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DEFESA DE TESE
CAIRUS, Henrique Fortuna. Os limites do sagrado na nosologia
hipocrĂĄtica. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 1999. 175 fls. mimeo. Tese de Doutorado em LĂngua e Literatura Grega.
BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Nely Maria Pessanha (UFRJ) Orientadora Professor Doutor Hime Gonçalves Muniz (UFRJ)
Professor Doutor Carlos AntĂŽnio Kalil Tannus (UFRJ)
Professora Doutora Filomena Yoshie Hirata (USP)
Professor Doutor Jaime Larry Benchimol (FIOCruz)
Professora Doutora Marilda Evangelista dos Santos (UFRJ) Suplente
Professor Doutor Jacyntho Lins BrandĂŁo (UFMG) Suplente
Defendida a tese: Conceito: Em:___/12/1999
2
OS LIMITES DO SAGRADO NA NOSOLOGIA HIPOCRĂTICA
por Henrique Fortuna Cairus,
Departamento de Letras ClĂĄssicas
Tese de Doutorado em Letras ClĂĄssicas (LĂngua e Literatura Grega) apresentada Ă Coordenação dos Cursos de PĂłs-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Nely Maria Pessanha.
Faculdade de Letras - UFRJ Rio de Janeiro, segundo semestre de 1999
3
SINOPSE
Limites da laicização da doença no século V a.C. Contribuição dos tratados hipocråticos Da doença sagrada e Ares åguas e lugares para a cultura da Grécia Clåssica. A importùncia do tratado Da doença sagrada no Corpus hippocraticum. Tradução do tratado. Reflexos do tratado na Cultura Grega.
4
HELENĂ
UXORI, AMICĂ COMITIQUE OFFERO
ET NOEMIĂ
MATRI DEDICO
HOC OPUS CUNCTAQUE OPERA
5
à Professora Titular Doutora Nely Maria Pessanha, pela orientação
dedicada e minuciosa; Ao Professor Titular Doutor Afonso Carlos Marques dos Santos, pelo
generoso entusiasmo por meu trabalho; Ao Professor Doutor Paulo Knauss, pelos incentivos inĂșmeros; Ă Professora Doutora Maria Aparecida Resende Mota, pela amizade e
pelos sĂĄbios conselhos; Ă Professora Titular Doutora Celina Maria Moreira de Mello, pela
confiança depositada em minhas forças; agradeço.
A Noemia, minha mĂŁe, pelo apoio permanente e compreensĂŁo infinita,
presto este insuficiente tributo. A Helena Mollo, pelas leituras atentas, comentĂĄrios indispensĂĄveis e
liçÔes pacientes, declaro-me mais do que devedor.
6
SUMĂRIO
1. INTRODUĂĂO ...............................................................................
2. OS LIMITES DO SAGRADO
ENTRE LITTRĂ E PIGEAUD .........................................................
3. TRADUĂĂO INTEGRAL DO TRATADO
DA DOENĂA SAGRADA ...........................................................
3.1. Nota à tradução ......................................................................
3.2. Da doença sagrada ................................................................
4. A DOENĂA E O SAGRADO
NO SĂCULO V a.C ........................................................................
5. ITERAĂĂO E COMPLEMENTAĂĂO ENTRE OS TRATADOS
DA DOENĂA SAGRADA E ARES, ĂGUAS E LUGARES ..............
6. CONCLUSĂO ................................................................................
7. BIBLIOGRAFIA .............................................................................
12
22
41
41
42
70
137
159
162
7
ABREVIATURAS
Conspectus siglorum
a) Dos tratados médicos
AAL ââ Ares, ĂĄguas e lugares (PeriV ajevrwn, uJdavtwn, tovpwn)
Af. ââ Aforismos ( jAforismoiv)
Afec. ââ Das afecçÔes internas (PeriV tw~n entoVÏ paqw~n)
Art. ââ Da arte (PeriV tevcnhÏ)
Diet. ââ Da dieta (PeriV diaivthÏ)
MS ââ Da doença sagrada (Periv iJerh~Ï nouvsou)
NH ââ Da natureza do homem (PeriV fuvsioÏ ajnqrwvpou)
Pren. ââ PrenoçÔes de Cos (KwakaiV prognwvsieÏ)
Progn. ââ PrognĂłstico (Prognwstikovn)
Vent. ââ Dos ventos (PeriV fusw~n)
b) gerais
CH ââ Corpus hippocraticum
CMG ââCorpus medicorum graecorum. Ediderunt Academiae
Beroinensis, Hauniensis Lipsiensis. Leipzig (et Berlin), a
partir de 1947.
DK ââ ReferĂȘncia numĂ©rica dos fragmentos dos filĂłsofos prĂ©-
socrĂĄticos adotada pela obra DIELS & KRANZ (1951-92)
Hdt. ââ HerĂłdoto
Hom. ââ Homero
8
GUAL ââ ReferĂȘncia a: TRATADOS hipocrĂĄticos. Tradução, introduçÔes
e notas por Carlos GARCĂA GUAL (org.), Maria D. NAVA,
J. LĂPEZ FERREZ, B. ĂLVARES CABELLOS et alii.
Madrid: Gredos, 1983-1990. 6 vols.
Tuc. ââ TucĂdides
W ââ ReferĂȘncia numĂ©rica adotada por WEST (1989-92)
ĂĄt. ââ dialeto ĂĄtico
gr. ââ grego
jĂŽn. ââ dialeto jĂŽnico
lat. ââ latim
lit. ââ literalmente
d) Das ediçÔes do Corpus hippocraticum
LITTRĂ ââ ReferĂȘncia a: OEUVRES complĂštes d'Hippocrate.
Traduction, introduction et notes philologiques par
Ămile LITTRĂ. Paris, Academie Royale de MĂ©decine,
tomo I, 1839; tomo II, 1840; tomo IV, 1844; tomo VI,
1849; tomo VII, 1851; tomo VIII, 1853; tomo IX,
1861; tomo X, 1861.
JOUANNA(1975) ââ ReferĂȘncia a: HIPPOCRATE. La nature de l'homme.
Edité, traduit et commenté par Jacques JOUANNA.
In: Corpus medicorum Graecorum. Berlin, Akademie-
Verlag, 1975.
9
JOUANNA(1996) ââ ReferĂȘncia a: HIPPOCRATE. Airs, eaux, lieux. Texte
Ă©tabli et traduit par Jacques JOUANNA, Paris, Les
Belles Lettres, 1996.
JONES ââReferĂȘncia a: HIPPOCRATES. With an english
translation by W.H.S. JONES and E.T. Withington.
London/Cambridge, Loeb Classical Library, 1923-92.
JOLY (1967a) ââ ReferĂȘncia a: HIPPOCRATE. Du rĂ©gime. Texte Ă©tabli et
traduit par Robert JOLY. Paris: Les Belles Lettres,
1967.
c) Manuscripta
(et ubi in quoque est De morbo sacro)
q ââ Vindobonensis 4. Codex chartaceus, saec.XI uel XII. MS:
frgm.
l ââ Vindobonensis 24. Codex chataceus ex collatione Dietzii, saec.
XI uel XII. MS: frgm.
E ââ Parisinus 2255 . Codex chartaceus quarti decimi, secundum
Littré (1839:512), uel, secundum Jouanna (1996:176), sexti
decimi saeculi.
F ââ 2144 in folio Parisinus. Codex chataceus quarti decimi saeculi.
MS:f.65, verso.
G ââ 2141 Parisinus. Codex chartaceus scriptus circa annum 1345,
varia manu. MS: f.80, recto. Cum hoc scriptione: w^ CristeV,
bohvqei moi tw/~ sw/~ douvlw/ jAlexivw/ Puropouvlw/.
10
H ââ 2142 Parisianus. Codex chartaceus, duis manibus (manus
posterior: decimi saeculi. manus recentior: quarti decimi
saeculi). MS: f. 97, recto.
I ââ 2140in folio Parisinus. Codex chartaceus, quarto decimo saeculo
scriptus. MS: f. 71, recto.
J ââ Parisinus 2143in folio. Codex chartaceus, decimi quarti saeculi.
MS: f. 71, verso.
K ââ Parisinus 2145 in folio. Codex chartaceus quarti decimi saeculi.
MS: f.108, verso.
M ââ Marcianus 269. Codex chartaceus decimi saeculi.
V ââ Vaticanus 276. Codex chartaceus ex collatione Dietzii , saec.
XII .
X ââ Parisinus 2332. Codex chartaceus, quarti decimi saeculi. MS: f.
213, verso.
Z ââ Parisinus 2148. Codex chartaceus, sexti decimi saeculi. MS:
f.59, verso.
11
touVÏ ajnqrwvpouÏ fhsiVn jAlkmaivwn diaV tou~to ajpovllusqai o@ti ouj duvnantai thVn ajrchVn tw/~ tevlei prosavyai. (Pseudo-AristĂłteles. Probl.XVII,3,916a33)
a!rxomai deV ajpoV th~Ï ijatrikh~Ï levgwn, i@na kaiV presbeuvwmen thVn tevcnhn. (....) !Esti deV e!cqista taV ejnantiwvtata (...), touvtoiÏ ejpisthqeiVÏ e!rwta ejmpoih~sai kaiV oJmovnoian, oJ hJmevteroÏ provgonoÏ jAsklhpiovÏ, w@Ï fasin oi@de oiJ poihtaiV kaiV ejgwV peivqomai, sunevsthse thVn hJmetevran tevcnhn.
(PlatĂŁo, Banquete, 186b&e, discurso de EurixĂmaco)
12
1. INTRODUĂĂO
O registro mais remoto que hĂĄ do banimento do sagrado de uma esfera
qualquer da atividade humana é um tratado de medicina. A laicização do
mundo helĂȘnico vinha ao encontro da nova ordem polĂade, que cada vez
lograva mais espaços no século de Péricles. A medicina exerceu um papel
fundamental e determinante nesse contexto de mudanças de cosmovisão. Na
criação do que aprendemos a chamar de Grécia clåssica, a medicina foi, mais
do que um importante elemento, um verdadeiro parĂąmetro. Entre os
reconhecidos pilares e mais ilustres epĂgonos dessa nova maneira grega de se
relacionar com o mundo, a medicina ocupa sempre um lugar na base de seus
pensamentos. PlatĂŁo, TucĂdides, os tragediĂłgrafos e mesmo AristĂłteles, filho
de médico1, reconheciam na medicina o paradigma de um novo modus
putandi.
A presença mais antiga de que dispomos do termo mevqodoÏ em seu
sentido de âmaneira de conduzir o raciocĂnioâ estĂĄ no Fedro de PlatĂŁo, e
refere-se precisamente Ă medicina. SĂłcrates perguntava a Fedro se Ă© possĂvel
conhecer a natureza da alma sem conhecer a natureza do todo. Fedro
responde-lhe que, baseado em HipĂłcrates de CĂłs, nĂŁo Ă© possĂvel conhecer o
corpo sem esse mĂ©todo. O que Fedro chama de mevqodoÏ vai ser praticado por
1 Vale lembrar que, na AntigĂŒidade, eram comuns as âfamĂlias mĂ©dicasâ. Galeno, em seu tratado Das operaçÔes anatĂŽmicas (II,280-1KĂŒhn), mostra que, ainda em seu tempo, a prescrição do Juramento de transmissĂŁo hereditĂĄria dos conhecimentos mĂ©dicos vigorava, embora sempre acompanhada do ensino pago, conforme exemplifica PlatĂŁo no ProtĂĄgoras (311b).
13
Sócrates através de anålise a partir da decomposição dos compostos em
unidades mĂnimas, observando sobretudo a propensĂŁo:
SWKRATHS â Yuch~Ï ou^n fuvsin ajxivwÏ lovgou katanoh~sai oi!ei dunatoVn ei^nai a!neu th~Ï tou~ o@lou fuvsewÏ; FAIDROS â Eij meVn JIppokravtei ge tw/~ tw~n jAsklhpiadw~n dei~ ti piqevsqai, oujdeV periV swvmatoÏ a!neu th~Ï meqovdou tauvthÏ. SW. â Kalw~Ï gaVr, w^ eJtai~re, levgei. CrhV mevntoi, proVÏ tw/~ JIppokravtei toVn lovgon ejxetavzonta, skopei~n eij sumfwnei~. FAI. â Fhmiv. SW. â ToV toivnun periV fuvsewÏ skovpei tiv pote levgei JIppokravthÏ te kaiV oJ ajlhqhVÏ lovgoÏ. ^Ar j oujc w%de dei~ dianoei~sqai periV oJtouou~n fuvsewÏ; Prw~ton meVn, aJplou~n h# polueidevÏ ejstin ou% pevri boulhsovmeqa ei^nai aujtoiV tecnikoiV kaiV a!llon dunatoiV poiei~n; !Epeita deV, a#n meVn aJplou~n h/^, skopei~n thVn duvnamin aujtou~, tivna proVÏ tiv pevfuken eijÏ toV dra~n e!con, h# tivna eijÏ toV paqei~n uJpoV tou~; ejaVn deV pleivw ei!dh e!ch/, tau~ta ajriqmhsavmenon, o@per ejf j eJnoVÏ tou~t j ijdei~n ejf j eJkavstou, tw/~ tiv poiei~n aujtoV pevfuken, h# tw/~ tiv paqei~n uJpoV tou~; SĂłcrates â EntĂŁo, quanto Ă natureza da alma, crĂȘs que Ă© possĂvel conhecĂȘ-la de uma forma digna de lovgoÏ2 sem conhecer a natureza do todo? Fedro â Quanto a isso, se se fiar em HipĂłcrates, da famĂlia dos AsclepĂades, nĂŁo Ă© possĂvel conhecer o corpo sem esse mĂ©todo [a!neu th~Ï meqovdou] SĂłcrates â Ă certo, meu companheiro, o que ele diz. Ă necessĂĄrio, porĂ©m, examinando o lĂłgos para alĂ©m
2 As traduçÔes de ajxivwÏ lovgou por âdigno de ser mencionadoâ me parecem reduzir demasiadamente o conteĂșdo do termo lovgoÏ; por outro lado, a tradução que sugiro (âde uma forma digna de lovgoÏâ), apenas preserva a estrutura mais prĂłxima do original, mas nĂŁo resolve o problema que sempre acompanha a tradução do termo lovgoÏ.
14
de HipĂłcrates, observar se este estĂĄ de acordo com aquele. Fedro â Ă o que digo. SĂłcrates â VĂȘ, entĂŁo, o que dizem sobre a natureza HipĂłcrates e o lĂłgos verdadeiro. NĂŁo seria assim que Ă© preciso pensar sobre a natureza de um objeto? Ou seja, primeiramente, examinar se o objeto sobre o qual nĂłs queremos ser os tecnikoiv â e capazes de formar outro tecnikovÏ â Ă© simples ou multiforme, e e, em seguida, se ele for simples, observar sua propriedade, a que atividade estĂĄ mais propenso ou de que ação Ă© mais passĂvel? Se o objeto possuir muitas formas, nĂŁo seria preciso, depois de contĂĄ-las, vĂȘ-las, a cada uma, como objetos simples, isto Ă©, examinar a que estĂĄ mais propenso a fazer ou de que ação Ă© mais passĂvel? (PLATĂO, Fedro, 270c-d)
O âmĂ©todoâ, que desde PlatĂŁo Ă© apontado como uma importante
contribuição da medicina hipocråtica para o pensamento grego, vai colidir
com espaços até então ocupados, ainda que parcialmente, pelo sagrado. O
sagrado não é previsto pelo método hipocråtico, que se impunha a tarefa de
distanciar-se do pensamento dogmĂĄtico, mesmo quando isso parecia insĂłlito.
O Corpus hippocraticum nĂŁo Ă© apenas copioso em textos, mas o Ă©
sobretudo em opiniÔes. Formado por tratados de autores diversos, por vezes,
de épocas diferentes, a Coleção hipocråtica, que representara um desafio
como manual de medicina, tornou-se mais recentemente, a partir do
cientificismo do século XIX, um complexo conjunto de documentos de
histĂłria da ciĂȘncia. As opiniĂ”es e os pontos de vista dos seus textos podem
ser, além de divergentes, contrårios. Unem-nos, não obstante, alguns aspectos
de seus conteĂșdos, dos quais os que mais parecem haver sido inovadores e
profĂcuos sĂŁo, primeiramente, o da crença de que o homem pode interferir em
sua prĂłpria natureza; ou, em Ășltima instĂąncia, o da convicção de que a cultura
podia orientar a natureza.
15
A medicina hipocrĂĄtica ganha vulto como uma resposta positiva ao
desamparo ao qual o homem se sente lançado no século V a.C. O homem
abandonado a si mesmo, como Teseu segurando Hipólito na desolada tragédia
de EurĂpides tambĂ©m pode, como diz o famoso coro da AntĂgona, escapar de
doenças incurĂĄveis atravĂ©s da inteligĂȘncia: novswn d j ajmhcavnwn fugaVÏ
xumpevfrastai [ele conjectura, tendo escapado de irremediåvel doenças]3.
Jacqueline de Romilly lembra que EurĂpides Ă© o autor do herĂłi
demasiadamente humano, e SĂłfocles, o do herĂłi solitĂĄrio (1994:124 e 91). O
herĂłi de SĂłfocles, humano mas deinovtatoÏ, Ă© bem diverso do de EurĂpides,
que, conforme ainda Romilly (1994:115)4, sofre sem sequer aprender algo
com isso. O Corpus hippocraticum tem a humanidade de SĂłfocles e o PanteĂŁo
de EurĂpides5. A mais deinhv dentre as criaturas, o homem, inventa, em sua
solidĂŁo, uma maneira de ver um mundo que nĂŁo conta mais com os deuses,
embora jamais lhes seja negada a existĂȘncia.
A medicina hipocråtica não espera nada dos deuses; nem panacéias,
nem flagelos. Dos escasso pontos comuns de todo o Corpus hippocraticum, a
criação de uma circunscrição para o sagrado, mais restrita e definida do que a
que observamos existir até então, parece ser o que representou a contribuição
mais notĂĄvel ao modo de se relacionar com o mundo e com a pĂłlis,
caracterĂstico do tempo e do espaço clĂĄssicos.
Os tratados que compÔem o Corpus hippocraticum não são ateus, nem
tampouco devocionistas, pois nĂŁo Ă© de teologia de que se trata. Trata-se de
dirigir-se aos deuses para jurar, por exemplo, mas nĂŁo para curar. O
3 vv.361-3. O verbo xumpevfrasmai, que Ă© central nesse ponto do canto âapologĂ©ticoâ, traz em si a duvnamiÏ de sua origem no verbo fravzw, acrescida do carĂĄter que lhe afere a voz mĂ©dia. A sentença, tĂŁo fĂĄcil de compreender quanto difĂcil de traduzir, aplica toda a ĂȘnfase nesse verbo em que a ação Ă©, nĂŁo somente humana, mas humana somente. 4 âA arte de EurĂpides sabe extrair grandes efeitos patĂ©ticos de uma ação de mĂșltiplos volteios, na qual o homem Ă© sempre a vĂtima, mas da qual ele nĂŁo pode tirar nenhuma liçãoâ (Romilly, 1994, p. 115). 5 Jacqueline de Romilly (1994: 142-3) mostra como o teatro de EurĂpides nĂŁo era irreligioso, mas era dotado de uma vigorosa audĂĄcia crĂtica. Escreve a Helenista (loc.cit.): âEssa audĂĄcia traduz sobretudo a aspiração a uma religiĂŁo que seria mais pura e menos primitiva (...) seus ataques nĂŁo contradizem em nada uma crença nos deuses, Ă qual ele deu colorido mais modernoâ.
16
conhecido Juramento de HipĂłcrates, assim se inicia: !Omnumi jApovllwna
ijhtroVn, kaiV jAsklhpioVn, kaiV JUgeivan, kaiV Panavkeian, kaiV qeouVÏ
pavntaÏ te kaiV pavsaÏ (...) [Juro por Apolo mĂ©dico, por AsclĂ©pio, por
HĂgia, por PanacĂ©ia e por todos os deuses e todas as deusas (...)]. O homem
jura, como Hipólito na tragédia euripidiana homÎnima, pelos deuses, mas, tal
como ocorre com esse herĂłi e sua aliada, Ărtemis, os deuses em nada podem
ser-lhe Ășteis.
Entre os autores dos tratados que compoem o Corpus hippocraticum,
alguns explanaram muito particularmente esse carĂĄter comum a toda a
Coleção. à o caso do médico hipocråtico, autor do tratado Da doença
sagrada, um exemplo notĂĄvel de atenção ao combate Ă renitĂȘncia com que
alguns ainda se sentiam amparados ou perseguidos diretamente pelos deuses.
Desses dois tratados, o Da doença sagrada detem-se mais longamente na
parte em que hostiliza abertamente os que crĂȘem ter com os deuses a mesma
relação que os heróis de Homero mantiveram com suas divindades.
O autor dos referidos tratados hipocrĂĄticos nĂŁo cita nenhum texto
literårio, e nem com ele mantém diålogo algum. Não escreve tampouco um
texto teológico. Sua preocupação é delimitar uma nova fronteira para o
sagrado que sequer tanja os aparentemente nĂtidos limites do conhecimento
médico. Os tratados não se preocupam em delinear um campo para o divino,
mas acabam por fazĂȘ-lo ao expurgĂĄ-lo de uma atividade que lhe era tĂŁo
fundamental como a cura.
A tese propĂ”e um estudo sobre as conseqĂŒĂȘncias dessa exclusĂŁo do
sagrado para além da ijatrikhV tevcnh, a partir da anålise do tratado Da
doença sagrada, que, conforme foi dito acima, expressa mais explicitamente a
tendĂȘncia mais generalizĂĄvel do Corpus hippocraticum. NĂŁo pretendo,
contudo, fazer desse tratado um âporta-vozâ da Coleção; mas tĂŁo-somente
tratĂĄ-lo como uma das mais importantes referĂȘncias para aqueles que queriam
laicizar seu universo, tendo a medicina por paradigma.
17
Se a ciĂȘncia, para que ela possa ser ciĂȘncia, nĂŁo pode contar com o
sagrado, entĂŁo ainda hĂĄ uma dĂvida para com o Corpus hippocraticum, em
geral, e para com o tratado Da doença sagrada, em particular. Ao século XIX
de nossa Era essa dessacralização pareceu muito interessante, e sobretudo ao
positivismo de Ămile LittrĂ©, que rompeu com seu amigo e mestre Auguste
Comte justamente por recusar-se Ă envergadura diante da metafĂsica que este
queria impor Ă sua doutrina. Pela segunda vez na histĂłria, os tratados do
Corpus hippocraticum se alçavam para além da medicina. Se antes, no século
V a.C., vĂamos traços do mĂ©todo hipocrĂĄtico â e particularmente o que estĂĄ
expresso nos tratados Da natureza do homem, Da doença sagrada, Ares,
ĂĄguas e lugares e Da medicina antiga â transporem as fronteiras da arte
médica e servirem de instrumental para a leitura da cidade; acompanharemos
o resgate dos tratados atribuĂdos a HipĂłcrates das salas das academias de
medicina, no sĂ©culo XIX. Por essa razĂŁo, o segundo capĂtulo desta tese Ă©
dedicado Ă retomada, a partir do cientificismo, do tema dos limites do sagrado
explicitados sobretudo no tratado Da doença sagrada. O que procurarei
investigar nessa parte sĂŁo os tratamentos que o tema recebeu a partir do
momento em que o Corpus hippocraticum Ă© convocado a ser autenticador de
uma forma de pensar sobre o mundo, até o momento em que ele passou a ser
reconhecido como uma autĂȘntica fonte para a histĂłria da ciĂȘncia. Sabe-se que
viajantes e epidemiologistas do século XVII, mormente holandeses e
franceses, serviram-se das idéias e das doutrinas apresentadas no Ares, åguas
e lugares6. Nesses casos, temos o modelo teĂłrico do tratado transposto
parcialmente para realidades outras diversas daquelas do tratado. Contudo, a
utilização de um tratado antigo, de Hipócrates ou de Galeno, como base
66 Guilherme Piso, explorador holandĂȘs do sĂ©culo XVII e autor do famoso Historia naturalis Brasiliae (1648), publicou, em 1658, o tratado Indiae ultrisque re naturali et medica, do qual o primeiro capĂtulo, que trata das doenças do Brasil Ă© intitulado Ares, ĂĄguas e lugares. AlĂ©m de Piso, nĂŁo se pode deixar de citar o longo comentĂĄrio ao AAL da lavra de JerĂŽnimo Cardan, publicado em 1570 (v.PIGEAUD, 1985). Ă tambĂ©m muito cĂ©lebre a influĂȘncia desse tratado sobre o EspĂrito das leis de Montesquieu, de 1748.
18
teĂłrica â mais do que como vade-mĂ©cum da medicina â nĂŁo o eleva do
universo médico ao das idéias.
O estudo do percurso das idéias de dessacralização conduzem
naturalmente à restrição do corpus desta tese ao tratado Da doença sagrada,
ainda que nĂŁo se possam ser negligenciados os intercursos entre esse e outros
tratados, especialmente o Ares, ĂĄguas e lugares. Assim, apresento, no terceiro
capĂtulo, uma proposta de tradução do tratado Da doença sagrada, como uma
leitura tanto mais isenta de intençÔes doutrinĂĄrias quanto me Ă© possĂvel. O
tratado Ă© rico em traduçÔes â muitas delas indiretas, a partir de LittrĂ© ou de
Jones â; contudo, considero ser necessĂĄria uma abordagem do texto que nĂŁo
tenha preconceituado o seu carĂĄter de fundador da ciĂȘncia, atravĂ©s de uma
concepção â assumidamente ou nĂŁo â evolucionista. NĂŁo Ă© essa a perspectiva
desta tese, como se verĂĄ alhures. O que interessa neste momento Ă© a
investigação dos frutos e do entorno da produção cultural de um momento
muito peculiar e fundamental da histĂłria do Ocidente, de nossa prĂłpria
histĂłria.
Ă a esse entorno que se dedica o capĂtulo quarto da tese. Jean-Pierre
Vernant (1977:11) entende que o século de Péricles é sui generis a ponto de o
estudo que lhe Ă© dedicado nĂŁo dizer diretamente respeito a nenhum outro
momento do mundo helĂȘnico. O sĂ©culo V representa, de fato, para a GrĂ©cia e
para o Ocidente uma passagem para vias temporais que ainda percorremos,
embora nĂŁo mais se nos afigurem como o retilĂneo percurso da humanidade
preconizado pelo positivismo.
O tratado Da doença sagrada se insere no imbricado universo do século
da tragédia. As idéias médicas, que não partiam de Atenas, a ela convergiam,
e, em tempos de tragédia, assim como nos tempos da filosofia åtica, as idéias
médicas circulavam em profusão pela solo påtrio de Teseu. O tratado Da
doença sagrada inseria-se no conjunto das idéias médicas que aportavam em
Pireus, e que se destacaram por vir ao encontro dos ideais de secularização da
pĂłlis, que caminhava, desde SĂłlon, por essa via, e que deu, com o domĂnio de
19
Péricles, um passo definitivo nessa direção, com a restrição dos poderes do
areĂłpago aos domĂnios das prĂĄticas religiosas. Tais sĂŁo as relaçÔes Ă s quais se
dedicarĂĄ o capĂtulo quarto.
A diversidade dos textos que hoje compÔem o Corpus hippocraticum
devia-se, em parte, Ă s suas diferentes proveniĂȘncias. Os textos da escola de
Cnido mesclaram-se aos da escola de Cós, que, por sua vez, também
discordam entre si como os autores mestres, de seus discĂpulos igualmente
autores, e ainda hå as outras diferenças de origem mais complexas e, por
vezes, inescrutĂĄveis. O capĂtulo quinto da tese estudarĂĄ as relaçÔes do tratado
Da doença sagrada com os demais textos do Corpus hippocraticum para
situĂĄ-lo no conjunto no qual o vemos inserido. A sua relevĂąncia como
formador no século V é, naturalmente, um reflexo parcial de seu status no
prĂłprio domĂnio que o gerou.
O estudo das relaçÔes do tratado Da doença sagrada com o restante do
Corpus hippocraticum e muito especialmente com o tratado Ares, ĂĄguas e
lugares torna-se necessĂĄrio para o estudo dos limites do sagrado na nosologia
hipocråtica, porque pertencer à Coleção hipocråtica depÔe substancialmente
muito pouco acerca de um texto, e hĂĄ que saber o que esse fato implica
quando diz respeito a um texto tĂŁo relevante.
A datação dos tratados Da doença sagrada e Ares, åguas e lugares
proposto por Jouanna (1992:549) situa os textos na segunda metade do século
V. Ver-se-ĂĄ adiante que a argumentação de Jouanna parte do pressuposto â
que, de resto, tambĂ©m me orienta â de que ambos sĂŁo da lavra do mesmo
autor. A datação confere aos textos o ensejo de influenciar o pensamento
grego clĂĄssico de TucĂdides, de PlatĂŁo e de EurĂpides, por exemplo. E uma
das tarefas a que este estudo se propÔe é a de averiguar em que medida e
como isso acontece.
O processo de secularização caracterĂstico da pĂłlis do sĂ©culo V foi
passĂvel de anĂĄlises polarizantes. Ă de Paul Veyne, latinista antes de tudo, o
passo decisivo para que se vislumbrassem as nuanças desse processo; mas o
20
Da doença sagrada ainda é considerado pelos estudiosos a expressão mais
extrema desse processo que teria em sua negação as figuras que o autor do
tratado queria desmerecer. Isso é algo que parace evidente: o médico
emprista, para usar a idéia de Cornford, contra os magos;o embate entre o
secular e o sagrado. NĂŁo se quer negĂĄ-lo com essa tese, e isso sequer poderia
ser feito. O que se pretende, contudo, Ă© redimensionar a querela a partir de
sua contextualização.
O tratado Da doença sagrada não atinge o Partenon ou os templos de
Delfos, nĂŁo se refere aos rituais polĂades, e tampouco volta-se contra a crença
em nome da qual SĂłcrates foi condenado. O alvo do discurso negativo do
tratado sĂŁo determinadas prĂĄticas que, segundo ele, nĂŁo poderiam ser
reconhecidas como sagradas, sobretudo pela relação direta que visavam a
estabelecer entre os atos divinos e as mazelas humanas.
Robert Joly , acusando o equivocado teor tecnolĂłgico do tratado Da
doença sagrada, considera:
NinguĂ©m pode duvidar de que o Da doença sagrada seja uma obra admirĂĄvel. Sua contribuição espetacular para o progresso do racionalismo7 foi sublinhada jĂĄ muitas vezes. Nossa tarefa nĂŁo Ă© temperar o entusiasmo que ela acendeu e que Ă© plenamente justificado, mas Ă© mostrar que, nas questĂ”es mĂ©dicas, ou seja, fisiolĂłgicas, o Da doença sagrada Ă© exatamente do mesmo nĂvel que as outras obras jĂĄ analisadas. (JOLY,1967:212)
Autores como Lloyd (1990), que se extremaram pelas vertentes de
Joly, nĂŁo vĂȘem no Da doença sagrada sequer um indĂcio da tendĂȘncia Ă
7 Nota-se que essa postura teĂłrica parece ser anterior a de LittrĂ© ou de Daremberg (da segunda fase), que, conforme hĂĄ de ser demonstratado no segundo capĂtulo desta tese, nĂŁo esperavam da medicina hipocrĂĄtica senĂŁo uma ratificação de carĂĄter histĂłrico-epistemolĂłgico, mas nunca um texto de validade cientĂfica.
21
racionalização, uma vez que nĂŁo poderĂamos considerar racionalista uma
terapia eficaz para a epilepsia nos termos apresentados pelo tratado. Esta tese,
contudo, nĂŁo tratarĂĄ o tema dentro da perspectiva de âracionalizaçãoâ, mas de
secularização. A procura por uma racionalização do tratado fora do ùmbito
puramente discursivo correria o grave risco de tornar-se uma anĂĄlise littreana
aprĂšs la lettre, extemporĂąnea sem dĂșvida.
A presente tese tem, portanto, como objetivos avaliar a influĂȘncia do
Corpus hippocraticum na literatura coeva no que concerne aos limites do
sagrado, tendo por ponto de partida o tratado Da doença sagrada, e perquirir
acerca da relação entre esse tratado e os demais textos que integram a Coleção
hipocrĂĄtica.
22
2. OS LIMITES DO SAGRADO ENTRE LITTRĂ E PIGEAUD
O Corpus hippocraticum nunca deixou de ser lido desde a constituição
de sua forma atual, e até mesmo desde bem antes dela. Alguns livros que
integram essa copiosa coleção só deixaram de ser adotados como manuais
pelos cursos de medicina de todo o mundo ocidental a partir do domĂnio da
perspectiva cientificista do século XIX. O positivismo, regente de boa parte
das manifestaçÔes intelectuais daquela época, encontrou no Corpus
hippocraticum um respaldo para algumas de suas idéias. Assim, a Coleção
hipocrĂĄtica abandonou as aulas de medicina e passou a freqĂŒentar os salĂ”es de
conferĂȘncias laicas.
O positivismo trouxe o Corpus hippocraticum para a discussĂŁo de
idéias, resgatando-o do universo das preleçÔes técnicas, onde não mais cabia.
Charles Daremberg, na primeira edição de seu Hippocrate8 (1843)9, endereça-
o âaos mĂ©dicos e aos estudantes que tĂȘm pouco tempo para dedicar Ă literatura
mĂ©dicaâ. Doze anos mais tarde, o mesmo (e outro) Daremberg10 publica a
segunda edição de seu Hippocrate; mas o endereçamento, na Introdução,
modifica-se substancialmente:
8 Trata-se de uma edição de quatorze livros do CH: Juramento, A lei, Da arte, Do mĂ©dico, ProrrĂ©ticos (I), PrognĂłstico, PrenoçÔes de CĂłs, Ares, ĂĄguas e lugares, Epidemias I e III, Do regime nas doenças agudas, Aforismos, e fragmentos de muitos outros tratados. 9 Portanto, seis anos antes da edição de LittrĂ©. 10 A hipĂłtese de uma influĂȘncia de LittrĂ© nessa transformação de Daremberg nĂŁo me parece nada inverossĂmil. Duas cartas de Petrequin a Daremberg (a priemeira de 14 de setembro de 1862, e a segunda de 25 de outubro de 1872), embora posteriores Ă data de publicação do Ășltimo tomo da obra de LittrĂ©, reforçam a crença nessa possibilidade. As cartas continuam inĂ©ditas, e Danielle Gourevitch (1994) publicou-as parcialmente.
23
Continuando fiel ao meu plano primitivo, estendi sobre mais de um ponto o campo das discussĂ”es histĂłricas (....) Eu me sentiria muito recompensado pelos novos esforços que empreendi, se a leitura deste volume puder contribuir em alguma coisa para robustecer ou engendrar em alguns espĂritos o gosto pela filologia mĂ©dica e pela histĂłria da medicina.11
A partir da releitura das obras recolhidas sob o nome de HipĂłcrates,
abriu-se uma nova perspectiva para a histĂłria da ciĂȘncia, e, por conseguinte,
para a histĂłria do pensamento ocidental. Desde AristĂłteles, havia sido
negligenciada a contribuição do Corpus hippocraticum para o pensamento,
que em muito sempre ultrapassou o que dali poderia se valer exclusivamente a
medicina.
O carĂĄter fundador dos textos hipocrĂĄticos Ă© costumeiramente discutido
a partir da negação do tĂtulo de "pai da medicina" que se atribui a HipĂłcrates.
De fato, a paternidade da medicina, assim como a da histĂłria, suscitaram
algumas discussÔes tão infecundas quanto pouco oportunas. A medicina
existia jĂĄ muito antes de HipĂłcrates. Existem registradas em linear B diversas
ocorrĂȘncias do termo (i-ja-te), que corresponde ao homĂ©rico
ijhthvr12. Na IlĂada, os dois filhos de AsclĂ©pio, PodalĂrio e MacĂĄon, estĂŁo Ă
frente dos guerreiros de EcĂĄlia. No segundo canto do poema, hĂĄ uma
referĂȘncia Ă s atribuiçÔes curativas dos dois personagens:
oi@ t je!con Oijcalivhn, povlin Eujruvtou Oijcalih~oÏ, tw~n au^q j hJgeivsqhn jAsklhpiou~ duvo pai~de, ijhth~r j ajgaqwv, PodaleivrioÏ hjdeV Macavwn: toi~Ï deV trihvkonta glafuraiV neveÏ ejsticovwnto.
