Despachado para a China.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • DESPACHADO PARA A CHINA

    HUDSON TAYLOR

    DAVE & NETA JACKSON

    CPAD

    Digitalizado por Zica

    www.semeadoresdapalavra.net

    Nossos e-books so disponibilizados gratuitamente, com a nica finalidade de oferecer leitura edificante a todos

    aqueles que no tem condies econmicas para comprar.

    Se voc financeiramente privilegiado, ento utilize nosso acervo apenas para avaliao, e, se gostar, abenoe autores,

    editoras e livrarias, adquirindo os livros.

    Semeadores da Palavra e-books evanglicos

  • Todas as personalidades histricas adultas

    mencionadas neste livro, assim como suas experincias, so

    reais. Contudo, os relatrios ingleses somente identificam o

    capito e no os demais membros da tripulao do Dumfries.

    Assim, criamos um nome para o primeiro oficial e para o

    camareiro negro. Para por a salvo a histria, alteramos a

    ordem de alguns fatos, e o tempo transcorrido na China foi

    condensado em um ano, enquanto os fatos realmente

    ocorreram durante os primeiros dois anos e meio de

    ministrio de Hudson Taylor naquele pas.

    A corte de Hudson Taylor Maria Dyer ocorreu

    essencialmente conforme descrito na histria, embora tivesse

    ocorrido em Ningpo, uma cidade ao sul de Xangai.

    Neil Thompson e Yang Namu, assim como suas

    especficas interaes com Hudson Taylor e outros

    personagens, so fictcios, muito embora um servo de Taylor

    o tivesse roubado durante uma viagem ao interior.

    DAVE & NETA JACKSON so casados e, juntos,

    tm escrito muitos livros sobre casamento, famlia, igreja e

    outros temas afins, incluindo-se: "Em Fogo, por Cristo:

    Histrias do Espelho dos Mrtires", e as sries "Pet Parables"

    e "Caring Parent". Tm trs filhos: Julian, o ilustrador da

    srie Trailblazer (Aventura Teen, no Brasil), Rachel, que est

    em uma curta misso em Honduras, e Samantha, sua filha

    adotiva que cambojana e est cursando o perodo

    secundrio.

  • Tm seu lar em Evanston, Illinois, onde so membros

    ativos da Igreja de Reba Place.

  • Sumrio

    Uma paulada na cabea ............................................. 6

    A temvel luz em Holyhead .................................... 19

    Bem alto, sobre o mar ............................................. 34

    Ao mar! ................................................................... 53

    S atiraremos em voc! No o torturaremos! ......... 69

    O naufrgio do bom navio Dumfries ...................... 85

    Ps amarrados e foguetes do cu ............................ 99

    A tumba do morto-vivo ........................................ 114

    Traio na cidade fortificada ................................ 130

    A longa estrada de volta ....................................... 142

    O furaco dos apaixonados ................................... 154

    A passagem no Geelong ....................................... 169

    Um pouco mais sobre Hudson Taylor .................. 179

  • Captulo l

    Uma paulada na cabea

    Acordei em uma cama estranha e ento me

    lembrei: era o dia 19 de setembro de 1853 e eu estava

    em Liverpool, Inglaterra. Tambm me lembrei, com

    um profundo desapontamento, que vov Thompson

    estava de cama, doente, e no poderia me levar s

    docas.

    Somente minha av havia ido encontrar-me na

    estao de trem, na noite anterior. Depois de um

    abrao bem apertado, ela explicou-me:

    Eu sei, Neil, que vindo do campo, seu

    coraozinho

    anseia para ver os navios amanh, mas, voc vai ter

    que esperar at que o capito se sinta melhor.

    Tudo bem! Eu posso esperar! assegurei-lhe,

    mas, na

    manh seguinte, no me sentia com tanta pacincia

    assim.

    Meu av era um capito do mar e havia

    passado a maior parte de sua vida viajando; eu s o

  • tinha visto uma vez, antes. Mas, agora que havia se

    aposentado, me convidara a vir passar uns tempos

    com ele e minha av.

    "Vou lhe mostrar todos os navios do porto e

    apresent-lo a todos os capites" tinha prometido

    em sua carta.

    No entanto, ele estava doente...

    Pulei da cama e olhei para fora, pela pequena

    janela redonda. Era igual a escotilha de um navio.

    Um monte de coisas na casa de meus avs tinha

    vindo de navios ou do mar. Havia brilhantes

    lampies de lato polido do lado de fora da porta de

    entrada, uma grande concha e um culo de alcance

    sobre o consolo da lareira e um mapa do mundo na

    parede. As vigas do teto nos quartos eram baixas e

    escuras, e o "corrimo" que servia pequena escada

    que levava ao quartinho, onde eu havia dormido,

    nada mais era do que uma corda frouxa. Eu adorava

    tudo isso. Desejava muito ir tambm para o mar,

    algum dia.

    A manh estava brilhante, mas enevoada. Da

    minha janela, os telhados das casas da vizinhana

    pareciam balsas na nvoa prateada. Logo, logo, o sol

    transformaria tudo isso em um dia claro.

  • Por que esperar pelo vov? pensei O

    mar no deve ficar to distante assim. Posso at

    sentir o cheiro penetrante do ar salgado. Aposto que

    posso encontrar as docas com muita facilidade!

    Sem perder tempo, escapuli da casa sem que

    vov me visse e andei para a zona porturia. Jamais

    havia imaginado que pudesse haver tantos navios.

    Passei por cerca de trinta deles grandes e

    pequenos e havia mastros de navios at onde mi-

    nha vista podia alcanar no rio Mersey, que era onde

    ficava o porto de Liverpool.

    Isso era fantstico! Eu nem podia esperar at

    que vov ficasse melhor e pudesse me levar a bordo

    de alguns dos navios para conhecer os capites.

    Parei ao lado de um pequeno clipper

    veleiro muito veloz. O nome Dumfries estava

    pintado em sua proa. A tripulao parecia estar

    pronta para zarpar e ento, subi sobre um barril, para

    observar. Logo o sol surgiu atravs da nvoa e vi

    que algumas pessoas andavam pela prancha de

    desembarque. Quando alcanaram a doca, voltaram-

    se e acenaram para um passageiro um homem

    jovem, aparentando cerca de vinte anos o qual

    permanecia parado na amurada do navio. Eu me

    perguntava para onde estaria ele indo... aquele

  • sortudo. De repente, um oficial do navio (pude ver

    que era um oficial pela farda espalhafatosa que

    vestia) gritou:

    Onde est o grumete? Est na hora de

    zarpar e ele no est em lugar algum!

    O homem chegou at a amurada e olhou para

    todos os lados da doca, ento, gritou para dois

    marinheiros que estavam no cais prontos para liberar

    as enormes cordas que mantinham o navio preso no

    ancoradouro.

    Vocs a, homens! Ns estamos sem

    grumete! Ele apontou com a cabea em direo

    doca e disse:

    Tratem disso!

    Sim, sim, senhor!

    Nesse momento, notei que uma das mulheres

    que se encontrava na doca estava soluando e

    limpando os olhos em seu leno. O passageiro

    gritou, l do convs:

    No chore, mame. Estarei de volta logo,

    logo! Estava sentindo pena da mulher quando,

    repentinamente, fortes braos me agarraram por

    detrs e me puxaram do barril. Em instantes, estava

    sendo carregado pelos dois marinheiros em direo

    ao navio.

  • Sou alto para um menino de doze anos e lutei

    com todas as foras, mas no consegui nada. No

    podia me libertar daquele aperto to firme. Quando

    senti que subamos, aos trancos, a prancha de

    desembarque, comecei a gritar por socorro.

    Ei, o que vocs esto fazendo com esse

    menino? gritou algum.

    Nesse momento, algo bateu em minha cabea

    e tudo ficou escuro.

    Quando acordei, pela segunda vez naquela

    fatdica manh, no estava na confortvel cama de

    hspedes de minha av. O lugar era pequeno e

    escuro, no muito maior que um depsito de carvo.

    A parte de trs de minha cabea doa muito e me

    sentia tonto. No levei muito tempo para entender

    que estava a bordo do Dumfries, a caminho do mar.

    Deixem-me sair daqui! gritei com todas

    as foras. Chamei por socorro inmeras vezes sem

    obter qualquer resposta. Tentava no entrar em

    pnico, mas estava mortalmente assustado. Por que

    havia sido agarrado e levado para bordo? Agora eu

    sabia que deveria ter esperado por vov para vir at

  • as docas, mas no havia feito nada de errado s

    me sentara naquele barril, observando...

    Ento, lembrei-me do oficial gritando que o

    grumete havia sumido e dizendo aos dois

    marinheiros para "tomarem conta disso"

    apontando para mim! Eu estava realmente assustado.

    No queria ser um grumete no agora, no dessa

    maneira!

    Comecei a chutar a rude parede. Talvez

    encontrasse uma tbua solta ou uma porta que

    pudesse abrir a pontaps. Vezes sem conta, chutei as

    tbuas, gritando a plenos pulmes.

    Finalmente, algum abriu a porta de minha

    pequena cela e encontrei-me olhando cara a cara

    para um homem africano.

    Bem, bem. O que ns temos aqui? disse

    ele Um clandestino, hem?

    Eu estava furioso e respondi:

    No sou um clandestino! Fui forado a

    embarcar neste navio! Tenho que voltar para

    Liverpool!

    Ah! Que linda histria! rosnou o marujo

    Eu digo que voc um clandestino! Saia da!

    Vou lev-lo ao capito! Vamos ver o que ele diz!

  • Meu corao apertou. Se o oficial que tinha

    visto fosse o capito, estava bem arranjado. Mas,

    pelo menos eu j no estava trancado e assim segui

    atrs do meu "libertador".

    J no convs, todos pareciam ocupados

    ajustando as velas e deixando tudo pronto para a

    ao. O oficial que tinha ordenado minha captura

    estava gritando ordens. Mas fiquei aliviado ao ver

    que a terra no estava assim to distante.

    Talvez eu possa falar com ele para me

    desembarcar pensei.

    Contudo, o marinheiro passou pelo oficial e

    levou-me a subir alguns degraus que levavam ao

    convs da popa onde o timoneiro estava segurando o

    timo, a roda que guia o navio. Ao lado dele, de p,

    estava um homem grande e musculoso. Pensei que

    se tratasse de um outro marinheiro, todo vestido de

    jeans escuros, uma grossa blusa de l e um pequeno

    bon na cabea. Estava parado, com os braos

    cruzados, olhando atentamente para o mar enquanto

    soltava baforadas constantes de um pequeno

    cachimbo.

    Capito disse o marinheiro que me

    trazia a reboque encontrei este clandestino aqui

    no castelo da proa. Que fao com ele?

  • Estava espantado. Esse era o capito? Pela

    primeira vez, o homem do cachimbo pareceu notar-

    nos. Seu rosto era magro e enrugado e parecia ter

    sido esculpido em marfim escuro. Seus olhos eram

    de um azul brilhante sob as brancas e espessas

    sobrancelhas. No tinha um mau aspecto, mas

    certamente olhava com bastante firmeza.

