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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DESIGN COMO TECNOLOGIA DE GÊNERO: O IMAGINÁRIO
SOBRE A BONECA DO QUILOMBO
Raquel Gomes Noronha1
Raiama Lima Portela2
Andrea Katiane Ferreira Costa3
Resumo: aqui refletimos sobre a produção material de cerâmica, por um grupo de mulheres,
autorrepresentadas “pretas e louceiras de Itamatatiua”, Alcântara – MA. Para obter o
reconhecimento como comunidade remanescente de quilombos, a comunidade precisou
“comprovar” sua identidade perante um processo de “legalização de identidades” (FRENCH, 2011,
NORONHA, 2016). Assim, apresentamos uma discussão sobre como o processo de design,
enquanto uma tecnologia de gênero (LAURETIS, 1987), corrobora a construção das subjetividades
das artesãs e que discursos são construídos a partir de um produto específico – a boneca do
quilombo, fruto de uma consultoria de design no lugar. Ao narrarem o processo criativo, na
produção da materialidade da boneca, expressa pelos aspectos formais, pelos artefatos que as
bonecas ostentam – o pote, o feixe de lenha – e mesmo as posições corporais de modelar o barro,
revelam as redes discursivas que constroem a “artesã de Itamatatiua”. Lauretis (1987) afirma que a
construção do gênero é produto e o processo tanto da representação quanto da autorrepresentação, e
no caso estudado, o designer se utiliza de ferramentas de representação da imagem para entender e
promover discursos e posicionamentos, exercendo papel político no território. Como método,
realizamos desde 2009 pesquisas etnográficas no povoado utilizamos entrevista com foto elicitação
que segundo Pink (2006), possibilita resultados de pesquisa a partir do autorreconhecimento.
Palavras-chave: Tecnologias de gênero. Design. Artesanato. Representação.
Introdução
Neste artigo, refletimos sobre a produção material de cerâmica, por um grupo de mulheres,
autorrepresentadas “pretas e louceiras de Itamatatiua”, uma comunidade remanescente de quilombo
de Alcântara – MA. Frente aos processos de legitimação do grupo étnico em seu território original,
por meio da titulação, a comunidade precisou “comprovar” sua identidade quilombola perante um
processo de “legalização de identidades” (FRENCH, 2011; NORONHA, 2016). Neste contexto,
analisamos a produção da louça, e identificamos processos de constituição mútua – as mulheres
moldam o barro e o barro molda os corpos e subjetividades das louceiras (NORONHA, 2016). Aqui
apresentamos uma discussão sobre como o processo de design, enquanto uma tecnologia de gênero
1 Designer, mestre e doutora em Antropologia. Professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão, onde integra o
Programa de Pós Graduação em Design. Líder do NIDA – Núcleo de pesquisas em inovação, design e antropologia. São
Luís, MA, Brasil. 2 Designer, Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em Design na Universidade Federal do Maranhão, integra o
NIDA – Núcleo de pesquisas em inovação, design e antropologia. São Luís, MA, Brasil. 3 Mestre e professora assistente da Universidade Federal do Maranhão, integra o NIDA – Núcleo de pesquisas em
inovação, design e antropologia. São Luís, MA, Brasil.
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(LAURETIS, 1987), corrobora a construção das subjetividades das artesãs e que discursos são
construídos a partir de um produto específico – a boneca do quilombo.
Diferente da maioria das peças produzidas em Itamatatiua, a boneca é fruto da atuação de
uma consultoria em design recebida pela Associação de Mulheres de Itamatatiua em 2011, e ao
longo do tempo tornou-se o produto mais vendido e o de maior preço relativo. Ao narrarem o
processo criativo, na produção da materialidade da boneca, expressa pelos aspectos formais, pelos
artefatos que as bonecas ostentam (figura 1) – o pote, o feixe de lenha, a caixa4 do divino – e
mesmo as posições corporais, como a posição de modelar o barro, a amamentação, o uso de
ferramentas de trabalho durante a gestação, revelam as redes discursivas que constroem a “artesã de
Itamatatiua” e o “artesanato do quilombo”.