11 Apud GOUREVITCH, 1994, pp.65-6. Na segunda edição de Daremberg, a escolha dos textos modificou-se muito pouco, tendo sido acrescido apenas mais um tratado. 12 Il. II,732. Hå também inscriçÔes cipriotas que registram essa forma (Hoffman, O. Die griechisschen Dialekte, Götingen, vol.I, 1891. p.135).
24
(Havia) tambĂ©m os da EcĂĄlia, a cidade de Ăurito ecĂĄlio, lideravam-nos os dois filhos de AsclĂ©pio, dois bons mĂ©dicos13 (ijhth~re), PodalĂrio e MacĂĄon. Foram alinhadas por eles trinta cĂŽncavas naus. (Il.II, 730-4)
Esses "curadores", os mĂ©dicos da IlĂada, gozam de um prestĂgio
superior ao dos guerreiros. No canto dĂ©cimo primeiro lĂȘ-se a axiomĂĄtica
sentença proclamada pelo såbio Nestor:
ijhtroVÏ gaVr ajnhVr pollw~n ajntavxioÏ a!llwn ijouVÏ t j ejktavmnein ejpiv t jh!pia favrmaka pavssein
vale por muitos um homem que é médico, (que sabe) extrair flechas e aplicar medicamentos lenitivos nas feridas (Il. XI,514-5)
Na OdissĂ©ia, o mĂ©dico nĂŁo vale menos. Na Telemaquia, lĂȘ-se como
complemento à explicação dos conhecimentos farmacológicos de Helena um
comentĂĄrio acerca do Egito, que muito esclarece sobre o prestĂgio do mĂ©dico:
ijhtroVÏ deV e@kastoÏ ejpistavmenoÏ periV pavntwn ajnqrwvpwn: h^ gaVr PaihvonovÏ eijsi genevqlhÏ. (no Egito) mĂ©dico Ă© cada um que sabe sobre todos
os homens, pois descendem de Peon. (Od.IV,231-2)
13 Creio que seria ideal estabelecer uma distinção entre o "mĂ©dico" de Homero e o mĂ©dico hipocrĂĄtico; contudo, nĂŁo se pode negligenciar que Paul Mazon, nessa passagem, traduz o termo grego por "guĂ©risseur", promovendo assim uma outra distinção, entre o ijhtrovÏ e ijhthvr. O helenista francĂȘs parece preferir "guĂ©risseur" para traduzir ijhthvr, e "mĂ©decin" para ijhtrovÏ. Tal opção torna-se clara na sua tradução dos versos 514-8 do dĂ©cimo primeiro canto, onde os dois termos gregos se sucedem.
25
Do médico homérico14, rei-sacerdote, não teremos outros registros na
cultura grega, mas as referĂȘncias Ă s curas em Homero nĂŁo se limitavam Ă s
atividades dos mĂ©dicos. PĂĄtroclo cura EurĂpilo (Il.XI,804ss.), e a loura
Agamede Ă©-nos apresentada como conhecedora dos favrmaka de toda a terra15;
na OdissĂ©ia, a egĂpcia Polidamna Ă© decantada como detentora de eficazes
favrmaka (Od.IV, 229-30), e Helena recebe de Polidamna o saber relativo ao
favrmakon (Od.IV,219 ss.). Todavia, paralelamente ao uso do favrmakon,
havia a prĂĄtica da ejpaoidhv16, o canto ritualĂstico de cura.
Pierre Pellegrin, da recente geração francesa de estudiosos do Corpus
hippocraticum, afirma de maneira enfĂĄtica:
Ă preciso abandonar a idĂ©ia de que HipĂłcrates retirou a medicina das mĂŁos dos sacerdotes, dos curandeiros [guĂ©risseurs] e dos charlatĂŁes. Uma medicina que se apĂłia sobre observaçÔes e raciocĂnios existe paralelamente a uma medicina mĂĄgico-religiosa muito antes de HipĂłcrates17.
A idéia de que havia uma medicina pré-hipocråtica apoiada no
raciocĂnio e na observação, e paralela aos rituais curandeirĂsticos, opĂ”e o
favrmakon à ejpaioidhv, além de suscitar uma questão acerca do caråter
fundador da medicina hipocrĂĄtica. Essa Ă© uma questĂŁo ainda pujante, desde as
especulaçÔes de Ămile LittrĂ© atĂ© as consideraçÔes de Jackie Pigeaud.
14 Contudo, Ă© sempre conveniente lembrar qie nĂŁo sĂŁo exatamente esses "homens que valem por muitos" e "sĂĄbios em relação a todos os outros homens" os mesmos mĂ©dicos que constituirĂŁo as escolas mĂ©dicas geradoras do Corpus hippocraticum. 15 h$ tovsa favrmaka h! /dh o!sa trevfei eujrei~a cqwvn [conhecia todos os medicamentos que a vasta terra oferece]. Il. XI, 741. 16 Essa prĂĄtica Ă© atestada, por exemplo, em Od. XIX, 455-8, em uma passagem na qual Odisseu Ă© acometido por uma hemorragia proveniente do ferimento provocado pelo javali, estancada atravĂ©s desse processo encantatĂłrio. Ă contra essa prĂĄtica que o tratado MS parece voltar-se em 2LittrĂ©. 17 Introduction: MĂ©decine hippocratique et philosophie. In: PELLEGRIN. Art mĂ©dical. 1994. p. 20. A introdução de Danielle Gourevitch, Pellegrin e Grmek a essa antologia de textos hipocrĂĄticos Ă© um estudo acerca da medicina do sĂ©culo V que reflete algumas das tendĂȘncias mais recentes dos estudos hipocrĂĄticos. Os trĂȘs autores sĂŁo oriundos respectivamente das ĂĄreas de letras, filosofia e medicina, e todos os quatro, doutores em letras.
26
LittrĂ©, discĂpulo dissidente de Auguste Comte, dedicou alguns anos Ă
elaboração de sua edição do Corpus hippocraticum. São dez laboriosos
volumes que saĂram do prelo entre 1839 e 1861. Com essa obra, LittrĂ© nĂŁo
desejava somente reverenciar os primĂłrdios da ciĂȘncia, mas, Ă maneira de um
pré-socråtico, procurou em Hipócrates uma ajrchv do que considerava a mais
elevada forma do saber:
Quando se pesquisa a histĂłria da medicina e os primĂłrdios da ciĂȘncia, o primeiro corpo de doutrina que se encontra Ă© a coleção de escritos conhecida sob o nome de obras de HipĂłcrates. A ciĂȘncia remonta diretamente a essa origem, e aĂ mesmo permanece.18
Ao referir-se Ă ciĂȘncia que tem seu inĂcio e seu Ășltimo estĂĄgio em
Hipócrates, Littré indica que os fundamentos do que ele concebia como
ciĂȘncia se encontravam no Corpus hippocraticum; mas, ainda assim, nĂŁo se
afastava da concepção positivista de progresso. De fato, a medicina do século
XIX precisou reler suas fontes para beneficiar-se da primazia entre as
ciĂȘncias. A valiosa contribuição de LittrĂ© para o estudo do Corpus
hippocraticum intentou também assinalar que, desde Hipócrates, o favrmakon
e a ejpaiodhv são, além de diversos, antagÎnicos.
A ciĂȘncia da âinfĂąncia da humanidadeâ19 que tinha por patronos e
expoentes Aristóteles e Hipócrates foi representada em uma célebre pintura
no teto do anfiteatro do CollĂšge de France. Foi ali que, em 1871, Claude
Bernard proferiu sua conferĂȘncia intitulada Leçons de pathologie
expérimentale, na qual declarou a seus ouvintes:
18 A força da expressĂŁo exige a citação do original: Lorsqu'on recherche l'histoire de la mĂ©decine et les commencements de la science, le premier corps de doctrine que l'on rencontre est la collection d'Ă©crits connue sous le nom de l'oeuvre d'Hippocrate. La science remonte directement Ă cette origine et s'y arrĂȘte. 19 Escrevo entre aspas distanciadoras essa expressĂŁo cunhada no seio da filosofia e da historiografia positivista.
27
Aqui mesmo, nas pinturas que ornam o teto deste anfiteatro, vedes AristĂłteles e HipĂłcrates curvados sob os pĂ©s dos anos e da ciĂȘncia. Se Ă© um emblema da ciĂȘncia o que se quis representar, seria preciso tomar o sentido oposto, e, no lugar de velhos, pintar crianças que estavam em suas primeiras balbuciaçÔes. (Apud CANGUILHEM, 1994, p.411)
Canguilhem, que cita esse excerto da conferĂȘncia de Bernard, termina a
sua prĂłpria conferĂȘncia intitulada Puissance et limites de la rationalitĂ© en
mĂ©decine, proferida em 1978 em Estrasburgo â precisamente cem anos depois
da morte de Bernard â , com a seguinte reflexĂŁo:
Sem dĂșvida, o discurso cientĂfico começou pelas balbuciaçÔes infantis, mas que adulto dedicado a racionalizar esse discurso poderia se vangloriar de haver atingido um estĂĄgio de articulação sintĂĄtica das frases? (ibidem)
Canguilhem encerra definitivamente a era de certezas acerca do
conhecimento cientĂfico, e o faz a partir da anĂĄlise das tentativas de
racionalização da doença empreendidas desde o final do século XIX. O
Corpus hippocraticum deixa definitivamente de ser tratado como um retrato
da infĂąncia da humanidade, no momento em que teria despontado a
perspectiva cientĂfica.
No lapso entre as opiniÔes de Littré e Pellegrin, Robert Joly, em 1966,
reivindica para o Corpus hippocraticum o tratamento de fonte para a histĂłria
da ciĂȘncia. Joly condena os mĂ©dicos improvisados historiadores que sĂŁo
tomados por "um transe respeitoso diante da evocação do Pai [sic] da
medicina, e esquecem a essĂȘncia de seu espĂrito crĂtico" (1966: 10).
28
Francis Macdonald Cornford, no primeiro quartel deste século,
reivindica outra paternidade para o Corpus hippocraticum, a do empirismo.
Cornford, em seu antolĂłgico capĂtulo Teoria empĂrica do conhecimento, Ă©
categĂłrico quanto Ă atribuição dos primĂłrdios da experiĂȘncia aos mĂ©dicos
hipocrĂĄticos:
Ă na Medicina que encontramos os começos de um mĂ©todo genuinamente experimental. A experimentação começa com a aplicação deste ou daquele remĂ©dio a um determinado doente, para ver se darĂĄ ou nĂŁo resultado. Ă uma arma prĂĄtica, indispensĂĄvel ao mĂ©dico, mas sem nenhuma aplicação, no condicionalismo antigo, aos problemas dos primeiros filĂłsofos naturais. Os mĂ©dicos foram os primeiros a interrogar a natureza com o espĂrito aberto e na disposição de aceitarem a sua resposta e de modificarem os seus mĂ©todos de acordo com ela. (CORNFORD, 1981, p.60)
Para Cornford, a medicina hipocrĂĄtica introduz a perspectiva
generalizante no pensamento vigente, de tendĂȘncia particularizante. Nesse
ponto, segundo o classicista de Cambridge, a medicina entrou em conflito
com a filosofia natural, que "chegava às suas conclusÔes sobre a natureza do
homem partindo da direção oposta, de cima para baixo" (ibidem, p.60-1). A
oposição, admitirĂĄ Cornford no final do citado capĂtulo, dĂĄ-se entre o
empirismo e o dogmatismo prĂ©-socrĂĄtico. A 'experiĂȘncia' prĂ©-socrĂĄtica20 nĂŁo
era senão uma demonstração de um conceito jå assentado. São, nas palavras
de Cornford, "exemplificaçÔes de conclusÔes jå previstas" (idem,p.69).
Werner Jaeger, que dedica um longo capĂtulo de sua PaidĂ©ia (pp.687-
725) ao Corpus hippocraticum, tal qual Littré, oferece a Hipócrates a
paternidade da ciĂȘncia. Contudo, ao contrĂĄrio de Cornford e da maioria dos
20 Cornford cita a aparente experiĂȘncia de EmpĂ©docles e AnaxĂĄgoras com a clepsidra.
29
próprios autores hipocråticos, não privilegia a diferença entre a filosofia e a
medicina hipocrĂĄtica. Ao contrĂĄrio, Jaeger sublinha em vĂĄrios momentos
daquele volumoso capĂtulo o dĂ©bito das idĂ©ias da medicina hipocrĂĄtica aos
filósofos. De fato, a contribuição de Alcmeon de Crotona para a teoria
humoral Ă© notada muito claramente a partir do fragmento 4DK21:
jAlkmaivwn [e!lexe] th~Ï meVn uJgeivaÏ ei^nai sunektikhVn thVn ijsonomivan tw~n dunavmewn, uJgrou~, xhrou~, yucrou~, qermou~, pikrou~, glukevoÏ kaiV tw~n loipw~n, thVn d j ejn aujtoi~Ï monarcivan novsou poihtikhvn: fqoropoiovn gaVr eJkatevrou monarcivan. KaiV novson sumpivptein wJÏ meVn uJf j ou% uJperbolh/~ qermovthtoÏ h# yucrovthtoÏ, wJÏ deV ejx ou% diaV plh~qoÏ trofh~Ï h# e!ndeian, wJÏ d j ejn oi%Ï h# ai%ma h# mueloVn h# ejgkevfalon. jEggivnesqai deV touvtoiÏ poteV kajk tw`n e!xwqen aijtiw~n, uJdavtwn poiw~n h# cwvraÏ h# kovpwn h# ajnavgkhÏ h# tw~n touvtoiÏ paraplhsivwn. thVn deV uJgeivan thVn suvmetron tw~n poiw`n kra~sin. Alcmeon disse ser a constituição da saĂșde o equilĂbrio das propriedades: o Ășmido, o seco, o frio, o quente, o amargo, o doce, etc., e a produção da doença Ă© a prevalĂȘncia nas pessoas de uma delas; pois a destruição consiste na prevalĂȘncia [monarciva] de uma delas. Assim a doença sobrevĂ©m de uma parte quando causada pelo excesso de calor ou de frio, ou de outra, quando devida Ă abundĂąncia ou Ă carĂȘncia de um alimento, o que ocorre
21 Este fragmento Ă© gravemente corrompido. CompreendĂȘ-lo Ă© uma tarefa assaz difĂcil; ofereço, nĂŁo obstante, uma leitura relativamente distinta da conhecida interpretação da Professora Timpanaro Cardini, que consta de sua obra Pitagorici, testemonianze e frammenti, vol.I, p.151, n.4 (1958), seguida por Daniel Delattre, em sua tradução publicada pela BibliothĂšque de la PlĂ©iade (1988). Cabe-me contudo admitir a perspicĂĄcia da helenista italiana de considerar a perspectiva pitagĂłrica de dualidade na sua interpretação. A tese da interpolação, sustentada inclusive por Grmek, estĂĄ resumidamente exposta adiante.
30
em partes como o sangue, a medula ou o cĂ©rebro. Essas partes podem ser tambĂ©m afetadas por causas externas, como certas qualidades de ĂĄguas, certos climas22, pela fadiga ou por experimentar-se uma necessidade ou devido ao que lhes estiver perto. Mas ainda quanto Ă saĂșde, ela Ă© a justa medida da mistura das qualidades.
Grmek (1995:215-7) lembra que a versĂŁo compilada e traduzida acima,
a estabelecida por Diels e Kranz, é uma reconstituição do testemunho de
AĂ©cio, que, por sua vez, Ă© baseado em duas fontes distintas, um texto de
Estobeu e uma passagem de Plutarco reconstituĂda a partir de manuscritos que
divergem consideravelmente no fragmento em questĂŁo. Grmek atribui Ă s
interpolaçÔes a busca de um sentido outro, diverso do intencionado pelo Pré-
socråtico. Para Grmek, a disposição dos conceitos em pares, que inclui a glosa
segundo a qual fqoropoiovn gaVr eJkatevrou monarcivan [a destruição
consiste na prevalĂȘncia [monarciva] de uma delas] e a conclusĂŁo de que a
saĂșde Ă© hJ suvmetroÏ tw~n poiw`n kra~siÏ [a justa medida da mistura das
qualidades], Ă© um complemento organizador.
De qualquer forma, o texto de Alcmeon suscita, de fato, muitas
questÔes, mormente pela forma com que a tradição no-lo legou. Mas, se, por
um lado, sua origem fraccionada o torna objeto de especulaçÔes como as de
Grmek; por outro, nĂŁo Ă© possĂvel deixar de lhe notar as feiçÔes pitagĂłricas, o
que Grmek acaba por admitir em suas ponderaçÔes. A idéia de que o mal é
uma desarmonia, um desnĂvel, Ă© projetada por Alcmeon na percepção da
doença. Ao Alcmeon médico, representante de uma nova tevcnh, cabe
conservar e reestabelecer a justa medida no corpo e no seu relacionamento
com o meio.
A contribuição de Alcmeon de Crotona para o pensamento médico
hipocrĂĄtico nĂŁo se limita, portanto, aos tratados humorais, onde, de fato, a 22 lit. âcertas regiĂ”esâ.
31
justa medida adquire valor assaz explĂcito; mas sobretudo atinge toda a
medicina hipocrĂĄtica. Ă curioso notar, nesse fragmento, a inversĂŁo da
concepção da pólis como um corpo, que viria a ser um tópos na historiografia
de TucĂdides23. A utilização do termo monarciva, caracterĂstico e mesmo
exclusivo do vocabulĂĄrio polĂtico, traz para o cenĂĄrio da filosofia mĂ©dica o
universo polĂade. No Corpus hippocraticum, como ver-se-ĂĄ alhures, haverĂĄ
lugar para outras incidĂȘncias dessa permuta vocabular.
O tratado Da natureza do homem, da lavra de PĂłlibo24, genro e
discĂpulo direto do prĂłprio HipĂłcrates, ao apresentar a conhecida teoria dos
quatro humores, Ă© categĂłrico ao afirmar:
JUgiaivnei meVn ou^n mavlista, oJkovtan metrivwÏ e!ch/ tau~ta th~Ï proVÏ a!llhla krhvsioÏ kaiV dunavmioÏ kaiV tou~ plhvqeoÏ, kaiV mavlista memigmevna h/^: ajlgevei deV oJkovtan ti toutevwn e!lasson h# plevon h^/ h# cwrisqh/~ ejn tw/~ swvmati kaiV mhV kekrhmevnon h^/ toi~si xuvmpasin. (O homem) tem saĂșde precisamente quando estes humores sĂŁo harmĂŽnicos em proporção, em propriedade e em quantidade, sobretudo quando sĂŁo misturados. O homem adoece quando hĂĄ falta ou excesso de um desses humores, ou quando ele se separa no corpo e nĂŁo se une aos demais. (NH, 4LittrĂ©)
No sĂ©culo XVII, o mĂ©dico inglĂȘs William Harvey, que se tornou
conhecido como o descobridor do sistema circulatĂłrio, nĂŁo resgatou apenas a
descrição de PĂłlibo (NH, 11LittrĂ©), mas principalmente o princĂpio de
Alcmeon. Georges Canguilhem (1966:22 & ss.) lembra como a anĂĄlise de 23 Sobre esse tema, v. o quarto capĂtulo desta tese.
32
Sigerist (1932) aponta para um retorno das idĂ©ias mĂ©dicas ao princĂpio de
Alcmeon. Segundo Canguilhem, o resultado dessa tendĂȘncia do pensamento
médico traduz-se na adoção da teoria segundo a qual os fenÎmenos
patológicos são apenas "variaçÔes quantitativas, para mais ou para menos,
dos fenĂŽmenos fisiolĂłgicos correspondentes" (ibidem). O estado patolĂłgico
passou a ser designado a partir do normal, atravĂ©s dos lexicogĂȘnicos hiper- e
hipo-, enquanto os prefixos a- e dis- restringiram-se Ă esfera da
sintomatologia.
Canguilhem nĂŁo faz referĂȘncias ao resgate do pensamento
autenticamente hipocrĂĄtico que se nota em Harvey, bem como em Haller.
Contudo, nos sĂ©culos V e IV a.C., o princĂpio de Alcmeon, tradução
fisiológica do mhdeVn a!gan, ganhou vulto através dos textos das escolas
mĂ©dicas de Cnido e de Cos. PlatĂŁo refere-se a esse princĂpio no Banquete
(186c), no discurso do mĂ©dico ErixĂmaco: "e!sti gaVr ijatrikhv, wJÏ ejn
kefalaivw/ eijpei~n, ejpisthvmh tw`n tou~ swvmatoÏ ejrwtikw~n proVÏ
plhsmonhVn kaiV kevnwsin" [pois a medicina, para dizĂȘ-lo resumidamente, Ă©
um conhecimento do que hĂĄ de erĂłtico no corpo, em relação Ă repleção e Ă
vacuidade].
François Hartog (1996:103) também trata do tema da justa medida,
lembrando que ele estava presente em vĂĄrias atividades do homem grego do V
século:
Mistura, medida, meio, partilha igualitĂĄria: tĂȘm-se aĂ a interpretação dos vocabulĂĄrios climĂĄtico, mĂ©dico, geomĂ©trico e polĂtico, conduzindo a uma valorização do centro como produto de uma mistura equilibrada. Mais exatamente, um mesmo conceito imaginado opera em campos do saber que ainda nĂŁo estĂŁo claramente separados.
24 HĂĄ muito ocorre um entusiasmado debate acerca da autoria desse tratado. Prefiro, nĂŁo obstante, considerĂĄ-lo uno, e assim, consoante aos testemunhos de AristĂłteles (Hist.an.III,512b-513a) e do AnĂŽnimo de Londres, considerar PĂłlibo seu autor. Sobre esse tema, v. CAIRUS (1994, pp.28-30).
33
A face polĂtica do discurso que apologiza o meio termo e a justa medida
tem sua mais ilustre expressão em Sólon, mas a palavra de Sólon era também
a do poeta, e pertencia a um universo cultural onde o poeta, como lembra
Detienne, detinha a memĂłria-verdade. NĂŁo se deve olvidar que o mhdeVn a!gan
era sobretudo uma inscrição depositada no oråculo de Delfos. Essa
circunstĂąncia aferia mais valor a esse princĂpio do que poderia conferir-lhe a
empiria que se apoderarå do discurso25 grego a partir do V século. Neste
ponto, seria muito difĂcil discordar de Cornford (1981), que em seu texto
sobre o conhecimento empĂrico considera que a grande contribuição do
Corpus hippocraticum para o pensamento ocidental foi a introdução do
empirismo. A eficåcia da justa medida comprovada pela observação
sistemåtica e comparativa poderia comparar-se às verdades de Tirésias e dos
tekmhvria em Ădipo Rei. O meio-termo como um valor comprovĂĄvel inaugura
tambĂ©m a Ă©poca dos valores suscetĂveis de comprovação, na medida em que
seu carĂĄter polĂtico vai se firmando na cultura grega.
O discurso de NĂcias, no sexto livro da Guerra do Peloponeso, tem por
caracterĂstica a apologia da temperança. NĂcias tenta dissuadir os atenienses
do projeto de atacar a SicĂlia. O debate Ă© empolgante. De um lado, o destemor
de AlcibĂades, motivado pela vaidade pessoal e motivador de um ufanismo
ateniense; do outro, o apelo modulante à måxima délfica. Esse confronto,
representante de um verdadeiro tĂłpos da historiografia grega, tem paralelo em
Heródoto (I,29 & ss.), onde um Sólon redivivo pela força de sua própria
memória, na corte Cresos, incorpora o discurso que Atenas abraçara, onde a
adoção das leis do Legislador tornara-se o emblema dessa memória. Todavia,
SĂłlon era ateniense, e a aurea mediocritas lhe condizia em um diĂĄlogo com
um governante bĂĄrbaro; mas o que dizer de um debate entre dois lĂderes
25 A superação da voz oracular pela empiria é ilustrada de forma muito clara pelo contraste entre a palavra de Tirésias e as tekmhvria que o convenceram da verdade sobre si próprio.
34
gregos que, segundo TucĂdides, eram strathgoiV aujtokravtoreÏ (VI,8,2) ad
hoc?
Alguns estudos jĂĄ mostraram como TucĂdides utilizava o instrumental
da medicina (MOLLO, 1994: passim). O historiador dispÔe em função de seu
objeto as idéias preconizadas pela medicina. Assim, a sociedade é concebida
como um corpo polĂtico, homĂłlogo ao corpo humano. A descrição da peste de
Atenas, no segundo livro da Guerra do Peloponeso, revela claramente a
analogia entre o corpo e a cidade. Os atenienses, ouvintes de NĂcias ou
leitores de TucĂdides, conheciam bem o carĂĄter do saber mĂ©dico. O mĂ©dico
era o elemento moderador do indivĂduo, e devia, portanto, ser o modelo do
lĂder, especialmente em Ă©pocas politicamente conturbadas. O discurso de
NĂcias tem desfecho axiomĂĄtico:
KaiV suv, w^ pruvtani, tau~ta ei!per hJgei~ soi proshvkein khvdesqaiv te th~Ï povlewÏ kaiV bouvlei genevsqai polivthÏ ajgaqovÏ, ejpiyhvfize kaiV gnwvmaÏ protivqei au^qiÏ jAqhnaivoiÏ, novmisaÏ, eij ojrrwdei~Ï toV ajnayhfivsai, toV meVn luvein touVÏ novmouÏ mhV metaV tosw~nd j a#n martuvrwn aijtivan scei~n, th~Ï deV povlewÏ kakw~Ï bouleusamevnhÏ ijatroVÏ a#n genevsqai, kaiV toV kalw~Ï a!rxai tou~t j ei^nai, o$Ï a#n thVn patrivda wjfelhvsh/ wJÏ plei~sta h# eJkwVn ei^nai mhdeVn blavyh/. E tu, Ăł prĂtane, se crĂȘs que te compete preocupar-te com o que for da cidade, e se queres tornar-te um bom cidadĂŁo, submete ao sufrĂĄgio e provoque nos Atenienses novamente uma deliberação. Acaso temes uma nova votação, acreditando que violar as leis diante de tantos testemunhos nĂŁo implicaria em uma responsabilidade, mas tornar-te-ias um mĂ©dico da cidade que deliberou mal, e nisto consiste a ação de um bom arconte, que serve o melhor possĂvel Ă sua pĂĄtria [patrivÏ] ou que, pelo menos, nĂŁo a prejudica propositalmente. (Tuc., VI, 14)
35
A equiparação entre o iJatrovÏ e o bom a!rcwn nĂŁo ilustra somente a
percepção da pólis como um sw~ma26, mas sobretudo traz para este contexto a
figura do mĂ©dico como o mais caracterĂstico ator do ideal da razoabilidade
fundada exclusivamente sobre o mevtron.
Os tratados do Corpus hippocraticum que apresentam uma parte
polĂȘmica â ou seja, o Da medicina antiga, o Da doença sagrada, o Da
natureza do homem e o Da arte â sĂŁo especialmente interessantes para os que
se dedicam ao estudo da relação entre a medicina grega e mundo no qual ela
estava inserida. NĂŁo Ă© possĂvel, por exemplo, negligenciar-se os primeiros
parĂĄgrafos do tratado Da natureza do homem, quando se pretende averiguar a
esfera de influĂȘncia dos pensadores prĂ©-socrĂĄticos, muito particularmente dos
monistas.
O tratado Da doença sagrada, que postulo ser do mesmo autor que o
Ares, ĂĄguas e lugares27, apresenta um prĂłlogo dedicado aos que interpretam
fenÎmenos somåticos através de elementos ligados ao ùmbito divino. A reação
positiva aos que acreditavam nos curadores vituperiados pelo tratado foi uma
argumentação fundamentada nos princĂpios teorizados especialmente pelos
tratados Da natureza do homem e Da medicina antiga. O axioma do equilĂbrio
recebe com o tratado Da doença sagrada28 sua apologia mais pragmåtica, seu
formato mais incisivo.
26 O segundo livro da Guerra do Peloponeso Ă©, nesse ponto, muito mais claro. Como exemplo muito ilustrativo, cito a sentença inicial do trecho onde se torna consideravelmente clara essa analogia: Prw~ton te h^rxe kaiV ejÏ ta^lla th/ ~ povlei ejpiV plevon ajnomivaÏ toV novshma. JR~a~ /on gaVr ejtovlma tiÏ a$ provteron ajpekruvpteto mhV kaq jhJdonhVn poiei~n, ajgcivstrofon thVn metabolhVn oJrw~nteÏ tw~n te eujdaimovnwn kaiV aijfnidivwÏ qnh/skovtwn kaiV tw~n oujdeVn provteron kekthmevnwn, eujquVÏ deV tajkeivnwn ejcovntwn. [De maneira geral, a doença principiou, na pĂłlis, uma anomia. Pois qualquer um ousava mais facilmente desfrutar do que antes escondia; vendo as sĂșbitas inversĂ”es de sorte dos afortunados, que morriam repentinamente, e dos que nada possuĂam antes, e que passam a ter instantaneamente o que era dos outros]. Tuc. I,53,1. Sobre o tema da relação de TucĂdides com o sagrado, v. o quarto capĂtulo desta tese. 27 Jacques Jouanna (1992:549) indica o autor do MS como provavelmente o mesmo de AAL. NĂŁo hĂĄ como superar todos os nĂveis da dĂșvida, e nem pretendo fazĂȘ-lo. Contudo, apresento, ao longo da tradução (cap. III desta tese), diversos indĂcios de ser o mesmo o autor dos dois tratados. 28 Considero a datação de Jouanna a mais fundamentada atĂ© entĂŁo. Segundo Jouanna (1992, passim), os trĂȘs tratados referidos datam da segunda metade do sĂ©culo V. Em relação ao AAL, a datação se baseia nos fatos por ele referidos; quanto ao MS, a datação Ă© devida Ă idĂ©ia de seu autor
36
Canguilhem lembra que "definir o anormal por meio do que Ă© de mais
ou de menos Ă© reconhecer o carĂĄter normativo do estado dito 'normal'"
(1966:36). Se por um lado, na medicina hipocrĂĄtica, o que se visa nĂŁo Ă©
propriamente ao normal29, mas apenas ao saudĂĄvel; por outro, seus tratados
adotam muito claramente o verbo uJgiaivnein por princĂpio normatizador,
estabelecendo, dessa forma, um padrĂŁo de normalidade. Os tratados humorais,
assim como o tratado Da medicina antiga oferecem copiosos subsĂdios para o
estabelecimento definitivo de um vĂnculo antitĂ©tico entre o desequilĂbrio e o
novmoÏ, em seu sentido mais clĂĄssico.
Em um ambiente cultural regido por esse novmoÏ, uma nova concepção
do sagrado preparava a condenação de Sócrates.
A palavra novmoÏ tal como se a lĂȘ no tratado Ares, ĂĄguas e lugares â ou
seja, com o significado de âcostumeâ, âhĂĄbito de um povoâ â, aproxima-se
consideravelmente da idĂ©ia de âculturaâ, e indica, desde entĂŁo, uma
preocupação com a relação entre naturaza e cultura que culminou com a obra
de LĂ©vi-Strauss (1982)30. Esse contexto semĂąntico do termo novmoÏ oferece um
novo horizonte para o estudo da interpretação da relação entre natureza e
cultura na AntigĂŒidade ClĂĄssica.
O novmoÏ, no tratado Ares, ĂĄguas e lugares, Ă© contraposto Ă fuvsiÏ, que
com ele tem, primeiramente, uma relação antitética, e, posteriormente, recebe
seu auxĂlio. Os macrocĂ©falos, no capĂtulo dĂ©cimo quarto do tratado, tĂȘm a sua
fuvsiÏ forçada pelo novmoÏ, mas, depois, o novmoÏ vai gerando uma fuvsiÏ que,
tendo-o incorporado, com ele colabora. ser o mesmo do AAL. O NH tem sua data muito discutida, mas hĂĄ consenso em situĂĄ-lo entre 410 e 400 a.C. Sobre esse tema, v. o CapĂtulo IV desta tese. 29 Vale lembrar que o grego possui um adjetivo que expressa a idĂ©ia do vernĂĄculo 'normal': o adjetivo novmimoÏ; contudo, esse adjetivo nĂŁo ocorre nos tratados Da doença sagrada e Ares, ĂĄguas e lugares. O adjetivo koinovÏ parce sĂł atingir um significado mais aproximado do de 'normal' com Denis de Helicarnaso (AntigĂŒidades romanas, 4,23), no primeiro sĂ©culo antes de Cristo. 30 Jouanna (1992:318) escreve sobre a correspondĂȘncia entre os binĂŽmios novmoÏ/fuvsiÏ e cultura/natureza, embora ressalve que o tratadista nĂŁo Ă© o criador dessa ferramenta de anĂĄlise. Contudo, acrescenta ainda o helenista francĂȘs, o uso que faz dessa construção teĂłrica Ă© original, porquanto, ao contrĂĄrio dos sofistas, o autor hipocrĂĄtico vai matizar essa relação e descobrir-lhe as inter-relaçÔes.
37
Jackie Pigeaud (1997:9), acerca desse aspecto do tratado Ares, ĂĄguas e
lugares, indica-lhe um certo lamarckismo avant la lettre. As expressÔes
âconservação das aquisiçÔesâ e âtransmissĂŁo das modificaçÔes adquiridasâ,
tĂŁo caractrerĂsticas do pensamento de Lamarck, sĂŁo muito aplicĂĄveis Ă tese de
hereditariedade do tratado:
!Ecei deV periV novmou w%de: toV paidivon oJkovtan gevnhtai tavcista, thVn kefalhVn aujtou~ e!ti aJpalhVn ejou~san malakou~ ejovntoÏ ajnaplavssousi th/~si cersiV kaiV ajnagkavzousin ejÏ toV mh~koÏ au!xesqai desmav te prosfevronteÏ kaiV tecnhvmata ejpithvdeia, uJf j w% toV meVn sfairoeideVÏ th~Ï kefalh~Ï kakou~tai, toV deV mh~koÏ au!xetai. Ou@tw thVn ajrchVn oJ novmoÏ kateirgavsato, w@ste uJpoV bivhÏ toiauvthn thVn fuvsin genevsqai.
Com o novmoÏ, ocorre assim: na criança, assim que nasce, sendo mole, modelam com as mĂŁos a sua cabeça ainda tenra e forçam-na a crescer em comprimento, aplicando-lhe bandagens 31 e aparelhos apropriados, sob a ação dos quais a esfericidade da cabeça se deforma, e o comprimento aumenta. Assim, no princĂpio, o novmoÏ opera, de sorte que a fuvsiÏ se torna tal sob a ação da violĂȘncia (uJpoV bivhÏ). (AAL, 14LittrĂ©)
A biva, o vigor da violĂȘncia interventora do homem, pode fazer um
elemento do novmoÏ ser incorporado pela fuvsiÏ. E a fuvsiÏ, graças ao
31 EstrabĂŁo (XI,11,8) , ao enumerar os paravdoxa dos povos bĂĄrbaros cita um povo do CĂĄucaso que tinha o mesmo hĂĄbito: TinaVÏ d j ejpithdeuvein fasivn, o@pwÏ w$Ï makrokefalwvtatoi fanou~ntai kaiV propeptwkovteÏ toi~Ï metwvpoiÏ, w@sq j uJperkuvptein tw~n geneivwn [Dizem que alguns se empenham para parecerem macrocĂ©falos, desenvolvendo a testa atĂ© que ela ultrapassasse o queixo]. Jouanna (1996:305) lembra que o alongamento da cabeça foi atestado pela arqueologia em Chipre e na LĂcia, e foi um costume difundido na Europa medival, especialmente na GĂĄlia.
38
âpangeneticismoâ que o tratado Ares, ĂĄguas e lugares defende e ao qual o Da
doença sagrada alude32, é legada aos decendentes
A idĂ©ia de uma fuvsiÏ que pode ser influenciada pelo homem, nĂŁo
apenas humaniza o corpo, mas principalmente aponta para o lato poder que o
homem pode exercer sobre seu sw~ma. Nesse sentido, o texto do tratado Ares,
åguas e lugares pode parecer que, tendo avançado alguns passos nos
argumentos laicizadores da doença do Da doença sagrada, contradi-lo naquilo
que Pigeaud considera que lhe hĂĄ de mais fundamental.
