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1 DELIBERAÇÃO E CONFLITO NA SERRA DO GANDARELA: PELA SUPERAÇÃO DE UMA DICOTOMIA Filipe Mendes Motta 1 RESUMO: Este projeto de pesquisa tem como ponto de partida o questionamento da dicotomia entre conflito e deliberação, construída nos últimos anos como um dos pontos de crítica à teoria deliberativa. Nosso objetivo é contribuir para a superação dessa dicotomia, tendo como referência empírica a reconstituição do debate público sobre a definição do futuro da Serra do Gandarela, na região central de Minas Gerais, que desde 2009 tem mobilizado atores da sociedade civil, do poder público e do setor privado do país. Partimos da hipótese que algumas das situações de conflito que têm ocorrido na questão Gandarela podem contribuir para a emergência de momentos deliberativos desconstruindo, assim, uma dicotomia entre conflito e deliberação. PALAVRAS-CHAVE: Serra do Gandarela, Deliberação, Conflito, Consenso A análise da disputa envolvendo ambientalistas, mineradoras e os governos federal e estadual pelo futuro da Serra do Gandarela, na região central de Minas Gerais, é o nosso ponto de partida para discutir como, dentro de uma perspectiva deliberacionista, as dimensões do conflito e do consenso não se excluem na teoria política. Trazemos aqui um breve panorama da pesquisa que temos desenvolvido na no mestrado, que tem como chave o questionamento da incapacidade da teoria deliberativa em lidar com o conflito base de muitas das indagações sobre a coerência e capacidade analítica dessa corrente. Nossa proposta geral é, numa lógica sistêmica, reconstituir a Questão Gandarela identificando, a partir de depoimentos dos atores envolvidos no 1. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG, [email protected], mestrando.

DELIBERAÇÃO E CONFLITO NA SERRA DO GANDARELA: … · dicotomia entre conflito e deliberação, construída nos últimos anos como um dos pontos de crítica à teoria deliberativa

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DELIBERAÇÃO E CONFLITO NA SERRA DO GANDARELA:

PELA SUPERAÇÃO DE UMA DICOTOMIA

Filipe Mendes Motta1

RESUMO: Este projeto de pesquisa tem como ponto de partida o questionamento da

dicotomia entre conflito e deliberação, construída nos últimos anos como um dos pontos

de crítica à teoria deliberativa. Nosso objetivo é contribuir para a superação dessa

dicotomia, tendo como referência empírica a reconstituição do debate público sobre a

definição do futuro da Serra do Gandarela, na região central de Minas Gerais, que desde

2009 tem mobilizado atores da sociedade civil, do poder público e do setor privado do

país. Partimos da hipótese que algumas das situações de conflito que têm ocorrido na

questão Gandarela podem contribuir para a emergência de momentos deliberativos –

desconstruindo, assim, uma dicotomia entre conflito e deliberação.

PALAVRAS-CHAVE: Serra do Gandarela, Deliberação, Conflito, Consenso

A análise da disputa envolvendo ambientalistas, mineradoras e os governos

federal e estadual pelo futuro da Serra do Gandarela, na região central de Minas Gerais,

é o nosso ponto de partida para discutir como, dentro de uma perspectiva

deliberacionista, as dimensões do conflito e do consenso não se excluem na teoria

política. Trazemos aqui um breve panorama da pesquisa que temos desenvolvido na no

mestrado, que tem como chave o questionamento da incapacidade da teoria deliberativa

em lidar com o conflito – base de muitas das indagações sobre a coerência e capacidade

analítica dessa corrente. Nossa proposta geral é, numa lógica sistêmica, reconstituir a

Questão Gandarela identificando, a partir de depoimentos dos atores envolvidos no

1. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG, [email protected], mestrando.

2

processo, os momentos em que o conflito se manifesta e, a partir daí, buscar

compreender como esses embates contribuem para a emergência de momentos

deliberativos (Goodin, 20082). Ao fim deste artigo, especificamente, trabalharemos com

a análise de cinco entrevistas iniciais, feitas com membros do Movimento pela

Preservação da Serra do Gandarela.

Conflitos socioambientais têm se acentuado no Brasil nos últimos 12 anos, a

partir da implementação de um modelo econômico pautado pela exportação de

commodities, afetando ecossistemas, populações tradicionais, qualidade do ar e da água

(Zhouri, 2014). Minas Gerais é um dos estados marcados por este modelo, como

apontam os conflitos ligados à implementação de grandes projetos de de mineração em

municípios como Barão de Cocais, São Gonçalo do Rio Abaixo, Conceição do Mato

Dentro, Congonhas e Morro do Pilar – todos eles na cadeia da serra do Espinhaço. A

compreensão dos impactos e das disputadas travadas em todo da questão da mineração

revelam muito sobre a estruturação da sociedade deste estado, pois mobiliza uma cadeia

produtiva que envolve construção de hidrelétricas, siderurgia, monocultura do eucalipto,

fluxos migratórios e o próprio imaginário simbólico do que é Minas Gerais (ZHOURI,

2014). No caso específico do Gandarela, a pesquisa nos permite fazer a interpretação de

uma disputa política que tem implicações para uma grande parcela da população da

região central de Minas Gerais, uma vez que o destino do território da serra pode,

notadamente, interferir no abastecimento de água e na dinâmica econômica dos

municípios no entorno do Gandarela. Avaliamos que debater e compreender o que está

em jogo na questão, ouvindo os atores envolvidos e analisando as interações colocadas

no processo, pode auxiliar na produção de informações que sejam consideradas pelos

gestores públicos envolvidos na resolução do conflito.

A QUESTÃO GANDARELA

A mineradora Vale S/A, a terceira maior do mundo, anunciou em 2009 o projeto

2 . Para o autor, virtudes deliberativas componentes do processo deliberativo podem estar

distribuídas sequencialmente, envolvendo vários componentes, em vez de continuamente e

simultaneamente presentes como seriam no caso de um agente deliberativo único (Goodin, 2008).

