois se norteia pelo paralelismo dos hiperlinks e hipertextos. Esterefere-se a um tipo de texto eletrônico no qual a escrita não é sequencial, permiteque o leitor leia por meio de uma tela de computador. Trata-se, na verdade, deuma série de blocos de textos interligados por nós, formando diferentes itineráriospara o usuário.

De que modo a tecnologia pode ser pedagógica nesse processo? Quaissão as facilidades e dificuldades geradas por meio da ferramenta tecnológica,amplamente incorporada na vida cotidiana? A educação, por meio da tecnologia,não pode correr o risco de se afastar dos objetivos iniciais, promover uma aproxi-mação com a informação, na medida em que se converte no fetiche do sistema.

É desafio, então, do educador que o sistema educacional projete o alunopara essa sociedade atual que vivencia um amplo processo de transformação noque diz respeito à intensificação do acesso à comunicação, informação e auto-mação.

Tema este que se vincula nas instituições privadas em forma de slogan.Enquanto prática histórica, a educação anseia pelo desafio de investir na diversi-dade e contextualização de conhecimentos, ganhando, assim, espaço na com-petitividade. Essas reflexões trazem à tona o fato de que a internet tem sido apon-tada como um caminho para ampliarmos o conhecimento. Ela é vista comosendo uma mídia mais democrática, embora ignorada nas propostas de ativida-des contempladas nos livros didáticos. De fato, a internet pode favorecer as práti-cas didáticas nas aulas de língua e facilitar a aprendizagem, já que permite acirculação de diversos gêneros digitais e de vozes dos diferentes grupos sociais .

A mídia digital pode romper fronteiras e facilitar a participação de indiví-duos em grupos, nas trocas interativas e no acesso à gêneros digitais oferecidos

Page 205: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 205

online, tais como inserção à comunidades de interesse, à informação em geral,busca por notícias, imagens visuais, produtos e outras oportunidades. Além disso,a mídia pode ser um instrumento cultural dos internautas.

Os parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) reconhecem que:A globalização econômica, ao promover o rompimento de fronteiras, muda a geogra-fia e provoca, de forma acelerada, a transferência de conhecimentos, tecnologias,além de reolocar as questões sa sociabildiade humana em espeços cada vez maisamplos. A revolução tecnológica, por sua vez, cria novas formas de sociabilização,processos de produção e, até mesmo, novas definições de identidade individual ecoletiva.

Considerando essa realidade e as suas potencialidades, a educaçãoprecisa investir em novos desafios, para garantir aos alunos o desenvolvimento deum conjunto de competências, colocadas como fundamentais para o Ensino.

Quais seriam esses desafios hoje? Pelo menos dois: o da sociedade datecnologia por meio dos signos e comunicação bidirecional e o da sociedade doconhecimento independente, na qual os sabe-res são transitórios e há necessi-dade de estarmos constantemente aprendendo, construindo novas saberes enovas competências, que podem, assim, ser definidas:

[...] capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento crítico, dacriatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para asolução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento divergente,da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críti-cas, da disposição para o risco, do saber comunicar-se, da capacidade de buscarconhecimento.

Enquadrada no pensamento estratégico, a educação deixa de ser con-cebida como transferência de informações e passa a ser norteada pela contextu-alização de se experienciar novas formas de construção, difusão do conhecimen-to e pensamento crítico. Pierre Levy (1999), ao falar da singularidade dos proces-sos de aquisição e produção do conhecimento da atualidade, defende que

devemos construir novos modelos de es-paço de conhecimento. Preferir a imagemde espaços emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se organizandode acordo com os objeti-vos ou contextos, nos quais cada um ocupa uma posiçãosingular e evolutiva.

Um conhecimento que se reexamina, se reprograma e se reconstrói pormeio de “Aprendizado rizomático”. Uma bela metáfora moderna para uma ideiaantiga. Teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em entrevista publica-

Page 206: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

206 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

da no jornal “Liberácion”, em 23 de outubro de 1980, que sustenta: “A noção derizoma foi adotada da estrutura de algumas plantas cujos brotos podem ramifi-car-se em qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se emum bulbo ou tubérculo”.

O que é, então, o Modelo Rizomático de Educação (Rhizomatic Model ofEducation) que Deleuze e Félix Guattari propõem? Como um caule de plantapode nos ajudar a pensar o mundo moderno e a educação? Trata-se de prepararos alunos para lidar com incertezas. Um tipo diferente de aprendizagem, queenvolve criatividade. Como pode ter esse tipo de aprendizagem proposital emuma sala de aula?

Nos séculos XVIII e XIX, o objetivo era ensinar as pessoas a ler e a escre-ver, mas quando começamos a pensar sobre estimular o desenvolvimento dacriatividade, o modelo precisa mudar. É preciso fazer a transição da memoriza-ção para a aquisição de habilidades. Formar pessoas que saibam tomar deci-sões e lidar com incertezas. Neste modelo, não se espera que os alunos termi-nem o curso sabendo diversas coisas, mas sim preparados para tomar decisõessobre diversas coisas. O currículo não é orientado por contribuições predefinidasde especialistas, mas antes construído e negociado em tempo real, a partir dehiperlinks, sob a influência de diferentes gêneros digitais que instigue o aluno apensar, ao ato de confiar na comunidade que o envolve. O aluno é alguém que lê,conceitua um determinado assunto e pode participar em discussões com outraspessoas, isso pode se dar presencialmente ou virtualmente. O ambiente virtualtraz essa acessibilidade, ‘dá sentido’ e o ‘faz crer’ na aparência de ‘estár em’quando em realidade só estamos por percepção.

Nesta perspectiva, os conceitos não são dados prontos, eles nãopreexistem: é preciso inventar, criar os conceitos. Os saberes e experiênciasacumuladas no cotidiano, bem como as informações acessadas de caráterdigital, configuram como elementos norteadores de aprendizagem. Com certe-za, já participamos de contextos rizomáticos sem perceber.

Acompanhando esse conjunto de aquisição e habilidades, as lingua-gens desenvolvidas para divulgar ideias podem permitir a integração e hibridiza-ção dessas linguagens. Como consequência prática, passam a circular, em nú-meros cada vez maiores, novos tipos de gêneros e composições textuais, novaspráticas comunciativas, novos modos de integrar a educação, novas formas deconstrução e socialziação do conhecimento, “Novos Letramentos”.

Apesar de todos esses panoramas parecerem assustador e novo paraalguns educadores, eles, são na realdiade, uma apliação e continuação de umprocesso de mudanças nas práticas de letramento. Basta retrocedermos um pou-

Page 207: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 207

co no tempo para entendermos a veracidade dessa afirmação. Assim, optamospor apresentar um olhar histórico sobre a evolução das tecnologias de comunica-ção, consolidada como forma de registro de textos, cujo objetivo, antes, era ape-nas propagar ideias, hoje gêneros textuais que quebram barreiras de espaço etempo que demandam estratégias cognitivas dos internautas.

Olhar histórico: Mundo ocidental

A história tem comprovado que, de um modo geral, o homem tem busca-do, há séculos, impor suas ideias, princípios ou dogmas, desenvolvendo sempreestratégias argumentativas que influenciassem seu grupo social. Mais recente-mente, na Europa, em fins do século XVIII, acentuou-se a percepção da necessi-dade de enfatizar, de modo mais pertinente, tais estratégias para propagar ideiaspolíticas como ocorreram durante a Revolução Francesa (1789), cujos marcos,queda da Bastilha e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tornaram-se, no período seguinte, a motivação que fundamentou a influência e a forçacomunicacional exercida por Napoleão.

No século XIX, o desenvolvimento dos processos de comunicação au-mentou progressiva e intensamente em vários países do ocidente. Devido a essaperspectiva é que, em 1896, o jornal Daily Mail teve sua maior renda derivada dacomunicação dessas propagações. Começa, então, a se delimitar e a sugir ne-cessidade de divulgar informações com vistas à promoção de vendas de bens eserviços negociáveis, pois pressupõem que o consumidor só adquire bens seconhecer seu valor de uso.

No final do século XIX, a comercialização se expande. A tecnologia e aprodução começam a se desenvolver; os países mais desenvolvidos passam,assim, a criar técnicas de persuasão mercadológica e de organização de estraté-gias comunicativas para exercer, por meio da mídia, o poder de divulgar, esclare-cer ou defender determinados valores ou axiologias, focalizando ideias, práticase posturas que atendem a interesses de determinados grupos. Tais estratégiastornam-se uma das mais importantes práxis do século XX, sendo muitas respon-sáveis por movimentos psicossociais que conseguiram alterar ou inovar paradig-mas culturais em todo o mundo. Citam-se, assim, as falas de Adolfo Hitler, mem-bro do Partido Nacional Socialista alemão, cuja eficiência manipulatória sobre apopulação deu início ao movimento que fez eclodir a Segunda Guerra Mundial(1939-1945).

A guerra, os movimentos separatistas e político-ideológicos incentivamintensamente a industrialização que começa a dar feição diferenciada às rela-

Page 208: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

208 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ções não somente entre nações, mas, sobretudo, entre os interesses de grandesgrupos econômicos, cujas atividades demonstram o status quo de um mundoglobalizado, era da informação, “Era Pós-digital”.

Era Pós-digital

Na Era da informação, também conhecida como Era Pós-digital - períodoque vem após a ”Era industrial”, mais especificamente após a década de 1980,tanto a metodologia de aprendizagem como a estrutura do conhecimento se dissol-veram. O conteúdo de livros ou aulas assim como a estrutura do projeto pedagógicocomeçaram a ser repensados. Os paradigmas da pedagogia passaram a ser de-senvolvidas paralelamente à evolução de tecnologias que permitiram a comunica-ção bidirecional, pois a aprendizagem não já não era mais concebida apenas comomemorização, mas também em contextos, relacionamentos e interações.

Uma nova educação começava a surgir. Os educadores deixaram de serapenas um transmissor de informações, os únicos responsáveis por definir, gerar,gerir e organizar o conteúdo, para serem um orientador/mediador no processo deinteração e construção do conhecimento. A informação tornava-se abundante e defácil acesso, e boa parte do processamento mental e da busca por respostas come-çavam a ser encontrados em ambientes virtuais, por meio de hipertextos. Umarelação funcional que os educandos mantinham por meios de conexões em rede,lendo, discutindo questões de metalinguagem, multimodalidade, história das inter-faces e transparência na leitura de imagens que saltam às telas do computador.

ANDERSON, T & DRON, J. (2012, p. 129)47 especulam sobre qual seria apróxima geração de pedagogia; como a web semântica pode contribuir para aaprendizagem mais baseada em objetos e coletivos, mídia de massa: materialimpresso, Tv, rádio, comunicação um para o outro, redes sociais?

A interação em Educação virtual move-se e o educador deve inserir nestemovimento. Uma ação que leve o aluno para além de consultas individuais comeducadores e das interações em grupo e limitações dos ambientes virtuais deaprendizagem, associadas à pedagogia de aprendizagem virtual. Complemen-tam ainda que “a educação online pode se apropriar, mesmo não tendo sidoelaboradas para a aprendizagem em rede”. O homem, em constante busca pornovas formas de interação social, dada sua característica gregária, aliada à suanecessidade intrínseca de ir ao encontro de novas formas de conhecimentos,está modificando o ambiente e sendo também por ele modificado. Assim, asmídias podem cada vez mais contribuir com fundamentos para o planejamento

Page 209: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 209

do ensino, a formulação de objetivos e preparação dos ambientes de aprendiza-gem, o sequenciamento do currículo e das atividades, mecanismos de reforço ea avaliação do progresso e dos resultados dos alunos.

A máquina de ensinar de SKINNER, B. F. (1958)48, por exemplo, já colo-cava em prática um método de personalização do ensino que é hoje buscado poreducadores e desenvolvedores de ambientes virtuais de aprendizagem.

Jean Piaget (1986-1980)49 criticava a pobreza das pesquisas em pedago-gia na segunda metade do século XX, defendendo a experimentação contínua emetódica em educação, com estudos qualitativos e quantitativos. O psicólogosuíço ressaltava, ainda, a necessidade de que a pedagogia experimental sejamultidisciplinar, envolvendo outras ciências, como sociologia e psicologia.

Nesse sentido, suas ideias podem contribuir para a discussão sobre inte-ração em ambiente virtual. Clark & Mayer (2011)50 por exemplo, argumentam namesma direção quando definem o envolvimento comportamental como qualqueração que um aprendiz realiza, como apertar o botão para fazer leitura de um texto,ir à tela seguinte, jogar um game ou assistir a uma animação. Enquanto desenvol-vimento psicológico, seria o processamento cognitivo do conteúdo oral ou escri-to que leva à aquisição de novos conhecimentos e habilidades, como prestaratenção em um texto relevante, organizar uma apresentação coerente e integrá-la com conhecimento prévio.

Piaget entende que o processo de aprendizagem envolve transformaçãoe construção da realidade por parte do sujeito. Nesse sentido, convém lembrar aafirmação de Sieme (2005)51, quando define: “Nossa habilidade de aprender oque precisamos para amanhã é mais importante do que sabemos hoje”.

Na concepção sócio-histórica, a educação digital só pode ser entendidase considerarmos que os instrumentos, gêneros e signos participam da mesma.Estes são entendidos como efeitos físicos de mudanças no mundo e efeitos psi-cológicos sobre o próprio homem, resultantes de sua própria ação (Vygosky, 1998).