Jackie Pigeaud acrescenta ao debate acerca do tratado Da doença
sagrada uma nova perspectiva, que desloca o conceito de aijtiva nessa
discussĂŁo. Entendida tal como Lloyd (1990:61 et ss.) a considera, a aijtiva sĂŁo
as epĂcrises patolĂłgicas referidas no tratado. De fato, Ă© com esse sentido que
vemos o termo ser empregado freqĂŒentemente no Corpus hippocraticum. As
aijtivai, que, conforme serĂĄ explanado no quarto capĂtulo desta tese, sĂŁo
conduzidas do universo divino para o da fuvsiÏ, levam consigo toda a sua
carga de responsabilidade. Ă fuvsiÏ nĂŁo Ă© possivel responsabilizar, ela Ă© o
ponto amoral por excelĂȘncia. Levar a aijtiva para a fuvsiÏ implica em
desculpabilizar33 a doença.
Para Pigeaud (1987, passim), essa desculpabilização da doença diz
respeito sobretudo ao homem, que, conforme indica o tratado, nĂŁo mais
poderia controlar parcialmente a natureza. O controle de uma parte da fuvsiÏ
32 Tou~ deV crovnou proi>ovntoÏ ejn fuvsei ejgevneto, w@ste toVn novmon mhkevti ajnagkavzei. JO gaVr govnoÏ pantacovqen e!rcetai tou~ swvmatoÏ, ajpoV te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏ ajpoV te tw~n noserw~n noseroVÏ [com o passar do tempo, (a forma) passa para a fuvsiÏ, ainda que o novmoÏ nĂŁo a force mais. Pois a semente geradora provĂ©m de todas as partes do corpo: das partes sĂŁs, vem sĂŁo, das doentes, doente] (AAL, 14LittrĂ©). A tese da pangenĂ©tica Ă© central no tratado Da geração (1LittrĂ© et passim): NovmoÏ meVn pavnta kratuvnei: hJ deV gonhV tou~ ajndroVÏ e!rcetai ajpoV pantoVÏ tou~ uJgrou~ tou~ ejn tw/ ~ swvmati ejovntoÏ, toV ijscurovteron ajpokriqevn [Eis o novmoÏ que governa tudo: a semente vem de todo o lĂquido que o corpo contĂ©m, tendo se separado deste sempre a parte mais forte]. O tratado Da doença sagrada parece estar de acordo com essa idĂ©ia, porquanto coincide quase textualemente (2LittrĂ©) com o Ares, ĂĄguas e lugares. (cf. nota Ă tradução do segundo capĂtulo do tratado no terceiro capĂtulo, e pp.97-8 e 146 desta tese). 33 Faço uso desse galicismo que me pareceu ser adequado Ă tradução do vocĂĄbulo âdĂ©culpabiliserâ empregado por Pigeaud.
39
implica no seu controle total, e jĂĄ nĂŁo era mais posĂvel, para o homem do
século Va.C., um poder transcendental que não tivesse limites perfeitamente
delineados. Um passo do tratado ilustra bem esse ponto de vista:
Eij gaVr selhvnh te kaqairevein kaiV h@lion ajfanivzein kaiV ceimw~nav te kaiV eujdivhn poievein kaiV o!mbrouÏ kaiV aujcmouVÏ kaiV qavlassan a!foron kaiV gh~n kaiV ta!lla taV toioutovtropa pavnta uJpodevcontai ejpivstasqai, ei!te kaiV ejk teletevwn ei!te kaiV ejx a!llhÏ tinoVÏ gnwvmhÏ h# melevthÏ fasiVn tau~ta oi%on t jei^nai genevsqai oiJ tau~t j ejpithdeuvonteÏ, dussebevein e!moige dokevousi kaiV qeouVÏ ou!te ei^nai nomivzein ou!t j e!ontaÏ i!scuvein oujdeVn ou!te ei!rgesqai a!n oujdenoVÏ tw~n ejscavtwn, w%n poievonteÏ pw~Ï ouj deinoiV aujtoi~sivn eijsin;
Pois se prometem saber baixar a lua; ocultar o sol, e produzir o inverno e o bom tempo, a tempestade e a seca, e tornar o mar estĂ©ril e tambĂ©m a terra, e fazer tantas outras coisas semelhantes; e os que praticam isso, seja atravĂ©s de ritos, seja atravĂ©s de qualquer outra tĂ©cnica ou prĂĄtica, dizem que sĂŁo capazes de transformar isso tudo; entĂŁo, a mim, eles parecem-me ser Ămpios, nĂŁo acreditar existirem deuses, nem, se eles existissem, que eles tivessem algum poder, nem que poderiam impedir nenhum dos atos extremos. E, praticando tais atos, como nĂŁo seriam terrĂveis aos prĂłprios deuses? (MS,4Jones)
O poder-saber a que alude esse excerto do tratado ameaçaria aos
prĂłprios deuses, pois o homem estaria irrompendo uma nova fronteira entre o
divino e o humano. Ă necessĂĄrio, pois, que o homem se mantenha afastado da
pretensĂŁo de reger soberanamente a fuvsiÏ, para que se estabeleça uma outra
forma de convĂvio com essa natureza. NĂŁo se trata de abdicar de dominar a
40
natureza, projeto tão antigo quanto a própria civilização; mas trata-se de
dominĂĄ-la como um Odisseu, e nĂŁo como um Agamemnon; ou, em outros
termos, Ă© necessĂĄrio engendrar mhcanivai capazes de ocupar o lugar do poder
que, atĂ© entĂŁo, Ă© exercido de maneira direta â como acusa o citado passo do
tratado â, ou por intervenção de algum deus â como para aqueles que ainda
esperavam um deus ex natura em lugar do deus ex machina. A desculpabilização do homem, que Pigeaud percebe no tratado, insere-
se no contexto dos novos limites que o pensar do século V a.C. impÎs ao
sagrado. A compensação da perda do poder sobre a fuvsiÏ Ă© o desencargo
moral. A idéia de Pigeaud acerca da desculpabilização da doença constiui-se
no cerne de sua teoria a respeito do tratado Da doença sagrada, e essa
perspectiva inovadora enseja novas abordagens.
A contradição que poderia ser encontrada entre essa desculpabilização
que Pigeaud defende haver no Da doença sagrada e as idéias acerca da
relação entre a fuvsiÏ e o novmoÏ no tratado Ares, ĂĄguas e lugares pode ser
minimizada se forem considerados os limites do poder da ação do novmoÏ
sobre a fuvsiÏ. O controle da doença implicaria nĂŁo sĂł no novmoÏ, mas no
domĂnio dos ĂĄres, das aguas e dos lugares. A colaboração entre o novmoÏ e a
fuvsiÏ torna-se precisamente o instrumental do mĂ©dico, que vai adotar como
seu procedimento primordial a divaita em seu mais amplo sentido helĂȘnico.
41
3. TRADUĂĂO INTEGRAL DO TRATADO
DA DOENĂA SAGRADA
3.1. Nota à tradução
A tradução do tratado Da doença sagrada que esta tese apresenta
baseou-se no texto estabelecido por Ămile LittrĂ©, cotejado com o editado por
Grensemann. O professor Jacques Jouanna preparou um estabelecimento do
texto do tratado que seguramente suplantarĂĄ o de seus predecessores, mas a
obra ainda se encontra no prelo da SociĂ©tĂ© dâĂditions Les Belles Lettres. A
edição de Grensemann tende a um intervencionismo â ao meu ver maior do
que o que se poderia crer adequado â , eliminando repetiçÔes e,
simultaneamente, apresentando uma crĂtica textual por vezes demasiada. A
edição de Jones, excetuando-se o inĂcio onde se afilia a de Grensemann, Ă©
consideravelmente prĂłxima da de LittrĂ©, que ainda traz um aparato crĂtico
onde predomina o bom senso do filĂłlogo aliado ao rigor do cientista.
A numeração de Ămile LittrĂ© Ă© seguida por Wilamowitz e Grensemann.
Contrariamente Ă opiniĂŁo de GarcĂa Gual (1983:400), nĂŁo me parece haver
razão para que se sugira outra numeração; contudo, sendo a edição de Jones
muito prestigiada pelos helenistas, julguei conveniente registrar sua opção de
partição do texto. Uma vez que a numeração de Jones difere das demais
apenas pela partição do primeiro capĂtulo de LittrĂ© em quatro, preferi adotĂĄ-la
nas citaçÔes que faço ao longo da tese dessa parte do texto, para que a
referĂȘncia possa ser mais facilmente localizada.
42
3.2. Da doença sagrada
1Littré (1Jones). Eis aqui o que hå acerca da doença dita sagrada: não
me parece ser de forma alguma mais divina nem mais sagrada do que as
outras, mas tem a mesma natureza que as outras enfermidades34 e a mesma
origem. Os homens, por causa da inexperiĂȘncia e da admiração, acreditaram
que sua natureza e sua motivação fossem algo divino, porque ela em nada se
parece com as outras doenças. Devido à sua dificuldade de não a conhecer,
continuam lhe atribuindo carĂĄter divino, e devido Ă facilidade do modo de
cura pelo qual é curada, engana, pois que curam-na por meio de purgaçÔes e
encantamentos35. Se ela vier a ser considerada sagrada por causa de seu
carĂĄter admirĂĄvel, haverĂĄ muitas enfermidades sagradas, e nĂŁo apenas uma;
assim, eu mostrarei outras (doenças) em nada menos admiråveis, nem
monstruosas, as quais ninguém acredita serem sagradas. As febres36
cotidianas, terçãs e quartãs não me parecem ser menos sagradas nem mais
34 Em alguns tratados hipocrĂĄticos, nota-se uma distinção entre nou~soÏ e novshma. O primeiro vocĂĄbulo, nos tratados que os diferenciam, pertence a uma esfera notoriamente mais abstrata do que novshma. O autor do tratado Da natureza do homem, por exemplo, todas as vezes que se refere a uma doença ou a um conjunto de doenças determinado, faz uso do termo novshma, enquanto prefere nou~soÏ para expressar a idĂ©ia de doença (cf.CAIRUS,1994, pp.76-82). No MS, entretanto, â malgrado o uso de novshma no plural seja bem maos freqĂŒente do que no singular (ao contrĂĄrio de nou~soÏ) â se hĂĄ essa distinção, ela nĂŁo se mostra tĂŁo claramente como em outros tratados, mas, ainda assim, marquei, na tradução, a opção lexical do autor, traduzindo nou~soÏ por 'doença', e novshma por 'enfermidade'. 35 Por encantamento traduziu-se o termo ejpaiodhv. A pratica encantatĂłria Ă© registrada em Homero (Od.XIX, 455) jĂĄ desempenhava funçÔes terapĂȘuticas; HerĂłdoto, contudo, explica que os persas entovam cĂąnticos teogĂŽnicos em seus rituais sacrificatĂłrios, e que esses cĂąnticos eram ejpaoidai (Her.I,133). 36 A teoria dos quatro graus de febre nĂŁo Ă© unĂąnime no CH, onde Ă febre se impoem vĂĄrios recortes. Por isso, esta passagem aproxima o MS do tratado Da natureza do homem, no qual Ă© exposta e explicada essa tese (15LittrĂ©). Segundo o Da natureza do homem, as febres, conforme a influĂȘncia dos dois tipos de bile, se dividem em cotidianas, contĂnuas, terçãs e quartĂŁs.
43
engendradas por algum deus do que esta doença, e essas não são admiradas.
Por outro lado, vejo homens enlouquecidos37 e que deliram sem nenhuma
motivação aparente, e praticam muitos atos inoportunos, e sei de muitos que
soluçam e gritam no sono, que se sufocam, que dão saltos, saem para fora (de
suas casas) e deliram até despertarem; depois estão sãos e conscientes como
antes, mas pĂĄlidos e dĂ©beis, e isso ocorre nĂŁo uma Ășnica vez, mas muitas. HĂĄ
casos muitos e variados, acerca de cada um dos quais poderia haver muito a
ser discutido.
(2Jones) Os primeiros homens a sacralizarem esta enfermidade
parecem-me ser os mesmos que agora sĂŁo os magos, purificadores, charlatĂŁes
e impostores, todos os que se mostram muito pios e plenos de saber. Esses
certamente excusando-se, usam o divino para proteger-se da incapacidade de
fazer valer o que ministram, e, para que nĂŁo se tornem evidentes sabedores de
nada, declaram esta afecção sagrada. Alegando motivos38 convenientes, eles
aplicam um tratamento para a segurança deles próprios, ministram
purificaçÔes, encantamentos, e prescrevem que se afaste de banhos e de
alimentos vĂĄrios e inapropriados para homens doentes: proibiram o salmonete,
o melanuro, o mugem, a enguia ââ pois esses peixes sĂŁo os mais perniciosos39
ââ, dentre os alimentos marĂtimos; a cabra, o cervo, o leitĂŁo, o cachorro ââ
pois estas carnes sĂŁo muito perturbadoras do ventre ââ, dentre as carnes; o
galo, a rola, a abetarda, entre as aves, e ainda tudo o que Ă© considerado
vigorante. Dentre os legumes, proibiram a menta, o alho, a cebola ââ pois o
sabor picante em nada convĂ©m a um debilitado ââ; prescreveram nĂŁo portar
vestimenta negra ââ pois o negro lembra a morte40ââ, nem se cobrir ou se
vestir com pele de cabra, nem colocar um pé sobre o outro, nem mão sobre
37 mainomevnouÏ. Essa Ă© Ășnica ocorrĂȘncia no tratado de uma palavra cognata de manivh. 38 lovgouÏ ejpilevxanteÏ : dada a amplitude semĂąntica da palavra lovgoÏ, traduzi-a conforme o contexto, sem manter-lhe, naturalmente, uma correspondĂȘncia constante, como, de resto, faço com os vocĂĄbulos que julgo portadores de uma significação especialmente relevantes Ă s idĂ©ias centrais do tratado. 39 ejpikairovtatoi. LittrĂ©: âincomodam maisâ. Gual: âmais mortĂferosâ. 40 qanatw~deÏ. lit.: 'semelhante Ă morte'
44
mĂŁo ââ pois tudo isso sĂŁo proibiçÔes. Eles impĂ”em tais coisas tendo em vista
o aspecto divino, alegando, como grandes sabedores, outras motivaçÔes, a fim
de que se o doente se tornar sĂŁo, a glĂłria e a destreza lhes seja atribuĂda; mas
se ele morrer, suas justificativas sejam apresentadas de modo seguro, e
pretextem41 que os causadores nĂŁo sĂŁo eles, mas os deuses; pois nĂŁo lhes
deram remédio algum nem para comer, nem para beber; nem os acalmaram
com banhos, de sorte a parecerem ser esses a causa. Parece-me que, entre os
LĂbios, habitantes do interior da terra42, ninguĂ©m goza de saĂșde, porque eles
se cobrem com peles de cabras e se alimentam de carne de cabras, jamais
possuem colchÔes, nem vestimentas, nem calçados que não tenha sua origem
na cabra. Pois nĂŁo tĂȘm outro rebanho senĂŁo cabras e bois. Se tais coisas
utilizadas e ingeridas engendram e aumentam a doença, e não ingeridas
curam-na, entĂŁo o deus43 nĂŁo Ă© o causador de nada, nem os purificadores sĂŁo
Ășteis; mas os alimentos sĂŁo os que curam e prejudicam, e furta-se a poder44 do
divino.
(3Jones) Assim, parece-me que aqueles que se empenham para curar
dessa maneira essas enfermidades nĂŁo a consideram nem sagrada, nem divina.
Quando as doenças são afastadas por meio de tais purgaçÔes e desse
tratamento, que lhes impede de, por meio de outros artifĂcios semelhantes,
sobrevir e recair sobre os homens? Portanto, nĂŁo hĂĄ causa divina, mas
humana. Pois quem, procedendo a purgaçÔes e a magia, Ă© capaz de apartar 41 provfasiÏ foi excepcionalmente traduzido aqui por âalegaçãoâ. Normalmente, adotei para esse termo a tradução âmotivaçãoâ; contudo, a extensĂŁo semĂąntica desse vocĂĄbulo grego nĂŁo encontra equivalente no vernĂĄculo. 42 A referĂȘncia ao deserto, sĂtio ocupado pelos lĂbios, e aos hĂĄbitos desse povo indica, pela primeira vez no texto, a proximidade entre este tratado e o AAL. 43 O sintagma oJ qeovÏ parece ser aqui empregado com o mesmo sentido que lhe davam alguns pensadores prĂ©-socrĂĄticos quando se referiam Ă natureza divina, e nĂŁo a um deus antropomorficamente concebido. As alusĂ”es prĂ©-socrĂĄticas a um deus redundaram em muitas especulaçÔes filosĂłficas e teolĂłgicas, especialmente por parte da literatura patrĂstica, que nelas via um pressentimento da verdade monoteĂsta. O polĂȘmico fragmento B23 DK de XenĂłfanes, conservado por Clemente de Alexandria que assim pretendia demonstrar que, para aquele filĂłsofo, Deus Ă© uno e incorporal, afirma que "um sĂł Ă© o deus, maior entre deuses e homens". Mas a contradição em termos deste fragmento ââ assim como as vĂĄrias outras ocorrĂȘnicas contraditĂłrias do vocĂĄbulo qeovÏ nos pensadores prĂ©-socrĂĄticos, sobretudo nos monistas ââ dĂĄ ensejo a uma gama de discussĂ”es das quais o estudo do MS deve participar. 44 A palavra duvnamiÏ foi aqui traduzida por âpoderâ.
45
esta afecção, este, por meio de seus artifĂcios, poderia atrair outras, e, com
esse argumento, estĂĄ eliminado o aspecto divino. Dizendo e maquinando tais
coisas, fingem saber mais, e enganam os homens prescrevendo-lhes
purificaçÔes e purgaçÔes45. Muito do seu argumento não tange nem ao divino
nem ao nĂșmico46. NĂŁo me parecem fazer seus discursos sobre a piedade, como
eles pensam, mas antes sobre a impiedade, e, como os deuses nĂŁo existem, o
piedoso e o divino, para eles, Ă© o nĂŁoââpiedoso47 e o sacrĂlego, como eu
ensinarei.
(4Jones) Pois se prometem saber baixar a lua; ocultar o sol, e produzir
o inverno e o bom tempo, a tempestade e a seca, e tornar o mar estéril e
também a terra, e fazer tantas outras coisas semelhantes, os que praticam isso,
seja através de ritos, seja através de qualquer outra técnica ou pråtica, dizem
que sĂŁo capazes de transformar isso tudo; entĂŁo, a mim, eles parecem-me ser
Ămpios, nĂŁo acreditar existirem deuses, nem, se eles existissem, que eles
tivessem algum poder, nem que poderiam impedir nenhum dos atos extremos.
E, praticando tais atos, como nĂŁo seriam terrĂveis aos prĂłprios deuses? Pois
nem se um homem, utilizando a magia e sacrifĂcios, fizesse a lua descer,
eclipsasse o sol e produzisse o inverno e o bom tempo, eu nĂŁo acreditaria que
algum desses atos fosse divino, senĂŁo (somente) humano, se Ă© que o poder do
divino estĂĄ dominado e servilizado pelo conhecimento do homem. Talvez nĂŁo
seja assim, mas os homens necessitados de subsistĂȘncia48 maquinam muitas
coisas e de todos os tipos, e transformam-nas em todas as outras e nessa
doença, atribuindo a causa de cada tipo de afecção a um deus. Não se
referiram a isso uma Ășnica vez, mas muitas. 45 aJgneivaÏ te kaiV kaqarovthtaÏ 46 o@ te pouluVÏ aujtoi~si tou~ lovgou ejÏ toV qei~on ajfhvkei kaiV toV daimovnion. â LittrĂ©, muito apropriadamente, nĂŁo vĂȘ esta oração introduzida nem por o@te ââ conforme o testemunho documental por ele privilegiado ââ , nem por o@ti ââ como pretende Dietz ; mas simplesmente por o@ te. Tal opção retira da assertiva o suposto carĂĄter causal ou temporal. 47 O termo "nĂŁo-piedoso" distingue-se de "Ămpio" na tradução. O primeiro tenta traduzir a idĂ©ia de ajsebhvÏ, o segundo, a de dussebhvÏ. NĂŁo pretendo, com isso, senĂŁo tentar preservar a distinção que o prĂłprio autor parece fazer entre esses dois termos. 48 O termo textual, aqui traduzido por subsistĂȘncia, Ă© bivoÏ ('vida'). Contudo, considerando a relevĂąncia do emprego desse termo, cabe-me registrĂĄ-lo.
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Se imitam uma cabra, se rugem, se tĂȘm convulsĂ”es para a direita, dizem
que a MĂŁe dos deuses Ă© a causa. Se emitem sons mais agudos e fortes,
parecem cavalos, e dizem ser Poseidon a causa. Se também sobrevier algum
excremento, o que freqĂŒentemente ocorre aos que sofrem a violĂȘncia dessa
doença, o qualificativo 'Enódia' lhe é acrescentado. Mas se (os sons) são
ligeiros e freqĂŒentes, como os dos pĂĄssaros, a causa Ă© Apolo NĂŽmio. Se sai
espuma da boca e batem os pés, Ares tem a responsabilidade49. Quanto a
todos os temores noturnos e medos, aos delĂrios50,aos saltos para fora da
cama, às (visÔes) apavorantes e ao fato de darem por si fora de casa, dizem
haver incursÔes de Hecate e ataques dos heróis. Utilizam purgaçÔes51 e
encantamentos, e transformam em divino o que hĂĄ de mais sacrĂlego e distante
do divino, como me parece. De fato, eles purificam aqueles tomados por
alguma doença hemorrĂĄgica ou por outras desse tipo, como os que tĂȘm algum
miasma52, ou os que carregam uma maldição, ou os enfeitiçados53 por 49 Para a palavra aijtivh, que normalmente traduzi por 'causa', encontrei, desta vez, melhor correspondente no vocĂĄbulo 'responsabilidade', uma vez que o autor mesmo rompe com a estrutura frasal que vem mantendo ao atribuir as causas aos outros numes. A palavra aijtivh Ă© empregada da mesma forma em 17LittrĂ©, onde foi traduzida por 'função', visto tratar-se de um episĂłdio fisiolĂłgico, e nĂŁo de uma divindade. 50 paranoivh 51 Essa passagem Ă© muito controversa entre as fontes. LittrĂ© expĂ”e as divergĂȘncias em seu aparato crĂtico, acrescidas da relevante opiniĂŁo de M. Lobeck, que prefere ler esse perĂodo da seguinte forma: kaqaivrousi touVÏ ejcomevnouÏ th/~ novsw/, ai@masi kaiV toi~si a!lloisi toiouvtoisi miavsmasi e!contaÏ ajlastoraÏ h# pefargmevnouÏ etc. [purificam os tomados pela doença, os malditos pelos sangues e por outros miasmas equivalentes, ou enfeitiçados etc.]. Lobeck privilegia os manuscritos FGIJKZ, enquanto LittrĂ© e Jones preferem a solução apresentada pelos cĂłdices k i q, apenas substituindo o miavsmati por mivasmav ti. 52O termo miasma em nosso idioma ââ no qual essa palavra significa 'emanação deletĂ©ria' ââ nĂŁo tem o mesmo significado que no grego, onde designa a mĂĄcula moral hereditĂĄria ou fĂsica (De flatibus,5). O espectro semĂąntico do termo grego mivasma apresenta uma considerĂĄvel confluĂȘncia com a amplitude do vocĂĄbulo 'mĂĄcula'. Contudo, o termo 'miasma' (e suas leves variantes de acordo com as lĂnguas modernas europĂ©ias) passou a integrar o jargĂŁo neo-hipocrĂĄtico com o sentido que atualmente lhe Ă© conferido. Assim, adotei, para o termo mivasma a tradução 'miasma', e para o verbo mivainw, do qual mivasma deriva, a tradução 'macular'.
LaĂn Entralgo (1970:191), ao escrever acerca da distinção entre lu~ma e mivasma, lembra que ambas as palavras foram usadas primeiramente para significar sem distinção uma mĂĄcula fĂsica, reliogiosa e moral. Assim, no primeiro canto da IlĂada, a palavra relacionada Ă peste Ă© lu~ma, e, em Ădipo rei, o termo empregado Ă© mivasma. Naturalmente, a opção entre os dois termos merece um estudo individualizado de casos, porquanto o que os distingue Ă© precisamente o fato de lu~ma, ao contrĂĄrio de mivasma, dizer respeito Ă mĂĄcula delĂ©vel. Ainda segundo LaĂn Entralgo, a medicina hipocrĂĄtica, respaldada na fisiologia prĂ©-socrĂĄtica, especializarĂĄ semanticamente os termos por via de um novo critĂ©rio; do que serĂĄ conseqĂŒencia que lu~ma venha a significar a fluxĂŁo deletĂ©ria interna, e mivasma, a emanação malĂ©fica de ar, que passa ao sangue e altera a fuvsiÏ do homem. De
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homens, ou os que cometeram alguma obra sacrĂlega, e esses deviam
empreender prĂĄticas inversas: sacrificar; suplicar, e, vindo aos templos, rogar
aos deuses54. Agora, jĂĄ nĂŁo fazem nada disso, mas somente purgam. E
escondem os objetos das purgaçÔes com terra, ou os atiram ao mar, ou os
levam para as montanhas, onde ninguém os apanharå nem os pisarå. Mas
levando-os ao deus, deviam ofertar ao deus, se, de fato, um deus Ă© o causador.
Realmente, eu avalio que o corpo do homem nĂŁo Ă© maculado por algum
deus: o mais mortal, pelo mais puro possĂvel; mas, se acaso for maculado ou
por algo outro ou se passĂvel de outra coisa, poder-se-ia esperar ser purgado e
purificado55 por um deus, mais do que ser maculado. EntĂŁo, o divino Ă© o
purgador de nossos maiores erros e sacrilégios, aquilo que os purifica e que se
torna nosso detersĂłrio. NĂłs mesmos, fixando os limites dos templos e das
regiÔes sagradas, para que ninguém os ultrapasse se não estiver puro, ao
entrarmos neles, procedemos à ablução, não como maculados, mas como para
sermos purificados de alguma impureza que tivéssemos antes. E, sobre as
purgaçÔes, eis o que me parece:
2Littré (5Jones). Essa enfermidade não me parece em nada ser mais
divina, mas tem a mesma natureza que as outras doenças, e a motivação da
qual cada uma delas provém. Mas, quanto à natureza e à motivação, parece-
me ser esta doença divina pela mesma razão que o são todas as outras, e
tambĂ©m ser curĂĄvel em nada menos do que as outras; a nĂŁo ser que jĂĄ esteja fato, Ă© com o sentido que nos aponta LaĂn Entralgo que se vai encontrar lu~ma em Das glandes (12LittrĂ©), enquanto mivasma realmente figura com o significado de 'emanação mĂłrbida' em Dos ventos. Contudo, vale lembrar que a datação do tratado Das glandes nĂŁo consiste em consenso entre os helenistas; portanto, nĂŁo se exclui a possibilidade de uma concorrĂȘncia semĂąntica entre os dois termos em um determinado momento da Escola hipocrĂĄtica. 53 pefarmagmevnouÏ, portanto, lit. 'enfeitiçados por uma poção'. Jones: pefarmakeumevnouÏ. 54 O tratado Da dieta, que Joly (1967:xx) data de c.400a.C., insiste quatro vezes (11, 87 e 93LittrĂ©) na necessidade de se dirigir preces aos deuses paralelamente ao tratamento dietĂ©tico. Embora o verbo usado no Da dieta seja eu!comai, e nĂŁo iJ Jketeuvw, como no MS â onde esse verbo ladeia eu!comaiâ, nota-se o quanto divergem os dois textos. 55 O verbo 'purificar' afigurou-se-me uma solução para refletir a distinção que o autor faz entre kaqairevw (purgar) e ajgnoevw (purificar). A opção de tradução se deve, sobretudo, ao fato de o
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fortalecida por sua longa duração, a ponto de ser mais forte do que os
remédios ministrados. Começa, assim como as outras doenças, conforme a
estirpe56. Se, pois, de um fleumĂĄtico nasce57 um fleumĂĄtico; de um bilioso,
um bilioso, de um tĂsico, um tĂsico58, e de um esplenĂ©tico, um esplenĂ©tico; o
que impede que algum dos filhos tenha (a doença) que tinham o pai e a mãe?
Pois a semente59 vem de todos os lugares do corpo: das partes sĂŁs, vem sĂŁ; das
doentes, doente60.
Outra grande prova de que esta nĂŁo Ă© em nada mais divina do que as
outras enfermidades: nos fleumåticos ocorre por natureza, e jamais sobrevém
aos biliosos. Se realmente fosse mais divina do que as outras, essa doença
necessariamente acometeria todos da mesma forma, e sem escolher bilioso
nem fleumĂĄtico.
verbo ajgnoevw ser cognato de ajgnovÏ. Cabe, contudo, lembrar que nĂŁo se deve deixar de levar em consideração o sentido ritualĂstico do termo kaqarmovÏ. 56 A tradução de gevnoÏ por 'estirpe' nĂŁo oferece senĂŁo uma sombra da idĂ©ia que o vocĂĄbulo grego representa. Pesa sobre a palavra gevnoÏ um espectro semĂąntico que o vincula amplamente Ă idĂ©ia de origem. Entende-se, pois, que o raciocĂnio desenvolvido sobre a idĂ©ia que esse termo sintetiza seja acerca da hereditariedade dos fenĂŽmenos fisiolĂłgicos. 57 A tese consta, como premissa, em AAL, 14LittrĂ©: Eij ou^n givnontai e!k te tw~n falakrw~n falakroiV kaiV ejk tw~n glaukw~n glaukoiV kaiV diestramevnwn strebloiV, wJÏ ejpiV toV plh~qoÏ kaiV periV th~Ï a!llhÏ morfh~Ï oJ aujtoVÏ lovgoÏ, tiv kwluvei kaiV ejk makrokefavlou makrokevfalon givnesqai; [se os calvos nascem dos calvos; os cegos, dos cegos, e os estrĂĄbicos, daqueles que tĂȘm (os olhos) torcidos, como ocorre geralmente, e se o mesmo raciocĂnio (lovgoÏ) se aplica aos outros aspectos (fĂsicos), o que impede que nasça um macrocĂ©falo de um macrocĂ©falo? 58 Observe-se que a palavra fqinwvdhÏ, que traduzi por 'tĂsico', significa mais precisamente 'aquele que padece de consumpção'. A tradução, de motivação etimolĂłgica, baseia-se no uso vernacular mais antigo da palavra 'tĂsico', no qual esta convergia semanticamente para o termo 'hĂ©ctica'. 59 A palavra govnoÏ nĂŁo significa uma espĂ©cie de semente condutora de genotipias. Essa semente provinha tanto do homem quanto da mulher, conforme assevera o Da geração (8LittrĂ©): th~Ï gunaikoVÏ kaiV tou~ ajndrovÏ. A tradução por âsĂȘmemâ Ă© tĂŁo comum quanto inadequada. 60 Essa doutrina Ă© exposta exatamente da mesma maneira em AAL, 14LittrĂ©: Ares, ĂĄguas e lugares,14LittrĂ© Da doença sagrada,2LittrĂ© oJ gaVr govnoÏ pantacovqen e!rcetai tou~ swvmatoÏ, ajpov te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏ ajpoV te tw~n noserw~n noserovÏ
wJÏ oJ govnoÏ e!rcetai pavntoqen tou~ swvmatoÏ, ajpoV te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏajpoV te tw~n noserw~n noserovÏ
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3Littré (6Jones). Mas, de fato, o cérebro61 é o causador dessa afecção,
assim como das outras doenças gravĂssimas; de que maneira ocorre e a partir
de qual motivação é o que exporei claramente. O cérebro do homem é duplo,
assim como os de todos os outros animais62. Uma leve membrana o divide ao
meio. Por isso, não se sente dor sempre no mesmo lugar da cabeça, mas em
uma das partes, e, por vezes, na cabeça inteira. E as veias se estendem até ela,
vindo de todo o corpo63, muitas e finas, mas duas grossas: a que vem do
fĂgado e a que vem do baço. A que vem do fĂgado se comporta assim: Uma
parte da veia estende-se para baixo, pelo lado direito, ladeando o rim e os
mĂșsculos lombares, atĂ© o interior da coxa, e atinge o pĂ©, e Ă© chamada de veia
cava. Uma outra se estende para cima, através dos diafragmas64 direitos e do
61 Tertuliano (De anima, 15,5) parece concluir dessa assertiva que a alma âin cerebro cubat secundum Hippocratemâ [estĂĄ contida no cĂ©rebro, segundo HipĂłcrates]. Naturalmente, nĂŁo hĂĄ elemento textuais que sustentem essa conclusĂŁo, inclusive porque nĂŁo ocorre no tratado a palavra yuchv, conudo Ă© interessante notar como era feita a leitura do MS no sĂ©culo III d.C, ainda mais se levarmos em consideração que o llivro de Tertuliano baseou-se no mĂ©dico efĂ©sio Sorano (cf. QUASTEN, 1984:587), que escreveu, entre 210 e 213 d.C., uma obra em quatro livros acerca da alma (PeriV yuch~Ï). Nesse escrito, Sorano, seguindo os estĂłicos, se esforçava para ver-se de acordo com HipĂłcrates, e professa a sua fĂ© em que a alma Ă© exclusivamente corporal. 62 O termo a!lloisi (outros) coloca o homem entre os animais. Este mesmo raciocĂnio Ă© desenvolvido em AAL (19LittrĂ©), quando o autor demonstra a influĂȘncia do meio sobre o corpo do homem, atravĂ©s da observação dos animais selvagens. Mesmo no capĂtulo anterior, o autor sentencia ao descrever a regiĂŁo dos citas: ouj gaVr e!cousi [oiJ bou~Ï] kevrata uJpoV tou~ yuvceoÏ [os bois nĂŁo tinham chifres por causa do frio]. A explicação Ă© a mesma encontrada em HerĂłdoto (VI,29): Dokevei dev moi kaiV toV gevnoÏ tw~n bow~n toV kovlon diaV tau~ta ouj fuvein kevrea aujtovqi (....) ojrqw~Ï eijrhmevnon, ejn toi~si qermoi~si tacuV paragivnesqai taV kevrea: ejn deV toi~si ijscuroi~si yuvcesi h# ouj fuvei kevrea taV kthvnea ajrchVn h# fuvonta fuvei movgiÏ. [parece-me ser por isso (i.e., por causa do frio da CĂtia) que a raça mocha de bois nĂŁo cria chifres (....) isso (i.e., o verso de Homero sobre os chifres dos carneiros lĂbios, OdissĂ©ia, IV, 85) estĂĄ corretamente dito, que, nos (lugares) quentes, os chifres crescem rĂĄpido; nos (lugares) muito frios, ou os animais nĂŁo criam chifres, ou os criam com dificuldade]. Todavia, esse comentĂĄrio de HerĂłdoto, conquanto consonante ao raciocĂnio do tratado hipocrĂĄtico, ao de AristĂłteles (HistĂłria dos animais, VIII,28,606a) e ao do tardio EstrabĂŁo (VII,3,18), nĂŁo se estende Ă natureza humana, e, portanto, nĂŁo consiste em uma reflexĂŁo de cunho mĂ©dico. Nota-se ainda que HerĂłdoto nĂŁo inclui o homem entre os animais. 63 Esta tese parece ser contrĂĄria Ă defendida no Da natureza do homem, cujo dĂ©cimo primeiro capĂtulo (LittrĂ©) Ă© uma pormenorizada descrição do percurso que quatro pares de veias fazem a partir da cabeça. Contudo, pode ser essa aparente discordĂąncia fruto da indistinção por parte desses dois tratados entre veia e artĂ©ria, que sĂł serĂŁo distinguidas no tratado Das articulaçÔes (45LitttrĂ©), que Jouanna (1992:540) data do final do sĂ©culo V ou do começo do sĂ©culo IV a.C. De qualquer forma, o percurso do sangue num e noutro tratado Ă© muito diferente. Precisamente o dĂ©cimo primeiro capĂtulo (LittrĂ©) do tratado Da natureza do homem Ă© transcrito por AristĂłteles em sua HistĂłria dos animais (III,512b12-513a7), onde a obra hipocrĂĄtica Ă© atribuĂda a PĂłlibo, discĂpulo e genro de HipĂłcrates. 64 A palavra frhvn significa ordinariamente nos tratados hipocrĂĄticos a membrana que separa o coração dos pulmĂ”es. Observando-se o emprego do plural (sĂł hĂĄ uma Ășnica ocorrĂȘncia do singular
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pulmão, e se divide e vai ao coração e ao braço direito. O resto se eleva pela
clavĂcula atĂ© o lado direito do pescoço, atĂ© a prĂłpria pele, de sorte a ser
visĂvel. Oculta-se perto do ouvido e nele se separa. A parte mais grossa, maior
e mais calibrosa65 termina no cérebro; outra parte, sendo uma pequena veia
fina, vai ao ouvido direito; uma outra vai ao olho direito e uma outra vai Ă
narina. Assim sĂŁo as veias que vem do fĂgado. A veia que vem do baço
estende-se até o lado esquerdo, tanto para baixo, quanto para cima, assim
como a que vem do fĂgado, porĂ©m mais fina e mais fraca.
