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1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE ARTES
Ana Adelaide Lyra Porto Balthar
DESENHO: UMA HABITAÇÃO NO TEMPO
Rio de Janeiro
2009
2
Ana Adelaide Lyra Porto Balthar (Nena Balthar)
DESENHO: UMA HABITAÇÃO NO TEMPO
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Orientadora: Profª . Drª Maria Luiza Fatorelli
Rio de Janeiro
2009
3
Ana Adelaide Lyra Porto Balthar (Nena Balthar)
DESENHO: UMA HABITAÇÃO NO TEMPO
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Orientadora: Profª . Drª Maria Luiza Fatorelli
Aprovado em: ______________________________________________
Banca examinadora: _________________________________________
__________________________________________________ Profª. Drª. Maria Luiza Fatorelli (Orientadora)
Instituto de Artes da UERJ
__________________________________________________ Prof. Dr. Márcio Tavares D`Amaral Escola de Comunicação da UFRJ
__________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Corrêa dos Santos
Instituto de Artes da UERJ
4
Para meus pais, Affonso Luiz de Souza Balthar (in memorian) e Maria Luiza Lyra
Porto Balthar, pelo amor e ensinamento de que a vida pode ser transformada em
maravilhamento quando sabemos desfrutar das coisas singelas do dia a dia.
Para Marcelo Torres Bozza, meu amor, grande incentivador e companheiro de tudo.
Para Lucas Balthar Torres Bozza e Vicente Balthar Torres Bozza, filhos amados e
amorosos, que me atualizam a vida a cada instante.
5
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Malu Fatorelli, pela confiança e encorajamento durante todo o
processo de realização desse texto. Sua sensibilidade, e sugestões preciosas tornaram
possível esse projeto.
À Lucia Vignoli, pela sua amizade, companheirismo, generosidade e disponibilidade,
imprescindíveis na realização dos filmes, pela leitura atenciosa, por nossas conversas e
tudo o mais.
Ao professor Roberto Corrêa dos Santos por suas sugestões na qualificação, suas
aulas encantadoras, sua delicadeza e generosidade ao escrever o texto
DESENHOPÓGRAFITE de Nena Balthar, e por aceitar participar, mais uma vez, da
banca examinadora.
À Maria Tornaghi, meu oráculo, por tanto e tantas horas...
À professora Leila Danziger, por aceitar participar da banca de qualificação, por sua
atenção e sugestões.
Ao professor Márcio Tavares D` Amaral por ter aceito o convite de participar da banca
examinadora.
Ao professor Jorge Luiz Cruz, por disponibilizar o laboratório de Cinema e Vídeo do
Instituto de Arte da UERJ, e a Geysa Gonçalves, imprescindível na edição das
imagens do Camadas.
À minha sobrinha Victória Balthar, por sua leitura e revisão atentas e cuidadosas, por
suas sugestões e por ser a pessoa maravilhosa que é.
6
À Fabianna de Mello e Souza, por me apresentar o Theatre du Soleil e por sua imensa
amizade.
À Maria Cristina F. de Mello, pela sua amizade e presença sempre.
À Jacqueline Siano e Lídice Matos, pelas horas de conversas, por me ouvirem e
proporcinarem novas idéias.
À Luisa Moraes, muita querida, sempre pronta a me ajudar.
À Cristina de Pádula, Tânia Queiroz e Nelson Augusto pelos livros e por estarem por
perto.
Aos professores do mestrado da UERJ, especialmente Rogério Luz e Sheila Cabo
Geraldo. Muito do que compartilho nessa dissertação se originou em suas aulas.
Ao Guilherme Bueno, pelo texto Eppur Si Muove.
Ao Luciano Boggado, pela gentileza e pelas fotos para a exposição
DESENHOPÓGRAFITE.
À Maíra Peixoto, pelas versões em inglês no catálogo da exposição
DESENHOPÓGRAFITE e no abstract da dissertação.
Ao professor Mário Fiorani, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ), por
emprestar a cúpula de acrílico para a realização do Cristalino.
Aos funcionários do PPGArtes pela ajuda permanente, especialmente ao Jorge Luiz
Santos, à Mariana Maia da Silva e ao Roberto Coelho Ovalle.
7
À minha família, pelo acolhimento e carinho. Especialmente à minha tia Angela Maria
de Castro Lyra Porto (DINDA), por sua dedicação e amor, minha segunda mãe.
Ao CAPES, pelo financiamento ao final da pesquisa.
8
RESUMO
BALTHAR, Ana Adelaide Lyra Porto. Desenho: Uma Habitação no Tempo. 96 f.
Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) — Instituto de Artes,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2009.
Desenho: Uma Habitação no Tempo é uma reflexão sobre o Tempo e a arte. A
pesquisa propõe perceber o tempo como demora a partir de uma experiência artística,
como sua experiênciação. Um desvio no tempo acelerado que visa à eficácia em
detrimento ao processo. A possibilidade de estimular uma ruptura no cotidiano e poder
pertencer ao seu tempo. Demorar-se no pertencimento implica em uma atenção ao
ritualístico da vida, ao auto-conhecimento e ao reconhecimento do outro diferente de
nós. A abordagem dessa idéia na tese — demorar-se no tempo — se dará sob o viés
de reverberações entre minha prática artística e as idéias de repetição como tarefa,
abertura na mente, heterotopias, tradição, compartilhamento e alteridade, identificadas
na prática de alguns artistas e no pensamento de alguns teóricos.
Palavras-chave: arte contemporânea, experiência artística, tempo, pertencimento, vida.
9
ABSTRACT
Drawing: a Dwelling in Time is a reflection on time and arts. The purpose of this
research is to perceive time as a delay from an artistic experience, as its
experimentation. A deviation in the accelerated time, which aims at the efficacy in
detriment of the process. The possibility to incite disruption in routine and afford
belonging to its time. To linger in belonging implies attention to the liturgies of life, self-
knowledge and the knowledge of others different from us. The approach of the idea of
lingering in time in the dissertation will take place under the bias of the repercussions of
my own artistic practice and the ideas of repetition as a task, opening of mind,
heterotopias, tradition, sharing and alterity identified in the practice of artists and in the
thoughts of theoreticians.
Keywords: contemporary art, artistic experience, time, belonging, life.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÂO / p. 10
2. PRIMEIRO ATO / p. 21
3. INTERVALO / p. 48
4. SEGUNDO ATO / p. 51
5. BREVES CONSIDERAÇÕES / p. 85
6. BIBLIOGRAFIA / p. 89
7. ANEXO / p. 96
11
PRÓLOGO
A divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a conclusão, uma
multiplicação do tempo no interior da obra.
Ítalo Calvino
O presente texto é uma tentativa de digressão, estratégia para perceber o tempo
demoradamente, habitando-o. Um contraponto à maneira da cultura contemporânea
ocidental perceber o tempo como acelerado. Aceleração relacionada ao uso das
tecnologias visando à eficácia, ao bom resultado, em detrimento do processo (sucessão
de estados, mudanças).
Quando falamos em contemporaneidade freqüentemente nos referimos a
quantidades enormes de informação. Luiz Alberto Oliveira nos diz que “um atributo
próprio da nossa época é a aceleração (...) manipular instantaneamente, sem qualquer
retardo apreciável, quantidades maciças de informação”(OLIVEIRA, 2003, p.65).
A multiplicação do tempo parece ser uma das possibilidades de experimentá-lo
de outra maneira que não a da aceleração. Multiplicar, acumular, repetir, demorar,
habitar. Verbos que demandam ações que permitem perceber o tempo como processo,
como habitação na experiência.
Considero minha prática artística um exercício, que aproximo da acepção da
palavra ensaio de Márcio Tavares D`Amaral. O autor diz que o ensaio está relacionado
à idéia de repetição, presente na preparação (ensaio) de uma peça teatral ou num
experimento científico, e, ainda, é a forma livre, inconclusiva de uma tese em forma de
ensaio. Lembrando que o pensamento também é de natureza ensaística1. Realizo esta
tese na forma de ensaio.
1 Márcio Tavares DAmaral, na introdução do seu livro “O Homem sem fundamentos – sobre linguagem, sujeito e tempo”, se refere ao pensamento como sendo “ensaístico, aleatório, livre e ao mesmo tempo existencialmente comprometido”. Nos lembrando sua natureza processual.
12
A partir dos meus desenhos construo minha proposta e investigo a possibilidade
de proporcionar um estímulo para perceber outras temporalidades, diferentes da
temporalidade que se passa num regime de causa e efeito (cronológica). Este estímulo
é minha intenção, possibilidades de gerar outro acesso à realidade permitindo
reinventá-la.
O Neoconcretismo “repunha a colocação do homem como ser no mundo e
pretendia pensar a arte nesse contexto”(BRITO, 1985, p. 51), com suas propostas de
cindir a distância entre arte e vida, radicalizando o envolvimento do espectador na ação
de uma fruição. Questionava uma tradição de distanciamento baseada no lugar da obra
e no lugar do espectador, então distintos e separados. “A arte neoconcreta funda um
novo espaço expressivo”2, diferente de um espaço mecânico, causal e racional
presente nas idéias de uma arte abstrata geométrica3, mesmo que utilizando o seu
vocabulário. Os artistas neoconcretos propunham uma reinterpretação do pensamento
objetivo, considerando a presença do espectador como fundamental para que a obra
obtivesse seu significado. Defendiam a idéia do não-objeto, não como negação do
objeto, mas como “objeto especial” com a intenção de realizar “uma síntese de
experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento
fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rasto.
Uma pura aparência.”4.
Merleau-Ponty diz que nossos corpos são tão videntes quanto visíveis — “O
enigma consiste em que o meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível.”(MERLEAU-
PONTY, 2000, p. 20-21) —percebem as coisas como também são percebidos por elas.
Podem olhar-se de outro lugar: o nosso corpo “vê-se vendo, toca-se tocando, é visível e
sensível para si mesmo”(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 21), fazendo-me pensar que nos
constituímos a partir do outro. Por isso a idéia de habitação na alteridade — que remete
2 Manifesto Neoconcreto In: COCCHIARALE, Fernando e GEIGER, Anna Bella (orgs). Abstracionismo Geométrico e Informal. A vanguarda Brasileira nos anos cinquenta. ed. Rio de Janeiro: Ed. FUNARTE, 1987. p..236 3 Construtivismo, Neoplasticismo, Suprematismo e Escola de Ulm dentre outros. 4 Manifesto Neoconcreto. In: COCCHIARALE, Fernando e GEIGER, Anna Bella (orgs). Abstracionismo Geométrico e Informal. A vanguarda Brasileira nos anos cinquenta. ed. Rio de Janeiro: Ed. FUNARTE, 1987. p.237.
13
ao outro diferente de nós e ao outro de nós mesmos. Uma tentativa de resgate da
ritualidade existente na vida, de busca pela subjetividade para além da eficácia atual.
Uma ritualidade que dialoga com a idéia proposta pelo movimento Neoconcreto de
reafirmar “a arte como formulação primeira do mundo”(GULLAR, 1987, p. 241). A
ritualidade no sentido de “reviver o ritual” proposto por Lygia Clark, uma nova maneira
de perceber a obra de arte — um diálogo da obra com o espectador. A relação da arte
com a possibilidade do homem conhecer a si próprio, de sua possível habitação do
mundo.
Desenho quando escrevo — tarefa de “atelier” — risco, risco novamente, uma
sucessão de palavras, uma após a outra como nas linhas que registro na superfície do
papel ou da parede. Cada sobra, cada palavra descartada reservo no final do texto —
resíduos “de pensamento” que retornam na página seguinte, em outro patamar. Não
leio o que escrevo, vejo. Na tarefa diária de escrever a dissertação, surgiu a
necessidade de uma visualidade gráfica diferente das letras, uma visualidade em áreas
de linhas de cores. Esses “desenhos” não são de cunho público, são estratégias que
me orientam no fluxo de meu pensamento. Cada frase digitada, cada página
preenchida, visualizo-a no “print preview“5, o que “leio” são as linhas pretas intercaladas
por grande áreas de linhas em cor azul, ou linhas pretas interrompidas por fragmentos
em rosa. Os autores têm suas presenças sinalizadas em laranja, e minhas dúvidas
aparecem na cor verde. Mas o que vem a público são extensas áreas de linhas pretas.
Na tarefa de “fazer linhas”, sou como personagem de um processo que revela o
tempo que se leva para fazê-las. Nossos hábitos diários, nossa realidade, podem ser
relacionados à idéia de repetição como tarefa. A tarefa como percepção do tempo, do
tempo que se leva para performá-la, o tempo de habitá-la.
Gilles Deleuze diz que o artista, ao utilizar o procedimento da repetição, não
reproduz um elemento pelo conceito do que é identico. O artista, para Deleuze, ao
repetir exerce combinações entre exemplares e seus elementos. Identifico nesse
5 “Print preview“: visualização da página digitada na tela do computador.
14
conceito de repetição pelas combinações uma referência à acúmulos e não excessos,
(como penso acontecer pela justaposição de idênticos). Nessas combinações, o artista,
diz Deleuze, “introduz um desequilíbrio, uma instabilidade, uma dessimetria, uma
espécie de abertura, e tudo isso só será conjurado no efeito total” (DELEUZE, 2006, p.
44). A ocupação, a tarefa que se repete, na qual o corpo todo se encontra ocupado,
abre a mente à possibilidade de imaginação, de memórias, de invenções. Abertura que
parece ser a “abertura” a qual Deleuze diz ser introduzida pelo artista ao utilizar o
procedimento da repetição. Estímulo à percepção de outras temporalidades.
Na minha prática o que se repete são os gestos, as linhas de grafite e as
imagens de minhas ações. Nos últimos anos, o que a move é a idéia de passagem, de
transitoriedade, que acredito poder relacionar ao tempo como duração, lentidão,
habitação. Entendo habitar como estar em processo, estar entre, numa fresta ou
intervalo. A repetição é uma necessidade e uma tática para essa possível percepção do
tempo. A demora não é creditada pelo relógio, mas pela atitude inaugural frente a uma
experiência. Mais especificamente a uma experiência artística, na crença de que na
arte seja possível proporcionar estímulos a novas percepções temporais.
Desenho e gravo, em precários vídeos digitais, meus traços, meus desenhos. No
início, esses gestos não eram apreendidos pelo “olho” das câmeras, mas pelo “olho” do
relógio. Marcava com rigor, quase científico-laboratorial, os tempos que permanecia
riscando, gravando e apagando o que desenhava. Já havia nesses desenhos uma
relação do gesto com o corpo todo que, também, desenha. Na repetição os gestos
denunciam a ação do meu corpo ao desenhar. A necessidade de registrar com o “olho”
da câmera as imagens dos gestos, dos traços, movimentos quase dança, me levou a
filmá-los. Não é propriamente a performance o que me interessa, mas poder
compartilhar o processo do fazer, riscar, movimentar. Performo em silêncio e sem
platéia, um pensamento mais próximo do ritual e do auto-conhecimento. Filmar meus
gestos fazendo as linhas que desenho, e depois projetá-los no espaço expositivo onde
se encontra o desenho acabado, é como construir novamente esse desenho com o
olhar do Outro. Cada vez que o vídeo projeta meus gestos ao desenhar é como se eu
estivesse novamente a fazer o desenho. Como se trouxesse para o instante em que se
olha o vídeo a presença das camadas temporais da tarefa realizada — o desenho.
15
A estrutura da dissertação foi concebida em forma de espetáculo: Prólogo,
Primeiro Ato, Intervalo e Segundo Ato. Uma referência à experiência do teatro em sua
vinculação com o contexto do observador e como isso influencia a produção de artes
visuais desde o início do século XX.
A escolha de uma aproximação do teatro com as artes visuais é decorrência da
minha experiência de vida e da relação do teatro com os desdobramentos de questões
em torno da produção de arte. Rosalind Krauss aponta que essa relação com o
espectador – localizada em seu próprio corpo – modificou e ampliou o pensamento da
arte (KRAUSS, 2001). Roselee Goldeberg, ao traçar uma história da performance, diz
que as questões envolvidas nos “manifestos da performance, desde os futuristas até
nossos dias, têm sido a expressão de dissidentes que tentaram encontrar outros meios
de avaliar a experiência artística no cotidiano”(GOLDBERG, 2006, p. VIII). Tais
avaliações (das experiências artísticas) passaram a considerar que a produção de arte
não está mais relacionada apenas ao aspecto formal – a obra – mas também (e por
vezes apenas) à experiência artística.
Convivo desde a adolescência com atores e com o meio teatral, e graças a essa
proximidade conheci o Théâtre du Soleil6 sob a pespectiva de quem faz parte do grupo.
Em 1997 estive na sede do teatro, em Paris, visitando a atriz e amiga Fabianna de
Mello e Souza, que trabalhava na companhia. Nessa ocasião pude compartilhar um dia
de trabalho com toda a troupe7.
Logo nas primeiras horas do dia, a diretora do teatro Ariane Mnouchkine, reuniu
na cozinha da Cartoucherie todos os integrantes da companhia. Nesse momento eram
feitos os anúncios sobre as novidades do “bureau”, o dia de trabalho no palco, as
necessidades das equipes técnicas, a organização do espaço, o projeto para todo o dia
6 O Théâtre du Soleil é uma companhia de teatro fundada pela a diretora Ariane Mnouchkine em 1964 na França. É uma das maiores, senão a maior, companhia permanente de teatro da Europa. Seus espetáculos são apresentados anualmente por todo mundo. Em Paris o teatro tem capacidade de 600 lugares e recebe diariamente franceses e estrangeiros que viajam à França para ver seus espetáculos. Comvidada pelo Sesc, a companhia veio pela primeira vez ao Brasil e à América do Sul em 2007. 7 Grupo de atores de uma companhia teatral.
16
e demais avisos. A jornada de trabalho se iniciava, cada um com suas funções
participava da preparação do espetáculo.
Para Mnouchkine, o ator precisa compreender o momento da criação e as
necessidades desse momento, precisa colocar seu trabalho a serviço desse processo.
O ator deve propor tudo o que concerne à concepção do espetáculo, interferindo com
suas idéias desde o personagem, o figurino até o cenário. Aproximo minha proposta de
investigação do modo como Ariane Mnouchkine trabalha. No Théâtre du Soleil a
répétition8 se dá pela forma da criação coletiva, e eu a relaciono com a idéia de um
encontro com o outro (alteridade).
Ao entrar na sede do Théâtre du Soleil, a Cartoucherie — um lugar que no
passado abrigou uma antiga fábrica de pólvora localizada no bosque de Vincennes —
temos a impressão de entrar em um lugar imaginário, longe de Paris, com outro ritmo.
Percebemo-nos em outro tempo: o tempo de gestação do espetáculo, um tempo de
processo — demora. No Théâtre du Soleil habita-se esse tempo.
Minha visita coincidiu com o período que antecede a estréia, e toda a
colaboração era bem vinda. Fui, como outros visitantes, voluntária. Solicitaram, no
início do dia, reforço para finalização dos figurinos e passei o dia no galpão da costura.