    O que foi, Jeffries? Um clandestino? Em

    nome dos cus, menino, por que voc quis ser um

    clandestino em um navio de ch que vai para a

    China?

    Eu no quis ser um clandestino!

    protestei. Estava s sentado nas docas,

    observando o movimento. Alguns de seus marujos

    me agarraram e me carregaram para bordo sem

    razo alguma. Bateram na minha cabea e me

    trancaram no convs inferior.

    O capito franziu as sobrancelhas.

    Senhor Henson! chamou ele, dirigindo-

    se ao oficial de farda espalhafatosa Sabe alguma

    coisa sobre este menino?

    Sim, senhor! disse Henson, enquanto

    caminhava em direo ao convs da popa, com os

    botes de lato de sua farda brilhando.

    Eis a o nosso novo grumete!

  • O senhor o contratou?

    Bem... ainda no tive tempo para essas

    formalidades, mas o farei assim que possa...

    Henson, voc raptou este menino? Eu

    quero uma resposta direta!

    Sim, senhor. Raptei! Nosso grumete

    contratado desapareceu; j era hora de zarpar e esse

    rapaz estava bem l, sentado, precisando de um

    emprego...

    Henson, esta a ltima vez que voc rapta

    algum para o meu navio. Est entendido? Voc

    nunca viajou comigo e eu estou vendo que tem que

    aprender algumas coisas. Se quer permanecer como

    meu primeiro oficial, melhor aprend-las bem

    rpido!

    Sim, sim, senhor! disse Henson com um

    sorriso afetado e afastou-se.

    Estava comeando a ficar preocupado.

    O senhor pode me enviar de volta a

    Liverpool? perguntei ao capito.

    Ele sacudiu a cabea, em negativa.

    No tenho meios... L ao longe, vai o

    nosso barco piloto, est vendo? Eu poderia t-lo

    mandado de volta nele, menino, mas agora, ele se

    foi...

  • Olhei para trs, na direo de Liverpool, para

    onde o capito estava apontando com o tubo de seu

    cachimbo e vi o barco desaparecendo a distncia.

    Agora sim, eu estava realmente preocupado!

    No h nenhuma maneira de cham-lo de

    volta?

    No! Alm disso, o piloto um homem

    ocupadssimo; ele no pode estar indo e vindo como

    se fosse um servio de barcas!

    Mas o meu av um capito! Tenho

    certeza de que ele arranjar as coisas com o piloto!

    Um capito do mar? Qual o nome dele?

    Capito Thompson.

    George Thompson?

    Sim, senhor. Ele conhece todo mundo.

    Tambm arranjaria as coisas com o senhor, se me

    levasse de volta...

    Tenho certeza de que arranjaria... a voz

    do capito extinguiu-se enquanto olhava o mar mais

    uma vez.

    Eu olhava em torno, ansiosamente.

    Que tal me colocar a bordo daquele escaler

    e me devolver ao litoral? No muito longe. Eu... eu

    poderia caminhar at Liverpool...

    O capito franziu as sobrancelhas.

  • Olhe, meu filho... No h jeito... Estou

    realmente muito pesaroso de voc ter sido raptado,

    mas, goste ou no disso, voc ser o nosso grumete,

    nesta viagem. Meu conselho que faa o melhor que

    puder. Seu av ficaria orgulhoso por voc ir para o

    mar.

    Ento, voltando-se para o timoneiro, disse:

    Um pouco mais para estibordo! No

    queremos chocar-nos com o Sea Witch.

    Voltei-me e vi um outro clipper, de formato

    esguio, com as velas enfunadas como bales

    brancos, velejando na direo oposta a nossa. Por

    detrs dele, nuvens cmulos, que traziam consigo

    trovoadas, velejavam l no alto do cu azul. Era

    mesmo um lindo quadro, mas no estava interessado

    em contemplar lindos quadros naquele momento.

    Capito, por favor! gritei

    desesperadamente O senhor no pode comunicar-

    se com aquele navio e colocar-me a bordo, de volta a

    Liverpool?

    O capito franziu profundamente o cenho

    enquanto observava a parede de nuvens.

    H uma tempestade a caminho disse ele,

    quase como se estivesse falando consigo mesmo

    e quero estar fora do Canal da Irlanda quando ela

  • chegar. Levaria algumas horas para que se pudesse

    fazer a transferncia... No temos tempo para isso...

    Mas, posso fazer uma outra coisa por voc. Ele virou

    a cabea para barlavento do navio e apanhou uma

    trombeta de lato brilhante. Colocando-a nos lbios,

    gritou:

    Ei... Vocs, do Sea Witch!

    Em alguns instantes, o capito do Sea Witch

    veio amurada do seu navio com uma trombeta

    semelhante.

    Os dois navios estavam quase em direes

    opostas um do outro quando ele gritou:

    Al, capito Morris! Precisam de ajuda?

    Que podemos fazer por vocs?

    Diga ao capito Thompson, em Liverpool,

    que estou com o seu neto a bordo de meu navio,

    como meu grumete, e que tudo est bem!

    Eu direi, capito. Faam uma boa viagem!

    E com um ltimo grito e um aceno amigvel,

    os dois lustrosos navios passaram um pelo outro a

    no mais de seiscentos metros de distncia.

    Agora, rapazinho, seu av no vai mais se

    preocupar com voc!

  • Deveria ser grato? Minha ltima oportunidade

    de voltar para casa l se ia velejando pelo plmbeo

    mar em direo a Liverpool... Engoli com

    dificuldade. Estava navegando para a China sem que

    ningum me tivesse perguntado se eu queria ir...

  • Captulo 2

    A temvel luz em Holyhead

    No tendo nada mais a me dizer, o capito

    Morris enfiou seu cachimbo novamente na boca e

    voltou-se para o timoneiro.

    Lutando contra as lgrimas, caminhei para a

    popa do navio e l fiquei observando a trilha que a

    espuma branca deixava atrs de ns, em direo a

    Liverpool. Uma grande tristeza caiu sobre meu ser.

    Mas, nesse instante, o vento soprou mais forte e o

    Dumfries adernou perigosamente sobre seu lado.

    Voltei-me bem a tempo de ver o corrimo a

    sotavento, bem no meio do navio, mergulhar no mar.

    Isso espantou num segundo a minha nostalgia e

    agarrei-me ao cordoame que estava prximo, te-

    mendo que o navio fosse naufragar.

    O capito, que estava nesse momento bem

    diante de mim, no necessitou de nada ou ningum

    para firmar-se, mas movia-se de acordo com o

    balano do navio, mantendo um perfeito equilbrio.

  • Em pouco tempo, o navio endireitou-se um pouco e

    o capito gritou para seu primeiro oficial:

    Senhor Henson, asseste os mastros do

    sobrejoanete e fixe as vergas! Equilibre tambm a

    vela de r! Quero avanar o mximo possvel antes

    que a tempestade nos jogue em cheio contra o vento!

    Alis, senhor Henson, disse o capito ao seu

    primeiro oficial quando este subiu os degraus at o

    convs da popa fique prevenido! Se no quiser ter

    problemas comigo, veja que carreguemos tantas

    velas quantas este navio possa manejar e que elas

    estejam rigorosamente em bom estado. Tempo

    dinheiro, senhor Henson! Tempo dinheiro! Uma

    vez j fiz esta viagem em oitenta e sete dias e

    gostaria de fazer at Xangai um tempo idntico.

    Entendido?

    Sim, sim, senhor! falou bruscamente

    Henson, com o rosto vermelho e, voltando-se,

    comeou a gritar ordens tripulao.

    Naquela poca, eu no tinha idia do que

    significavam aquelas instrues sobre as diferentes

    velas, mas, num momento, os marinheiros estavam

    subindo pelo cordoame e puxando vrias cordas.

    Estava contente em ver tudo isso porque me parecia

    que o navio se endireitaria logo e navegaria com o

  • convs nivelado e assim, poderamos andar outra

    vez a salvo sobre ele. Porm, ao invs disso, quando

    os marujos assestaram os mastros do sobrejoanete,

    onde ficam as velas dos mastros mais altos, e

    ajustaram as outras velas, o navio tombou

    novamente, de tal modo que o corrimo a sotavento

    ficou quase dentro d'gua.

    Olhando em torno e vendo-me parado,

    aguardando os acontecimentos, o capito deu um

    largo sorriso e perguntou:

    O que que h, rapaz? Assim, voc nunca

    ser um marinheiro! Por que no vai em frente e

    procura pelo cozinheiro. Diga-lhe que o novo

    grumete e que precisa de algo para fazer.

    Continuei parado, esperando. V em frente,

    menino!

    Ento, percebendo que eu no sabia onde

    encontrar o cozinheiro, apontou para a guarita no

    convs superior, bem atrs do mastro da proa.

    Aquela a cozinha do navio. Ele est l!

    Certo!

    Caminhei, cambaleando pelo tombadilho.

    No se diz "certo"! "sim, sim, senhor"!

    Sim, capito.

    "Senhor"! trovejou ele.

  • Sim, sim, senhor! tartamudeei,

    finalmente, sentindo que estava quase escorregando

    para o mar. Agora, a inclinao do convs j no era

    to ngreme; eu brincara inmeras vezes no telhado

    l de casa, que era muito mais ngreme, porm o

    convs continuava se movendo com o balano do

    mar e assim, meus passos eram inseguros.

    Uma vez no convs da popa, segui em direo

    ao lado mais alto a barlavento quando uma

    onda quebrou no lado do navio e espirrou um jato de

    gua salgada no meu rosto. Lembrei-me de quo

    maravilhoso tinha me parecido o ar salgado naquela

    mesma manh quando olhava pela janela redonda do

    quarto de hspedes da casa de meus avs. As coisas

    realmente haviam mudado muito, desde ento.

    A essa altura, o mar estava realmente jogando

    muito. A gua estava escura como lousa cinzenta e a

    espuma rendada se estendia sobre toda a extenso de

    sua superfcie. As nuvens, que pareciam montanhas

    com os cumes cobertos de neve quando as vramos

    pela primeira vez, estavam agora sobre ns, baixas,

    suas barrigas escuras quase se arrastando pelas

    cristas das ondas.

    O Dumfries tinha trs altos mastros. Os dois

    da frente tinham quatro velas em cada um deles; trs

  • velas bujarronas estavam assestadas no mastro

    principal. O mastro da mezena (o mastro na r do

    navio) possua uma grande lana, na qual, como

    aprendi mais tarde, ficava a vela de r e as velas

    caranguejas. Entre os mastros estavam vrias velas

    de estai. Era mesmo um belo navio de cerca de cento

    e vinte ps de comprimento, embora no fosse to

    grande ou veloz como alguns dos navios mais

    modernos.

    Quando finalmente alcancei a cozinha do

    navio, vi que era to pequena que nunca poderia

    imaginar algum preparando comida para cinqenta

    homens nela. Mas, l estava o cozinheiro, um

    homem pequeno e atarracado vestindo uma camisa

    ensebada, mexendo um enorme caldeiro que estava

    sobre um grande e negro fogo de ferro.

    Senhor disse eu o capito enviou-

    me.

    "Senhor", eu? disse o cozinheiro sem se

    voltar Desde quando fui promovido a oficial? E

    quem voc?