4Littré (7Jones). Através dessas veias recolhemos a maior parte do
fÎlego66, pois essas são respiradouros do nosso corpo, atraindo o ar até elas, e
o conduzem ao resto do corpo, através de pequenas veias; esfriam e retornam.
O fĂŽlego, entĂŁo, nĂŁo podendo permanecer parado, move-se, contudo, de cima
dessa palavra em todo o CH: Pren.,34,571) e o percurso descrito, pode-se concluir que se trata dessa membrana, e nĂŁo do mĂșsculo que normalmente designamos por 'diafragma'. O uso da palavra 'diafragma' com o sentido que lhe confere o MS Ă© comum no jargĂŁo mĂ©dico moderno. CovĂ©m comentar tambĂ©m que a definição e o registro mais antigo do termo diavfragma ('divisĂŁo') que nos foram legados Ă© da lavra de PlatĂŁo (Timeu, 70a e 84d), para quem o vocĂĄbulo designava um atributo do frhvn, que, por sua vez, Ă© explicado como "uma espĂ©cie de alma mortal": toV th~Ï yuch~Ï qnhtoVn gevnoÏ. Contudo, o tratado Dos ventos (10LittrĂ©), sem usar o termo diavfragma, insinua-o na expressĂŁo fragmoVÏ oJ tw~n frenw~n.
Os tratados Epidemias V e Epidemias VII apresentam, cada um, uma ocorrĂȘncia do termo diavfragma (respectivamente, em 95 e 121LittrĂ©). Essas duas ocorrĂȘncias apresentam o termo grego com o sentido atual da palavra 'diafragma'; todavia, as partes de ambos os tratados em que o termo figura sĂŁo situadas por Jouanna (1992:532) num lapso entre 358-7a.C., posto que em todos os dois hĂĄ uma referĂȘncia ao sitiamento de Datos por Filipe da MacedĂŽnia, a propĂłsito de um ferido por catapulta. 65 koilovtatoÏ ââ superlativo do adjetivo que designa a veia cava; pela inadequação vernacular da expressĂŁo 'mais cava', adotei a tradução 'mais calibrosa' (que figura no jargĂŁo mĂ©dico da lĂngua portuguesa), com algum prejuĂzo da esmerada precisĂŁo vocabular peculiar deste tratado. Todavia, vale lembrar que, com o adjetivo koi~loÏ, o autor refere-se ao calibre do vaso sangĂŒĂneo, como fica claro nos inĂcios dos capĂtulos 9 e 10LittrĂ© deste tratado. O termo 'veia cava' adquiriu seu sentido atual por meio da tradução latina da obra de Galeno, onde koivlh flevy jĂĄ apresentava o significado requerido pela anatomia nossa contemporĂąnea. Durling (1993:206) refere-se a 16 ocorrĂȘncias dessa expressĂŁo na obra de Galeno, sempre com o sentido do que Ă© atualmente designado por 'veia cava', e acusa a existĂȘncia de outras vĂĄrias ocorrĂȘncias com o mesmo significado. Onde o vernĂĄculo permitiu, mantive a tradução 'cavo' para este adjetivo, posto que, malgrado a lanhura ao jargĂŁo mĂ©dico em vigor, o vocĂĄbulo se preserva no seio de nossa lĂngua, e seu significado seja adequado Ă idĂ©ia do autor. 66 Embora LittrĂ©, Gual e Mandhilaras traduzam pneu~ma por 'ar', preferi traduzir o termo por 'fĂŽlego', para diferenciĂĄ-lo de hjevr (ĂĄt. ajhvr). Jones parece-me melhor sucedido em sua escolha pelo termo inglĂȘs 'vents', que nĂŁo encontra correspondente exato em nosso idioma, mas que se enquadra com precisĂŁo no aspecto semĂąntico que o termo vai adquirir em 13LittrĂ©, onde, de fato, o autor faz uso da palavra pneu~ma para expressar tambĂ©m a idĂ©ia de 'vento'.
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a baixo. Porque, se permanecer em algum lugar e for retido, a parte onde ele
permanece torna-se impotente67. Eis a prova: Quando se estĂĄ sentado ou
deitado, as veias sĂŁo pressionadas, de modo a nĂŁo passar o fĂŽlego pela veia,
em seguida ocorre entorpecimento68.
Ă assim que ocorre com as veias69.
5Littré (8Jones). Contudo, a doença acomete os fleumåticos70, mas não
nos biliosos. Começa a criar-se no embriĂŁo, quando ele ainda estĂĄ no Ăștero.
De fato, também o cérebro, assim como as outras partes, purifica-se e floresce
antes mesmo do nascimento. Nessa purgação, se se purga devidamente e na
medida exata, e caso flua nem mais nem menos do que o devido, tem-se,
67 O termo ajkrathvÏ, aqui traduzido por 'impotente', conforme o sentido apreendido atravĂ©s do aforismo VII,40 (LITTRĂ, IV,588; JONES, IV, 202): h#n hJ glw~ssa ejxaivfnhÏ ajkrathVÏ gevnhtai, h# ajpoplhktovn ti tou~ swvmatoÏ, melagcolikoVn toV toiou~to givnetai [se subitamente a lĂngua se torna impotente (ajkrathvÏ) ou uma parte do corpo fica paralisada (ajpoplhktovn), eis um sinal de atrabilis]. A relação entre a impotĂȘncia das partes do corpo e da paralisia com a bile negra estĂĄ presente em Das doenças I (2LittrĂ©) e Das Doenças II (6LittrĂ©). Jouanna (1983:220) disserta sobre a diferença entre ajpovplhktoÏ e ajkrathvÏ, e conclui que, mesmo tendo esses termos um significado prĂłximo e se aplicando Ă idĂ©ia de impotĂȘncia, Ă© preciso reconhecer que o primeiro vocĂĄbulo designa uma paralisia sĂșbita. Em uma nota Ă sua edição e tradução do tratado Ares, ĂĄguas e lugares (5LitttrĂ©), Jouanna (p.214, n.2) defende a tradução de ajkrathvÏ por 'impotente', alegando que a tradução usual 'sem força' tem uma intensidade menor do que o original. 68 O capĂtulo 14LittrĂ© do tratado Dos ventos Ă© dedicado Ă s causas da 'doença dita sagrada'. PorĂ©m, as causas apresentadas pelo tratado Dos ventos diferem consideravelmente das causas alegadas pelo MS. Para o autor do Dos ventos, a causa da 'doença sagrada' Ă© a obstrução, provocada pelo ar, da passagem do sangue; enquanto o MS considera que a 'doença sagrada' provĂ©m do bloqueio que o fleuma impĂ”e Ă circulação do ar. Malgrado as divergĂȘncias entre os dois textos, Ă© notĂĄvel como esta passagem atribui ao ar as mesmas propriedades que o referido capĂtulo do tratado Dos ventos: jEpeidaVn ou^n ejÏ taVÏ pacevaÏ kaiV poluaivmouÏ tw~n flebw~n pollovÏ ajhVr brivsh/, brivsaÏ deV meivnh/, kwluvetai toV ai%ma diexievnai (....) ajnomoivhÏ deV th~Ï poreivhÏ tw/ ~ ai@mati diaV tou~ swvmatoÏ ginomevnhÏ, pantoi~ai aiJ ajnomoiovthteÏ: pa~n gaVr toV sw~ma pantacovqen e@lketai kaiV tetivnaktai taV mevrea tou~ swvmatoÏ uJphretevonta tw/ ~ taravcw/ kaiV qoruvbw/ tou~ ai@matoÏ. [Quando entĂŁo o ar abundante chega Ă s veias espessas e que contĂ©m muito sangue, exerce uma pressĂŁo e continua exercendo essa pressĂŁo, e o sangue fica impedido de passar (...) Tornando-se irregular o andamento do sangue pelo corpo, ocorrem irregularidades de todo o tipo: o corpo todo Ă© tomado por todos os lados, e as partes do corpo se agitam, submissas ao bulĂcio e ao rumor do sangue]. 69 Gual e Jones privilegiam o Codex vindobonensis IV, e omitem kaiV tw~n loipw~n [e o resto]. Esta tradução, desunindo-se excepcionalmente do estabelecimento de LittrĂ©, adotou a opção de Jones. 70 Seguindo LittrĂ©, Gual e Jones (e tambĂ©m Jouanna, em AAL 10LittrĂ©), esta tradução tambĂ©m nĂŁo reconhece qualquer distinção entre flegmativhÏ e flegmatwvdhÏ. Assim, o termo flegmativhÏ aqui Ă© traduzido por 'fleumĂĄtico', como o fora o vocĂĄbulo flegmatwvdhÏ (2LittrĂ©).
52
então,a cabeça totalmente sã71. Mas, se hå fluxo excessivo proveniente de
todo o cĂ©rebro, e a coliquação se torne abundante; ao crescer, o indivĂduo terĂĄ
a cabeça adoentada e repleta de barulho, e não suportarå o sol nem o frio. Se o
fluxo provém de somente uma parte, ou do olho, ou do ouvido, ou se alguma
veia se resseca, essa parte fica lesada na proporção em que se då a coliquação.
Se, porém, não ocorrer a purgação, mas o fluxo se condensar no cérebro,
entĂŁo o indivĂduo serĂĄ necessariamente fleumĂĄtico.
Naqueles em que, quando crianças, brotam erupçÔes na cabeça, nas
orelhas e em outra parte da pele, e ocorre fluxo salivar e muco nasal, neles,
essas coisas vão apresentando melhora com o avançar da idade. Então, é
liberado e expurgado o fleuma que deveria ter sido purgado no Ăștero. E a
quem for assim purgado, geralmente nĂŁo ocorre este mal. Aqueles que forem
71 A teoria da purgação do cĂ©rebro Ă© a mesma que se nota no tratado Ares, ĂĄguas e lugares (10LittrĂ©). Da palavra dusenterivh, que figura neste trecho do AAL (o termo aparece cinco vezes no tratado), nĂŁo hĂĄ nenhuma ocorrĂȘncia no MS; entretanto, a comparação dos dois tratados revela claramente a convergĂȘncia de idĂ©ias acerca da purgação do cĂ©rebro nos fleumĂĄticos. O AAL acrescenta ainda algumas informaçÔes sobre o destino dos colĂ©ricos, que, segundo o tratado, nĂŁo sofrem da doença, mas morrem subitamente, quando o inverno Ă© austral, chuvoso e brando, mas a primavera Ă© boreal, seca e invernal. Ares, ĂĄguas e lugares, 10LittrĂ© Da doença sagrada, 5LittrĂ© Toi~Ï meVn ou^n flegmativsh/si taVÏdusenterivaÏ eijkoVÏ givnesqai kaiV th/ ~si gunaixiV flevgmatoÏ ejpikatarruevntoÏajpoV tou~ ejgkefavlou diaV thVn uJgrovthta th~Ï fuvsioÏ, Nos fleumĂĄticos, assim como nas mulheres (grĂĄvidas), Ă© normal ocorrerem disenterias, quando o fleuma deflui do cĂ©rebro por causa da umidade de sua natureza.
hJ deV nou~soÏ au@th givnetai toi~si meVn flegmativh/si, toi~si deV colwvdesi ou!, !Arcetai deV fuvesqai ejpiV tou~ ejmbruvou e!ti ejn th/ ~ mhvtrh/ ejovntoÏ: kaqaivretai gaVr kaiV ajnqevei, w@sper ta!lla mevrea, priVn genevsqai oJ ejgkevfaloÏ. jEn tauvth/ deV th/ ~ kaqavrsei h#n meVn kalw~Ï kaiV metrivwÏ kaqavrqh/ kaiV mhvte plevon mhvte e!lasson tou~ devontoÏ ajporruh/~, ou@twÏ uJgieinotavthn thVn kefalhVn e!cei. A doença ocorre nos fleumĂĄticos, mas nĂŁo nos biliosos. Começa a criar-se no embriĂŁo, quando ele ainda estĂĄ na matriz. De fato, tambĂ©m o cĂ©rebro, assim como as outras partes, purifica-se e floresce antes mesmo de se nascer. Nessa purgação, se se purga devidamente e na medida exata, e se flui nem mais nem menos do que o devido, entĂŁo, tem-se a cabeça totalmente sĂŁ.
53
assim purgados, não são geralmente atingidos72 por essa doença. Mas aqueles
que estão purgados, e nenhuma ulceração, nem muco e nenhuma saliva lhes
sobrevĂ©m; nem procederam, dentro dos Ășteros, Ă purgação; para tais
indivĂduos, hĂĄ o risco de serem tomados por essa doença.
6Littré (9Jones). Se, porém, o fluxo tomar o rumo do coração,
sobrevém palpitação e acessos de asma, e o peito fica lesado, e alguns ficam
curvados. Quando o fleuma frio desce sobre o pulmão ou sobre o coração, o
sangue se esfria; as veias violentamente esfriadas pulsam contra o pulmĂŁo e
ao coração. O coração palpita, de sorte a sobrevirem necessariamente os
acessos de asma e a ortopnĂ©ia; pois o indivĂduo nĂŁo recebe a quantidade de
fÎlego que deseja, até que o fluxo do fleuma seja controlado e derramado,
aquecido, pelas veias. Em seguida, cessam a palpitação e acesso de asma; mas
cessam na medida em que hĂĄ excesso. Se flui muito, cessa lentamente; se flui
pouco, mais rĂĄpido. E se os fluxos forem mais freqĂŒentes, mais freqĂŒentes
tornam-se os ataques; se nĂŁo, tornam-se mais raros. EntĂŁo, eis o que acontece
se o fluxo atinge o pulmão e o coração. Se atinge o ventre73, ocorrem
diarréias.
7Littré (10Jones). Se (o fleuma) fica bloqueado nesse trajeto produz-se
o fluxo paras veias das quais jĂĄ falei; o indivĂduo torna-se afĂŽnico e fica
72 ejpivlhpta. Essa Ă© a primeira ocorrĂȘncia, no tratado, de um termo cognato de 'epilepsia'. Tanto neste, quanto em Af. III,16LittrĂ© (aparentemente a ocorrĂȘncia mais antiga do termo no CH), o adjetivo se refere a um tipo de manifestação mĂłrbida, e nĂŁo a uma doença. Mas, no referido aforismo, o termo parecia referir-se a um completo quadro sintomĂĄtico, enquanto este tratado utiliza o vocĂĄbulo para aludir Ă intensidade do ataque. No capĂtulo seguinte do tratado, notar-se-ĂĄ uma ocorrĂȘncia do verbo ejpilambavnw, do qual o adjetivo ejpivlhptoÏ deriva.
. 73 A palavra que o autor utiliza para designar 'ventre' Ă© koilivh. TambĂ©m no AAL, a palavra empregada com o significado de "ventre" Ă© preferencialmente koilivh (com 22 ocorrĂȘncias), mas hĂĄ tambĂ©m a palavra gasthvr, que ocorre 7 vezes em todo o tratado. A variação entre os dois temos nĂŁo Ă©, contudo, livre. Observando-se os tratados Epidemias VII (60LittrĂ©), Das doenças I (15LittrĂ©), Da natureza do homem (11LittrĂ©), pode-se notar que gasthvr designava topograficamente o ventre, enquanto koilivh, talvez por sua cognação com o adjetivo koi~loÏ bastante empregado no MS, indica o ventre do ponto de vista fisiolĂłgico, o que naturalmente estĂĄ muito mais associado seu interior cĂŽncavo.
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sufocado, e cai-lhe espuma da boca. Os dentes se cerram; as mĂŁos se
contraem; os olhos reviram; o indivĂduo perde a consciĂȘncia, e alguns
eliminam excremento. Essas coisas ocorrem Ă s vezes pelo lado esquerdo;
outras vezes, pelo direito, e outras ainda, por ambos os lados.
Eu explicarei como acontece cada uma dessas coisas. O indivĂduo
torna-se afĂŽnico, quando repentinamente o fleuma que foi para as veias
bloqueia o ar, e não for recebido pelo cérebro, nem pelas veias cavas, nem
pelas cavidades, mas intercepta a respiração; porque quando o homem toma o
fÎlego pela boca e pelas narinas, este chega primeiramente ao cérebro; em
seguida, vai majoritariamente para o ventre, uma parte ainda vai para o
pulmĂŁo, e outra, para as veias. Dessas partes, o fĂŽlego distribui-se Ă s outras
através das veias. O que chega ao ventre, resfria o ventre, e não serve para
nenhuma outra coisa. O ar que é lançado ao pulmão e às veias, chegando à s
cavidades e ao cĂ©rebro, torna, dessa forma, possĂveis74 o pensamento e o
movimento dos membros; de sorte que, quando as veias sĂŁo privadas do ar por
causa do fleuma, e nĂŁo o recebem, o homem torna-se afĂŽnico e sem
consciĂȘncia. As mĂŁos tornam-se impotentes, e contorcem-se, um vez que
permanece o sangue imĂłvel e nĂŁo se distribui, como de costume. Os olhos
reviram, posto que as veias nĂŁo recebem ar e tornam-se tĂșrgidas. Provinda do
pulmĂŁo, a espuma sai da boca; pois quando o fĂŽlego nĂŁo entra nele, o
indivĂduo espuma e ebule, como se estivesse morrendo. O excremento
sobrevĂ©m por força do sufocamento, e hĂĄ sufocamento quando o fĂgado e o
ventre são pressionados para cima, em direção aos diafragmas, e hå obstrução
na boca do estĂŽmago75. Ocorre pressĂŁo, quando o fĂŽlego nĂŁo entra na boca,
74 Em LITTRĂ, o verbo parevcw Ă© traduzido por "produire"; em GUAL, por "procurar", e, em JONES, por "to cause". Contudo, nĂŁo considero que o autor tivesse o objetivo de estabelecer uma relação direta de causa-efeito entre a chegada do ar ao cĂ©rebro e a frovnhsiÏ e a kivnhsiÏ. 75 Esta Ă© a Ășnica ocorrĂȘncia, no CH, da expressĂŁo stovmacoÏ th~Ï koilivhÏ. No CH, nĂŁo hĂĄ um termo especĂfico para designar 'estĂŽmago', que ora recebe o nome de gasthvr, ora de koilivh. Alguns tratados, especialmente aqueles considerados da lavra de HipĂłcrates e de seus epĂgonos diretos, parecem manter uma coerĂȘncia interna na nomenclatura relativa a esse ĂłrgĂŁo. O termo stovmacoÏ Ă© empregado no AAL (9LittrĂ© ââ ter), acompanhado do genitivo th~Ï kuvstioÏ, para expressar o orifĂcio da vesĂcula. Esse vocĂĄbulo Ă© tambĂ©m encontrado em vĂĄrias outras passagens do CH com o mesmo significado de orĂficio de um determinado ĂłrgĂŁo. Compreende-se, portanto, que o
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como de costume. O indivĂduo bate os pĂ©s quando o ar Ă© interceptado nos
membros e nĂŁo Ă© capaz de escorrer para fora, devido ao fleuma. (O ar),
lançando-se para cima e para baixo através do sangue, produz espasmo e dor;
por isso, o indivĂduo esperneia. Tudo isso ocorre, quando o fleuma frio flui
para o sangue, que Ă© quente, pois o sangue esfria e se estagna. Se o fluxo for
abundante e espesso, o indivĂduo morre imediatamente. Pois o fluxo de
fleuma supera o sangue através do frio e o coagula76. Mas se esse fluxo for
menor, ele controla imediatamente a respiração que estĂĄ obstruĂda. Em
seguida, depois de algum tempo, quando (o fleugma frio) se espalha pelas
veias e se mistura ao sangue abundante e quente, caso seja assim controlado,
as veias recebem o ar, e os indivĂduos recobram a consciĂȘncia.
8Littré (11Jones). A maioria das crianças pequenas que são atingidas
por ataques dessa doença morre, se o fluxo sobrevier abundante e soprar o
noto77. As pequenas veias, que sĂŁo delgadas, nĂŁo podem receber o fleuma, por
termo Ă© ainda empregado pelo autor do MS com o significado extensivo a partir daquele com o qual Ă© encontrado na IlĂada (III,292), onde a locução stovmacoi ajrnw~n significa 'gargantas dos cordeiros' que Agamemnon cortou como selo imolando do pacto firmado entre ele e PrĂamo. Em Galeno (e tambĂ©m em Plutarco), o vocĂĄbulo stovmacoÏ significa tanto 'boca do estĂŽmago', alternando livremente com a expressĂŁo stovma th~Ï gastrovÏ; quanto o prĂłprio 'estĂŽmago' (cf. DURLING, 1993:300). LittrĂ©, em sua tradução, refere-se Ă cĂĄrdia; contudo, a implicação da consciĂȘncia do esĂŽfago ââ referido nominalmente pelo LexicĂłgrafo francĂȘs ââ parece-me um passo vetado Ă mera tradução. Todavia, LittrĂ©, em Das doenças das mulheres (171), traduz stovmacoÏ por 'esĂŽfago', na passagem em que o autor do tratado explica, entre outros sintomas da metrite, a recusa de alimento por parte do ventre. O tratado Dos lugares no homem, datado do VI sĂ©culo a.C., apresenta uma ocorrĂȘncia do vocĂĄbulo oijsovfagoÏ (20LittrĂ©). A datação do tratado Dos lugares no homem poderia ainda recuar, nĂŁo fosse a ponderação de Jouanna de que o uso justamente do termo oijsovfagoÏ nĂŁo poderia ser muito anterior Ă quele sĂ©culo, posto que o vocĂĄbulo somente voltarĂĄ a ser empregado, no CH (hĂĄ uma ocorrĂȘncia desse vocĂĄbulo em AristĂłteles, Das Partes dos animais, II,3,9), no curto tratado Da anatomia, que Jouanna (1992:530) data do perĂodo helenĂstico ou da fase romana. (v. tambĂ©m n.72) 76 phvgnusin. O verbo phvgnumi Ă© traduzido, nesta passagem, como 'congelar' por LittrĂ©, Gual e Jones, consoante ao significado do termo em Ăsquilo (Os Persas, 495), onde se lĂȘ: qeoVÏ (....) phvgnusin deV pa~n rJeveqron ajgnou~ StrumovnoÏ [ um deus (....) congela toda a correnteza do sagrado EstrimĂŁo]. Contudo, emque pese o pouco prestĂgio que a metĂĄfora e a metonĂmia gozam no CH, penso ser mais apropriada a tradução de Mandhilaras, que prefere traduzir este verbo por phvzw [âcoagularâ, mas tambĂ©m âcongelarâ]; mas nĂŁo se pode abstrair a relação entre a idĂ©ia de congelamento e o sintoma do calafrio. 77 O tratado AAL (7LittrĂ©) faz referĂȘncia Ă mĂĄ influĂȘncia do noto nas ĂĄguas: tau~ta [u@data] toi~si meVn notivoisi pavnu ponhrav, toi~si deV boreoi~sin ajmeivnw [Essas (ĂĄguas sĂŁo), de fato, ruins por causa do noto, e melhores por causa do bĂłreas]. Havia, no entanto, no AAL, a umidade como outra variĂĄvel influente nos malefĂcios do noto. O autor de AAL (10, 12 e 15LittrĂ©), afinado com Af. (III,
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causa de sua espessura e abundĂąncia; mas o sangue se esfria e coagula, e,
assim, o indivĂduo morre. Se Ă© pouco o fleuma, produz um fluxo por ambas as
veias, ou por uma delas, e, assim, o indivĂduo sobrevive, embora marcado78;
pois a boca fica torta, ou o olho, ou o pescoço, ou a mão; no lugar onde a
pequena veia, cheia de fleuma, foi controlada e oprimida. Por causa dessa
veia, necessariamente, a parte lesada do corpo Ă© mais fraca e mais incompleta.
Mas geralmente isso tem alguma utilidade, por um longo tempo; pois o ataque
nĂŁo mais ocorre, se o indivĂduo jĂĄ tiver sido marcado uma vez. Eis por quĂȘ:
Devido a essa necessidade, as veias restantes sĂŁo prejudicadas e parcialmente
contraĂdas, de sorte a receberem o ar, mas a nĂŁo fluir mais o fluxo de fleuma
como antes. De fato, Ă© razoĂĄvel os membros estarem mais fracos, se as veias
foram prejudicadas. Mas, aqueles que, em caso de vento do Norte, tĂȘm fluxos
muito parcos e do lado direito, esses sobrevivem sem qualquer marca;
contudo, hå o perigo de (a doença) formar-se e aumentar, se não forem
tratados com os procedimentos adequados79. Assim acontece com as crianças,
ou algo muito semelhante a isso.
9Littré (12Jones). Aos mais velhos, (a doença) não os mata, quando
sobrevém, nem provoca contorçÔes; pois as veias são calibrosas e cheias de
11, 12 e 13LittrĂ©), lembra que o bĂłreas seco Ă© tĂŁo danoso quanto o noto Ășmido, e que os dois juntos causam vĂĄrios males: h#n deV toV qevroÏ aujcmhroVn kaiV bovreion gevnhtai, toV deV fqinovpwron e#pombron kaiV novtion, kefalalgivai ejÏ toVn ceimw~na givnontai, kaiV bh~ceÏ kaiV bravgcoi, kaiV koruvzai, ejnivoisi kaiV fqivsieÏ [se o verĂŁo Ă© seco e com o bĂłreas, e o outono Ă© chuvoso e com o noto, entĂŁo, no inverno, ocorre cefalgia, rouquidĂŁo, coriza e, em alguns, a tĂsica] (Af.III,13). Outra variĂĄvel presente tanto em AAL, quanto nos aforismos referidos, Ă© a constituição do indivĂduo, sendo a umidade corpĂłrea um agravante das mazelas apresentadas em Af.III,13. Contudo, ainda em AAL (15LittrĂ©), numa passagem em que o autor comenta o clima de uma regiĂŁo da Ăsia, pode-se notar a relevĂąncia do vento austral em sua nosologia, mesmo quando considerado isoladamente de outros fatores. 78 ejpivshma Ă© o termo grego que designa o sinal distintivo. Ă com essa acepção que o encontramos nos trĂĄgicos (por exemplo, em Ăsquilo, Sete contra Tebas, 659). No tratado, trata-se de uma seqĂŒela imunizante. A relação entre seqĂŒela e imunidade Ă© um traço empĂrico do tratado que denota uma admirĂĄvel postura observadora. 79 As traduçÔes de LittrĂ©, Gual e Jones subentendem, nesta passagem, a idĂ©ia de 'remĂ©dio'. Mesmo que se considere que o termo 'remĂ©dio' Ă© semanticamente mais abrangente do que a palavra 'medicamento', a proximidade, em nosso vernĂĄculo, entre esses vocĂĄbulos, leva-me a considerar a ĂȘnfase no fato de se tratar de um procedimento terapĂȘutico em sua Ăntegra, e nĂŁo somente na aplicação de um medicamento.
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sangue quente, por isso, nem o fleuma pode controlĂĄ-las, nem o sangue pode
esfriar-se, a ponto de coagular-se, mas ele prĂłprio, o fleuma, Ă© controlado, e
se mistura rapidamente com o sangue. Dessa forma, as veias recebem o ar, e
dĂĄ-se a consciĂȘncia, e as marcas jĂĄ referidas ocorrem reduzidamente80, por
causa do vigor do indivĂduo. Aos muito velhos, quando lhes sobrevĂ©m essa
doença, ela provoca, por essa razão, a morte ou a paralisia, ou seja, porque as
veias se esvaziam, e o sangue Ă© parco, rarefato e aquoso. Se, entĂŁo, hĂĄ fluxo
abundante e for a Ă©poca de inverno, o indivĂduo morre. Pois o fluxo esgana e
coagula o sangue, se ele sobrevém por ambos os lados. Se ele ocorre apenas
em um dos lados, torna o indivĂduo paralĂtico, porque o sangue nĂŁo pode
controlar o fleuma, uma vez que estĂĄ rarefato, frio e parco; mas ele prĂłprio,
controlado, se coagula, de sorte a tornarem-se impotentes aquelas partes onde
o sangue foi suplantado.
10Littré (13Jones). O fluxo ocorre mais para a direita, do que para a
esquerda, porque as veias sĂŁo mais calibrosas e numerosas do que no lado
direito; pois as veias se estendem a partir do fĂgado e do baço. O fluxo se
precipita e se coliqua principalmente nas crianças, se nelas a cabeça for
esquentada ou pelo Sol, ou por fogo, e repentinamente o cérebro vier a tremer
de frio81; pois entĂŁo o fleuma se separa82. Isso ocorre porque o fleuma se
80 O adjetivo hJvsswn, que nesta passagem adquire valor adverbial, pode ter tanto o significado quantitativo, quanto o qualitativo. Por essa razĂŁo, esse advĂ©rbio ad hoc foi traduzido por uma expressĂŁo que transparecesse essa ambivalĂȘncia semĂąntica. 81 A opção por esta tradução denotativa justifica-se principalmente pelo fato de o mesmo verbo frivssw ser empregado logo abaixo (ainda neste capĂtulo do tratado) com o sentido denotativo de 'tremer de frio'. Assim, diverge esta tradução das de LittrĂ©, Jones e Gual. Um outro argumento para tal opção Ă© a similitude entre o tremor provocado pelo frio e o provocado pela convulsĂŁo. Os manuscritos apresentam esta passagem da seguinte forma: oi^sin a#n diaqermanqh/~ hJ kefalhV h#n te uJpoV hJlivou, h#n te uJpoV puroVÏ, kaiV h#n te ejxapivnhÏ frivxh/ oJ ejgkevfaloÏ. Todavia, LittrĂ© suprime a Ășltima ocorrĂȘncia de h#n te, justificando-se em longa nota com o argumento de que o esfriamento do cĂ©rebro Ă© um fato seqĂŒente ao seu aquecimento, e nĂŁo de um simultĂąneo. De fato, o aquecimento aglutinador e o frio dissolvente sĂŁo os fatores que permitirĂŁo o fluxo. LittrĂ© lembra ainda que a repetição dos termos h!n te conduz facilmente a esse equĂvoco. A partir de LittrĂ©, os estabelecedores preferiram esta opção, e mesmo Jones, cujo texto diverge consideravelmente do de LittrĂ©, segue-lhe aqui, lembrando que Reinhold, naturalmente para fortalecer a tese de LittrĂ©, acrescenta ainda a expressĂŁo e!peita antes de ejxapivnhÏ (JONES, 1992:165, n.2).
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coliqua pelo calor e pela dilatação do cérebro; ele se separa sob a ação do frio
e da contração, e assim flui. Em alguns indivĂduos, essa Ă© a motivação; em
outros, quando o noto repentinamente substitui os ventos boreais, e distende e
liberta o cĂ©rebro que estava contraĂdo e Ă© vigoroso83, de sorte a tornar-se
demasiadamente abundante o fleuma, e, dessa forma, produz-se o fluxo.
O fluxo se derrama também devido a um medo obscuro84, se o
indivĂduo teme quando alguĂ©m grita, ou ainda se, em meio ao choro, nĂŁo for
capaz de retomar rapidamente o fĂŽlego. Tais coisas ocorrem amiĂșde com as
crianças. Quando ocorre qualquer dessas coisas, imediatamente o corpo treme
de frio, e, afĂŽnico, o indivĂduo nĂŁo retoma o fĂŽlego, mas o fĂŽlego fica
eståtico; o cérebro se contrai; o sangue estagna-se, e, dessa forma, o fleuma se
separa e flui. Nas crianças, essas são as motivaçÔes do ataque85, no que
concerne ao seu inĂcio. Para os mais velhos, porĂ©m, o inverno Ă© muito
agressivo. Pois, quando, prĂłximos a um grande fogo, tais indivĂduos tĂȘm
esquentados a cabeça e o cérebro; e quando se expÔem ao ar livre86 e são
82 O verbo ajpokrivnw, nesta passagem na qual Ă© empregado em sua forma mĂ©dia, serve-se de seu amplo espectro semĂąntico para implicar nas idĂ©ias de 'diluir' e 'desprender'. 83 LittrĂ© opta pelo termo eujsqenevonta, apoiado apenas no manuscrito H. Os demais manuscritos apresentam ora a forma ajsqenevonta, ora a locução ajsqeneva o!nta, o que resultaria num significado oposto ao da opção de LittrĂ©, e, por conseguinte, contrĂĄrio ao raciocĂnio do prĂłprio autor. Os estabelecedores seguintes a LittrĂ© adotam a sua medida, e a edição de Jones esclarece, em nota, a sua opção. 84 ejpikatarrevei deV kaiV ejx ajdhvlou fovbou ginomevnou, .... â LittrĂ© acrescenta uma vĂrgula depois de ajdhvlou, o que resulta na seguinte tradução: O fluxo se derrama por uma causa obscura, por um medo, .... Contudo, a opção dos demais editores do tratado Ă© a de manter esta passagem sem a vĂrgula que lhe acrescentou LittrĂ©. A objeção de Jones, expressa em nota, Ă virgula de LittrĂ© consiste em argumentar que os exemplos apresentados pelo autor do tratado nĂŁo sĂŁo a!dhla. 85 Esta Ă© a Ășnica ocorrĂȘncia da palavra ejpivlhyiÏ no tratado.
86 LittrĂ© traduz yu~coÏ por 'ar livre', e, assim, o opĂ”e a ajlevh, que vem sendo interpretado como 'abrigo, lugar coberto'. Contudo, cabe assinalar que hĂĄ dois vocĂĄbulos homĂłgrafos (ajlevh). Um dos quais Ă© derivado de h@lioÏ, e designa o calor emanado do Sol; o outro provĂ©m de ajleuvw (proteger). LittrĂ© opta pelo segundo, vendo em yu~coÏ seu contraposto. Tal opção opĂ”e-se Ă s de Gual e Jones, que preferem traduzir yu~coÏ por 'frio', nĂŁo vendo, assim, qualquer antĂtese direta entre os dois termos. A favor da opção por 'abrigo' na tradução do termo ajlevh, tĂȘm-se as duas ocorrĂȘncias do vocĂĄbulo em AAL (8 e 19LittrĂ©); sendo a primeira dessas uma oposição irrefutĂĄvel a aijqrivh ('ar livre'), numa experiĂȘncia argumentativa na qual uma certa medida de ĂĄgua deveria ficar ao ar livre (aijqrivh) durante o inverno, atĂ© que congelasse, e depois ser recolhida a um lugar fechado (ajlevh), para que se descongelasse e se lhe notasse a diminuição de volume.
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tomados pelo frio, ou quando forem do ar livre a um abrigo, e se sentarem
prĂłximos a um fogo, essas mesmas coisas acontecem, e lhes ocorre o ataque,
conforme jĂĄ ficou dito. Outro grande perigo Ă© que sofram tais coisas na
primavera, se o sol lhes aquecer a cabeça. Mas, no verão, o perigo é muito
menor, posto que não hå mudanças repentinas.
Quando se tiver ultrapassado os vinte anos, essa doença não mais
atinge, senão a poucos ou mesmo a ninguém, a não ser que ela acompanhe o
indivĂduo desde a infĂąncia. As veias estĂŁo cheias de sangue, e o cĂ©rebro se
condensa e torna-se rĂgido, de sorte que o fluxo nĂŁo recai sobre as veias, mas,
se recair, nĂŁo controla o sangue , posto que o sangue Ă© abundante e quente.