Eramos quase vinte pessoas entre atores, costureiras, equipe do escritório e voluntários
como eu. No Galpão havia grandes armários onde ficavam dispostos os figurinos
utilizados pelos atores para as improvisações de cenas. Misturavam-se no ambiente,
rolos de tecidos vindos do mundo inteiro, máquinas de costura, caixas de botões, de
linhas e o som de palavras em espanhol, em italiano, em árabe, em francês e, também,
em português. Diversidade de línguas, de culturas no interior do Galpão. A hora das
refeições é comum a todos. Almocei junto com a troupe composta, na época, por 65
artistas permanentes vindos do mundo inteiro. Depois do almoço voltei para a costura,
não sem antes ajudar a enxugar os pratos — todo o processo me fazia pertencer
àquele tempo — àquela heterocronia9.
Após o lanche, no meio da tarde, ajudei no preparo do cenário na sala de
apresentação. Carregávamos os tecidos de seda para compor o cenário, e, nessa nova 8 Na França os ensaios, a preparação de uma peça, é chamado de Répétition. Esta palavra francesa parece enfatizar sua natureza de processo, de estar a caminho. 9 Heterocronia é um conceito de Foucault no qual ele propõe que existam recortes de tempo proporcionando temporalidade diferentes da cronológica (linear). Voltarei à esse conceito no capítulo Segundo Ato.
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sala, o silêncio e a concentração presentes alteraram imediatamente nosso modo de
andar, e sem que percebessemos estávamos experimentando um outro tempo, onde
tudo convergia para o palco.
Em Outubro de 2007, após dez anos do primeiro encontro, tive a oportunidade de
assistir a um espetáculo do Théâtre du Soleil; a peça “Les Ephémères” no SESC
Belenzinho, em São Paulo. Relato minhas impressões dessa aventura, nela acredito
existir a possibilidade de um desvio no regime de causa e efeito de percepção temporal.
Ressonância com minhas reflexões sobre a percepção do tempo como habitação.
Digo aventura pois foi esta a palavra que a diretora, Ariane Mnouchkine,
escolheu para designar, ao final de mais de sete horas de espetáculo, a experiência de
teatro que o público compartilhou com a troupe do Théâtre du Soleil na tarde e noite da
apresentação.
Por conhecer uma das atrizes me percebi num espaço intermediário: um pouco
público um pouco assistente da troupe. Chegamos ao SESC, três horas antes da
abertura, almoçamos com o grupo e depois fomos ao trabalho voluntário. Desta vez
minha colaboração foi auxiliar o preparo de pratos de queijos para serem degustados,
com vinho, pelos espectadores. Misturava inglês e francês, e por vezes português, para
me comunicar. Eramos como anfitriões preparando a festa para nossos convidados —
o público.
A grande surpresa foi ao entrar no palco, parecia estar novamente na sala de
espetáculo da Cartoucherie. Importante lembrar que sempre que o Théâtre du Soleil
participa de uma tournée ele transpõe para o lugar da apresentação o espaço de que
dispõe em Paris. Para que isso aconteça tudo é transportado, de navio, em containers.
Minuciosamente planejado, o trabalho será realizado com o que eles dispõem em seu
espaço na Cartoucherie.
De navio vêm os fogões, mesas, pratos, talheres, máquinas de costura, som,
instrumentos musicais, palco, arquibancada, adereços, figurinos e demais
equipamentos para a construção do espaço cênico e acomodação dos espectadores. É
essa infra-estrutura que permitirá, sobretudo, criar o ambiente onde será instaurada a
grande aventura.
18
Cada espetáculo da companhia possui uma ambiência própria para que, desde a
chegada, o espectador comece a sua experiência pessoal em um lugar e em um tempo
particular. Lembro que na minha primeira visita ao Théâtre du Solei, estavam pintando
budas nas paredes da sala de espetáculo, uma referência às cores e a atmosfera dos
antigos templos tibetanos. A peça “Et soudain, des nuits d'éveil”10, que entraria em
temporada, era sobre o Tibet. No SESC Belenzinho, o cenário, os adereços e o menu
servido ao público também se referiam à idéia do espetáculo: momentos da vida, da
vida na França. O odor que vinha da cozinha nos levava aos recantos do interior da
França.
O espetáculo não se reduz ao palco, aos comédiens11 e à arquibancada que
abriga a platéia. Ele se inicia assim que as pessoas penetram no enorme galpão do
SESC12 uma hora antes dos comédiens iniciarem as histórias, e dos espectadores
tomarem seus assentos.
À espera do público estão os 65 componentes da companhia. E é nesse enorme
lugar que a recepção, que antecede e prepara o momento do espetáculo, se dá. Uma
grande bancada expõe e vende livros, CDs e todo o tipo de material que inspirou e
contribuiu para a criação de cada peça; dividindo com o público os caminhos
percorridos. A refeição, momento comum aos integrantes da troupe, também está
presente. Misturam-se a essa bancada um bar e uma espécie de delicatesse, onde as
pessoas podiam adquirir bebidas e comidas e apreciá-las no grande refeitório
disponibilizado. Um enorme ritual preparado e organizado pelos integrantes do Théâtre
du Soleil, que permite ao espectador “um retardo apreciável”( OLIVEIRA, 2003, p.65)
proporcionado por essa experiência.
O palco também se encontra nesse mesmo espaço; é uma construção em
madeira que lembra uma enorme caixa. É necessário subir uma escada para se sentar
numa das duas arquibancadas que ladeiam o palco. Esse, uma pequena pista oblonga,
e a platéia observará as cenas do alto de seus lugares. No vão embaixo das 10 “Et soudain, des nuits d'éveil” — E de repente, noites em claro/despertas (tradução livre) — Nesse espetáculo Mnouchkine faz um trocadilho com a palavra éveil. Estar acordado: pois o espetáculo se passa durante uma vigília em prol dos tibetanos. E despertar, para as questões entre China e Tibet. O Espetáculo foi apresentado em dezembro de 1997, na Cartoucherie, e em Junho de1998 na tournée em Moscou (Festival Tchékov). (grifos nossos). Tradução nossa,. 11 A palavra francesa comédiens se refere a atores de teatro. 12 Os espaços para realização das apresentações do Théâtre du Soleil são sempre amplos, como o SESC Belenzinho, e transformados em em lugar de teatro; como na Cartucherie.
19
arquibancadas, ficam os camarins, abertos à curiosidade do público que compartilha do
processo de feitura do espetáculo, e acompanha a preparação final dos atores antes de
entrar em cena. O público é convidado a ser cúmplice nessa aventura. Singela relação
de convidado e anfitrião que prepara o espectador para a próxima surpresa.
O espetáculo “Les Ephémères” “fala de instantes.....do presente que não é mais
o presente no momento em que se diz a palavra presente. Talvez da beleza dos seres
e da dificuldade que nós temos em perceber essa beleza. E realizar o quanto aqueles
instantes foram belos, ah bem, eles já passaram.”13
As histórias são narradas em dois atos com duração de cerca de três horas cada.
“Les Ephémères”, as efemeridades, são como pedacinhos, dados aos poucos e sem
linearidade. Fragmentos de lembranças, de recordações de momentos que não estão
mais presentes, mas que voltam atualizados pela memória de cada um.
Entre o primeiro e o segundo ato há apenas um intervalo de poucos minutos. É
nesse momento que entra no palco um enorme carrinho de chá com água fresca e
biscoitinhos, ofertados ao público que desce até o palco. A relação de convidado e
anfitrião mais uma vez presente na idéia do espetáculo. A platéia vai ao palco, e nesse
breve intervalo se dá o encontro com o outro.
Permanecer num estado de imersão proporcionado pelo espetáculo do Théâtre
du Soleil, que nas palavras de Mnouchkine é “um espetáculo feito pelos instantes que
nos fizeram”, nos permite habitar a experiência, nos faz pertencer a esse tempo.
Habitar significa ocupar, morar, viver em, residir, estar, permanecer, coabitar
(FERREIRA, 2004, p.1019). Todos os sentidos da palavra habitar se relacionam com a
possibilidade de agenciamentos de espaços e tempos estabelecidos que envolvem
outras percepções da realidade e das relações entre pessoas e seus papéis na
sociedade. Estabeleço uma correspondência entre esses agenciamentos e as
13 Em francês: “un spectacle qui parle d’instants… Du présent qui n’est déjà plus le présent au moment où je vous dis le mot présent. Peut-être de la beauté des êtres et de la difficulté que nous avons à appréhender cette beauté. Et, lorsque nous réalisons parfois combien cet instant était beau, eh bien, il est déjà passé”. Palavras de Mnouchkine, Disponível em: < http://www.theatre-du-soleil.fr/ephemeres/tract-ephemeres-3.html >, acesso em 13.03.2008. Tradução nossa.
20
propostas de arte que visam à provocar outros acessos à realidade através de um
deslocamento na rotina de quem as experimenta.
Essa idéia de uma arte próxima ao cotidiano, próxima à vida começou a ser
gestada no início do século XX quando dois gestos, segundo a crítica e historiadora de
arte americana Barbara Rose, marcaram os limites das artes visuais: um, quando o
artista russo Kasemir Malevich em 1913 pintou um quadrado negro sobre uma
superfície branca identificando-o com o que ele chamou de “vazio” (suprematismo), e o
outro realizado em 1914 pelo artista francês, Marcel Duchamp, quando designou como
um objeto de arte um suporte de metal para garrafas (readymade). A renúncia de
ambos perante o modelo de arte vigente — o cubismo — levou a uma busca pelo
transcedental, universal e absoluto por Malevich, e ao repúdio à existência de valores
absolutos por Duchamp (ROSE, 2000).
A idéia de arte no Construtivismo Russo, bem como as práticas artísticas de
Marcel Duchamp, proporcionaram mudanças sobre o pensamento do que poderia ser
um trabalho de arte. Ao invés de uma arte contemplativa e de admiração estética, esse
novo modo de pensar e de produzir um trabalho de arte demandou novas maneiras de
mostrá-lo, tornando relevante a relação com a percepção física. Entrou em jogo o
ambiente e o espectador. As práticas artísticas do happening e da performance,
iniciadas nos anos de 1960, são herdeiras desses dois gestos, que continuam a ser
ampliados.
No Brasil, em 1960, o “objeto especial” (o não-objeto) proposto pelo movimento
Neoconcreto representou o caminho de ruptura com o “quadro convencional da
cultura”14. A eliminação da base ou da moldura nas obras tinha um sentido além do
sentido técnico, e trazia para a discussão a instauração do significado da obra em sua
pura aparência. Considerava-se a percepção estética uma possibilidade de reflexão
sobre a realidade e sobre suas propostas sínteses das “complexas experiências
humanas”. Segundo o poeta Ferreira Gullar15, os artistas neoconcretos “afirmam uma
objetividade mais profunda resultante da íntima integração das faculdades mentais e
14 Teoria do não-objeto In: COCCHIARALE, Fernando e GEIGER, Anna Bella (orgs). Abstracionismo Geométrico e Informal. A vanguarda Brasileira nos anos cinquenta. p.240 15 Para Ferreia Gullar, o movimento Concreto retirou a arte do “contexto significativo geral, a forma foi submetida ao exame de laboratório, analisada e desintegrada como uma partícula física” onde o homem foi excluído. GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea ed. São Paulo: Ed. Nobel, 1985. p. 244.
21
sensoriais do homem” (GULLAR, 1985, p.243). Artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica
e Lygia Pape, entre outros, radicalizaram suas proposições considerando arte “a
experiência artística”, questionando a necessidade da existência do objeto artístico em
si.
Identifico uma proximidade entre essas propostas de arte e a definição de
estética do filósofo francês Jacque Rancière. Ele a define “como o sistema das formas a
priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do
visível e do invisível, de palavra e de ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que
está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005, p.16). São
esses recortes de “tempos e espaços, do visível e do invisível, de palavra e de ruído”
(RANCIÈRE, 2005, p.16), que estão em causa na proposta de meu trabalho —
Desenho: Uma habitação no Tempo.
Ao longo da dissertação traçarei relações entre, minha biografia, a idéia de
pertencimento ao tempo presente e a história recente das artes. A repetição existente
nos meus trabalhos — e que pode proporcionar estímulos à ativação de memórias, que
por sua vez, agenciam temporalidades — servirá de liame para a argumentação de
percepção do tempo como habitação. Por vezes abusarei do recurso de descrever
acontecimentos, parecendo uma digressão à maneira do solo no Jazz – pequenas
divagações, patamares a serem percorridos na tentativa de habitar o texto com o leitor.
Assim fiz com minhas impressões sobre o espetáculo “Les Ephémères”. A cada
divagação buscarei elos entre os acontecimentos descritos e minha proposta de
investigação.
22
PRIMEIRO ATO
Repetição como tarefa: temporalidades possíveis.
Precisaríamos de mil vidas para experimentar mil vezes coisas já vividas e
seriam sempre experiências novas e diferentes...
Lygia Clark
Todo o enigma é uma porta para autobiografia
Helmut Batista
Decifrar será antes de tudo, participar de um saber, de uma linguagem
Roberto Corrêa dos Santos
Fig.1: 365 minutos Riscado e Apagado. Detalhe 1. 2002-2005
23
Em pé, de frente para a parede, com um bastão de grafite em punho risco, risco
novamente, risco mais uma vez. É a superfície do papel, preso com fita crepe à parede
que risco. Atinjo a parede, o gesto é largo, longo. Passaram-se quinze minutos e ainda
repito esses gestos. Impresso no papel está o grafite, tempo materializado de meus
gestos. Anoto no verso “15 min”. Nova folha de papel é presa à parede com fita crepe.
Risco, risco novamente e mais uma vez. Meu braço vai alto, um pouco acima de minha
cabeça, um gesto nos limites de minha estatura. Risco, risco, risco, passaram-se trinta
minutos e ainda repito esses gestos. Anoto no verso da folha de papel “30 min”. Meu
corpo se cansa, os movimentos com a repetição se mostram pouco confortáveis; faço
uma pausa e novamente recomeço. Depois de uma série de desenhos riscados em
diferentes tempos que vão de cinco minutos à uma hora, meus gestos agora apagam. A
borracha em punho, na parede um dos desenhos fixado com fita crepe, começo a
apagá-lo em gestos semelhantes ao de quando o risquei. Permaneço apagando pelo
mesmo tempo que risquei cada desenho. No chão as rebarbas de borracha, de brancas
passaram a cinzas. Recolho-as, armazeno-as. As fitas crepes que fixaram os papéis
recebem o mesmo tratamento: guardo-as. Nas mãos as marcas do desenho: grafite,
vermelhidão e bolhas. Desta vez fotográfo-as.
Figs. 2, 3 e 4: Mãos. Fotografia. 2000-2008.
24
As primeiras linhas desse capítulo desenham um acontecimento, fazendo-o
presente através do papel, da escrita de cada palavra e da tinta impressa. 365 minutos:
Riscado e Apagado é um desenho em dezesseis fragmentos que apresento organizado
em duas fileiras verticais com um pequeno cubo de vidro contendo as rebarbas de
borracha. É nesse momento que percebo a força vital implícita — que se quer explicita
— dos meus gestos repetidos ao desenhar. Sempre um gesto após o outro, uma tarefa
realizada repetidas vezes. Aqui a repetição é tarefa.
Algo semelhante parece ser também o que se passa no trabalho de Richard
Serra, “Mão agarrando chumbo”(1969). “Um filme de três minutos repetitivo, austero e
quase sem enredo” (KRAUSS, 2001, p. 291), no qual se vê a mão de Serra ocupando
quase por inteiro a tela, e em tentativas de agarrar peças de chumbo que caem
sucessivamente. Quando Serra obtém êxito sua mão permanece segurando a peça
apenas por poucos instantes para logo após recomeçar nova tentativa. O que norteia o
filme é a repetição do gesto dado a ver: a mão do artista se abrindo e fechando
ininterruptamente.
Fig. 5: Richard Serra Hand catching Leal. (1968).Grafação em 16mm,em preto e branco, com som.
210minutos. Bochum, Galeria Bochum. Fonte: RUHRBERG, Karl; SCHNECKENBURGER, Manfred; FRICKE,Christiane; HONNEF,Klaus. Arte del
Sieglo XX, vol.II. TASCHEN GmbH, 2005, p.606.
25
Rosalind Krauss aponta essa pulsação como sendo “a única pontuação da
sequência espaço-temporal do filme”, e continua, “um dos aspectos surpreendentes
desse filme é a sua incansável persistência — realizar uma tarefa repetidas vezes, sem
considerar o “sucesso” um clímax particular qualquer; simplesmente acrescentar uma
ação específica à seguinte” (KRAUSS, 2001, p. 292). Krauss localiza a maneira de
composição pela repetição (presente em algumas obras de Richard Serra do ano de
196916), como sendo herdeira das práticas artísticas do minimalismo17, nas quais a
nova ordem, nas palavras de Donald Judd, não era “racionalista e subjacente, mas é
simplesmente ordem, como a da continuidade: uma coisa depois da outra” (JUDD apud
KRAUSS, 2001, p. 292). Segundo Krauss, os artistas minimalistas “insistiam em
produzir obras que refutassem o caráter singular, privado inacessível da experiência”
(JUDD apud KRAUSS, 2001, p. 312). Desse modo, intencionavam que o significado
das obras viessem do seu exterior — espaço público e não privado. Cada obra se
referia a ela mesma, a nada além do que sua presença literal; e o modo como eram
apresentadas — instaladas nas paredes, diretamente no chão (sem pedestal) ou em
cantos — e sua escala, faziam com que o espectador ficasse atento a seu próprio
movimento dentro do espaço expositivo: a galeria ou o museu. Essas idéias foram
acompanhadas de amplo debate18 e incluíram, além de trabalhos em pintura e em
escultura, trabalhos de dança, música, literatura e design. Penso que Rosalind Krauss
aponta os gestos de Serra como sendo um alargamento dessas questões surgidas nas
práticas artísticas do início da década de 60. Tais práticas geraram experiências com
trabalhos híbridos, alguns ficaram conhecidos como happenings e performances.
As idéias de “realizar uma tarefa repetidas vezes” e “acrescentar uma ação
específica à seguinte” parecem possibilidades de experiência espaço-temporal. Minhas
16 Também desse período é a obra “Peça moldada”. Uma escultura em chumbo construída através do gesto repetitivo de jogar chumbo em estado líquido no espaço formado pelo encontro entre o chão e a parede. Após cada ação o chumbo, com a forma desse canto, é colocado, já em estado sólido, no centro da sala formando uma sequência de faixas que se sucedem e são muito parecidas.— um movimento contínuo — o resultado de gestos
repetitivos de lançar chumbo. 17 Os preceitos do Minimalismo que consideravam a obra nada além do que se vê, do que sua presença literal criticavam por um lado o expressionismo abstrato e sua relação com o emocional, o espontâneo e intuitivo, e por outro a pintura européia baseada em composições harmoniosas, pré estabelecidas, hierarquizadas e ilusionistas. 18 O desenvolvimento de revistas de arte em conjunto com um mercado de arte em expansão proporcionou uma grande quantidade de escritos de artista e da crítica, que foram responsáveis pela disseminação da discussão em torno da arte minimalista. Em especial a publicação do livro “Minimal Art: A Critical Anthology” de Gregory Battock, em 1968, considerado uma importante publicação sobre o assunto.