Gêneros digitais - Olhar sígnico

A linguagem permitiu que os membros de um determinado grupo socialcompartilhassem suas experiências pessoais tornando seus conhecimentos co-letivos, mostrar-se, absorver ou perceber informações originais. Chegamos mes-mo a desconfiar que, em certos casos, há um excesso ou saturação de comuni-cação, uma automatização de significados. Correlativamente, o interesse cres-cente pelos problemas de comunicação e a necessidade de maior precisão de

Page 210: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

210 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

mensagem, de qualquer tipo estão vinculadas.Assim como a industrialização cria o mercado de consumo e a necessidade dealfabetização universal, cria também a necessidade de informações sintéticas. Parao grande número: o jornalismo e o livro, no século passado, o cinema, o rádio e atelevisão, em nosso século. Cada um desses meios e todos eles em atrito determinammodificações globais de comportamento da comunidade, para as quais é necessárioencontrar a linguagem adequada. (PIGNATARI, Décio, 2003, p. 18)

Daí que o nosso século é o século do planejamento, das atualizações, denovos projetos para atender ao destinatário atual. Os textos passam a manifestar-se em várias linguagens, isto é, em texto sincrético, a fim de conquistar seu públi-co pela argumentatividade, emprego simultâneo da comunicação verbal e nãoverbal, elemento extremamente importante da nossa cultura. Encontramos osdois tipos no teatro, cinema, televisão, histórias em quadrinhos e na maior partedos anúncios.

O emprego de vários códigos instala a produção ou a interpretação depossíveis variações de significados sígnicos.

Confirma-se, assim, nos gêneros textuais, a importância da visualidadeda escrita e o interesse pela criação. As técnicas têm, portanto, evoluído e seaprimorado com o objetivo de incorporar valores artísticos e atingir público cadavez mais exigente e refinado.

Essa atividade articulatória facilita o reconhecimento do propósito dacomunicação e viola normas e expectativas, mas atrai mais a atenção do leitorpara tais especificidades. Sua primeira e mais importante tarefa, atualmente, éprender a atenção do destinatário; enquanto persuadi-lo a agir tornou-se, possi-velmente, tarefa ou desafio menor.

O leitor virtual confronta-se com a necessidade de mudar o comporta-mento, para se comunicar é preciso interpretar o código espacial, como comentaMaria Thereza Strôngoli (2003, p. 10),

o homem atribui sentido e valor às realidades do mundo, criando conteúdos queatualizam uma linguagem espacial e suas diversas formas de expressão, seja alinguística ou não. Conclui-se, assim, que o espaço constitui um código social que falade outros códigos sociais, ou melhor, o espaço é o modo pelo qual a sociedade nãosomente reflete sobre si mesma, como reflete o que essa sociedade é.

Page 211: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 211

Comunicação - Teoria do texto e comportamentos

A comunicação, afirma Robert Vion (1992: 32)1, “não remete para umateoria da mensagem (processos de codificação, de transmissão e de decodifica-ção), mas a uma teoria de comportamentos, sejam verbais ou não verbais.”2.

Antônio Sandmann (1993: 12), considera que o homem “vive num universosaturado de estímulos”, mas nem sempre compreende esses estímulos, assim nãoconsegue dar atenção e assimilar todas as mensagens que lhe chegam por meioda comunciação de massa, rádio, televisão, jornal, revistas, outdoors, internet etc.

Para entendermos ese universo de estímulos, vamos nos deter, então, naquestão dos signos que constituem um suporte e um gênero digital. ConsideramSOUZA A.G. & Carvalho E.P.M. (2006), com base nas categorizações: ‘canal, meio,veículo etc’ vista em MARCUSCHI (2005); na perspectiva de BAKHTIN (1997) deque o estilo é fator determinante para o gênero; e de MAINGUENEAU (2005) deque uma modificação do suporte modifica um gênero, que o software seja osuporte de uma escrita virtual.

Os gêneros, no mundo virtual, receberam os sentidos da socialização eda competência que caracterizam os processos cognitivos (ser) e pragmáticos(fazer) do adulto. O signo pode ser compreendido, como fazem Oswald Ducrot &Tzvetan Todorov (1972: *128), como uma entidade que pode “tornar-se sensívelpara um grupo definido de utentes e marcar uma ausência nela própria”. DesdeSaussure, a parte do signo que se pode tornar sensível é chamada significante; aparte ausente, significado; e a relação que ambas mantêm entre si, significação.

Quase todos os teóricos distinguem, no signo, a significação denotativa ea significação conotativa. Enquanto a primeira resulta de sua função referencial,ou seja, de sua relação de significante, palavra, com o objeto real, a segundadestaca a significação particular produzida pelo conteúdo emocional, experi-mentada por um dado grupo cultural e forjada por esse grupo.

Descreve Vion (Ibid. p. 31):que todo texto, qualquer que seja sua natureza, apresenta-se como uma reprise-modificação, consciente ou não de textos anteriores. As relações intertextuais resul-tam do fato que toda forma de consciência ou de conhecimento passa por umaatividade discursiva. Encontramos aqui o que outros autores chamam função simbó-lica da linguagem segundo a qual, por seus funcionamentos, a linguagem organiza,estrutura, categoriza a experiência do mundo3.

1 Todos os textos citados em língua estrangeira são traduzidos por mim.2 La communication ne renvoie à une théorie du message (des procesus d’encodage, de transmission etde décodage), mais à une théorie des comportements, qu’ils soient verbaux ou non verbaux.

Page 212: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

212 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

A impossibilidade interpretativa de um leitor não saber interpetar um gê-nero é explicada por sua ausência de discurso próprio, infantil, ou seja, sua incapa-cidade de interpretar a cultura por meio de escolhas e combinações enunciativaspróprias, ausência comprovada, pela na própria etimologia da palavra infantil: “dolatim in-fans-antis ‘que não fala, infantil’, de fari ‘falar’ “ (Antonio G. da Cunha, 1982:435). Essa limitação cognitiva ou pragmática implica, portanto, a incapacidade deter ou receber o “poder da palavra”, ou seja, o domínio da escrita ou da fala. Cabe aoleitor, ainda com discurso infantil, reprisar e modificar o conhecimento por, confor-me o cognitivismo, fases (registro, reconhecimento e assimilação) e, à medida quepratica os processos de significação e categorização, organizar seu pensamento eexercitar não apenas a linguagem, mas o discurso.

Essa pesquisa, embora não exaustivas, demonstra a importância dosexercícios de leitura e auxilia o educador a compreender o grande interesse dosalunos, em sala de aula, pela investigação dos recursos utilizados na construçãodo conhecimento, também, por meio de gêneros virtuais, assim como a eficáciada interação coerente dos dois códigos: o linguístico e o visual. Observa-se que,enquanto o uso recorrente dos dois códigos facilita a economia da comunicação,a busca do esclarecimento da ambiguidade, criada por seus jogos simbólicos,desperta a curiosidade da leitura.

Esse conhecimento pode auxiliar o aluno a desenvolver a prática daleitura sincrética, ou seja, a compreensão da interação dinâmica da língua com asimagens, e a entender que ambos os sistemas situam-se “aquém e além do signo”.

Tal fato motiva esse aluno a interessar-se pela leitura de textos, comoafirma Denis Bertrand (2000, p. *400), já que a prática da leitura objetiva, noensino fundamental, assegurar a aprendizagem do “domínio do discurso a servi-ço da formação do cidadão”.

O texto é definido a partir de fatores de estruturação interna que o consti-tuem como uma unidade de comunicação, independentemente se sua manifes-tação é oral ou escrita, verbal ou não-verbal, ou composta de mais de uma lingua-gem. Nessa perspectiva, o texto e o discurso que o subsume são definidos, porsua natureza dupla e complementar, como uma estrutura coesa e coerente designificação e, ao mesmo tempo, como um objeto de comunicação, cujo códigoé passível de se articular com outros códigos, constituindo, por conseguinte, uma3 Cette problématique du langage implique que tout texte, quelle que’en soit la nature, se présente commeune reprise-modification, consciente ou pas, de textes antérieurs. Ces relations interxtuelles résultent du faitque toute forme de conscience ou de connaissance passe par l’activité discursive. Nous retrouvons ici ceque d’autres appellent la fonction symbolique du langage selon laquelle, par ses fonctionnemensts, lelangage organise, structure, catégorise l’expérience du monde.

Page 213: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 213

unidade sincrética. O termo sincretismo constitui uma forma classificatória paraindicar a condição de discursos, teorias, culturas, publicidade, etc., serem passí-veis de constituírem uma unidade, mesmo conjugando-se a outras de sua cate-goria ou classe.

Educação - Sociedade da Comunicação e da Informação

Por que as escolas resistem às mudanças? Precisamos analisar o papeldo profissional da educação na contemporaneidade, sua práxis pedagógica eseu compromisso com a educação nos espaços mais amplos da sociedade;Refletir sobre as mudanças dese profissional, por meio do tempo e da expansãodo universo virtual. Instrumento de formação de sujeitos engajados em um con-texto maior, revalorização junto à sociedade e, sobretudo, de que precisam teruma melhor formação profissional e ética, discutir como a relação professor-aluno constrói também novos sentidos. Sentidos esses que não estão livres “do jádito” por uma rede de filiações que estão colocadas sobre o que é ser aluno e oque é ser educador, assim como sobre o que é o ensino virtual? Questões essasque ultrapassam as fronteiras nacionais e se fazem presentes em um fazer peda-gógico mundializado são os objetivos desse trabalho.

Seguindo esse fio condutor, “Educação – Sociedade da Comunicação eda Informação” discute-se à integração e uma referência à essa nova sociedadeeducacional, especialmente a estudantes, educadores e pesquisadores sobre adinâmica de conhecimento e o “Aprendizado rizomático”.

A vida escolar pode ser, e deveria ser uma experiência intrínsecamentemotivadora. As dúvidas, então, residem em por que com tanta frequência istodeveria acontecer, e como resolver esses problemas? Como incorporar e combi-nar ferramentas da web e dos ambientes virtuais, pessoais e sociais de aprendiza-gem colaborativa, individual e/ou em grupo, redefinindo a função do educador?

Contribuindo para as reflexões sobre o tema, constituir-se-á em um acer-vo signicos: histórias, teorias tecnológicas, associadas à aspectos pedagógicos eavaliativos, operacionalidade da mídia e tendências atuais e futuras. Informaçõesque estimulam a construção do conhecimento, por meio de multiplicidade derecursos pedagógicos que puderam ser desenvolvidos após o grande avançotecnológico dos últimos tempos.

Page 214: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

214 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Alento: Figura do educador

Nesse contexto, merece destaque a figura do educador, que tem a mis-sãode mediar o processo educativo, discutir, refletir pesqui-sando e construindo as-sim novos e significativos conhecimentos. Na sociedade da evolução, onde oconhecimento e as inovações tecnológicas estão, cada vez mais, ao alcance dosalunos fora do espaço escolar, a função social da escola e o papel do educadoradquirem outra dimensão, metodologia de aprendizagem independente, diferen-te daquela que, em tempos anteriores, era por muitos apregoados, ou seja, agen-tes primeiros de difusão do conhecimento e da informação, ferramenta colabora-tiva do conhecimento na rotina escolar

São várias as transformações, no entender do economista Ladislau Dow-bor, 1994: 23, tais como a internacionalização ou globalização do espaço mundi-al, graças aos avanços tecnológicos, sobretudo às descobertas eletrônicas, pos-sibilitadoras de trocas informacionais rápidas e seguras; a urbanização, respon-sável pelo desenvolvimento de grandes cidades em detrimento das zonas rurais,fato que determina mudanças estruturais nos aglomerados urbanos; as dimen-sões do Estado, explicitadoras da questão participação do governo X privatiza-ção, enfatizando, frequentemente, como modo ideal, a existência de um estadopequeno e eficiente; finalmente, o progresso tecnológico seria o último e maisforte fator determinante das transformações verificadas nas sociedades hoje.

Essas transformações, voltadas ao trabalho pedagógico, demanda umnovo perfil educacional que, efetivamente, contribuem para a melhoria da quali-dade da educação em todos os seus níveis de modalidades.

Segundo Ilma Passos, 2003, p. 32Introduzir inovação tem o sentido de provocar mudança no sistema educacional. Decerta forma, a palavra ‘inovação’ vem associada à mudança, reforma e novidade. O‘novo’ só adquire sentido a partir do momento em que ele entra em relação com o jáexistente.

Sem uma inovação que programe novas alianças estratégicas para a for-mação do saber, capaz de investir em posturas críticas-reflexivas de gestores, pla-nejamento, avaliação e a redefinição da prática docente, buscar o novo, não sepassará de esforços infrutíferos, que nos permitem saída de caminhos sem rumo.

Em uma de suas vertentes, as referidas inovações estão aliadas à moda-lidade da educação independente, por meio dos gêneros digitais, oferecendopossibilidades múltiplas para os sujeitos que mergulham no oceano de informa-ção, que se embrenham em seu emaranhado de nós e transpassam seus bura-

Page 215: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 215

cos labirínticos. Sua materialidade, gêneros digitais, permite-nos uma nova rela-ção tempo-espaço dada pela velocidade com que faz circular os sentidos em suainfovias, essa materialidade, ou melhor, essa fisicalidade dispersa, fragmentada,líquida, faz surgir também novos sujeitos e novos discursos.

Muitos dos desafios que hoje enfrentamos estão relacionados à frag-mentação do conhecimento tão característica do processo educacional, quesomente poderão ser modificados por uma prática constantemente repensada,reflexiva, propiciadora de crescimento e mudança que possibilite aos protagonis-tas do processo escolar partilhar o prazer de aprender e conviver.

Por isso, para pensarmos essa metodologia de aprendizagem indepen-dente e os sujeitos e discursos que nela se constroem, estaremos ancorados nateoria da aprendizagem rizomática, no contexto escolar, tendo como ferramentaprincipal a internet, os gêneros digitais, as relações entre escrita, leitura e oralida-de e seus inter-relacionamentos.