11Littré (14Jones). Em quem (a doença) vem crescendo e se
desenvolvendo desde criancinha, é habitual ocorrer isso durante as mudanças
de vento, na maioria das quais, lhe sobrevĂȘm ataques, e, sobretudo, quando
sopram os notos. Ă difĂcil livrar-se desses ataques, porque o cĂ©rebro tornou-se
mais Ășmido do que o seu natural, e transborda o fleuma, de sorte que
defluxÔes tornam-se amiudadas, e o fleuma não pode mais separar-se, nem o
cĂ©rebro, tornar-se seco, mas esse pode molhar-se e manter-se Ășmido. Qualquer
um pode tomar conhecimento disto principalmente em alguns animais pastoris
que são tomados por ataques devidos a essa doença, e especialmente nas
cabras, pois essas os tĂȘm com freqĂŒĂȘncia. Se dissecares a cabeça delas,
encontrarĂĄs o cĂ©rebro Ășmido, em meio a hidropisia, e cheirando mal. Nessa
evidĂȘncia, reconhecerĂĄs que nĂŁo Ă© a divindade que corrompe87 o corpo, mas a
doença.
87 O verbo lumaivnomai, que vai traduzido por 'corromper', figura no tratado Da dieta I,14LittrĂ© glosado como 'purificar'. Pierre Chantraine, em seu Dictionnaire Ă©tymologique de la langue grecque (assim como em sua revisĂŁo do Dictionnaire de Anatole Bailly) registra os dois significados do verbo lumaivnomai, atribuindo-lhe, dessa forma, uma polissemia considerĂĄvel, mas com muitos paralelos na lĂngua grega. O Lexicon Liddell-Scott-Jones, contudo, apresenta duas entradas para esse verbo, concebendo-o como formas coincidentes de origens diversas. Assim, naquele dicionĂĄrio, o primeiro lumaivnomai (o que se encontra no tratado Da dieta I, 14) Ă© associado etimologicamente a lu~ma ('ĂĄgua usada em uma lavagem', 'sujeira removida por
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Isso ocorre também com o homem: quando a doença dura muito, torna-
se incuråvel, posto que o cérebro é carcomido pelo fleuma e se coliqua; o que
for coliquado torna-se ågua que rodeia externamente o cérebro, e banha-o. E,
por essa razĂŁo, os indivĂduos tornam-se mais freqĂŒente e facilmente presas de
ataques. Eis por que a doença torna-se duradoura, jĂĄ que o lĂquido fluxionĂĄrio
que circunda o cérebro é rarefeito devido a sua abundùncia, e é imediatamente
controlado e aquecido pelo sangue.
12Littré (15Jones). Aqueles que estão habituados perspiram quando
estĂŁo prestes a ter um ataque, e se afastam dos outros, se estiverem perto de
casa; se estiverem longe, dirigem-se ao lugar mais isolado, onde esperam que
pouquĂssimos o vejam cair, e imediatamente se escondem. Fazem isso por
vergonha da afecção, e nĂŁo por medo do nume, como muitos crĂȘem. As
crianças, por falta de costume, primeiramente caem onde acaso estejam. Mas
quando ocorrerem ataques repetidos, ao pressentirem-nos, fogem para perto
de suas mães ou para perto de alguém que conheçam bem, por causa do terror
e do medo da afecção; pois, sendo crianças, não conhecem ainda o que seja
envergonhar-se.
13Littré (16Jones). Pelas razÔes que exporei, afirmo ocorrerem ataques
nas mudanças dos ventos88, principalmente nos notos, depois nos bóreas e, em
lavagem'), e o segundo, a luvmh ('tratamento cruel', 'ultraje'). Cabe ainda assinalar que o tratado Da dieta, do ponto de vista de suas idĂ©ias, figura marginalmente no CH, porquanto apresenta uma concepção muito particular da natureza humana (que, segundo o tratado, deriva de uma mistura de ĂĄgua e fogo), e recorre aos deuses em preces suplicantes. O longo tratado Da dieta, para o qual se adotou a divisĂŁo em quatro livros (apesar da preferĂȘncia de Galeno por seccionĂĄ-lo em trĂȘs partes), Ă© instado por Jouanna (1992:557) como pertencente ao fim do V ou começo do VI sĂ©culo a.C. Se, por um lado, a data o aproxima do MS, por outro prisma, a sua relação com os deuses o distancia consideravelmente desse tratado. Portanto, nĂŁo deve haver aqui uma preocupação com um certo idioleto que notoriamente se vĂȘ partilhado pelos tratados MS e AAL. 88 A palavra empregada nesta passagem com o significado de 'vento' Ă© pneu~ma. AtĂ© aqui, tenho traduzido pneu~ma por 'fĂŽlego', posto que o termo se referia ao hĂĄlito humano.
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seguida, nos demais; esses são, entre os ventos, os mais fortes, além de
contrĂĄrios aos outros no que tange Ă direção e Ă potĂȘncia.
O bĂłreas condensa o ar, e dissipar a parte turba89 e nebulosa, e a faz
lĂmpida e diĂĄfana. Dessa mesma maneira, atua sobre tudo o que tem origem
no mar, e nas outras ĂĄguas; pois dissipa a umidade e a escuridĂŁo de todas as
coisas, inclusive dos homens, e por isso Ă© o mais saudĂĄvel dos ventos90.
O noto, por sua vez, faz o contrårio disso. Primeiramente começa a
fundir e liquefazer o ar condensado, visto que nĂŁo sopra forte imediatamente,
89 Ă notĂĄvel a semelhança entre os termos empregados nessa passagem e naquela que se encontra em AAL (8LittrĂ©), especialmente o verbo ejkkrivnw regendo o termo qolerovn, e a antĂtese entre este termo e lamprovn. Ares, ĂĄguas e lugares, 8LittrĂ© Da doença sagrada, 13LittrĂ© ejpeidaVn (toV u@dwr) aJrpasqh/~ kaiV metewrisqh/ ~ periferovmenon kaiV katamemigmevnon ejÏ toVn hjevra, toV meVn qoleroVn aujtou~ kaiV nuktoideVÏejkkrivnetai kaiV ejxivstatai kaiV givnetai hjhVr kaiV oJmivclh, toV deV lamprovtaton kaiV koufovtaton aujtou~ leivpetai kaiV glukaivnetai uJpoV tou~ hJlivou kaiovmenovn te kaiV eJyovmenon. quando a ĂĄgua Ă© arrebatada e elevada, estando carregada e misturada ao ar, sua parte turva e semelhante Ă noite se separa, distancia-se e se transforma em bruma e nĂ©voa; a parte mais lĂmpida e mais leve permanece onde estĂĄ, e abranda-se, queimada e cozida pelo Sol.
oJ meVn gaVr borevhÏ xunivsthsi toVn hjevra kaiV toV qolerovn te kaiV nefw~deÏ ejkkrivnei kaiv lamprovn te kaiV diafaneva poievei o bĂłreas condensa o ar, e separa a parte turva e nebulosa, e a faz lĂmpida e diĂĄfana.
NĂŁo creio ser casualmente que as convergĂȘncias vocabulares se acentuem quando o tema sĂŁo os ventos, precisamente um dos temas de AAL. A tese sobre tal assunto tambĂ©m parece ser compartilhada pelos dois tratados. Em AAL, nĂŁo poderia constar um axioma apologĂ©tico do bĂłreas, visto que o tratado acrescenta outras variĂĄveis Ă ação salutar do ambiente, sem estabelecer ââââ ao contrĂĄrio de MS ââââ relaçÔes aglutinantes entre essas variĂĄveis. Contudo, o AAL refuta as vantagens do bĂłreas sobre o noto. Em 19LittrĂ©, lĂȘ-se que o bĂłreas provĂ©m da regiĂŁo situada abaixo da Ursa, onde a neve esfria o vento contĂnuo; mas Ă© em 5LittrĂ© que se nota o quanto o bĂłreas Ă© desprestigiado no AAL, e que se percebe que o nome borevhÏ jĂĄ Ă© suficiente para significar um conjunto de caracterĂsticas climĂĄticas que nĂŁo se restringe Ă direção e Ă temperatura. Nessa referida passagem, o autor observa que as cidades voltadas para o bĂłreas tĂȘm habitantes melhores quanto ao carĂĄter e Ă inteligĂȘncia (ojrghVn te kaiV xuvnesin beltivouÏ). 90 Primeira ocorrĂȘncia da palavra a!nemoÏ neste tratado, neste mesmo capĂtulo haverĂĄ mais uma, que serĂĄ a Ășltima. Ă curioso notar que, em AAL, sĂł hĂĄ uma Ășnica ocorrĂȘncia do termo a!nemoÏ (8LittrĂ©), em oposição Ă s 29 da palavra pneu~ma, esta Ășltima sempre com o significado de 'vento'. No tratado AAL, o termo pneu~ma nĂŁo ostenta o significado de 'fĂŽlego', como acontece ordinariamente em MS.
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mas primeiro Ă© tranqĂŒilo, porque nĂŁo pode, de repente, controlar o ar que
antes estava espesso e condensado; todavia dissolve-o com o passar do tempo.
Da mesma maneira atua sobre a terra, sobre o mar, sobre os rios, sobre as
fontes, as cisternas e sobre tudo o que brota e em tudo o que contém umidade.
E ela estĂĄ em tudo ââââ em algumas coisas mais, em outras, menos. Todas as
coisas sentem91 esse vento, e passam de claras a turvas, de frias a quentes, de
secas a Ășmidas. Os vasos de barro cheios de vinho ou de qualquer outro
lĂquido que estiverem nas casas ou enterrados, todos eles, sentem o noto, e
transmutam sua forma em outra aparĂȘncia, e, assim, torna o Sol, a Lua e as
estrelas muito menos resplandecentes do que a sua natureza. Quando entĂŁo,
sendo essas coisas assim tĂŁo grandes e poderosas, (o vento) as controla desta
maneira, e faz o corpo sentir e modificar-se, durante as mudanças desses
ventos, é forçoso que, com os notos, o cérebro relaxe e se umedeça92 e as
veias se tornem mais flĂĄcidas, e que, com os bĂłreas, o que hĂĄ de mais
saudåvel no cérebro se condense; o que for mais doente se separe do que
estiver mais Ășmido, e que (o fleuma) o banhe93 por fora, e, assim, as
defluxÔes sobrevenham nessas mudanças desses ventos.
91Apesar de o verbo 'sentir' normalmente abnuir sujeito inanimado, preferi, nesta e na frase seguinte, conservar a estrutura igualmente incomum do texto grego, onde o verbo equivalente Ă© aijsqavnomai, cujo significado Ă© 'perceber pelos sentidos', e, portanto, tambĂ©m renuente de sujeitos inanimados. Assim procedendo, afasto-me da tradução de LittrĂ©, que prefere traduzir aijsqavnomai por 'Ă©prouver' (para o qual o sujeito inanimado Ă© pertinente em quaisquer condiçÔes), e aproximo-me das opçÔes de Gual e Jones, que traduzem o verbo grego, respectivamente, por 'percibir' e 'to feel'. 92 Este Ă© o terceiro Ă©timo no texto ligado Ă idĂ©ia de 'umidade'. A raiz mais usada no texto para expressar esse campo semĂąntico Ă© a de uJgrovÏ, mas em 13LittrĂ© (inĂcio) o termo hjhvr, que, de resto, designa o 'ar', Ă© empregado em seu sentido menos usual ââââ nĂŁo obstante muito antigo, posto que atestado desde Homero (P,649) ââââ, que, nos termos do dicionĂĄrio de Anatole Bailly, muito se aproxima da idĂ©ia de ojmivclh. 93 O verbo perikluvw, aqui traduzido literalmente, refere-se ao fleuma. Vale dizer, entretanto, que essa nĂŁo Ă© a opiniĂŁo de Gual e de Jones, que, a julgar pela sintaxe das respectivas traduçÔes, parecem crer que o sujeito desse verbo seja o bĂłreas. LittrĂ©, por sua vez, nĂŁo se exime de expressar o sujeito ideal 'o humor', que me parece muito adequado, uma vez que precisamente esse verbo com o mesmo objeto ('cĂ©rebro') figura na etiologia fisiolĂłgica dos ataques, em 11LittrĂ©.
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Dessa forma, essa doença nasce e se desenvolve94, a partir da agregação
e desagregando, e nĂŁo Ă© de forma alguma mais impossĂvel de ser tratada ou de
ser conhecida; nem Ă© mais divina do que as outras.
14Littré (17Jones). à preciso que os homens saibam que nossos
prazeres, nossas alegrias, risos e brincadeiras nĂŁo provĂȘm de coisa alguma
senão dali (, isto é, do cérebro), assim como os sofrimentos, as afliçÔes, os
dissabores e os prantos. E, sobretudo, através dele, pensamos,
compreendemos, vemos, ouvimos e reconhecemos o que Ă© feio e o que Ă© belo,
o que Ă© ruim e o que Ă© bom, o que Ă© agradĂĄvel e o que Ă© desagradĂĄvel, tanto
distinguindo as coisas conforme o costume, quanto sentindo-as conforme o
que for conveniente ââââ e distinguindo dessa forma os prazeres dos
desprazeres; de acordo com a ocasiĂŁo, as mesmas coisas nĂŁo nos agradam
sempre. Ă tambĂ©m atravĂ©s dele que enlouquecemos e deliramos, e nos vĂȘm os
terrores, os medos, alguns durante a noite, outros durante o dia, e, as insĂŽnias,
os erros inoportunos, as preocupaçÔes inconvenientes, a ignorùncia do
estabelecido, a falta de costume95 e a inexperiĂȘncia.
De tudo isso somos passĂveis a partir do cĂ©rebro, quando este nĂŁo estĂĄ
saudåvel, porém torna-se mais quente do que sua natureza, ou mais frio, ou
mais Ășmido, ou mais seco, ou sofre, contra a natureza, outra afecção que lhe Ă©
inabitual. Enlouquecemos devido Ă umidade; pois, quando se estĂĄ mais Ășmido
do que seu natural, é forçoso que se mova, e, movendo-se, nem permaneça
95 LittrĂ© e Jones privilegiam, nesta passagem, o ms.Vindobonensis IV e o CĂłdice 4Vaticanus, que ostentam o termo ajhqivh ('falta de costume'); contudo, LittrĂ©, nĂŁo retira o termo ajpeirivh ('inexperiĂȘncia'), que nĂŁo consta naquelas fontes. Por outro lado, Grensemann e Willamowitz, alĂ©m de omitirem o termo ajpeirivh, preferem o substantivo lhvqh ('esquecimento', mas que Gual prefere traduzir por 'estranhezas') ao vocĂĄbulo ajhqivh. Esta tradução seguiu, tambĂ©m aqui, o texto estabelecido por LittrĂ©, mas nĂŁo se pode deixar de observar que a opção de Grensemann e de Willamowitz parece aqui estar muito mais afinada com o conjunto do tratado. Ă esperado que o mĂ©dico tratadista pense que o esquecimento provĂ©m do cĂ©rebro, mas o mesmo nĂŁo se pode dizer acerca da falta de hĂĄbito ou da inexperiĂȘncia.
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estĂĄvel a visĂŁo, nem a audição. Mas ora ouve-se e vĂȘ-se uma coisa, ora, outra,
e a lĂngua expressa tais coisas como sĂŁo ouvidas e vistas em cada
circunstùncia. Durante o tempo em que o cérebro ficar eståvel, o homem
estarĂĄ consciente.
15Littré (18Jones). A corrupção do cérebro é devida ao fleuma e à bile.
ConhecerĂĄs as duas causas desta maneira: Os que enlouquecem devido ao
fleuma sĂŁo pacĂficos e nĂŁo gritam, nem bramem. Mas os que enlouquecem
devido Ă bile costumam berrar, e tornam-se furiosos e inquietos, sempre
fazendo algo inoportuno. Se enlouquecem continuamente, essas sĂŁo suas
motivaçÔes; mas, se os terrores e medos se lhes afiguram, isso se deve ao
deslocamento96 do cérebro, que se desloca quando aquecido, e ele se aquece
devido Ă bile, quando se projeta sobre o cĂ©rebro atravĂ©s das veias sangĂŒĂneas
procedentes do corpo. E um medo se mantém até que novamente (a bile) se
retire para as veias e do corpo; depois cessa. O indivĂduo se aflige e sente
nåusea97 fora de ocasião, enquanto o cérebro se esfria e se contrai além do que
96 Gual, LittrĂ© e Jones preferiram traduzir, nesta passagem, o termo metavstasiÏ por "mudança", sem que a idĂ©ia de movimento fosse necessariamente considerada. Contudo, Vitorio di Benedetto e Mandhilaras (que apenas mantĂ©m o termo que, em seu idioma, possui um significado consideravelmente mais especĂfico do que o do grego do tratado), com os quais aqui concordo, propĂ”em que este vocĂĄbulo conserve sua postura semĂąntica mais etimolĂłgica, traduzindo esta palavra por 'deslocamento' (respectivamente, spostamento e metavstash). 97 Minha tradução da forma verbal ajsa~taidivorcia-se das traduçÔes de LittrĂ©, Gual, Mandhilaras e di Benedetto, preferindo a sujestĂŁo do dicionĂĄrio LIDDELL-SCOTT-JONES, em cujo respectivo verbete, tem-se por definição de ajsav-omai 'fell loadthing or nausea', e, como exemplo de emprego desse verbo com esse significado, o referido dicionĂĄrio cita precisamente a passagem em questĂŁo. A favor de minha opção, poder-se-ia argumentar que Galeno emprega nove vezes este verbo, e todas as vezes com o claro sentido de 'sentir nĂĄusea', cinco dessas ocorrĂȘncias jĂĄ constam do CGM (vol.V: Galeni in Hippocratis de natura hominis commentario, 182.28; 312.15 e 23; Galeni in Hippocratis prorrheticum commentario, 339.18; Galeni in Hippocratis epidemiarum librum VI commentario, 80.25; Galeni in Hippocratis epidemiarum librum III commentario, 133.1); em apenas uma das ocorrĂȘncias o verbo se encontra em sua forma ativa (numa citação de Andromachus Junior ââââ XI, 352.12 ââââ Ă obra de Galeno).
No CH, hĂĄ cinco ocorrĂȘncias do termo a!sh, que, segundo o Dictionnaire Ă©tymologique de Chantraine, dĂĄ origem ao verbo ajsav-w. Em todas essas ocorrĂȘncias o significado 'nĂĄusea' Ă© claramente notado. Como exemplo e ilustração desses empregos, cito o Af.5,61, onde o autor se refere Ă nĂĄusea como sintoma de gravidez; para tanto, o termo empregado Ă© a!sh: h#n gunaikiV aiJ kaqavrsieÏ poreuvwntai, mhvte frivkhÏ, mhvte puretou~ ejpiginomevnou, a^sai deV aujth/ ~ prospivptwsi, logivzou tauvthn ejn gastriV e!cein [ se, em uma mulher, a menorrĂ©ia (lit.: as
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lhe é habitual. Tudo isso ocorre devido ao fleuma. Por causa dessa afecção, o
indivĂduo tambĂ©m perde a memĂłria. Durante as noites, ele grita e berra,
quando, o cĂ©rebro subitamente se esquenta. Os biliosos sĂŁo passĂveis disso,
mas os fleumĂĄticos, nĂŁo. O indivĂduo se esquenta quando o sangue abundante
chega ao cérebro, e ferve; depois, segue abundantemente, através das veias
mencionadas, quando, então o homem tem um sonho apavorante, e mantém-se
amedrontado. De sorte que, ao acordar, o rosto pÔe-se mais ardente, e os
olhos se envermelhecem, quando ele tem medo, e a inteligĂȘncia concebe
realizar algo ruim, o mesmo lhe ocorrerĂĄ no sono. Mas, quando o indivĂduo
desperta e toma consciĂȘncia, e o sangue novamente se distribui para as veias
mencionadas, isso cessa.
16Littré (19Jones). De acordo com isso, penso que o cérebro (dentre
todos os ĂłrgĂŁos, Ă© o que) exerce o maior poder no homem. Pois ele, se acaso
estĂĄ sĂŁo, Ă© nosso intĂ©rprete das ocorrĂȘncias oriundas do ar, e o ar lhe
proporciona a consciĂȘncia. Os olhos, os ouvidos, a lĂngua, as mĂŁos, os pĂ©s
praticam coisas tais quais o cérebro as percebe; pois a todo o corpo se aplica a
consciĂȘncia na medida em que ele participa do ar. Mas o cĂ©rebro Ă© o
transmissor da compreensĂŁo.
Quando, pois, o homem inspira98, este (isto Ă©, o ar) chega
primeiramente ao cérebro, e assim o ar se dispersa pelo resto do corpo,
deixando no cĂ©rebro sua parte apogĂstica e o que houver de concernente Ă
consciĂȘncia e possuir de conhecimento. Pois se (o ar) chegasse primeiro ao
corpo, e depois ao cérebro, tendo deixado nas carnes e nas veias seu poder de
discernimento, iria ao cérebro, estando quente e maculado; porém, misturado
purificaçÔes) nĂŁo ocorre, sem que haja nem calafrios, nem febres, mas se lhe sobrevier nĂĄusea, considere que ela traz uma (criança) no ventre]. 98 oJkovtan spavsh/ toV pneu~ma ejÏ eJwtovn: lit.: quando atira sobre si o fĂŽlego.
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ao humor99 que provém das carnes e do sangue, de sorte a não estar mais
totalmente adequado.
17Littré (20Jones). Por isso, afirmo que o cérebro é o interpretador da
inteligĂȘncia100. Os diafragmas receberam seu nome pelo acaso e pelo
costume101, e nĂŁo por aquilo que Ă©, nem por causa da natureza. Nem mesmo
sei que propriedades tĂȘm os diafragmas de sorte a terem consciĂȘncia e
pensarem; a nĂŁo ser que se refira ao fato de que, se, por qualquer razĂŁo, o
homem inesperadamente se alegre em demasia ou se aflija, (os diafragmas),
entĂŁo, saltem e se agitem devido a sua parca espessura e por estarem mais
retesados no corpo e por nĂŁo terem nenhuma cavidade na qual acolheriam o
que lhes caĂsse de bom e de ruim, mas sĂŁo perturbados por ambas as coisas
por causa de sua natureza débil; porque não sentem nada antes das outras
partes do corpo, e Ă© sem fundamento que tĂȘm esse nome e (lhes Ă© atribuĂda)
99 jIkmavÏ. LaĂn Entralgo (1987:146-7), ao enumerar os diversos termos empregados no CH para designar 'humor', lembra que o vocĂĄbulo ijkmavÏ Ă© caracterĂstico dos tratados cnĂdicos. De fato, essa palavra figura no tratado Da natureza da criança, e Ă© recorrente em Das doenças IV. Galeno pretere o vocĂĄbulo ijkmavÏ, preferindo o coaca cumovÏ. No AAL hĂĄ igualmente apenas uma Ășnica ocorrĂȘncia de ijkmavÏ (8LittrĂ©), e, tal qual no MS, nenhuma do termo cumovÏ. O tratado Da natureza do homem, um texto coaca humoral por excelĂȘncia, nĂŁo emprega o vocĂĄbulo ijkmavÏ, mas, por outro lado, o termo cumovÏ figura apenas uma vez no tratado. Ă inevitĂĄvel tentar explicar essas duas ocorrĂȘncias da palavra ijkmavÏ atravĂ©s de sua afinidade com a geofĂsica do AAL, conquanto esse vocĂĄbulo refere-se comumente Ă umidade, como por exemplo em HerĂłdoto IV, 185, onde se encontra a oração ijkmavdoÏ ejstiV ejn aujth/ ~ oujdevn [nĂŁo hĂĄ nada de umidade] a descrever o clima da LĂbia. 100 LittrĂ© (e Mandhilaras)e Jones (e Gual) fazem esta frase constar deste capĂtulo; Grensemann (e di Benedetto) prefere incluĂ-la no capĂtulo anterior.
A tradução de xuvnesiÏ por âinteligĂȘnciaâ procura nessa palavra o que nela hĂĄ mais prĂłximo do significado de âcompreensĂŁoâ, acrescentando a este Ășltimo a idĂ©ia do âconteĂșdo compreendidoâ. Ă necessĂĄrio lembrar aqui que Pigeaud (1987: 58 et ss.) traduz esse termo grego por âconnaissanceâ. 101 O autor se refere ao fato de a palavra frevneÏ [diafragmas] provir do verbo fronevw [inteligir, ter consciĂȘncia], hĂĄ muitas passagens na literatura grega nas quais o frhvn Ă© apresentado como a sede do qumovÏ (cujo significado muito peculiar Ă cultura grega conduz os tradutores Ă s mais diversas soluçÔes, como, por exemplo, 'Ăąnimo', 'coração', 'coragem', 'Ăndole', 'alma', ...). Dumotier (1975:8 e 10) oferece um completo inventĂĄrio das ocorrĂȘncias do termo frhvn com o sentido de 'sede dos sentimentos' ou na acepção de 'sentimentos' (quando no plural).
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essa função102, assim como aquelas coisas que, no coração, são chamadas de
aurĂculas103 que em nada contribuem para a audição.
Alguns dizem que temos consciĂȘncia atravĂ©s do coração, e que essa Ă© a
parte que se aflige e se preocupa104 . Mas não é assim. O coração retrai-se
assim como os diafragmas, e seguramente devido Ă s mesmas causas; pois
estendem-se a ele as veias provenientes de todo o corpo, encerrando-as de
modo a sentir se algum esforço ou alguma tensão ocorre no homem. De fato, é
forçoso que o corpo afligido estremeça e se tencione, e o mesmo ocorra
quando muito agradado, porque o coração e os diafragmas sentem-no mais.
102 aijtivh. V. nota no inĂcio deste capĂtulo. 103 A palavra ou^Ï ââ aqui em seu plural w^ta ââ Ă© empregada no CH tanto para indicar as orelhas, como as aurĂculas cardĂacas. Quando se tratava do segundo sentido, as quatro ocorrĂȘncias do termo no CH (Do coração, 8LittrĂ© bis; Da natureza dos ossos, 19LittrĂ©, e esta) indicam-no com alguma referĂȘncia explĂcita ao coração. Galeno parece ainda ter sentido necessidade de precisar o termo atravĂ©s de adjuntos, sem, entretanto propriamente discuti-lo; assim, em CMG V 9,1, 169.25-26, lĂȘ-se: toV dexioVn ou^Ï th~Ï kardivaÏ [a aurĂcula direita do coração]. AtravĂ©s de Galeno e da tradição neo-hipocrĂĄtica, herdamos o traço metafĂłrico (aurĂcula Ă©, de fato, o diminutivo de auris, 'orelha', em latim) , que, nĂŁo obstante, esvaneceu-se imerso no preciosismo latinista e desgastado por seu ingresso no jargĂŁo mĂ©dico. Todavia, nota-se que o termo ainda nĂŁo havia sido assimilado pelo vocabulĂĄrio mĂ©dico, em plena formação Ă Ă©poca da composição do MS. Prova-o o fato de o autor haver sentido a necessidade de usar o mesmo expediente do qual se serviu para isentar-se da nomenclatura relativa Ă doença sagrada: o emprego da forma verbal kalevetai ('Ă© denominada'). 104 EmpĂ©docles Ă© uma referĂȘncia comum no CH. O tratado hipocrĂĄtico MA (20LittrĂ©) cita nomeadamente o filĂłsofo de Agrigento, e o tratado Da natureza do homem mostra-se muito influenciado por ele. Galeno (Hippocratis De natura hominis Commentarium, 15,49) reconhece essa influĂȘncia na teroria dos quatro humores, expressa no tratado Da natureza do homem, e, em função dessa influĂȘncia, escreveu:
HipĂłcratres foi o primeiro, pelo que sabemos, a dizer que os elementos sĂŁo misturados. (...) Nisso difere de EmpĂ©docles. De fato, este afirma que fomos engendrados a partir dos mesmos elementos dos quais nos falou HipĂłcrates, nĂłs assim como tudo o que hĂĄ sobre a terra; engendrados contudo, nĂŁo como um mistura total e recĂproca, mas por juxtaposição parcial e por contato.
A idĂ©ia de que o coração Ă© a sede da consciĂȘncia Ă© muito recorrente na poesia e, de modo particular na tragĂ©dia de Ăsquilo. Na expressĂŁo poĂ©tica, o coração concorre com o fĂgado nessa função. Contudo, parece ter sido EmpĂ©docles o primeiro a tentar justificar fisiologicamente essa atribuição cardĂaca. No fragmento B13 DK de EmpĂ©docles, lĂȘ-se: ai%ma gaVr ajnqrwvpoiÏ perikavrdiovn ejsti novhma [pois o sangue que envolve o coração do homem Ă© o pensamento]. Todavia, o CH nĂŁo Ă© unĂąnime ao negar que o coração seja o cerne do entendimento, pois, no tratado Da doença das virgens ( que Jouanna situa no sĂ©culo IV a.C.), fala-se do enlouquecimento das virgens com a chegada do sangue ao coração.
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Certamente, nenhum dos dois participa da consciĂȘncia, mas Ă© o cĂ©rebro que Ă©
a causa de todas essas coisas105.
Como (o cérebro) é o primeiro dentre aquilo que hå no corpo a sentir a
consciĂȘncia proveniente do ar, assim tambĂ©m, se alguma mudança mais forte
ocorrer no ar devida às estaçÔes, e se o próprio ar tornar-se diferente dele
mesmo, o cérebro é o primeiro a senti-lo. Por isso afirmo que recaem sobre
ele (isso é, sobre o cérebro) as mais agudas enfermidades, maiores, mais
mortais e mais difĂceis de serem reconhecidas pelos mais inexperientes.
18Littré (21Jones). Essa doença dita sagrada provém das mesmas
motivaçÔes que as demais, ou seja, provém de coisas que se aproximam e que
se afastam, como o frio, o sol e os ventos que estão em mutação e nunca se
estabilizam. Mas isso Ă© divino; de sorte que em nada se distinga essa
enfermidade como mais divina do que as outras enfermidades, mas elas todas
são divinas e todas elas são humanas. E cada (doença) tem sua natureza e sua
propriedade em si mesma, e nenhuma delas Ă© incurĂĄvel nem intratĂĄvel106. A
maioria é curåvel através dos mesmos fatores dos quais surge, pois uma coisa
é alimento para outra, e também dano para uma terceira. O médico, portanto,
deve estar seguro107 sobre isso, a fim de que, reconhecendo o momento
105 Mais uma vez a polĂȘmica se instaura contra uma tese de EmpĂ©docles. O Pensador de Agrigento defende que a sensação e o pensamento constiuem uma unidade. Eis o que se lĂȘ na MetafĂsica de AristĂłteles (IV,5, 1009b ââ fr.31 B106 DK): kaiV gaVr jEmpedoklh~Ï metabavllontaÏ thVn e@xin metabavllein fhsiV thVn frovnhsin: "proVÏ pareoVn gaVr mh~tiÏ ejnauvxetai ajnqrwvpoisin" kaiV ejn eJtevroiÏ deV levgei o@ti "o@sson <d j> a!lloi~oi metevfun, tovson a!r sfivsin aijeiV kaiV toV fronei~n ajlloi~a parivstato". [EmpĂ©docles afirma que aqueles que mudam seu estado (fĂsico) mudam tambĂ©m a consciĂȘncia (frovnhsiÏ): "pois o poder de compreensĂŁo aumenta diante do lhe Ă© presente" e, noutro lugar, diz que "tanto (os homens) tornam-se mais diferentes, quanto engendram pensamentos (parivstato fronei~n) sobre coisas diversas"]. 106 oujdeVn a!porovn ejstin oujdeV ajmhvcanon. Os termos dessa expressĂŁo referem-se respectivamente aos limites naturais e humanos da tevcnh, os quais o autor parece, nesse momento negar. 107 O verbo aqui traduzido por 'estar seguro de' Ă© ejpivstamai. Esse verbo Ă© geralmente traduzido por 'saber'; contudo, sua intensidade alĂ©tica, que o opĂ”e a gignwvskw (que preferi traduzir por 'conhecer', consoante Ă semĂąntica indicada pelo contexto e pela etimologia) e a oi^da (traduzido passim por 'saber'), exige uma distinção no texto vernĂĄculo. Em 1LittrĂ© (2 e 4Jones), o verbo
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oportuno de cada coisa, distribua a uma o alimento e a aumente, e elimine o
alimento da outra e a prejudique.
à preciso, então, tanto nesta doença, como em todas as outras, não
aumentar as enfermidades, mas apressar-se para exterminĂĄ-las, ministrando o
que for mais hostil a cada doença, e nunca o que lhe for propĂcio e habitual.
Pois o mal prospera e aumenta devido Ă quilo que lhe Ă© habitual, mas
consome-se e se esvanece devido ao que lhe Ă© hostil.
Quem tem certeza sobre tal mudança nos homens e pode tornar o
homem Ășmido e seco, quente e frio, pela dieta, este poderia curar essa doença,
caso distinguisse as oportunidades oferecidas pelos meios propĂcios, sem
purificaçÔes, sem artifĂcios mĂĄgicos e sem qualquer outra charlatanice deste
tipo.
ejpivstamai Ă© traduzido por 'saber', mas o contexto supre a propriedade que lhe distingue tanto de gignwvskw, quanto de oi^da.
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4. A DOENĂA E O SAGRADO NO SĂCULO V a.C.
Em tempos de peste, ainda ressoa, na lembrança dos atenienses, a voz
do orĂĄculo :
jEn tw/~ kakw/~ oi%a eijkoVÏ ajnemnhvsqhsan kaiV tou~de tou~ e!pouÏ, favskonteÏ oiJ presbuvteroi pavlai a!/desqai "h@xei DwriakoVÏ povlemoÏ kaiV loimoVÏ a@m' aujtw/~". jEgevneto meVn ou^n e!riÏ toi~Ï ajnqrwvpoiÏ mhV loimoVn wjnomavsqai ejn tw/~ e!pei uJpoV tw~n palaiw~n, ajllaV limoVn, ejnivkhse deV ejpiV tou~ parovntoÏ eijkovtwÏ loimoVn eijrh~sqai: oiJ gaVr a!nqrwpoi proVÏ a$ e!pascon thVn mnhvmhn ejpoiou~nto.
Em seu infortĂșnio, lembraram-se, como era natural, do seguinte verso que, segundo os mais velhos entre eles, fora recitado havia muito tempo: âVirĂĄ um dia a guerra dĂłria, e com ela a pesteâ. Houve, entĂŁo, discĂłrdia entre os homens: no verso (e!poÏ), nĂŁo fora dito pelos antigos âpesteâ (loimovÏ), mas âfomeâ (limovÏ); Prevaleceu que, na presente ocorrĂȘncia, se dissesse justamente âpesteâ (loimovÏ); pois os homens constroem a memĂłria de acordo com as suas vicissitudes
(TucĂdides, II, 54).
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Assim TucĂdides se refere Ă antiga fonte de respostas inquestionĂĄveis,
o verso oracular. Restrita ao reduto poĂ©tico e outrora fonte verĂdica, a verdade
mesma de Tirésias não parece mais ter relação inexoråvel com o presente
cruel da Atenas chagada pela epidemia e pela Guerra, ao menos aos olhos de
TucĂdides. Este trecho Ă© uma valiosa lição acerca do prestĂgio do verso
oracular nos tempos das tragédias, embora se possa ponderar que tal
informação nĂŁo reserva grandes soluçÔes para o estudo da proferição apolĂnea
na cultura clåssica. Entre outros fatores, a complexidade da formação da
população ateniense seria suficiente para inviabilizar um estudo sintético
sobre fidelidade popular Ă s prĂĄticas divinatĂłrias e premonitĂłrias. Entretanto,
nĂŁo Ă© possĂvel negligenciar duas vozes coetĂąneas que se sublevaram contra o
jugo implacĂĄvel da moi~ra, as vozes de dois autores que integram o alicerce
do que vem sendo chamado de revolução intelectual do lógos108: Hipócrates e
TucĂdides.
Jacqueline de Romilly (1995:19-20) nota que, nas tragĂ©dias de Ăsquilo,
os acontecimentos podiam ser previstos, sem que se soubesse quando
ocorreriam109; mas nas de SĂłfocles, malgrado os numerosos orĂĄculos, nĂŁo se
prediz a natureza do fato, mas apenas o momento em que algo deverĂĄ
acontecer. Ă entre Ăsquilo e SĂłfocles110 que nasce o orĂĄculo de TucĂdides.