3

Apolo, para extração de minério de ferro na região da Serra do Gandarela, região do

quadrilátero ferrífero3, em Minas Gerais. Antes disso, a empresa vinha tentando, desde

2002, mecanismos de licenciamento ambiental simplificados para exploração de

minério na região – o que foi negado por órgãos ambientais locais. Contrário à

proposta de empreendimento da Vale, um grupo de ambientalistas elaborou uma

contraproposta. Organizados em torno do Movimento pela Preservação da Serra do

Gandarela (MPSG), os ativistas submetem ao governo federal4, ainda em 2009, o

pedido de criação de um parque nacional de 38 mil hectares no mesmo território

desejado pela empresa. O documento foi assinado por 28 entidades, entre associações de

trabalhadores rurais e comunitárias, sindicatos, e organizações não-governamentais.

Além da necessidade de preservação dos atributos geológicos, históricos, de fauna e

flora da área, um dos argumentos chave dos ambientalistas é que a atividade mineradora

pode comprometer aquíferos que contribuem para o abastecimento de água de cerca de

60% da população do município de Belo Horizonte e de 40% dos moradores da sua

região metropolitana. As nascentes que brotam desses aquíferos, de acordo com estudos

apresentados pelo movimento, seriam prejudicadas pelo empreendimento minerador

uma vez que, de acordo com próprios estudos de impacto amebiental apresentados pela

Vale, a retirada do minério ocorreria principalmente nos trechos geológicos da serra que

permitem a infiltração e a acumulação das águas das chuvas – as crostas ferruginosas

denominadas cangas. O coletivo questiona também, entre outras coisas, o fato de o

Gandarela ser a última grande área remanescente de mata atlântica do quadrilátero

ferrífero, com grande biodiversidade vegetal e animal, a importância arqueológica da

área e seu potencial turístico. A favor da mina, a Vale tem destacado o investimento na

economia de Minas Gerais e no municípios envolvidos. Em 2009, quando o projeto

Apolo foi formalmente apresentado, previa-se a movimentação de R$ 4,4 bilhões

3 Com cerca de 7 mil quilômetro quadrados, a região foi colonizada no século XVII, com um surto de

povoamento motivado pela extração de ouro – que entrou em decadência no fim do século XVIII. A

partir de meados do século XX, há uma nova retomada da atividade mineradora, desta vez focada no

minério de ferro. O motor dessa retomada é a criação da Companhia Vale do Rio Doce, em 1942,

então uma empresa estatal.

4 A proposta é entregue ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão

federal responsável pela gestão das unidades de conservação nacionais, ligado ao Ministério do Meio

Ambiente do Brasil.

4

durante a fase de implementação da mina Apolo e 1.449 empregos caso ela entrasse em

operação (Minas Gerais, 2009).

Até 2011, os processos de criação do parque e de licenciamento de Apolo foram

encaminhados de forma simultânea nos órgãos ambientais estadual e nacional. Nesse

período, o MPSG intensifica o processo de mobilização política nos municípios

envolvidos, com o uso de diversos performances políticas: realização petições a favor

do parque, atos públicos com “abraços” à área da serra, grandes caminhadas pelas

trilhas da área, palestras e reuniões, publicação de boletins e ativismo na internet –

Facebook e plataforma online Ning.

Em 2010, seguindo as obrigações legais para o licenciamento do

empreendimento, a Vale realiza audiências públicas em seis municípios5 para apresentar

as características e os impactos socioambientais da mina Apolo. Os eventos são

marcados pelo posicionamento favorável ao empreendimento por parte dos

administradores públicos municipais e pelo embate de membros do Movimento pela

Preservação da Serra contra o projeto da mina.

Após as audiências, por determinação do Ministério Público Estadual e Federal,

o governo de Minas suspende o processo de licenciamento da mina Apolo e cria um

grupo de trabalho (GT1) com técnicos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente

(SEMAD) de Minas Gerais e do ICMBio para discutir a viabilidade de conciliar a

existência do parque com a mina. A conclusão do GT1 é sintetizada em um mapa com a

área da Serra do Gandarela que abrange as duas propostas, com perdas de território

principalmente para o Parque, privilegiando a mina. A ata do encontro aponta a

preocupação do governo de Minas Gerais com a não realização do empreendimento

minerário: “RELATO: após os cumprimentos, o representante da SEMAD (...)

comentou a apreensão da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico quanto

ao impacto esperado da mina Apolo no PIB de Minas Gerais.” (BRASIL, MINAS

GERAIS, 2011, p. 1).

Para apresentar e aprimorar os estudos do GT1, entre o final de 2011 e o início

5 Caeté, Raposos, Nova Lima, Rio Acima, Santa Bárbara e Belo Horizonte. Inicialmente seriam

realizadas duas audiências, mas durante os dois primeiros eventos os ambientalistas pressionam o

governo para que outros municípios afetados também fossem ouvidos.

5

de 2012, o governo do estado forma outro grupo de trabalho (GT2), com representação

mais abrangente. Participaram do GT2 técnicos da Semad e do ICMBio, representantes

do Movimento pela Serra do Gandarela, representantes das prefeituras dos municípios

envolvidos e de empresas de menor porte com interesse em operar na área do Gandarela

– Mundo Mineração (mineradora), MSol (mineradora), Ferro Puro (mineradora),

Fazenda Eucaliptos (de monocultura de eucalipto), além da Vale. As empresas

participantes do GT2 chegam a um acordo com a Semad, ICMBio e o Movimento pela

Gandarela, reduzindo as áreas pretendidas para as suas atividades.

O resultado do GT2 passa a balizar a continuidade dos estudos para a

implementação da unidade de conservação. Todo esse processo é apresentado pelo

ICMBio numa série de seis consultas públicas6 realizadas pelo órgão, em maio de 2012,

nos municípios no entorno da Serra da Gandarela. Prefeitos e comerciantes locais se

colocam contra o parque, argumentando que ele afastará o “progresso”, a possibilidade

de novos empregos e o aumento da arrecadação. Críticos do parque chegam a dizer que

ele trará a falência econômica aos municípios. Membros do Movimento pela Serra do

Gandarela defendem a reserva devido às suas características ambientais peculiares, ao

potencial turístico e à questão do fornecimento de água e criticam o projeto minerador.

Representantes de moradores se dividem e representantes do ICMBio buscam a

construção de um entendimento. As empresas mineradoras não enviaram representantes

oficiais às consultas, mas ambientalistas se queixam, nos eventos, da presença de

consultores da área de mineração, que se posicionam a favor dos empreendimentos sem

explicitar que atuam para empresas.