Nesse cenário, o universo da Educação mostra-se como que envolvidonuma complexa fermentação, atravessado por impulsos radicais, tensões, novosdesafios, instâncias de radicalização, de autocrítica, de desmascaramento dealgumas - ou de muitas- de suas “engrenagens” ou estruturas. Uma metodologiade aprendizagem independente, desafiando novos ambientes, novas fronteiras,elaborando novos procedimentos no cenário Era Pós-digital.

Conclusão

Um dos grandes desafios do século é a qualidade da educação, assimcomo a formação e a valorização humana, apontada como solução para o desen-volvimento das nações.

As instituições educativas têm por tarefa preparar os alunos para o letramen-to, que, entre outras coisas, exige deles novas competências: cri-ar, pensar, proporsoluções, conviver em equipe - competências essas compatíveis com as novas con-figurações do processo produtivo. Essas transformações estão modificando significa-tivamente a identidade do aluno, que passou, da noite para o dia, a ser valorizado comoalguém que deve pensar e propor, embora com a finalidade de gerar maior produtivi-dade, que gere maior lucro. (PIMENTA, Selma Garrido, 2002,. p. 100-101).

A fim de potencializar a capacidade de aprendizagem de novos conheci-mentos, é preciso criar oportunidades de crescimento e conhecimento, criar ins-trumentos de avaliação de qualidade.Reestruturar modelos curriculares e progra-máticos superados diante das exigências de um mundo competitivo.

De fato, as transformações atingem as instituições escolares de modo

Page 216: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

216 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

contundente. Seus princípios são questionados, currículos são revistos, avalia-ções implementadas, tendentes a dotar qualidade ao ensino/aprendizagem. Pa-drões que normalizem a escolarização, incentivo para novas experiências educa-tivas pautadas, geralmente, por políticas que, ao financiarem determinados pro-gramas, tentam implicar as escolas em outras dinâmicas de ensino/ aprendiza-gem. (ALONSO, Katia Morosov, 2008)

Nas propostas de transformações, destaca-se, numa esfera atual e glo-bal, o uso mais intenso de computadores/TICs. As pessoas cresceram cultural-mente dentro de um espaço presencial e virtual. Diante dessa realidade, o papeldo ensino é de transformar o processo de ensino-aprendizagem. Pretende-se quea incorporação das TICs, no ensino, seja elemento catalizador de mudançassignificativas na aprendizagem dos alunos.

Para assegurar o acesso ao ensino e ao Letramento a segmentos cada vezmaiores da população, em qualquer estado ou país, sempre usando tecnologiaspopulares, como televisão (apoiada pelo material impresso) e Internet, algumas insti-tuições têm buscado oferecer curso de capacitação ao educador. Estimular um novomodelo pedagógico, oferecer subsídios a conexão entre as informações, o que pro-porciona a construção do conhecimento do educador e, consequentemente, do alu-no, por meio de multiplicidade de recursos pedagógicos que puderam ser desenvol-vidos após o grande avanço tecnológico dos últimos tempos.

A educação pode, assim, ser caracterizada como um processo social e inte-rativo. A escola como uma forma de vida social, insistindo na importância da atividadedo aluno no processo de aprendizagem. O educador não está mais na escola apenaspara impor certas ideias ou para formar certos hábitos na criança, mas sim como ummembro da comunidade para selecionar as influências que possam afetar a criançae assisti-la a responder apropriadamente a essas influências.

MOURA, Marilda Franco. Education: gêneros textuais no mundo virtual. DIALO-GUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: It talks about the pedagogical settings from the conceptions of edu-cation, through the digital genres, the evolution of this type of education and theirinter-relationships in the Post-Digital Era. As part of the strategic thinking, educati-on is a historical process, reflects and reproduces society, but also projects thesociety as we want. Thus, education is no longer conceived as a way of transfer-ring information, and shall be guided by the contextualization of knowledge that isuseful to the student. “Rrhizomatic learning”, a knowledge that is reexamined, thatrevises their own identity, which is reprogramed and reconstructed.

Page 217: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 217

KEYWORDS: Education; Technological Innovation; Digital Genre; Icon.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:ALONSO, Kátia Morosov. Avaliação em EAD: A Avaliação e a Avaliação naeducação a Distância: algumas notas para reflexão. Disponível em:<http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2002/ead/eadtxt5b.htm>. Acesso em: 10jul. 2009.Anderson, T., & Dron, J. (2012). Learning technology through three generati-ons of technology enhanced distance education pedagogy. European Jour-nal of Open, Distance and E-Learning, 2012/2.Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BER-TRAND, Denis (2000). Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003.BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. Secretaria da Educação Funda-mental. Brasília: MEC/SEF, 1998.BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: PCN ensino médio, ciênciasda natureza, da matemática e suas tecnologias. Ministério da Educação. Bra-sília: Ministério da Educação/Secretaria da Educação Média, 1999.CLARK, Ruth Colvin; MAYER, Richard E. E-learning and the science of instruc-tion: proven guidelines for consumers and designers of multimedia lear-ning. 3. Ed. Pfeiffer, 2011Cormier, Dave (07-2008). Rhizomatic education: Community ascurriculum. Innovate 4 (5), Junho/Julho de 2008. Disponível em http://www.innovateonline.info/index.php?view=article&id=550 [acedido em 15-12-2008]CUNHA, Antônio G. da (1982). Dicionário etimológico nova fronteira da lín-gua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvetan (1972). Dicionário das ciências dalinguagem. Lisboa: Dom Quixote, 1973.MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão dos suportes dos gêneros textuais.UFPE/CNPq, 2003______. Da fala para escrita: Atividades de retextualização 6. ed. São Paulo:Editora Cortez, 2005.

Page 218: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

218 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças. Docência no ensinosuperior. v.1. São Paulo: Cortez & Moraes, 2002. 273 p.JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comuni-cação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 47 - 66.MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar, 2005.PIAGET, Jean. Psicologia e pedagogia. Trad. Dirceu Accioly Lindosos e RosaMaria Ribeiro da Silva. 10. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010.Levy, Pierre. Cibercultura. São Paulo : Ed.34, 1999.PIGNATARI, Décio. Informacao, Linguagem e Comunicação, São Paulo: Pers-pectiva, 2003.SANDMANN, Antônio (1993). A linguagem da propaganda. São Paulo: Contex-to.SIEMENS, George. Connectivism: a learning theory for the digital age. In-ternational Journal of Instructional Technology and Distance Learning, v.2, n.1, jan.2005.SKINNER, B. F. Teaching machines. Science, v. 128, n. 3.330, p. 969-977,24 out.1958.SOUZA, A. G., Carvalho, E. P. M (2006). Uma noção de Suporte Virtual. In.: Anaisdo simpósio de hipertexto e tecnologia na educação NEHTE, UFPE: 2006.SOUZA, C. S. de. Interação Humano-Computador: perspectivas cognitivas e se-mióticas. In: Anais das Jornadas de Atualização em Informática. Rio de Ja-neiro: Edições EntreLugar, 1999.STRÔNGOLI, Maria Thereza (2003). A linguagem do espaço em textos da mídia.In Polifonia. Revista da UFMT, nº 6, p. 33.VYGOTSKY, L.S. (1998). Formação Social da mente. São Paulo: Martins Fontes.VION, Robert (1992). La communication verbale: analyse des interactions.Paris: Hachette.

Page 219: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 219

DUAS REPRESENTAÇÕES DA ESCOLA NA LITERATURA DOSÉCULO XIX NO BRASIL

Rodrigo Marques de Oliveira*

Resumo: Embora pertencentes a diferentes visões de mundo e períodos artísti-cos, o romance Til, de José de Alencar e o conto intitulado Conto de Escola, deMachado de Assis, apresentam duas representações similares da escola no Bra-sil no século XIX no que se refere ao descompasso entre as práticas pedagógicasutilizadas pelos professores, autoritários e violentos, e a efetiva educação dascrianças. Neste artigo, objetivamos discutir como a narrativa alencariana, em suaproposta nacionalista e civilizatória, e a machadiana, em sua abordagem niilistae irônica, retratam o referido desencontro existente no ambiente escolar, micro-cosmo das tensões sociais do período e das contradições inerentes ao próprioser humano.

Palavras-chave: escola, literatura, representação, ficção, história

Puro nos costumes, no dever exatoModesto, polido, cheio de bondade,Paciente, pio, firme no caráter,Zeloso, ativo e tão prudenteEm punir como em louvar;Agente sem ambições, apóstoloEm quem a infância se modela,Espelho em que os mundos se refletem,Mito e sacerdote, juiz e pai,Eis o mestre, eis o professor.

(A. de Almeida Oliveira. O Ensino Público).

A representação do professor apresentada por Antônio de Almeida Olivei-ra em seu livro O Ensino Público, publicado originalmente em 1874 e reimpressoem 2003 pela editora do Senado Federal, parece-nos, de um lado, evocar aimagem heroica do “mestre”, sujeito compromissado com a missão de irradiarsua luz aos jovens ávidos por modelos, tornando-o verdadeiro demiurgo moral.

* Doutor em Estudos Literários pelas UNESP/Araraquara e Coordenador do curso de Letras do CentroUniversitário Barão de Mauá.

Page 220: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

220 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Por outro lado, o tom altissonante e a adjetivação abundante para caracterizar odocente podem ser compreendidos como uma estratégia discursiva-ideológicade revalorização da docência e da escola, instituição em crise no conjunto desuas propostas reformistas e republicanas. Tal tensão expressa na tessitura deseus versos também se faz presente em diferentes obras da literatura da segundametade do século XIX, dentre elas o romance Til, de José de Alencar e em o Contode escola, de Machado de Assis, como objetivamos tratar neste artigo.

Reconhecendo os limites e os perigos de uma perspectiva que se apropriade textos literários como objeto de análise de questões de uma época e de umasociedade, procuramos, pois, evitar o emprego de abordagem que procure, pormeio de uma relação casuística e mecânica, justificar aspectos exteriores aoobjeto artístico na obra. Dessa forma, buscamos trilhar por um percurso episte-mológico que dialeticamente considere os aspectos exteriores ao fenômeno es-tético como intrínseco ao próprio cerzir discursivo, à economia textual em suaexpressividade:

Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta oelemento social não externamente, como referência que permite identificar, na maté-ria do livro a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nemcomo enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da pró-pria construção artística, estudado no nível do explicativo e não ilustrativo (CÂNDI-DO, 2000, p. 8).

As vozes de uma época fazem ecoar na construção do jogo artístico, ora con-vergentes, ora divergentes, claras e obscuras, explícitas e implícitas na tecelagem dedubiedades, próprias da manufatura literária. Nas palavras materializadas no liamedas frases, nos recursos narrativos articulados e na costura da trama proposta estãotambém impressas as visões de mundo, as percepções das relações humanas vigen-tes, os modos de exercício ou submissão ao poder entre outros.

Publicado inicialmente em folhetim entre 1871 e 1872, o romance Til, de Joséde Alencar, filia-se ao conjunto de obras classificadas como Romances Regionalistasdo Romantismo no Brasil, em que a apresentação das paisagens idealizadas dointerior do Brasil compunha o cenário de enredos envolvendo, não raramente, jovensimpedidos de gozarem a avassaladora paixão que os acometia. O interior paulista,mais precisamente a região próxima a Campinas, serve à narrativa de cenário idílico,envolvente ao gosto do gênero, em que o suspense, o leve humor e os dilemas daidealizada Berta compõem uma fórmula narrativa de grande sucesso.

Obediente à premissa de mostrar o Brasil ainda desconhecido aos brasi-leiros leitores de folhetins, Alencar compõe uma trama em que duas esferas de

Page 221: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 221

existência se opõem e se atraem: a do violento mundo masculino, composto porcapangas, mercenários, intrigas e embocadas, e a do acolhedor mundo femininoque, embora vitimado por homens, mantém-se organizado como espaço de afe-to, composto por jovens belas de corpo e caráter, mães e madrastas. Símil a ummito cosmogônico – ao gosto de diversas narrativas alencarianas – a convivênciaentre mundos tão antagônicos, o caos masculino e a ordem feminina1, acabampor gerar um percurso narrativo propício à heroica Berta que, em sua jornada pormundos em desequilíbrios, acaba por fundar uma nova ordem.

As aventuras da conciliadora e gentil menina são ambientadas, não gratui-tamente, em torno da Fazenda Palmas, espaço de desavença entre homens,administrada pelo patriarcal Luís Galvão, típico latifundiário do interior paulista. Anosso ver, esse microcosmo mítico do embate entre as forças masculinas e femi-ninas se revela concomitantemente uma espécie de microcosmo social, arenados conflitos políticos e ideológicos2 que fomentavam discussões no Brasil aindamonárquico, assombrado pelo fim da escravidão e o perigo da República.