26
ações estão relacionadas a ocupar o espaço ao qual pertenço, habitando-o. Ações que
proporcionam um estímulo à reflexão sobre estar no mundo, baseadas em tarefas
singelas — gestos do meu cotidiano no atelier. Ao pensar em como transpor para a
dissertação a questão de repetição como tarefa, remeto-me aos desenhos, origem de
minha reflexão.
Procurava um gesto habitual em contraponto aos gestos escolhidos, ao
julgamento de cada movimento sobre o papel a ser desenhado. Passei a utilizar como
procedimento a queda do lápis (pela força da gravidade) sobre o papel. Das linhas
resultantes do embate do lápis grafite ao cair, percebi que o que me interessava era a
repetição. Passei a fazer linhas repetidas em sua superfície a partir de algumas regras:
prender a folha branca à parede de modo que meus gestos para traçar as linhas
fossem apenas como uma atividade habitual (levantar e abaixar o braço); e as linhas
em cada desenho deveriam ser feitas em tempos diferentes e pré-estabelecidos. Assim
surgiram os desenhos que originaram os trabalhos 24 horas e 365minutos: Riscado e
Apagado.
Aos poucos notei que meus gestos revelam meus movimentos, e estes podem
ser vistos como coreografias de minha ação. Performo os desenhos. A superfície que
abriga as linhas, nesse momento, passou a ser a parede e a imagem digital de uma
câmera fotográfica que, também filma. Converge para os desenhos a idéia de gestos
repetidos como uma coreografia. Essa relação com o movimento próximo de uma
concepção da dança, me levou à idéia de “Tarefa” da coreógrafa Ann Halprin, e ao
reconhecimento do procedimento da performance na realização de meus trabalhos.
Ann Halprin opunha-se ao discurso artístico da dança moderna que considerava
os movimentos do corpo a serviço de uma expressividade dos sentimentos. Em 1955
Halprin fundou o San Francisco Workshop19, um espaço de experimentação no qual ela
19 Entre seus alunos estavam: Meredith Monk, Trisha Brown, Yvonne Rainer, Simone Forti, Ruth Emmerson, Sally Gross entre outros, alguns se envolveram com o grupo experimental e progressivo Judson Church Group. No espaço criado por Halprin muitos foram os que compartilharam de suas experiências, como os coreógrafos Merce Cunningham, Eiko and Koma, e Min Tanaka, os compositores John Cage, Luciano Berio, Terry Riley, LeMonte
27
diz “querer encontrar atividades para dançarinos que mudassem seus processos
mentais, utilizar uma tarefa e a modificar de um modo artístico”20. Instituindo, como
procedimento para sua pesquisa, a idéia de tarefas cotidianas (everyday tasks) como
balançar, andar, cair, engatinhar, varrer, entre outras. Tal pensamento ia ao encontro
com a efervescência das práticas artísticas híbridas das experiências no campo da arte
nas décadas de 60 e 70, e que utilizaram a noção de tarefa (apesar de não se referirem
ao termo). Tal noção estava em consonância com o pensamento de arte voltado para
uma oposição à idéia de arte relacionada com o emocional e intuitivo ou pré-
estabelecido e hierarquizado. Interessando-se por ações cotidianas e simples do corpo,
e pela inclusão do acaso, os artistas desse período aproximavam arte e vida.
Allan Kaprow escreveu, em 1971, os textos: A educação do An-Artista I e II
pontuando essa relação. Diz Kaprow, que o an-artista não faz nada que lembre uma
obra de arte mas sim, o que ele chamou de lifelike art, ressaltando a natureza
esgarçada e fluída da fronteira entre arte e vida. Assim diz: “O an-artista não faz arte
real, mas o que chamo de arte como a vida — lifelike art — arte que nos faz
principalmente lembrar de nossas vidas” (KAPROW, 2004, p. 167). Kaprow realizava
ações chamadas Activities nas quais a idéia de tarefa pode ser reconhecida. Nas
Activities ou Atividades (as quais me parecem ser as tarefas), o artista propunha uma
série de ações relacionadas ao cotidiano para serem performadas pelos participantes.
Estas atividades poderiam ser individuais ou em grupo. Sempre de modo repetitivo e de
acordo com a sequência sugerida por Kaprow.
Rosalind Krauss considera os Happenings, que utilizavam como procedimento o
uso repetitivo de materais ou movimentos, aliados à “dança que se desenvolvia
simultaneamente, a partir das coreografias de Merce Cunningham21, em que se
verificava uma crescente insistência na coisificação do movimento” (KRAUSS, 2001, p.
282). A Nova Dança (ou como ficou conhecida: dança pós-moderna), os Happenings,
Young, e Morton Subotnick, os artistas visuais Robert Morris e Robert Whiteman e poetas como Richard Brautigan, James Broughton, e Michael McClure; dentre muitos outros. Disponível em: <http://www.annahalprin.org/about_bio.html> Acesso em 30.11.2008 20 O texto em língua estrangeira é: “I wanted to find activities for dancers to do to shift their mental process, to take a task and modify it by shaping it artistically". Disponível em: http://www.marinij.com/ci_8454742?source=most_emailed Acesso em 30.11.2008. Tradução nossa. 21 Merce Cunningham participou de experiências com Ann Halprin. Compartilhava da mesma necessidade de rejeitar a experssividade emocional exercida na dança moderna.
28
as Activities e as Performances preocupavam-se com a idéia de uma arte baseada na
exterioridade dos acontecimentos — sua experiência.
Segundo Richard Schechner:
“Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas. são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar”22.
Percebo uma relação entre a idéia de Schechner de “comportamento
duplamente exercido”, “comportamentos restaurados”, e a idéia reminiscente do
minimalismo, nas considerações de Rosalind Krauss, de “coisificação do movimento”23.
Para Schechner, nossas ações nos são familiares porque as construímos a partir da
repetição — ações previamente exercidas. Schechner diz que a redundância das ações
possui a “qualidade de ação construída a partir de pedaços de comportamentos,
rearranjados e modelados de modo a produzir um efeito determinado”24. A “coisificação
do movimento” me parece estar relacionada aos rearranjos dos movimentos do corpo
pela repetição e que se dá no ambiente performativo com intenção de gerar uma nova
atenção para os movimentos cotidianos e elementares do corpo.
Nos meus desenhos considero as ações no âmbito da coisificação do movimento
e do treino para desempenhar um gesto, que implica num ensaiar e repetir. Na tentativa
de “coisificar o movimento” opto por gestos simples do meu fazer no atelier, gestos
ligados ao fazer cotidiano. Uma possibilidade de arte, como diz Kaprow, lembrando a
vida não sendo ela. Penso que tal proposição se estabeleça numa tênue fronteira entre
arte e vida. Kaprow sugere que esta fronteira se avizinhe de uma relação ritualística
existente na vida ordinária. Arte-vida-ritual.
Richard Schechner, aponta essa relação ao escrever que a arte de Kaprow
“sublinha e destaca comportamentos ordinários com sutileza — conduzindo a atenção
22 SCHECHNER, Richard. O que é performance. Disponível em: < http://hemi.nyu.edu/course-rio/perfconq04/materials/text/OqueePerformance_Schechner.htm > Acesso em 17 de novembro de 2008 23 Penso que essa expressão de Rosalind Krauss é atribuída, pela autora, à uma herança do minimalismo pelo fato de se interessar pela exterioridade da experiência, em consonância com a exterioridade do objeto minimalista. 24 SCHECHNER, Richard. O que é performance. Disponível em: < http://hemi.nyu.edu/course-rio/perfconq04/materials/text/OqueePerformance_Schechner.htm > Acesso em 17 de novembro de 2008
29
para o modo como uma refeição é preparada, ou observando as pegadas deixadas por
alguém ao caminhar no deserto”. E continua:
Prestar atenção em ações simples, performadas no momento presente, é desenvolver uma consciência Zen em relação ao que é comum e honrar o que é ordinário. Honrar o que é ordinário é observar quão ritualística é a vida diária, e o quanto esta é constituída de repetições. Não há nenhuma ação humana que possa ser classificada como um comportamento exercido uma única vez25.
Ao ritualístico da vida aproximo a idéia de tempo como demora, como duração —
sua experienciação —, e o associo (o ritualístico da vida) à idéia de ato e de ação nas
práticas artísticas dos anos de 1960. Segundo Fernando Gerheim, escritor e professor
de literatura e cinema, nessas práticas a idéia do ato é “dar à imediaticidade, tão
valorizada pela modernidade, o estatuto de uma experiência transformadora,
substituindo o choque pela durée” (GERHEIM, 2008, p.54). Integração da palavra no
ato, que transponho para a relação arte-vida-ritual. Gerheim continua: “a linguagem
reencontra sua materialidade na arte e faz convergir conceito e percepção” (GERHEIM,
2008, p.44). Idéia que penso ter ressonância com a presença da relação signo e
pensamento no caligrama, apontada por Foucault.
“o caligrama aloja os enunciados no espaço da figura, e faz dizer ao texto aquilo que o desenho representa. [...] “Por astúcia ou impotência, pouco importa, o caligrama não diz e não representa nunca no mesmo momento; essa mesma coisa que se vê e se lê é matada na visão, mascarada na leitura.”(FOUCAULT, 1988, p.22 e 27) .
25 SCHECHNER, Richard. O que é performance. Disponível em: < http://hemi.nyu.edu/course-rio/perfconq04/materials/text/OqueePerformance_Schechner.htm > Acesso em 17 de novembro de 2008
30
Figs 6,7 e 8: DESENHOPÓGRAFITE. Stills do filme, duração 4 minutos. 2007.
Desenhopógrafite é uma série de desenhos acompanhada por um vídeo, no qual
coleto o pó de grafite — resíduo de um desenho anterior — que depois será utilizado
para imprimir marcas de meu corpo na superfície do papel. Os desenhos e o vídeo
sendo um só. Gestos que recolhem o que restou de gestos anteriores para depositar no
papel o grafite, presentificando o corpo do qual os gestos se originaram.
Figs. 9 e 10: Vistas da Instalação DESENHOPÓGRAFITE. Desenhos e vídeo. Galeria 2 do Espaço FURNAS Cultural. 2008
Performance privada. Performo sozinha, acompanhada apenas por quem filma;
gestos realizados em uma atmosfera próxima à meditação, à oração. Repetidas ações
singelas, envolvendo um cuidar: recolher as sobras, armazená-las, utilizá-las em novas
produções. Tentativa de proporcionar outras camadas de percepção do ordinário,
outros acessos ao cotidiano através de “uma temporalidade dos mínimos” como diz
Guilherme Bueno:
“Os desenhos de Nena Balthar apropriam-se da fugacidade, surgem da colheita das perdas. Brotam dos resíduos oriundos de desenhos performáticos feitos pela artista, as impressões aqui expostas reinvestem aqueles fantasmas de sua força, como se eles
31
contivessem ainda o calor do atrito outrora havido contra seus predecessores (os desenhos feitos em parede). Trata-se do processo do processo do processo..., criando uma temporalidade dos mínimos”(BUENO, 2008, p.6).
Penso a performance de uma maneira ampliada, relacionada ao processo do
processo, à estratos do tempo. Por isso a idéia de desenhos e vídeos como um só
trabalho. Regina Mellin, em tentativa de uma definição possível de performance nas
artes visuais, lembra o sentido das etapas que a constitui para além do caráter redutor
de simples registros dos procedimentos (fotografias, vídeos, desenhos ou textos)
levados em conta nas performances. Essas etapas ou camadas são parte do
acontecimento, “tornam-se elementos constitutivos da obra, materialização de um
procedimento temporal oferecido à recepção.”(MELLIN, 2008, p.65)
Lido com camadas, com percepções das “temporalidades dos mínimos”, da
duração, do ritualístico da vida, do auto-conhecimento —concentração em nós
mesmos. Considero o público determinante e polarizador do espaço, implicando em sua
percepção (tempo). Performar tornou-se estratégia de investigação26 na proposta de
habitar o tempo. Funciona como frestas, intervalos ou aberturas; como outros acessos
à realidade. Possibilidades de lidarmos com o caráter dual da cultura ocidental a partir
da idéia de complementaridade, pondo em jogo um ponto de torção, um lugar de
intensidades entre opostos ao invés de considerá-los pares estanques. Permitindo-nos
habitarmos entre, e não em lados opostos unilaterais.
Percebo na idéia de bordas, de margem, e de extremidades dos trabalhos de
Eva Hesse, apontada por Rosalind Krauss (KRAUSS, 2000), correspondência com a
possibilidade de ocuparmos lugares de intensidades — intervalos.
26 Schechner sugere que a performance pode ser vista como um procedimento para investigação “Tratar qualquer objeto, obra ou produto como performance — uma pintura, um romance, um sapato, ou qualquer outra coisa — significa investigar o que esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres. Performances existem apenas como ações, interações e relacionamentos.“ SCHECHNER, Richard http://hemi.nyu.edu/courserio/perfconq04/materials/text/OqueePerformance_Schechner.htm Acesso em 2.12.2008.
32
Eva Hesse morreu aos 34 anos. Na sua curta vida, a artista deixou uma obra
grandiosa e comovente. Observo em seus trabalhos muito do discurso minimalista27
que é relacionado a uma arte esvaziada e ligada ao seu exterior, e a conceitos de
repetição, de ordem serial, de estrutura, de austeridade, de monumentalidade, de
literalidade. O que é esperado de alguém que considerou, segundo Rosalind Krauss,
arte e, consequentemente, sua produção conectada em alto grau ao discurso estético
dos anos de 1960 (KRAUSS, 2000, p. 94). Tal conexão caracterizou, nas palavras de
Krauss, sua obra como paradoxal. Na medida em que ela (a obra) é carregada de uma
busca de si, um reconhecimento de si no mundo, impregnando de expressividade sua
produção. Aparentemente o oposto do discurso minimalista. Mas tal expressionismo
provém de um experiência do self (interior), imprimindo sua imagem no coração da
matéria (exterioridade)28. Expressionismo manifestado pela experiência da própria
matéria. E aí reside um de seus paradoxos. O que Hesse faz me parece ser uma torção
conceitual: da matéria ser apenas o que é (do discurso minimalista) para o que nela
reside de expressivo, sem no entanto, apelar para ilusionismos ou representação de
algo que não está ali. Uma torção, uma zona de intensidades no diálogo formalista do
Minimalismo através da mensagem do expressionismo. Rosalind Krauss considera a
obra Contingent emblemática da grandiosidade do legado de Hesse, pois tornou pública
uma experiência interior — uma declaração para o mundo da arte do poder expressivo
da matéria ela mesma (KRAUSS, 2000, p. 92).
27 O Minimalismo surgiu na década de 1960 em contraponto ao pensamento de arte como sendo algo pessoal, metafórico e ilusionista. 28 Catherine de Zegher diz que a experiência de vida, de Eva Hesse, ligada a um sentimento crescente de abandono, influenciou vários aspectos de sua obra, estruturando-a (a obra) a partir do esquema de um triangulo cujas bases são: processo/conteúdo/materialidade. ZEGHER, Catherine. Eva Hesse Drawing. ed. New Haven and London. Ed. Yale University Press. The Drawing Center. New York, 2006 p.59 e 60.
33
Fig. 11: Eva Hesse Contingent. (1969). Fibra de vidro, resina e látex sobre gaze. 350 x 100, H: 320 x 94 (cm)
National Gallery of Australia, Canberra. Fonte: Disponível em < http://www.evahesse.com/home.php > Acesso em 8 Jan 2009
Contingent é feita de oito peças semelhantes a bandeiras, penduradas no teto do
espaço expositivo. Cada peça é feita de um grande retângulo de tecido (um tipo de
34
gaze) coberto com látex e fibra de vidro. Montadas penduradas paralelas umas às
outras e de modo a fazer um ângulo reto em relação à parede.
Para Rosalind Krauss um dos fatores de Contingent ser grandioso, está no fato
da obra se situar entre pintura e escultura, ponto de intensidades entre dois meios.
Krauss afirma que a obra de Eva Hesse, em geral, trata de um jogo de velamento e
desvelamento, um eclipse em constante mobilidade, das convenções ou
institucionalizações, da pintura e da escultura como modalidades de experiência
separadas. Krauss nos lembra a prática da anamorfose comum nos séculos XVI e XVII
(procedimento para se obter resultado semelhante — eclipse do sistema visual) para
argumentar sobre a característica de duplicidade de percepção nessa prática e na obra
de Hesse. Na anamorfose o espectador só consegue desvelar o elemento velado ao se
deslocar da frontalidade da pintura, e observá-la pela sua extremidade. Em Contingent
não se trata de anamorfismo, mas, de uma certa maneira, da natureza de uma torção
(que Rosalind Kraus identificou como sendo a dupla perspectiva). Eva Hesse nos
oferece uma experiência de percepção em constante troca, permutável. A posição das
peças em ângulos de 90° com a parede nos permite perceber uma fileira de planos (por
suas bordas) que literalmente ocupam o espaço — experiência de um objeto no espaço
em que se encontra o espectador. Porém, à medida que nos movemos, também
experimentamos a superfície de seus retângulos, sua cor e sua transparência
oferecidas pelo material (látex e fibra de vidro sobre gaze) — uma experiência
relacionada ao campo da pintura. Pelas características descritas sobre a obra
Contigent, percebe-se que não se trata de uma escultura nem de uma pintura. O
trabalho se refere, a meu ver, a bordas: das superfícies e dos meios. Questionando e
movendo o discurso estético do qual Hesse dizia depender sua arte — o minimalismo
—, sua obra antecipa a hibridização de meios, tão comum atualmente. Atravessa
fronteiras, unindo espaço real e espaço da obra. Como disse Lucy Lippard: “Hesse
35
pega exatamente o que ela precisa da arte ao seu redor, a transforma, e a retorna ao
mundo da arte.”29
Contingent se refere a intervalos, a frestas. O jogo de velamento e desvelamento
ao qual a obra de Hesse diz respeito parece ser a possibilidade de habitar entre. Um
aprendizado do mundo e o que sua materialidade tem a nos dizer.
No pensamento de Hesse me interessa a idéia de usar o material a partir do que
a matéria oferece, descobrir significados intrínsecos à ela. Catherine de Zegher, no
ensaio “Drawing as Binding/Bandage/Bondage or Eva Hesse caught in the triangle of
Process/Content/Materiality”30 refere-se à obra de Hesse como ligada ao território do
desenho. Hesse se diz confortável ao desenhar. São áreas que vão do linear a
complexas aguadas ou colagens, nada muito simplista. Não interessa, diz a artista,
levar esses desenhos para a tela ou transferi-los para escalas maiores. Para Hesse
essa operação não é natural, a artista pensa em transpô-los de outro modo. Passa a
utilizar cordas de espessuras e comprimentos variados associadas a materiais macios.
Uma postura de investigação e experimentação que a levará a perceber questões de
cor e transparência vindas da própria matéria e permitir que a matéria tome forma. O
que Zegher considerou um procedimento semelhante ao do discurso do
Expressionismo Abstrato (ZEGHER, 2006, p. 88). Um dos paradoxos de Hesse: jogo de
aparecimento e desaparecimento entre o discurso estético minimalista e o do
expressionismo abstrato.