Figura 1: Bonecas do quilombo ostentando os artefatos do cotidiano. Fonte: acervo da autora.
Desta forma, produção, circulação e consumo de cerâmica, voltada para o mercado turístico
são instâncias do mesmo processo: a vida social dos artefatos, na qual transitam e assumem papéis
diferentes na medida em que dialogam com os atores de sua cadeia produtiva de valor5, produzindo
significados diversos, de acordo com a relação estabelecida. Maiores reflexões sobre este trânsito
intercultural do objeto cerâmico podemos observar de forma mais ampla em Appadurai (2008),
Canclini (1983), e especificamente em Itamatatiua em Noronha (2012).
Com isso, na medida em que o designer passa a integrar a cadeia de valor desta produção
artesanal, ele produz novos significados. Como afirma Lauretis (1987), a construção do gênero é o
produto e o processo tanto da representação quanto da autorrepresentação. O designer se utiliza de
4 Instrumento de percussão utilizado nas salvas e louvações ao Divino Espírito Santo, tradicionalmente festejado em
Alcântara. 5 Utilizamos esta categoria apoiando-nos em Krucken (2009) que a conceitua como o conjunto de procedimentos,
etapas, atores, processos e produtos envolvidos em alguma atividade cujo resultado seja um produto, desde a sua pré-
produção até o seu consumo final.
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ferramentas de representação da imagem para entender discursos e posicionamentos dentro de
determinado contexto social.
Como método investigativo, realizamos desde 2009 pesquisas etnográficas no povoado, e
para este estudo especificamente, usamos o método da entrevista com fotoelicitação, que possibilita
resultados de pesquisa qualitativa a partir do autorreconhecimento. Sarah Pink (2006) alerta que os
significados das fotografias são arbitrários e subjetivos: eles dependem de quem está olhando as
imagens. Desta forma, a entrevista com o uso de imagens, conhecido por fotoelicitação, não é, ao
nosso ver, apenas uma ferramenta para a construção do conhecimento, mas uma forma de se
entender a reflexividade e a experiência etnográfica por meio de materiais visuais. Ainda conforme
Pink (2006), as imagens não apenas auxiliam no processo de construção de conhecimento, mas
propiciam a produção de conhecimentos diferentes dos que as palavras provocam.
A comunidade de Itamatatiua
Localizada em Alcântara, município do Maranhão, Itamatatiua é uma comunidade
remanescente de quilombo e tem como atividade principal do povoado a produção cerâmica. Há
aproximadamente trezentos anos produz-se cerâmica no povoado. No século XX, até a década de
1970, a cerâmica foi a grande fonte de renda da comunidade, envolvendo homens e mulheres, com
intenso fluxo produtivo para os povoados de Alcântara, municípios e localidades vizinhas. Com a
chegada da água encanada, os potes caíram em desuso. Hoje, com a produção bastante reduzida e
um número de artesãs cada vez menor envolvido na atividade, a importância cultural, simbólica e
patrimonial tem sido acionada por guias de turismo, pesquisadores, gestores dos projetos de
fomento à produção artesanal, em seus laudos, estudos e etnografias que fazem por lá.
Com a atividade de produção executada predominantemente por mulheres, a presença do
trabalho masculino na cadeia produtiva de valor acontece apenas em dois momentos: no momento
da extração e transporte do barro, do campo para o galpão, e no momento da queima, quando um
homem cuida de colocar a lenha, atear fogo e controlar a sua intensidade durante vinte e quatro
horas. Essa modalidade de trabalho é denominada aluguel. Os homens são pagos por diárias e não
possuem vínculos com a associação nem estão envolvidos no rateio das contas ou dos lucros.
Para o restante do trabalho são apenas oito mulheres envolvidas efetivamente na produção.
As idades são bastante variadas: uma de 25 anos, uma de 29, outra de 43, e as outras cinco possuem
entre 60 e 68 anos. No povoado, há algumas outras que sabem fazer cerâmica, mas não trabalham
no galpão, nem mesmo “fazem umas pecinhas em casa”, como costumam dizer. Das oito, sete são
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mães de muitos filhos e escutei recorrentemente a mesma frase, de todas as sete: “criei meus filhos
com o dinheiro da louça”, “comprava roupa, farinha, era tudo, só com esse negócio do barro”.