    Sou Neil Thompson e no perteno a este

    navio.

    Ento, cai fora! grasnou ele.

  • Quer dizer falei, corrigindo-me. eu

    realmente no perteno a este navio, mas, uma vez

    que estou aqui, serei o grumete.

    Ele me olhou, semicerrando os olhos.

    Raptado, hem? Nesse caso, melhor

    comear a trabalhar. L est um saco de batatas.

    Aqui est uma faca. Comece a descasc-las!

    Achei um caixote, sentei-me e comecei a

    descascar as batatas. Nunca havia imaginado que

    descascar batatas fosse um trabalho to duro! Mas, o

    cozinheiro no me dirigiu novamente a palavra at

    que eu houvesse terminado.

    Na guarita dianteira no convs da proa,

    tambm conhecida como castelo da proa, estavam a

    cozinha e os camarotes da tripulao. Havia

    escotilhas ao longo das laterais, exatamente como a

    janela do meu quarto na casa de meus avs. Mas,

    estava ficando to escuro l fora, que o cozinheiro

    acendeu dois lampies de lato que pendiam,

    balanando, das vigas do teto. Sua luz projetava

    sombras estranhas que danavam pelo interior da

    pequena cozinha, e os constantes estalos e gemidos

    dos costados e anteparos do navio lembravam-me

    que o tempo no estava nada bom.

  • De vez em quando, uma onda batia de

    encontro s escotilhas e minha imaginao voava,

    enquanto eu desejava que a tempestade ficasse to

    forte que o capito tivesse que retornar a Liverpool,

    temendo que fssemos pique.

    Quando terminei de descascar as batatas, o

    cozinheiro disse:

    Ponha as cascas naquele balde e jogue as

    ao mar! Quando voltar, pode comear a lavar estas

    panelas!

    Assim que sa para o convs, ouvi algum

    grilar: "l vem ela!" No tinha a menor idia de

    quem era "ela", mas, na penumbra, vi o primeiro

    oficial, Henson, pulando como louco os obstculos

    que encontrava em seu caminho, trepando

    freneticamente pelo cordoame at ficar vrios ps

    acima do convs.

    Ento, eu a vi: Uma grande onda, enroscada e

    cheia de espuma, estava parada bem l no alto,

    acima da amurada e eu estava parado exatamente

    sob ela!

    Trate de agarrar-se em alguma coisa, rapaz,

    ou ser varrido para o mar! gritou Henson para

    mim.

  • Eu deveria ter-me agarrado logo onde

    pudesse, mas, sendo novo no mar e sem conhecer

    suas manhas, meu crebro no conseguiu trabalhar

    to rpido quanto deveria. Antes que pudesse me

    mover, uma muralha de gua e espuma despencou

    sobre mim e levou-me de roldo, deslizando pelo

    convs. Meio afogado sob a gua, eu certamente

    teria sido varrido para dentro do furioso mar, quando

    ca dentro de algo. Em seguida, estava rolando mais

    e mais, como uma bola de boliche entre os pinos.

    Notei que estava contra o corrimo a sotavento e

    tentei desesperadamente agarrar-me a alguma coisa,

    mas no havia nada por perto.

    Ento, de repente, quase to rpido como

    tinha vindo, a enxurrada se foi e eu consegui respirar

    de novo.

    Parei tremendo e vi que tinha rolado em todo

    comprimento do convs central e, assim, ficado

    contra os degraus que levavam ao convs da popa.

    L de cima, o capito gritou para mim:

    melhor agarrar esse balde! Ns no

    temos outros! No podia acreditar no que estava

    ouvindo! Quase tinha sido varrido para o mar e tudo

    que ele achava para me dizer era "agarre esse

    balde"? Contudo, em poucos dias aprendi que cair

  • durante uma tempestade era to natural para um

    marinheiro que, se voc se sasse bem, no havia

    mais nada com que se preocupar.

    Agarrei o balde que ainda estava rolando pelo

    convs, e andei de volta cozinha, to rpido quanto

    podia, naquele piso oscilante. Quando bati a porta

    atrs de mim para fugir da tempestade, o cozinheiro

    voltou-se e disse-me:

    Se vai ficar parado a, pingando como uma

    lavanderia na sexta-feira, melhor torcer-se naquele

    caldeiro e comear a lav-lo.

    J era muito tarde e a tempestade ainda rugia,

    quando a tripulao terminou de comer em turnos.

    Terminei de lavar a loua da ceia e estava to

    cansado que, quando encontrei um cantinho seco e

    quente perto do fogo, enrosquei-me para dormir.

    A despeito do navio estar jogando muito, devo

    ter dormido a maior parte da noite, pois j estava

    clareando o dia quando acordei com algum me

    cutucando com sua bola. Era o marinheiro negro

    outra vez.

  • Est acordado, Thompson? perguntou o

    homem. E ento, sem esperar resposta, disse:

    Levante-se e venha comigo. A gua est

    vazando pela escotilha principal para dentro do

    poro!

    Guiou-me at uma pequena escada no

    tombadilho, cujos degraus levavam ao prximo

    convs inferior. L, acendeu uma vela fumacenta e

    olhou-me nos olhos.

    Meu nome Jeffries. Sou o camareiro de

    bordo. disse ele enquanto se movia em direo ao

    lugar onde uma cachoeira corria de uma portinhola

    do convs superior e desaparecia dentro do poro,

    abaixo de ns.

    Segure isto! falou o camareiro enquanto

    me estendia a vela e subia para ajustar a portinhola

    para que parasse de verter gua. Imediatamente, a

    cascata transformou-se em uma fina cortina e logo,

    num fio d'gua.

    Voc vai ficar no meu camarote e vai

    trabalhar para mim a maior parte do tempo.

    grunhiu ele. Mas, neste momento, precisamos de

    todos os braos no convs. Primeiro, vou dar-lhe um

    oleado.

  • Ele deu-me uma capa de chuva que tinha sido

    oleada de maneira que se tornasse prova d'gua e

    nos dirigimos para o convs.

    Voc pode ajudar com as bombas!

    gritou ele acima do barulho do vento. Isso no

    necessita de muita percia.

    No convs, era quase impossvel respirar, e as

    ferozes rajadas de vento pareciam sugar o ar

    diretamente de meus pulmes. Segui Jeffries at

    duas grandes rodas que ficavam localizadas perto da

    base do mastro principal. Havia uma grande

    manivela em cada roda e dois marinheiros as

    estavam virando. Substitu um marinheiro e Jeffries,

    o outro.

    A princpio, no parecia to duro virar as

    rodas e eu estava contente de ter algo em que me

    segurar e algum prximo de mim, no meio daquela

    terrvel tempestade. Mas, em pouco tempo, j

    respirava com dificuldade.

    s vezes, vrias ondas se abatiam sobre o

    nosso convs, uma aps a outra, enchendo-o de gua

    do mar, at as amuradas, mas eu me segurava com

    firmeza at que a inundao passasse.

    Todos os outros marinheiros tambm estavam

    no convs, trabalhando intensamente para conseguir

  • obedecer as ordens do primeiro oficial, porm, era

    difcil ouvi-las com o vento rugindo e soprando

    atravs do cordoame. De vez em quando, ele gritava:

    Prontos para virar de bordo!

    E ento, os homens corriam para diferentes

    pontos.

    Mas, o navio foi apanhado pelo vento

    enquanto os marinheiros lutavam para ajustar as

    velas. Quando as velas comearam a encher, o navio

    mudou de direo e o oficial gritou:

    Mudar o rumo!

    O Dumfries bordejou para trs e para diante,

    em cheio contra o vento, durante toda a manh e eu

    podia ver que os marinheiros estavam exaustos. De

    repente, Jeffries gritou, acima do barulho do vento:

    Acho que no estamos fazendo nenhum

    progresso!

    Somente uma vela quadrada estava assestada

    em cada mastro juntamente com as velas de estai e

    duas bujarronas, durante toda a tempestade. O vento

    era to forte que todas as outras velas haviam sido

    recolhidas durante a noite para que os mastros no se

    partissem. Finalmente, veio uma nova ordem:

  • Preparem-se para atravess-la! e um

    momento mais tarde: Bombordo! Virar

    bombordo! Encurtar as velas de mezena!

    Uma dzia de homens correu rpido, subindo

    o cordoame principal, trabalhando na mastreao

    para descer as velas.

    O que esto fazendo? gritei no ouvido

    de Jeffries, temendo que os homens cassem no

    convs e morressem, ou despencassem no mar

    furioso.

    Esto recolhendo as velas porque no

    estamos fazendo nenhum progresso. Talvez

    possamos sair do centro da tempestade por alguns

    instantes. Pelo menos, isso dar aos marinheiros um

    tempo para respirar!

    Uma ncora foi lanada e o navio comeou a

    jogar para um lado e para o outro de uma maneira

    incrvel. Em alguns instantes eu estava enjoado.

    Vomitei antes que pudesse chegar amurada, mas o

    vmito foi imediatamente lavado por uma onda que

    se quebrou e veio lavando todo o convs. Depois

    disso, comecei a ter vmitos em seco, pois no tinha

    comido nada desde a noite anterior.

    Cometi o erro de olhar para o mar e vi uma

    grande onda verde, com sua crista branca como leite,

  • crescendo to alta que parecia uma montanha,

    escondendo de vista, o resto do tenebroso oceano.

    Mais alta, cada vez mais alta, mais fina, cada vez

    mais fina, sua crista cresceu e comeou a enroscar,

    pronta para quebrar, at que, com um rugido, caiu

    sobre o navio, mandando os marinheiros para todas

    as direes. Jeffries tambm viu tudo isso e ambos

    paramos de bombear e enfiamos nossos braos nas

    rodas das bombas para evitar sermos varridos para o

    mar.

    Quando o convs secou, fui repentinamente

    unido roda da bomba pelo passageiro que tinha

    visto na amurada, no dia anterior. O jovem segurou

    firme a roda e me deu uma ajuda no bombeamento.

    Sou Hudson Taylor, gritou ele.

    Seu cabelo estava colado em sua testa pela

    chuva que caa.

    Neil Thompson! gritei, acima do

    barulho do vendaval.

    Nesse momento, o navio elevou-se sobre uma

    vaga quase to grande quanto a onda que tinha

    anteriormente cado sobre ns e eu pude ver uma

    luz, no muito longe do portal da popa. Ela brilhou

    claramente contra o horizonte cinza escuro, onde cu

    e mar se encontravam.

  • Olhem! Uma luz! Uma luz! gritei.

    Era uma viso maravilhosa para mim; pensei

    que ela significava amizade, ajuda, talvez mesmo

    calor e abrigo da tempestade. Mas, ao olhar para a

    luz, o rosto de Jeffries crispou-se de horror.

    Terra! foi o clamor que ecoou acima do

    barulho do vento e que foi repetido em todos os

    lados do convs. Vi o capito examinar a luz com

    seu binculo e ento, trovejar:

    Levante alguma vela, senhor Henson! o

    Cabo de Holyhead, vamos certamente bater em seus

    rochedos e afundar!