Volto à questão da fresta, do intervalo, da torção para pensar nos opostos não
como pares estanques, mas como campos de entre fluxos, continuidades e
intensidades. Experimentação do mundo a partir da sua complementaridade. Nesse
sentido (o da complementaridade) utilizo o resíduo como material e o aproximo do
procedimento de Eva Hesse em considerar o que a própria matéria tem de expressivo
29 O texto em língua estrangeira é: “As Lucy Lippard wrote, Hesse 'took exactly what she needed from the art around her, transformed it, and gave it back to the art world'. No site: <http://www.tate.org.uk/magazine/issue2/hesse.htm> Acessado em 03.01.2009. 30 O trecho correspondente na tradução é: “Desenho como amarrados/enfaixados/elos ou Eva Hesse capturada pelo triangulo do Processo/significados/materialidade”. Tradução nossa.
36
— aquilo que Rosalind Krauss diz sobre Contingent: “uma declaração para o mundo da
arte do poder expressivo da matéria ela mesma” (KRAUSS, 2000, p. 92).
Poder escutar o material, aguardar o tempo suficiente para gestar um trabalho,
de certa maneira “permitir que a matéria tome forma”. Na repetição de gestos, na coleta
do pó de grafite — este sendo só pó, só grafite — ou no armazenar das fitas crepes e
rebarbas da borracha, aguardo, me deixo observar e observo o que o material — sua
materialidade — tem a me dizer. Roberto Corrêa dos Santos transpôs em palavras o
que parece ser meu embate com a matéria.
“Neste ofício, natural e humano, como em todo rigoroso rito, é pulsional o gesto de recolher as sobras, de guardá-las respeitosamente, de esperar de maneira tranqüila e como se distraídos todos, o tempo de reativar naqueles diminutos materiais restantes sua ardência sagrada, sua tarefa de religar” (SANTOS, 2008, p. 2)
Considero a obra Respiração uma metáfora da idéia de me colocar entre o que é
a obra e o que poderá vir a ser obra. Resíduos de produções anteriores.
Foi durante o curso do mestrado: “Cartas de artista: perspectivas sobre
processos de criação”, com a professora Malu Fatorelli, que realizei o trabalho
Respiração. O curso teve como norte textos de artistas e propostas de trabalho —
problem sets31. As propostas eram apresentadas a cada 15 dias intercaladas aos
escritos dos artistas, que se tornaram o meio pelo qual pensávamos e trabalhávamos.
Na proposta “Frestas Intervalos e Espaçamentos”, encontrei ressonância com o
pensamento sobre lugares de passagem, de trânsito, de outras temporalidades que
impulsionam minha prática artística. A eles (os lugares de passagem, de trânsitos e
outras temporalidades) relaciono o coro grego32 (entre acontecimento de arte e
acontecimento da realidade)33; e os meus gestos que se repetem, sempre começando
outra vez. Coro e gestos repetidos transitam entre um lugar e outro, entre uma
percepção e outra. Estimulam o habitar um entre espaço-tempo, por uma ponte, porta, 31 Termo usado por Rosalind Krauss em texto sobre a produção da artista americana Francesca Woodman no livro Bachelors. 32 O filósofo, Friedrich Nietzsche, diz que os gregos construíram para o coro um lugar/espaço fingidamente natural e colocou nele seres, também, fingidamente naturais, ficando assim desobrigados de “efetuar uma penosa retratação servil da realidade” e acrescenta “A introdução do coro é o passo decisivo pelo qual se declara aberta e lealmente guerra a todo e qualquer naturalismo na arte”. Reconheço nesse fim “ao naturalismo na arte” do qual fala Nietzche, uma aproximação com a vida sem ser ela. NIETZSCHE, Friedrich. In: O Nascimento da Tragédia. Companhias das Letras, São Paulo, 2006.p.54. 33 Faço referência ao coro grego, também, no Prólogo e Segundo Ato ao trazer para minhas investigações as experiências artísticas do espetáculo “Les Ephemères” da companhia teatral Theatre du Soleil.
37
túnel ou imaginação. Passar de um dentro para um fora, voltar para o dentro e sair
novamente; ou pertencer a territórios desiguais mantendo fluidez no pertencimento.
Fig 12 e 13: Detalhes da Instalação Respiração. Fita crepe e grafite. Galeria do atelier do Instituto de Arte da UERJ, 2007.
Inspirar, expirar, inspirar, expirar: Respiração. Minha história tem forte relação
com os pulmões (estive, por duas vezes, com os pulmões expostos numa sala de
cirurgia e hoje carrego no lóbulo esquerdo dois “grampos”). A respiração, entrada e
saída de ar num constante ir e vir, tem relação com marcações e ritmo, sonoridade34.
Uma ação específica após a seguinte: respirar. O ar ocupa ambos os espaços – interior
e exterior – numa cadência ininterrupta e involuntária. Ele habita entre espaços-tempos.
O imperceptível, o invisível — o intervalo — norteiam minha pesquisa. É sabido
que toda a produção de algo implica no que não é a coisa produzida. Utilizo as sobras,
o que é resíduo, resto, e conseqüentemente o que não serve mais, o que não se vê.
Considero a sobra como material para novas produções. A força do resíduo gera a
memória que invento. As fitas crepes utilizadas para fixar o papel que desenhei foram
coletadas e armazenadas. Elas me observavam, tinham algo a me dizer. Nas fitas
havia, em grafite, a presença dos gestos do desenho que não estão nelas. Metáfora
34 No meu trabalho incorporo o som e o ritmo como parte dos movimentos repetidos. São camadas constituintes do trabalho.
38
das frestas, dos intervalos e dos espaçamentos. Ao montar o trabalho no atelier, uma
frágil seqüência de fitas presas por tachinhas (quase “grampos”) na parede, mais um
elemento foi incorporado ao trabalho. O vento, que delicadamente transitava entre as
fitas.
Quando criança, frequentemente ao deitar para dormir, gostava de imaginar que
existiam “cópias” de eu mesma. Cada “cópia” percorria lugares na duração de um dia.
Eram experiências imaginadas para cada uma, distintas e mirabolantes. Coisas que
não poderia experimentar sendo uma única pessoa. Após a jornada diária as “cópias”
regressavam para a matriz — eu — no momento em que ia para cama e, antes que
meus olhos cedessem a Morfeu, todas as experiências colecionadas eram em mim
depositadas, assim o desejo pela multiplicidade se realizava – pelo menos em
imaginação. Ficava olhando para o teto e me deliciando com as narrativas inventadas,
diferentes aventuras de cada uma de eu mesma.
Hoje reconheço em minha trajetória de artista e de vida uma ressonância das
imaginações na infância. Minha formação é em gravura — matrizes e cópias seu
universo — a repetição a metáfora de minhas inquietações, de meu pensamento.
Repetição que implica em multiplicidades: patamares, estratos temporais. Alternativa ao
choque, à manutenção de estado de alerta da consciência e da memória, ambas sem
condição de acompanhar a velocidade das informações, e à velocidade das
experiências pelo excesso de informação, que parece ter como consequência o
esvaziamento da memória em benefício de uma integridade da consciência.
Penso a proposta “Desenho: Uma Habitação no Tempo” como desvio ou
resistência aos excessos da contemporaneidade. Sendo a habitação no tempo uma
experiência de demora, reflexão, não informação: “descanso” para consciência e
alimento para a memória.
39
“Devario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário”(BORGES, 1972, p s/nº).
“A técnica de narração oral na tradição popular obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis mas insiste nas repetições [...]”(CALVINO, 2002, p. 49).
A idéia de resumo ou comentário em Borges e a de repetição em Calvino,
parecem se referir ao que não é excesso, que para mim é a idéia de uma demora, de
um pertencimento ao tempo que se vive.
A reflexão sobre o tempo me faz lembrar o conto O Jardim de Caminhos que se
Bifurcam de Jorge Luis Borges. O conto narra a história de um chinês, espião da
Alemanha a serviço na Inglaterra, no decorrer de um dia. Descoberto pelo Capitão
Inglês Richard Madden, que passou a persegui-lo, o chinês começou a planejar
maneiras de revelar ao exército alemão (antes de sua captura ou morte) o segredo que
ele conhece: onde se localizava o novo parque britânico de artilharia sobre o Ancre.
Seu plano era fazer “ouvir” na Alemanha o nome dessa localidade. Para que isso
ocorresse planeja o assassinato de uma pessoa com o mesmo nome do lugar,
acreditando que será notícia no mundo e que seu chefe decifrará a informação. No
encontro com sua vítima, o espião fica sabendo que ela é um sinólogo inglês envolvido
nos estudos da obra do sábio chinês Ts`ui Pen. Esse era antepassado do espião chinês
e se dedicara a escrever um romance e a construir um labirinto; mas sua obra,
interrompida tragicamente, permaneceu um enigma que parece ter sido decifrado pelo
sinólogo Albert. No breve diálogo entre a vítima e o seu algoz, Borges nos surpreende
com a idéia de um invisível labirinto do tempo escondido dentro do romance — um
labirinto de signos — que conhecemos através das palavras do personagem Albert
quando se refere ao pensamento de Ts`ui Pen:
“Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades” (BORGES, 1972, p. 107- 108).
40
Argumentar a proposta de demora como possíveis experiências espaço-
temporal, de demora como o contrário do excesso, implica em um mundo disposto em
fragmentos, fluxo de idéias, memórias, acontecimentos simultâneos, co-presenças
temporais e coleção de saberes onde signo e pensamento se intercomunicam. A arte
proporciona esta intercomunicação e penso existir, em algumas propostas artísticas, a
possibilidade de experimentar diferentes temporalidades.
Noto nas propostas artísticas de Lygia Clark interesse em proporcionar ao
espectador uma experiência espaço-temporal; as quais reconheço como experiências
de pertencimento a seu tempo. A artista considerou o espectador como parte
constituinte de sua obra, principalmente suas ações (participação). Penso no trabalho
Caminhando como a síntese de suas proposições. Neste trabalho Clark propõe ao
espectador-participante fazer com uma faixa de papel branca uma fita de Moebius35
para, a partir da largura da fita, cortá-la sempre seguindo o sentido do comprimento.
35 A Fita de Moebius é um objeto da matemática, que foi estudado no século XIX pelo matemático August Ferdinand Möbius. A importância desse estudo, na época (1858) está relacionada a conceitos de orientabilidade. Informação disponível em: < http://conceitoaronaldo.blogspot.com/2009/01/o-que-uma-fita-de-moebius.html > Acesso em 16.01.2009.
41
Figs. 14, 15 16 e 17: Lygia Clark. Caminhando. 1963
Fonte: Catálogo da exposição Lygia Clark na Fundação Antoni Tàpies de Barcelona. 1997. P. 148
e 149.
42
“O Caminhando tem todas as possibilidades ligadas à ação em si: ele permite a
escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento
concreto” (CLARK, 1997, p. 151). Lygia Clark atribui ao ato realizado pelo participante
ao cortar a fita uma importância absoluta. A obra é o ato em si. “Essa noção de escolha
é decisiva e nela reside o único sentido dessa experiência” (CLARK, 1997, p. 151).
O labirinto de signos do conto de Borges, como o escritor sugere, faz entrar em
jogo “todas as possibilidades” temporais, que identifico estar em jogo, também, em
Caminhando. Clark escolhe a fita de Moebius para essa proposição, por causa de suas
características. A fita não contém lado de dentro nem lado de fora, nem início nem fim;
“[...]ela quebra nossos hábitos espaciais: direita esquerda, anverso reverso, etc. Ela nos
faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (CLARK,
1997, p. 151). Atribuo a essa experiência o sentido de inconclusividade, sentido da
natureza ensaística do pensamento36. Borges nos sugere escolhas nos caminhos
bifurcados concretizados no corpo do texto do conto. Vivemos as experiências através
dos personagens do romance do sábio chinês Ts`ui Pen. Experimentamos com eles
“um tempo sem limites e um espaço contínuo” a partir da idéia de que “[...] todos os
desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações”,(BORGES,
1972, p.105) indicando uma continuidade sem fim.
36 Referência, já mencionada, à natureza ensaística do pensamento na acepção de Márcio Tavares DAmaral. Ver pág. 10 do prólogo.
43
Fgs 18 e 19 e 20. Vista da Instalação Camadas. DVD e grafite. Galeria do atelier do Instituto de Arte da
UERJ, 2008.
44
Camadas é um desenho performático. Adentro o espaço expositivo e utilizo o
procedimento de riscar na parede escolhida, com gestos repetidos, as linhas em grafite
que consistirão o desenho. Este tem minha estatura como referência, risco erguendo os
braços e abaixando-me energicamente, risco em direção ao canto direito para voltar
riscando em direção ao canto esquerdo da sala. Coreografia horizontal a partir de
gestos verticais realizada sucessivamente. Permaneço longas horas riscando linhas
suficientes para gerar uma camada espessa de grafite na superfície da parede. Suor,
cansaço, fadiga muscular: lesões por esforço repetitivo. O corpo afetado pelo desenho
sofre — desenhar dói. Tais movimentos são capturados pela filmadora para serem
projetados sobre o desenho feito na parede com um pequeno deslocamento. A
superposição de gestos, linhas e imagens reverberam temporalidades. A coreografia
surgida da realização das linhas, o som provindo do bastão de grafite ao golpear a
parede são elementos constituintes da obra. Um fazer e fazer sem fim, atualizando a
atitude inaugural de riscar a parede.
Camadas promove uma percepção de continuidade, de processo, de
temporalidades; um jogo de velar e desvelar entre realidade (o desenho na parede) e
virtualidade (a projeção das imagens dos movimentos e gestos que geraram o desenho
na parede), no qual o som do bastão de grafite ao riscar a parede, juntos às imagens,
preenche o espaço envolvendo o espectador.
Fig. 21: Vista da Instalação Camadas. DVD e grafite. Galeria do atelier do Instituto de Arte da UERJ, 2008
45
Estou conectada a um fazer, a uma ação: desenhar. Nesse momento desenho
palavras, frases que vão tomando a forma de uma tese. Intenção de realizar a
dissertação em forma de ensaio37: experienciação, repetição como possibilidade de
começar sempre — atitude inaugural. Penso nas palavras de Jean-Luc Godard ao falar
de sua obra cinematográfica: “Considero-me um ensaísta. E faço ensaios em forma de
romances, ou romances em forma de ensaios: simplesmente em vez de escrevê-los, eu
os filmo.” (GODARD apud DUBOIS, 2004, p. 259).
Segundo Philippe Dubois a contaminação generalizada entre os campos da
filosofia, da pintura, da literatura, da música, e do próprio cinema na produção de
Godard, foi proporcionada pela tecnologia do vídeo. A imagem “ao vivo” e modulada
desta tecnologia permitiu levar ao extremo a relação ensaística com a imagem, tão cara
ao cineasta. Dubois diz: “no calor da hora, ele experimenta o pensamento visual
instantâneo, o olhar reflexivo, a escrita pela imagem; ele manipula, inscreve, escruta,
combina, recomeça, apaga, acrescenta, rumina, precisa, desloca” (DUBOIS, 2004, p.
281 e 282). Assistir a um filme de Godard é como se pudéssemos ter o privilégio de,
por alguns momentos, acessar o interior de seu pensamento no momento em que se
constitui pelo acúmulo de imagens e sons, memória e futuros possíveis. Um
pensamento estético, e que como tal, pode ser visto como uma promessa que não se
realiza, como o direcionamento a uma idéia que não se conclui, que está sempre aberta
a novas re-configurações.
Para Godard “a continuidade é muito ampla entre todas as maneiras de se
exprimir. Tudo forma um bloco” ((GODARD apud DUBOIS, 2004, p. 259). O cineasta
trabalha seus filmes, onde os domínios da literatura, da escultura, da pintura, do
cinema, da TV, do vídeo e da música, fazem parte desse “bloco” ao mesmo tempo
cerebral e sensorial. Godard, ao tratar as imagens sem ordem de valor e além do
domínio da visão, me parece atuar como o “novo arquivista” deleuziano 38. Atêm-se aos
enunciados e, de uma maneira móvel, sem relação de hierarquia vertical ou dialética
horizontal, põe em relação o material discursivo com o material não-discursivo.
37 Mencinoada no prólogo. 38 Sobre a noção de “novo arquivista” diz Deleuze: “Ele vai negligenciar a hierarquia vertical das proposições, que se dispõem umas sobre as outras, e também a lateralidade das frases, onde cada uma parece responder a outra. Móvel, ele se instalará numa espécie de diagonal, que tornará legível o que não podia ser apreendido de nenhum outro lugar, precisamente os enunciados.” DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo Ed. Brasiliense, 2005,p.13 e 14.
46
Ao escrever sobre um dos “ensaios” de Godard para TV — Seis Vezes Dois —
Deleuze aponta a importância da conjunção e no pensamento do cineasta: “O que
conta para ele não é o 2 ou o 3, ou sei lá quanto, é o E, a conjunção E. O uso do E em
Godard é essencial” (DELEUZE, 2004, p. 59). Deleuze ao apontar como essencial a
conjunção e para Godard, parece considerar que sua obra (de Godard) permite a
percepção de pares aparentemente opostos como sendo complementares, fluídos,
permeáveis e que ao invés de Godard trabalhar só com imagem, ou só com texto, ou
só com cinema ele utiliza arbitrariamente39 todos os domínios do conhecimento.
Noto o mesmo interesse na idéia, do artista Ricardo Basbaum, de pensar a
possibilidade do que está além do visual, “mais-que-visual”40, na medida em que o
campo da visualidade se torna permeável a outros domínios que não só o da
visibilidade, permitindo uma relação com a realidade a partir da sua
complementaridade.
A tentativa de digressão intencionada nessa dissertação se quer à maneira do
“novo arquivista”. Capaz de ressoar campos outrora distintos, conectando
conhecimentos, fazendo questão do e, do “mais-que-visual”; à maneira “ensaística,
aleatória, livre e ao mesmo tempo existencialmente comprometida” (D`AMARAL, 1995,
p.9 e 10) do pensamento.
O recurso do vídeo no meu trabalho opera agenciamentos temporais: diferentes
camadas entram em contato e geram outras relações. Relações conectadas à
“Imagem-Tempo” deleuziana.
Deleuze nos diz sobre dois regimes da imagem: o orgânico, que é a imagem em
movimento e se constitui de uma organização com cortes racionais que obedecem a
um encadeamento, “e que projeta ele mesmo um modelo de verdade” (DELEUZE,
2004, p. 86), um modelo de totalidade e unicidade; e o cristalino, que Deleuze o chama 39 Utilizo a palavra arbitrariamente na acepção de decidir com a própria consciência, sem regras, livremente. 40 O artista Ricardo Basbaum identifica que hoje não é mais possível pensar numa autonomia de meios ou “pureza visual” na arte contemporânea. Aponta o paradoxo de uma autonomia irredutível do visível que se afirma, justamente, pela relação de entrecruzamentos com o que não é de dentro do campo da visibilidade. “Uma relação aberta de trocas com seu lado de fora, sua parte outra, heterogênea”. BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre Editora ZOUK, 2007. p.18 e 19.