Na verdade, o uso do mito como expediente discursivo para encenar even-tos históricos, sociais e políticos é comum a diferentes obras de José de Alencar,pois o autor aparenta aproximar os pares antagônicos de suas narrativas a fim deeliminar as suas contradições. Nessa leitura, a força feminina de Berta tem porescopo dominar a pulsão violenta emanada da esfera masculina e levá-la a harmo-nizar-se a uma nova ordem. Para Alfredo Bosi, essa técnica discursiva também é

1 A oposição entre o violento mundo masculino e o terno mundo feminino já se cristaliza na cena inicial doromance pelo modo como a protagonista da obra e o capanga Jão Fera são descritos. Berta é caracterizadacomo uma extensão da natureza paradisíaca do Brasil: O viço da saúde rebentava-lhes no encarnado dasfaces, mais aveludadas que a açucena escarlate recém aberta ali com os orvalhos da noite. No frescosorriso dos lábios, como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-lhes a seiva d’alma. Ela, pequena,esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do prazer de pular e correr; saciando-se na delícia inefável de se difundir pela criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante.(Alencar, 2012, p.15). Em contrapartida, Jão Fera é retratado como uma besta selvagem, armada emonstruosa ao ambiente harmonioso da jovem menina: A orla do mato assomara o vulto de um homem degrande estatura e vigorosa compleição, vestido com uma camisola de baeta preta, que lhe caía sobre ascalças de algodão riscado. Apertava-lhe a cintura rija e larga faixa do couro mosqueado do cascavel, ondevia-se atravessada a longa faca de ponta com bainha de sola e cabo de osso grosseiramente lavrado. Emuma das bandoleiras trazia o polvarinho e munição; na outra suspendia um bacamarte, cuja boca negra esinistra aparecia-lhe na altura do joelho esquerdo, como a face de um dragão que lhe servisse de rafeiro.(IDEM, p.17)2 Para EAGLETON (2011), o romance é gênero literário mais propício para a encenação das disjunçõesentre o indivíduo e o seu mundo: “O romance surge quando essa integração harmoniosa entre o homem eo seu mundo é estilhaçada; o herói da ficção agora busca a totalidade (...). Sua ficção reflete, assim, emuma forma microscópica, a complexa totalidade da própria sociedade“. (p.56)

Page 222: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

222 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

utilizada no romance indianista O Guarani, livro do autor cearense em que:O mito é uma cabeça mediadora, uma cabeça bifronte. Na face que olha para aHistória, o mito reflete contradições reais, mas de modo a convertê-las e a resolvê-lasem figuras que perfaçam, em si, a coincidentia oppositorum. Assim, o mito alencarianoreúne, sob a imagem comum do herói, o colonizador tido como generoso feudatário, ecolonizado, visto ao mesmo tempo como súdito, fiel e bom selvagem (2010, p.180).

Filho de senador, deputado de posições reconhecidas até hoje como con-servadoras, José de Alencar parece projetar no espaço narrativo de Til as preocupa-ções de um homem público temeroso em face à possível dissolução da ordemsocial, certamente suplantada por outra que poderia promover a “violência de ho-mens”. Escrito sob o impacto da Lei Eusébio de Queirós de 1871, a narrativa podeser associada à expressão dos receios do autor quanto às consequências da liber-tação dos escravos e aos impactos que isso acarretaria à sociedade de seu tempo.

Em meio ao perigo iminente do caos social, Berta se transfigura estetica-mente em personagem que encarna a luta contra a implantação dessa formaselvagem e violenta, ao buscar conciliar os homens em discórdia e, especial-mente, trazer a sua luz (metáfora usada no próprio texto) à selva escura masculi-na. Por meio de tal expediente discursivo, a personagem idealizada desempenhaa função de agente civilizatório, de força que busca infiltrar-se na alma daquelesdesprovidos de concórdia, dotados de rude espírito belicoso.

Parece-nos que o caráter conciliador e civilizador da heroína na narrativaé o que precisamente falta aos homens no Brasil aos olhos de Alencar, sobretudopara aqueles que descreem do processo evolutivo e harmonioso das civilizações.Se entendermos que o percurso de Berta no jogo textual revela a vitória da con-córdia e da caridade feminina sobre a discórdia e a violência masculina, compre-enderemos que a protagonista exerce uma função educativa, transformadora dosque não se coadunam com a evolução natural de um povo.

Berta, como criatura que ensina e que transforma, sofre, assim, constantesameaças de antagonistas indispostos ao aprendizado e propensos à imposiçãode suas vontades criminosas. Se suas palavras são capazes de dominar e aman-sar a fúria do capanga Jão Fera ao longo do texto que, de terrível criminoso noinício da narrativa acaba por se tornar trabalhador do campo, elas também sefazem inócuas a Ribeiro, incapaz de retroceder em suas convicções, restando-lhe, assim, a orquestração de crimes.

São, pois, essas duas esferas, a das palavras que educam e transformame a das ações violentas, que aparentam reproduzir na urdidura textual os embatescalorosos de partidários de posições políticas contrárias. Para o escritor cearense,

Page 223: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 223

a imposição do fim da escravidão por lei fomentaria a derrota da concórdia e asupremacia da força, o que levou a diversas vezes se manifestar veementementecontra a interferência do Estado em assunto que julgava próprio da nação. SegundoJosé Murilo de Carvalho, organizador da publicação das chamadas Cartas a Eras-mo, de José de Alencar, o autor cearense defendia que a escravidão era um produtoda história e com ela desapareceria, tal como ocorreu com o Feudalismo e que:

Os países que hoje a condenam mantiveram a servidão durante séculos e implanta-ram a escravidão em suas colônias. A escravidão não foi instituída por lei e nãodesaparecerá por uma lei. O Brasil, continua, estava caminhando no sentido daabolição, e não cabia ao governo intervir. Sua extinção devia dar-se por via indireta,promovida pela nação, não pelo governo, sobretudo quando este agia despotica-mente sob a pressão ilegítima do Poder Moderador (2009, p.23).

Contra a violência da imposição da lei deveria existir o poder transforma-dor das palavras e a aposta de que as fissuras sociais seriam extirpadas com oprogresso da civilização. Progresso esse que passaria necessariamente por mu-danças no sistema educacional para que, no seio das diferenças, comuns aqualquer sociedade, pudesse se estabelecer a mediação da palavra e a transfor-mação dos sujeitos. Tal consciência de que um novo modelo educacional propi-ciaria um avanço significativo na linha evolutiva da sociedade brasileira passa, nanarrativa, pelas ações de mulheres, sobretudo nas de D. Ermelinda e Berta, mo-delos não só de indivíduos de um novo país, mas especialmente de educadoras.

Em interessante jogo textual, a esposa do latifundiário, D. Ermelinda, é apre-sentada aos leitores como uma mulher refinada, protótipo do apuro de espírito quesó a boa educação promoveria a Alencar. Filha de capitalistas de Campinas eformada em colégio inglês da corte, de influência não paulista, “mas fluminense; enão fluminense pura, senão retocada pelo apuro escocês e pela graça francesa.”(ALENCAR, 2012, p.34), procura com sua fidalguia evitar as influências interioranas,rudes e selvagens no conjunto de seus valores. Cumprindo a missão civilizatória,“como esposa, ela conseguira transmitir ao marido um toque do seu garbo nativo,embotando as asperezas de uma educação grosseira e extirpando hábitos da infân-cia descurada.” (IDEM, p.35) e como mãe zelosa, buscava inspirar em seus jovensfilhos, Linda e Afonso, o mesmo espírito aristocrático, digno de sua condição social.

Todavia, no seio dessa família que D. Ermelinda pretendia imune às influ-ências interioranas havia um perigo latente, a representação da barbárie, do pe-rigo da falta de educação, Brás, sobrinho de Luís Galvão, que, sendo órfão demãe, era desprovido minimamente de luz, um sandeu, reiteradamente caracteri-zado pelo epíteto de o “idiota”. De espírito parvo, contrastava não só em beleza e

Page 224: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

224 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

em fidalguia com o resto da família, mas com o modelo de educação da refinadamulher que, com imenso desgosto, sofria por não conseguir colocar ordem àdesordenada existência do menino.

[...] via-se um menino de 15 anos de idade, cuja figura destoava de todo o ponto, noquadro daquela família, que respirava a graça e a inteligência.

Era feio, e não só isso, porém mal amanhado e descomposto em seus gestos. Tinha umar pasmo que embotava-lhe a fisionomia; e da pupila baça coava-se um olhar morno,a divagar pelo espaço com expressão indiferente e parva. Curvado como um arcosobre a mesa, com as vestes em desalinho e os cabelos revoltos, abraçava uma xícarade almoço, que lhe ficava abaixo do queixo; e escancarando a boca enorme parasorver de um bocado a grande broa de milho, ensopada no café, mastigava a tenramassa a fortes dentadas e sofregamente como se estivesse rilhando um couro.

Percebia-se logo que a influência de D. Ermelinda não penetrara nesse membroenfezado da família, refratária a todo o preceito de ordem e arranjo. Por isso a donada casa, quando presidia a mesa de seu lugar de honra, observando o serviço eocupando-se de todos, não transpunha aquele ângulo, onde sentava-se o peque-no. Se acontecia a seu olhar, circulando a sala, passar por aí, cegava-se e fugia comdesgosto (IDEM, p.36-37).

A descompostura na mesa e a aparência desarmônica de Brás são signosda “não cultura” tão perigosa à estabilidade da ordem familiar que aflige D. Ermelin-da e que pode ser lida, metaforicamente, como o receio alencariano a respeito dadesordem civilizatória que leis violentas poderiam desencadear à ordem social jáestabelecida. Como mulher e mãe, a esposa de Luís Galvão representa os pilaresda tradição educacional familiar que, no entanto, não penetra na alma dos órfãos devalores tão nobres, empurrados para o obscurantismo da caverna de Polifemo3.

Longe de uma postura alarmista e negativa de futuro, Alencar parece com-preender que a escola deveria ocupar o papel de se infiltrar onde a força daeducação familiar não conseguia entrar. Se os olhares da ciosa mãe de Linda eAfonso fugiam aos do parvo Brás pelo desgosto do insucesso de seu métodoeducativo, maior perigo representaria uma escola masculina que reproduzisse aselvageria dos homens junto às crianças já privadas de boa orientação.

Isso é justamente o que ocorre com Brás que, sem estar de fato inserido na3 No canto IX da Odisseia de Homero, o herói Odisseu em sua tentativa de regresso ao lar, encontra ogigante e monstruoso Polifemo na ilha dos ciclopes, povo sem cidades, sem agricultura e não tementes aDeus. No conjunto de valores do herói, símbolo do orgulho grego, o gigante e o seu povo são qualificadosno verso 189 como athemistes (sem cultura política, sem respeito à ordem humana), o que reforça aoposição civilizado/bárbaro, em muito reiterada no poema épico. Logo, a imagem da caverna, morada dePolifemo no poema homérico, é representativo de um local privado de civilização.

Page 225: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 225

ordem da Casa-Grande da Fazenda Palmas4, adentra num outro espaço de ex-clusão e barbárie: a sala de aula do professor Domingão. Se D. Ermelinda pos-suía uma fidalga educação, o mestre era caraterizado por ser um homem robusto,antigo ferrador que trazia da antiga profissão os meios necessários para alterar oscomportamentos “das crianças imunes à boa educação”.

Fiel às tradições da antiga profissão, entendia ele lá de si para si que um bomprocesso de ferrar bestas devia ser por força excelente método de ensinar a leiturae a tabuada: e fossem tirá-lo dessa ideia! Assim encaixava o abecê na cachola domenino com a mesma limpeza e prontidão com que metia um cravo na ferradura. Eranegócio de dois gritos, um safanão e três marteladas. Tal era o professor, a quem foiincumbida a tarefa de ensinar a ler ao Brás (ALENCAR, 2012, p.95).

Longe da ambientação fluminense-europeia, o professor Domingão represen-ta a imagem do atraso das concepções pedagógicas usadas nas escolas brasileiras,inadequadas ao progresso necessário ao país e, por isso mesmo, agentes de prolife-ração de violência e brutalidade. No espaço escolar representado, as crianças sãotratadas da mesma forma que se tratavam animais, em que os safanões e os gritosintermediavam a relação entre o professor e o aluno, entre o ferrador e o cavalo.

Luís Galvão, embora descrente do sucesso da escola pública de SantaBárbara em iluminar seu sobrinho, leva a criança às aulas do severo professorque, paciente nos três primeiros dias, os de indulgências, não deixou de se es-pantar diante do inepto estudante, “jumento de casco tão rijo” (p.95). Passado operíodo para perdões, o mestre implacavelmente aplicou a sua didática pautadanos carolos à cabeça de Brás, nos gritos, nas ofensas, nas humilhações e, sobretu-do, no uso de seu instrumento pedagógico mais terrível: a palmatória. Para o espan-to do mestre, o seu método, até então eficaz, em nada modificou o espírito enfermi-ço do menino, pois “não conseguiu dele em um mês que repetisse o nome das trêsprimeiras letras.” (p.95). Com as mãos doloridas pelos golpes da palmatória e coma cabeça empolada pelos golpes de Domingão, o menino chamado de idiota fogedo convívio escolar, escondendo-se costumeiramente no mato.

Cabe, então, a Berta, a generosa protagonista do enredo, encontrar o me-nino no espaço de bestas e trazer a marginalizada criança para um local quepoderia tirá-la do atraso existencial, o da afetividade. Em metodologia francamen-te oposta à de Domingão, a jovem personagem compreende que só o afeto, coisa

4 A marginalização de Brás é plenamente evidenciada na seguinte passagem: “Consentia D. Ermelinda emser-lhe mãe e cercá-lo de toda a solicitude, apesar da natural repulsão que deviam causar à sua índole tãodelicada os modos brutais e parvos do idiota. Não lhe sofria porém o coração que seus filhos vissem nessemenino mal-amanhado e grosseiro um camarada e um parente, quanto mais um irmão.” (p.95)

Page 226: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

226 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

que Brás não teve na Casa-Grande e na escola, pode sensibilizar o menino paraa necessidade de aclarar o seu espírito com as letras.

Ao explorar o universo do menino, Berta procurava associar as letras àsfiguras de personagens odiados e amados pelo jovem. Aliás, o título do livro pro-vém desse jogo pedagógico tão fértil ao menino, em que extremamente fascinadopelo sinal gráfico til, entendido por ele como o “símbolo da graça, da gentileza e doprazer” (p.98), passa a nomear a sua professora da mesma forma. Berta, assim, setransforma em Til, na gentil professora que dissocia o processo de aprendizado douniverso masculino da violência, em experiência do prazer e do amor.

Assim em torno dela, que era o til, Berta foi engenhosamente agrupando todas asletras do alfabeto, com os nomes das pessoas e objetos que a cercavam. Pondo emjogo as broncas paixões do idiota, e colhendo os rudes germes de ideia que seformavam em seu bestunto, obteve ela afinal transformar a carta do abecê em umafamília, em um mundo, para a existência enfezada dessa mísera criatura.