    O feixe de luz de Holyhead, que tinha sido

    uma viso reconfortante para mim, tinha se tornado

    em uma temvel luz.

    Se algum de vocs dois, marinheiros de

    primeira viagem, sabe orar, hora de comear!

    gritou Jeffries para o senhor Taylor e para mim, com

    os olhos arregalados de pavor.

  • Captulo 3

    Bem alto, sobre o mar

    Para minha surpresa, Hudson Taylor comeou

    imediatamente a orar enquanto girava a roda da

    bomba.

    Oh, Pai! orava ele em voz alta Tem

    misericrdia de teus filhos! V o perigo que estamos

    correndo aqui neste mar. Salva-nos de nos

    despedaarmos naquelas rochas...

    Jeffries tambm estava murmurando,

    freneticamente, coisas como "Senhor" e "Salva-

    nos"!

    No sabendo o que fazer, eu tentava dizer o

    Pai Nosso. No havia ido igreja com freqncia

    embora minha me estivesse sempre me dizendo que

    deveria ir e assim, no conseguia me lembrar da

    orao toda. Mas, quando finalmente disse "Amm",

    Jeffries e Hudson Taylor estavam ainda orando e

    virando a manivela, virando a manivela e orando...

  • Fiquei surpreso ao notar que eles no estavam

    recitando algumas oraes que tivessem decorado,

    pois isso era tudo que eu tinha ouvido o padre dizer

    na igreja.

    Eles estavam falando com Deus como se Ele

    estivesse ali, bem ao lado deles.

    Finalmente, Hudson Taylor parou e inclinou-

    se em direo ao camareiro.

    Acho, realmente, que no temos nada com

    que nos preocupar agora, irmo. gritou ele.

    Havia um sorriso em seu rosto bonito, com

    seu nariz afilado e o indcio de uma crespa barba

    vermelha em seu queixo.

    O que quer dizer com isso? perguntou

    Jeffries ainda com o olhar apavorado.

    Deus me chamou para ser um missionrio

    na China, gritou Taylor sobre o barulho do vento

    e se Ele me colocou aqui neste navio, porque

    vou chegar l. Por isso, estou certo de que estaremos

    a salvo.

    O capito Morris ficaria feliz em ouvir

    isso... respondeu Jeffries e um sorriso se abriu

    em seu rosto ansioso.

    A essa altura, estavam assestadas tantas velas

    quantas o Dumfries poderia suportar em tal

  • vendaval, e o navio mais uma vez bordejava para

    frente e para trs, tentando fazer algum progresso

    dentro do vento, fazendo movimentos em

    ziguezague. Aps cerca de dez minutos de bordejo a

    estibordo, Henson deu ordens para que o navio

    virasse de bordo e ficamos mais dez minutos

    executando bordejos a bombordo. Os marinheiros

    quase no tinham tempo de recuperar a respirao

    aps manterem as velas em condio de

    navegabilidade, antes de ter que faz-lo de novo.

    Mas, quando olhei para trs em direo luz, notei

    que no havamos feito nenhum progresso. De fato,

    agora podia ver que a luz estava vindo de um farol

    situado num ponto escarpado do litoral.

    Durante toda a tarde, a batalha contra a

    tempestade continuou. Por vezes, a luz de Holyhead

    parecia empanada e mais distante; mas, quando se

    tornava a olhar, alguns minutos mais tarde,

    compreendia-se que parecera empanada por causa da

    bruma ou porque rajadas de chuva haviam

    obscurecido o farol.

    Ns trs trabalhvamos nas bombas tanto

    quanto podamos, respirando com dificuldade,

    quando estvamos exaustos demais para continuar.

    Em uma das vezes em que estvamos tendo um

  • pequeno descanso, o capito Morris se aproximou.

    Pensei que ele fosse nos chamar a ateno por no

    estarmos bombeando, mas, ao invs disso, ele disse:

    Senhor Taylor! Agradeo por estar nos

    dando uma mozinha! Realmente precisamos de

    toda a ajuda possvel em uma tempestade como esta.

    Fico feliz em poder ajudar! disse o

    passageiro do navio Mas, no estou muito

    preocupado!

    Ento, contou ao capito a respeito de Deus

    querer que ele fosse para a China.

    Isso realmente confortador, disse o

    capito, mas no se esquea do que aconteceu

    quando o apstolo Paulo navegava para Roma...

    O que quer dizer com isso?

    Se bem me recordo o que a Bblia diz,

    muito embora todos no navio tivessem sobrevivido,

    o navio naufragou na ilha de Malta... E eu desejo,

    muito sinceramente, que o meu navio se salve...

    O capito bateu com as pontas dos dedos em

    seu pequeno quepe.

    Mesmo assim, obrigado pelas oraes e

    pela ajuda com as bombas.

    A tempestade vociferava, mas quando a

    noitinha se aproximava, o sol brilhou

  • momentaneamente no cu ocidental. Seu brilho

    pareceu dar a todos um lampejo de esperana, mas

    tambm mostrou-nos a fria do temporal.

    De repente, cu, mar e nuvens transformaram-

    se em formas tenebrosas de cor cinza e negra, e um

    perfeito preto e branco com nuances de dourado

    volta dos cantos das nuvens.

    Fora das nuvens ocidentais, brilhantes raios de

    sol dardejavam sobre o mar, tornando o topo das

    grandes ondas em cristal verde.

    Olhei de novo em direo ao farol e vi, pela

    primeira vez, quo traioeira era a costa. No havia

    praias, somente enormes rochedos negros sobre os

    quais as ondas, em incessante fria, batiam

    continuamente, despejando borrifadas de gua e

    espuma at a base do farol.

    Por um momento, o sol mostrou-nos o farol,

    como um solitrio pilar branco contra as nuvens cor

    de ardsia negra. L no topo, brilhava a luz de aviso

    do mesmo. No havia perguntas em minha mente.

    Sabia que se estivssemos nos dirigindo contra

    aquelas escarpadas rochas, o navio se partiria e, a

    despeito de tudo que o senhor Taylor tivesse dito, eu

    no podia imaginar que nenhum de ns sobrevivesse

    ao naufrgio.

  • A cada bordejo que o navio dava, para diante

    e para trs, perdamos mais terreno, levados pelo

    vento e pelas ondas, cada vez mais para perto da

    tenebrosa costa. O sol estava no ocaso e, de repente,

    o cu tornou-se dourado, depois laranja e, final-

    mente, vermelho.

    Jeffries olhava com uma expresso de alvio

    no rosto.

    "Cu vermelho noite, deleite para o

    marinheiro; cu vermelho de manh, aviso para o

    marujo." murmurou ele, recitando um velho

    provrbio dos homens do mar. Se pudermos

    esperar, esta tempestade passar por si mesma. Deus

    sabe que ela j durou tempo suficiente para trs

    tempestades.

    O mar furioso parecia o prprio inferno, em

    vermelho e negro, refletindo as lgubres cores do

    cu. Estvamos em nosso bordejo a bombordo e

    cada vez nos aproximvamos mais de Holyhead,

    quando o primeiro oficial finalmente deu a ordem:

    Virar de bordo!

    No, senhor Henson! gritou o capito

    Morris l do convs da popa. Mantenha o rumo

    onde est!

  • Capito, protestou o primeiro oficial

    se chegarmos mais perto poderemos ser apanhados

    pelas correntes e empurrados diretamente sobre os

    rochedos, quando tentarmos virar de bordo!

    Eu sei disso, Henson. Mantenham o rumo,

    rapazes! Mantenham o rumo!

    Mas, capito...

    Senhor Henson! No questione minhas

    ordens! Carregue o navio ou v l para baixo!

    O capito voltou-se para o timoneiro:

    Dois graus para bombordo, marujo!

    Imediatamente, o navio respondeu e pegou um

    pouco mais de vento, mas, virar para bombordo

    significava que estvamos indo direto para os

    rochedos. Jeffries, Taylor e eu paramos de virar a

    manivela e nos mantivemos no mesmo lugar, orando

    por nossas preciosas vidas.

    Ele vai tentar passar! disse o camareiro

    cerrando os dentes. No vejo como vamos

    conseguir isso!

    Ento, pude tambm compreender o que o

    capito estava fazendo. Ao invs de virar de bordo e

    virando alm do ponto de um novo bordejo, tentaria

    achar caminho para passar um pouco mais distante

  • da costa, o que no havia acontecido durante todo o

    dia ele ia tentar passar rente ao promontrio.

    O Cabo se aproximava mais e mais. Mesmo

    acima do barulho do vento, podamos ouvir as ondas

    quebrando sobre as rochas e ver os borrifos que

    subiam bem alto no ar e caam na costa.

    Mantenham o curso agora! a nossa nica

    chance, rapazes encorajava o capito. Mais

    um ponto para bombordo, timoneiro!

    Oh, no! pensei. No podemos chegar

    mais perto! No estvamos distantes dos rochedos

    mais que o comprimento de dois navios e estvamos

    sendo empurrados por ondas violentas! Ento, vi que

    poderamos ter uma chance. O navio se aproximou

    do farol e, vagarosamente, muito vagarosamente,

    passou por ele. Passou tambm pelos rochedos mais

    afastados e se distanciou deles.

    De repente, um grande brado de alegria

    elevou-se da tripulao.

    Conseguimos ! Conseguimos !

    Efetivamente, a popa do navio havia

    ultrapassado o Cabo de Holyhead.

    No muito alm desse ponto, o vento e as

    correntes mudaram de algum modo; o capito

    Morris mandou que o timoneiro virasse o navio

  • alguns pontos para estibordo onde, pela primeira vez

    desde que a tempestade irrompera, comeamos a

    fazer progressos para longe da costa em direo ao

    sudoeste.

    Quero v-lo em meu camarote, senhor

    Henson, por favor! resmungou o capito,

    passando o controle do navio para o segundo oficial.

    Carrancudo, o primeiro oficial o seguiu em

    direo ao convs inferior.

    Eu me perguntava por que ele parecia to

    infeliz. Estvamos salvos da tempestade inclusive

    o senhor Henson. Isso no deveria faz-lo feliz?

    Naturalmente que o capito Morris havia

    demonstrado que sua habilidade nutica e sua

    coragem eram superiores s do primeiro oficial.

    Suponho que por isso que o capito o capito!

    pensei.

    duro para um homem orgulhoso, como

    o primeiro oficial, ser humilhado diante de toda a

    tripulao! murmurou Hudson Taylor ao meu

    ouvido. Era como se ele tivesse lido meus

    pensamentos.

  • Nas semanas que se seguiram, aprendi quo

    "normal" era a vida a bordo de um navio. Tnhamos

    bons ventos e tempo agradvel com ocasionais

    rajadas de chuva, mas nada como a tempestade

    qual havamos sobrevivido no Canal da Irlanda.

    Como grumete, minhas obrigaes eram

    ajudar o camareiro, do qual eu gostava, e o

    cozinheiro, que era um velho azedo. Foi-me dado

    "alojamento" (um beliche estreito de madeira) no

    camarote do camareiro que ficava abaixo do convs

    da popa, onde se situavam os camarotes dos oficiais,

    do capito e de alguns passageiros. Eu limpava o

    banheiro dos oficiais, fazia as camas do capito e

    dos passageiros todos os dias, e ajudava Jeffries a

    lavar os pratos depois que os oficiais e o senhor

    Taylor comiam no salo de refeies. Este, alis, era

    o nico passageiro a bordo do navio e no era o tipo

    de pessoa exigente, assim, no precisava passar

    muito tempo servindo-o.