47
de “imagem-tempo”, constituído por organizações irracionais onde ocorrem apenas re-
encadeamentos, “e substitui o modelo de verdade pela potência do falso como devir”
(DELEUZE, 2004, p. 86). Esse modelo descarta a totalidade e unicidade porque,
segundo Deleuze, na Imagem-Tempo “o tempo já não decorre do movimento para
medi-lo” (DELEUZE, 2004, p. 82). As imagens são apresentadas não mais em relação
ao movimento mas em relação ao tempo, e este entendido não como sucessão.
“porque a sucessão diz respeito apenas às coisas e aos movimentos que estão no tempo. (....) Ele é a forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e que não muda. Não uma forma eterna, mas justamente a forma do que não é eterno, a forma imutável da mudança e do movimento.” (DELEUZE apud MACHADO, 1990,
p.104).
O falso como devir põe em jogo possibilidades de realização de acontecimentos,
num agenciamento de tempos que passaram, passam e passarão. “É uma potência do
falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade
de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente
verdadeiros” (DELEUZE, 2005, p.161).
Vinte e quatro meses, muitas folhas de papel impresso, textos construídos como
desenhos. Dedos desenham palavras, que desenham idéias: Digit-Ação. A
materialidade da dissertação, suas palavras impressas em papel me levaram a realizar
o trabalho que apresento no momento da defesa. A idéia foi gestada a partir do material
impresso e das imagens que me acompanham nesses dois anos de mestrado.
Cada página transformada em fita de papel materializa os pensamentos e idéias
que surgiram com a leitura, reverberando minha prática artística. As imagens de minhas
mãos marcadas pela tarefa de riscar linhas e recolher pó de grafite, se tornam visíveis
através da transparência do vidro. Vidro este soprado, um observatório de fitas, de
palavras corpóreas (som, dança, gestos, fala, respiração). A superfície translúcida
48
permite ver as imagens projetadas no acúmulo de fitas de papel: atos, mãos, gestos,
resíduos. Sensibilidade e sensoriedade.
Fig. 22: Desenho do projeto Cristalino para exposição para a defesa da dissertação. 2009.
49
INTERVALO
É bacana ver que não se perdeu afinal tempo algum, que as vivências se
refazem e, ao aprofundarem-se, renascem umas das outras e com as outras, numa
totalidade também aí.
Hélio Oiticica
50
Virei a própria bailarina, pois faço tantos gestos que até aprendi a costurar com
um ritmo que me parece oriental. Parece bobagem mas não é não. O fazer, o tocar o
plástico no momento de o formular para mim passa a ser quase um cerimonial...
Lygia Clark
51
O traço — todo traço inscrito na folha — desmente o corpo importante, o corpo
de carne, o corpo de humores; o traço não nos leva à pele nem às mucosas; o que diz
o traço é o corpo que arranha, que roça (podemos até dizer: que faz cócegas); pelo
traço, a arte desloca-se; seu centro já não é o objeto do desejo (o belo corpo
imobilizado no mármore), mas o sujeito desse desejo: o traço, por leve ou incerto que
seja, remete sempre a uma força, a uma direção; é um energon, um trabalho, que
oferece à leitura o que ficou de sua pulsão, de seu desgaste. O trabalho é uma ação
visível.
Roland Barthes
52
SEGUNDO ATO
Tempo como Habitação.
A percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo.
Henri Bergson
Fig. 23: Fala Bandeira. Vista da Instalação. Still do vídeo do projeto. Largo dos Guimarães. 2007
53
O grupo Ladeira 20541 considera suas ações possibilidades de habitar o mundo
(espaço de nossa existência) em encontros com o outro. Ações na esfera do tempo e
habitação na esfera da percepção, segundo Bergson.
Convidado para fazer parte da exposição, “Bandeiras do Brasil: Berço da
República”, no museu Casa de Benjamim Constant, localizado no bairro de Santa
Teresa, no Rio de Janeiro, e que tinha como tema a Bandeira Nacional, o grupo Ladeira
205 apresentou o projeto “Fala Bandeira”. A idéia era construir uma bandeira junto com
o público: alunos da rede escolar de Santa Teresa, moradores e visitantes do bairro. O
trabalho se realizou a partir de uma reflexão sobre o que representa uma bandeira. A
proposição se baseou na relação entre as idéias de ficção, história oficial, imaginário
das ruas e imaginário dos estudantes para, junto com os depoimentos dos participantes
sobre a pergunta “O que é uma bandeira para você?”, construir um outro imaginário
sobre a bandeira, sobre o que ela pode representar e sobre o que pensamos que ela
representa, ativando memórias: inventadas e lembradas.
O encontro com o outro aconteceu de duas maneiras: nas ruas e no museu Casa
de Benjamin Constant. Para o encontro na rua foi montada, no Largo dos Guimarães42,
uma pequena e precária banca, semelhante a uma banca de camelô. Dispostos sobre
ela havia papel vegetal, cortado em pequenos quadrados, e tinta guache. O público se
aproximava, curioso, e era convidado a participar por um dos integrantes do grupo, que
perguntava “O que é uma bandeira para você?” A resposta era gravada em um
aparelho de MP3 e armazenada. Além de responder à pergunta, o participante também
deixava, no pedaço de papel vegetal, sua idéia do que seria uma bandeira visualmente
— a sua marca —, utilizando para isso o próprio dedo e tinta guache43. Próximo à
banca ficava esticado um fio (como um varal) onde uma grande bandeira começou a
ser construída com o resultado dessas pequenas marcas individuais, deixadas nos
pedacinhos de papel vegetal, presas ao fio.
41 O grupo Ladeira 205 foi criado por mim e a artista Lúcia Vignoli em 2006. Um de nossos objetivos é o trabalho com convidados (que podem ser nossos alunos ou outros artistas) que venham a participar de projetos em comum e que possibilitem uma troca de conhecimentos pela relação instaurada. 42 Escolhemos esse local por ser de fluxo intenso de pessoas, também reconhecido como verdadeiro coração do bairro. Local de concentração comercial e de manifestações culturais, sociais e políticas dos moradores do bairro de Santa Teresa. 43 Foi escolhido usar os dedos numa referência a impressão digital e identidade pessoal, fazendo paralelo a idéia de bandeira como identidade de um grupo: povo, time, estado, entre outros.
54
Fig. 24: Fala Bandeira. Vista da Instalação. Still do vídeo do projeto. Museu Casa de Benjamin Constant. 2007
O outro encontro do projeto “Fala Bandeira” aconteceu nos jardins do museu
Casa de Benjamin Constant. Agora, os alunos de escolas do bairro chegavam ao jardim
do museu e encontravam a pequena banca com papéis e tinta guache instalada no
coreto, e eram convidados a sentar para uma conversa com as artistas. Nesse
momento, além da oportunidade de conhecer o grupo, se estabelecia uma troca de
idéias entre os alunos e as artistas sobre o que eles pensavam ser uma bandeira, para
então serem “entrevistados”. A mesma bandeira que começou a ser construída pelas
pessoas que estavam em trânsito no Largo dos Guimarães estava presente no museu.
À ela era acrescentado o imaginário dos alunos. A grande bandeira coletiva “caminhou”
entre o Largo dos Guimarães e o museu Casa de Benjamin Constant durante o tempo
de duração do projeto44.
44 O Projeto teve início no dia 18 de outubro de 2007 com a inauguração da exposição “Bandeiras do Brasil: berço da República”, (da qual também participaram os artistas: Célia Cotrim, Marcos Cardoso e Xico Chaves) no Museu Casa de Benjamin Constant. E finalizou com a comemoração do dia da Bandeira em 19 de novembro de 2007.
55
Fig 25: Fala Bandeira. Vista da montagem final no Museu casa de Benjamin Constant. Fotografia, 2007
O material resultante das ações (os depoimentos gravados e a bandeira feita
com os pedacinhos de papel com as marcas) foi exposto no Museu no dia da Bandeira:
19 de Novembro de 2007. O público visitante pôde compartilhar e refletir sobre a idéia
do que seria uma bandeira, ouvindo as opiniões gravadas e visualizando a bandeira
feita com as marcas deixadas nos delicados papeizinhos pelos participantes.
O crítico de arte e curador Márcio Doctors considera que a arte promove uma
“rede de afetos” (DOCTOR`S , 2007), maneiras de desmanchar a brutalidade cotidiana
e criar agenciamentos de novas relações do homem com o mundo fazendo-o se dar
conta de situações que não são percebidas no correr da vida, trazendo-as para a
superfície da visibilidade; possibilidade de outros acessos ao cotidiano. Quem participa
dos projetos se torna, por um período de tempo, personagem de narrativas que
deslocam sua percepção habitual para uma nova e inventiva relação com a realidade.
A obra de arte não é mais apenas objeto no qual o espectador se projeta, mas
passa a ser a experiência artística vivida por ele; não uma interpretação da obra, mas
56
uma experimentação dela. Experiência artística que, nas palavras de Lygia Clark, está
relacionada com a revalorização do gesto do artista45, com a possibilidade de “reviver o
ritual, o gesto expressivo”. Clark se refere a um gesto que não é apenas “expressão
imediata”, existencial, de rituais próprios do artista e que não é compartilhado com o
espectador por causa da maneira tradicional de ser percebida. Na experiência
Neoconcreta o tempo era pensado como duração a partir de Bergson, segundo o crítico
e historiador de arte Ronaldo Brito. Diz Brito que a idéia de Bergson “servia e estava
associado à proposta (Neoconcreta) de “ativar” o relacionamento do sujeito como
trabalho e permitir múltiplas possibilidades de leitura, “abertas” no tempo”46. Clark ao se
referir ao artista americano Jackson Pollock, diz que, apesar de suas inovações na
relação com o espaço (Pollock experimenta o espaço em um corpo a corpo com a
superfície, participando dela), o que ele faz não é o “gesto do artista” como ela o
concebe — “o gesto não é o gesto do artista quando cria, mas sim é o próprio diálogo
da obra com o espectador” (CLARK, 1997, p. 122). Para que esse diálogo aconteça
Lygia Clark propõe que o observador perceba sua obra de um lugar fora do tradicional,
o qual permitiria multiplicidades, “abertas no tempo” (BRITO, 1985, p. 69), de
aproximação com sua obra.
A artista anuncia a morte do plano, se refere a ele (o plano) como sendo o
espaço em que “o artista se situava (...), projetava-se sobre ele e nessa projeção
carregava de transcendência a superfície” (CLARK, 1997, p. 117). Com a morte do
plano, diz Clark, “a concepção filosófica que o homem projetava sobre ele não mais o
satisfaz, assim como a idéia de um Deus exterior ao homem” (CLARK, 1997, p. 117).
Suas pesquisas levam-na a uma reflexão sobre a idéia de totalidade, na qual a morte
do plano, sua demolição, é “uma tomada de consciência da unidade como um todo vivo
45 Para Lygia Clark o gesto expressivo no expressionismo abstrato pertencia ao exterior da obra – ao estímulo, sendo apenas “manisfestação artística” como diz Mário Pedrosa. E nas propostas Neoconcretas o que está em causa são “gestos do artista” como experiência artística, o “diálogo da obra com o espectador, uma experiência de “vivência de seu interior”, participação “integral” e não apenas projeção e identificação na e com a obra. CLARK, Lygia. Catálogo da exposição Lygia Clark. Fundação Antoni Tàpies de Barcelona. 1997. p.122 e 123. 46 Sobre as “aberturas no tempo” Ronaldo Brito lembra as gravuras de Lygia Pape e as esculturas de Amílcar de Castro que “trabalhavam o tempo como virtualidade — tratava-se de algo assim como deixar em suspenso o tempo de produção de modo a permitir a intervenção do espectador quase no sentido de completar os trabalhos, recriá-los (...) ”. Pensamento que levou alguns artistas (como Lygia Clark e Hélio Oiticica) a radicalizar a participação do espectador. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. ed. Rio de Janeiro: Ed FUNARTE, 1985.p. 69
57
e orgânico” (CLARK, 1997, p. 117). Para Lygia Clark o importante “é que a superfície
seja um corpo orgânico como uma entidade viva” (CLARK, 1997, p. 140).
Figs. 26 e 27: Lygia Clark. Bicho Flor. 1960-1963 Fonte: Catálogo da exposição Lygia Clark na Fundação Antoni Tàpies de Barcelona.
1997. p. 128
Na série de trabalhos intitulada Bichos — estruturas de planos de placas de
metal articulados por dobradiças cuja proposta é ser manipulado pelo espectador — o
plano fixo é destruído, agora ele é solto no espaço “sem suporte e avesso” e o
espectador experimenta esse plano, solto, ao manipular o Bicho. Clark diz ser o Bicho
“um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece
uma interação total, existencial” (CLARK, 1997, p. 121). Para a artista, é ao brincar com
os Bichos que o espectador “participa de um momento único, total, ele existe” (CLARK,
1997, p. 123).
58
A idéia de Lygia Clark de que o “gesto do artista”, como ela o pensa (o diálogo
da obra com o espectador), proporciona um re-conhecimento de si mesmo pelo
“homem comum”, a qual relaciono ao passar demoradamente, habitando o tempo. No
ato de manipular os Bichos, o sujeito “existe”; existência a partir de gestos capazes de
instaurar aberturas na mente, possibilidade de imaginação, de invenções e de
memórias.
Considero que as sensações se fazem, também, pelo exercício, pela história e
não só pela forma, e que no tempo o sujeito amplia sua sensibilidade. Segundo
Merleau-Ponty, nosso corpo experimenta o mundo e é experimentado por ele (o
mundo), (MERLEAU-PONTY, 2000). A possibilidade de nos constituirmos a partir do
outro e de que ser observado nos institua em nosso lugar me leva ao pensamento de
que habito um tempo de compartilhamento, permitindo que eu invente memórias e
narrativas — encontros com o outro — possibilidade de sermos outro de nós mesmos e
de sermos sujeitos de nosso tempo.
Giorgio Agamben ao escrever sobre o gesto (AGAMBEN, 2008), diz ser ele (o
gesto) o elemento do cinema e não a imagem. Para o filósofo, as imagens
cinematográficas (em movimento) introduzem o gesto na esfera da ação, pois elas (as
imagens) não são nem poses eternas nem captura imóvel de um acontecimento. São
antes, elas mesmas, imagens em movimento — Deleuze denominou-as images-
mouvement. Agamben mostra que a análise de Deleuze sobre a imagem, de um modo
geral, se refere à imagem na modernidade. Significando que a imobilidade da imagem é
desfeita, e insere o gesto na discussão. Para Agamben se trata de captura (nas
imagens) de gestos e diz:
“Toda a imagem é animada por uma polaridade antinômica: de um lado, ela é a reificação e a anulação de um gesto (é a imago como máscara de cera do morto ou como símbolo), do outro, ela conserva-lhe intacta a dynamis (como nos instantes de Muybridge ou em qualquer fotografia esportiva).” (AGAMBEN, 2008, p. 12).
Entra assim em jogo a memória: lembrança do passado — a imago da máscara
de cera; ou continuidade imaginada — a dynamis dos instantes do movimento nas
fotografias esportivas. O gesto em fragmentos tal qual fotogramas de um filme, sendo
este o que traria novamente o sentido às imagens.
59
Agamben nos diz que o gesto é da esfera da ação e distingui ação de agir e
fazer. Refere-se aos escritos de Varrão, que por sua vez se reporta a Aristóteles, para
creditar ao gesto a afecção de “exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio
como tal. Este faz aparecer o ser-num-meio do homem e, deste modo, abre para ele a
dimensão ética” (AGAMBEN, 2008, p 13). Nesse sentido, estabeleço conexão entre o
“gesto do artista” de Lygia Clark e a idéia de que o gesto pertence à esfera da ação, de
Agamben. Um re-conhecimento de si pelo homem comum proporcionado por gestos-
ações-tempos que o levam a um deslocamento — ser outro de si mesmo.
Estamos lidando com possíveis encontros entre pessoas, assim também a idéia
de “experiência verdadeira” de Walter Benjamin (que também apontava para a
importância das relações sociais para a geração de subjetividades — “Efetivamente, a
experiência, escreve Benjamin, pertence à ordem da tradição, na vida coletiva como na
vida privada” (BENJAMIN apud ROCHLITZ, 2003, p. 282) me parece conectada com a
idéia de “reviver o ritual” de Lygia Clark. Reverberações entre três pensamentos:
Tradição, gesto e reviver o ritual.
A idéia de experiência relacionada à tradição, para Benjamin, está na
constatação de que dos acontecimentos que se fixam na memória, os que são
compartilhados com os outros, na sua maioria inconscientes, mais do que
acontecimentos vividos individualmente, são os que constituem a “experiência
verdadeira”. Experiência construída a partir do diálogo, da aquisição de conhecimento
com o outro, em conexão com o mundo e seus acontecimentos, que absorve e
transforma. Benjamin diz que o passado não é fixo em seu “tempo”, não é o fim de um
existir, mas uma continuidade desse existir enquanto for ativado, interpretado e
apropriado pelos que vivem depois. E é a partir do pensamento benjaminiano de
experiência verdadeira — conhecimento compartilhado, tarefa que se faz em grupo —
que, em manobra pretendida à maneira de Benjamin, reatualizo-o ao aproximá-lo do
pensamento de Lygia Clark e Giorgio Agamben. Da mesma maneira, o “reviver o ritual”
de Clark me parece estar relacionado a uma experiência primeira, a uma atitude
inaugural perante o mundo, proporcionada pelo diálogo da obra com o espectador e
que permite um contato com a memória e o imaginário de modo a fazê-los existir no
presente, reinventando esse presente. O gesto do artista, a experienciação da obra,
60
que permite a “exibição de uma medialidade”47 faz surgir um outro de si mesmo — o
“ser-no-meio do homem”, e sua “dimensão ética” — através do agenciamento de
tempos pela memória que implica na experiência “verdadeira”, experiência
compartilhada. Instâncias de encontros com o outro — o outro de nós mesmos e o
outro diferente de nós e que nos constitui.
Figs. 28 e 29: Bolo como Brigadeiro. Stills do filme da performance. 2007
Em Junho e Outubro de 2007, o grupo Ladeira 205 e seus convidados48
realizaram a performance “Bolo como Brigadeiro”49. A idéia da performance partiu de
duas situações: meu desejo de transpor para o meio da arte uma experiência familiar, e
também poder compartilhar esse conhecimento com meus alunos do projeto “Vivência
em Atelier”. Ao longo de seis meses do ano de 2006 participei, com a artista Lucia
Vignoli, desse projeto em parceria com a Associação Chave Mestra de artistas de
Santa Teresa50. Um dos objetivos do projeto era o diálogo e as trocas afetivas entre
artistas e jovens estudantes da rede pública do bairro como tática de formação cultural
e transformadora no dia a dia dos participantes. Nos encontros semanais com nossos
alunos – cinco jovens com idades entre 13 e 15 anos – articulávamos, junto com eles,
47 Me refiro a idéia de gesto de Agamben que cito nas páginas 56 e 57.. 48 Nossos convidados, para esta performance, foram nossos cinco jovens alunos: Jaina, Michele, Oséas, Pedro, e Raiana. 49 As performances se realizaram no Casarão da UNEI em Santa Teresa no mês de Junho e no Centro Cultural José Bonifácio, na Gamboa, no mês de Outubro. 50 Eu e Lucia dividimos atelier nesse bairro.