Certamente, sempre hĂĄ algum risco quando se quer subtrair dos
tragediĂłgrafos o que Ă© caracterĂstico de seus gĂȘnios. Mesmo no estudo de
literaturas contemporĂąneas, nĂŁo Ă© fĂĄcil reconhecer a fronteira entre o que
tange somente à criação literåria e àquilo que nela serviria como fonte para o
estudo do seu contexto, e certamente ainda mais difĂcil serĂĄ depreender tais 108 Quanto a este ponto, cabe dizer que estou de acordo com a idĂ©ia que vem sendo desenvolvida desde Gernet acerca da secularização do pensamento que se opera a partir do sĂ©culo VII tendo por motor o tipo de prĂĄtica polĂtica e jurĂdica na organização da pĂłlis. 109 Romilly (loc.cit.) lembra uma exceção: Prometeu, 774. No entanto, hĂĄ que se considerar o problema da autenticidade da peça e sua distĂąncia temporal. 110 ConvĂ©m lembrar que Jean Irigoin (Notice. In: SOPHOCLE, 1994, p.660), levando em consideração as minĂșcias da descrição da peste (hĂĄ uma referĂȘncia, a tĂtulo de exemplo, aos versos 180-1) no Ădipo Rei, argumenta que a tragĂ©dia nĂŁo deve ter sido apresentada antes de 430. O Helenista considera que uma referĂȘncia a um desastre desta monta causaria repugnĂąncia caso nĂŁo se
72
limites no texto antigo. Por outro lado, conquanto o texto literĂĄrio (e muito
particularmente o poĂ©tico) nĂŁo pode â nem pretende â oferecer-nos garantias
historiogrĂĄficas, nĂŁo se pode negligenciĂĄ-lo como um dado histĂłrico, como
algo que, gerado dentro de um contexto pĂșblico â e poderĂamos dizer, com
muito mais propriedade, polĂtico â, tem algo a depor sobre este passado do
qual indiretamente ainda partilhamos.
Ecoam, seguramente, nas mentes dos atenienses do século de Péricles
as aladas palavras de Calcas e as verdades do Cego tebano, mas a tragédia foi
abandonando o apoio desses pilares antes tão sólidos. à frente da teorização e
da consolidação do gérmen de uma nova cosmovisão, erguem-se os expoentes
de uma nova era do mundo helĂȘnico.
Em todo o Corpus hippocraticum notam-se nĂŁo poucas afinidades com
os novos rumos do pensamento grego, mas, no tratado PeriV iJerh~Ï
nouvsou111, apresenta-se nitidamente o novo vigor do lovgoÏ em seus espaços
conquistados nos domĂnios do muvqoÏ112. O tratado traz, jĂĄ em seu inĂcio, o
axioma que vai ser defendido e demonstrado:
PeriV meVn th~Ï iJerh~Ï nouvsou kaleomevnhÏ w%dâ e!cei: oujdevn tiv moi dokevei tw~n a!llwn qeiotevrh ei^nai nouvswn oujdeV iJerwtevrh, ajllaV fuvsin meVn e!cei h$n kaiV taV loipaV noushvmata, o@qen givnetai. Eis aqui o que hĂĄ acerca da doença dita sagrada: nĂŁo me parece ser de forma alguma mais divina nem mais sagrada do que as outras, mas tem a mesma natureza que as outras enfermidades e a mesma origem.
entrepusesse uma certa distĂąncia temporal de seu referente. Assim, a tragĂ©dia deve ter sido apresentada por volta de 420 a .C. 111 Os tratados com preĂąmbulos polĂȘmicos sĂŁo mais suscetĂveis de comportar uma perquirição que tenha essa dicotomia por premissa, no entanto, o redimensionamento do sagrado estĂĄ presente em praticamente todos os tratados hipocrĂĄticos, como ver-se-ĂĄ adiante. 112 A expressĂŁo Ă© usada por muitos helenistas, mas sublinho seu uso por GarcĂa Gual, por se referir precisamente ao tratado em questĂŁo. A oposição entre lovgoÏ e mu~qoÏ nĂŁo Ă©, contudo, moderna. PlatĂŁo jĂĄ a fazia; contudo, ressalvo que Veyne (1987) redimensiona essa construção teĂłrica, atribuindo-lhe a nuance que tendĂȘncias historiogrĂĄficas prĂ©-annales lhe haviam negado.
73
Durante muito tempo, helenistas â talvez influenciados pela ainda nĂŁo
superada obra de Ămile LittrĂ© â detiveram-se no fato de a doença sagrada nĂŁo
ter nada de sagrado a mais do que as outras doenças. Mario Vegetti (1976),
em sua tradução parcial e antológica do Corpus hippocraticum, traz um novo
enfoque: o que se diz no preùmbulo do tratado é que a doença sagrada é tão
sagrada quanto qualquer outra, mas isso nĂŁo afasta em absoluto o aspecto
divino (tomo este termo ao modo dos pré-socråticos, de maneira anÎnima e
âimpessoalâ) das molĂ©stias. A ordenação mesma do mundo ainda estava longe
de se divorciar da idéia de divindade, e é precisamente esta ordem que
estabelece, por exemplo, uma nova relação entre causa e efeito, e permite a
atuação da ijhtrikhV tevcnh e da tevcnh em geral. O que o tratado condena
veementemente é a relação direta entre a ação de um deus e a manifestação
mĂłrbida. Para o tratadista, os que promoviam esses Ăntimos vĂnculos eram
aqueles a quem ele denominava mavgoi, kaqavrtai, ajguvrtai e ajlazovneÏ.
Aos mavgoi, kaqavrtai, ajguvrtai e ajlazovneÏ (que traduzi
respectivamente por magos, purificadores, charlatĂŁes, impostores) o tratado
Da doença sagrada compara aqueles que, não se sabe quando, sacralizaram
essa doença, os ajfierwvsanteÏ tou~to toV novshma. A comparação se insere
na retórica hipocråtica; trata-se de uma estratégia na qual a idéia combatida é
atingida através de seus criadores, que, por sua vez, são irmanados aos
adeptos, e esses Ășltimos, e apenas eles, sĂŁo diretamente vituperiados. A força
dessa comparação reside na enumeração desses quatro elementos que parecem
se opor aos pares. De um lado, os mavgoi e os kaqavrtai, e de outro, os
ajguvrtai e os ajlazovneÏ, crença e descrença paralelamente dispostas a fim de
que esta anule aquela.
à a palavra mavgoi que encontramos em Heródoto (VII,37), na acepção
de âintĂ©rprete de sonhosâ, âmagoâ; porĂ©m, o Ădipo de SĂłfocles, em seu furioso
74
ataque contra Tirésias que acabara de proferir a verdade, em si mesma,
princĂpio, meio e fim da peça, diz-lhe:
eij th~sdev gâ ajrch~Ï ou@necâ, h$n ejmoiV povliÏ dwrhtovn, oujk aijthtovn, eijseceivrisen, tauvthÏ Krevwn oJ pistovÏ, ouJx ajrch~Ï fivloÏ, lavqra/ mâ uJpelqwVn ejkbalei~n iJmeivretai, uJfeiVÏ mavgon toiovnde mhcanorravfon, dovlion ajguvrthn, o@stiÏ ejn toi~Ï kevrdesin movnon devdorke, thVn tevcnhn dâ e!fu tuflovÏ. jEpeiv, fevrâ eijpev, pou~ suV mavntiÏ ei^ safhvÏ; se, por causa de tal poder que a mim a cidade, como um dom, graciosamente, atribuiu, Creonte leal, desde sempre amigo, secreta e sorrateiramente, deseja expulsar-me, tendo subornado este mago (mavgoÏ) tecelĂŁo de artifĂcios, doloso charlatĂŁo (ajrguvthÏ), que aos lucros somente abre os olhos, mas cego nasceu Ă tĂ©khne. EntĂŁo, diga, onde Ă© que Ă©s um adivinho verĂdico? (Ădipo rei, 383-40)
Quando Ădipo Rei foi representado, c. 420 a.C., HipĂłcrates deveria
contar talvez quatro dĂ©cadas etĂĄrias, e as idĂ©ias da Escola de CĂłs â muitas
delas anteriores a HipĂłcrates â jĂĄ circulavam e integravam o grande contexto
de secularização da pólis. Detienne (1988:58-68) jå observou que, por volta
do sĂ©culo VI a.C., a GrĂ©cia vĂȘ nascer uma tendĂȘncia Ă secularização,
radicalmente inovadora por seu carĂĄter pragmĂĄtico, um movimento de dentro
para fora, um voltar-se para a pĂłlis. Tal tendĂȘncia ganhou muito vigor com a
peste ateniense, um mal da pólis cuja solução deveria dela partir, se se
considerar que à atenção à pólis somou-se um outro movimento, este de fora
para dentro, que dava à religiosidade um caråter esotérico, preocupado, no
dizer de Detienne, com a salvação individual. O processo de secularização foi
coroado pelo lapidar testemunho que TucĂdides oferece acerca do momento da
75
peste: qew~n deV fovboÏ h# ajnqrwvpwn novmoÏ oujdeiVÏ ajpei~rge, toV meVn
krivnonteÏ ejn oJmoivw/ kaiV sevbein kaiV mhV, ejk tou~ pavntaÏ oJra~n ejn i!sw/
ajpollumevnouÏ [Nem o temor aos deuses nem nenhuma lei dos homens os
controlava, pois julgavam ser o mesmo venerar e nĂŁo venerar, considerando
que viam todos perecerem de forma idĂȘntica]113.
NĂŁo pretendo ver no texto de SĂłfocles qualquer influĂȘncia da Escola
MĂ©dica de CĂłs, mas apenas noto-lhe a afinidade entre o uso das palavras
mavgoÏ e ajguvrthÏ, Ăndice de uma comunhĂŁo de idĂ©ias que representam, em
seu conjunto, um confinamento da interferĂȘncia direta e inegĂĄvel do sagrado
aos limites estritos do iJerovn. Cabe ressalvar que, na tragédia, o oråculo diz a
verdade â foneva sev fhmi tajndroVÏ ou% zhtei~Ï kurei~n [afirmo que Ă©s o
assassino do homem que buscas encontrar] (v.362) â, mesmo vĂtima das
ferinas palavras do soberano furioso. Porém, se o cumprimento do oråculo
fosse absolutamente inevitĂĄvel, e se Ă s palavras de Ădipo nĂŁo respondesse o
descrédito da instituição oracular, o que sobraria do enredo não seria
suficiente para sustentar a peça.
Tornam-se claras as afinidades entre o pensamento hipocrĂĄtico e as
idĂ©ias que o cercam. TirĂ©sias insultado se irmana, na RepĂșblica de PlatĂŁo, ao
educador sofista, o deinoVÏ mavgoÏ; ele Ă© o criador de tiranos (turannopoiovÏ)
e logra controlar o jovem dolosamente para despertar-lhe os desejos que
subjazem no interior do homem, mas que nĂŁo convĂȘm serem acolhidos pela
esfera pĂșblica, e que provĂȘm de almas tomadas por uma loucura imposta:
o@tan d j ejlpivswsin oiJ deinoiV mavgoi te kaiV turannopoioiV ou^toi mhV a!llwÏ toVn nevon kaqevxein, e!rwtav tina aujtw/~ mhcanwmevnouÏ ejmpoih~sai prostavthn tw~n ajrgw~n kaiV taV e@toima dianemomevnwn ejpiqumiw~n, uJpovpteron kaiV
113 TucĂdides, II,53,4. Observe-se como o historiador denuncia, qual o autor do MS, a relação direta entre homens e deuses. O sevbaÏ nĂŁo interessava mais ao ateniense ao qual se refere TucĂdides, pois nĂŁo o salvava da morbidez pestilenta.
76
mevgan khfh~nav tina: h# tiv a!llo oi!ei ei^nai toVn tw~n toiouvtwn e!rwta;
quando esses terrĂveis magos e engendradores de tiranos esperam dominar os jovens exatamente assim: eles produzem, artificiosamente, um amor que lidera os desejos dadivosos e os do Ăłcio, um grande zangĂŁo alado. Ou crĂȘs que o amor entre tais pessoas Ă© outro?
(Rep.572e-573a)
Ao contrĂĄrio do que se pode crer pelas duras palavras do autor do
tratado, o ataque ao termo iJerhV nou~soÏ nĂŁo tem sua origem na vontade de
retificar uma expressão popular em oposição à qual haveria uma opção,
digamos, mais distante da esfera do mythos. Mas nĂŁo hĂĄ tal contrapartida
"técnica" para o termo doença sagrada, embora houvesse um farto
vocabulårio médico114.
A expressĂŁo iJerhV nou~soÏ tem seu registro mais remoto em HerĂĄclito
de Ăfeso. Em uma breve referĂȘncia, DiĂłgenes LaĂ©rcio indica que HerĂĄclito
thVn t j oi@hsin iJeraVn novson e!lege [denominava a presunção uma doença
sagrada] (IX,7). Assim como boa parte da obra sobrevivente do célebre
"obscuro", esta referĂȘncia de DiĂłgenes LaĂ©rcio tambĂ©m nĂŁo Ă© muito
esclarecedora. Ela nada transparece acerca do valor que o Efésio conferia ao
termo. A julgar pela sintaxe de Diógenes Laércio, o termo em questão era
oi@hsiÏ, o que denota uma estabilidade semĂąntica do termo iJeraV novsoÏ, que
predicaria o primeiro.
Acerca desse particular, Jacques Jouanna115 faz oportuna menção ao
tratado Das doenças das mulheres II116, onde hĂĄ um passo onde se lĂȘ sobre a
114 O vocabulårio técnico do Corpus hippocraticum é, na verdade, um conjunto de restriçÔes das amplitudes semùnticas dos termos relacionados ao corpo humano que se nota na poesia. A este tema dediquei minha Dissertação de Mestrado em Letras Clåssicas (1994). Hå também a obra de Françoise Skoda (1988). 115 JOUANNA. Hippocrate. Paris, Fayard, 1992. pp.259 sq.
77
sintomatologia histĂ©rica: hJ kardivh pavlletai, kaiV bruvcei, kaiV iJdrwVÏ
pouluVÏ, kaiV tâa!lla o@sa oiJ uJpoV iJerh~Ï nouvsou ejpivlhptoi pavscein (o
coração palpita, ela range os dentes, abundante suor e outros acometimentos
que sofrem os que sĂŁo atacados pela doença sagrada). O helenista francĂȘs
mostra que o termo doença sagrada integrava tão naturalmente o jargão
médico, que o autor de Das doenças das mulheres II não hesita em
denominar assim essa doença para poder comparar seus sintomas aos da
histeria.
Nos seis tratados em que é mencionada a doença sagrada, ela não é
referida, senĂŁo excepcionalmente, como iJerhV nou~soÏ, sendo mais
amplamente citada como kaleomevnh iJerhV nou~soÏ. Tal denominação apenas
serve aos tratadistas de Cós à guisa de outra mais adequada ao seu método. A
esse propĂłsito, nota-se, no tratado Da doença sagrada, o uso contĂnuo de
pronomes dĂȘiticos, uma evidente refutação do inadequado nome. Ă clara a
intenção de afastamento de uma nomenclatura que traz consigo a exclusão do
prĂłprio mĂ©dico, porquanto jĂĄ nĂŁo trafegava mais o ijatrovÏ pelas vias do
iJerovn.
Littré e Jouanna117, o primeiro no século passado e o segundo
contemporaneamente, estudaram Ă exaustĂŁo as divergĂȘncias entre as Escolas
de Cnido e de CĂłs, e ambos tiveram como obstĂĄculos o silĂȘncio dos prĂłprios
autores e a escassez de material cnĂdico â ainda que se conte com a
prestimosa colaboração dos textos, tratados e comentårios de Galeno. Parece
ainda estar distante o momento em que se poderĂĄ estar certo sobre a
possibilidade de a doença sagrada ser um ponto de discordùncia entre as duas
116 ConvĂ©m observar que o tratado Das doenças das mulheres II pertence Ă Escola MĂ©dica de Cnido, e nĂŁo Ă de CĂłs, como o Da doença sagrada. 117 AlĂ©m de outros poucos que nĂŁo obscuros mereceriam, mas nĂŁo necessitam ser mencionados. VĂŁo aĂ citados os que considero serem os maiores contribuidores para o estabelecimento definitivo do Corpus hippocraticum. Contudo, nĂŁo seria razoĂĄvel deixar de mencionar Robert Joly, M.D.Grmek e Jean Irigoin. Jouanna escreveu ainda uma sĂłlida obra acerca da Escola de Cnido, Hippocrate et lâĂ©cole de Cnide: pour une archĂ©ologie de lâĂ©cole de Cnide, onde os tratados dessa escola sĂŁo comparados entre si, a fim de se detectar um carĂĄter daquele centro de irradiação de pensamento sobre a medicina e de se observar um percurso histĂłrico das idĂ©ias que o caracterizavam.
78
Escolas e o intróito negativo do tratado Da doença sagrada ter sido dirigido
aos oponentes da Ilha vizinha. Naturalmente, não eram magos os médicos de
Cnido, e nĂŁo se dirigiam a eles as contundentes palavras do tratado; contudo,
nĂŁo hĂĄ como deixar de considerar possĂvel que a correção terminolĂłgica seja
dirigida aos médicos de Cnido118.
O carĂĄter combativo do tratado se mostra de modo expressivo na
conclusĂŁo do texto, na qual o autor retoma a ofensiva contra aqueles que
consideram a iJerhV nou~soÏ de fato sagrada. Tal trecho vale ser transcrito por
sua força argumentativa:
@OstiÏ deV ejpivstatai ejn ajnqrwvpoisi thVn toiauvthn metabolhVn kaiV duvnatai uJgroVn kaiV xhroVn poievein kaiV qermoVn kaiV yucroVn uJpoV diaivthÏ toVn a!nqrwpon, ou%toÏ kaiV tauvthn thVn nou~son ijw/ ~to a#n, eij touVÏ kairouVÏ diaginwvskoi tw~n xunferovntwn, a!neu kaqarmw~n kaiV mageumavtwn kaiV pavshÏ a!llhÏ banausivhÏ toiauvthÏ.
Quem tem certeza sobre tal mudança nos homens e pode tornar o homem Ășmido e seco, quente e frio, pela dieta, este poderia curar essa doença, caso distinguisse as oportunidades oferecidas pelos meios propĂcios, sem purificaçÔes, sem artifĂcios mĂĄgicos e sem qualquer outra charlatanice deste tipo.
O autor do tratado parece estar convencido de que esta sua conclusĂŁo
seria a Ășltima palavra a respeito do assunto â de resto, esta Ă© uma
caracterĂstica dos tratados do Corpus hippocraticum. O tratado se encerra com
a expressĂŁo: banausivh toiauvth, âtal charlataniceâ. As banausivai da
Coleção hipocråtica não são somente os recursos mågicos, mas sobretudo as
118 Sobre este tema, v. quarto capĂtulo desta tese.
79
especulaçÔes nĂŁo empĂricas e suas conclusĂ”es axiomĂĄticas. Os monistas sĂŁo
combatidos com o arsenal usado contra os magos119, porque nĂŁo sĂŁo senĂŁo a
mesma coisa aos olhos do novo médico.
Banausivai: eis a que uma certa mentalidade polĂade â nĂŁo totalitĂĄria,
como bem mostra Jouanna (Op.cit., passim) â do SĂ©culo de PĂ©ricles tentou
reduzir um longo trajeto especulativo acerca da natureza. O pensamento
mĂĄgico desprovido de pragmaticidade vai sendo banido da vida intelectual da
GrĂ©cia, tornando-se âprĂ©â: prĂ©-socrĂĄtico, prĂ©-lĂłgico, ... Sobre isso, muito se
pode dizer a partir da vitĂłria ateniense contra os Persas e da peste, o jĂșbilo e a
desgraça unindo definitivamente a esfera privada Ă vida pĂșblica,
desindividualizando o individual. Mesmo a peste da IlĂada, ou a peste de
Tebas, sĂŁo dramas adscritos Ă s fronteiras pessoais. Agamemnon e Ădipo
cedem lugar a algo novo, que nĂŁo Ă© o dh~moÏ de SĂłlon â o mais remoto
inspirador de âprĂ©sâ â, e tampouco o dw~ma do mito.
Assim, o autor de Da doença sagrada é capaz de reconhecer os acertos
da ação de um mĂ©dico-mago, mas nunca de aprovar-lhe o raciocĂnio. No
primeiro capĂtulo desse tratado, seu autor descreve vĂĄrios procedimentos
corretos desses âcharlatĂŁesâ, mas adverte que esses homens responsabilizam
os deuses por tudo, doença e cura, em um só tempo ocultando sua ignorùncia
e isentando-se de responsabilidades: âreservam apologias para sua segurançaâ
(1LittrĂ©[2Jones]) â reclama o tratadista, sem parecer estar ciente de que
acabara de trocar a crença pelo uso da crença, em nome de outra crença mais
elaborada ou mais de acordo com a nova ordem.
Em um curioso relato do tratado Ares, ĂĄguas e lugares, o autor conta a
histĂłria de um povo, os anareus, cujos homens sĂŁo freqĂŒentemente acometidos
por uma doença que os torna incapazes de ter relaçÔes com mulheres; depois
de algumas tentativas frustradas, os homens concluem que ofenderam a deusa
119 Ă o que se pode ler, por exemplo, no Da natureza do homem e no Da medicina antiga.
80
responsĂĄvel por tal atividade. Para expiar essa culpa, transvestem-se de
mulheres e passam a viver como elas.
O médico tratadista, que naturalmente condena tais interpretação e
terapia (AAL, 22Littré), oferece sua própria conclusão sobre a moléstia, e
sentencia: e@kaston [pavqoÏ] deV e!cei fuvsin tw~n toiouvtwn kaiV oujdeVn
a!neu fuvsioÏ givnetai [cada afecção tem uma causa natural120, e, sem causa
natural, nenhuma afecção ocorre]. Todavia, Heródoto (I,105, com uma
referĂȘncia em IV,67) conta-nos a mesma histĂłria sobre o mesmo povo e a
mesma doença; mas acrescenta dados novos: a não por acaso anÎnima deusa
do autor hipocrĂĄtico Ă© nomeada pelo Historiador; trata-se de Afrodite, e o
crime cometido pelos pobres anareus (em HerĂłdoto, enereus), ficamos
sabendo, fora pilhar o templo da deusa na Palestina. HerĂłdoto apresenta sua
explicação religiosa e não parece pensar em questionå-la. Contudo, o
cumprimento do desĂgnio de Afrodite transformou-se, pelas mĂŁos do mĂ©dico-
tratadista, na conseqĂŒĂȘncia do excesso de equitação dos problemas
acarretados por ela121. Os anareus, um povo quase deserdado pela HistĂłria,
nela permaneceram como um marco na fronteira das mentalidades, dividindo
com uma nitidez rara mito e lĂłgos.
HerĂłdoto Ă© a segunda fonte mais remota do termo iJerhVn nou~soÏ (iJrhv,
conforme o jÎnico do historiador). Contudo, malgrado sua inegåvel ligação
com o e!poÏ, HerĂłdoto, ao referir-se a essa doença, mune-se das mesmas
expressÔes perifråsticas que a medicina hipocråtica empregarå adiante. Ao
referir-se, no livro III aos atos de fĂșria com que Cambises se voltou contra
seus parentes prĂłximos, escreve o historiador:
Tau~ta meVn ejÏ touVÏ oijkhiotavtouÏ oJ KambuvshÏ ejxemavnh, ei!te dhV diaV toVn ^Apin ei!te kaiV a!llwÏ, oi%a pollaV e!wqe ajnqrwvpouÏ kakaV katalambavnein.
120 A palavra fuvsiÏ foi aqui compreendida como âcausa naturalâ. 121 Todas as conseqĂŒĂȘncias do excesso de equitação sĂŁo mencionadas nesse capĂtulo do tratado.
81
KaiV gaVr tina [kaiV] ejk geneth~Ï nou~son megavlhn levgetai e!cein oJ KambuvshÏ, thVn iJrhVn ojnomavzousiv tineÏ: ou! nuvn toi ajeikeVÏ oujdeVn h^n tou~ swvmatoÏ nou~son megavlhn nosevontoÏ mhdeV taVÏ frevnaÏ uJgiaivnein. Estes sĂŁo os atos de fĂșria que Cambises investiu contra seus parentes prĂłximos, quer por causa de Apis, quer por outro motivo, da mesma maneira que males abundantes costumam sobrevir aos homens. Pois diz-se que Cambises tinha, de nascença, uma grave doença, que alguns chamam de sagrada. NĂŁo seria em nada inverossĂmil que, sofrendo seu corpo uma grave doença, seu espĂrito nĂŁo tivesse saĂșde.
(Hdt, III,33)
Temkin (1994:15-6) nota que nada assegura que "as doenças sagradas"
de HerĂĄclito, de HerĂłdoto e da medicina sejam a mesma. Temkin empenha-se
em uma histĂłria da epilepsia, e, por isso mesmo, o diagnĂłstico interessa-lhe
particularmente. Mas, independentemente da identidade nosolĂłgica dos males
referidos, o fato de HerĂłdoto subordinar aqui as perturbaçÔes do espĂrito, das
frevneÏ122, Ă s somĂĄticas denota o terreno propĂcio para a propagação das
idéias do tratado Da doença sagrada. A fórmula evasiva "thVn iJrhVn
ojnomavzousiv tineÏ", tĂŁo prĂłxima Ă "iJerhVn nou~soÏ kaleomevnh" do tratado,
revela a distĂąncia em que o Historiador se colocava daqueles (tineÏ)
vituperiados pelo médico tratadista, ainda que Heródoto não se volte contra
eles. Ă possĂvel inferir-se daĂ mais do que o notĂłrio carĂĄter testemunhal da
obra de HerĂłdoto, para quem, no dizer de Veyne (1987:49-51), mais
importava a oposição entre ignorùncia e informação do que entre erro e
verdade.
Esse trecho de HerĂłdoto Ă© um depoimento significativo para o estudo
acerca das idéias que circulavam pelo universo jÎnico no que tange à relação
122 Apesar de ser esse termo o mesmo usado na literatura hipocrĂĄtica para 'diafragma', HerĂłdoto, consoante a tradição literĂĄria, assim designa o 'espĂrito'. Sobre esse tema, v. DUMORTIER, 1975, pp.11-2.
82
entre as frevneÏ e a doença. O mesmo autor que parece roborar a tese da
epĂcrise divina coloca-se agora favorĂĄvel Ă tese da causa somĂĄtica. O adjetivo
ajeikeVÏ denuncia a familiaridade e o grau de aceitação dessa idĂ©ia naquele
contexto cultural. Mas esse suspiro do lĂłgos na historiografia de HerĂłdoto
nĂŁo Ă© suficiente para que sua teologia seja considerada mais prĂłxima da de
PlatĂŁo do que da de Homero. Os deuses continuam interferindo diretamente na
vida humana, mesmo em um passado nĂŁo muito remoto.
à inevitåvel, no que diz respeito à teologia hipocråtica, a idéia de que
ela se aproxima mais, em certos aspectos, da concepção teológica platÎnico-
socråtica, traduzido mais por uma idéia (especialmente ligada ao mevtron,
consoante Ă s expectativas da pĂłlis), do que por uma personalidade irascĂvel
ou simpatizante, contråria ou favoråvel. O tratado Da doença sagrada mostra
como a prĂĄtica dos mavgoi, dos kaqavrtai, dos ajguvrtai e dos ajlazovneÏ sĂŁo
incompatĂveis com a existĂȘncia dos deuses:
Eij gaVr selhvnhn te kaqairevein kaiV h@lion ajfanivzein kaiV ceimw~nav te kaiV eujdivhn poievein kaiV o!mbrouÏ kaiV aujcmouVÏ kaiV qavlassan a!foron kaiV kaiV gh~n kaiV ta!lla taV toioutovtropa pavnta uJpodevcontai ejpivstastai, ei!te kaiV ejk teletevwn ei!te kaiV ejx a!llhÏ tinoVÏ gnwvmhÏ h# melevthÏ fasiVÏ tau~ta oi^ovn t jei^nai genevsqai oiJ tau~t j ejpithdeuvonteÏ, dussebevein e!moige dokevousi kaiV qeouVÏ ou!te ei%nai nomivzein ou!te ejovntaÏ ijscuvein oujdeV ou!te ei!rgesqai a@n oujdenoVÏ tw~n ejscavtwn, w%n poievonteÏ pw~Ï ouj deinoiV aujtoi~sivn eijsin; Pois se prometem saber baixar a lua; ocultar o sol, e produzir o inverno e o bom tempo, a tempestade e a seca, e tornar o mar estĂ©ril e tambĂ©m a terra, e fazer tantas outras coisas semelhantes, os que praticam isso, seja atravĂ©s de ritos, seja atravĂ©s de qualquer outra tĂ©cnica ou prĂĄtica, dizem que sĂŁo capazes de transformar isso tudo; entĂŁo, a mim, eles parecem-me ser Ămpios, nĂŁo acreditar existirem
83
deuses, nem, se eles existissem, que eles tivessem algum poder, nem que poderiam impedir nenhum dos atos extremos. E, praticando tais atos, como nĂŁo seriam terrĂveis aos prĂłprios deuses?
(4Jones)
Depois da mortalidade, que leva o termo qeovÏ a encontrar
equivalente em ajqavnatoÏ, o problema que mais detinha a atenção dos gregos
por toda a AntigĂŒidade era o do poder. O poder dos deuses Ă© vĂĄrias vezes
confrontado com a impotĂȘncia humana na literatura grega. Esse Ă© um topos da
poesia grega que se revigora na tragédia, onde cantos corais celebram a
impotĂȘncia do homem diante da força do amor divinizado123.
Maior do que a imortalidade, o poder no tratado Da doença sagrada,
em uma teodicéia que interessaria mais a Comte do que a Littré, expÔe o
argumento de sua acusação aos mavgoi. A palavra de acusação, a mesma que
condenaria SĂłcrates, a julgar pelo EutĂfron124, Ă© a ajsevbeia. Nesse diĂĄlogo
encontra-se, em meio a uma investigação filosófica que jå aponta o autor de
uma RepĂșblica, a mais singular glosa deste conceito:
Eujquvfrwn: !Esti toivnun toV deV meVn toi~Ï qeoi~Ï prosfileVÏ o@sion125, toV deV mhV prosfileVÏ ajnovsion. SwkravthÏ: PagkavlwÏ, w% Eujquvfron, kaiV wJÏ ejgwV ejzhvtoun ajpokrivnasqaiv se, ou@tw nu~n ajpekrivnw.126
123 HipĂłlito, 525-64, e 1271; AntĂgona, 780-805 124 5c: ejmeV (....) ajsebeivaÏ ejgravyato. Et seq. 125 A equivalĂȘncia entre o@sioÏ e eujsebhvÏ, assim como entre seus antĂŽnimos, nesse texto de PlatĂŁo, pode ser atestada pela alternĂąncia aparentemente livre entre os termos em 5c e d. No MS, em 1LittrĂ© (3Jones), hĂĄ uma indicação dessa correspondĂȘncia parcial: toV eujsebeVÏ kaiV qei~on aujtw~n ajsebeVÏ kaiV ajnovsiovn ejstin. Portanto, para o autor do tratado, ajnovsioÏ parece ser o oposto de qei~oÏ, como eujsebhvÏ o Ă© de ajsebhvÏ, mas a antĂtese nĂŁo lhe Ă© absolutamente satisfatĂłria, o que comprovam os usos sucessivos de perĂfrases na construção do antĂŽnimo de qei~oÏ (p.ex.,ouj qei~oÏ, em vĂĄrias passagens de 1LittrĂ©). 126 Eut. 7a
84
EutĂfron: Certamente o que Ă© pio [o@sion] Ă© o que Ă© agradĂĄvel aos deuses [qeoi~Ï prosfilevÏ], e o que Ă© Ămpio Ă© o que nĂŁo lhes Ă© agradĂĄvel. SĂłcrates: Perfeitamente, EutĂfron, e eis o que eu pedi que respondesses.
ProsfilhvÏ Ă© um adjetivo que depĂ”e tanto sobre a oJsiva, quanto sobre a
eujsevbeia. Essa glosa platĂŽnica parece tambĂ©m ser Ăștil para revelar algo sobre
o conceito de eujsevbeia no tratado Da doença sagrada. As atividades dos
mavgoi opĂ”em-se ao que for prosfilevÏ aos deuses. A hostilidade aos deuses â
pela qual Atenas condenou Sócrates, e o médico-tratadista anatematizou os
mavgoi â tinha no poder seu maior reflexo:
Eij gaVr a!nqrwpoÏ mageuvwn te kaiV quvwn selhvnhn te kaqairhvsei kaiV h@lion ajfaniei~ kaiV eujdivhn poihvsei, oujk a#n e!gwgev ti qei~on nomivsaimi touvtwn ei^nai, ajll j ajnqrwvpinon, eij dhV tou~ qeivou hJ duvnamiÏ uJpoV ajnqrwvpou gnwvmhÏ krateevtai kaiV dedouvlwtai. Pois nem se um homem, utilizando a magia e sacrifĂcios, fizesse a lua descer, eclipsasse o sol e produzisse o inverno e o bom tempo, eu nĂŁo acreditaria que algum desses atos fosse divino, senĂŁo (somente) humano, se Ă© que o poder do divino estĂĄ dominado e servilizado pela tĂ©cnica do homem. (MS,4Jones)
O substantivo duvnamiÏ e os verbos doulovein e kratevein tĂȘm seus
significados ligados à idéia de poder, e, nessa assertiva do tratado, todos
convergem para a antinomia entre o divino e o humano. A glosa platĂŽnica de
oJsiva como algo que agrada aos deuses volta-se para a divkh, consoante os fins
da argumentação do Sócrates condenado. A ajsevbeia do médico-tratadista,
partindo da idéia de poder, aproxima-se da concepção platÎnica, e a ela se
85
associa. O uso, no tratado, do termo sublinha, contudo, o aspecto pragmĂĄtico
(no sentido mais etimológico desse termo) de seu significado, em oposição a
o@sioÏ (e o seu antĂŽnimo ajnovsioÏ), que se refere Ă qualidade inerente.
O problema, contudo, para o autor do tratado Da doença sagrada
consistia na baunasiva, palavra que, como jĂĄ foi dito, muito
significativamente encerra o tratado. A pretensĂŁo do savoir-pouvoir127 torna-
se um obstĂĄculo ao desempenho social da ijatrikhV tevcnh. Por isso, no
tratado, a qeosevbeia e a presunção do muito saber são o alvo principal da
invectiva:
JEmoiV deV dokevousin oiJ prw~toi tou~to toV novshma ajfierwvsanteÏ toiou~toi ei^nai a!nqrwpoi oi%oi kaiV nu~n eijsi mavgoi te kaiV kaqavrtai kaiV ajguvrtai kaiV ajlazovneÏ, oJkovsoi dhV prospoievontai sfovdra qeosebeveÏ ei!nai kaiV plevon ti eijdevnai.
Os primeiros homens a sacralizarem esta enfermidade parecem-me ser os mesmos que agora sĂŁo os magos, purificadores, charlatĂŁes e impostores, todos os que se mostram muito pios [sfovdra qeosebeveÏ] e plenos de saber. (MS, 2Jones)
O adjetivo qeosebeveÏ, com uma semĂąntica ainda mais restritiva do que
os outros cognatos de sevbaÏ, nĂŁo permite vacilaçÔes interpretativas: a clara
equação que o tratadista estabelece dĂĄ-se entre qeosebeveÏ e o conceito
eijdovteÏ plevon ti, aqueles que ostentam respeitos reverenciais ao que for
divino e que se mostram plenos de saber; o autor do tratado chama-os
ajguvrtai e ajlazovneÏ. O que suscita tal vitupĂ©rio nĂŁo Ă© simplesmente a 127 Este conceito, firmado por Michel Foucault, estabeleceu-se nas literaturas crĂticas, divorciando-se assim de muitas concepçÔes que o acompanhavam em seu nascedouro. A percepção da uniĂŁo entre esses dois conceitos ofereceu a todas as abordagens epistemolĂłgicas uma nova perspectiva. A
86
suposta hipocrisia, mas sobretudo a contradição entre a presunção da posse do
poder divino e a qeosevbeia.