    Na cozinha, davam-me os trabalhos mais

    enfadonhos, como descascar batatas e lavar panelas

    e mais panelas. Parecia sempre haver alguma panela

    para ser esfregada.

  • Mesmo quando as tarefas regulares estavam

    feitas, havia lampies de lato ou botas do capito

    que precisavam de polimento.

    Mos ociosas so ferramentas do diabo"

    dizia-me Jeffries uma dzia de vezes. No mar,

    bom que todos tenham sempre o que fazer.

    Podia ver que ele no estava me criticando. Os

    oficiais procuravam manter todos os marinheiros

    ocupados. Se os ventos estavam bons e os marujos

    no precisavam estar constantemente ajustando as

    velas, eles eram mandados a executar outras tarefas,

    como esfregar o convs ou trepar pelo cordoame

    para passar alcatro e consertar as cordas. Qualquer

    mo que fosse encontrada ociosa, era rapidamente

    "encorajada" a voltar ao trabalho por cascudos ou

    xingamentos do primeiro ou do segundo oficial.

    Era como se os sinos estivessem sempre

    soando. Rapidamente, aprendi que as vinte e quatro

    horas do dia, no mar, eram divididas em seis

    segmentos de quatro horas cada. Durante o

    segmento, um sino tocava a cada meia hora uma

    vez na primeira meia hora, duas vezes na segunda e

    assim por diante, at que o trmino daquele

    segmento fosse anunciado por oito badaladas. O

    segmento das quatro horas da tarde at s oito da

  • noite era dividido ao meio (o primeiro e o segundo

    vigias) para permitir que todos pudessem cear.

    Da mesma maneira, a tripulao estava

    dividida em dois grupos. Um grupo chamado de

    "vigia de bombordo" servia sob as ordens do

    primeiro oficial. O segundo grupo servia sob as

    ordens do segundo oficial e era chamado de "vigia

    de estibordo". Quando o tempo estava bom, os

    "vigias" tiravam turnos dirigindo o navio quatro

    horas de servio e quatro horas fora de servio, com

    exceo dos turnos da tarde e da noite quando cada

    um dos "vigias" tirava turnos de seis horas corridas.

    Quando o tempo estava ruim, soava o

    chamado: Todas as mos ao convs!" E todos

    ajudavam at que passasse a tempestade ou at que

    as velas estivessem suficientemente "rizadas" (partes

    amarradas e partes soltas) para superar o mau tempo.

    Vendo os marujos l no alto, acima do convs,

    agarrados ao cordoame quando tentavam "rizar" uma

    vela sob vento forte, eu ficava nervoso, na

    expectativa de que algum deles escorregasse e casse

    c em baixo, morrendo da queda.

    Ento, um belo dia o capito Morris me disse:

    Thompson, que tal subir na guindola (um

    tipo de cadeirinha) e passar alcatro em algumas

  • cordas hoje? Qualquer marinheiro de primeira

    viagem pode esfregar panelas ou polir lato. Seu av

    certamente me far passar por debaixo da quilha do

    navio, como punio, caso eu passe todo o caminho

    para a China sem ensinar a voc nenhuma habilidade

    nutica. Jeffries, coloque-o l em cima!

    Minha boca estava seca. A tal "guindola" me

    parecia como o balano que eu tinha em um galho

    de rvore na minha infncia, exceto por sua corda ir

    l para o alto, dentro do cordoame do navio, por

    meio de uma polia, perto dos mastros. Olhei para

    cima, para os mastros que pareciam torres. Embora o

    tempo estivesse lindo e uma brisa leve brincasse

    com o mar, os mastros balanavam-se para frente e

    para trs. Estava to apavorado que prestei muito

    pouca ateno quando Jeffries trouxe uma velha

    camisa de lona que cheirava a alcatro. Ento, deu-

    me um pequeno pote de alcatro com uma escova

    dentro.

    Quando chegar l em cima, amarre este

    cinto de segurana volta do cordoame em que

    estiver trabalhando, disse o camareiro, atando

    uma corda seguramente ao cinto de minhas calas.

    Isto impedir que voc balance demais e

    permitir que use ambas as mos para trabalhar. E

  • mais, quando estiver passando alcatro, no deixe

    cair nem uma gota no convs c embaixo, seno

    ficar a noite toda limpando-o.

    Antes que eu soubesse o que estava

    acontecendo, ele comeou a iar-me l para o alto,

    acima do convs, na tal "guindola".

    No olhe para baixo! gritou Jeffries.

    Eu orava por minha preciosa vida enquanto os

    marinheiros me colocavam cada vez mais e mais

    alto. Quando j estava perto do topo dos mastros,

    Jeffries comeou a dar-me instrues.

    Comece com aquela corda do patarraz,

    bem perto da sua mo direita...

    No, essa a no! Essa j foi feita... Aquela

    outra...

    Eu me agarrava s cordas da minha

    "guindola" com ambas as mos e no tinha a menor

    inteno de larg-la para agarrar o pedao do

    cordoame do qual ele estava falando. Mas, minhas

    mos comearam a doer e eu estava dando voltas

    vagarosamente, com o vento. Precisava fazer parar

    aquele movimento giratrio. Finalmente, estiquei um

    p e quase consegui apanhar a corda que pretendia

    alcatroar. Quando passei novamente girando por

    perto, usei ambos os ps e enfim, consegui.

  • Empurrei-me para o cordoame e me agarrei l

    com as pernas enroscadas na corda.

    Isso mesmo! Isso mesmo! encorajava-

    me Jeffries. Sua voz parecia vir de quilmetros

    abaixo de mim e o vento parecia muito mais forte l

    em cima.

    Agora, amarre o cinto de segurana e

    poder trabalhar! Se ele pensava que eu ia largar a

    "guindola" para amarrar o

    tal cinto, estava maluco! Mas, aps ficar

    balanando no ar durante uns dez minutos,

    compreendi que a nica maneira de descer seria

    executando meu trabalho. Tinha que fazer alguma

    coisa! Mas, dois sinos tocaram antes que eu

    conseguisse amarrar meu cinto de segurana.

    Finalmente, senti-me seguro o bastante para ir

    esticando uma das mos e agarrar a escovinha no

    pote de alcatro que estava junto da "guindola".

    Pincelei um pouco de alcatro na vela situada

    logo acima da minha mo e ento, um pouco mais,

    esfregando o alcatro em todos os lados da corda a

    fim de proteg-la da chuva e do tempo. Logo j tinha

    terminado dois ps daquele setor to longe

    quanto pude alcanar naquela posio.

  • Pronto para mudar de lugar? gritou

    Jeffries antes que eu tivesse a chance de descansar.

    Sim!

    Ele abaixou-me at que eu dissesse "Pare"!

    Quando soaram trs badaladas, j estava

    pronto para mudar de lugar novamente. Ento,

    cometi o erro de olhar para baixo. Do convs, tinha

    me parecido que o navio estava navegando quase

    nivelado, mas, l em cima do cordoame, achei que

    ele estava quase de cabea para baixo, e assim vi que

    eu estava realmente sobre o mar.

    Apertei com tal fora a escova no pote, que

    um pouco do alcatro espirrou quando o esfregava

    no "patarraz".

    Ei, o que...? gritou algum l de baixo,

    enquanto podia ouvi-lo praguejando e gritando mais.

    Est trabalhando em algum chiqueiro? Ser

    que vou ter que procurar algum poleiro de galinhas

    a, sobre a minha cabea?

    Olhei novamente para baixo. De alguma

    forma, o vento tinha soprado uma bolota de alcatro

    sobre o convs e ela tinha "aterrisado" bem em cima

    da careca de um fabricante de velas.

  • Furioso, o homem puxou sua faca e

    aproximou-se da corda que fazia subir e descer a

    "guindola", onde eu estava.

    Vou cortar a corda aqui embaixo e

    alimentar os tubares com sua carne! gritou ele.

    Eu estava tremendamente assustado, mas no

    pensei que ele realmente faria isso, at que vi o

    senhor Taylor atravessar o convs correndo.

    Ele agarrou o brao do marinheiro e se

    colocou entre a corda e a faca do homem. Ento,

    disse-lhe algo que no consegui entender.

    Est certo, est certo! disse o fabricante

    de velas Mas, se acontecer isso de novo, ele vai

    para dentro do mar! Voc me entendeu?

    O homem afastou-se, praguejando enquanto

    se ia.

    Bem que eu disse para tomar cuidado com

    o alcatro! falou Jeffries num sorriso.

    Quando, finalmente, o camareiro me baixou

    de volta ao convs, o senhor Taylor encaminhou-se

    para mim, dando-me um tapinha nas costas.

    Rapaz corajoso! disse ele com seus

    olhos azuis brilhando.

  • Eu queria agradecer-lhe por ter vindo em meu

    socorro, mas minha lngua parecia pregada em

    minha garganta. No me sentia nada corajoso...

    Nos dias que se seguiram, o capito mandou-

    me vrias vezes subir na "guindola" at que,

    finalmente, perdi o medo de ficar balanando entre o

    cu e o mar. Comecei at mesmo a gostar de ficar

    balanando para trs e para frente no cordoame.

    O navio virou para o leste, afastando-se da

    costa da Amrica do Sul e encaminhou-se para o

    Cabo da Boa Esperana, contornando a parte inferior

    da frica. L de cima do cordoame, eu podia ver

    distncia de muitas milhas, enquanto navegvamos

    dia aps dia, e, assim, fui o primeiro a avistar dois

    outros navios no horizonte. Mas, a vista que eu mais

    apreciava eram os golfinhos nadando por perto,

    diante do nosso navio. Eles nos faziam companhia

    por milhas e milhas e, ento, desapareciam por

    algumas horas ou por dias seguidos at que, repenti-

    namente, apareciam de novo.

    Alguns dos marinheiros diziam que eles eram

    outro tipo de golfinhos, mas eu tinha plena certeza

    de que reconhecia alguns deles. Era reconfortante

    pensar que alguns golfinhos retornavam novamente

    para guiar-nos.

  • Captulo 4

    Ao mar!

    Quando contornamos o Cabo da Boa

    Esperana, na parte inferior da frica, tivemos bom

    tempo enquanto navegvamos pelo sul do Oceano

    ndico. Navegamos at cerca de cento e vinte milhas

    da Austrlia, mas, em fevereiro, assim que passamos

    as ilhas da Indonsia, ocorreram dias em que

    ficamos parados pela calmaria. As velas pendiam

    flcidas ou se agitavam inutilmente, de tempos em

    tempos, e ns amos deriva, por um quente e vtreo

    mar.

    Afortunadamente, uma brisa noturna soprava

    com freqncia e assim nos permitia um modesto

    avano, porm, uma corrente a sudoeste flua atravs

    das ilhas e nos trazia de volta durante muitos dos

    dias sem vento.