Outro ponto importante, é que agricultores familiares de comunidades rurais da

área do entorno da serra questionaram, nessas audiências, a possibilidade de terem suas

atividades de extração vegetal e de apicultura prejudicadas com as desapropriações para

a implantação do parque. Isso contribui para que o Movimento venha a propor a criação

de uma reserva de desenvolvimento sustentável em parte da área que seria destinada ao

Parque, para conciliar a permanência dessa população com o projeto do parque (ver

6 As consultas são realizadas em Raposos, Caeté, Ouro Preto, Santa Bárbara, Rio Acima e Belo

Horizonte.

6

anexo I com mapas das propostas da Mina Apolo, parque e reserva). A proposta é

acatada pelo ICMBio e os projetos de criação do Parque e da Reserva passam a tramitar

em separado.

Após as audiências, o diálogo entre o Movimento e os técnicos do ICMBio se

mantém intenso. Mas em 2013 a proposta final do Parque é encaminhada ao Ministério

do Meio Ambiente e para a Presidência da República, para definição dos limites finais –

esse processo cressa a interlocução do Movimento da Gandarela com o governo federal.

Em outubro de 2014, a uma semana do segundo turno das eleições presidencial

brasileiras, a presidente Dilma Rousseff sanciona a criação do Parque Nacional do

Gandarela com uma área 20% menor à proposta pelos ambientalistas e sugerida pelos

técnicos ambientais do ICMBio. A área de fora dos limites corresponde à de interesse da

Vale S/A e de recarga hídrica, rica nas formações de cangas. Também é excluído do

decreto a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável. O decreto presidencial

de criação do parque tem como referência cartas geográficas produzidas pela

mineradora (BRASIL, 2014).

COFLITO, CONSENSO E TEORIA DELIBERATIVA

A suposta dualidade entre conflito e consenso na teoria democrática é um tema

que tem gerado debates entre suas diferentes correntes na contemporaneidade. Nas

últimas três décadas, a teoria deliberacionista tem sido alvo de duras críticas pelo o que

seria uma incapacidade de suas formulações em lidar com o conflito enquanto conceito

chave para a compreensão dos fenômenos políticos. Democratas da diferença, agonistas,

feministas e pluralistas questionam uma suposta guinada consensualista da teoria

democrática provocada pela maneira com que os teóricos deliberacionistas têm

articulado seus princípios (Rancière, 2005; Mouffe, 2005a 2005b; Miguel, 2013; Young,

2005;). A visão de que a deliberação privilegia trocas polidas de argumento, em

exercícios racionais de busca por consenso que eximiriam ou suprimiriam as dimensões

de conflito e do confronto da política, emergem como algumas das principais críticas à

teoria já nos anos 1980. A teoria deliberacionista cederia em excesso aos princípios do

liberalismo e perderia, com seu gesto em direção ao consenso, o potencial

7

emancipatório da tradição crítica de onde a corrente se origina.

Por outro lado, uma literatura deliberacionista recente tem revisto princípios e

reinterpretado as premissas que articulam a teoria, reagindo a essas críticas e pontuando

a importância do conceito de conflito para a garantia do potencial analítico e normativo

do campo. As críticas serão contestadas ou incorporadas à teoria a partir de conceitos

como metaconsenso, de John Dryzek, e, principalmente, a partir das formulações de

Sistema Deliberativo, presentes na obra de diversos autores (Mansbridge et. al, 2010;

Mansbridge et. al, 2012; Knops, 2008; Mendonça, 2011 e 2009; Mendonça e Ercan,

2014; Dryzek, 2000; Dryzek e Nimeyer, 2006 e 2010).

É importante deixar claro que essa leitura não é ponto pacífico dentro da própria

teoria deliberativa. A fim de buscar discutir os pontos cegos, as divergências e as

complementaridades das diversas abordagens que floresceram na teoria deliberativa nas

últimas décadas, Bächtinger et. al (2010) dividem a corrente em duas categorias – os

programas de tipos I e tipo II de deliberação. O primeiro tipo é baseado nos padrões de

justificação racional habermasiano, valoriza a força do melhor argumento, a sinceridade

e a construção de consensos. É uma corrente que valoriza fortemente os detalhes

processuais da deliberação. O segundo tipo, dentro do qual a abordagem sistêmica se

desenvolve, permite olhar para a deliberação a partir todas as formas de comunicação

(incluindo a retórica, discursos emocionais e story-telling), sendo, na avaliação dos

autores, os os critérios de sinceridade relaxados ou abandonados. É a partir dessa

segunda leitura que construiremos nossa argumentação, defendendo que a dicotomia

entre conflito e consenso é um falso problema:

Em suma, o programa de tipo II dispensa as estreitas precondições para a

deliberação que são (indiscutivelmente) excludentes para quase todos,

alargando, dessa forma, o programa deliberativo. [Com esse modelo]

democratas deliberativos podem, também, construir pontes com democratas

da diferença. Sendo potencialmente mais palatável para uma gama mais

ampla de pesquisadores, os padrões de deliberação de tipo II são menos

distantes da prática deliberativa típica do que o tipo I. O tipo II é claramente

mais focado na resolução de problemas e em questões empíricas do que em

questões teóricas – embora possa haver um intercâmbio entre ambos quando

reivindicações normativas são tratadas como hipóteses a serem exploradas e

testadas, mantendo uma abertura para se alterar a teoria quando necessário”

8

(Bächtinger et. al, 2010, p. 44)7.

Para facilitar a exposição, organizamos as críticas à teoria deliberativa em três

categorias, todas interconectadas, muitas vezes, com um mesmo autor se encaixando em

mais de uma delas: 1) as críticas antimarginalizantes, que lidam com o fato de

demandas por razão, consenso e bem comum preconizadas pela teoria deliberativa

marginalizarem ou excluírem membros de grupos minoritários, como negros e

mulheres; 2) as antiliberalistas, que trabalham com a forma pela qual os princípios da

deliberação cedem aos preceitos do liberalismo, levando à perda do potencial

emancipatório da corrente e à emergência de contradições internas; 3) as

anticonsensualistas, que trabalham com o apagamento da dimensão confrontacional da

política presente na teoria deliberativa. Faremos uma breve exposição dos argumentos

desses críticos, antes de aprofundarmos no posicionamento dos teóricos

deliberacionistas contra eles.

