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Dextrocardia: diagnóstico nem sempre fácil
Antonio Américo FriedmannI
Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins)
Uma mulher de 81 anos, estrangeira, foi atendida no ambulatório do Hospital Geral com queixa de dispneia e palpitação. Ao exame físico, apresentava pressão arterial 130 mmHg x 80 mmHg, frequência cardíaca (FC) de 112 bpm, ritmo cardíaco irregular e hipofonese de bulhas.
O eletrocardiograma (ECG) evidenciou fibrilação atrial (FA) e desvio do eixo elétrico cardíaco, com ondas Q em D1, aVL e de V4 a V6 sugestivas de área eletricamente inativa em parede anterolateral (Figura 1). Tais alterações suscitaram prolongada discussão.
IProfessor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência:Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins) — Prédio dos Ambulatórios Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155 — São Paulo (SP) — CEP 05403-000E-mail: [email protected]
Fonte de fomento: nenhuma declarada — Conflito de interesse: nenhum declaradoEntrada: 4 de agosto de 2014 — Última modificação: 4 de agosto de 2014 — Aceite: 19 de agosto de 2014
Figura 1. Fibrilação atrial. Desvio do eixo elétrico cardíaco (QRS orientado 195°). Ondas Q em D1, aVL e de V4 a V6 sugestivas de área eletricamente inativa em parede anterolateral.
I aVR V1 V4
aVL V2 V5
aVF V3 V6
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ELETROCARDIOGRAMA
Diagn Tratamento. 2014;19(4):179-81. 179
Em seguida, os familiares da paciente, questionados, nega-ram antecedentes de doença cardíaca prévia e mencionaram que a paciente nasceu com o coração e outros órgãos desvia-dos para o lado contrário.
Com o intuito de comprovar o diagnóstico de dextrocardia, foi realizado novo traçado de ECG com as derivações precor-diais direitas (Figura 2), que mostrou progressão normal do QRS no plano horizontal. Por último, foram invertidos os ele-trodos dos membros e o ECG, assim modificado (Figura 3), revelou apenas fibrilação atrial e complexos QRS e ondas T com orientação e morfologia normais.
DISCUSSÃO
Dextrocardia é uma anomalia congênita em que o cora-ção se posiciona para o lado direito e as câmaras cardíacas direitas e esquerdas estão invertidas, como uma imagem em espelho. Sua prevalência é de 1 caso para cada 12.000 nascimentos. Na maioria das vezes, ocorre associada a inversão dos órgãos abdominais, condição denomina-da situs inversus totalis. Mais raramente ocorre de forma isolada. Pode estar associada a malformações cardíacas
congênitas. Não deve ser confundida com dextroposição do coração, que é o deslocamento do coração para o he-mitórax direito, devido a deformidades da caixa torácica ou a alterações pleuropulmonares como pneumotórax, grande derrame pleural esquerdo, atelectasia do pulmão direito, ou pós-pneumectomia.1
O diagnóstico de dextrocardia isolada no ECG, sem outras alterações cardíacas associadas, é geralmente fácil. Quando todas as ondas (P, QRS e T) estão negativas na derivação D1, há duas possibilidades: troca de eletrodos dos membros su-periores ou dextrocardia. No primeiro caso, a progressão das ondas R nas derivações precordiais é normal. Na dextrocardia, as ondas R não aumentam de V1 a V6, porque o coração está voltado para o lado direito. Neste caso, as derivações precor-diais direitas (V1R a V6R) evidenciam a morfologia normal do QRS, auxiliando o diagnóstico.2
As causas mais comuns de desvios dos eixos da onda P e do complexo QRS são diferentes. Onda P desviada para outros quadrantes é mais frequente em ritmos atriais ectó-picos, enquanto que o desvio do eixo do QRS para direita, isoladamente, pode ser consequência de sobrecarga ventri-cular direita, área inativa lateral, ou distúrbio de condução
Figura 2. Derivações precordiais direitas (V1R a V6R). Os eletrodos colocados no precórdio da esquerda para a direita evidenciam progressão normal das ondas R.
I aVR V1R V4R
aVL V2R V5R
aVF V3R V6R
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III
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Diagn Tratamento. 2014;19(4):179-81.180
Dextrocardia: diagnóstico nem sempre fácil
REFERÊNCIAS
1. Bohun CM, Potts JE, Casey BM, Sandor GG. A population-based study of cardiac malformations and outcomes associated with dextrocardia. Am J Cardiol. 2007;100(2):305-9.
2. Grindler J, Friedmann AA, Oliveira CAR. Desvio do QRS para direita. In: Friedmann AA, Grindler J, Oliveira CAR, Fonseca AJ,
editores. Diagnóstico diferencial no eletrocardiograma. 2a ed. São Paulo: Editora Manole; 2011. p 249-55.
3. Friedmann AA, Grindler J, Fonseca AJ. Insólito desvio do eixo elétrico cardíaco [Uncommon shuting line of the cardiac electric axle]. Diagn Tratamento. 2001;6(2):44-5.
(bloqueio divisional póstero-inferior). Entretanto, o desvio simultâneo de ambos os vetores, da ativação atrial e da ventricular para a direita, é incomum, indicando ou troca de eletrodos, situação mais comum, ou dextrocardia, mais rara. Assim, quando não há onda P, como no caso apresen-tado com FA, o diagnóstico é mais difícil. Outras alterações do QRS, como distúrbios de condução, sobrecargas ou áreas inativas, também dificultam o diagnóstico.3
CONCLUSÃO
Como a paciente não tinha antecedentes cardiológicos prévios, o diagnóstico mais provável é de fibrilação atrial de início recente, comum à faixa etária. A presença de dextrocar-dia apenas dificultou o diagnóstico.
O diagnóstico diferencial dos desvios dos eixos das ondas cardíacas é fundamental para a interpretação correta do ECG.
D1 aVR V1R V4R
aVL V2R V5R
aVF V3R V6R
D2
D3
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Figura 3. Derivações corrigidas. Além das derivações precordiais direitas, foram trocados os eletrodos dos membros direitos com os esquerdos – manobra útil para o diagnóstico de anormalidades associadas. Neste traçado, a única anormalidade é a fibrilação atrial; o complexo QRS e a onda T têm orientação e morfologia normais.
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Antonio Américo Friedmann