    Foi durante esse tempo, quando havia horas

    livres no convs (no se pode esfregar o convs dia

  • aps dia), que vim a conhecer melhor o passageiro

    do navio.

    Hudson Taylor tinha pedido permisso para

    fazer um culto aos domingos, no convs. O capito

    Morris, Jeffries, o camareiro africano, e o carpinteiro

    do navio, apoiavam entusiasticamente o servio

    religioso e dele tomavam parte, sempre que o tempo

    permitia.

    Tambm assistia aos cultos porque gostava de

    Hudson Taylor, de Jeffries e do capito. Porm, bem

    poucos marinheiros participavam. Se acontecesse de

    estarem no convs, alguns paravam e ouviam sem

    fazer cara de tdio. Mas, se estivessem dormindo,

    jogando damas ou qualquer coisa desse tipo, eles

    no se mexiam para ao menos "ir igreja", mesmo

    quando Jeffries ou Taylor os convidava.

    Aquilo me surpreendia. Aprendi que a

    Inglaterra era um pas cristo, assim, pensava que a

    maioria dos marinheiros fosse crist. Mas, vivendo

    junto deles naquele navio, to intimamente, comecei

    a ver a diferena entre as pessoas. Alguns homens,

    naturalmente, zombavam de qualquer crena em

    Deus. Eu esperava por aquilo e assim no me

    surpreendia. Mas, a maioria simplesmente no se

    importava... Muito embora tivessem nascido em

  • lares cristos e sido batizados, alguns haviam se

    casado na igreja e, provavelmente, teriam seu

    funeral nela... Eles se diziam "cristos", porm na

    sua grande maioria no tinham nenhum desejo real

    de "tomar a sua cruz e seguir Jesus" como bem

    disse o senhor Taylor.

    Isso fez com que eu comeasse a pensar. Se

    fosse falar a verdade, eu tambm era essa espcie de

    "cristo". Sentindo-me um tanto culpado, assisti

    fervorosamente a todos os cultos que o senhor

    Taylor fez no convs.

    Um dia, Hudson Taylor pregava sobre o

    terceiro mandamento. "No tomareis o nome do

    Senhor Deus em vo". Jamais havia pensado sobre o

    que significava usar o nome de Deus em vo. Os

    marinheiros do Dumfries costumavam falar uma

    penca de coisas sujas e eu bem sabia que era errado

    falar qualquer dos palavres que eles diziam. Mas,

    Taylor explicou que dizer "Oh, Deus" ou chamar

    "Jesus Cristo", pedindo ajuda, poderiam ser oraes

    curtinhas, se estivssemos mesmo falando

    seriamente com Deus. Mas, se no estivssemos

    falando realmente com Deus, ento isso era usar o

    seu nome em vo.

  • Quando eu pensava sobre isso, podia ver que,

    sempre que a maioria dos marinheiros diziam

    aquelas palavras, eles no estavam falando com

    Deus; s usavam o seu nome para expressar

    surpresa, desgosto ou ansiedade. Pela primeira vez,

    compreendi o mandamento e decidi ser mais

    cuidadoso com a maneira de falar. No tinha certeza

    de que isso significava ser um cristo como Hudson

    Taylor ou o capito Morris, mas no havia nenhuma

    razo para ser rude com Deus. E, a final de contas,

    quem sabe se algum dia eu poderia realmente pre-

    cisar dEle?

    Certa manh de domingo, ainda quente, as

    correntes ocenicas haviam nos levado,

    perigosamente, para perto do litoral norte da Nova

    Guin. Durante o culto do senhor Taylor, notei que o

    capito parecia preocupado e, freqentemente,

    deixava nosso pequeno crculo para olhar para o

    lado do navio.

    Taylor tambm notou e, aps a orao de

    encerramento, disse:

    Qual o problema, capito? O senhor

    parece preocupado...

    E estou, senhor Taylor. A corrente muito

    rpida por aqui e, no muito distante, h uma linha

  • de recifes. Sem uma brisa, logo estaremos sobre

    eles, e a ponta de um recife de coral pode fazer um

    buraco no casco do navio, da mesma maneira que os

    rochedos de Holyhead.

    O capito voltou-se e gritou para um dos

    homens que subisse ao cordoame com um culo de

    alcance e observasse os recifes. Passou-se uma hora

    sem vento e, de repente, o homem gritou:

    L esto eles! A cerca de quatrocentos

    metros a r! Todos correram at a amurada para dar

    uma olhada, mas, no pudemos ver nada. Passados

    uns dez minutos, o capito Morris perguntou ao

    vigia do cesto da gvea se estvamos nos

    aproximando dos recifes.

    No h dvida quanto a isso, senhor.

    Vocs j podem v-los a olho nu agora.

    Olhei para onde ele apontava e pensei poder

    ver uma clara risca verde na gua, onde as ondas

    estavam mais planas.

    Senhor Henson disse o capito ao

    primeiro oficial lance ao mar um escaler e ponha

    nele todas as mos que possam empunhar um remo!

    Pode ser que consigamos rebocar o Dumfries e

    coloc-lo a salvo!

  • O escaler, com dois homens em cada remo,

    esforou-se para rebocar-nos durante uma hora.

    Talvez tenham impedido a nossa aproximao dos

    recifes, mas ainda podamos ver que estvamos

    perdendo terreno. A linha de recifes na gua estava

    agora muito visvel e no distava mais do que uns

    cem metros da embarcao.

    De repente, movendo-se ao longo da verde

    linha de recifes, vi uma sombra cinza. Pisquei,

    pensando que o brilho do sol estava perturbando

    meus olhos. Porm, nesse momento, um dos homens

    gritou:

    Tubares! Tubares!

    A perspectiva de um naufrgio num recife em

    guas calmas no parecia ter aborrecido muito a

    tripulao, mas a presena dos tubares modificou

    tudo.

    O pnico parecia espalhar-se por todo o navio.

    Alguns homens comearam a desamarrar os botes

    salva-vidas.

    At que eu d a ordem de abandonar o

    navio, esses botes ficam onde esto! rugiu o

    capito. Toquem neles novamente e mando-os

    para o convs inferior!

  • Olhei fixamente as formas cinzentas. Os

    tubares mediam cerca de cinco a seis metros de

    comprimento. Ocasionalmente, uma barbatana

    triangular quebrava a superfcie da gua, fazendo

    correr um calafrio em minha espinha.

    O capito Morris chamou de volta o escaler e

    voltou-se para Hudson Taylor.

    Precisaremos do escaler e de todos os botes

    salva-vidas se qualquer um de ns quiser sobreviver

    a isto. Fizemos tudo que podia ser feito. Agora, s

    nos resta esperar. Espero que, de algum modo, o

    senhor ainda possa chegar China...

    Ainda no tentamos tudo, disse o

    senhor Taylor.

    No?... o capito levantou as

    sobrancelhas E o que foi que deixamos de

    tentar?...

    H pelo menos quatro de ns, a bordo, que

    so cristos! disse Taylor calmamente. Que

    cada um de ns v para o seu camarote e concorde

    em orar, pedindo a Deus que nos mande uma brisa.

    Ele tanto pode nos mandar a brisa agora, como ao

    pr-do-sol.

    O capito esfregou o queixo.

  • Concordo! disse ele e saiu procura do

    camareiro e do carpinteiro.

    No gostei de ser deixado de fora, mas seus

    atos deixaram claro para mim o que eu j comeara

    a compreender: Eu no tinha decidido no ser um

    cristo, contudo, realmente nunca tinha decidido

    seguir a Cristo.

    O primeiro oficial franziu as sobrancelhas

    quando viu o capito e os outros desaparecerem no

    convs inferior. Ento, voltou a olhar para os

    tubares na gua. Contei trs deles patrulhando os

    recifes de coral, nadando de um lado para o outro,

    como se estivessem sabendo que estvamos indo

    para l e esperassem fazer de ns sua prxima

    refeio. Para frente e para trs... Para frente e para

    trs...

    De repente a voz de Hudson Taylor soou atrs

    de ns.

    Senhor Henson, acho que melhor abaixar

    os cantos das velas principais para que possamos

    pegar o vento.

    E por que devo fazer isso? bufou o

    primeiro oficial.

  • Porque estivemos orando, homem, e estou

    certo de que Deus mandar uma brisa

    imediatamente. Mas devemos estar preparados!

    Henson olhou ceticamente para as velas.

    Tambm olhei e pensei ter visto as velas do mastro

    principal que so chamadas de "reais"

    comearem a tremer.

    Est vendo? O vento est chegando!

    disse Taylor. Olhe as "reais"!

    "Patinhas de gato", somente bufou o

    oficial, referindo-se aos pequenos sopros de vento

    que brincavam com as velas como se fossem

    "patinhas de gato" no mais calmo dos dias.

    "Patinhas de gato" ou no, abaixe as velas,

    homem, ou bateremos nos recifes!

    Com um olhar surpreso para o rosto de

    Taylor, o oficial deu a ordem. To logo as velas

    drapejaram, encheram-se de vento. Com um bem-

    vindo rangido dos costados, o Dumfries, vagaro-

    samente, comeou a mover-se para frente, e no

    mais deriva.

    Obrigado, meu Deus! gritou o capito

    Morris, vindo de seu camarote de volta ao convs.

  • Para assombro de todos, a brisa se manteve

    at que passssemos pelas Ilhas Palau e ficssemos

    bem distantes de qualquer outro perigoso recife.

    Numa quarta-feira, 1 de maro de 1854,

    finalmente lanamos ncora no porto de Xangai,

    China, e eu estava ansioso para desembarcar.

    Estivramos no mar por cinco meses e meio.

    O jovem senhor Taylor apareceu no convs

    com suas vrias malas e caixas, olhando

    ansiosamente para todos os lados do agitado porto e

    do ainda mais fervilhante litoral. Fez questo de

    apertar a mo de toda a tripulao e de agradecer-

    lhes pela viagem. Eu sabia que alguns deles

    pensavam que ele era um tanto maluco, mas a

    maioria tinha aprendido a respeitar o inexperiente

    missionrio.

    Quando Taylor aproximou-se de mim,

    brinquei com ele, dizendo:

    No diga adeus! Nos veremos em Xangai!

    Mas no contava que o capito fosse um

    desmancha-prazeres.

  • Sinto muito, Thompson, interrompeu-

    nos Xangai uma cidade terrvel e cruel; no

    lugar para um menino andar solta. Voc ter que

    ficar a bordo do navio. H um monto de trabalho

    para voc fazer aqui.

    Ele voltou-se para ajudar Hudson Taylor a

    descer a escada de corda para o escaler que o levaria

    costa.

    A raiva fervilhou dentro de mim. Eu tinha

    sido raptado e levado ao mar por vinte e trs

    semanas e sonhava em sentir terra firme sob os ps.

    Sabia que ningum podia inquirir o capito, mas no

    pude me conter. Assim que o escaler afastou-se do

    Dumfries, puxei a manga do senhor Morris.

    Fui raptado e trazido para bordo deste

    navio contra a minha vontade! protestei. O

    mnimo que o senhor poderia fazer era dar-me a

    liberdade, agora que estamos em um porto!