Dividem-se entre o trabalho na roça, as tarefas de casa e o fazer da louça. Hoje são responsáveis
pela organização de quase todas as atividades sociais e religiosas do povoado. A atribuição de
encarregada das terras de Santa Tereza D’Ávilla, padroeira do local, o mais alto cargo
administrativo e simbólico do lugar, foi passado hereditariamente a Neide de Jesus, que também é a
presidente da Associação de Mulheres de Itamatatiua. A dupla atribuição de Neide, na prática, é
partilhada com outras artesãs, que colaboram para manter o calendário festivo e as atividades
religiosas e administrativas do povoado em dia. Assim, ocupam posição de destaque na
comunidade, possuem prestígio e autoridade entre os moradores.
Percurso metodológico
A fotoelicitação, entendida por Pink (2006) como um processo metodológico que propicia a
construção do conhecimento, considerando elementos da consciência que são aflorados perante a
imagem, foi utilizada em diversos momentos da pesquisa etnográfica. As fotografias serviram como
pontes entre as imagens construídas a partir da pesquisa etnográfica e as imagens do imaginário das
artesãs sobre o que é o quilombo, e o que significa ser quilombola. As concordâncias e as
discrepâncias de significados encontrados mostram, literalmente, as fronteiras que se definem a
partir do outro.
A própria autorrepresentação como louceiras ou artesãs, também faz parte de processo de
representação compartilhada entre os atores atuantes na cadeia produtiva – quando querem
demonstrar a tradição, acionam a identidade como louceiras – e quando querem enfatizar seu
engajamento nas políticas públicas, acionam a categoria artesãs. E assim, constituem-se a partir das
negociações simbólicas e políticas em torno de suas identidades.
Ao propor uma etnografia do momento do encontro entre as artesãs de Itamatatiua e sua
imagem fotográfica, estamos aproximando os diversos atores que negociam a construção daquelas
imagens: quem é fotografado, quem fotografa, quem visualiza a imagem – ambos produtores e
consumidores destas mesmas imagens. Assim, as instâncias da produção e do consumo da imagem
se aproximam e se fundem, e a imagem torna-se, enfim, espelho. Cada um constrói a própria
imagem, a partir das suas próprias narrativas, inseridas em sistemas maiores de significados, que
podem ser compartilhados.
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Foram elaborados quinze pranchas temáticas, contendo de uma a seis imagens, que foram
apresentadas e discutidas individualmente, com quatro informantes, durante pesquisas na
comunidade no ano de 2013. A cada prancha estão associadas algumas questões principais, com as
quais iniciava-se a conversa sobre as imagens. As fotografias que compõem as pranchas foram
realizadas durante a pesquisa de campo, de janeiro a julho de 2013. A escolha das imagens que
compõem as quinze pranchas parte da ideia de que cada imagem é um recorte, é um conjunto de
escolhas do fotógrafo-etnógrafo para se abordar determinados temas do seu interesse. Nos
concentramos, para este artigo, em três pranchas que geram discursos sobre as artesãs, suas
antepassadas e sua autorrepresentação nas bonecas do quilombo.
Sessões de fotoelicitação
No momento em que conversamos sobre as pranchas temáticas, a prancha um foi o mote
para tratarmos do protagonismo das mulheres. A imagem de barro da mulher grávida com a parteira,
a imagem de barro de Santa Tereza e a imagem de Eloísa, cercada de crianças, produziu a seguinte
narrativa:
Figura 2 – Prancha um – A importância das mulheres.
Quem são elas?
Por que são importantes?
Fonte: NORONHA, 2015.
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Raquel: E qual a importância das mulheres aqui?