Ao cabo de um mês, conhecia Brás todo o abecedário. Que inauditos esforços depaciência, que sublimes intuições não foram necessárias para vencer esse impossível!

Só Berta o poderia conseguir. A fascinação que exercia sobre o idiota era uma sortede encanto e magia. Sua vontade movia aquele corpo, como se fosse o espírito queo animava. Brás sentia e pensava unicamente pela alma dela, que lhe transmitia asimpressões no olhar carinhoso, na voz suave, no sorriso fagueiro. Dir-se-ia que setinha operado a misteriosa transfusão d’alma do anjo na grosseira bestialidade domostrengo. Quando nos acessos epilépticos, estrebuchando o infeliz em medonhascontorções, não bastavam as forças de três homens possantes para sopear osímpetos formidáveis, nem as mais enérgicas aplicações para superar a crise violen-ta, o simples toque dos dedos de Berta ou sua fala maviosa, subjugava aquele furore aplacava logo a horrível convulsão (IDEM, p.99).

Nesse processo de alquimia da alma de Brás, a eficiência do trabalho daprofessora se deveu não somente à associação entre o abecedário a uma famíliade personagens, à concretude das relações do mundo, mas também às relaçõesafetuosas, aos olhares carinhosos entre os agentes do ensino. No universo dasobras românticas de Alencar, essa nova visão de ensino tomava força por ser a forteexpressão de seu nacionalismo e de seu projeto de tornar o Brasil uma nação dignade uma educação, de uma literatura comparáveis às de grandes centros europeus.

Tal visão, no entanto, não deve ser tomada como oriunda da mente doficcionista, mas como a transposição estética de uma ideia que fomentava dis-cussões a respeito da educação no país. Dessa forma, a pedagogia de Bertaparece se coadunar com alguns discursos sobre a escola vigentes na década de

Page 227: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 227

1870 no país, em especial com as de A. Almeida de Oliveira, quando este defendiade forma inovadora que a instrução primária, a que chamou de inferior, devesseser atribuída às mulheres.

Segundo ele, a criança aprende e se educa primeiramente pelo senti-mento e que não há ninguém melhor capacitado para fazer desabrochar o espíri-to de uma criança do que a mulher. O professor, assim, não possui a paciência ea bondade da professora e o seu conjunto de qualidades viris, a austeridade e asequidão de seu trato, torna-o figura medonha e inumana aos seus alunos. Distin-tamente, a mulher, com a sua graça e sentido de maternidade, poderia se aproxi-mar e conduzir as crianças para o real desenvolvimento de suas potencialidades.

A mulher – proclama-se geralmente – é o educador por excelência. Só a mulhersabe sorrir à infância. Ela só sabe em pregar a carícia para despertar a alma, e asimpatia para dirigir-lhe os primeiros voos. Ela só conhece os caracteres do alfabetod’alma, por que só ela o es tu da perto dos berços; quem não lhe viu o começo nãopode adivinhar-lhe o fim. Por tanto, doçura, sentimentos, bondade, tudo o meninoencontra na mulher igual a si (OLIVEIRA, 2003, p.206).

A jovem Berta, ou Til como a chamava Brás, representava literariamenteessa figura da nova educação, em que a escola passasse a incorporar a afetivida-de das mulheres como importante ferramenta pedagógica, como meio de alcan-çar a alma das crianças pelo carinho e pela bondade. A jovem professora doromance de Alencar parece ser, com isso, a representação de uma sacerdotisada educação, ao gosto de Oliveira, capaz, como no desfecho do romance, de seprivar da felicidade pessoal, ao deixar partir seu grande amor com outra mulher,para iluminar a vida dos privados de luz, desgraçados e marginalizados: “Era a florda caridade, alma sóror5” (ALENCAR, 2012, p.212).

Muito distante de evocar as propostas reformistas e civilizatórias de Joséde Alencar, Machado de Assis acaba, em contrapartida, por reforçar em seu Contode Escola em 18846, alguns dos traços constitutivos da escola em Til, especial-mente os que dizem respeito ao espaço escolar como de violência da sociedade.Como é típico de sua literatura, o autor dirige nesse conto o seu olhar irônico paraas relações entre aluno e professor e para os “aprendizados” ministrados nas

5 O adjetivo sóror era empregado para designar freiras, o que aproxima Berta de uma missão religiosa notexto. Tal qualificativo se faz interessantíssimo na proposta de nosso trabalho, pois a associação entre afreira e professora parecer reverberar no imaginário brasileiro sobre a posição social do professor,especialmente a de ensino básico.6 Publicado inicialmente no jornal Gazeta de Notícias e, posteriormente, em 1896, na coletânea de contosintitulada Várias Histórias.

Page 228: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

228 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

escolas brasileiras de sua época.Preocupado em desvelar a essência dos homens encoberta pelas rela-

ções pautadas na aparência, Machado de Assis parece enxergar a escola de seuconto como espaço microcósmico de análise das relações humanas vigentesnão só no Rio de Janeiro do século XIX, mas também de toda a sociedade capi-talista. Nesse sentido, a imagem da escola da “Rua do Costa, um sobradinho degrade de pau” (ASSIS, 2010, p.106) é a representação da escola brasileira e, aomesmo tempo, a representação de todo estabelecimento de ensino no mundo.É pelo jogo entre o local e o universal que o autor cria o narrador Pilar, protagonis-ta da narrativa, ainda menino em 1840, ano da ambientação da história que entãorelata. Ao delegar o papel de narrador à personagem, Machado de Assis conduz oleitor a se enveredar pelos pensamentos, percepções e senso crítico daqueleque, como Brás do romance Til, conheceu na carne a experiência de ser aluno deprofessores com métodos impositivos de educação. Tal escolha do autor nãotem, obviamente, a intenção de ser o testemunho real de uma história particularocorrida na corte, mas a captação ficcional de uma realidade histórica. Para Bosi(2007), a exploração da psicologia de tipos sociais do Rio de Janeiro em suasobras – proprietários, funcionários, agregados, entre outros – é o que permite àcrítica problematizar as questões sociais e históricas de seu tempo:

A psicologia das personagens adquire enorme importância aos nossos olhos, exa-tamente porque é a psicologia de classe sociais inteiras, ou pelo menos certascamadas sociais; e, sendo assim, podemos verificar que os processos que se de-senvolvem na alma das diferente personagens são o reflexo consequente do mo-mento histórico a que pertencem (p.13).

Os silêncios, as afirmações, as negações, as justificativas, em suma,tudo que emana da alma das personagens parece impresso pelas marcas dasrelações sociais da corte e do momento histórico. Convergem-se em meio à vozdo eu da narrativa e o outro do momento histórico, as outras vozes que compõema escritura do autor, vozes múltiplas que extraem desde o Eclesiastes bíblico atéo niilismo de Schopenhauer os substratos para o ceticismo e a descrença.

Essa multiplicidade de vozes se matiza no narrar de Pilar, menino quehesitando entre escolher o prazer de ir ao campo ou ao morro, acaba por definir aescola como o local a ser visitado. Isso, no entanto, não deve ser entendido comouma mensagem moralizante ou mesmo construtiva de Machado de Assis em suaobra, mas como a expressão do temor de uma criança quanto às consequênciasde seu livre arbítrio. Ao se recordar das sovas recebidas por falsear sua presençaà aula, delibera ir à escola, não por vocação, mas por exigência ríspida do pai,

Page 229: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 229

figura de interdição e práticas violentas no texto.Na percepção paterna, a escola funcionaria como a instituição de as-

censão social que levaria a criança ao mesmo caminho de sucesso dos homensque gozam de prestígio econômico e não ao percurso do desenvolvimento daspotencialidades intelectuais e humanas7. Nesse deslocar da função escolar, deespaço do desenvolvimento existencial para o local de ascensão econômica, onarrador se vê obrigado a aceitar as imposições do pai, temendo receber o ônusda opinião própria: a violência. As motivações do menino, assim, se consubstan-ciam pelos discursos de proibição e opressão, avessos ao expandir do espíritocrítico e autonomia que a escola deveria incitar em seus alunos:

Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamen-to das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas demeu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra,ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsiade me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter decaixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foia lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não eraum menino de virtudes (ASSIS, 2010, p.13).

As fugas do ambiente escolar, denominadas “suetos”, e a consequenteadmoestação, vinculam a escola à violência, à falta de prazer e ao aprendizadode uma espécie de darwinismo social, em que os indivíduos são associadosdiretamente aos preceitos sociais ou à sua exclusão. A memória do pai, reservadaà reprodução de nomes de capitalistas famosos, contrasta de forma deliberadacom a memória da criança temerosa em repetir suas faltas ao colégio, motivo deconflito com a visão de mundo de seu progenitor.

Essas percepções distintas – a do pai ríspido e capitalista e a do meninocastigado pelos suetos – põem em cena uma espécie de modelo de relaçãofamiliar que projeta na vida escolar da criança a sua entrada no conjunto devalores que deverá ter em sua vida adulta. As punições da figura proibitiva e auto-ritária do pai funcionariam como necessário recurso à ordem social e humanaque “nem sempre se alcança sem o grotesco e, alguma vez o cruel8” (ASSIS,7 Esse deslocamento da função educativa é tema de outro conto machadiano de 1881, Teoria doMedalhão, em que no dia da maioridade de Janjão, seu pai, como num ritual de iniciação, ensina osmandamentos do sucesso do indivíduo na sociedade: nunca tenha ideias próprias, bajule, imite, viva nasfalsas aparências e jamais seja profundo em qualquer discussão. Representando um discurso socrático àsavessas, em que a busca do Ser dá lugar à procura das aparências, Machado de Assis parece expressarcom grande humor o triunfo do relativismo sofístico e os dilemas éticos, políticos e sociais que dele advêm.8 Trecho do conto Pai contra mãe, presente na coletânea A Cartomante e outros contos.

Page 230: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

230 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

2004, p.32). Bem ao gosto das narrativas machadianas, temos, pois, instauradoum olhar irônico, revelador daquilo que se esconde nos discursos sobre a figurado pai como modelar e preocupado com o reto agir dos filhos: o exercício dogrotesco e do cruel.

Não muito distinta da imagem do pai é também a do professor Policarpoaos olhos do narrador Pilar que, indo à escola, vê na entrada do mestre, perto doscinquenta anos, os gestos daquele que usufrui do poder despótico sobre o meni-nos. Seu caminhar manso, o modo de se sentar na cadeira relanceando os olhospela sala, enquanto dispunha objetos em sua gaveta, e a permanência das crian-ças imóveis e de pé nesse verdadeiro ritual escolar revelam deliberadamentecomo se instaurava as relações desiguais de poder em sala de aula.

É interessante notar como o olhar do menino se faz, na tessitura narrativado conto, distinto dos discursos que viam na postura solene e sisuda do professorum modelo de boa conduta em sala de aula. Dessa maneira, a narrativa colocaem tensão duas perspectivas conflitantes de avaliação do mestre, a do menino,dentro do recinto escolar, e a social, fora dos muros da escola. A fim de que o leitorpossa adentrar na essência de seu ambiente escolar e sair da esfera das aparên-cias, Pilar nos descreve tanto a postura do “educador” em sala de aula como osseus instrumentos pedagógicos:

Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande aagitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguaresse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava,pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era sólevantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não erapouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele aponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-meque lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, outomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer (ASSIS, 2010, p.108).

Tal qual Pilar, desejoso de estar fora da aula9, o professor Policarpo pareceestar mais preocupado com o mundo exterior ao recinto escolar do que com9 Na seguinte passagem, Machado de Assis aparenta deixar transparecer nitidamente sua ironia quanto aodesinteresse dos alunos pela escola e sua vontade de evasão: “Na lição de escrita, por exemplo, acabavasempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação semnobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressaacabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quaisrecordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobreestudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foramacabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar. Comfranqueza, estava arrependido de ter vindo.” (IDEM, p. 107)

Page 231: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 231

aquilo que realizam seus alunos, pois a leitura que fazia do jornal só era interrom-pida algumas vezes para que vigiasse a postura de seus pupilos. Como o profes-sor Domingão do romance Til, de José de Alencar, o docente do conto machadi-ano ostenta a palmatória pendurada, signo visível e temível de poder sobre ascrianças, insígnia da correção moral a ser aplicada pelo poderoso mestre.

Vale notar, no entanto, que a justiça implacável e moralizante do mestre épercebida pelo menino narrador como distante da equidade, tendo em vista queas paixões políticas, por exemplo, podem claramente interferir na aplicação ounão de castigos. Logo, o professor não age exclusivamente pautado em princípi-os pedagógicos claros de punição e correção, mas se deixa influenciar pelaspaixões, externas ao seu ofício, no uso da palmatória.

É nesse hiato entre o justo e razoável e o injusto e arbitrário que Pilarrecebe do seu amigo de sala Raimundo, filho do professor, a proposta de ganharuma pratinha mediante o ensino da matéria. A oferta de Raimundo, obviamente,tinha origem no medo que possuía de seu pai e professor e nas inúmeras dificul-dades que possuía para aprender os diversos conteúdos ministrados em aula. Aproposta de pagamento, entendida pelo narrador como suborno, fazia-se soarcomo uma ilegalidade que, no entanto, colocaria Raimundo na legalidade apre-goada pela escola e que, consequentemente, o livraria do castigo certo.

Objeto de fascínio a Pilar, a visão da moeda, cunhada no tempo do rei,desperta seu desejo de possuí-la, desejo de uma criança que no ambiente enfa-donho e rígido da aula, vê a possibilidade do prazer. Todavia, se o professor dispu-nha a possibilidade de agir conforme suas paixões em meio a aula, o aluno não,o que torna a posse da pratinha um dilema ético no conto, em que a fruição dodesejo de posse da moeda funcionaria como uma espécie de passagem dantes-ca pelas portas do inferno moral.