O poder do ijatrovÏ Ă© exclusivamente fundado sobre a tevcnh. NĂŁo
faltam no Corpus hippocraticum exemplos de comparação entre a doença e o
combate bĂ©lico, que seguem o raciocĂnio que estabelece uma analogia entre o
organismo humano e a cidade. Nessa metĂĄfora do combate, o poder do ijatrovÏ
estĂĄ limitado por todas as contingĂȘncias, e o mĂ©dico precisarĂĄ de estabelecer
uma aliança com seu paciente. Grmek (1995:216) lembra que âapesar de os
médicos hipocråticos terem despersonalizado a noção de doença, eles não
conseguiram se desvencilhar da idĂ©ia da metĂĄfora do combateâ. A metĂĄfora do
combate filia-se Ă noção de poder, e nĂŁo Ă© raro encontrar-se em TucĂdides a
contrapartida do historiador que se serve do instrumental médico para
descrever acontecimentos de ordem polĂtica128. Jacqueline de Romilly
(1994a:115) foi categĂłrica em sua assertiva sobre a escritura de TucĂdides:
âSeu trabalho foi verdadeiramente de um mĂ©dicoâ. A helenista cita dois
trechos onde o método de anålise do estratego não poderia ser considerado
menos clĂnico. O que TucĂdides declara sobre a histĂłria poderia mutatis
mutandis ser dito sobre a medicina. A referĂȘncia ao uso do paraplhvsion
como critĂ©rio de observação (I,22,4) delineia uma comunhĂŁo de princĂpios
que estavam em vias de se impor no ocidente.
No mundo que se esboçava naquele instante, sob esse aspecto tão
contrĂĄrio ao de Homero, a guerra era a doença. E NĂcias pede a AlcibĂades:
âsĂȘ mĂ©dico de tua povliÏâ, ou seja, aja como um mĂ©dico e evite a desmesura
bĂ©lica, que, como a peste, Ă© a doença polĂade. TucĂdides transporta para a vida
polĂtica o tripĂ© hipocrĂĄtico129: doença, doente e mĂ©dico; onde sĂł uma
autĂȘntica summaciva entre os dois Ășltimos pode sobrepujar a primeira.
utilização do termo aqui nĂŁo configura uma abordagem Ă luz das idĂ©ias do filĂłsofo francĂȘs, mas reverencia-lhe mais este mĂ©rito de contribuição. 128 v.GRMEK (1995), p.216 et sq e MOLLO (1994), passim. 129 A expressĂŁo Ă© corrente entre os que se dedicam ao CH, contudo, a tĂtulo de ilustração, cito seu uso por Grmek (1994,p.216)
87
Assim como o valor da guerra, mudou também a própria guerra. As
batalhas de TucĂdides, e tambĂ©m os casos patolĂłgicos do Corpus
hippocraticum, tinham por fim e meio a justa medida.
Do epicentro religioso da Grécia irradia-se a sentença da fórmula ética
mhdeVn a!gan. Tal foi, desde a figura histĂłrica e emblemĂĄtica de SĂłlon, o norte
de uma nova forma de se relacionar com o mundo. Fundamento da pĂłlis e
também da medicina, a måxima frutificou em silogismos de premissas
históricas e pretéritas e germinou o solo das idéias.
EurĂpides e SĂłfocles conheceram a peste de Atenas, que Ă© um dos temas
do segundo livro da Guerra do Peloponeso, e tambĂ©m a decadĂȘncia do regime
democråtico. Assistiram à penetração das idéias das Escolas Médicas na
cosmovisão de uma Grécia que se inclinava cada vez mais ao lógos.
Jackie Pigeaud (1989:407ss) sugere uma influĂȘncia de HipĂłcrates sobre
EurĂpides no tocante Ă manifestação da âdoença sagradaâ, especialmente em
uma passagem do tratado Das afecçÔes internas (VII,285). De fato, a
descrição da loucura de Héracles não é outra senão a que vemos no tratado
hipocråtico Da doença sagrada. O Mensageiro assim descreve o estado de
HĂ©racles:
(....) o$ dâ oujkevqâ auJtoVÏ h^n, ajllâ ejn strofai~sin ojmmavtwn ejfqarmevnoÏ rJivzaÏ tâ ejn o!ssoiÏ aiJmatw~paÏ ejkbalwvn, ajfroVn katevstazâ eujtrivcou geneiavdoÏ.
ele jĂĄ nĂŁo era o mesmo, mas estava desfigurado no movimento dos olhos,
projetando nos olhos os capilares ensangĂŒentados; da barba de belos fios escorria espuma.
(HĂ©racles, 931-4) No tratado hipocrĂĄtico, lĂȘ-se acerca da âdoença sagradaâ:
88
OiJ ojfqalmoiV diastrevfontai, tw~n flebivwn ajpokleiomevnwn tou~ hjevroÏ kaiV sfuzovntwn. jAfroVÏ deV ejk tou~ stovmatoÏ proevrcetai ejk tou~ pleuvmatoÏ. Os olhos reviram, posto que as veias nĂŁo recebem ar e tornam-se tĂșrgidas. Provinda do pulmĂŁo, a espuma sai da boca.
(7Littré)
Parece ser semelhante o caso de Agave, n'As Bacantes de
EurĂpides. O delĂrio de Agave tem origem indiscutivelmente divina. Esse
delĂrio bĂĄquico, divino portanto e sobretudo, apresenta, todavia, o mesmo
quadro sintomĂĄtico que nos descreve a medicina hipocrĂĄtica. Eis como o
mensageiro descreve a situação de Agave:
JH d j ajfroVn ejxiei~sa kaiV diastrovfouÏ kovraÏ eJlivssous j, ouj fronou~s j a$ crhV fronei~n, ejk Bakcivou kateivcet j oujd j e!peiqev nin. Lançando espuma e revirando as pupilas revoltas, sem mais dar por conta daquilo que se deve, ela dominada por Baco e nĂŁo dava ouvidos a nada.
(Bac.,1222-4)
Agave delira decerto ao olhar para seu prĂłprio filho e ver uma fera, um
leĂŁo, que a voz divina ordenava que ela matasse. Ela o mata. E mais do que
isso: ostenta a sua cabeça como um prĂȘmio de caça. SerĂĄ Cadmo, seu pai e
avĂŽ de Penteu, que haverĂĄ de promover um verdadeiro processo terapĂȘutico
que devolverĂĄ a consciĂȘncia a Agave. Esse processo de cura conta com um
recurso inusitado: Cadmo pede a filha que olhe para o cĂ©u: Prw~ton meVn eijÏ
tovnd j aijqevr j o!mma soVn mevqeÏ (primeiramente lança teu olhar ao Ă©ter). Em
seguida, Cadmo pergunta-lhe sobre dois elementos que lhe sĂŁo mais
89
marcantes relativamente a sua identidade: quem era o seu marido e quem era o
seu filho. A isso ela responde prontamente, e encaminha-se para o
recobramento da razĂŁo.
Ă necessĂĄrio fazer aqui um comentĂĄrio acerca da questĂŁo moral que
ronda esse episódio. Cadmo adverte Agave acerca de sua situação moral:
eij deV diaV tevlouÏ ejn tw/~d j ajeiV menei~t j ejn w%/ kaqevstate, oujk eujtucou~sai dovxet j oujciV dustucei~n.
Se permaneceres sempre assim nesse estado, nĂŁo serĂĄs feliz, mas nĂŁo conhecerĂĄs o infortĂșnio.
A loucura Ă©, portanto, amoral em si, produz uma ataraxia interna em
meio a um turbilhĂŁo externo. A moralidade lhe Ă© externa, e sustenta a leitura
desse turbilhão. Ela não é feliz, posto que é doença; mas não conhece a
infelicidade da responsabilidade pelos seus desvarios. O estado de loucura se
coloca entre o ato moral e o imoral, como um "campo neutro" de amoralidade
do qual o guardião, especialmente a partir da Grécia clåssica, é o sentido
nosogĂȘnico que a medicina cria, robora e robustece.
As semelhanças são flagrantes. Os sintomas são quase os mesmos.
Respondendo a uma tendĂȘncia representada pela obra de fĂŽlego de Albrecht
Dieterich130, Temkin131 lembra que nĂŁo hĂĄ pertinĂȘncia em averiguar o
diagnĂłstico que um mĂ©dico nosso contemporĂąneo daria para o âcaso
HĂ©raclesâ, mas sim o que os antigos pensavam a respeito. O que parece ser
ainda mais relevante Ă© a busca de uma identificação entre a fĂșria de HĂ©racles
e o que o pĂșblico ĂĄtico, malgrado os esforços dos prestigiosos discursos da
Escola Médica de Cós, em algum grau de suas crenças132, ainda reconhecia
130 DIETERICH, 1911. 131 TEMKIN, 1994. A respeito do diagnóstico retrospectivo, v. PIGEAUD, 1987, p.49. 132 Sobre a crença grega, procurarei estar de acordo com as observaçÔes de Paul Veyne (1987).
90
como uma possessão divina. Mas as complicaçÔes nessa investigação são
numerosas, e mesmo Temkin abandona a questĂŁo declarando a dificuldade de
justificar-se o eufemismo "doença de Héracles".
De fato, o famoso Problema XXX, de Pseudo-AristĂłteles, atribui o
ataque de HĂ©racles Ă melancolia:
DiaV tiv pavnteÏ o@soi perittoiV gegovnasin a!ndreÏ h# kataV filosofivan h# politikhVn h# poivhsin h# tevcnaÏ faivnontai melagcolikoiV o!nteÏ, kaiV oiJ meVn ou@twÏ w@ste kaiV lambavnesqai toi~Ï ajpoV melaivnhÏ colh~Ï ajrrwsthvmasin, oi%on levgetai tw~n te hJrwi>kw~n taV periV toVn JHrakleva;
Por que todos os que tornaram-se homens notĂĄveis na filosofia, na polĂtica, na poesia, nas tĂ©khnai sĂŁo evidentemente melancĂłlicos, e alguns o sĂŁo tanto que chegam a ser considerados como tomados por doenças oriundas da bile negra, como o que se diz dos herĂłis, como HĂ©racles, por exemplo?
(Problema XXX, I, 953a10)
A motivação desse diagnĂłstico de melancolia pode ser atribuĂda ao
prestĂgio que a bile negra adquiriu como epĂcrise da maniva. No Problema
XXX, a epilepsia ganha esse nome, e é definida como "a doença sagrada dos
antigos", mas interessa especialmente notar que o autor estabelece uma
identidade entre melancolia e epilepsia:
GaVr ejkei~noÏ e!oike genevsqai tauvthÏ th~Ï fuvsewÏ, dioV kaiV taV arjrwsthvmata tw~n ejpilhptikw~n ajp j ejkeivnou proshgovreuon oiJ ajrcai~oi iJeraVn novson. Pois ele (i.e., HĂ©racles) parece ter sua origem nessa natureza; por isso tambĂ©m aos males dos epilĂ©ticos os antigos chamavam doença sagrada.
91
(ibidem)
Esse curioso excerto aristotélico além de claramente glosar o sintagma
taV arjrwsthvmata tw~n ejpilhptikw~n como aquilo que "os antigos chamavam
de doença sagrada" â e, por conseguinte, gerar a correspondĂȘncia que se
cristalizou â, tambĂ©m parece ser o primeiro diagnĂłstico da doença de
HĂ©racles. Malgrado seja ainda comum atribuir-se a Blaickock (1952:121 &
ss.) o diagnóstico da doença de Héracles, esse Problema aristotélico e um
tratado de Galeno (XVII,2K 431) fazem com que esse diagnĂłstico retroaja em
milĂȘnios.
A necessidade de aproximar o acesso de HĂ©racles de um diagnĂłstico
conhecido sobretudo através dos textos do Corpus hippocraticum é uma
hipĂłtese que se justifica quando se trata de EurĂpides. A oposição entre o
conhecimento e a ignorĂąncia adquire um valor especial na Atenas clĂĄssica, e,
por conseguinte, na obra de EurĂpides. Em HĂ©racles, a ignorĂąncia sobre o
ataque do herĂłi dĂĄ-se em dois nĂveis, o dos personagens circundantes, e o do
prĂłprio HĂ©racles. Ao desconhecimento dos personagens parece opor-se a tese
da melancolia.
O desvario de HĂ©racles tem a peculiaridade de estar cercado pela
ignorĂąncia unĂąnime dos personagens. ^W pai~, tiv pavsceiÏ; [Ă filho, o que
tens?] pergunta AnfitriĂŁo, no verso 965, segundo o relato do Mensageiro; ^W
teknwvn, tiv dra/Ï; tevkna kteivneiÏ; [Ă filho, o que fazes? Matas teus
rebentos?] - questiona MĂ©gara lembrando ao filho seu estado de pai, no verso
975, ainda conforme o !AggeloÏ.
No verso 1060, AnfitriĂŁo constata: HĂ©racles dorme. NaiV, eu!dei [sim,
dorme], responde ao coro. Depois de ter assassinado sua mulher e seus filhos,
HĂ©racles repousa em um sono, em um funesto sono, u@pnon u@pnon ojlovmenon,
diz AnfitriĂŁo. Logo, no verso 1088, HĂ©racles desperta absolutamente
ignorante do que acabara de fazer. O herói descreve sua sensação como uma
92
queda terrĂvel: âpevptwka deinw~/â, diz. Depois o herĂłi se queixa do ar quente
nos pulmĂ”es. Ă impossĂvel nĂŁo lembrarmos que o autor do tratado Da doença
sagrada atribui a epilepsia justamente ao fleugma frio133, e que a cura se dĂĄ
com uma sensação de calor.
O tratado ainda acrescenta:
e!peita tw/~ crovnw/ oJkovtan (toV flevgma yucrovn) skedasqh/~ kataV taVÏ flevbaÏ kaiV migh/~ tw/~ ai@mati pollw/~ ejovnti kaiV qermw/~, h#n krathqh/~ ou@twÏ, ejdevxanto toVn hjevra aiJ flevbeÏ, kaiv ejfrovnhsan. em seguida, depois de algum tempo, quando (o fleugma frio) se espalha pelas veias e se mistura ao sangue abundante e quente, caso seja assim controlado, as veias recebem o ar, e os indivĂduos recobram a consciĂȘncia.
(7Littré)
Eis a causa da perplexidade de HĂ©racles diante do quadro que tem
diante de si. !Ek toi pevplhgmai134. âEstou perplexoâ. Contudo, sĂł aos
poucos vai sabendo o que aconteceu. Num diĂĄlogo capital com AnfitriĂŁo,
HĂ©racles toma consciĂȘncia de seus atos.
O HĂ©racles revisitado por EurĂpides se insere na vertente literĂĄria de
uma substancial mudança de perspectiva na percepção dos fenÎmenos
fisiológicos. A tragédia, tendo por matéria a mitologia135, não se prestaria a
dispensar argumentos em prol de outra relação entre homens e deuses
diferente daquela da qual Homero é o mais célebre exemplo.
De fato, a mitologia prestou-se a ser uma linguagem muito peculiar da
literatura a partir do nascedouro do gĂȘnero trĂĄgico, e com pouca imaginação
133 Sobre a temperatura do fleuma, ver o terceiro capĂtulo desta tese. 134 ejkplhvssomai - ser atingido por um estupor, por admiração ou medo. 135 Ă escusado fazer-se aqui a ressalva dâOs persas de Ăsquilo.
93
podemos notar um AlcibĂades por trĂĄs de um Filoctetes136 ou uma Atenas
encoberta pelo vulto emblemĂĄtico de Teseu ou pela figura cĂclica de Ădipo. A
representação, que tanto freqĂŒenta a religiĂŁo grega, avança com a encenação
trĂĄgica â mormente dos espetĂĄculos da lavra de SĂłfocles e de EurĂpides â
sobre face religiosa do mito. Embora a sugestĂŁo do Corpus hippocraticum137,
e do tratado Da doença sagrada, nĂŁo tenha sido pertinente Ă representação â
que se adscreve Ă linguagem literĂĄria â, as afinidades entre essas duas novas
perspectivas sĂŁo postas Ă s claras pelas confluĂȘncias entre seus textos.
Assim como o tratado Da doença sagrada, o Hipólito(141-50) de
EurĂpides tambĂ©m apresenta enumera deidades patogĂȘnicas. Tanto o mĂ©dico
tratadista quanto o tragediĂłgrafo mencionam HĂ©cate e Cibele. EurĂpides ainda
se refere a PĂŁ, aos Coribantos e a Ditina138:
Ouj gaVr e!nqeoÏ, w^ kouvra, 141 ei!t j ejk PanoVÏ ei!q j JEkavtaÏ h# semnw~n Korubavntwn foi- ta/~Ï139 h# matroVÏ ojreivaÏ; oujd j ajmfiV taVn poluvqh- ron Divktunnan ajmplakivaiÏ ajniveroÏ ajquvtwn pelavnwn truvch/; foita/~ gaVr kaiV diaV livmnaÏ, cevrson a@q j u@per, pelavgouÏ divnaiÏ ejn notivaiÏ a@lmaÏ. 150
Pois nĂŁo vagueias, moça, possuĂda por um deus, por PĂŁ ou por HĂ©cate ou pelos Ănclitos Coribantos ou pela MĂŁe dos montes140?
136 A tese de Filoctetes na tragĂ©dia homĂŽnima de SĂłfocles ter sido uma representação de AlcibĂades encontra-se minuciosamente argumentada por Jameson, em um artigo intitulado Politics and the Philoctetes. 137 Refiro-me aqui de forma mais direta aos tratados que contĂȘm prĂłlogos polĂȘmicos. 138 As deidades sĂŁo responsabilizadas no canto coral que se estende pelos versos 121-175. 139 EscĂłlios legam-nos a lição da preferĂȘncia de foita/ ~Ï a maivnh/ (foita/ ~Ï ajntiV tou~ maivnh/). Por mais que pareça inquestionĂĄvel a opção de estabelecimento para a qual corroboram as fontes sobreviventes, Ă© notĂĄvel o testemunho da existĂȘncia dessa outra versĂŁo que evidencia a patogĂȘnese divina. 140 i.e. Cibele.
94
Tendo cometido, sacrĂlega, alguma falta contra a faunĂstica Ditina que te consome por falta de sangue sacrificial? pois ela vai e vem pelos lagos â como se percorresse terra seca â nos turbilhĂ”es meridionais dos mares salgados141.
(HipĂłlito, 141-50)
Na MedĂ©ia (1171-5), EurĂpides tambĂ©m faz referĂȘncia Ă s manifestaçÔes
somåticas de Pã. As semelhanças entre as descriçÔes da agonia de Glauce e do
ataque convulsivo no Da doença sagrada são surpreendentes, e resultam em
uma indicação de que a velha serva estava entre os crentes nas bausanivai
aos quais o médico tratadista se refere. O mensageiro noticia a Medéia que a
velha serva julgou que Glauce, filha de Creonte, tivesse sido vĂtima de um
ataque do furor de PĂŁ (PanovÏ ojrgaiv) ou de outro deus, e, por isso gritou
(ajnwlovluxe), finalmente, a serva vĂȘ sair da boca da filha de Creonte uma
espuma branca e seus olhos revirarem (ajpostrevfousan), e a conjunção privn,
mormente porque seguida da partĂcula ge, parece mostrar que os sintomas
foram suficientes para que a serva deixasse de atribuir o ataque ao deus, para
circunscrevĂȘ-lo aos limites da fuvsiÏ:
KaiV tivÏ geraiaV prospovlwn, dovxasav pou 1171 h# PanoVÏ ojrgaVÏ h# tinoÏ qew~n molei~n, ajnwlovluxe, privn g j oJra/~ diaV stovma cwrou~nta leukoVn ajfrovn, ojmmavtwn t j ajpov kovraÏ strevfousan, ai%ma t j oujk ejnoVn croi?: 1175 Uma velha serva, acreditando sobrevir a fĂșria de PĂŁ ou de qualquer deus, bradou, antes de ver que, pela boca,
141 Essa referĂȘncia Ă navegação explica-se em dois nĂveis. Primeiramente, Ditina Ă© uma deusa adorada em Creta, reino de onde provĂ©m Fedra; portanto, a habilidade marĂtima seria necessĂĄria para que essa divindade pudesse ser responsabilizada pela âmanivaâ da rainha. A essa explicação pode-se acrescentar que, conforme notam perspicazmente os comentadores do texto editado pela S.E. Les Belles Lettres, parecia haver uma intenção de identificação da deusa cretense com a prĂłpria Ărtemis, causa prima dos males de Fedra.
95
escorria-lhe uma espuma branca, dos olhos re- viravam as meninas, fugindo-lhe o sangue da pele.
(Medéia, 1171-5)
O tratado alude Ă MĂŁe dos deuses, usando uma expressĂŁo assaz parecida
com a utilizada por EurĂpides para referir-se a Cibele: mhvthr qew~n. A
identificação mĂștua entre a MĂŁe dos deuses â Ă s vezes entendida como RĂ©ia â
e Cibele Ă© recorrente em praticamente todo o mundo grego. De proveniĂȘncia
frĂgia, essa deusa Ă©, segundo Grimal (1993:86), uma espĂ©cie de RĂ©ia frĂgia ou
um orĂĄculo seu. Portanto, ainda nĂŁo Ă© nesse ponto em que encontramos
divergĂȘncia substancial entre as duas listas. O tratado tambĂ©m se refere a
HĂ©cate, atravĂ©s do adjetivo ejnodivh, que Ă© um epĂteto da deidade. O adjetivo,
no tratado, Ă© apenas uma forma de atribuir os ataques a HĂ©cate quando esses
sĂŁo muito violentos, sem referir-se ao seu significado original de âprotetora
das viasâ.
O qualificativo de Apolo no tratado, por outro lado, parece-me incutir a
intenção de opor um Apolo ao qual Nietzsche se refere em sua Origem da
tragĂ©dia a outro, agreste e pegural. HĂĄ portanto, atĂ© aqui, o predomĂnio de
numes associados ao que o mundo clĂĄssico habituou-se a chamar de cwvra,
espaço para alĂ©m do perĂmetro circunscritor das atividades deliberativas da
pólis, onde era franqueada a circulação de idéias, entre as quais as médicas
receberam especial atenção142.
Finalmente, Ares e os herĂłis despontam como responsĂĄveis pelos
achaques convulsivos, consoante serem estes violentos ou acompanhados de
visĂ”es terrĂficas. A relação entre a violĂȘncia e a guerra Ă© tĂŁo Ăłbvia que chega
mesmo a evidenciar uma intenção de escårnio por parte do tratadista.
Os herĂłis, assassinos de monstros, deveriam afigurar-se aos gregos tĂŁo
monstruosos quanto suas vĂtimas, porquanto capazes de matĂĄ-las. Os
142 Esse ponto serĂĄ discuto mais pormenorizadamente adiante.
96
pacientes, nĂŁo podendo ver os deuses â que, de resto, nĂŁo eram passĂveis de
serem vistos â, sĂł poderiam contemplar esses seres sobrenaturais que, para
alĂ©m do bem e do mal, sĂŁo terrĂficos por natureza, atos e proveniĂȘncia.
Depois de desferir ataques diretos, onde o sarcasmo transparece em
cada sentença, Ă s causas divinas da âdoença dita sagradaâ, o mĂ©dico tratadista
dirige seus dardos retóricos à idéia de miasma. De fato, o termo mivasma
referia-se, nos primĂłrdios de seu uso, a uma mĂĄcula fĂsica, religiosa e
moral143. Vemo-lo assumir gradativamente na literatura o significado de
mĂĄcula moral, fĂsica e religiosa transmissĂvel por hereditariedade ou por
concidadania; de onde provĂȘm que ambos os significados se encontrem em
Ădipo rei, tanto no que concerne Ă peste (mivasma, na tragĂ©dia), quanto ao que
se refere à situação pessoal de tradição maldita do próprio protagonista.
Contudo, no tratado parecem haver alguma proximidade semĂąntica entre
mivasmav ti e!cwn, ajlavstwr, pefarmagmevnoÏ e eijrgasmevnoÏ ajnovsion
e!rgon ti. A aproximação semùntica entre esses termos divorcia o miasma da
idĂ©ia de maldição e de qualquer conteĂșdo mĂtico e religioso, e aponta uma
especificação para esses termos atĂ© entĂŁo inusitada, mas que explora o vĂnculo
que o termo ajlavstwr guarda com o passado, um tanto mais estreito do que o
do termo mivasma, que trata da sombra que o passado projeta sobre o presente,
este sim, o tĂłpico semĂąntico do vocĂĄbulo.
Enquanto Littré procurava na negação da origem divina da doença os
primĂłrdios da ciĂȘncia, Jackie Pigeaud preocupa-se em conduzir a discussĂŁo
para longe das querelas positivistas que congregavam a fĂșria cientificista e a
obsessão pelos primórdios como autenticação do presente. Para o classicista
francĂȘs, o projeto teolĂłgico do mĂ©dico tratadista estava inserido em uma
tendĂȘncia a subtrair dos deuses aquilo que nĂŁo fosse propĂcio aos homens:
143 LaĂn Entralgo (1970:191) propĂ”e um sintĂ©tico mas criterioso histĂłrico do termo mivasma. Sua argumentação estĂĄ exposta em nota Ă tradução do tratado (4Jones) apresentada nesta tese.
97
Na verdade, a questĂŁo, a grande questĂŁo que preocupou desde muito cedo a Antiguidade grega Ă© a de salvar deus, de inocentar deus do mal. O pensamento grego, desse ponto de vista, Ă© uma teodicĂ©ia. O problema foi apresentado em carĂĄter urgente como se vĂȘ desde a RepĂșblica de PlatĂŁo atĂ© o tratado de Plutarco Dos abandonos da justiça divina, passando pelo escĂąndalo da tragĂ©dia. O pensamento trĂĄgico Ă© aquele que justamente deve contemplar esse escĂąndalo de um deus que age para alĂ©m de toda a medida, de um deus que Ă© tambĂ©m a origem do mal, que pratica os caprichosos desĂgnios das reversibilidades das penas e da sanção dos inocentes. (....) O discurso âracionalistaâ do Ares, ĂĄguas e lugares ou do Da doença sagrada visa a salvar deus do mal, participando, com isso, do discurso da teodicĂ©ia, e, secundariamente, constitui um discurso âcientĂficoâ livre do religioso e do sagrado. (1987:50-60)
Pigeaud reafirma sua convicção, lembrando que mais importante do que
reputar um erro ter a doença sagrada por mais divina do que as outras é o fato
de que Ă© Ămpio crer nisso.
Resumidamente, poderĂamos dizer que, segundo Pigeaud, tendo como
objetivo salvaguardar os deuses de alguma culpabilidade, o médico tratadista
nĂŁo sĂł os isenta dessa responsabilidade, atribuindo-a Ă dieta e ao meio, mas
como tambĂ©m anatemiza os que encontram nos numes alguma influĂȘncia
nesse mal.
Pigeaud vai ainda mais longe em sua argumentação. Subtrair a
responsabilidade dos deuses pelas mazelas humanas é também retirå-las do
prĂłprio homem. O Helenista traduz esse raciocĂnio em uma contundente
assertiva: âO tratado Da doença sagrada quer desembaraçar o homem de todo
sentimento de mĂĄcula e culpabilidadeâ (PIGEAUD, 1987: 60).
A proposta de Pigeaud exige uma releitura de todo o entorno
intertextual do tratado, e mesmo uma releitura das obras trĂĄgicas. Com qual
dificuldade nĂŁo deixarĂamos o antigo hĂĄbito de ver EurĂpides, por exemplo,
98
distanciando-se do PanteĂŁo religioso e aproximando-se do alegĂłrico? A
proposta de Pigeaud, contudo, corrobora a tese da redimensionalização da
relação entre homens e deuses, em contrapartida com a crença em um ateĂsmo
que não hesito em dizer ser mais de Littré do que de Hipócrates.
Para argumentar sua dessacralização superficial144 da doença, o autor
do tratado se vale de cinco argumentos145:
Primeiramente, se o homem pode curĂĄ-la por encantamentos, ele
também pode produzi-la. Portanto, a doença concerne ao poder humano:
o@stiÏ gaVr oi%oÏ te perikaqaivrwn ejstiV kaiV mageuvwn ajpavgein toiou~ton pavqoÏ, ou%toÏ ka#n ejpavgoi e@tera tecnhsavmenoÏ, kaiV ejn toutw/~ tw~/ lovgw/ toV qei~on ajpovllutai. Pois quem, procedendo a purgaçÔes e a magia, Ă© capaz de apartar esta afecção, este, por meio de seus artifĂcios, poderia atrair outras, e, com esse argumento, estĂĄ eliminado o aspecto divino. (3Jones)
Pigeaud lembra que esse argumento encontra eco em PlatĂŁo, para quem
o tecnivthÏ Ă© aquele que Ă© capaz de fazer algo e o seu contrĂĄrio (loc.cit.).
O segundo argumento concerne à hereditariedade. As doenças, segundo
o autor do tratado146, são herdadas, uma vez que a semente, que provém de
todo o corpo147, reflete a patologia da regiĂŁo de onde Ă© oriundo:
144 O termo âsuperficialâ refere-se ao fato de, conforme julgo, nĂŁo ter sido afastada a influĂȘncia dos deuses, mas apenas deslocada para um campo mais subjetivo. 145 Essa enumeração Ă© proposta por Jackie Pigeaud (1987:52 et ss.). Aqui ela se encontra apenas desenvolvida e mais detalhada. 146 O AAL corrobora essa tese (14LittrĂ©). 147 Essa Ă© tambĂ©m a idĂ©ia central do tratado Da geração, onde tal tese Ă© argumentada pormenorizadamente a partir do princĂpio de que o embriĂŁo Ă© formado pela âsementeâ masculina e feminina.
99
!Arcetai deV w@sper kaiV ta!lla noushvmata kataV gevnouÏ: ei# gaVr ejk flegmatwvdeoÏ flegmatwvdhÏ, kaiV ejk colwvdeoÏ colwvdhÏ givnetai, kaiV ejk fqinwvdeoÏ fqinwvdhÏ, kaiV ejk splhnwvdeoÏ splhnwvdhÏ, tiv kwluvei o@tw/ pathVr kaiV mhvthr ei!ceto, touvtw/ tw/~ noshvmati kaiV tw~n ejkgovnwn e!cesqai tina; wJÏ oJ govnoÏ e!rcetai pavntoqen tou~ swvmatoÏ, apoV te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏ, ajpoV te tw~n noserw~n noserovÏ. Começa, assim como as outras doenças, conforme a estirpe. Se, pois, de um fleumĂĄtico nasce um fleumĂĄtico; de um bilioso, um bilioso, de um tĂsico, um tĂsico, e de um esplenĂ©tico, um esplenĂ©tico; o que impede que algum dos filhos tenha a (doença) que tinham o pai e a mĂŁe? Pois a semente vem de todos os lugares do corpo: das partes sĂŁs, vem sĂŁ; das doentes, doente.
(2Littré)
No tratado Ares, ĂĄguas e lugares, encontra-se a mesma tese da
hereditariedade:
eij ou^n givnontai e!k te tw~n falakrw~n falakroiV kaiV ejk tw~n glaukw~n glaukoiV kaiV diestramevnwn strebloiV, wJÏ ejpiV toV plh~qoÏ kaiV periV th~Ï a!llhÏ morfh~Ï oJ aujtoVÏ lovgoÏ, tiv kwluvei kaiV ejk makrokefavlou makrokevfalon givnesqai;
se os calvos nascem dos calvos; os cegos, dos cegos, e os estrĂĄbicos, daqueles que tĂȘm (os olhos) torcidos, como ocorre geralmente, e se o mesmo raciocĂnio se aplica aos outros aspectos fĂsicos, o que impede que um macrocĂ©falo nasça de um macrocĂ©falo? (10LittrĂ©)
O influxo da hereditariedade sobre a doença då-se não só em caråter
determinativo, mas tambĂ©m e principalmente sob a forma de tendĂȘncia que
ainda contarå com a corroboração de outras variåveis, como, por exemplo, dos
100
ventos. A hereditariedade Ă© um fator importante para esses dois tratados na
argumentação contra as causas divinas das doenças, mas não é
suficientemente eficaz no combate contra a proveniĂȘncia miasmĂĄtica148, que
também conhecia a transmissão hereditåria. Esse argumento do médico
tratadista consistia em um passo um tanto tĂmido em direção Ă relação indireta
entre os deuses e a doença, uma vez que pressupunha uma preconcepção de
que a transmissĂŁo hereditĂĄria das marcas fĂsicas era distinta da herança da
måcula moral ou religiosa149. O terceiro argumento em prol da tese de laicização da doença é o fato
de ela recair fuvsei (i.e., conforme a natureza) somente sobre os fleumĂĄticos,
e nunca sobre os biliosos:
@Eteron deV mevga tekmhvrion o@ti oujdeVn qeiovterovn ejsti tw~n loipw~n noushmavtwn: toi~si gaVr flegmatwvdesi fuvsei givnetai: toi~si deV colwvdesi ouj prospivptei: toi~sin a@pasin oJmoivwÏ e!dei givnesqai thVn nou~son tauvthn, kaiV mhV diakrivnein mhvte colwvdea mhvte flegmatwvdea. Outra grande prova de que esta nĂŁo Ă© em nada mais divina do que as outras enfermidades: nos fleumĂĄticos ocorre por natureza [fuvsei], e jamais sobrevĂ©m aos biliosos. Se realmente fosse mais divina do que as outras, essa doença necessariamente acometeria a todos da mesma forma, sem escolher bilioso nem fleumĂĄtico.
(2Littré)
Nesse ponto, Pigeaud (1987:53) afirma que se um deus castigasse mais
os fleumĂĄticos do que os biliosos, isso implicaria em uma idĂ©ia transcendente 148 cf. p.94 desta tese 149 Pigeaud nĂŁo considera o problema da perda de força do argumento diante da hereditariedade do mivasma, que, nĂŁo obstante, o tratado coloca-a como o primeiro dos equĂvocos: e!conteÏ mivasmav ti. O tema da hereditariedade e o pensamento que o circundava serĂĄ tratado novamente no quinto capĂtulo desta tese.
101
de deus, afastando-o da fuvsiÏ; mas ao mĂ©dico nĂŁo ocorre a idĂ©ia de que o
temperamento seja uma escolha dos deuses. De fato, o médico hipocråtico,
assim como TucĂdides, nĂŁo atribui a moi~ra a conotação que encontrada entre
os poetas. Pensar como poetas comprometeria a defesa dos deuses que
Pigeaud percebe no tratado. Contudo, nĂŁo hĂĄ que olvidar-se de que o tema da
moi~ra Ă© vetado por uma razĂŁo mais epistemolĂłgica, concernente aos limites
da ação da ijatrikhV tevcnh, do que por falta de credibilidade, o que sequer
estĂĄ em questĂŁo no tratado, embora, a meu ver, o tema esteja sugerido aqui e
ali.
O quarto argumento para o projeto de laicização da doença sagrada é a
comparação entre ela e as doenças que poderiam parecer sagradas por suas
dimensÔes, mas que não recebem essa denominação. Entre esses acessos
desconcertantes estĂŁo os delĂrios e os ataques de maniva:
Tou~to meVn gaVr oiJ puretoiV oiJ ajmfhmerinoiV kaiV oiJ tritai~oi kaiV oiJ tetartai`oi oujdeVn h%sson moi dokevousin iJeroiV ei^nai kaiV uJpoV qeou~ givnesqai tauvthÏ th~Ï nouvsou, w%n ouj qaumasivwÏ g je!cousin: tou~to deV oJrevw mainomevnouÏ ajnqrwvpouÏ kaiV parafronevontaÏ ajpoV mhdemih~Ï profavsioÏ ejmfanevoÏ, kaiV pollaV te kaiV a!kaira poievontaÏ, e!n te tw/~ u@pnw/ oi^da pollouVÏ oijmwvzontaÏ kaiV bow~ntaÏ, touVÏ deV pnigomevnouÏ, touVÏ deV kaiV ajnai?ssontavÏ te kaiV feuvgontaÏ e!xw kaiV parafronevontaÏ mevcriÏ a#n ejpevgrwntai, e!peita deV uJgievaÏ e!ontaÏ kaiV fronevontaÏ w@sper kaiV provteron, ejovntaÏ t j aujtevouÏ wjcrouvÏ te kaiV asqenevaÏ, kaiV tau~ta oujc a@pax, ajllaV pollavkiÏ.