    Os olhos do capito Morris se estreitaram e

    seu rosto tornou-se severo.

    Eu disse, permanea a bordo, e isso tudo!

    Ele voltou-se e se foi, andando altivamente.

    No podia acreditar! No ir a terra firme?

    Mais uma vez senti-me como se fosse um

    prisioneiro.

  • Ficar ancorado no porto de Xangai o qual

    nada mais era do que uma larga curva do sujo rio

    Whangpoo foi muito pior do que estar no mar.

    A monotonia de permanecer a bordo, algumas

    vezes quase sozinho, exceto por dois ou trs

    marinheiros que ficavam de vigia, tornou-me mais

    nostlgico do que nunca.

    Jeffries e o cozinheiro no me davam muito

    trabalho para fazer e, assim, tinha tempo de sobra

    para olhar para aquele extico mundo, ali quase ao

    meu alcance. Dzias de outros navios l estavam

    ancorados, at mesmo alguns navios de guerra in-

    gleses, e, entre ns, navegavam os sempre presentes

    "juncos chineses, tentando nos vender arroz quente,

    vegetais, frutas estranhas e peas de pano para os

    marinheiros estrangeiros. Eu olhava atentamente as

    barcaas acostadas aos grandes navios, que os

    carregavam de ch e outras mercadorias que

    deveriam ser vendidas na Inglaterra ou na Amrica.

    Interminveis dias se passaram, mas nenhuma

    barcaa acostou no Dumfries.

    Onde est nosso carregamento de ch?

    perguntei a Jeffries uma certa noite quando retornou

    ao navio.

  • No conseguiremos nenhum carregamento

    de ch! resmungou ele.

    Mas, por que no?

    H uma guerra comeando em Xangai!

    Uma guerra? Com quem? No vejo

    nenhum navio de guerra ingls fazer nada ...

    Jeffries olhou para mim com ar desgostoso.

    No essa espcie de guerra... uma coisa

    de chineses... Um grupo de rebeldes chamados "Os

    Turbantes Vermelhos" est tentando dominar a parte

    chinesa da cidade. No esto incomodando os

    estabelecimentos ingleses, caso contrrio, voc ento

    veria aqueles homens de guerra dos navios ingleses

    carem sobre eles.

    Mas o que que isso tem a ver com o

    nosso ch?

    Suponho que a luta tenha alterado as rotas

    comerciais chinesas, e assim os plantadores no

    podem embarcar todo o ch necessrio pelo rio.

    Com menos ch, os preos sofrem alta para o que

    est em disponibilidade, e agora mesmo os preos

    esto to altos que a companhia no ter nenhum

    lucro. Sendo assim, teremos de esperar. Pode ser que

    as coisas fiquem melhores em alguns dias.

  • Senti como se algum tivesse me dado uma

    paulada na cabea. Isso no estava acontecendo!...

    queria ir para casa e aqui estava eu, pregado na

    China e, ainda mais, sem permisso de deixar o

    navio...

    Passaram-se mais alguns dias e nada de ch.

    Ento, numa bela manh, Jeffries contou-me que no

    dia seguinte teramos carga a bordo s que no

    seria ch.

    Aiken & Companhia, os proprietrios do

    navio Dumfries, tm escritrios aqui em Xangai,

    disse-me ele. O agente conseguiu para ns um

    carregamento de seda e outras mercadorias que

    devero ser levadas para So Francisco. Acho que

    aqueles californianos enriqueceram tanto com o seu

    ouro que agora querem se vestir na moda riu

    sarcasticamente.

    Pode ser que quando retornarmos a

    Shangai, daqui a seis meses ou mais, o preo do ch

    j esteja baixo e, assim, a Aiken poder ter lucro

    com ele. Quem sabe? assim, o negcio da

    navegao...

    Quase desmaiei, suando frio! Trs meses para

    ir at a Amrica e mais seis meses para voltar

    China. Ento, se tudo corresse bem, outros cinco ou

  • seis meses para ir de volta Inglaterra. E at poderia

    levar mais tempo! Eu no podia esperar tanto!

    Seriam quase dois anos! J estaria com quatorze

    anos quando conseguisse chegar em casa! Minha

    vida me havia sido roubada porque um primeiro

    oficial impaciente no fora capaz de encontrar o seu

    grumete a tempo de o embarcar!

    Quando pensava nisso, ficava com raiva at

    mesmo do capito. Ele bem que poderia ter-me

    enviado de volta para Liverpool quando constatara

    que eu fora raptado, parando seu navio o tempo

    suficiente para que eu fosse colocado a bordo do Sea

    Witch.

    Mas, ao pensar no Sea Witch, tive uma idia.

    O porto estava cheio de outros navios. Um deles

    tinha que estar indo diretamente de volta

    Inglaterra. E se eu desertasse do navio e

    comprasse passagem em outro clipper? pensei.

    Porm, no tinha dinheiro para fazer isso. Ento,

    porque no me alistar em outra tripulao?

    Isso poderia funcionar, mas era uma coisa

    muito perigosa! Eu havia escutado um monte de

    histrias terrveis sobre ferozes capites que

    flagelavam sua tripulao em alto mar. Afinal, tinha

  • que admitir que a vida a bordo do Dumfries no fora

    to ruim assim...

    Mas... dois anos? Definitivamente no poderia

    esperar tanto tempo! Assim, decidi arriscar e pular

    do navio na primeira oportunidade.

    A chance veio logo depois das trs badaladas

    do primeiro turno de vigia. O nico homem de

    servio fora at a cozinha para buscar algo para

    comer. Eu estava na amurada a estibordo quando um

    "junco" chins passou to perto de ns que eu po-

    deria, facilmente, ter pulado para bordo. Ao invs

    disso, pendurei-me sobre a amurada e esperei at

    que ele tivesse se afastado e ento, deslizei de

    mansinho, bem quieto, para a gua. Com algumas

    poucas braadas, nadei para detrs do "junco" e

    agarrei-me a uma corda que pendia na gua suja.

    Pendurei-me na corda e fui sendo rebocado

    para longe do Dumfries, em direo cidade de

    Xangai... E tambm em direo a um futuro muito

    incerto.

  • Captulo 5

    S atiraremos em voc! No o torturaremos!

    O "junco" chins que havia me rebocado

    atravs das guas barrentas do porto de Xangai,

    naturalmente, no ancorou na doca da parte europia

    da cidade, mas, no setor chins. Escorreguei da parte

    traseira do pequeno barco com seu leque marrom,

    guisa de vela, e nadei at a margem, cheia de lixo

    derramado, que ficava sob algumas lojas que se

    debruavam no rio, sobre palafitas.

    Quando rastejei para fora da gua, ensopado e

    cheirando mal, devo ter me parecido com algum

    monstro de lama, saindo do pntano. Passei pelas

    lojas que se localizavam na zona porturia e entrei

    numa estreita e ventosa rua, caminhando em direo

    ao norte e esperando poder encontrar a parte

    europia da cidade. A rua estava cheia de gente e,

  • para minha surpresa, nem me notaram, mas eu

    certamente notava tudo e todos. Tudo era to

    diferente...

    Longos rabichos negros escorriam pelas

    costas de todos ali. Todos usavam uma tnica longa

    e solta sobre calas largas. Alguns puxavam

    carrinhos de duas rodas carregados de mercadorias

    diversas, e outros levavam aos ombros uma longa

    vara com cestas de alimentos ou baldes de gua em

    cada ponta.

    Aps alguns momentos, notei algo incomum.

    Naquele empurra-empurra, no havia mulheres na

    rua. Ento, vi uma mulher e uma menina mais ou

    menos da minha idade, trabalhando em uma espcie

    de barraca no mercado. Porm, a primeira coisa que

    notei nelas foram os pequenos e incertos passos que

    davam quando andavam. Parei e pude ver o porqu.

    Ambas tinham ps de criancinhas, pequeninos ps

    calados em sapatilhas pretas. Isso era uma coisa

    muito estranha, realmente a mais estranha que eu

    tinha visto. Provavelmente um defeito de

    nascena pensei.

    As lojas e as construes me pareciam muito

    frgeis. Algumas eram feitas de ripas de bambu

  • tranadas juntas; outras pareciam ser cobertas por

    papel colorido, atravs do qual podia-se ver a luz,

    brilhando l dentro.

    Continuei meu caminho atravs da alvoroada

    multido e passei por prdios que pareciam ser feitos

    de materiais mais firmes. Eram cobertos de telhas

    com os quatro cantos virados para cima. Quando

    olhei mais atentamente, na opaca luz do anoitecer,

    pude ver um drago entalhado na extremidade de

    cada canto virado para cima, nos telhados, o que os

    fazia parecer muito assustadores.

    Nesse momento, vi uma outra mulher

    andando com os mesmos pezinhos, arrastando os

    passos. Seus ps eram tambm muito pequeninos.

    Isso muito estranho! pensei.

    Cheiros exticos e uma encantadora e

    saltitante msica flutuavam atravs do ar

    enfumaado, enquanto as refeies da noite eram

    preparadas em foges de carvo. Notei ento que

    estava faminto, mas precisava encontrar depressa o

    setor europeu da cidade.

    Afastei-me ainda mais do porto, em direo

    ao norte e, de repente, as ruas ficaram desertas. As

    poucas pessoas que via corriam de um edifcio para

  • o outro aps perscrutar a rua, olhando para todos os

    lados, e fitando o cu que escurecia.

    Fiquei nervoso e comecei a andar mais rpido.

    Quando passava por um muro de pedra, dois homens

    muito fortes me agarraram e me puxaram para um

    beco estreito. Empurraram-me de encontro ao muro

    e comearam a gritar comigo em chins. Sacudi a

    cabea e gritei:

    No entendo! No entendo!

    Tentei me livrar e escapar, porm eles me

    espremeram de tal modo contra o muro que me

    tiraram a respirao.

    Vindo de um lugar qualquer, um outro homem

    apareceu. Estava vestido em um uniforme militar,

    com uma vistosa espada pendente de seu lado. Com

    um aceno de suas mos, fez com que os dois

    bandidos se retirassem. Respirei aliviado quando ele

    ficou de p diante de mim, com as mos nos quadris

    e um ar carrancudo e frio em seu rosto.

    Voc espio! disse ele com um gesto de

    seu cavanhaque em minha direo.

    No, no! Sou somente um marinheiro, um

    marinheiro ingls, um grumete!

    Voc espio! disse ele novamente, em

    ingls.

  • No era uma pergunta, era uma afirmao!

    No, parecia mais com um veredicto dado por um

    juiz.

    Voc espio dos Turbantes Vermelhos!

    Com um gesto silencioso, mandou que os dois

    bandidos me agarrassem de novo.

    No, esperem! Eu sou um grumete! O

    grumete do navio Dumfries. Ele est ancorado l no

    porto. Posso mostr-lo a vocs!

    Os homens agarraram-me um por cada brao e

    seguiram o oficial.

    Vocs esto enganados! Como posso ser

    um espio?

    V! Voc confessou! Disse: "Eu ser um

    espio"! Muito bom! S atiraremos em voc! No o

    torturaremos! disse o oficial por sobre o ombro.