Como qualquer outro personagem machadiano, o narrador é, enfim, movi-do pelo prazer e não pelo dever, aceitando a moeda de Raimundo e, às escondi-das, ensinando a matéria ao colega de classe. Se o ato passara desapercebidoao professor, ocupado com as notícias do jornal, o mesmo não deixou de serobservado por Curvelo, um menino mais velho e que, aos olhos de Pilar, parecianão aprovar a ação empreendida.

Acabado o ensino da lição e com a moeda no bolso, Pilar devaneia ao seimaginar fora da escola, brincando e explicando à mãe que achara a moeda narua, enquanto tateava a pratinha em seu bolso por estar ainda impedido de vê-la.Com a voz de trovão, o grito do mestre, o menino é trazido novamente para arealidade e nota ao pé da mesa do professor a figura de Curvelo, o delator. Impla-cável, Policarpo deixa seus jornais sobre a mesa e exige a presença de seu filho

Page 232: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

232 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

e de Pilar junto a ele, a fim de receberem o castigo por tanta baixeza moral:

E então disse-nos uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabáva-mos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exem-plo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.— Perdão, seu mestre... solucei eu.— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!— Mas, seu mestre...— Olhe que é pior!Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cimados outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas.Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito,doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem vergonhas, desa-forados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que noshavia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos debrio! Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos osolhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios domestre (IBIDEM, p.111).

Se de um lado, os castigos, os desaforos e a humilhação pública deambos serviram como recurso pedagógico ao professor para resguardar a ordeme os princípios de caráter inquebrantável no espaço escolar, por outro expressama violência, a intolerância e por que não o sadismo daquele que é responsável poreducar seus alunos. Nessa perspectiva, os supostos benefícios morais atingidospelo uso da coerção facilmente podem se transformar em algo perigoso e subver-sivo à ética, em que o emprego da brutalidade, inibidor do prazer alheio, se trans-forme em prazer legítimo e socialmente prestigiado ao seu agente.

Dessa forma, Machado de Assis acaba por expressar as contradições deum modelo de escola, em que a violência, o suborno e a delação evidenciam afalaciosa relação professor aluno, e, mesmo distante do espírito reformista e na-cionalista de José de Alencar em seu romance Til, acaba por aclarar tambémalgumas das dissonâncias existentes entre os discursos sobre a escola e o quenela é feito. Com isso, embora evoquem críticas distintas ao modelo educacionalvigente no país na segunda metade do século XIX, ambos parecem trazer à cenaa mesma percepção de fracasso ou de discrepância entre um modelo de ensinoe a sua prática.

Para o escritor cearense, Berta representava um modelo de professor maisadequado às necessidades da evolução natural pela qual o Brasil ainda passariae Domingão o legítimo representante do modelo retrógrado, obsoleto, violento e

Page 233: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 233

propício ao não civilizado. Em sua leitura, as tensões existentes – escola real -entre professor e aluno teriam fim quando os agentes do processo de ensinobuscassem em postura harmônica promover a concórdia e a depuração de todaa sociedade – escola ideal. Já para Bruxo do Cosme Velho a instituição escolajamais se transformaria, pois, sendo de uma sociedade desigual, acabaria porrefletir as mesmas violências e tensões que as compõem. Como microcosmodas dubiedades humanas na sociedade, a escola machadiana estaria mais pró-xima daquela retratada por Schopenhauer (2009), em que os professores estãointeressado em dinheiro, mas exclusivamente no vil metal e, dessa maneira, “nãose esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão depossuí-la. E os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir,mas para poder tagarelar e ganhar ares de importantes” (p. 19).

OLIVEIRA, Rodrigo Marques de. Two representations of school in brazilian literatu-re of séc. XIX. DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: Although belonging to different worldviews and artistic periods, thenovel named “Til” by José de Alencar and story titled “Conto de Escola” (FairySchool) by Machado de Assis, have two similar representations of the school inBrazil in the nineteenth century, the referred to the mismatch between the pedago-gical practices used by teachers, authoritarian and violent, and effective educationof children. In this article, we aim to discuss how the narrative of José de Alencar, inhis nationalist and civilizational proposal, and Machado de Assis, in his nihilisticand ironic approach, portraying the mismatch that exists in the school environ-ment, microcosm of the social tensions of the period and contradictions inherentin the human being.

KEYWORDS: school, literature, representations, fiction, history

Bibliografia:ALENCAR, J. Til. São Paulo: Martin Claret, 2012.______. Cartas de Erasmo. Organizador: José Murilo de Carvalho: ABL, 2009.ASSIS, M. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Editora Ática, 2010.______. A Cartomante e Outros Contos. São Paulo: Editora Moderna, 2004.BOSI, A. Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo:

Page 234: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

234 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Martins Fontes, 2007.______. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.EAGLETON, T. Marxismo e Crítica Literária. Tradução de Matheus Corrêa.São Paulo: Editora Unesp, 2011.HOMERO. A Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro,2009.OLIVEIRA, A.de ALMEIDA. O Ensino Público. Senado Federal/Conselho Editori-al, 2003.SCHOPENHAUER, A. A Arte de Escrever. Tradução de Pedro Süssekind. PortoAlegre: LPM, 2009.

Page 235: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 235

EDUCAÇÃO NA NORMATIZAÇÃO BRASILEIRA FRENTEAOS DIREITOS HUMANOS

Michelle Soares GARCIA*

RESUMO: Esse estudo pretende buscar a aplicação da Declaração Universaldos Direitos Humanos no ordenamento Brasileiro no âmbito da educação. Anali-sa-se a influencia dos preceitos universais desde 1948 até o texto constitucionalde 1988, observando a evolução normativa sobre a educação e sua importânciapara o ordenamento brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Educação; Normatização; Constituição.

1. Introdução

Os direitos humanos surgiram com a necessidade dos homens em clas-sificar o que seria direitos inerentes à concepção humana. Direitos Humanosestão relacionados à dignidade da pessoa humana como a vida, igualdade, liber-dade, educação no seu mais amplo aspecto, é o afastamento descaracteriza aprópria compreensão de ser humano.

Os direitos a educação esta ligado ao conceito de o que seria a dignida-de da pessoa humana, na sua dimensão individual e social.

O principal objetivo dos direitos humanos é garantir uma vida adequadapara todas as pessoas, criando compromissos políticos entre os governos e oscidadãos sendo atrelado por obrigações legais e por politicas publicas em queesses direitos se materializem.

Um dos direitos de extrema importância dentro da valorização da digni-dade da pessoa humana é a educação, devendo ser orientada no sentido dopleno desenvolvimento da personalidade humana em conformidade ao art. XXVIda Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH que disciplina que “ainstrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidadehumana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberda-des fundamentais” (ONU,1948).

Entende-se necessário observar que o texto da Declaração ressalta a*Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Especialização em Docência doEnsino Superior pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail daautora:[email protected].

Page 236: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

236 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

educação para o papel de conscientizar o respeito e o fortalecimento dos direitoshumanos promovendo a liberdade, igualdade e vida digna para a pessoa huma-na.

O Brasil após a promulgação em 1948 da Declaração Universal dosDireitos Humanos assumiu uma postura receptiva. Entretanto no período ditatori-al nas décadas de 60, 70 e 80 o país se afastou dos direitos universais e transfor-mou a educação do país.

Voltaram a ganhar folego os princípios universais somente no texto daConstituição Federal em 1988 que destina vários artigos priorizando a educaçãoe sua relevância para a sociedade.

2. A educação como Direito Humano

Os direitos dos homens surgem como direitos naturais, positivados nodireito particular, passando para uma plena realização positiva universal (BOB-BIO, 1992, p. 49). Para Arendt trata-se de uma construção humana, originária desuas necessidades, em constante processo axiológico de transformações, espe-lho do seu passado e do seu presente (LAFER, 1988, p. 134).

Todos os direitos são direitos humanos, pois somente o homem é sujeitode direitos, contudo o sentido que se busca compreender é a Declaração Universaldos Direitos Humanos de 1948, pois entende-se que dentre todos “designa aquilo queé inerente à própria condição humana, sem elo com particularidades determinadasde grupos ou indivíduos” (MIGUEL, p.312).

Os direitos humanos constituem um referencial de conquista dos ho-mens, daqueles que lutaram pela ampliação de seus direitos, pela liberdade,garantias individuais e coletivas. “Vive-se um momento histórico em que a consci-ência de cidadania é percebida por todos, em que todos se dizem cidadãos”(HERKENHOFF, 2000,p. 33).

Após as péssimas experiências das duas grandes guerras mundiais, frenteà estrutura jurídica antiquada de direito, foi implantado um novo sistema de direitointernacional que objetiva unificar direitos e traçar diretrizes básicas para se ga-rantir a dignidade da pessoa humana em todo o globo terrestre.

Somente em 1948 esses anseios foram definitivamente consolidados emum documento destinado a humanidade.

A busca para a implementação da Declaração Universal de Direitos Hu-manos é marcada por dúvidas e tensões que decorrem da sua universalidade(NUNES, 2004, p.30) no que tange ao respeito sobre a diversidade cultural e as

Page 237: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 237

características dos povos e costumes. Devido a práticas costumeiras e até mile-nares de um povo, podem ser considerados atos bárbaros para outro povo.

As mudanças causadas pela Guerra trouxeram um novo modelo econô-mico, do bem-estar social, em que os Estados têm um novo papel econômico:realizar o planejamento e organização da produção, orientar, garantir empregos;cuidar de questões sociais, como moradia, saúde, previdência, e ainda regular adistribuição de riquezas e reconhecer a propriedade. Todas essas mudançasestão estreitamente ligadas à educação e a sua valorização. A educação é consi-derada um direito humano em que os seres vivos buscam a sua própria supera-ção, alterando o contexto social, ambiental e econômico.

O enquadramento teórico dos direitos humanos pode se dar de diferen-tes formas, a classificação com maior notoriedade é a difundida por Bobbio (Bo-bbio, 1992, p. 06) que fundamenta os direitos humanas em três gerações, funda-mentadas nos ideais iluministas da Revolução Francesa, sendo: 1ª geração ados direitos de liberdade resultante nos direitos civis; 2ª geração a dos direitossociais e da igualdade; 3ª geração da fraternidade e da solidariedade para pro-blemas coletivos.

O direito à educação invalida a dicotomia dos direitos humanos que separa osdireitos civis e políticos dos direitos econômicos, sociais e culturais, já que englobatodos ao afirmar e afiançar a universalidade conceitual desses direitos negando-sea aceitar que a desigualdade e a pobreza sejam fenômenos contra os que não sepode lutar (TOMASEVSKI, 2004, p.15 apud Susana Sacavino).

Faz-se necessário, portanto, identificar que a educação faz parte de nú-cleo centralizador dos elementos essenciais para preservar a dignidade da pes-soa humana, em se que atrela ao direito às dimensões individuais e sociais aomínimo existencial para a existência humana. A educação esta inserida na ideiade mínimo existencial, pois possibilita garantir uma vida digna a todo ser humano.

O Professor Ricardo Lobo Torres disciplina o conceito deste mínimoexistencial dizendo:

Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência dohomem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e ascondições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo(Peres).

O mínimo existencial é composto de diversos direitos humano essenciala existência humana, sendo a educação o objeto de estudo nessa pesquisa.

Page 238: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

238 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

3. Normatização Brasileira em relação ao direito à educação

Para compreender melhor a normatização da educação é importantecompreender o cenário internacional é uma rápida visão da trajetória histórica.

O Brasil participou ativamente da elaboração de organizações internaci-onais como é o caso da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Orga-nização das Nações Unidas (ONU). Entretanto retrocedeu no âmbito dos DHdurante a ditadura militar (1964-1985) ao outorgar os atos institucionais que cla-ramente feriam os direitos individuais e sociais dos cidadãos brasileiros.

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas produz váriosdocumentos norteadores para o desenvolvimento de políticas públicas sobre aeducação aos seus Estados-membros. O Brasil é um Estado-membro da ONU esignatário desses documentos, precisa reconhecer seus conteúdos e os respei-ta-los, devendo ser o alicerce para a elaboração das políticas públicas internas.

O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foiadotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 dedezembro de 1966 e somente foi promulgado no Brasil em 1992, durante o gover-no do Presidente Fernando Collor. O atraso para a retificação se deve, ao governoditatorial do período.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, rati-ficado pelo Brasil, e que, em seu artigo 13, afirma:

ARTIGO 13. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de todapessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar o pleno desen-volvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer orespeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda emque a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de umasociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas asnações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as ativida-des das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

2. Os Estados partes do Presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de asse-gurar o pleno exercício desse direito: a) a educação primária deverá ser obrigatóriae acessível gratuitamente a todos; b) a educação secundária em suas diferentesformas, inclusive a educação secundária técnica e profissional, deverá ser genera-lizada e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmen-te, pela implementação progressiva do ensino gratuito; c) a educação de nívelsuperior deverá igualmente tronar-se acessível a todos, com base na capacidade decada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementaçãoprogressiva do ensino gratuito; d) dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do

Page 239: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 239

possível, a educação de base para aquelas que não receberam educação primáriaou não concluíram o ciclo completo de educação primária; e) será preciso prosse-guir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis deensino, implementar-se um sistema de bolsas estudo e melhorar continuamente ascondições materiais do corpo docente. 1. Os Estados Partes do presente Pactocomprometem-se a respeitar a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutoreslegais - de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autori-dades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ouaprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educaçãoreligiosa ou moral que seja de acordo com suas próprias convicções. 2. Nenhumadas disposições do presente artigo poderá ser interpretada no sentido de restringira liberdade de indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de ensino,desde que respeitados os princípios enunciados no § 1° do presente artigo e queessas instituições observem os padrões mínimos prescritos pelo Estado (ONU, 1992).