Críticas antimarginalizantes

Sobretudo a partir do feminismo, uma visão recorrente contrária à deliberação é

a de que a maioria dos seus teóricos supõe uma discussão carregada de viés cultural –

elitista, masculinizada, racional – que tende a silenciar ou desvalorizar determinadas

pessoas ou grupos. Nessa leitura, a deliberação pressupõe a ideia de um elemento

comum de entendimento, e seu modelo deriva de contextos institucionais específicos do

ocidente moderno, observáveis no debate científico, no parlamento e nos tribunais.

Contextos estes descendentes da filosofia e da política gregas e romanas e da academia

medieval. Para autoras como Iris Marion Young (2001) e Lynn Sanders (1997), a

deliberação acaba por se operacionalizar a partir de instituições dominantes, de espaços

e modelos institucionais elitistas e exclusivistas, bem como as concepções de razão,

7 . No original, em inglês: “In sum, the type II program dispenses with the narrow preconditions

for deliberation that are (arguably) exclusionary to all but a few, broadening the deliberative program

this way, deliberative democrats can also build bridges to difference democrats. As well as being

potentially more palatable to a wider set of scholars, type II deliberation’s standards are less remote from

typical deliberative practice relative to type I deliberation’s. Type II is typically more problem-driven and

empirically grounded, rather than theory-driven—although there may be an interplay between the two

where the normative claims are treated as hypotheses to be explored and tested, maintaining an openness

to modifying the theory where necessary”.

9

deliberação e dos estilos retóricos que as representam. Para Sanders (1997), a

deliberação nos moldes expostos pelos primeiros trabalhos de Habermas e Cohen

aparece como uma ferramenta para a manutenção do status quo, excluindo aqueles que

não se encaixam na lógica do debate racional. Sanders e Young defendem a inclusão de

modos de comunicação mais acessíveis, incluindo o uso de modos de expressão como o

testemunho e a narrativa pessoal no debate público.

Uma crítica fundamental desenvolvida pelo feminismo8, e que servirá de

impulso para a construção do conceito de Sistema Deliberativo por Jane Mansbridge

(1999), é contestação da dualidade entre os conceitos de esfera pública e esfera privada.

Dialogando com Carole Pateman e Nancy Fraser, Flávia Biroli (2014, p. 31) afirma que

essa dualidade acaba por definir uma série de experiências como privadas e não-

políticas, isolando a política das relações de poder da vida cotidiana e negando o caráter

conflitivo das relações familiares e de trabalho. Haveria, na conceituação habermasiana

de esfera pública, uma construção homogênea que silencia a existência de públicos

distintos e conflitivos, imperando publicamente os valores de um público restrito Esses

pontos têm conexão aos levantados por Amelie Rorty (1985) e Martha Nussbaum

(1995). Ambas veem falhas no que seria a construção de uma dicotomia entre a razão e

a emoção na teoria deliberacionista. Elas defendem que a corrente negaria o fato de as

emoções sempre incluírem alguma forma de apreciação e avaliação e de a razão precisar

pelo menos de um comprometimento emocional com o raciocínio.

Críticas antiliberalistas

Chantal Mouffe (2005) é responsável pelas avaliações mais contundentes contra

8 . Essa crítica também se aplica a e é feita dentro de outras correntes. Rancière, por exemplo, ao

desconstruir o entendimento da democracia como modo de vida, critica o que vê como tendência de

reflexões na filosofia política que identificam, nos sujeitos, qualidades e competências que possam

distinguir, sem muitas ressalvas, aqueles que são hábeis em atuar no espaço público de discussão dos

interesses partilhados (que são destinados à política) e aqueles que se ocupam mais intensamente de sua

própria vida privada – e que, por isso, não possuem tempo ou habilidades necessárias para tomar parte em

debates mais amplos. Além de Habermas a crítica de Rancière se estende a Tocquville e Hannah Arendt,

que seguiriam um filão iniciado no pensamento clássico grego com Aristóteles e Platão (Lelo e Marques,

2014, p. 354).

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a teoria deliberacionista, fundamentada a partir de apropriações de conceitos

desenvolvidos pelos filósofos Ludwig Wittgenstein e Carl Schmitt. Para Mouffe, cujo

olhar se detém nas obras de Rawls e Habermas, a vertente deliberativa se mantém refém

do paradigma liberal de democracia, o que tem por base a forma como os dois autores

tratam a questão da autonomia privada e da autonomia pública. Para Mouffe, tanto

Habermas quanto Rawls negam o caráter paradoxal da democracia moderna, que é a

tensão entre democracia e liberalismo. Dialogando com Mouffe, Miguel (2013) avalia

que a teoria deliberativa reproduziria uma linha divisória entre mundo da economia –

desigual – e mundo político – igualitário – presente no ordenamento jurídico liberal

contemporâneo. “A igualdade substantiva não é importante, uma vez que todos podem

discutir como se fossem iguais, isto é, a produção de direitos formais de cidadania surge

como condição suficiente para a efetivação do debate público ideal” (Miguel, 2013, p.

69). Com isso, os homens proprietários da esfera pública burguesa habermasiana só

estariam livres para conversarem entre si e agir em comum porque as vozes que

poderiam discordar – gerar conflito – estariam ausentes por falta de condições para

estarem presentes. O modelo liberal não permite inclusão, mas cria uma falsa ilusão de

que ela seria possível, afirma.

Críticas anticonsensualistas

Autores como Rancière e Miguel avaliam que a teoria democrática tem

caminhado para uma “virada consensualista” a partir dos anos 1990. Habermas e Rawls

são vistos como os principais responsáveis por essa guinada, presente nas visões que se

consideram emancipatórias e herdeiras da teoria crítica. A interpretação é de que esses

autores veem o consenso como uma possibilidade sempre em aberto, quando não

objetivo de toda a ação humana (Miguel, 2013, p. 78). Nos deteremos, aqui, na

avaliação que Mouffe faz a esse respeito.