Eloísa: Das mulheres? É porque as mulheres, elas, a luta delas, tudo é pra trazer pro povoado, né? A
força de vontade delas é que esse povoado cresça mais, tenha tudo. A gente já trouxe esse centro de
produção, já trouxemos poço artesiano, já trouxemos pousada e a agora a gente tá vendo se consegue,
tamo lutando pra ver também se chega um posto médico, porque já era pra ter né? Que é necessário. 6
A força das mulheres perante a luta do dia a dia, faz com que o povoado cresça. A gestão do
povoado pelas mulheres, que se articulam politicamente para conseguir benefícios para o lugar,
como Eloísa narrou ao ver as imagens da prancha um, é uma narrativa importante, que ajuda na
construção das imagens quilombolas.
As narrativas das artesãs sobre o protagonismo das mulheres na gestão material e simbólica
do lugar refletiram-se nas narrativas sobre a própria origem do lugar. A prancha um, apresenta a
ligação entre a santa, a boneca parteira e a própria imagem de Eloísa, traz os discursos sobre luta,
trabalho e força de vontade. Na narrativa da artesã, a luta travada pela subsistência é uma atribuição
das mulheres. Mesmo sem ter certeza que a santa fora trazida por freiras ou frades, a versão
imaginada é pautada na destinação feminina à luta.
A prancha dois trouxe para a conversa a imagem das três artesãs mais antigas do povoado.
Maria, Tereza e Leoná. São chamadas de tia, carinhosamente, pelas atuais artesãs, e a maioria
aprendeu a mexer com o barro com elas.
Figura 3 – Prancha dois – Antigas artesãs.
Como era no tempo delas?
O que elas te contavam sobre o passado?
Você se orgulha do passado?
6 Entrevista concedida por Eloísa de Jesus à autora Raquel Noronha em 09 de agosto de 2013.
Fonte: NORONHA, 2015.
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Quando apresentamos esta prancha, rapidamente a imagem das mais idosas remeteu ao
tempo em que o pote era o principal produto do comércio local.
Neide: Ah, essa aqui é tia Teresa, Tia Maria, Leoná. Essas já trabalharam muito, em argila também,
todas três, trabalharam com o barro. Dona Maria até hoje ainda trabalha. Essa aqui fazia bem
cerâmica, Leoná. Muito importante, nesse tempo, vige, tinha uma saída enorme, quando elas faziam.
Muito diferente de hoje. Nesse tempo não tinha balde, não tinha poço, não tinha nada, era só rio.
Pegava do rio, é. Era todo mundo, era São Bento, era Alcântara, era Pinheiro, Bequimão, tudo vinham
comprar aqui. Pra poder encher de água, os pote.7
Eloísa: Ah, essas aqui já trabalharam muito, muito com cerâmica, com artesanato muito. Essa aqui
[Teresa], também trabalhou, com artesanato, mas essa senhora aqui e esta trabalharam muito aqui. Era
fornada, tirava fornada, botava. Fornava, tirava, botava. Criaram os filho delas só com artesanato de
cerâmica.8
A escolha do que deve materializar o quilombo, na forma de artesanato, é fruto de um
processo de imaginação, mediado pelas imagens que se faz da própria comunidade e pelas imagens
que são percebidas no imaginário de quem vem de fora, no momento do contato ou por intermédio
de consultores.
O caso que escolhido para exemplificar a discussão é o das “bonecas do quilombo”, como
podemos observar na prancha três. O discurso sobre a “boneca do quilombo” remete a duas
situações que exemplificam a existência real de uma negociação consciente, prática e que nem por
isso deixa de lado a dimensão simbólica para ser
eficaz.
Figura 4 – Prancha três – A boneca do quilombo. Com quem se parece a boneca?
É um retrato?
Como você se vê?
7 Entrevista concedida por Neide de Jesus à autora Raquel Noronha em 08 de agosto de 2013. 8 Entrevista concedida por Eloísa de Jesus à autora Raquel Noronha em 09 de agosto de 2013.
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As bonecas fazem parte do trânsito intercultural
do artesanato produzido em Itamatatiua, são representações de figuras femininas, muitas vezes
reproduções de antepassados, que ganham vida, a partir da materialidade desses artefatos. Em uma
fala de D. Eloísa, podemos perceber as motivações que levam elas a moldarem bonecas:
Pesquisadora: Quem são estas bonecas? Elas são mulheres reais?