O pacto reconheceu o direito à educação á todos e que os Estadosdevem assegurar o pleno exercício desse direito.

Outro documento de grande relevância internacional é a Declaraçãodos Direitos das pessoas deficientes, resolução aprovada pela Assembleia Geralda Organização das Nações Unidas em 09/12/75.

3 - As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidadehumana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidadede suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos damesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vidadecente, tão normal e plena quanto possível.

Pode-se observar que o texto da declaração ressalta o respeito pela dig-nidade humana que deve ser interpretado como o mínimo existencial para garan-tir à vida humana, devendo ser assegurado a educação ao portador de necessida-de especial de forma igualitária a outros jovens da mesma faixa etária.

Em 10 de junho de 1994 foi promulgado mais um importante documen-to para a proteção a educação como direitos humanos, a Declaração de Sala-manca - Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Edu-cativas Especiais.

• toda criança tem direito fundamental à educação, e deve ser dada a oportunidadede atingir e manter o nível adequado de aprendizagem;• toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades deaprendizagem que são únicas;• sistemas educacionais deveriam ser designados e programas educacionais deve-riam ser implementados no sentido de se levar em conta a vasta diversidade de tais

Page 240: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

240 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

características e necessidades;• aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escolaregular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança,capaz de satisfazer a tais necessidades;• escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios maiseficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras,construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além dis-so, tais escolas provêem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimorama eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional.

Como se pode observar a educação sempre esteve em pauta nas agen-das dos organismos internacionais ao longo dos anos (tabela 01) merecendo umdestaque na normatização do direito brasileiro.

Após a promulgação da DUDH de 1948 a constituição vigente no Brasilera a Constituição Federal de 1946 que foi promulgada logo após o fim da segun-da grande guerra mundial, essa carta buscou resgatar os princípios da compe-tência legislativa da União na educação nacional no seu artigo 170. Princípiosque estavam vinculados nas constituições de 1991 e 1934 e foram afastados em1937 (RAPOSO, 2005; DEMARCHI, s/d).

A Constituição Federal de 1946, sob a influência dos debates internacio-nais de direitos humanos pós-guerra, a educação volta a ser definida como direitode todos, valorizando a ideia de educação pública. Com base nos princípiosresgatados em 1961 houve a promulgação da Lei 40245 - Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional em 20 de dezembro.

O texto da magna carta trouxe grandes perspectivas para a educaçãonacional entre elas: definiu que o ensino primário obrigatório e gratuito, empresascom mais de cem funcionários deve manter ensino primário gratuito para os seustrabalhadores e seus filhos; previsão de criação de institutos de pesquisa. Érestabelecida a vinculação de recursos para a manutenção e o desenvolvimentodo ensino (Raposo, 2005, p. 2).

Nas décadas de 50 e 60 se discutiu muito a relação de educação edesenvolvimento, dando origem a um movimento nacional de valorização da es-cola pública. O movimento “liderado por educadores da velha geração dos “pio-neiros” como Florestan Fernandes e os educadores Anísio Teixeira e Paulo Frei-re”. (SILVA, 2005, p.83). A campanha em defesa da escola pública ganhou simpa-tizantes em diversos segmentos da sociedade civil: intelectuais, estudantes e líde-res sindicais, etc. (SILVA, 2005, p.83).

O movimento buscava ampliar as discussões da universalidade da edu-

Page 241: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 241

cação, obrigatoriedade e gratuidade do ensino nacional. Acirrando as discussõesentre ensino publico e privado.

O tema direitos humanos tomou conta das discussões dos intelectuaisbrasileiros nos anos posteriores a guerra, devido à promulgação da DUDH em1948.

Vários países da América Latina sofreram violações de direito humanos,frente à precariedade dos Estados de Direitos e de grandes contingentes popula-cionais, passando para governos ditatoriais que causaram graves violações dedireitos á segurança, identidade cultural, direito de expressão e bem-estar míni-mo (PNEDH, 2003, p.22).

No Brasil após o golpe militar de 1964 e nos anos seguintes, as discus-sões sobre o ensino no Brasil, como na maioria dos países latino-americanos,tomaram novos rumos, frente à nova realidade politica do país. Visto que houveum retrocesso dos direitos individuais e coletivos no país.

A Constituição de 1967 trouxe a obrigatoriedade do ensino entre os seteaos quatorze anos, fortaleceu o ensino privado no país, implementou a possibili-dade de bolsas de estudo. As leis criadas após a ditadura militar sofreram granderestrição aos direitos humanos em seus textos.

Nos primeiros anos da ditadura militar ainda podia se percebe os direitoshumanos, é o caso do texto da Lei n.º 55406 de 28 de novembro de 1968, lei doEnsino Superior, sendo: “Art. 1º A educação nacional, inspirada nos princípios deliberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim: a) a compreensãodos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família (...)”.

Observa-se que o texto deixa claros os princípios norteadores das ideiasde solidariedade humana e o respeito pela dignidade da pessoa humana.

Outro texto que trata da educação que podemos ressaltar os direitoshumanos, porem timidamente é a Lei n.º 5692/71 que disciplina o Ensino de 1º e2º Graus (DEMARCHI). “ Art. 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geralproporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suaspotencialidades (...) para o exercício consciente da cidadania”.

Percebe-se o conceito de consciência da cidadania disciplinado nessetexto, buscando o fortalecimento da dignidade da pessoa humana.

Na década de 80 houve um processo de redemocratização do Brasilafastando os militares do poder e incentivando a participação popular.

No entanto, persiste no contexto de redemocratização a grave herança das viola-ções rotineiras nas questões sociais, impondo-se, como imperativo, romper com acultura oligárquica que preserva os padrões de reprodução da desigualdade e da

Page 242: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

242 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

violência institucionalizada (PNEDH, 2003, p.22).

A redemocratização teve como marco expressivo a Constituição Federalde 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, pois consagrou o Estado De-mocrático de Direito, reconheceu os seus princípios norteadores e fundamenta-dores da dignidade da pessoa humana. O Brasil passou a ratificar os tratadosinternacionais sobre direitos humanos, e o reconhecimento de cortes internacio-nais: Corte Interamericana De Direitos Humanos e Tribunal Penal Internacional(PNEDH, 2003, p.22).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 destinou o capitulo III para à Edu-cação, Cultura e Desporto. A seção I do capitulo mencionado, trata exclusivamente daeducação disciplinados entre os artigos 205 e 214. O artigo 205 estabelece:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovidae incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimentoda pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para otrabalho.

Dessa forma, entende-se que a educação é direito de todos sendo es-sencial para o desenvolvimento da pessoa humana, corroborando com o entendi-mento do art. 6º da mesma carta, que estabelece como direito social a educação.A educação sendo um direito social deve objetivar criar condições para que aspessoas se desenvolvam em sociedade, para garantir o mínimo necessário parauma vida digna.

Saindo do campo constitucional podemos afirmar que a legislação pá-tria sobre a educação é expressiva, porém muito esparsa.

A principal lei infraconstitucional que merece destaque nesse estudo é anova lei de diretrizes e bases da educação brasileira, promulgada em 20 de de-zembro de 1996 Lei 9394.

Para DEMARCHI a nova lei muda à visão de educação no Brasil.A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.º 9394/96 traz no seubojo um conjunto de elementos inovadores que poderão abrir as portas damodernidade e com ela apresentar uma enormidade de conflitos, visto que estáapoiada na flexibilidade, na autonomia e na avaliação (DEMARCHI)

A Lei trouxe grandes inovações a valorização do ensino não formal eexperiência extraescolar; a busca pela interdisciplinaridade; pela aplicação pra-tica do ensino teórico, entre outros.

O número de legislações nacionais e internacionais destinadas a prote-ção da educação é expressiva. Entretanto, o número de jovens sem acesso a um

Page 243: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 243

ensino de qualidade é significativo. A Conferência Mundial da ONU sobre Direitos Humanos, realizada em

Viena em 1993, conclui-se que somente através da educação que os Estadospoderão construir alicerces para uma sociedade socialmente justa e democráti-ca (COMPARATO, 2004, P. 258).

4. Considerações Finais

Ficou evidenciado neste estudo, que a educação integra o rol de direitoshumanos, sendo considerado um direito essencial para a garantia da dignidadeda pessoa humana e o mínimo existencial dentro da sociedade.

A educação esta ligada ao desenvolvimento dos seres humanos, essen-cial para o desenvolvimento pleno em sociedade, possibilitando a lapidação dapersonalidade humana e cidadania.

Observou-se a preocupação legislativa brasileira em atrelar o direito aeducação aos direitos humanos. Buscou-se traçar um paralelo entre a evoluçãodos tratados internacionais com a evolução normativa brasileira ao longo da his-tória brasileira.

Percebeu-se que após a promulgação da Declaração Universal de Direi-tos Humanos em 1948, o Brasil foi tomado por debates ao tema direitos humanosgerando um movimento de incentivo as escolas públicas, incentivados por inte-lectuais e grandes educadores do período. O movimento buscou o fortalecimen-to da universalidade da educação, obrigatoriedade, gratuidade do ensino, entre-tanto perdeu força com o golpe militar de 1964 que desestruturou a escola públi-ca incentivando o ensino privado.

Vários países da América Latina passaram por governos militares, que foiconsiderado um retrocesso aos direitos humanos. E as legislações especificassobre a educação manifestavam certo distanciamento pelos preceitos universais.

No Brasil a ditatura militar durou até a década de 80, quando passou porum processo de redemocratização, sendo consolidada pela Constituição Fede-ral de 1988.

Após a promulgação da constituição cidadã de 1988 os fundamentosdemocráticos, universais foram consolidados, trazendo um grande destaque emseu texto para a educação do país.

Pode-se aduzir que à educação, enquanto direito humano fundamental,percorre um caminho marcado de legislações nacionais e internacionais semmuita efetividade prática. Vivemos com um expressivo número de legislações,

Page 244: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

244 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

porém esparsas e muitas vezes inaplicáveis, longe da realidade de certas regiõesbrasileiras.GARCIA, Michelle Soares. Education in Brasil normatization in front of HumanRights. DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.8, n.1 e n.2, 2012, pp. X-X.

ABSTRACT: This study intends to seek the implementation of the Universal De-claration of Human Rights in the Brazilian educational reality. It analyzes the influ-ence of universal precepts from 1948 to the Constitution dated 1988, noting thenormative evolution of education and its importance for the Brazilian system.

KEYWORDS: Human Rights, Education, Standardization; Constitution.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasí-lia: Senado Federal, 1988.______. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais. Brasília: Senado Federal, 1992._______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: SenadoFederal, 1961._______. Ministério de Educação. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Edu-cação em Direitos Humanos (PNEDH). Brasília, 2003.CANADÁ. Declaração Internacional de Montreal sobre a Inclusão.http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/dec_inclu.pdf. Acesso em: 18 jun. 2013.COMPARATO, F.K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. In. PactoInternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 13. SãoPaulo: Saraiva, 2004.DEMARCHI, Clovis. Autonomia do direito educacional. Disponível em:http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/autonomia-do-direito-educacional. Aces-so em: 24 jun. 2013.LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com opensamento de Hannah Arendt. Cia das Letras, São Paulo, 1988.

Page 245: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 245

HERKENHOFF, João Baptista. Cidadania. São Paulo: Acadêmica, 2000.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 10. Ed. São Paulo:RT, 1984.NUNES, João Arriscado. Apresentação: um novo cosmopolitismo? Reconfigu-rando os direitos humanos. p. 15-32. In: BALDI, César Augusto (org.). Direitos huma-nos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2004.ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos DireitosHumanos. ONU, 1948.PERES, Pedro Pereira Dos Santos. O direito à educação e o princípio consti-tucional da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano9, n. 417, 28 ago. 2004 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5633>. Acessoem: 25 jul. 2013.SILVA, Andréia Ferreira da. Florestan Fernandes e a educação brasileira nasdécadas de 1950 e 1960. In: FÁVERO, Osmar (org.). Democracia e educaçãoem Florestan Fernandes. Campinas: Autores Associados e Niterói: EDUFF, 2005.SACAVINO, Susana. Educação em Direitos Humanos e Democracia. In: CANDAU,Vera; SACAVINO, Susana. Educar em Diretos Humanos. Rio de Janeiro: D&PEditora, 2000.

6 Tabelas

Declaração de MadriAprovada em Madri, Espanha, em 23 de março de 2002, no CongressoEuropeu de Pessoas com Deficiência, comemorando a proclamação de

2003 como o Ano Europeu das Pessoas com Deficiência.Declaração de

Sundeberg(Torremolinos,

Espanha)

Conferência Mundial sobre Ações e Estratégias para Educação,Prevenção e Integração.Trata do acesso à educação, ao treinamento, à

cultura e à informação, pela pessoa portadora de deficiência.

Convenção daGuatemala

Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.

Declaração da OEA Declaração da década das Américas pelos direitos e pela dignidade daspessoas com deficiência.

Carta para o TerceiroMilênio

Estabelece medidas para proteger os direitos das pessoas comdeficiência mediante o apoio ao pleno empoderamento e inclusão em

todos os aspectos da vida.

Page 246: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

246 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Declaração Universaldos Direitos

Humanos

Ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, como objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade se esforce,através do ensino e da educação, para promover o respeito aos direitos

e liberdades...

Declaração deCaracas

Participantes da 1ª Conferência da Rede Ibero-Americana de ONGs dePessoas com Deficiência e suas Famílias declaram 2004 como o Ano

das Pessoas com Deficiência e Suas Famílias.Convenção sobre osDireitos das Pessoas

com Deficiência

Protocolo facultativo à Covenção sobre os Direitos das Pessoas comDeficiência

Norma N.º 48/96Regras gerais sobre Igualdade de Oportunidades para Pessoas

Portadoras de Deficiência. Estabelece as medidas de implementação daigualdade de participação em acessibilidade, educação, emprego, renda,

seguro social, etc.