Retomando a argumentação de Chantal Mouffe, o que está em jogo na teoria

democrática é a criação de cidadãos democráticos, que passa, por sua vez pela

disponibilidade de formas democráticas de expressão de individualidade e subjetividade

por esses cidadãos. Porém, ao privilegiar a racionalidade, tanto a perspectiva

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deliberativa como a agregativa deixam de lado um elemento central, que é o papel das

paixões e afetos na garantia da fidelidade a valores democráticos, avalia a autora – em

profunda conexão com a visão das feministas por nós apresentada anteriormente.

Ela propõe que a democracia coloque ênfase nos tipos de práticas e não nas

formas de argumentação. Para isso, Mouffe se inspira em Wittgenstein e sua crítica ao

racionalismo. De acordo com a filosofia da linguagem de Wittgenstein para se buscar

acordos de opinião, deve-se haver acordo sobre formas de vida. Concordar com a

definição de um termo não é suficiente e precisamos de acordos sobre o modo que o

utilizaremos. Isso significa que os procedimentos devem ser entendidos como conjuntos

de práticas. Regras, para Wittgenstein, são sempre abreviações de práticas, são

inseparáveis de suas formas de vida específicas. Com esse argumento, uma distinção

estrita entre “procedimental” e “substancial” ou entre “moral” e “ética” não se

sustentariam.

A partir dessa visão, Chantal Mouffe vai defender a construção de um modelo

agonístico de democracia que leve em conta a natureza confrontacional das relações

políticas e não apague questões intersubjetivas e afetivas dos sujeitos. Sem a construção

de consensos como meta primordial e que reconheça o poder e os atos de poder

existentes na política.

E mesmo dentro do liberalismo é possível encontrar críticas. Para Ian Shapiro

(1999), por exemplo, ao fomentar consensos num mundo em que o conflito é parte

constitutiva, os modelos deliberativos poderiam estar sendo opressivos. Sua crítica à

deliberação está cristalizada em um artigo com o sugestivo título Enough

deliberation?9. Trata-se de um contraponto a Democracy and Disagreement, de

Gutmann e Thompson (1998). Para Shapiro, ao enfatizarem a deliberação como forma

de resolução de controvérsias, Gutmann e Thompson dão pouca atenção ao fato de que

discordâncias morais na política são delimitadas por diferenças de interesse e poder.

Na sequencia apresentaremos respostas e recepções da corrente às críticas

listadas até o momento.

9 . Em tradução livre do inglês, “Chega de deliberação?”.

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Metaconsenso e sistema deliberativo

Mendonça (2011) afirma que a ideia de que a deliberação é formulada para

pensar a troca polida de razões é um falso problema. “Ao contrário, a deliberação

pressupõe o embate com o outro e o choque de perspectivas”, diz. Para o autor, essa

visão polida da deliberação estaria relacionada a dois olhares equivocados: “a

compreensão inadequada dos requisitos de mutualidade” e “a visão de que deliberações

aspiram consensos substantivos”. Mendonça afirma que, apesar de alguns autores como

Gutmann e Thompson (1996 e 2004) colocarem a deliberação como altruísmo ou uma

atitude favorável ao outro e, no caso de Habermas, estipular que a imparcialidade seja

requisito importante para que ela aconteça, ele não acredita que a democracia

deliberativa dependa de “uma acepção tão estrita de reciprocidade” (Mendonça, 2011, p.

209). A deliberação não requer imparcialidade, diz, mas uma orientação que considere o

outro – o que tem a ver com reciprocidade, com o fato de os cidadãos se perceberem

envolvidos num projeto político comum (O'Flynn, 2006, p. 85 Apud: Mendonça, 2011),

de eles se reconheçam como interlocutores e não se ignorarem. Nesses casos é possível

pensar a prática deliberativa como algo que ocorre em meio a disputas de poder e

interesses.

Quanto ao segundo equívoco, o de que a deliberação aspiraria a consensos

substantivos homogeneizantes – levando à assimilação da diferença, como posto por

Young – Mendonça também afirma que a deliberação aposta na interlocução mesmo

quando a discordância é insuperável, mas é preciso superar a ideia de que a deliberação

busca sempre o consenso. Citando Mansbride et al (2006), ele reconhece que a meta do

consenso era comum nos primeiros estudos sobre deliberação, mas que é algo pouco

aceito na teoria atualmente. “Mais do que uma convergência de opiniões a deliberação

busca gerar acordos operacionalizáveis (Eriksen, 2000; Dryzek, 2000) ou disssensos

razoáveis (Wessller, 2008), calcados no respeito às posições e valores dos outros atores

sociais” (Mendonça, 2011: p. 211).

Para Chambers (2009), é ultrapassada a visão “restrita e altamente racionalista”

do processo de troca de razões, que enfatiza um modelo de imparcialidade que deve

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prevalecer acima de toda diferença. Para ela, hoje grande parte da teoria deliberativa

adota uma perspectiva mais flexível e pluralista do processo de troca de razões.

No entanto é inegável dissociar os argumentos de Mouffe das reformulações

teóricas da deliberação. Dryzek (2005) defende uma democracia discursiva que possa

lidar, inclusive, com diferenças profundas. Ele afirma que isso envolve dissociar,

parcialmente, os momentos deliberativos da democracia dos momentos decisórios,

“localizando a deliberação no engajamento do discurso na esfera pública, a certa

distância do Estado soberano” (Dryzek, 2005, p. 220). Ele defende esse argumento via a

discussão do agonismo – focando na crítica de Chantal Mouffe à deliberação nas

sociedades plurais – e da consociabilidade.

Mas a principal contribuição de Dryzek é na construção do conceito de

metaconsenso, termo cunhado em conjunto com Simon Niemeyer. Os autores fazem

uma tipologia do consenso e expressam o que seria o consenso universal para, na

sequencia, afirmar que eles não precisam ser alcançados em sua totalidade. Os três tipos

de consenso – colocados por eles a partir da obra de John Elster – seriam:

The first, normative consensus (or what Rescher 1993 calls axiological

consensus) refers to agreement regarding values driving the decision process.