    No, no! protestei, lutando para

    libertar-me. Ele tinha entendido mal. Mas, quanto

    mais eu lutava, mais firme os bandidos me

    seguravam e mais rpido andvamos.

    De repente, ouviu-se o som de um assobio no

    ar, seguido por uma tremenda exploso na casa bem

    atrs de ns. O deslocamento de ar atirou-nos ao

    cho. Aturdido, olhei em torno e vi que o homem

    que havia ficado entre mim e a exploso estava

  • seriamente ferido pelos fragmentos de rochas que

    voaram para todos os lados. Seu corpo havia servido

    de escudo para mim, livrando-me de ser ferido.

    Um outro assobio soou sobre nossas cabeas e

    metade da rua, atrs de ns, explodiu. Ento, ouvi o

    rudo das armas de fogo em algum lugar mais

    adiante.

    Na confuso, compreendi que ningum mais

    estava me segurando. De um salto, levantei-me e

    comecei a correr na direo de onde viera. Virei a

    primeira esquina, depois uma outra e me deparei

    com um grupo de soldados que estavam junto a um

    canho postado na rua. Uma tremenda exploso

    irrompeu logo que o canho atirou, bem acima da

    minha cabea. O som do deslocamento de ar deixou

    meus ouvidos tinindo. Cambaleei alguns passos de

    volta e, ento, girei e corri em outra direo.

    Corri, corri, at que sa em uma outra rua,

    onde pessoas andavam livremente.

    Eu ainda podia ouvir as bombas que os

    canhes atiravam e o r-t-t dos rifles soando a

    distncia. Mas, estava completamente perdido.

    Fique calmo, fique calmo... dizia para mim

    mesmo.

  • Calculei que o tiroteio no podia vir do porto

    ou do norte, pois era l o setor europeu. Assim

    sendo, a luta tinha que ser ou no oeste ou no sul.

    Supus que viesse do oeste e assim comecei a

    caminhar na direo em que eu pensava que

    estivesse o norte.

    As ruas no setor chins de Xangai no eram

    em linha reta, assim, quando o tiroteio parava por

    uns breves minutos, era preciso se ter muita cautela.

    Depois de duas ou trs voltas, estava novamente em

    dvida sobre para qual lado ficaria o norte.

    Finalmente, atravessei uma ponte sobre um canal ou

    rio e cheguei a um lugar que era, obviamente, o setor

    europeu.

    Fiquei to surpreso com o que encontrei, tanto

    quanto ficara com a cidade chinesa. Esperava

    encontrar somente alguns rsticos prdios de

    madeira como uma espcie de posto avanado do

    governo. Ao invs disso, encontrei casas feitas de

    tijolos com esplndidos jardins, duas altas igrejas e

    vrios espaosos prdios do governo, com trs ou

    quatro andares.

    Era noite, mas as luzes dos edifcios e os

    lampies das ruas davam um suave calor ruidosa

    comunidade. Havia muito poucas carruagens

  • puxadas por cavalos nas ruas, mas os cidados locais

    deslocavam-se muito rapidamente se no mais

    rapidamente ainda em vistosas cadeirinhas

    carregadas pelos velozes coolies chineses, uma

    espcie de trabalhador braal.

    Marinheiros, muitos deles falando alto e j

    parcialmente bbados, vagavam em pequenos

    grupos, de taverna em taverna.

    Senti-me bem por estar outra vez em um

    ambiente familiar, mas logo me lembrei de que no

    tinha lugar para ficar nem dinheiro para comprar

    comida. Os prdios do governo bem como as filiais

    dos escritrios de vrias companhias de navegao

    estavam todos fechados, assim, no haveria, naquela

    noite, oportunidade de conseguir um lugar em um

    navio que se dirigisse a Londres.

    Estava parado na porta de uma taverna,

    olhando e pensando em algum meio de conseguir

    algo para comer, quando ouvi vozes atrs de mim.

    Ei! L est o nosso grumete, Thompson!

    disse um deles.

    Voltei-me e vi que os marinheiros eram da

    tripulao do Dumfries e, bem no meio deles, estava

    Henson, o primeiro oficial.

  • O que que voc est fazendo aqui?

    perguntou-me Eu pensei que o capito havia dito

    que voc ficasse a bordo do navio!

    No esperei ouvir mais nada. Voltei-me e

    corri.

    Atrs dele, rapazes! Ele desertou do navio!

    Corri trs quarteires com os marinheiros em

    meus calcanhares. Eu bem poderia meter-me entre

    as pessoas e as cadeirinhas, mais rpido que eles,

    mas no sabia quanto mais conseguiria correr. Foi

    ento que virei a esquina e encontrei-me numa rua

    estreita; uma carroa carregada de feno estava se

    deslocando vagarosamente a minha frente. Parei de

    correr quando a idia brilhou em meu crebro. Pulei

    para a traseira da carroa, puxando meu corpo para

    cima. Rapidamente, mergulhei no feno e fiquei l

    quietinho.

    Para onde ele foi? perguntou um dos

    marujos que estava a no mais que um brao de

    distncia de mim. A carroa chiava, um tanto

    vagarosamente, sobre a rua calada de pedras

    arredondadas.

    Voc o viu? perguntou outro.

    No! Mas ele tem que estar aqui por perto!

    era Henson. Ei, vocs a, procurem entre esses

  • edifcios. Ento, vejam se ele foi para aquele bar l

    atrs, na esquina. E voc, disse ele para um outro

    marinheiro corra l para frente e veja se consegue

    v-lo!

    Vagarosamente, a carroa se movimentava,

    levando-me para a segurana. De repente, parou.

    Oh, no! pensei. Agora eles vo me

    pegar, com certeza! Ande, ande! Oh, motorista, por

    favor ande!

    Mas a carroa continuava parada.

    Ele no est aqui dentro, senhor disse

    um dos marinheiros enquanto se reuniam em torno

    da parte de trs da carroa. Logo, outros chegaram

    para dar conta da procura.

    Aqui! Saiam do caminho, rapazes! O

    homem quer colocar algum feno para dentro de seu

    alpendre! Mas, primeiro, reviste aquele alpendre,

    Barclay.

    Ouvi o condutor puxar um forcado, um tipo

    de garfo grande de ferro, da parte dianteira da

    carroa. Em seguida, "zing", o garfo zuniu dentro do

    feno, bem pertinho de mim. Meu corao quase

    parou de bater. Ou seria furado com aquele garfo ou

    ento seria exposto diante da tripulao do Dumfries

    como desertor.

  • J estava quase desistindo do meu esconderijo

    quando Henson falou:

    Quando ns pegarmos aquele garoto eu

    vou enforc-lo no lais de verga! Ningum deserta de

    um navio e vive para contar a faanha!

    O que quer dizer com isso? No somos da

    armada de sua majestade! disse uma outra voz.

    Desertar de um navio no uma ofensa que esteja

    sujeita pena capital. Os tripulantes fazem isso a

    toda hora!

    No quando sou eu o primeiro oficial do

    navio! Venham, vamos embora! Ns ainda o

    pegaremos!

    "Crunch"! O forcado mergulhou

    profundamente no feno, bem perto da minha cabea.

    Dois de seus grandes dentes ficaram um em cada

    lado de minha mo e jogaram um pouco do feno

    para o alto, e ento pude ver as estrelas brilhando no

    cu. Mas ainda estava paralisado de medo.

    Nesse momento, ouvi que os marujos se

    arrastavam de volta, andando pela estreita alia,

    resmungando uns com os outros.

    Enquanto eles estavam olhando para outro

    lado e antes que o condutor voltasse para retirar

  • outra garfada de feno, rastejei e pulei pela lateral da

    carroa.

    Temendo mais a tripulao do Dumfries que

    todo o exrcito imperial chins, decidi retornar

    cidade chinesa, mantendo uma distncia segura de

    qualquer soldado. Mas, no havia ningum

    procurando especificamente por mim l, como

    Henson fizera no setor europeu. De fato, ningum

    parecia querer me aborrecer no setor chins, exceto

    quando me atrevia a ir perto demais da rea de luta.

    Naquela noite, dormi nos degraus frios de um

    templo budista, com um grande dolo colocado bem

    no alto acima de mim. De manh, estava dolorido,

    entrevado e to faminto, que pensei estar perto de

    morrer de fome. Alguns fiis colocaram tigelas de

    arroz e vegetais perto dos ps do Buda. Uma outra

    mulher de andar arrastado estava com eles. Comecei

    a imaginar se todas as mulheres chinesas tinham ps

    de bebezinhos.

    Quando os adoradores se foram, fui investigar

    o tipo de alimento que eles haviam deixado. Talvez

    eu possa comer um pouquinho dele. pensei.

  • Mas sempre havia pessoas por perto, ento

    conclu que os alimentos eram uma oferta ao dolo.

    Tentei mendigar, fazendo vrios gestos com

    as mos para tentar me comunicar, dizendo que

    queria algo para comer. Muitas pessoas se recusaram

    sequer a me prestar ateno, porm, algumas outras

    riam e me encorajavam a fazer mais. Eles

    provavelmente pensavam que eu estava dando um

    espetculo, mas ningum me deu comida.

    tarde, voltei zona porturia, onde pude ver

    o Dumfries ancorado no porto. Uma barcaa estava

    acostada em sua lateral, colocando carga a bordo.

    Logo, logo, o navio estaria zarpando.

    Considerei, pensando comigo mesmo, que talvez

    devesse ir ao consulado ingls, caso quisesse voltar

    ao Dumfries. Certamente as autoridades me

    protegeriam de ser enforcado e eu realmente no

    pensava que o capito Morris permitisse isso, de

    modo algum. Porm, eu de fato no queria perder

    mais seis meses no mar enquanto o Dumfries

    navegasse para So Francisco, na ida e na volta.

    No! decidi Vou esperar at que ele se

    faa ao mar. Ento voltarei ao setor europeu da

    cidade e procurarei um emprego em um navio que

  • esteja se dirigindo diretamente para a Inglaterra.

    Mas, oh... eu estava com tanta fome...

    Ento, quando estava olhando para os navios

    no porto, ouvi uma jovem voz dizer:

    Voc, ingls?

    Voltei-me e vi uma sorridente menina chinesa

    mais ou menos da minha idade. Notei seu sorriso,

    porque a maioria dos chineses no sorriam com

    muita facilidade.

    Sim, eu sou ingls.

    Estava agradecido por encontrar algum

    qualquer pessoa que no estivesse me

    ameaando, perseguindo ou troando de mim.

    Qual o seu nome?

    Mim... Ingls...

    O que?

    Voc... mim... ingls!

    Tateamos, tentando falar um com o outro por

    uns momentos, at que consegui compreender que

    ela queria que eu lhe ensinasse ingls. Ento, tive

    uma idia. Com muita dificuldade, consegui mostrar

    que ensinaria ingls a ela em troca de comida.

    A menina pareceu ficar encantada com a idia

    e apressou-se, acenando para mim com sua

    mozinha para que eu a seguisse. A primeira coisa

  • que notei foi que ela no tinha os ps pequenos

    como todas as outras mulheres chinesas pareciam

    ter. Apontei para seus ps e fiz com as mos um

    sin