Declaração deSalamanca

Regras Padrões sobre Equalização de Oportunidades para Pessoas comDeficiências, o qual demanda que os Estados assegurem que a educaçãode pessoas com deficiências seja parte integrante do sistema educacional.

Declaração deSantiago

Segunda Cúpula das Américas

Declaração deSapporo (Japão)

Trata da acessibilidade, da inclusão, da genética e bioética, da educaçãoinclusiva e da vida independente.

Declaração de Quito Trata da exigibilidade e realização dos direitos econômicos, sociais eculturais (DESC) na América Latina.

Declaração deJomtien (Tailândia)

Trata do plano de ação para satisfazer as necessidades básicas deaprendizagem.

Resolução ONUn.º 2.896

Trata dos direitos à atenção médica e ao tratamento físico exigidos pelodeficiente mental, como também à educação, à capacitação profissional,à reabilitação e à orientação que lhe permitam desenvolver ao máximo

suas aptidões e possibilidades.

6.2 Evolução da legislação brasileira.Lei de Diretrizes eBases da Educação

(LDB)Lei 4024 / 1961.

Lei de Diretrizes eBases da Educação

(LDB)

Lei 5692 / 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2ºgraus, e dá outras providências.

Page 247: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 247

Lei de Diretrizes eBases da Educação

(LDB)Lei 9394 / 1996. Vigência atual.

Estatuto da Criança edo Adolescente (ECA)

Lei 8069 / 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e doAdolescente e dá outras providências.

Plano Nacional deEducação

Lei 10172 / 2001. O Plano Nacional de Educação e dá outrasprovidências com duração de dez anos.

Fundef

Lei 9424 /1996. Dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimentodo Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma previstano art. 60, § 7º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dáoutras providências.Emenda Constitucional 14 / 1996. Modifica os arts. 34,208, 211 e 212 da Constituição Federal e dá nova redação ao art. 60 do Atodas Disposições constitucionais Transitórias.

Fundeb

Lei 11494 / 2007. Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimentoda Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação -FUNDEB, de que trata o art. 60 do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias; altera a Lei no10.195, de 14 de fevereiro de 2001; revogadispositivos das Leis nos 9.424, de 24 de dezembro de 1996, 10.880, de 9de junho de 2004, e 10.845, de 5 de março de 2004; e dá outrasprovidências.Emenda Constitucional 53 / 2006. Dá nova redação aos arts.7º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Atodas Disposições Constitucionais Transitórias.

Piso SalarialLei 11738 / 2008. Regulamenta a alínea “e” do inciso III do caput do art. 60do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o pisosalarial profissional nacional para os profissionais do magistério público daeducação básica.

Page 248: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

248 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

6.1 Normatização internacional sobre a educação.ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX

BATTAUS, Danila Martins de Alencar; p. 43CAMPOS, Guilherme Pires de; p. 13CARLUCCI ,Marcelo. p. 91FERREIRA, Delson; p. 119FREITAS, Nainôra Maria Barbosa de; p. 139GARCIA, Michelle Soares; p. 235GODOY, Adriana Cristina de; p. 107GUAZZELLI, Aurélio Manoel Corrêa; p. 119KAYSER, Aristéia Mariane; p. 193LAVEZO, Juliana Aparecida; p. 177LIMA ,Juscelino Gomes; p. 27MOLINA, Sandra Rita; p. 157MOURA, Marilda Franco; p. 203OLIVEIRA, Rodrigo Marques de; p. 219PALLADINI, Dulce; p. 77SILVA, Adriana; p. 59SILVA, Marco Aurélio; p. 193’

Page 249: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 249

ÍNDICE DE ASSUNTOS

Arquitetura de Comunidade; 43Arquitetura Moderna; 77Arquitetura Participativa; 43Biografia; 177Bispo; 139Christopher Alexander; 43Cidade criativa; 59Cidade média; 27Cidades e Ferrovias; 91Constituição; 235Desenvolvimento de Comunidade; 43Diocese; 139Direitos Humanos; 235Educação; 193; 203; 235Ensino de História; 107Escola; 219Ficção; 219Gêneros digitais; 203História; 177; 219História Local; 107História do Brasil; 157Igreja Católica; 139; 157Inovação tecnológica; 203Inventário; 119Literatura; 219

Normatização; 235Patrimônio Cultural; 107Patrimônio Urbano; 91Poder; 193Política; 193política pública; 59Preservação; 77Rede de Cooperação; 59Referências culturais; 119Representação; 219Ribeirão Preto; 77; 119São Paulo; 139Signo; 203Sobral; 27Solo urbano; 27Urbanismo e vias ferroviárias; 91

Urbanismo Participativo; 43

Vida; 177Violência; 193

Page 250: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

250 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

Page 251: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 251

SUBJECT ÍNDEX

Architecture Participatory; 43Biography; 177Bishop; 139Brazilian history; 157Constitution; 235Cooperation network; 59Creative city; 59Christopher Alexander; 43Cultural Heritage; 107Digital Genre; 203Diocese; 139Catholic Church; 157Catholic Church; 139Cities and e trains; 91City average; 27Community Architecture; 43Community Development; 43Cultural references; 119Education; 235; 203; 193Fiction; 219History; 177; 219Human Rights; 235Icon; 203Inventory; 119Life; 177Literature; 219Local History; 107

Modern Architecture; 43Politics; 193Power; 193Preservation; 43Public policy; 59Representations; 219Ribeirão Preto; 43; 119São Paulo; 139School; 219Sobral; 27Standardization; 235Teaching History; 107Technological Innovation; 203Urban heritage; 91Urban Land; 27Urbanism and train ways; 91Urbanism Participatory; 43Violence; 193

Page 252: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

252 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

ERRATA

No V. 7, N.2, a revista DIALOGUS publicou o artigo “A Figura do palhaço noambiente hospitalar na perspectiva do estudante de medicina”, cujos autores são:Bruno Severo Gomes, Leniee Campos Maia e Maria de Fátima Gaspar Pinheiro.Portanto, onde se lê “Lenice Campos Maia”, leia-se Leniee.

No v.7., n.2, referente ao ano de 2011, a revista Dialogus esqueceu-se de indicar a presença do Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto (UNESP) nocorpo de docentes que compõe o Conselho Editorial.

Page 253: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 253

Normas para publicação na revista DIALOGUS

Normas para apresentação de originalApresentação: Os trabalhos devem ser redigidos em português e encaminhados para oe-mail, [email protected]

(Conforme estrutura do trabalho, abaixo proposta); com identificação do autor e com indica-ção da área e da sub-área do trabalho, segundo tabela Capes.

Os textos devem ser digitados em Word fonte 11, tipo Arial Narrown, tendo, no máximo, vinte ecinco páginas (salvo exceção ou autorizada pela comissão editorial). A configuração da páginadeve ser a seguinte: tamanho do papel: A4 (21,0 x 29,7 cm); margens: superior e inferior: 7,3cm; direita e esquerda, 5,3 cm. Espaçamento: espaço simples entre linhas e parágrafos; espaçoduplo entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc. Adentra-mento: parágrafos, exemplos, citações: tabulação 1,27 cm.

No que tange ao conteúdo dos artigos, os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem comoa exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.

Não serão aceitos trabalhos fora das normas aqui estabelecidas.

Estrutura do trabalhoOs trabalhos devem obedecer à seguinte sequência: Título; Autor(es - por extenso e apenas osobrenome em maiúsculo); Filiação científica do(s) autor(es) - indicar em nota de rodapé:Uni-versidade, Instituto ou Faculdade, Departamento, Cidade, Estado, País, orientação, agên-cia fi-nanciadora (bolsa e/ou auxílio à pesquisa); Resumo (com máximo de sete linhas); PALA-VRAS-CHAVE (até cinco); Texto (subtítulos, notas de rodapé e outras quebras devem ser evita-das); Abstract e Keywords (versão para o inglês do resumo e dos PALAVRAS-CHAVE precedidapela referência bibliográfica do próprio artigo); Referências Bibliográficas (trabalhos citados notexto), com indicação de tradução (no caso de obras estrangeiras) e número da edição.

• Título: centralizado, letras em maiúsculo, negrito e fonte 12.

• Subtítulos: sem adentramento, apenas a primeira letras do subtítulo deve ser maiúscula e fonte 12.

• Nome(s) do(s) autor(es): nome completo na ordem direta, na segunda linha abaixo do título,alinhado à direita. Letras maiúsculas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal.Fonte 12.

• Resumo: a palavra RESUMO em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na terceiralinha abaixo do nome do autor, sem adentramento. Na mesma linha iniciar o texto de resumo.

Page 254: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

254 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

• PALAVRAS-CHAVE: a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, em negrito, seguidade dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e uma linha cima do início do texto.Sepa-rar os PALAVRAS-CHAVE por ponto e vírgula.

-Referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, conforme o exemplo:

PÁDUA, Adriana Suzart de. Change and continuity. Comparative notes about Venezuela´sBo-livarian Constitution. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.X, n.X, 200X, p. X.

• Abstract: a palavra ABSTRACT em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, nase-gunda linha abaixo da referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, semadentramento. Na mesma linha, iniciar o texto do abstract.

• Keywords: a palavra KEYWORDS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, nasegunda linha abaixo do abstract. Utilizar no máximo cinco keywords separados por ponto evírgula.

- Referências Bibliográficas: a palavra REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS em maiúsculas,em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do keywords. Devem ser dispos-tas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT.

Abreviaturas - os títulos de periódicos devem ser abreviados conforme o Current Contents.Exemplos:

Livros e outras monografiasLAKATOS, E. M., MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. Ed. São Paulo:Atlas, 1986. 198p.

Capítulos de livrosJOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comunicação demassa. São Paulo: Cultrix, 1972, p.47 - 66.

Dissertações e tesesBITENCOURT, C. M. F. Pátria, Civilização e Trabalho. O ensino nas escolas paulista (1917-1939). São Paulo, 1988. Dissertação (mestrado em História) - FFLCH, USP.

Artigos e periódicosARAUJO, V.G. de. A crítica musical paulista no século XIX: Ulrico Zwingli. ARTEunesp (SãoPaulo), v.7, p.59-63, 1991.

Trabalho de congresso ou similar (publicado)MARIN, A. J. Educação continuada: sair do informalismo? In: CONGRESSO ESTADUALPAU-LISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1, 1990. Anais... São Paulo: UNESP,1990, p.114-118.

Page 255: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012. 255

Citação no texto: O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, separado porvír-gula da data de publicação: (BECHARA, 2001), por exemplo. Se o nome do autor estivercitado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Bechara (2001) assinala ...”. Quan-do for necessário especificar página(s), esta(s) deve(m) seguir a data, separada(s) por vírgulae precedida(s) de p. (MUNFORD, 1949, p.513). As citações de diversas obras de um mesmoautor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data,sem espacejamento (PESIDE, 1927a) (PESIDE, 1927b). Quando a obra tiver dois autores,ambos são indicados, ligados por & (OLIVEIRA & LEONARDO, 1943) e quando tiver três oumais, indica-se o primeiro seguido de et. al. (GILLE et. al., 1960).

Notas - Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé da página. As remissões para orodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior.

Anexos e/ou Apêndices - Serão incluídos somente quando imprescindíveis à compreensãodo texto.

Tabelas - Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos arábicos e encabeçadaspelo título.

Figuras - Desenhos, gráficos, mapas, esquemas, fórmulas, modelos (em papel vegetal e tintananquim, ou computador); fotografias (em papel brilhante); radiografias e cromos (em forma defotografia). As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no textoimpresso de 10,4 x 15,1 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso: autor, título abreviado esentido da figura. Legenda das ilustrações nos locais em que aparecerão as figuras, numera-dasconsecutivamente em algarismos arábicos e iniciadas pelo termo FIGURA.

Anexo(s): introduzir com a palavra ANEXO(S), na segunda linha abaixo da Referenciabibli-ográficas, sem adentramento. Continuar em nova linha, sem espaço.

DIALOGUSRua Ramos de Azevedo, n.423, Jardim PaulistaCEP: 14.090-180 – Ribeirão Preto – SPhttp://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/[email protected]

Page 256: DIALOGUS 2011 . v7. n2 · Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP) Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP) ... Alexander and his contemporaries in the second half of the

256 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.8 n.1 n.2 2012.

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

CoordenaçãoProfª Esp. Cláudia Helena Araújo Baldo

Prof. Ms. Cícero Barbosa do NascimentoProfª Ms. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa

Prof. Ms. Rafael Cardoso de Mello

DiagramaçãoProf. Ms. Rafael Cardoso de Mello

Alberto Giurlani

Revisão Técnica (Normas)Profª Esp. Cláudia Helena Araújo Baldo

Prof. Ms. Cícero Barbosa do NascimentoProfª Ms. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa

Prof. Ms. Rafael Cardoso de Mello

Revisão Técnica (Língua Estrangeira)Prof. Ms. Rafael Cardoso de Mello

Assessoria DiscenteLarissa Carolina Aguiar LemeVanessa Cristina Silva Souza

Tamara da Silva Chinarelli

ResenhasGuilherme Pires de Campos

SOBRE O VOLUMEMancha: 9,6 X 17,7

Tipologia: Arial NarrownPapel: Sulfite 75g

Matriz: offsetTiragem: 450 exemplares

Produção GráficaEditora e Gráfica Padre Feijó Ltda.

Rua Carlos Chagas, 306 - Jardim PaulistaCEP 14090-190

Fone: (16) 3632-2131 - Ribeirão Preto – SP