The second, epistemic consensus, refers to the judgmental aspect of

preference formation, agreement about how particular actions map onto

values in cause and effect terms. The third type, preference consensus,

pertains to the degree of agreement about what should be done. (…)

Universal consensus in Femia's (1996, 368) terms would occur with

agreement in all three aspects-normative, epistemic and, consequently,

preference. (Dryzek e Niemeyer, 2006, p. 638)

No entanto, os dois autores vão afirmar que a deliberação não depende de um

consenso substantivo. O argumento de ambos é sintetizado por Mendonça:

Para eles [Dryzek e Niemeyer), a deliberação não depende de um consenso

substantivo em termos de valores, crenças e preferências. Ela visa a acordos

que atribuam legitimidade às posições de outros interlocutores, mesmo

daqueles de quem se discorda. Os metaconsensos normativo, epistêmico e de

preferências existem quando se reconhece a legitimidade, respectivamente

dos valores, crenças e anseios dos outros atores (Mendonça, 2009, p. 98).

Para Mansbridge et al. (2006), uma boa deliberação está relacionada aos

14

seguintes pontos: “a examinação de um problema ou questão, a identificação de

possíveis soluções, o estabelecimento ou reafirmação de critérios de avaliação e o uso

desses critérios na identificação de soluções ótimas para esses problemas/questões.

Essas definições não excluem apelos emocionais nem a expressão de sentimentos

fortes”.

O modelo da negociação deliberativa, proposto por Mansbridge com outros

colaboradores (2010), inclui quatro modelos de acordo comunicativo: processo de

convergência, acordos incompletamente teorizados, negociações integrativas e

negociações distributivas. Os autores negam a distinção entre interações coercitivas e

não-coercitivas para desenhar uma linha analítica que leve em conta duas categorias de

negociação – formas não coercitivas, consideradas como deliberativas, e as que usam a

força, não deliberativo. Mesmo as coercitivas, quando sujeitas ao escrutínio público se

encontram ao ideal deliberativo – e são legítimas e necessárias à democracia.

Eles veem esses processos como convergência. É interessante notar que os

autores propõem que todos os participantes saibam dos interesses que cada um traz para

a mesa de negociações, de modo que eles possam pensar/refletir melhor sobre o que é

posto. Para Mansbridge el al (2010), mesmo em uma deliberação que visa o consenso

sobre o bem comum, a exploração dos interesses deve desempenhar um papel, para

reduzir a possibilidade de ofuscamento de informações que facilitam a razoabilidade das

decisões e a identificação dos resultados integrativos. Ainda de acordo com Mansbridge

et al é preciso se atentar sobre a questão do poder. O ideal de poder sem coerção é

impossível de alcançar, argumentam, e ainda difícil de ser imaginado. Todos os homens

são produto das relações de poder e a própria presença no mundo é uma forma de seu

exercício. Na prática, algum poder coercitivo é necessário a uma deliberação

simplesmente para manter a ordem, dizem. O uso mais distorcido do poder em relação à

deliberação surge quando uma das partes em negociação tem mais poder de recursos

que a outra e tem intenção de usá-lo contra os demais interesses. Nesses casos

justificam-se táticas mais coercitivas. Após a decisão deliberada em um verdadeiro

consenso, ela ainda pode ter de ser implementada por meio de poder coercitivo. E em

casos em que interesses e opiniões continuam em conflito após o processo deliberativo,

15

mecanismos não-deliberativos que facilitam a adaptação mútua e produzam decisões

razoavelmente justas e aceitáveis podem ser acionados pelas democracias –

procedimentos que podem ser legítimos quando resultam de casos em que a deliberação

foi conduzida em condições razoáveis.

MAPEANDO O CONFLITO E MOMENTOS DELIBERATIVOS

Com o objetivo de reconstituir momentos de confronto dentro do processo da

questão Gandarela, nossa proposta metodológica é a de realizar entrevistas em

profundidade com atores de quatro cinco grupos envolvidos com na problemática: a)

membros do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela (07 entrevistados); b)

funcionários públicos do Sistema de Meio Ambiente de Minas Gerais (SISEMA) e do

Instituto Chico Mendes (05 entrevistados); c) prefeitos e ex-prefeitos dos municípios

afetados (05 entrevistados); d) funcionários da Vale S/A (03 entrevistados); e)

Moradores de comunidades no entorno da serra (05 entrevistados).

Até março de 2015 havíamos realizado cinco entrevistas, com representantes do

grupo dos membros do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela. As

entrevistas foram gravadas. Apresentaremos aqui os resultados parciais encontrados. Em

cada entrevista buscou-se reconstituir o processo histórico da disputa política desde o

momento em que o entrevistado adentrou no debate público sobre o futuro da região.

Também pedimos aos entrevistados que pontuassem os momentos em que a dimensão

conflitiva foi mais intensa, bem como aqueles momentos em que houve mudanças de

opinião por parte dos atores envolvidos. Para facilitar a leitura, retomamos, na tabela a

seguir, uma cronologia ampliada dos fatos.

Tabela 1

Cronologia

Data Ação

2005 Vale S/A faz reunião informal com a comunidade do André do Mato

Dentro, município de Santa Bárbara, e apresenta projeto de

mineração na região

2007 Associação Comunitária do André do Mato Dentro lança lista de e-

16

mail intitulada “SOS Espinhaço – Serra do Gandarela”

Agosto de 2009 Criação do Movimento Pela Preservação Serra do Gandarela

Setembro de

2009

Vale apresenta proposta da Cava Norte – Projeto barrado pelo

Conselho Gestor da Área de Preservação Ambiental do Vetor Sul da

Região Metropolitana de Belo Horizonte (APA Sul)

Setembro de

2009

Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, por meio do

Projeto Manuelzão, faz envio documento ao ICMBio com pedio

para criação do Parque Nacional na serra.

Outubro de 2009 Vale apresenta Projeto Apolo, com pedido formal de licenciamento

no Conselho Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais

(COPAM)

2010 Audiências Públicas da Mina Apolo em 6 municípios

2010 Governo de Minas Gerais cria os Grupos de Trabalho 1 [restrito a

Semad-MG e Ministério do Meio Ambiente] e 2 [aberto] para

discutir possibilidades de conciliação entre o projeto do parque e

projetos de mineração na região da Serra

2011 Consultas Públicas sobre o Parque Nacional em 6 municípios

2011 Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela formaliza

proposta de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável

(RDS)

2014 Prefeitura de Rio Acima faz tombamento, por relevância

patrimonial, do trecho da Serra do Gandarela que corta o município

– ação impede empreendimentos de grande porte na área, mas pode

ser questionada juridicamente.