Eloísa: Ah, são pessoas da comunidade. A gente vai modelando as artesãs mais velhas, que já
morreram... Aí tinha Andreza. Fiz uma boneca de Andreza, há muito tempos atrás, e o homem do
Canadá levou ela para lá... Andreza foi viajar pro Canadá... (risos). Tem também Raimunda Preta, tem
Chica Pimenta que a gente chamava Neusa. A gente fica pensando né, pra fazer os outras mais
antigos.9
Observamos na fala de Eloísa de Jesus, uma busca em representar mulheres que fizeram
parte da comunidade. Dessa forma, podemos dizer que as artesãs de Itamatatiua “modelam”, ou
melhor dizendo, produzem tecnologias de gênero, já que os artefatos – as bonecas do quilombo –
carregam sistemas de significados que fazem parte de uma construção de representações. A figura
feminina é colocada pela artesãs nesse campo de significados, como protagonistas, figuras icônicas,
suas antepassadas, mestras no saber-fazer da louça que marcaram a vida cotidiana do povoado. Ao
pedir para a artesã Eloísa descrever sobre as bonecas, ela nos conta:
Eloísa: Sempre eu gosto de fazer, eu faço algumas bonequinhas porque fico lembrando do passado,
das mulheres daqui, até hoje também a gente gosta de fazer elas com pote na cabeça, de fazer feixe de
lenha, porque eu lembro muito que tinha a Neuza né, que eu gosto também de fazer, que é aquela ali,
porque ela só fazia louça assim com o bebê mamando e nua da cintura pra cima, aí ela faz assim,
ainda tem a Maria Fonseca, que ela gostava de fazer [louça] de "coca", as tiras todas pros pote, ela
gostava de fazer de "coca" [de cócoras], e também a Raimundinha ali, que ela teve quase uns dez
filhos, aí eu lembro que ela era, ia pra roça assim bem buchuda, ou pro barreiro, aí com o bebê assim
na cintura, buchudona aí com o cofo na cabeça ou a lenha. Aí isso, por isso que a gente gosta de fazer
elas. Tinha também o trabalho das parteiras... Tia Leoná, tia Tereza, até pouco tempo ainda
arrumavam a barriga de todinha as crianças daqui.10
É importante ressaltar que essas mulheres do passado são representadas em atividades como
afazeres domésticos, com o cuidado com os filhos, o parto, as atividades extrativistas, a busca da
água no poço, tocando caixa, todas as atividades do cotidiano relacionadas ao universo feminino do
povoado são representadas pelas bonecas do quilombo.
A sessão de fotoelicitação nos possibilitou acionar discursos sobre a importância das
mulheres na comunidade e como esse discurso e o próprio fazer modelado pelas artesãs são
representações de gênero engendradas, quando propõem modelar a figura de suas antepassadas em
atividades domésticas de forma naturalizada.
9 Entrevista concedida por Eloísa de Jesus à autora Raquel Noronha, em 09 de agosto de 2013. 10 Entrevista concedida por Eloísa de Jesus à autora Raquel Noronha, em 09 de agosto de 2013.
Fonte: NORONHA, 2015.
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Discutiremos no próximo item, como a partir desses discursos acionados por meio das
sessões de fotoelicitação nos ajudaram a enxergar questões de gênero e como um exercício da
autorrepresentação muda os aspectos simbólicos das artesãs do presente.
Reflexos teóricos: oficina de bonecas e a autorrepresentação
Durante a pesquisa, notou-se, nos depoimentos, que as artesãs modelavam as antigas artesãs,
mas era raro modelarem-se a si mesmas. Foi proposta então uma atividade que intitulamos oficina
de bonecas, na qual as artesãs modelariam umas às outras. O objetivo era observar os traços e as
formas enfatizados para diferenciarem-se umas das outras e ao mesmo tempo identificar o que era
comum, o que as caracterizavam como um grupo. No início da dinâmica, realizamos uma vivência,
em que cada uma envolveria quem desejava “modelar” com um fio, e dizia as características
emocionais e físicas da eleita. As companheiras do grupo complementavam e foi um momento de
muita descontração entre os presentes. O resultado diz muito sobre como elas se enxergam e as
características simbólicas que cada uma possui.