61
projetos relacionados ao interesse de cada um. No espaço do atelier criou-se um lugar:
de conversas, de desenhos, de idas a exposições, de afetividades. Percebi nesse
“outro espaço”51, o espaço da “experiência verdadeira” e a possibilidade de “reviver o
ritual”52.
A receita do bolo acompanha minha história. O “bolo da mamãe querida” é uma
receita simples que aprendi com minha mãe e que faço desde garotinha. Depois de ser
mãe inaugurei uma tradição: fazer o bolo todos os meses durante o primeiro ano de
vida de cada um dos meus dois filhos, sempre no dia do mês que corresponde ao dia
que nasceram.
Transponho essa experiência para o meio da arte, em uma aproximação entre
espaço público e espaço privado. Como personagem, preparo o bolo junto ao grupo, —
eu, Lúcia, Jaina, Raiana, Pedro, Oséas e Michele — revelo a eles e ao público o
preparo do bolo que experimentam.
Fig 30: Bolo como Brigadeiro. Stills do filme da performance. 2007
51 Título de um texto de Michel Foucault no qual ele apresenta a idéia de Heterotopia, a qual tratarei mais adiante. 52 Idéia de Experiência Verdadeira de Benjamin que aponto na página anterior; e idéia de reviver o ritual de Lygia Clark abordada nas páginas 54 à 57 deste capítulo
62
A performance foi planejada em duas etapas. Na primeira etapa, filmamos o
preparo do bolo pelo grupo: eu, Lucia e nossos cinco alunos; uma atitude de
compartilhamento de conhecimentos. A segunda etapa foi a projeção junto com a ação
de ofertar o bolo. As duas ações foram realizadas em casarões antigos, a primeira no
bairro de Santa Teresa e a segunda no bairro da Gamboa, ambos na cidade do Rio de
Janeiro. Os dois casarões tinham em comum o fato de serem espaços que abrigam
acontecimentos de arte, e por serem antigos provocam memórias, acrescentando à
performance mais um elemento, um dado da memória do lugar em que nos
encontrávamos, o passado de cada casa e de cada bairro.
Durante a performance foi projetado, numa das paredes do casarão – em Santa
Teresa no exterior e na Gamboa no interior – o vídeo do grupo fazendo o bolo e,
simultaneamente à projeção, os integrantes do grupo circulavam pelos espaços
internos e externos dos casarões oferecendo bolo em pequenas porções, dentro de
forminhas de brigadeiro.
Figs 31 e 32: Bolo como Brigadeiro. Fotografias da performance por Bia Pimenta. 2007
63
Esta proposta artística que permite experiências de passar um conhecimento
(ensinar uma receita de família), de participar do preparo do bolo, e depois compartilhá-
lo com o público, pode ser pensada como a “experiência verdadeira” (tarefa que se faz
em grupo) da qual nos diz Benjamin, e também como o “reviver o ritual” (participar de
uma experiência artística), proposto por Lygia Clark. A transmissão da tradição através
do compartilhamento do fazer um objeto, contar uma história, preparar uma receita
especial, assim como todo o percurso destas ações até se tornarem presentes como
coleção de culturas, permite um intercâmbio de experiências. Na arte existe uma
possibilidade de atualização da memória (tradição) a partir de atos involuntários, ela
carrega uma memória que se apresenta no objeto ou na idéia, infinitamente para trás e
infinitamente para frente, mundos que se dão no ato da marca (do afeto) como, por
exemplo, participar de uma proposta artística.
No interior da galeria Leme, na cidade de São Paulo, o público observa uma
plantação de ervas daninhas nas frestas do chão da galeria, e um total de cem
crisálidas feitas de tiras de tecido branco que se encontram presas nas paredes por
agulhas de bordado. Algumas crisálidas guardam um objeto que não é perceptível até o
momento da chegada de duplas de biólogos. São cientistas que pesquisam
lepidópteros53 e que entram no espaço com suas roupas de trabalho e trazem,
acondicionados em bandejas, os instrumentos de suas pesquisas. Cuidadosamente,
com gestos e postura habituais a seu cotidiano no laboratório, eles removem de
algumas crisálidas uma fina folha de tecido que contém linhas bordadas, reproduzindo
as linhas das mãos de um ex-morador de rua. Em seguida depositam na mão do
espectador esse fino e transparente tecido cujas linhas bordadas se fundem com as
linhas da mão de quem as segura. Quando a cena se completa o cientista põe as
delicadas folhas transparentes de volta para o orifício de onde foram retiradas. A folha
53 Lepidóptera é uma ordem de insetos (lepidópteros) muito diversificada que inclui as borboletas e um grupo chamado de traças em Portugal e mariposas no Brasil. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Lepidoptera >, acesso em 04.04.2008
64
de tecido bordado, que agora se encontra fora da crisálida, possui a potência de
assumir uma outra forma. Essas atitudes fazem parte do ritual que a obra instaura.
Figs 33 e 34: Rosana Palazyan. No lugar do outro. Fonte: Disponível em < http://www.galerialeme.com/artistas_bio.php?lang=por&id=16 >
Acessado em 4 Abril 2008
Segundo a curadora Marilyn Zeitlin54, Rosana Palazyan escolheu para a
exposição “No lugar do Outro”, descrita acima, depoimentos de histórias de pessoas
que habitaram as ruas e conseguiram se reinserir na linha de visibilidade social. Cada
uma relata que tamanha transformação só foi possível com a ajuda de instituições que
as apoiaram e com o gesto generoso de uma pessoa que deu seu tempo e sua atenção
para ajudá-las, frisando que a determinação e vontade interior de mudar foram
fundamentais para alcançar a mudança desejada. A exposição instaura o ritual da
transformação e a presença de cientistas encena a metamorfose. Palazyan propõe ao
espectador que experimente esse outro espaço — a galeria transformada em ficção —
compartilhe da expectativa de um outro, como se pudéssemos ser o outro por um breve
período de tempo. Ser alguém que não conhecemos, mas cujas linhas das mãos
temos, momentaneamente, sobre as nossas mãos. Como se esse gesto permitisse que
54 ZEITLIN, Marilyn. Disponível no site: < http://www.galerialeme.com/artistas_textos.php?lang=por&id=16&text_id=103 >, Acesso em 04.04.2008.
65
fossemos capazes de alterar o curso de nossas vidas ou presenciar a transformação na
vida do outro.
Este espaço que Palazyan convida o espectador a experimentar na galeria,
penso como sendo um espaço heterotópico foucaultiano55.
Em seu texto, “Outros Espaços”56, Foucault propõe que a época atual seja, “de
preferência”, a época do espaço (não mais a da História como foi o século XIX), e traça
uma breve genealogia do espaço ocidental, para então chegar a idéia de heterotopias.
Inicia descrevendo o espaço medieval, este um conjunto de espaços entrecruzados e
opostos, de dualidades — o “espaço do corpo e espaço da alma se espelham um no
outro” (WERTHEIM, 2001, p. 33) —, organizados hierarquicamente. Foucault o chama
de espaço de localização. Em seguida, mostra que no século XVII os estudos de
Galileu57 em Astronomia levaram-no a descobertas que modificaram a noção de
espaço, agora físico. Um espaço infinito, onde cada coisa tinha seu lugar em relação a
seu movimento. Foucault o chamou de espaço de extensão. Na atualidade, diz ele,
experimentamos o mundo não mais por sua extensão ou longa via através dos tempos,
mas pelas relações entre pontos que se tramam e se entrecruzam. Experimentamos o
espaço como posicionamento, estamos sempre em relação a outras posições, que não
a nossa, e que jamais se sobrepõem umas às outras. Foucault nos apresenta a idéia da
existência de alguns posicionamentos que “têm a curiosa propriedade de estar em
relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles
suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles
designadas, refletidas ou pensadas” (FOUCAULT, 2004, p.414). Esses
posicionamentos se apresentam, segundo Foucault, em dois grandes tipos: há os que
são idealizados, imaginários, mundos paralelos sem lugar no mundo real, são as
utopias — não-lugares ou lugares que não existem. E, em oposição às utopias, há as
heterotopias, que são posicionamentos reais, que “estão ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos”, lugares que estão do lado de fora de todos os
55 Heterotopia é um conceito de Foucault proposto em seu texto “outros espaços” e que tratarei nas próximas linhas 56 O texto “Outros Espaços” encontra-se no livro Ditos e Escritos, vol.3 . Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2004. 57 Margaret Wertheim aponta a contribuição da pintura perspectiva, que “incorporou o corpo do espectador em seu esquema espacial” (o ponto de vista único para elaborar um pintura era o mesmo de onde o espectador deveria se posicionar para observá-la) como “importante na preparação do caminho para os cientistas do século XVII”. WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço de Dante a Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 81.
66
lugares e que ao mesmo tempo são “efetivamente localizáveis” (FOUCAULT, 2004,
p.415).
O que propõe é que existam outros espaços e outros tempos que não o espaço
uno e a temporalidade cronológica. Assim nos diz:
“As heterotopias estão ligadas, mais freqüentemente, a recortes do tempo, ou seja, elas dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronias; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional” ((FOUCAULT, 2004, p.418).
É esta “espécie de ruptura do tempo tradicional” que acredito estar em jogo na
percepção do tempo como habitação que proponho. Acrescento à ruptura do tempo
tradicional outras intuições do tempo. Márcio Tavares D’Amaral lembra que os gregos
tinham diferentes palavras para pensar o tempo, ou melhor, como eles intuíam o tempo
de várias maneiras. “Heráclito, por exemplo, num fragmento célebre, diz que tempo é
‘um jogo de criança, de criança um reinado’[...] ‘Aiôn’ foi traduzido por ‘tempo’[...].
Parece que Heráclito está definindo tempo como ‘acaso’, ‘jogo’, ‘brincadeira’, ‘reinado
de criança” (D`AMARAL, 2003, p.25 e 26). e ainda, continua D´Amaral com outras
intuições dos gregos sobre o tempo:
“Kairós”, que eles chamavam de “momento oportuno”, tempo da oportunidade; e “Kronos”, que era a duração. Que poderia ser longa “como quando se diz que uma doença é crônica, por exemplo, ou pode ser muito breve. Em ambos os casos, trata-se de resistência no passar. A palavra é Kronos, e nós de novo dizemos ‘tempo’”.(D`AMARAL, 2003, p. 26).
As propostas artísticas nas quais o espectador (ou o público) é convidado a um
desvio no fluxo em que estão inseridos, a uma ação ou possibilidade de reflexão que
modifique seu cotidiano e não tem como objetivo apresentar um objeto artístico, mas
sim provocar outra percepção da realidade através de experiências proporcionadas
pelos artistas, entendo como heterotopias, como resistências ao passar, como
durações.
67
Em “Um pedido para estrela cadente”, Rosana Palazyan, mostrou a realidade de
adolescentes de uma instituição de recuperação, o drama de cada um e as percepções
de suas experiências. Nesse trabalho, Palazyan perguntou a cada um dos internos da
Escola João Luiz Alves58, no Rio de Janeiro, o que eles desejariam para uma estrela
cadente, quais eram seus sonhos. As respostas nos mostram indivíduos diante de suas
experiências e expectativas que não correspondem ao clichê esperado (como o fato de
uma experiência de vida sofrida corresponder à perda da esperança ou à
insensibilidade, o que pode ou não ocorrer). A heterotopia instaurada, o ritual para se
fazer ouvir esses indivíduos, ocorria em uma sala azul arroxeada, devido à presença da
luz negra, onde se encontravam vários balões a gás suspensos no teto com longos fios
presos a eles. O espectador conhecia os pedidos ao puxar os fios e trazer para próximo
de si o balão. Com a luz negra os pedidos, escritos ou desenhados com tinta
fluorescente em cada balão, brilhavam em consonância com o piso de pedrinhas
brancas sob nossos pés.
Figs 35: Rosana Palazyan. Um pedido para estrela cadente. Balões de gás,tinta fluorescente, luz negra, dimensões variáveis. 2000-2004
Fonte: Disponível em < http://www.galerialeme.com/artistas_bio.php?lang=por&id=16 > Acessado em 4 Abril 2008
58 Instituição localizada na Ilha do Governador no Estado do Rio de Janeiro; abriga e interna jovens infratores.
68
Figs 36: Rosana Palazyan. Um pedido para estrela cadente. Balões de gás,tinta fluorescente,
luz negra, dimensões variáveis. 2000-2004 Fonte: Disponível em < http://www.galerialeme.com/artistas_bio.php?lang=por&id=16 >
Acessado em 4 Abril 2008
Palazyan trabalha se relacionando com o próximo, escuta pessoas que vivem
fora da linha de visibilidade social, seus desejos, suas histórias e dá visibilidade e
audição a elas. O que ela mostra são vozes de seres humanos e não a visão distante
de peritos que as analisa.
69
Fig. 37: Rosana Palazyan. O Realejo. 28ª Bienal de São Paulo, 2003-2004. Fonte: Acervo pessoal.
Na Bienal de São Paulo de 2004, Palazyan trouxe para o espaço do Ibirapuera
um Realejo. É sabido que os realejos tiram a sorte para quem pede ao papagaio (ou
outro pássaro adestrado para essa função) que retire um papelzinho com a desejada
mensagem. Nessa obra a “sorte” que o espectador recebe para ler mostra a fala de
pessoas de rua, são pequenos textos que a artista recolheu de entrevistas com
pessoas que vivem à margem da sociedade. Uma operação que inverte o conjunto de
relações esperado a partir de um realejo. Na obra a “sorte” é a voz da rua, experiência
de alteridade.
70
O que foi descrito, sobre os trabalhos de Palazyan, são experiências onde se
estabeleceram “redes de afeto”59, situações de trocas e que foram compartilhadas mais
tarde com um público maior. Uma experiência que demandou estar em processo, num
outro espaço e tempo diferentes do qual os sujeitos participantes se encontravam. A
heterotopia60 instaurada pela artista possibilitou um desvio na realidade (ruptura no
tempo tradicional) de cada espectador participante nas exposições, bem como das
pessoas envolvidas nas suas pesquisas. Um encontro com as experiências de cada
um, seus desejos e sonhos. Um modo de experimentar o encontro com o outro, um
demorar-se no passar.
Na primeira reunião dos alunos de mestrado da turma de 2007, da qual faço
parte, conheci a artista Cristina Ribas. Por motivos que não me recordo Cristina não
ficou o tempo de duração da reunião, mas desse breve encontro fiquei com um
pequeno panfleto distribuído por ela, desses que se recebe na rua anunciando
pequenos serviços como: “Trago a pessoa amada em três dias”. No seu panfleto lia-se
em letras azuis: “Troco Azulejo. Troque um azulejo de sua casa por um azulejo azul” e
o número de telefone de Ribas. Isso me interessou, a possibilidade de aproximação
com Cristina Ribas a partir da sua prática artística, além de perceber interesses em
comum na sua prática e na minha. Muitas tentativas de marcarmos a “troca” e muitos
meses se passaram para que quase no final de 2007 ela se realizasse. Foi numa tarde,
no dia 29 de novembro, que Cristina chegou a minha casa, onde eu a aguardava com
Lucia Vignoli que filmaria o acontecimento da “troca”. Dias antes fiquei pensando onde
colocaria o novo habitante. Queria um lugar que fosse notado, que pudesse “conviver”
diariamente. Acabei decidindo, junto com Cristina e Lúcia, pela cozinha que é um lugar
de referência da casa, pois todas as vezes que reunimos amigos e parentes a cozinha
é o lugar onde passamos a maior parte do tempo. Além do que, seu piso é azul.
59 A referência à rede de afetos considera o afeto como aquilo que nos toca ou atinge — sendo brisa ou tempestade — e não apenas como algo agradável ou dócil. 60 Idéia de heterotopia de Foucault. Ver página 63 do presente texto.
71
Portanto o novo habitante — o azulejo azul de Cristina Ribas — ficou na parede lateral,
próxima ao fogão, e de frente para quem entra na cozinha.
Figs 38, 39, 40 e 41: Cristina Ribas. Troca de Azulejo. Detalhes da intervenção na residência de Nena Balthar.
2007. Fonte: Arcevo pessoal.
Durante o tempo em que Cristina ficou martelando e escavando a parede,
retirando o azulejo antigo, para depois preparar, delicadamente, a massa que colaria o
72
azulejo de sua coleção no lugar aberto pelo que foi retirado, acompanhei o processo
fazendo um bolo de tapioca — Bolo “Podre” como se diz no Pará — uma receita de
minha avó paraense.
Figs. 42 e 43. Nena Balthar. Intervenção na intervenção
de Cristina Ribas. Residência de Nena Balthar. 2007. Fonte: Arcevo pessoal.
O que essa experiência proporciona é uma relação de anfitrião e hóspede.
Relação entre fronteiras que se caracteriza pelo acolhimento e cuidado (cuidado esse
envolvendo proteger e ser protegido), reorganizações do lugar que recebe o hóspede,
estabelecendo-se trocas. Jacques Derrida aponta em seu texto sobre a hospitalidade
(DERRIDA, 2003) a tênue linha que vigora nessas trocas afetivas — o que nos afeta
pode ser gentil ou violento. A hospitalidade que Derrida nos mostra põe em discussão a
geração de territórios para ser possível hospedar. Retira da ação do hospitaleiro o foco
de simples acolhimento, para por em jogo o estabelecimento de fronteiras a serem
transpostas — jogos afetivos. O Hóspede, que Derrida denomina de estrangeiro,
“sacode o dogmatismo ameaçador do logos paterno: o Ser que é e o Não-Ser que não
é” (DERRIDA, 2003, p. 7). Quando se permite ser anfitrião se reconhece que o Ser é e
também pode não ser, e o Não-Ser não é e também pode ser. O estrangeiro incorpora
a possibilidade do Não-Ser (aquele que não pertence ao lugar) vir a ser; e esse jogo de
73
afetividades demanda e faz emergir reorganizações nos territórios instituídos, “a
hipótese revolucionária do Estrangeiro” (DERRIDA, 2003, p. 7).
A violência das marteladas de Ribas na parede da cozinha encena a “revolução
do Estrangeiro”; o que é deixa de ser — a arquitetura anterior da casa — e o que não é
passa a vigorar — o azulejo azul da coleção do estrangeiro incorporado à arquitetura.
Aproximo essa relação da idéia benjaminiana do narrador. Quando proponho
tempo como habitação na alteridade é porque acredito que se instaure nesse habitar
uma relação de agenciamentos de memórias e narrativas que surgem a partir do ritual
de uma demora, do compartilhar com o outro.
Benjamin aponta a diferença entre narrativa e informação, que penso ser um dos
paradigmas contemporâneos de experimentarmos uma cultura de excessos em
oposição a acúmulos. A narrativa diz:
“Não está interessada em transmitir ‘o puro em si‘ da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1985, p. 205).