2014 Governo federal cria PARNA Gandarela, com limites inferiores ao

reivindicado pelo Movimento. Área da Mina Apolo fica de fora da

reserva. RDS não é criada.

(Elaboração própria)

Sintetizamos as respostas dadas pelos entrevistados na tabela a seguir.

Tabela 2

Momentos de conflito e transformação de percepção segundo entrevistados

(Movimento Gandarela)

Entrevistado Identificação Momentos

críticos/conflituosos

Momentos

transformadores

17

Gustavo

Gazzinelli

jornalista e

ambientalista,

membro do Fórum

Nacional da

Sociedade Civil nos

Comitês de Bacias

Hidrográficas

(Fonasc-CBH),

morador de Belo

Horizonte

1. Consultas Públicas PARNA

Gandarela: então prefeito do

município de Santa Bárbara o

agride (Gustavo) verbalmente,

buscando deslegitimar sua

argumentação -“ambientalista,

sustentado pelo papai”.

2. GT 2: governo do estado

“chega” ao GT impondo a

necessidade de compatibilizar

projeto do parque com a Mina.

O Movimento fica indeciso

(tensão interna): se sai do GT,

sessa a possibilidade de

interferir na política pública.

Se permanece, corre o risco de

talvez corroborar com uma

tese da qual não concordaria

(manter Mina junto com o

Parque). Movimento acaba

optando por permanecer no

GT.

1. Audiências Mina Apolo:

ambientalistas conseguem

convencer técnicos da

Secretaria de Meio Ambiente

sobre a necessidade de se

ampliar o número de

audiências públicas para

discutir o licenciamento da

mina. Só duas estavam

previstas. Outras quatro são

aprovadas e realizadas.

2. Audiência Apolo: “O clima

era muito hostil, mas

conseguimos convencer as

populações locais sobre a

importância da preservação da

serra”.

3. GT 2: O Movimento

convence o técnicos do

governo que conduziam o

debate que era necessário

gravar todas as 12 reuniões do

GT, de modo a garantir a

legitimidade das discussões ali

realizadas. Movimento

também consegue convencer

os participantes a não

tomarem decisões por meio de

voto, mas pela busca da

resolução da questão por meio

da apresentação de questões

técnicas.

Glória Perpétuo

(Glorinha)

Cientista social,

agricultora familiar

e moradora da

comunidade do

André do Mato

Dentro (Santa

Bárbara, nas bordas

da Serra). Foi

membro da

Associação

Comunitária

quando a Vale

apresentou a

proposta de

mineração na

região.

1. Reuniões com comunidades

do entorno para apresentar

proposta do parque: momentos

de tensão – moradores

queriam empregos da Mina e

questionavam proposta do

Parque.

2. Audiências Públicas:

1. Apresentação da proposta

da RDS às comunidades rurais

do entorno da Serra:

2. O processo de mobilização

como um todo faz com que a

percepção dos moradores com

relação a Serra se altere. Antes

a Gandarela era somente a

“crista” da serra. Com a

mobilização, moradores

passam a entender que a

importância ambiental é para

uma área mais ampla. Além

disso, as ações de mobilização

contribuem para a criação de

uma identidade – ser parte do

Gandarela – para as diversas

18

pequenas comunidades do

entorno da serra.

3. Crise hídrica (2014): crise

hídrica faz com que parte dos

moradores das comunidades

rurais, que antes se opunham à

proposta das reservas passem

a considerar a necessidade da

proteção do território.

Paulo Horta Geólogo,

pesquisador do

Centro de

Desenvolvimento

da Tecnologia

Nuclear (CDTN),

morador de Belo

Horizonte

1. GT 2: ver argumentos de

Gustavo.

1. Crise hídrica: com a crise

hídrica de 2014, aumenta o

número de pessoas

interessadas em

2. Prefeito Rio Acima

(tombamento)

Maria Teresa

Corujo (Teca)

Artesã, membra da

ONG Macaca, do

SOS-Serra da

Piedade e moradora

de Caeté

1. GT 2: ver argumentos de

Gustavo.

1. Prefeito Rio Acima

(tombamento)

Paulo Batista Fotógrafo,

professor de

fotografia da Escola

de Belas Artes da

UFMG, morador de

Belo Horizonte

1. GT 2: ver argumentos de

Gustavo.

1. Crise Hídrica

2. Ações de mobilização

fazem com que moradores da

região metropolitana

descubram a Gandarela.

Construção de uma percepção

de que é preciso preservar

espaços que proporcionem

“descanso” para o olhar.

Construção de uma percepção

da necessidade de se preservar

a paisagem, e da importância

simbólica da paisagem

preservada.

Preocupada com a pequena preocupação dada pela teoria deliberativa às

organizações da sociedade civil, Jenniffer Dodge (2010, 2014) vai olhar para as

contribuições de controvérsias geradas por essas organizações para o Sistema

Deliberativo. Olhando especificamente para questões ambientais, para a autora, os

movimentos sociais constroem tanto “narrativas sobre questões ambientais quanto

processos deliberativos para moldar a formulação de políticas” (DODGE, 2014, p. 161)

19

e a forma como a deliberação é construída. As narrativas construídas pelos movimentos,

aponta Dodge, buscam:

“1) definir ou alterar os riscos ambientais debatidos na agenda pública; 2)

construir o formato da deliberação pública, alterando as regras do jogo; 3)

construir o conteúdo da deliberação pública, formatando significados

relacionados à política ambiental e, 4) alinhar os fóruns, arenas e tribunais

integrantes do sistema10” (DODGE, 2014, p. 163).

Para a autora, essas construções narrativas feitas pelos movimentos ampliam a

qualidade da deliberação pública e a maneira como as políticas ganham corpo (shape),

ainda que esse processo seja temperado por competição entre narrativas alternativas e

disputas de poder. O argumento de Dodge é: seja a postura dos movimentos

confrontacional ou cooperativa, ambas podem ser lidas no âmbito deliberativo. Os

movimentos podem, por exemplo, usar da força para garantir fins deliberativos (Dodge,

2009).