Figura 5 – A artesã Eloísa durante a oficina de bonecas. Fonte: (NORONHA, 2015)
Nas imagens é possível observar os traços comuns que são ressaltados em todas as bonecas:
os cabelos crespos, os seios fartos, o nariz e os lábios volumosos, o quadril largo. A repetição de
tais características acontece em todas as imagens, reforçando a imagem do corpo arredondado e
volumoso das mulheres do quilombo.
Nas imagens a seguir, com as peças já cozidas, é possível identificar as artesãs pelos
artefatos que seguram ou que utilizam. Todavia, em linhas gerais, as bonecas pouco se diferenciam.
Ângela é representada utilizando óculos, com um caderno e caneta nas mãos, devido ao seu trabalho
no controle financeiro da loja; Duca é representada com uma bolsa, pelo seu gosto de passear e ir
constantemente à sede do município ou a São Luís. O penteado e a altura são variáveis, mas as
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linhas gerais corroboram a ideia de que a boneca do quilombo é uma imagem genérica, presente no
imaginário de quem às produz. A mulher quilombola contemporânea tem seu corpo e vestimenta
representados de forma idêntica aos das mulheres do passado que costumam modelar para venda
aos turistas; um ou outro artefato as diferenciam das outras.
Figura 6 – O resultado da oficina de bonecas com as peças já cozidas. Fonte: (NORONHA, 2015)
A diferenciação não se dá através dos corpos, mas através dos assessórios que são atribuídos
a cada uma das mulheres, de acordo com seus gostos, preferências e atividades desenvolvidas na
associação. São por meio desses objetos simbólicos que se diferenciam umas das outras.
Como podemos observar na foto a boneca de Ângela. A boneca de Ângela usa óculos,
porque Ângela cuida da contabilidade da venda das louças, ela que recebe e faz a divisão do
dinheiro. O óculos de Ângela, diz muito mais do que “Ângela usa óculos”. O significado vai além
de um simples objeto utilizado pela artesã. Ele diz sobre o que Ângela é hoje, da sua importância
para o grupo e de como o objeto é a representação de Ângela, mulher, artesã, que cuida das
questões financeiras da produção artesanal. A representação da boneca da Ângela mostra como as
artesãs enxergam a Ângela. E aí entra a importância do papel do designer, do tornar tangível, nesse
caso, a representação da mulher Ângela. Trazer para o campo da visão “quem Ângela pode ser”.
O mesmo podemos observar na boneca de Duca. As artesãs representaram Duca usando uma
bolsa porque é ela que resolve os assuntos burocráticos referentes à produção artesanal. Duca vive
com uma bolsa para ir à Alcântara. A bolsa não é porque Duca usa bolsa. Ela diz muito mais sobre
isso. Diz sobre a forma como as outras artesãs enxergam Duca. O objeto bolsa é uma marcação da
diferença. É o que diferencia, a mulher Ângela, da mulher Duca, e das outras artesãs. São
marcadores simbólicos que as diferenciam e que as identificam.
Podemos perceber que as bonecas do quilombo modeladas pelas artesãs na oficina de
bonecas, ao mesmo tempo que se aproximam da representação da mulher do quilombo, as
diferenciam enquanto mulheres, por meio de marcadores simbólicos, da representação feminina de
suas antepassadas. As artesãs ao se modelarem, esquecem das atividades ligadas aos afazeres
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domésticos e as colocam numa posição de empoderamento, como representação da mulher
quilombola na contemporaneidade. Podemos perceber que ao mesmo tempo que as representações
de gênero são naturalizadas, é por meio do próprio gênero como afirma Butler (2014, p. 253) que
esses termos podem ser descontruídos e desnaturalizados.
Considerações finais
Refletir sobre a importância do design como tecnologias de gênero, nos direciona para um
campo de reflexão que pode ser visto como um novo campo de atuação do designer, que trabalha de
forma efetiva nas desconstruções de linguagens “engendradas”, utilizando-se do termo cunhado por
Lauretis (1994), onde ressemantiza sistemas de significados, que nada dialogam quando se fala de
empoderamento feminino. O designer, neste caso, passa a ser um mediador de processos culturais.