Sendo assim a narrativa é amplificada quando narrada por novos narradores —
relaciono-a ao acúmulo. Por outro lado, a informação tem seu valor apenas enquanto
novidade, “só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda
de tempo tem que se explicar nele” (BENJAMIN, 1985, p. 204) — identifico-a com o
excesso. No pensamento de Benjamin o narrador é aquele que transmite a “experiência
verdadeira”, trazendo o percurso da experiência passada de pessoa a pessoa,
promovendo o intercâmbio de experiências. A figura do Narrador, transponho-a para a
do Anfitrião. Assim como o narrador que, ao contar uma história, promove relações
sociais, o anfitrião ao reorganizar seu território também a favorece. Ambos, narrador e
anfitrião, podem proporcionar a demora.
74
Geralmente uma história é narrada para um grupo que se encontra com a mente
aberta61, propícia para rememorar a história contada e ser capaz de contá-la novamente
acrescentando suas experiências às narrativas. Quando faço o bolo de tapioca e
aguardo a troca de azulejo é como se eu incorporasse a ação de Cristina Ribas e vice-
versa, uma reverberação desses espaços narrativos: Bolo e Azulejo em uma troca
constante de posições. Promove-se nesse “outro espaço” relações entre memórias,
experiências e conhecimentos através de nossas atitudes; atuo como o anfitrião nesse
recorte de tempo; jogos de fronteiras, novos territórios sendo criados. O Hóspede, na
atuação de Ribas, é o outro da relação — o estrangeiro que presentifica o Não-Ser
sendo. Sua ação de escavar a parede, de remoção para uma nova organização,
também proporciona trocas de experiências trazendo para o lugar da “troca de Azulejo”
novas configurações de tempos e espaços. Ao preparar o bolo com meus alunos e
Lucia estamos novamente lidando com temporalidades a partir de memórias,
experiências e conhecimentos. Os quais me parecem ter a potencialidade de serem
percebidos pelo espectador quando ofertamos o bolo na performance. Quando tenho
na cozinha de minha residência um azulejo que não fazia parte do projeto arquitetônico
da casa, um azulejo da coleção da artista Cristina Ribas, é novo recorte que se
instaura. O Azulejo está ali trazendo, diariamente, a presença daquela experiência, do
tempo compartilhado para que sua troca fosse feita. O bolo que o público-hóspede
degusta é o bolo que eles vêem ser preparado no vídeo. O anfitrião e o hóspede são
personagens do mesmo ritual em que há a possibilidade de se re-conhecer, em si e no
outro, de se perceber pertencendo a seu tempo.
Minha experiência com o ensino da arte se mistura à minha prática artística. No
período em que fui da equipe de Educação do Museu de Arte Moderna62, sob a
coordenação de Maria Tornaghi, trabalhávamos com a idéia de proporcionar um
encontro com a arte onde pudesse ser percebido um processo, uma duração. 61 Benjamin diz que o dom narrativa foi cultivado em torno de atividades manuais (que ele constatou estar desaparecendo) pois o ouvinte que executa sua tarefa – fiar ou tecer – abre a mente para “gravar nele o que escuta” BENJAMIN, Walter. In: Obras Escolhidas: Magia e tècnica, Arte e política. ed. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1985. 62 Entre os anos de 1999 e 2006 integrei a equipe de educação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. E de 1992 à 2006 integrei a equipe de professores do Núcleo de Crianças e Jovens da Escola Artes Visuais do Parque Lage, ambos sob coordenação de Maria Tornaghi.
75
A visita ao museu não se reduzia apenas às obras de arte em exposição.
Partíamos do princípio que o outro, no caso o grupo de visitantes (formado por crianças
ou jovens de escolas da rede pública da cidade do Rio de Janeiro, ou grupos de
participantes de projetos sociais63, ou de empresas) também contribui com seus
conhecimentos, seus recursos pessoais e culturais, que entram em jogo na visita.
Lembro do grupo formado por jovens com idades entre 13 e 15 anos da Escola
Municipal Pernambuco que veio à exposição “Jogo da Memória”64. Na nossa sala, o
lugar em que iniciávamos uma conversa que funcionava como um tipo de aquecimento
à maneira da preparação vocal ou corporal quando se vai cantar, falar, dançar,
participar de algum esporte ou atuação que envolva corpo e voz. Ou ainda à maneira
dos músicos que afinam seus instrumentos. Aquecimento que nos colocava em contato
com as questões relacionadas à exposição a ser visitada. No caso dessa exposição o
ritual para provocar nossas memórias era um tipo de jogo: colocamos imagens de
sucata industrial em um saco de tecido onde cada participante retirava uma,
aleatoriamente. A partir de cada imagem uma lembrança era ativada. A figura de uma
cebola fez surgir comentários como: “Lembrei do primeiro jantar que eu fiz sozinha” ou
“Minha avó não chora ao cortar cebola”.
Ao chegarem no terceiro andar do museu onde estava organizada a exposição
“Jogo da Memória” imediatamente relacionaram o momento da sala e suas lembranças
com o que viam. Diante do trabalho da artista Silvia Cintra65 fizeram comentários que
misturavam suas experiências e lembranças com o que viam: “Parece universo da
infância da artista” ou “história da Alice no país das maravilhas”. E, ainda, ao
observarem as fotografias “partidas” de Rosangêla Rennó66: “É a família da artista?”,
63 Nesse caso poderiam ser grupos organizados em faixas etárias que variavam de crianças até idosos. 64 Alessandra Vaghi, Janaína Tschäpe, José Rufino, Leonilson, Maurício Dias & Walter Riedweg, Rosângela Rennó e Sandra Cinto foram os artistas que participaram da referida exposição, a qual teve curadoria de Franklin Espath Pedroso. Apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre Agosto e Setembro de 2005. 65“Silvia Cintro desenha sobre painéis de madeira momentos pessoais, principalmente da infância. Imagens fotográficas, objetos, desenhos de candelabros, pontes, nuvens, estrelas, velas, escadas, montanhas estão entrelaçados por finíssimas linhas sinuosas realizadas à caneta, como se “amarrassem” todos estes elementos para não deixá-los escapar. A artista parece querer reter aqueles momentos, tornando-os permanentes; é a memória longínqua que passa a ser sua história atual, ainda que reescrita. Sandra Cinto sinaliza estar buscando, incessantemente, recuperar essa memória como se fosse algo perdido”. ”. Informações retiradas do Memória Press Release. Documento escrito para a divulgação, pela Assessoria de Imprensa: Meise Halabi / Marcelo Leite , do MAM, RJ.
66 “A instalação “Menos valia”, de Rosângela Rennó é uma bancada com objetos variados, adquiridos através de troca, em uma feira de coisas usadas no centro do Rio de Janeiro, por peças novas. Ao apropriar-se de elementos que integravam a memória dos outros, a artista constrói a sua própria, apagando a anterior. Nesta ação,
76
“Parece banca de camelô”, “Minha avó tem uma foto assim, mas ela não cortou não”.
Na duração da visita íamos construindo relações com as idéias do grupo, as nossas e
as dos artistas e curadores. Nesse jogo, a atenção, a memória, a motivação, a emoção,
a percepção e o pensamento emergiam dessa demora. Um aprendizado do ver, ver
novamente e reconhecer (informação verbal)67.
O aspecto único das visitas fica claro, também, quando me recordo da Escola
Municipal Ana de Barros Câmara que escreveu na ficha de avaliação, além de outras
coisas68, que seus alunos (crianças pequenas entre 4 e 6 anos) adoraram as torneiras
automáticas do banheiro. Muitos entravam nesse espaço pela primeira vez, tornando
cada gesto e cada passo no interior da instituição uma aventura — como lavar as mãos
nas torneiras ou colocar seu bilhete eletrônico na roleta. A visita ao museu também é
uma experiência que proporciona a noção de pertencimento à sociedade e
consequentemente, pertencimento a seu tempo.
Por esse motivo, e muitos outros, cada visita se torna única e um desafio
delicioso para nós; estamos sempre inaugurando uma experiência compartilhada com
cada grupo de visitante. Movimento e mobilidade da relação entre o que somos e o que
não somos e que se sustenta no desejo ao acaso, implicando o envolvimento e a
proximidade contrários à idéia de fixidez e de distância — reorganizações de territórios:
nós como Anfitriões e os visitantes como Hóspedes.
Na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, lugar onde iniciei minha prática no
ensino da arte e dou aulas para crianças e jovens, também trabalho com a idéia de
percepção de um processo, de uma demora. Uma das maneiras de proporcionar a
demora é o uso de portfólios onde exercitamos nosso olhar para o que cada um faz — Rosângela configura uma história social: um passado de todos desconhecido passa, agora, a pertencer à história da própria artista; lembranças que se apagam, mas renascem em um novo sentido ao passar a ser a narrativa poética da artista. ”. Informações retiradas do Memória Press Release. Documento escrito para a divulgação, pela Assessoria de Imprensa: Meise Halabi / Marcelo Leite , do MAM, RJ. 67 Seminário sobre o trabalho no Núcleo de Crianças e Jovens da EAV do Parque Lage, fala de Márcio Tavares D‘ Amaral. Organização Maria Tornaghi. EAV, Outubro de 1995, Rio de Janeiro. 68 “A coordenadora pedagógica, Maria Afonso Castello, nos fez um registro da “Aula Passeio” e dele recortamos trechos que evidenciam o quão significativa foi a experiência:“(...) participaram ativamente sem se desinteressar um só momento (...) Foram muitas as vivências, mas destacamos as que mais marcaram as crianças que até hoje fazem comentários. (a visita foi dia15 de julho, o registro da coordenadora de 9/de setembro) A começar pelas dimensões, nunca tinham visto quadros tão grandes com tantas concepções de arte. E como criança não tem preconceito, entraram em interação, aceitando e admirando-se com aquele espaço que amplia a perspectiva de ver a Arte (...). Aprenderam a limitar-se a ver sem tocar, a ver e pensar, a ver e imaginar. (...) Fica na memória e na vivência, o prazer da descoberta, o deleite com as sensações, a aprendizagem de percepção de novas formas, a conquista de ver e fazer “Arte”. Da palestra Afinal, o que se aprende em um museu? ministrada por Maria Tornaghi no II Encontro de Arte Educação da Escola de Belas Artes/UFRJ no Museu Nacional de Belas Artes, em 2003.
77
“reconhece o que está vendo, relembra imagens, provoca memórias” (informação
verbal)69. Bem como o que a turma produz —“uma maior atenção para os trabalhos e
as mentes de outros. A descoberta de que pedir emprestado, imitar, ou compartilhar
pode ser uma conquista e não um fracasso”.(informação verbal)70.
Certa vez, uma aluna, ao olhar sua pasta após fazer seu gráfico para avaliação71,
reconheceu no trabalho que ela mais gostava a ausência dos critérios considerados
importantíssimos para constar num de seus desenhos — ter muitas cores e muitos
detalhes. Ela se espantou, mas gostou do que havia percebido. Recentemente na
minha turma de crianças de 7 a 9 anos, um dos alunos trouxe uma cobra morta dentro
de um vidro. Nesse dia a “cobra” foi motivo de vários desdobramentos nos trabalhos
feitos pelos alunos. Surgiram trabalhos cheio de linhas fininhas e cobras feitas com
papel manteiga amassado, e também a mumificação, com barbante, de cachorrinhos
(projeto de outra aluna que se modificou a partir da idéia de uma cobra preservada no
formol). Aqui também se dá um aprendizado de ver, ver de novo e reconhecer,
aprendizado da memória que identifico também no personagem do narrador de
Benjamin, que está ligado à idéia de compartilhamento.
Uma habitação no tempo, no tempo de uma demora implica percebê-lo (o tempo)
como processo, como duração. Não o tempo cronológico, mas a possibilidade de
percebê-lo como processo. A possibilidade de estar com o outro, ser alguém que faz
parte de um grupo e tem seu papel relevante. Como na figura do narrador ou do artista
propositor, o exercício de estar junto numa atividade ou numa experiência artística
estabelece “uma espécie de ruptura absoluta com nosso tempo tradicional”
(FOUCAULT, 2004, p.418). Mais uma vez o ritual estabelecido pelas relações sociais, e
que é transposto para a fruição da arte, permite nos colocarmos em outros espaços e
tempos — o que bem poderia ser uma heterotopia.
69 Da palestra sobre Aprendizado de Arte, ministrada por Maria Tornaghi na Escola de Artes Visuais do Parque Lage para monitores do projeto EcoAteliês- arte e ecologia – parceria SESC/Escola de Artes Visuais do Parque Lage; Novembro 2008 70 TORNAGHI, Maria. Ibid. 71 Frequentemente fazemos as avaliações como uma tática para os alunos perceberem seus próprios caminhos. Primeiro cada um faz seu gráfico com seus critérios necessários para que seu trabalho esteja dentro de suas espectativas. Depois os alunos olham as pastas e escolhem entre os trabalhos aqueles considerados correspondentes aos critérios escolhidos. As vezes se dão conta que os que mais apreciam não são os que preenchem seus critérios (ou vice-versa) e mudam de idéia.
78
Tomo o conceito de heterotopia72 de Foucault que é definido por ter “o poder de
justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si
próprios incompatíveis”(FOUCAULT, 2004, p. 418), para considerar o trabalho
“Encontro em um Ponto”, do artista Luiz Alphounsus, como mais uma possibilidade de
instauração da noção que proponho de tempo como demora, como processo, que
implica percepção (espaço) e ação (tempo) a qual encontro ressonância na proposição
de heterotopia de Foucault.
Seu trabalho realizou-se no Núcleo de Arte e Tecnologia da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage (Nat_Eav), como parte do projeto ensino_arte_rede73.
A equipe do Nat_Eav74, na linha de pesquisa ensino_arte_rede, diz que:
“Nessa era, chamada de era da informação e das comunicações, em que estamos conectados em rede e nos movimentamos com mídias móveis de comunicação sem fio, vivemos simultaneamente em espaços virtuais e físicos. Essa vivência híbrida tem alterado significativamente as noções de espaço e tempo, com a diluição de antigas dicotomias como: o perto e o distante, o público e o privado. Conectados com mobilidade, vivemos em fluxo. Fluidez passou a ser uma das principais metáforas dessa época em que a crescente presença das redes, dos telefones celulares e de outros dispositivos móveis sem fio em nosso cotidiano nos transforma em novos nômades. Sob esse viés, os programas do Nat-Eav pretendem refletir sobre o nosso cotidiano tecnologizado, a partir de experiências artísticas colaborativas.”75
Sob o pensamento de que vivemos uma nova era de nomadismo proporcionada
pelos “novos dispositivos móveis de comunicação”76, e que por isso experimentamos
uma nova noção de tempo e espaço (virtuais e físicos), a equipe do projeto convidou
Luiz Alphonsus para a realização do primeiro trabalho do projeto “ensino_arte_rede”. O
artista tem em sua trajetória o pensamento recorrente sobre tempo e espaço. Cosmos
Polis77, principal eixo do pensamento de Alphonsus, propõe a visibilidade do espaço e
do tempo em suas dimensões planetária e urbana. Um de seus trabalhos dos anos
72 Foucault estabeleceu 6 princípios heterotópicos, os quais se encontram no texto Outros Espaços. 73 “O ensino_arte_rede surgiu da interseção de três linhas de pesquisa e trabalho criadas pelo Nat_Eav: arte sem distância, para projetos de educação de arte à distância; arte em processo, para projetos colaborativos entre o Nat_Eav e artistas convidados; e arte do fluxo, para projetos colaborativos em rede e com mídias móveis.” Disponível em: < http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_Frede/apresenta.htm > acessado em 07.04.2008. 74 A equipe para o trabalho “Encontro em um ponto” é formada por: Bia Amaral, Cristina de Pádula, Giodana Holanda, Luiz Alphonsus, Tania Queiroz e Tina Velho. 75 Disponível em: < http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_Frede/apresenta.htm > Acesso em 07.04.2008. 76 Disponível em: < http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_rede/apresenta.htm >. Acesso em 07.04.2008. 77 Diz Luiz Alphonsus: “Brasília fez nossa cabeça. Havia uma ligação cósmico-planetária com a cidade que estava nascendo, no meio do Brasil, com aquele céu enorme. Era impossível não sentir o impacto da cidade[…]”em depoimento à Frederico de Morais, Galeria BANERJ, 1986. Citado por Fernando Cocchiarale em texto sobre o artista e sua relação com o cosmoPolis. Disponível em: < http://www.luizalphonsus.com.br/ >. Acesso em 07.04.2008.
79
1970 consistia em dois grupos de pessoas que percorreram o mesmo espaço: o trajeto
da distância, do início até o fim, de um túnel em Copacabana, no Rio de Janeiro. Um
grupo fez o percurso interno e o outro o percurso externo, ambos se encontraram em
um ponto no final do túnel com os registros fotográficos de seus caminhos. A equipe do
Nat-Eav reconheceu nesse trabalho a possibilidade de experiência simultânea de
tempo e espaço, tão comum às novas tecnologias. Do encontro da equipe com o artista
veio a idéia do trabalho “Encontro em um Ponto” de Luiz Alphonsus, ampliando a
proposta de seu trabalho anterior na década de 70, a partir dos recursos tecnológicos
atuais.
“Encontro em um Ponto” é uma proposta realizada coletivamente. A possibilidade
de experimentar o tempo e o espaço a partir do cotidiano de cada participante e fazer
perceber o processo e as idéias que podem resultar num trabalho de arte é o aspecto
fundamental da proposta, diz Luiz Alphonsus78. Foram convidados 20 alunos de duas
escolas municipais de Duque de Caxias79 para participar do projeto. A cada aluno foi
pedido que registrasse em celulares80 seu trajeto de casa até a escola. A
simultaneidade dos registros permite experimentar um mesmo tempo (horário escolar)
em espaços diferentes (distância distintas entre escola e casa). A primeira etapa teve
dois grupos em dois Encontros em um Ponto: a escola de cada grupo. O Encontro em
um Ponto comum aos dois grupos aconteceu na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage (EAV) onde está localizado o Nat_Eav. Nessa etapa os dois grupos de alunos das
duas escolas registraram, simultaneamente, o trajeto do ônibus que os levou até a EAV.
Nesse encontro final, a equipe do projeto também registrou seu percurso entre suas
casas e a EAV, juntando suas experiências às dos 20 alunos. Durante o projeto foi
criado um site na internet81 onde todos os registros coletados, da experiência de cada
um, foram disponibilizados para uma troca entre os alunos e a equipe do projeto82. Ao
78 Disponível em: < http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_rede/apresenta.htm > Acessado em 07.04.2008. 79 A Escola Municipal Roberto Weguelin de Abreu e a Escola Municipal Professora Olga Teixeira de Oliveira. Ambas fazem parte do Projeto TONOMUNDO (do Oi Futuro - instituto de Responsabilidade Social da Oi) Disponível em:: <http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_rede/apresenta.htm>. Acesso em 07.04.2008. 80 A empresa de telefonia Oi patrocinou o projeto e cedeu os celulares para sua execução. 81 O referido site é: < http://www.eavparquelage.org.br/nat/ensino_arte_rede/apresenta.htm > 82 Por opção do artista, as trocas aconteceram entre cada grupo de alunos individualmente e a equipe do projeto. A troca entre todos os participantes se deu apenas na apresentação final.