No caso Gandarela, a pressão de membros do Movimento, durante as duas

primeiras audiências públicas sobre a Mina Apolo, em 2010, fez com que o número

dessas audiências fosse ampliado de dois para seis municípios – ampliando a

possibilidade de debate público sobre a questão. Também a pressão do movimento sobre

o Estado fez com que as reuniões do Grupo de Trabalho 211 fossem registradas em áudio

– ampliando a legitimidade das discussões e dos resultados apresentados após os

encontros –, e que as decisões não fossem tomadas somente pelo voto, valorizando a

exposição argumentativa. É interessante notar, como, também, os membros do

movimento manifestam a visão de que as audiências do sobre o projeto Apolo foram

importantes para expor para a população o entendimento de que a Serra do Gandarela

era um importante aquífero e, por isso, não deveria ser vista somente na perspectiva de

10 No original, em inglês: “(1) to set the agenda on environmental hazards, (2) to construct the form of

public deliberation, changing the rules of the game, (3) to construct the content of public deliberation,

shaping meanings related to environmental policy, and (4) to couple/align forums, arenas and courts

across the system.”

11 O Grupo de Trabalho 2 foi criado pelo governo de Minas Gerais no segundo semestre de 2012,

reunindo representantes do ICMBio, Ibama, Sistema Estadual do Meio Ambiente, Movimento pela

Preservação da Serra do Gandarela e mineradoras com intenção de atuar na região. Foram feitas 12

reuniões. Os resultados do GT subsidiaram as Consultas Públicas do PARNA Gandarela. Ver mais no

capítulo 1.

20

exploração mineral. “O que o corpo de estudos sobre movimentos sociaie sugere é que o

entendimento do papel das organizações da sociedade civil na democracia deliberativa é

crítica” (DODGE, 2014, p. 162).

A autora prossegue afirmando que olhar a deliberação como forma de construção

de políticas públicas envolve compreendê-la como uma contestação dos significados das

política públicas existentes e de seus processos de construção. O desafio, aponta, é

construir metodologias que deem conta de apreender as contestações de significados

presentes nas narrativas sobre problemas públicos, as diferentes soluções apresentadas

para a resolução desses problemas e as formas apropriadas de deliberação para que se

busque solucionados – contextos permeados de conflitos.

É importante observar como, num nível macro, a sociedade civil faz

contribuições para que um debate público aberto, sobre temas importantes para uma

dada população, seja feito na esfera pública, muitas vezes fora do Estado, outras tantas,

contra o Estado (Habermas, 2012; Dryzek, 2000; Hendriks, 2006; Dogde, 2014). A

grande questão, é que para que o resultado seja alcançado, muitas vezes a sociedade

civil abrirá mão de ações estratégicas. Para Hendriks, formas estratégica e comunicativa

de engajamento não se excluem, mesmo a primeira não sendo normativamente ideal. O

ideal é que a sociedade civil tenha a habilidade de saber lidar com ambas habilidades.

Hendriks inclusive diz que ativistas aprendem a enquadrar argumentos em

termos “imparciais”, visando o potencial multiplicador dos

enquadramentos/entendimentos do movimento diante pessoas externas à discussão. Essa

última leitura, no entanto, é questionada por Dodge, para quem, numa sociedade

desigual como a contemporânea seria preciso por em dúvida o ideal de imparcialidade,

por ele poder neutralizar o desrespeito (outrage) vivenciado por muitos movimentos12.

Sempre se referindo a movimentos ambientalistas, ela avalia que, nesses contextos, seria

mais apropriada a ideia de um advocacy deliberativo, em que a sociedade civil faria

12 Em seu artigo “Civil society organizations and deliberative policy making: interpreting

environmental controversies in the deliberative system”, Dodge trabalha com o caso de um

movimento ambientalista que luta contra a concentração de instalações poluentes em seus bairros,

onde crianças sofrem de hemorragias nasais e outros problemas respiratórias. Diante de tamanha

indignação moral, diz Dodge, seria demais exigir imparcialidade, mesmo que ela visasse o

convencimento de outros atores políticos e cidadãos para a questão (2014, p. 181).

21

reivindicações, no espaço público, sobre as injustiças com as quais se depara e busca

superar. Tendo Fung (2003) como referência Dodge afirma:

[As organizações da sociedade civil] podem demonstrar interesse em

participar da democracia deliberativa, mas não em condições de

imparcialidade. Ao contrário, elas se reservam ao direito de se engajar na

ação de confronto caso as regras deliberativas as exclua ou caso as ideias

hegemônicas limitem o potencial de fazer questionamentos sobre riscos

ambientais” (Dodge, 2014, p. 180-181)13.

É preciso ressaltar, no entanto, que Hendriks (2006) é cautelosa sobre o

envolvimento da sociedade civil em espaços deliberativos formais, tendo em vista a

possibilidade de cooptação, pelo Estado, e a perda de poder. Isso faz com que, muitas

vezes, a decisão sobre trabalhar com ou conta o Estado se torna uma escolha difícil,

avalia. No caso Gandarela, avaliamos que não se trata de uma dicotomia (ir com ou

contra o Estado), mas que há a possibilidade de ambas as dimensões atuarem

simultaneamente, uma vez que a realização dos objetivos do movimento só é com um

posicionamento efetivo do Estado na direção desejada pelo grupo.

Esses são exercícios iniciais de análise. Acreditamos que ao aprofundamos nossa

pesquisa com entrevistas dos demais atores envolvidos com a questão Gandarela, novos

desdobramentos sobre o entendimento de momentos deliberativos nesse caso poderão

surgir. Também reconhecemos a limitação metodológica as entrevistas e a possibilidade

dos membros do Movimento em superdimensionar os resultados das suas ações.

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13 No original, em inglês: “They may show willingness to participate in deliberative democracy but not

under conditions of impartiality. Rather, they reserve the right to engage in confrontational action if

deliberative rules shut them out or if hegemonic ideas limit their potential to make claims about

environmental hazards”.

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24

Anexo I – Mapas

Mapa 1 - Proposta inicial PARNA Gandarela

Fonte: ICMBio (2009)

25

Mapa 2 – Áreas de interesse da Vale S/A na Serra do Gandarela e formação de cangas

26

Fonte: Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela (2014)

27

Mapa 3 - Parque Sancionado em outubro de 2014