(MANZINI, 2015; CARDOSO, 2012; NORONHA, 2017).
Os exemplos aqui citados, retratam sobre mulheres que estão longe do topo das classes.
Falamos de vidas que se constroem em comunidade, muitas vezes isoladas dos espaços urbanos,
que encontram na atividade artesanal, um espaço de auto realização e busca diária por melhorias de
vida. O fazer artesanal feminino é regulado por normas de gênero (BUTLER, 2014), em que o papel
da mulher é se desdobrar em múltiplas facetas para dividir seu tempo com o trabalho artesanal e
com “obrigações” em que é subjugada a exercer em casa.
Foi possível perceber por meio da oficina de bonecas como o empoderamento pode ser
acionado por meio das tecnologias de gênero. Já que estamos falando nesse trabalho como uma
atividade que se constrói por meio das representações de gênero, os mecanismos, usados pelos
designers, precisam ser renovados, repensados e problematizados. Dessa forma, podemos dizer que
para o empoderamento ser força motriz, ele precisa ser desnaturalizado e problematizado, acionado
com frequência, por agentes que podem ser designers, as próprias artesãs, os maridos, os filhos que
constituem o meio social. Por isso, trabalhar com essas tecnologias é ressemantizar e construir
novos sistemas de significados.
Referências
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural.
Niterói: Editora da UFF, 2008.
BUTLER, Judith. Regulações de Gênero. Cadernos Pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de
Gênero Pagu-Unicamp, 2014, p.249-274.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CANCLINI, Néstor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense,
1983.
FRENCH, Jan H. Legalizing identities. Becoming black or indian in Brazil’s Northeast. North
Carolina: UNC Press, 2009.
LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.).
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rocco. Rio de Janeiro: 1994. pp.206-
242.
MANZINI, Ezio. Design, when everybody designs. An introduction to Design for Social
Innovation. The MIT Press. Cambridge/London: 2015.
NORONHA, Raquel. O designer orgânico: reflexões sobre a produção do conhecimento entre designers e
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(orgs.). Simpósio de Design Sustentável 2015. Blucher. São Paulo: 2017. p. 277 a 294.
______. Corpo e saber-fazer: da cosmologia à política. In: SANTOS, Denilson Moreira (org.).
Artesanato no Maranhão: práticas e sentidos. São Luís: EDUFMA, 2016. p. 17-43.
______. Dos quintais às prateleiras: as imagens quilombolas e a produção da louça em Itamatatiua
– Alcântara – Maranhão. 289f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e
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Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
______. Sobre a louça, o linho e a rede: processos contemporâneos de construção de valor e
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PINK, Sarah. The future of Visual Anthopology. London: Routledge, 2006.
Design as gender technology: the imaginary about the quilombowish doll
Abstract: Here we reflect on a group of artisans’ material production of pottery, self-represented as
"black and earthware makers of Itamatatiua", Alcântara - MA. In order to obtain recognition as a
quilombowish community, the group had to "prove" its identity in a process of "legalizing
identities" (FRENCH, 2011, NORONHA, 2016). Thus, we present a discussion about how the
design process, as a gender technology (LAURETIS, 1987), corroborates the construction of the
subjectivities of those women, and which discourses are constructed from a specific product - the
quilombowish doll, an outcome of a design consultancy in the village. Narrating the dolls’ creative
processes, producing theirs materiality, expressed by the formal aspects, by the artifacts that the
dolls boast - the pot, the wood-beam, and even the corporal positions of working, reveal the
discursive networks that construct the "Itamatatiua’s craftswomen" representation. Lauretis (1987)
states that the construction of the genre is a product and process of both representation and self-
representation, and in this case, the designer uses image representation tools to understand and
promote discourses and positions, playing a political role in the territory. As a method, we carried
out ethnographic research in the village since 2009, using interviews with photo-elicitation, that
according to Pink (2006), allows results of research based on self-recognition.
Keywords: Gender technology. Design. Earthware. Representation.