80
final do processo uma exposição foi montada na EAV com o material resultante do
processo: um mapa na internet com os registros dos alunos — onde os visitantes
podiam acessar — um ambiente real nas paredes da galeria com fotografias (registros
dos trajetos) e um vídeo com depoimentos dos alunos. O compartilhamento com o
público dessa experiência, através do site do projeto, permite a quem o acessa
perceber a experiência espaço/tempo de cada um dos participantes. A materialização
de um pensamento abstrato e seu retorno ao pensamento, “o verdadeiro Encontro em
um Ponto”, nas palavras de Luiz Alphonsus.
Esse trabalho, construído por experiências individuais em que o não determinado
e o acaso foram incorporados (com o compartilhamento dessas coleções de
percepções do espaço e tempo), faz com que eu o relacione com a importância da
oposição entre método e cultura83 apontada por Roland Barthes na apresentação de
seu livro “Como viver juntos”. Por ser o método um caminho traçado com um objetivo
pré-determinado para obtenção de resultados, quase sempre o sujeito “abdica o que ele
não conhece dele mesmo, seu irredutível, sua força (sem falar do seu inconsciente)
(BARTHES, 2003, p. 6). E, acredito, com isso acostuma-se ao que não é o outro. A
cultura, por outro lado, é o caminho pela experiência que se adquire, pela reunião de
saberes, pela tradição, que remete a paidéia84 grega. O pensamento abstrato
materializado coletivamente pela percepção do processo de sua materialização, e que
depois retorna ao pensamento (abstrato) na experiência da proposta “Encontro em um
Ponto”, pode ser considerado a reunião de saberes presentes tanto na idéia de tradição
(paidéa grega) quanto na idéia do “gesto do artista” – diálogo da obra com o
espectador– ou na idéia de Cultura (como caminho pela experiência que se adquire)
proporcionando novas percepções da realidade.
83 Gilles Deleuze ao retomar a oposição nietzschiana entre método e cultura diz: “O método supõe sempre uma boa vontade do pensador, uma “decisão premeditada”. A cultura, ao contrário, é uma violência sofrida pelo pensamento sob a ação de forças seletivas, um adestramento que põe em jogo todo o inconsciente do pensador” (G. Deleuze, Nietsche e la philosophie, Paris, PUF, 1962,pp.123-4) Citado por Roland Barthes. Como Viver Juntos São Paulo, Martins fontes. 2003, p.5. 84 O filólogo alemão Werner Jaeger, diz ser a paidéia "todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou pela palavra latina, cultura." Daí que, para traduzir o termo paidéia "não se possa evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo, porém, com o que os gregos entendiam por paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global. Para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez.". Definição retirada da enciclopédia eletrônica Wikipédia Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Paidéia >.Acesso em 21.04.2008.
81
Fig. 44: Companhia de teatro Théâtre du Soleil. Les Ephemères. 2008. Fonte: Disponível em: < http://www.theatre-du-soleil.fr/ephemeres/tract-ephemeres-3.html >
Acesso em: 13 março 2008
A companhia teatral “Théâtre du Solieil” utilizou para a dramaturgia do
espetáculo, “Les Ephemères”85, pequenos cenários móveis — plataformas de madeira
que possuem rodas e giram em torno delas mesmas e deslizam pelo palco de uma
extremidade para outra. Muito me impressionou como esse recurso foi utilizado para a
encenação do espetáculo.
Cada cenário móvel era como ilhas de vida que desfilavam sobre os nossos
olhos. O palco transformado em passarela, em estrada, em rio, em cujas “margens”
situavam-se os espectadores. As cenas deslizavam nesse palco horizontal e me fez
lembrar o recurso cinematográfico de uma cena depois da outra em um movimento
sucessivo e contínuo.
Os movimentos das plataformas-cenários eram executados por atores e faziam
as cenas deslizarem. Eram movimentos lânguidos, cadenciados, quase dança.
Instauravam tensão à cena pela velocidade com que eram postos a girar, no próprio
eixo, pelos atores. Ou geravam sutilezas através da leveza com que eles arrastavam
(como que coreografados) seus corpos junto às plataformas-cenários. Alguns estavam
no palco somente como empurradores dos cenários, outros trocavam de lugar e, por
vezes, usavam seus figurinos de cenas anteriores para empurrar. Depois voltavam na
próxima cena, uma vez ainda, a deslizar nas “ilhas” das estórias das quais eram
personagens. Esses atores-empurradores ocupavam um lugar de passagem, de fresta;
85 No prólogo da dissertação relatei minha experiência ao assistir o espetáculo “Les Ephemères”.
82
estavam entre a platéia (que os observava juntamente com os atores que atuavam
como personagens das estórias narradas) e os atores — personagens em cena.
Ficavam atentos ao que acontecia na cena e na platéia. Possíveis atualizações do coro
grego.
O coreógrafo Merce Cunningham, no início da década de 60, desenvolveu um
pensamento sobre a dança a partir da idéia de movimento como coisa, da “linguagem
do comum” e do “desempenho de tarefas” (KRAUSS, 2001, p. 282), a relação, nas
palavras de Annette Michelson, entre um “tempo sintético em oposição a um tempo
operacional”. Tempo operacional penso ser o tempo de nossa experiência, nossa
habitação no mundo. Para Rosalind Krauss o “desempenho de tarefas”, por seu apelo
sensorial e não funcional, passa a ser a trama da nova dança, “substitui o ilusionismo
pelo tempo real e despsicologiza o seu executante” (KRAUSS, 2001, p. 282).
A movimentação dos atores para empurrar os carros-cenários me parece dentro
desta idéia de movimentos repetidos, como tarefa a ser executada, sem a idéia de
ilusão e, portanto, mostra ser teatro o que o público observa. A platéia pertence a seu
tempo. “Les Ephemères” também pode ser aproximado do que Kenneth King diz sobre
o novo teatro como “extensão da experiência do homem, está apto a ir além dos
artifícios da linguagem e tornar-se transliteral pela justaposição do simbolismo literário
com movimento, filme, tinta, luz, etc.” (KING, 1996, p. 159). Insiro, ainda, a concepção
de teatro da companhia Théâtre du Soleil no que Walter Benjamin chamou de teatro
épico, onde o sentido “é construir o que a dramaturgia aristotélica chama de “ação” a
partir dos elementos mais minúsculos do comportamento” (BENJAMIN, 1985, p. 134),
provocando um estranhamento à tais acontecimentos — pelo olhar do dramaturgo
épico.86
O “laboratório dramático” põe em causa a idéia de processo presente nas
produções/proposições de arte que se valem das ações (o gesto agambeniano que
considera-o na esfera da ação, e o tempo bergsoniano que se apresenta na ação)87
demandando durações — habitações no tempo.
86 Benjamin diz que o olhar do dramaturgo épico “opõe ao drama baseado no conceito da obra de arte total o laboratório dramático” permitindo possibilidades de acesso ao cotidiano reinventando-o. Que identifico na processo de feitura dos espetáculos do Theatre du Soleil, na Nova Dança e nos Happenings. 86 BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. Obras Escolhidas: Magia e tècnica, Arte e política. ed. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1985. p. 134 87 Ambas idéias discorridas no corpo da dissertação.
83
Tais proposições podem ser vistas como uma transposição da pergunta
benjaminiana88 de se pensar não apenas como se situa uma obra (produção) em
relação a seu tempo, mas como ela se insere dentro dessas relações. Nos espetáculos
da companhia Théâtre du Soleil, a diretora Ariane Mnouschkine põe o homem no centro
da ação, pesquisa e utiliza os meios atuais de produção contemporâneos —
tecnologias de ponta — para fazer um teatro inserido e contextualizado com a sua
época e as relações sociais associadas à ela. Sheila Cabo também analisa como as
práticas artísticas contemporâneas são “marcadas pelo crescente deslocamento do
campo específico da linguagem e do meio para o ambiente ampliado das relações
culturais, que conectam distâncias e negociam significados” (CABO, 2007, p. 98).
Penso que o que está em causa (nessas propostas artísticas) não é mais uma
utopia revolucionária, mas um outro tipo de utopia ou ainda de heterotopia, que envolve
uma habitação com o outro — alteridade. “Como viver junto”, título de um livro de
Roland Barthes, foi tema da Bienal de São Paulo de 2006, com curadoria de Lisette
Lagnado. A curadora afirma que “a 27a. Bienal será feita para debater os vários
aspectos do ‘como‘ as pessoas constroem seu espaço social (projetos construtivos) e
‘como‘ colocam em prática relações ‘comunitárias‘ (programas para a vida)”89. O que
parece ser a proposta de Lagnado é pensar a inserção da produção artística no
contexto da contemporaneidade.
Nos mesmos seminários citados anteriormente, Roland Barthes reuniu uma série
de elementos relevantes para pensar a questão de como viver junto, entre eles a
importância de uma revisão das palavras gregas. Diz ele: “Recorrer às palavras gregas
= não ter pressa e, às vezes, para desenvolver o significante como um odor, essa
lentidão é necessária. No mundo atual, toda técnica de diminuir a velocidade tem algo
de progressista” (BARTHES, 2003, p. 35). Penso que a técnica de diminuir a velocidade
esteja relacionada a um desvio no cotidiano das pessoas, uma possibilidade de
desalienação, de reação ou resistência, ao motum continum da sociedade
contemporânea. A possibilidade de fazer parte de seu tempo.
88 Antes de pensar a vinculação da produção literária ao contexto de sua época, Benjamin propõe pensar como ela (a produção) se insere nesse contexto. BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Obras Escolhidas: Magia e tècnica, Arte e política. ed. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1985. 89 LAGNADO, Lisette. Disponível em:: < http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/entrevistas/lisette_lagnado/ >. Acesso em 19.05.2008.
84
A idéia de desaceleração pode ser pensada como recortes, pedaços ou colagens
de saberes, outras temporalidades que permitem novas reconfigurações da
experiência, gerando espaços heterotópicos, onde a subjetivação se dá através de rede
de afetos.
Quando Barthes diz a respeito do princípio que conduziu o seminário, de não
saber qual o caminho seu seminário irá tomar, tudo dependerá do que ele aprender
com as exposições dos outros (alunos do seminário) (BARTHES, 2003). Identifico uma
correspondência entre esse procedimento e a maneira que trabalho com meus alunos e
com os visitantes no Museu. O que parece existir é antes possibilidades de caminhos e
não um único caminho, prévio, a ser seguido. A valorização de estar com o outro para
construir possibilidades.
Acredito que na arte exista a possibilidade de se proporcionar uma ruptura da
relação causa/efeito, que permite gerar heterotopias90. Segundo Jacque Rancière, a
arte possibilita construir um ponto de igual valor entre um saber e uma ignorância, um
espaço de neutralização da oposição entre arte e vida, permitindo ao sujeito
trabalhador, que estaria fora de uma possível experiência estética, contemplativa, se
deslocar de seu trabalho e experimentar uma contemplação do mundo.
“Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em idéias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas91”
A imagem descrita acima, retirada por Rancière de um texto de um jornal
revolucionário operário, faz-me pensar que o lugar da utopia é mesmo o Homem. Assim
como também parecem ter apontado Benjamin, Clark e Agamben.
As práticas artísticas que veem um possível deslocamento no cotidiano das
pessoas aparentam compartilhar desta crença no homem mostram que a arte não faz o
sujeito mais consciente da sua realidade, disso ele já sabe, mas proporcionam
estímulos para refletir e reconhecer quem ele é. Perceber que ele pertence a seu
tempo. 90 Conceito formulado por Foucault e que foi apresentado no presente texto. 91 RANCIÈRE, Jacques. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=3806&ParamEnd=5 > Acesso em: 15.04.2008
85
Será esta nova abordagem da relação entre arte e vida um sentimento utópico
neste mundo que se quer não utópico? E tempo como habitação, heterotopias como
possibilidade de resistência à velocidade da vida?
86
BREVES CONSIDERAÇÔES
A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer antes
de mais nada agilidade, mobilidade, desenvoltura; qualidades
essas que se combinam com uma escrita propensa às
divagações, a saltar de um assunto para outro, a perder o fio
do relato para reencontrá-lo ao fim de inumeráveis
circunlóquios.
Ítalo Calvino
Fig. 45: Doglas Gordon. 24 hours Psycho. (!993). Cortesia do artista, galeria Gagosian, Nova York.
Fonte: Disponível em: < artipedia.org/artsnews/ exhibitions/2006/10/02 >. Acesso em 15.06.2007
87
O artista escocês Douglas Gordon se apropria de filmes consagrados e trata-os
como material. A temporalidade é o foco principal e o meio pelo qual o artista apresenta
novos sentidos aos filmes.
“24 hours Psycho” (1993) é uma obra na qual Gordon projeta o filme “Psycho”
(1960), de Alfred Hitchcock, por inteiro, não mais na sala de cinema, mas dentro do
museu. O filme é desacelerado e exibido em uma duração de 24 horas. A projeção se
dá em uma tela suspensa translúcida e solta, na qual o espectador pode ver a imagem
projetada pelo lado de trás da tela e pela frente (uma relação de espelhamento da
imagem). A velocidade em câmera lenta da projeção permite ao espectador uma
experiência da duração bem mais estendida explorando uma poética do tempo mais
lenta e contemplativa.
“A lentidão a qual o filme é submetido permite observar as seqüências do mesmo
como imagens sem movimento”92. O espectador esquece os personagens, a narrativa e
experimenta a imagem mesma. Um novo olhar analítico e contemplativo sobre a
imagem. A possibilidade de revisão da imagem, ela própria, nos detêm em cada gesto,
cada objeto. Temos uma nova relação com o filme, uma relação de lembrança e
fantasmagoria.
A presença extraordinária que a lentidão do filme proporciona, gera “efeitos
perceptivos muito fortes na visão dos planos: é um pouco como se víssemos um novo
filme, monumentalizado, com revelações nas imagens que acreditávamos conhecer de
cor e acabamos redescobrindo como se nunca as tivéssemos visto” (DUBOIS, 2004, p.
114). Há, também, a possibilidade de estudar a narrativa do filme, a lentidão revela a
força e intensidade de sua composição, suas idiossincrasias e estranhezas. A obra de
Douiglas Gordon, “24 hours Psycho”, “nos deixa esperando, mas também pensando”93.
Questionando nossa própria percepção e recepção do filme. Este sai da sala escura,
onde o espectador permanece sentado por aproximadamente duas horas e em silêncio
numa relação de olhar e ouvir, e vai para a sala do museu ou galeria. Esses espaços
são claros, com ruídos e o espectador é “deixado” esperando pelo que pode acontecer
na próxima cena, se torna ativo e não passivo, como acontece na poltrona do cinema.
92 MILES, Christopher. Douglas Gordon’s less is more, Disponível em: <http://www.artforum.com/archive/id=1740&search=%22Christopher%20Miles%22 >. Acesso em 15.06.2007. 93 MILES, Christopher. Ibid.
88
Pode gerir o tempo e duração da narrativa e se locomove como quiser e no tempo que
quiser ao experimentar a obra. Há um deslocamento do lugar do espectador onde sua
participação e imersão possibilitam outros acessos à realidade. São também
questionadas as regras da instituição: uma obra exposta por 24 horas não é compatível
com os horários de funcionamento de uma instituição, seja um Museu ou uma galeria.
A exposição do filme de Alfred Hitchcock na obra “24 hours Psycho”, de Douglas
Gordon, proporciona uma experiência artística que identifico com a experiência da
performance. A participação do espectador, o questionamento institucional, a
apropriação e o modo de recepção da obra, são elementos próprios desta prática
artística (a performance).
Tanto na repetição de gestos (liame de minha prática), quanto na desaceleração
do filme de Hitchcock, reconheço a presença da idéia de abertura94 na mente pelo
procedimento da repetição. Ambas (a repetição e a desaceleração) geram novos
sentidos ao que já existia e permitem agenciamentos de tempos, percepção de outras
temporalidades em contraponto a temporalidade linear. Sujeito e objeto se diluem um
sendo o outro — passagem, habitação, transitoriedade.
A experiência de imersão no espaço expositivo assim como a ocupação, o
habitar uma tarefa que se faz repetidas vezes, abrem a mente a possibilidade de
imaginação, de memórias, de invenções.
Para o escritor Ítalo Calvino a escolha de rapidez - um dos valores literários que
o autor considerou importante preservar na literatura no curso do novo milênio – não
desconsidera a demora. No seu texto sobre a rapidez ele se refere à máxima latina
Festina lente – apressa-te lentamente – como a possibilidade de um demorar-se para
ser preciso nas escolhas, em “justas escolhas”95. Não desconsiderar a demora para se
pensar a rapidez põe em jogo um ponto de torção, um lugar de intensidades: poder
94 Me refero a idéia de abertura de Deleuze. Ver Prólogo, páginas 12 e 13. 95 Digo justas escolhas em alusão a Godard quando ele diz “Não uma imagem justa mas justo uma imagem” que penso se tratar das combinações que o artista faz entre exemplares e seus elementos provocando instabilidades, dessimetrias e aberturas, as quais Deleuze se refere. Uma imagem feita por alguém que habita o mundo e não o representa.
89
perceber o mundo pelo viés fenomenológico, da experiência. O mundo não como
opostos, um apesar do outro, mas como um graças ao outro.
A epígrafe deste capítulo mostra-nos a acepção de Rapidez de Ítalo Calvino. Diz
o autor ser ela (a rapidez) a possibilidade de ser ágil e móvel o suficiente para se perder
em escolhas e caminhos para depois retornar “ao fio da meada”. Lembro que nas
primeiras idéias que tive para a forma do texto da dissertação pensei em escrevê-la
como um livro de contos. Não é bem isso o que apresento, mas utilizei o procedimento
de relatos de obras de artistas e as idéias de teóricos em circunlóquios, tentativa de
digressão para, então, voltar à questão de tempo como demora, como habitação.
É do espaço exterior que trato ao propor “Desenho: Uma habitação no tempo”.
Possibilidade de nos constituirmos pelo que está do lado de fora, nossa exterioridade,
nossa relação com o que é intrínseco à experiência. Implicando em um reconhecimento
do homem a partir do que não é ele: sua diferença. Reflexão sobre minha prática e
como a arte proporciona mudanças de nossa percepção do tempo. Reconhecimento do
ritualístico da vida em oposição à eficácia atual.
O saber como forma de demora, lentidão. A repetição como a lentidão-abertura
para esse outro saber. Sedução pelo suspense e possibilidade de revelação.
90
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< http://www.tate.org.uk/magazine/issue2/hesse.htm >
< http://www.artforum.com/archive/id=1740&search=%22Christopher%20Miles%22. >
96
ANEXO:
DESENHOPÓGRAFITE
97
98
99
100
ARRASTADO
101
CAMADAS
102
103
FICHA TÉCNICA DESENHOPÓGRAFITE Versão para o Inglês: Maíra Peixoto Fotografia: Luciano Mattos Bogado ARRASTADO Fotografia: Lucia Vignoli CAMADAS Fotografia: Lucia Vignoli