As febres cotidianas, terçãs e quartãs não me parecem ser menos sagradas nem mais engendradas
102
por algum deus do que esta doença, e nĂŁo sĂŁo admiradas. Por outro lado, vejo homens enlouquecidos e que deliram [mainovmenoi kaiV parafronevonteÏ] sem nenhum motivo aparente, e praticam muitos atos inoportunos, e sei de muitos que soluçam e gritam no sono, outros que se sufocam e saem para fora (de suas casas) e deliram atĂ© despertarem; depois estĂŁo sĂŁos e conscientes como antes, mas pĂĄlidos e dĂ©beis, e isso ocorre nĂŁo uma Ășnica vez, mas muitas.
(1Jones)
Malgrado o complexo vocĂĄbulo provfasiÏ150 acolher um espectro
semĂąntico incomum em nossa cultura, sua proximidade com a aijtiva parece-
me flagrante nesse excerto. Portanto, o que o autor do tratado estĂĄ a cobrar de
quem atribui causa divina Ă doença sagrada Ă© uma coerĂȘncia com a qual
estava ele mesmo comprometido. Se outras doenças cuja origem não se
explica nĂŁo sĂŁo consideradas sagradas, nĂŁo parece haver sentido em eleger
uma Ășnica para aplicar-lhe o adjetivo. O tratadista parte, contudo, da premissa
de que a doença sagrada é assim chamada por não se conhecer sua origem.
Esse axioma Ă©, de resto, claramente exposto no prĂłprio tratado:
ejmoiV deV dokevousin oiJ prw~toi tou~to toV novshma iJerwvsanteÏ toiou~toi ei^nai a!nqrwpoi oi%oi kaiV nu~n eijsi mavgoi te kaiV kaqavrtai kaiV ajguvrtaikaiV ajlazovneÏ, ou%toi deV kaiV prospoievontai sfovdra qeosebeveÏ ei^nai kaiV plevon ti eijdevnai. Ou%toi toivnun parampecovmenoi kaiV proballovmenoi toV qei~on th~Ï ajmhcanivhÏ tou~ mhV e!cein o$ ti prosenevgkanteÏ wjfelhvsousi, kaiV wJÏ mhV
150 Um minucioso estudo de Robert (1976, p. 318 et ss.) demonstra a extensĂŁo semĂąntica do termo. Infere-se desse artigo que muito cedo o vocĂĄbulo provfasiÏ apartou-se do significado do verbo do qual deriva, assumindo o sentido com o qual o contemplamos no tratado. Vitrac (1989:112) lembra que o termo provfasiÏ significa tanto âcausaâ quanto âpretextoâ, e opina que os autores mĂ©dicos âatribuem-lhe o significado de causa observĂĄvel, sobretudo nos primĂłrdios da doençaâ.
103
katavdhloi e!wsin oujdeVn ejpistavmenoi, iJeroVn ejnovmisan tou~to toV pavqoÏ ei^nai. Os primeiros homens a sacralizarem esta enfermidade parecem-me ser os mesmos que agora sĂŁo os magos, purificadores, charlatĂŁes e impostores, todos os que se mostram muito pios e plenos de saber. Esses certamente excusando-se, usam o sagrado para proteger-se da incapacidade de fazer valer o que ministram, e, para que nĂŁo se tornem evidentes sabedores de nada, declaram esta afecção sagrada. (2Jones)
A idéia de caracterizar-se um objeto como sagrado para ocultar a
ignorĂąncia acerca dele estĂĄ em consonĂąncia com o olhar que TucĂdides lança
sobre o oråculo e suas interpretaçÔes, como foi visto anteriormente151. O que
parece merecer atenção especial na assertiva do médico tratadista (1Jones) é a
inclusão da maniva entre as doenças admiråveis de causa não explicada. Além
do distanciamento entre a maniva e a ijerhV nou~soÏ, o que vemos Ă© o
particĂpio mainovmenoÏ unido a parafronw~n por uma conjunção aditiva,
sugerindo que o valor de ambos os termos, no tratado, se situa no mesmo
nĂvel. De fato, eles aparecem mais uma vez unidos em 14LittrĂ©, quando o
autor sentencia que tanto o delĂrio, quanto a maniva tĂȘm sua causa no cĂ©rebro.
A maniva é, para o tratadista, um nome genérico para duas doenças cerebrais,
uma oriunda do excesso de bile, a outra, do excedente de fleuma. Duas
patologias da ordem do âhiper-â, que ferem o ideal somĂĄtico â e polĂade â da
justa medida. Pigeaud (1987: 54 e 60), lembra que, nesse momento do tratado,
a doença sagrada serå afastada da maniva, para dela reaproximar-se adiante152.
O quinto argumento do tratado refere-se ao fato de a noite e o dia serem
tratados como variĂĄveis influentes na sintomatologia, alĂ©m dos ventos que 151 v. p.70-1 desta tese. 152 A esse tema voltarei no quinto capĂtulo desta tese.
104
tambĂ©m interferem notavelmente na ocorrĂȘncia da doença sagrada. A
influĂȘncia do meio na saĂșde, de resto, Ă© o tema Ares, ĂĄguas e lugares. O que
se apresenta no Da doença sagrada é tão somente o que concerne a essa
enfermidade.
Os cinco argumentos que enumerados por Pigeuad constiuem uma das
vias condutoras do raciocĂnio que serĂĄ a tĂŽnica de sua interpretação do
tratado, qual seja, a da desculpabilização dos deuses e dos homens.
Para discutir esses argumentos apresentados penso ser necessĂĄrio
considerar a posição de Paul Veyne acerca da crença do homem grego em
seus deuses. Mostra-se a teoria do historiador muito eficaz no que concerne Ă
contribuição do Corpus hippocraticum para a relação com o sagrado
caracterĂstica do sĂ©culo V a.C. O que Veyne chama de modalidades de crença
fora â como ele mesmo admite â pesquisada por vĂĄrios estudiosos de vĂĄrias
åreas; Weber, Nilsson e até mesmo Piaget são citados como teóricos que
perceberam que as crenças ocorrem em nĂveis e podem conviver atĂ© com a
descrença relativa ao mesmo objeto153. O convĂvio de vĂĄrios nĂveis de crença
â para Veyne uma caracterĂstica humana, e nĂŁo somente grega â toma
dimensÔes muito particulares na Grécia antiga, e ainda mais peculiares no
perĂodo clĂĄssico.
Tal peculiaridade deve-se sobretudo Ă tendĂȘncia grega de nĂŁo acreditar
muito facilmente no que se ouvia154. HerĂłdoto nos oferece um testemunho
muito claro disso por toda a sua obra, nos momentos em que precisava
assinalar as fontes das suas informaçÔes. Uma assertiva desse mesmo
Historiador (I,60) ilustra essa peculiaridade grega apontada por Veyne:
ajpekrivqh ejk palaitevrou tou~ barbavrou e!qneoÏ toV JEllhnikoVn ejoVn kaiV
dexiwvteron kaiV eujhqeivhÏ hjliqivou ajphllagmevnon ma~llon [a raça grega,
153 Todas as referĂȘncias a Paul Veyne no que concerne a essa sua teoria sĂŁo relativas Ă obra Acreditavam os gregos em seus mitos? (VEYNE,1987). 154 VEYNE, 1987, p.48. Vale lembrar que Veyne Ă© sobretudo um latinista, o que confere Ă sua opiniĂŁo em termos comparativistas um carĂĄter especial.
105
jĂĄ hĂĄ muito, se distingue da bĂĄrbara por ser mais arguta e mais distante de
uma tolice ingĂȘnua155].
Distinguir mu~qoÏ e muqw~deÏ156, para usar a teoria proposta por Veyne,
nĂŁo era a tarefa do mĂ©dico tratadista. Cabia-lhe apenas expurgar do muqw~deÏ
aquilo que atingia a sua tevcnh. O mĂ©dico nĂŁo trata do mu~qoÏ: esse nĂŁo Ă© o seu
tema. Mas sente a necessidade de combater algumas mentiras que o tempo
construiu em torno do mu~qoÏ.
Veyne lembra que o que cabe fazer na busca da verdade nĂŁo Ă© proceder
a uma psicologia daquele que inoculou a mentira no mu~qoÏ, âmas aprender a
precaver-se contra o falso: a vĂtima Ă© mais interessante do que o culpadoâ
(1987:77). O historiador francĂȘs propĂ”e como uma norma que os gregos nĂŁo
se interessem pelas razĂ”es do âfalsĂĄrioâ (sic), e, como Ă© necessĂĄrio identificĂĄ-
lo para eliminar nĂŁo somente o erro cometido, mas o erro potencial, PlatĂŁo,
por exemplo, empenha-se em responsabilizar os poetas (Rep.377d). O Homero
que Ă© expulso da repĂșblica nĂŁo Ă© , no dizer de Veyne, o autor da IlĂada, mas o
autor de toda a mitologia.
A situação do tratado Da doença sagrada é, dentro da perspectiva de
Veyne, sui generis; primeiramente por estar em questĂŁo um muqw~deÏ de
âsegunda classeâ, que nĂŁo se respalda na sacralizadora forma poĂ©tica157, e, em
segundo lugar, porque hå um singular interesse em identificar as razÔes dos
âfalsĂĄriosâ. Os ajguvrtai e ajlazovneÏ utilizam o sagrado para protegerem-se
das acusaçÔes de ignorĂąncia e ocultarem a ineficiĂȘncia de suas terapias 155 A ĂȘnfase estĂĄ na expressĂŁo grega: eujhqeivh hjlivqioÏ, onde o substantivo expresa a idĂ©ia de uma tolice ligada Ă simplicidade, e o adjetivo indica uma parvoĂce associada Ă insignificĂąncia. 156 A lĂngua grega Ă© bem clara na distinção entre esses dois conceitos. O segundo ostenta o sufixo -wvdhÏ, tĂŁo profĂcuo nos termos mĂ©dicos, que indica a idĂ©ia de mera aparĂȘncia. O muqw~deÏ, portanto, Ă© aquilo que se mostra na forma de mu~qoÏ. Contudo, a distinção que utilizo Ă© assinalada por Veyne (1987:76), que percebe o muqw~deÏ como um abrandante da dignidade de crença do mu~qoÏ: âQuanto mais antiga Ă© uma tradição, mais obstruĂda ela Ă© pelo muqw~deÏ, o que a torna menos digna de crĂ©ditoâ (loc.cit.). 157 Quanto Ă relação entre a poesia e a verdade, valho-me aqui das idĂ©ias apresentadas por Marcel Detienne (1988 [1967]), ainda que considere que seu objeto Ă© a poesia arcaica; mas ainda era essa a poesia que possuĂa o poder sacralizador no sĂ©culo V. A equivalĂȘncia entre a memĂłria,
106
mågicas. A preocupação com as razÔes da inverdade, que viria a se tranformar
em recurso retĂłrico entre os oradores, investe-se, nesse momento, do carĂĄter
próprio do discurso médico.
Enquanto nĂŁo se consolida como tĂłpos da arte retĂłrica, o ato de apontar
as razĂ”es da mentira aqui serviu antes para isolar o muqw~deÏ em função da
construção de uma verdade da prosa158, secularizada e mais independente da
memĂłria.
O tratado Da doença sagrada não contradiz a teoria de Veyne. O
interesse pelas razĂ”es da mentira, longe de constituĂrem o tema do tratado,
integram apenas a parte polĂȘmica introdutĂłria do texto. Dos textos do Corpus
hippocraticum que apresentam um prĂłlogo polĂȘmico, o Da doença sagrada Ă©
o Ășnico que procede a uma etiologia do embuste. O Da medicina antiga
declara que o conteĂșdo dos discursos filosĂłficos sĂŁo ajfanevÏ e
ajporeovmenon159 (1Littré), quando aplicados à medicina; mas o erro nos
tratados Da medicina antiga, Da natureza do homem e Da arte tem uma
causa, mas não uma motivação. Nesses tratados, a causa do erro é a
ignorĂąncia, e nĂŁo uma dolosa tentativa de encobri-la, como ocorre no Da
doença sagrada.
A cada ponto dos muqwvdh etiolĂłgicos explicitado no quadro abaixo
pelo tratadista, corresponde uma explicação adiante. O que poderia ser
esquematizado da seguinte maneira:
eminentemente ligada Ă poesia, e a ajlhvqeia gerou uma dependĂȘncia entre a verdade e os sistemas de representação religiosa (p.33 et ss.). 158 O termo Ă© empregado em contrapartida Ă verdade vinculada Ă poesia, sobre a qual disserta Detienne. 159 i.e., obscuros e duvidosos. Adoto aqui a leitura de Heiberg (CMG, I,1), seguida por Jouanna (1990), que prefere entender kainh~Ï no lugar de kenh~Ï, acrescentado pela edição de Coray (1887) do manuscrito M, do sĂ©c. X, na seguinte passagem: dioV oujk hjxivoun aujthVn e!gwge kainh~Ï uJpoqevsioÏ dei~sqai, w@sper taV ajfaneva te kaiV ajporeovmena. A discussĂŁo em torno dessa variante Ă© perfeitamente compreensĂvel, pois corrobora com a pertinĂȘncia semĂąntica uma acentuada semelhança fĂŽnica que a histĂłria da lĂngua provou atingir a identidade. Naturalmente, a opção por kenh~Ï estĂĄ bem de acordo com o contexto e com a atmosfera dessa parte do tratado, adoção dessa variante apenas ratificaria os argumentos que apresento.
107
sintoma aijtivai dos ajguvrtai (4Jones)
aijtivai do MS
espuma saindo da boca Ares falta de ar no pulmão (7Littré)
excrementos HĂ©cate sufocamento (pressionamento do
fĂgado e do ventre para cima ) (7LittrĂ©)
gritos (agudos e fortes) Poseidon a bile (15Littré)
sair para fora de casa Hécate e os heróis a vergonha (12Littré)
medos e delĂrios HĂ©cate e os herĂłis o cĂ©rebro (10LittrĂ©);
deslocamento do cérebro devido
à bile (15Littré)
perda e retomada de
consciĂȘncia e memĂłria
Hécate e os heróis falta de ar no cérebro e a
recuperação desse ar pela
desobstrução do fleuma (7Littré)
sons ligeiros e
freqĂŒentes
Apolo NÎmio a bile (15Littré)
AlĂ©m das epĂcreses apresentadas no quadro, as convulsĂ”es do lado
direito, atribuĂdas Ă MĂŁe dos deuses (4Jones), sĂŁo igualadas Ă s do lado
esquerdo (7LittrĂ©), o que pĂ”e por terra nĂŁo sĂł a epĂcrise divina, mas tambĂ©m a
pertinĂȘncia da variĂĄvel de lateralidade no que concerne aos ataques. Os
acessos podem originar-se em qualquer um dos lados, ou em ambos,
indiferentemente.
Parece-me ser essa aijtiva a mais fåcil de depreciar pelos critérios do
tratadista, uma vez que era suscetĂvel de duas objeçÔes: quanto Ă origem
divina e à diferenciação dos lados. Mas, além da suscetibilidade da ordem da
razĂŁo, hĂĄ tambĂ©m â e isso me parece ainda mais interessante â o carĂĄter da
MĂŁe dos deuses.
108
A MĂŁe dos deuses â provavelmente RĂ©ia â uma deusa muito mais do
universo hesiĂłdico do que polĂade, Ă© uma aijtiva assaz propĂcia Ă s investidas
de um autor hipocrĂĄtico secularizador. Conforme a teoria de Veyne referida
anteriormente, o tempo då ensejo à introdução de muqwvdh, que engendram um
certo grau de descrença. A Mãe dos deuses160 apresenta tudo o que é
necessårio para desconvencer161 acerca da sacralidade da doença.
A referĂȘncia a Apolo mereceria menos atenção se nĂŁo fosse pelo
significativo epĂteto que acompanha o nome dessa divindade162. Ă presumĂvel
que o deus pitĂŽnico figure entre as epĂcrises vilipendiadas pelo tratadista, mas
o epĂteto desperta algumas reflexĂ”es e hipĂłteses quiçå complementares.
Apolo era um deus muito presente no século V. Apolo, um deus de
excelĂȘncia, dos ditames oraculares, capaz de reger migraçÔes e decisĂ”es
polĂticas, em quem, conforme indica o jĂĄ citado excerto de TucĂdides163, cria-
se vivamente, não poderia ser desacreditado em nenhuma das açÔes a ele
atribuĂdas, a nĂŁo ser por meio da especificação epitĂ©tica. âNĂŽmioâ, mais do
que um epĂteto, Ă© um restritor de culto e de modalidade de crença. Ă atravĂ©s
desse recurso que o tratadista vulneraria o deus-epĂcrise.
A restrição que ânĂŽmioâ indica especifica o culto pastoril ao deus, e
lança o equĂvoco para fora dos limites com os quais o sistema social em
franca difusão no século V passava a definir o espaço entendido por cwvra.
160 A referĂȘncia mais lĂmpida Ă MĂŁe dos deuses â enunciada aliĂĄs tal qual no tratado â estĂĄ no brevĂssimo Hino homĂ©rico Ă MĂŁe dos deuses, que nos lega somente duas informaçÔes que aqui interessam: que essa divindade tinha uma estreita ligação com a vida rĂșstica com o som dos instrumentos pastoris, e que ela Ă© filha de Zeus (DioVÏ qugavthr, 2). 161 O pĂșblico alvo do tratado MS Ă© muito discutido. O que se propĂ”e comumente Ă© que esse tratado seria dirigido a mĂ©dicos viajantes por seu parentesco inegĂĄvel com o AAL, que tem claramente essa destinação. Levando-se em consideração a linguagem utilizada, poder-se-ia chegar a conclusĂŁo de que o alvo sĂŁo os iniciados; mas considerando a preocupação de afirmar-se o carĂĄter da ijhtrikhV tevcnh justamente anatemizando os impostores poder-se-ia supor o contrĂĄrio. Contudo este Ășltimo argumento se enfraquece diante da constatação do uso de uma linguagem propriamente esotĂ©rica. 162 O epĂteto novmioÏ tambĂ©m acompanha o nome de Hermes (p.ex., em AristĂłfanes, TesmofĂłrias, 977, apesar de tratar-se de uma galhofa), o de PĂŁ (p.ex., no Hino homĂ©rico a PĂŁ, 5) e o de Zeus. 163 cf. o inĂcio deste capĂtulo da tese.
109
A nona Ode PĂtica de PĂndaro Ă© o registro literĂĄrio mais remoto de
novmioÏ como epĂteto apolĂneo; contudo, no epinĂcio, o epĂteto Ă© atribuĂdo a
Aristeu, fruto da uniĂŁo de Apolo com Cirene:
taiV d j ejpigounivdion <kat-> qhkavmenai brevfoÏ auJtai~Ï,
nevktar ejn ceivlessi kaiV ajmbrosivan stav- xoisi, qhvsontaiv te nin ajqavnaton,
Zh~na kaiV aJgnoVn jApollwn j, ajndravsi cavrma fivloiÏ, a!g- ciston ojpavona mhvlwn,
jAgreva kaiV Novmion, toi~Ï d j jAristai~on kalei~n.
Elas164, depois de colocarem os alimentos sobre os joelhos, destilarão néctar e ambrosia nos seus låbios, e
o tornarĂŁo imortal. SerĂĄ um Zeus, um Apolo todo puro; alegria para os homens que lhe sĂŁo devotos,
companheiro velador das greges, Agreu e NĂŽmio,
para outros chamado Aristeu. (PĂt.IX,107-15)
O poema de PĂndaro sublinha o carĂĄter campestre de Aristeu e de
Apolo. A Terra como nutriz de um imortal que tem por epĂtetos agreu e
nÎmio, termos relacionados respectivamente à caça e ao pastoreiro, duas
atividades campesinas, bem denota o carĂĄter ctĂŽnico desses deuses. Mas nĂŁo
se nota, na Ode PĂtica que narra o nascimento de Aristeu, uma relação entre
esse carĂĄter e a magia, ainda porque a magia nĂŁo era uma questĂŁo para
PĂndaro.
A relação entre a magia e Apolo NÎmio poderia passar por recurso
argumentativo do mĂ©dico tratadista se nĂŁo constasse nos trĂȘs mais cĂ©lebres
164 i.e., as Horas e Gaia, que foram nutrizes de Aristeu, segundo essa Ode.
110
poetas helenĂsticos, CalĂmaco, ApolĂŽnio e TeĂłcrito, que relacionam o epĂteto
a Apolo em contexto de magia.
ApolĂŽnio165, no quarto canto de seu Argonautas, refere-se ao altar de
Apolo NÎmio implantado pela emblemåtica figura de Medéia:
Moiravwn d j e!ti kei~se quvh ejpevteia devcontai kaiv Nunfevwn Nomivoio kaq j iJeroVn jApovllwnoÏ bwmoiv, touVÏ Mhvdeia kaqivssato. (...)
Ali ainda recebem os sacrifĂcios anuais das Moiras e Ninfas os altares que no templo de Apolo NĂŽmio MedĂ©ia implantou.
A devoção de Medéia a Apolo NÎmio jå seria suficiente para
circunscrevĂȘ-lo no universo mĂĄgico; contudo, esse carĂĄter Ă© ainda robustecido
pela relação entre o deus e as Moiras e Ninfas, ou seja, essas duas categorias
de divindades que sempre oscilaram entre o significante e o significado.
Naturalmente, trata-se de ApolĂŽnio, autor helenĂstico para quem Moiras e
Ninfas situavam-se confortavelmente na esfera da linguagem, mas tomo essa
fonte alexandrina mais pelo que representa o reflexo da erudição poética em
sua obra do que pelo seu testemunho temporĂąneo.
CalĂmaco, que tem como uma de suas caracterĂsticas mais notĂłrias a
preocupação com a etiologia, justifica ligar-se o epĂteto novmioÏ a Apolo:
Foi~bon kaiV Novmion kiklhvskomen ejxevti keivnou, ejxovt j ejp j jAmfrussw/~ zeugivtidaÏ e!trefen i@ppouÏ hji>qevou uJp j e!rwti kekaumevnoÏ jAdmhvtoio. JRei~av ke boubovsion televqoi plevon, oujdev ken ai^geÏ deuvointo brefevwn ejpimhlavdeÏ h%/sin jApovllwn
165 à escusado lembrar de que o valor que ApolÎnio, consoante à poética vigente, aferia à erudição confere ao seu testemunho um interesse especial para o estudo da magia. A passagem a que me refiro aqui encontra-se em IV,1218-20.
111
boskomevnh/s j ojfqalmoVn ejphvgagen: oujd j ajgavlakteÏ oi!ieÏ oujd ja!kuqoi, pa~sai dev ken ei^en u@parnoi, hJ dev ke mounotovkoÏ didumhtovkoÏ ai^ya gevnoito. A Febo chamamo-no tambĂ©m NĂŽmio desde que, Ă s margens do Ănfriso, alimentava as Ă©guas atreladas, crestado pelo amor do virginal Admeto. Imediatamente tornar-se-ia pleno o pasto,e Ă s cabras
em rebanho nĂŁo faltariam crias, as quais Apolo, alimentando, vela; nem ficariam as ovelhas sem leite, nem estĂ©reis; mas todas amamentariam, e, assim, a unigenetriz gĂȘmeos logo teria.(Hino a Apolo, 47-55) A etiologia do epĂteto apolĂneo insere-se no mito de Admeto e Alcestes,
no momento precedente ao enamoramento do casal que inspirou a tragédia de
EurĂpides. O que parece mais interessante nesse trecho do Hino Ă© a
apresentação do pastoreio, da fertilidade e lactigenia como domĂnios de
Apolo. A menção de Apolo NĂŽmio como ai!tioÏ de gritos ligeiros e
freqĂŒentes (4Jones) responde bem Ă tendĂȘncia do autor do Da doença sagrada
a esvaziar as epĂcrises divinas de qualquer complexidade, uma vez que parece
ser uma referĂȘncia ao balido, apesar da referĂȘncia aos pĂĄssaros que pode ter a
função de apontar a arbitrariedade por trĂĄs da aparĂȘncia das relaçÔes
naturais166.
A premissa do médico tratadista é a da impossibilidade de uma relação
kataV sunqhvkhn entre a epĂcrise e o sintoma. A semasiologia mĂ©dica deve
operar-se sempre kataV fuvsin, jamais kataV sunqhvkhn. A fraude que o autor
do tratado Da doença sagrada aponta é a de considerar natural a semiose que
se opera entre Apolo e o sintoma, e a referĂȘncia aos pĂĄssaros poderia ser
explicada como uma evidĂȘncia da alogia.
166 A arbitrariedade do signo era uma questĂŁo palpitante numa GrĂ©cia que se interessava cada vez mais pela linguagem. O CrĂĄtilo de PlatĂŁo revela o interesse pela relação entre significado e significante, optando, ao final por um sistema misto entre a arbitrariedade (kataV sunqhvkhn) e a duvnamiÏ que a modera.
112
TeĂłcrito, no IdĂlio XXV, que recebeu o tĂtulo de âHĂ©racles matador do
LeĂŁoâ, tambĂ©m menciona o epĂteto nĂŽmio relacionado a Apolo. Euristeu
ordenou a HĂ©racles que limpasse o enorme estĂĄbulo do rei Augias, que lhe
prometeu em paga uma parte do rebanho. HĂ©racles, no entanto, abriu uma
fenda no muro que rodeava o estĂĄbulo e fez entrar ali as ĂĄguas dos rios que o
ladeavam, limpando-o, assim, de todo o estrume. O rei irritado recusou-se a
pagar. A descrição do eståbulo de Augias figura ao lado da do templo de
Apolo, indicando mais uma vez a circunscrição agreste do uso do epĂteto:
Au^liÏ dev sfisin h@de teh~Ï ejpiV dexiaV ceiroVÏ faivnetai eu^ mavla pa~sa pevrhn potamoi~o rJevontoÏ keivnh/, o@qi platavnistoi ejphetanaiV pefuvasi clwrhv t j ajgrievlaioÏ, jApovllwnoÏ nomivoio iJeroVn ajgnovn, xei~ne, teleiotavtoio qeoi~o. Eis o estĂĄbulo deles, que diante de tua mĂŁo direita revela-se por inteiro para alĂ©m da outra margem do rio fluente, lĂĄ onde os plĂĄtanos brotam e tambĂ©m as olivas verdes e agrestes, o templo puro de Apolo NĂŽmio, Ăł estrangeiro, desse perfeitĂssimo deus. (Id.XXV,18-22)
Nas ocorrĂȘncias de ânĂŽmioâ como epĂteto apolĂneo hĂĄ indĂcios textuais
que corroboram a confirmação da hipótese jå exposta acerca da intenção na
escolha do epĂteto. A presença dos termos bwmovÏ e iJerovn nos excertos de
TeĂłcrito e de ApolĂŽnio indica claramente a existĂȘncia de um culto prĂłprio de
Apolo NĂŽmio, e esse seria um culto campestre, dos limites da cwvra. O
segundo elemento que me parece particularmente interessante Ă© o epĂteto
ajgreuvÏ, que, em PĂndaro (v.114), acompanha novmioÏ, gozando do mesmo
estatuto sintĂĄtico desse.
A referĂȘncia do tratado a Poseidon aponta para conclusĂ”es anĂĄlogas Ă s
que podem ser depreendidas da anĂĄlise do carĂĄter agreste de Apolo NĂŽmio.
Poseidon, conhecido sobretudo por possuir o domĂnio dos mares, Ă© tambĂ©m
113
associado ao âcavalo como ser ctĂŽnicoâ, como lembra Burkert (1993:276).
Que as origens dessa associação se encontram na ågua é um fato irrefutåvel;
mas hĂĄ que se considerar que essa origem da qual PausĂąnias167, um
testemunho sobretudo tardio, Ă© a principal fonte nĂŁo se relaciona diretamente
com o tratado Da doença sagrada.
Ă Ă©poca do tratado, o que ligava Poseidon ao cavalo estava relegado Ă
circunscrição cada vez mais dilatada do miqw~deÏ. No HipĂłlito de EurĂpides
vemos um Poseidon que cumpre a maldição que Teseu â cuja filiação alterna
entre Egeu e Poseidon ao sabor das fĂĄbulas168 â atirou sobre o filho,
assustando os cavalos que o conduziam ao exĂlio. Poseidon, contudo, nĂŁo Ă©
citado no relato do mensageiro que narra o acidente a Teseu. Ă HipĂłlito quem
menciona o deus, em uma frase que Ă©, de certo, expressiva, mas nĂŁo
informativa: w^ dw~ra patroVÏ sou~ Poseidw~noÏ pikrav [que amargas
dĂĄdivas as de teu pai Poseidon].
Essa Ă© a Ășnica referĂȘncia Ă responsabilidade divina. Teseu nada
responde a isso, porque sabe ser ele mesmo o ai!tioÏ da mazela do filho.
Ărtemis, contudo, redistribui as responsabilidades e torna possĂvel o perdĂŁo a
Teseu:
Deivn j e!praxaÏ, ajll j o@mwÏ e!t j e!sti kaiV soi tw~nde suggnwvmhÏ tucei~n: KuvpriÏ gaVr h!qel j w@ste givgnesqai tavde, plhrou~as qumoVn. (...) Fizeste algo terrĂvel, mas ainda Ă© te possĂvel lograr que lho seja perdoado,
167 O sacrifĂcios de cavalos por afogamento Ă© um testemunho inconteste das relaçÔes ancestrais entre o cavalo e a ĂĄgua: !Esti deV hJ DeinhV kataV toV genevqlion kalouvmenon th~Ï jArgolivdoÏ, u@dwr glukuV ejk qalavsshÏ ajnercovmenon. ToV deV ajrcai~on kaqivesan ejÏ thVn DeinhVn tw/ ~ Poseidw~ni i@ppouÏ oiJ jArgei~oi, kekosmhmevnouÏ calinoi~Ï. [Ă chamada Dine por causa de seu nascimento a partir da AgĂłlida a ĂĄgua doce que provĂ©m do mar. Outrora, os argivos atiravam os cavalos de Poseidon Ă Dine, com os freios aprumados] (Paus.VIII,7,2). Outro testemunho, estĂĄ em Apolodoro (I,60). 168 NĂŁo caberia a longa discussĂŁo sobre a identidade entre Egeu e Poseidon. A dupla genealogia nĂŁo era tĂŁo incomum entre os herĂłis, tem-na tambĂ©m HĂ©racles.
114
pois Cipris quis que isso acontecesse, saciando seu coração. (...) (vv.1325-8)
A lenda de HipĂłlito Ă© muita antiga, e Ă© possĂvel que a participação de
Poseidon no enredo tivesse sido consideravelmente mais acentuada, e que dela
tenha restado essa frase de Hipólito, que encerra em si a intenção de um
perdĂŁo que acabaria sendo concedido, embora inĂștil.
O tratado Da doença sagrada denuncia que os charlatães tem esse deus
por epĂcrise de sons mais agudos e fortes, como o relinchar de cavalos: #Hn deV
ojxuvteron kaiV eujtonwvteron fqevgghtai, i@ppw/ eijkavzousi, kaiV fasiV
Poseidw~na ai!tion ei^nai [se emitem sons mais agudos e fortes, parecem
cavalos, e eles dizem ser Poseidon a causa] (4Jones). Mais uma vez o deus
responsabilizado Ă© o mais distante do centro polĂtico, para o qual Poseidon
abandonara hå muito seu caråter ctÎnico, que o Hino homérico a essa deidade
sublinha (vv.2 e 5), atribuindo-lhe tanto o poder sobre a terra quanto sobre o
mar:
jAmfiV Poseidavwna, qeoVn mevgan, a!rcom j ajeivdein, gaivhÏ kinhth~ra kaiV ajtrugetoio qalavsshÏ, povntion, o@Ï q j jElikw~na kaiV eujreivaÏ e!cei AijgavÏ: dicqav toi, jEnnosivgaie, qeoiV timhVn ejdavsanto, i@ppwn te dmhth~r j e!menai swth~ra te nhw~n.
Cai~re, Poseivdaon gaihvoce, kuanocai~ta, kaiV , mavkar, eujmenevÏ h^tor e!cwn, plwvousin a!rhge.
Começamos a cantar Poseidon, grande deus, movedor da Terra e do mar estĂ©ril, marĂtimo, ele que domina o Ălicon e a vasta Eges: concederam-te os deuses a dupla honra, abalador da Terra, a de ser domador de cavalos e salvador das naus.
115
Salve, ó Poseidon que portas169 a Terra, que tens escura cabeleira, e, bem-aventurado, vem, com o coração benfazejo, socorrer os que navegam.
Esse pequeno hino, de estrutura muito simples, apresenta algumas
particularidades que interessam especialmente a esse estudo. O que se nota no
hino Ă©, como lembra Puech, estabelecedor desse texto para a editora Les
Belles Lettres, a aquisição do domĂnio marĂtimo pelo deus. Trata-se do
desfecho da mudança de atribuição do deus que lemos na IlĂada (XV,187-99),
quando nos Ă© narrada pelo prĂłprio Poseidon a partição sorteada dos domĂnios
entre Zeus, Hades e ele prĂłprio, que recebeu o mar como morada. A terra
seria domĂnio comum170. No Hino a Poseidon, integralmente apresentado e
traduzido acima, Ă© significativo que as referĂȘncias Ă terra apareçam
exatamente na mesma quantidade em que ocorrem as referĂȘncias ao mar, a
saber, quatro vezes cada uma. Os epĂtetos, contudo, gaihvocoÏ,
kuanocaivthÏ171 e ejnnosivgaioÏ, refletem a relação de Poseidon com a
terra172.
A associação que o tratado Da doença sagrada faz entre Poseidon e o
cavalo, para ainda mais uma vez aplicar a teoria de Veyne, vulneram o
estatuto mitolĂłgico da crença, remetendo-a a um pretĂ©rito que sempre 169 O termo gaihvocoÏ Ă© um tanto discutido entre os helenistas. Trata-se de um epĂteto de Poseidon comum sobretudo em Homero. A opiniĂŁo acerca de seu sentido em Homero varia entre âpossuidor da Terraâ e âabalador da Terraâ. Chantraine (1990:219) e Humbert (1936:217n) dizem ser essa hesitação dos prĂłprios gregos. 170 NĂŁo poderia ser de outra forma, pois os trĂȘs eram adorados como deuses ctĂŽnicos em regiĂ”es diferentes que a poesia homĂ©rica congregava. 171 Este epĂteto Ă© traduzido por Mazon como âaux crins dâazurâ (v., p.ex., Il. XV, 201). A palavra caivth, segundo elemento da composição desse vocĂĄbulo, significando crina de cavalo, Ă© recorrente em Homero, e a tĂtulo de exemplo, poder-se-ia citar as seguintes passagens da IlĂada VI, 509; XV,266; XVII,439; XIX,435; enquanto o significado de âvasta cabeleiraâ encontra-se igualmente bem representado no poema. 172 HĂĄ consenso em que a relação de Poseidon com a terra seja muito anterior a sua relação com o mar. Eliade (1978:278) lembra que Willamowitz explicara corretamente a etimologia de Poseidon (povsiÏ e za~Ï: esposo e terra), evidenciando o carĂĄter ctĂŽnico desse deus. Eliade lembra, inclusive que o povo indo-europeu que adorava Poseidon nĂŁo conhecia o mar antes de atingir a GrĂ©cia meridional.
116
fragiliza seu conteĂșdo. O Poseidon que o tratadista acusava de servir de
instrumento aos magos para âocultar-lhes a ignorĂąnciaâ nĂŁo era o dos mares,
que tinha seu domĂnio bem definido e sua dignidade teolĂłgica assegurada;
mas o Poseidon do cavalo, nume ctĂŽnico e campesino.
O tratado nĂŁo tem por fim investir contra os mavgoi, mas expor o ponto
de vista médico acerca da doença sagrada, implicando na isenção de
responsabilidade dos deuses e, consoante a idéia de Pigeaud, dos homens. As
aijtivai pretensamente kataV fuvsin sĂŁo apresentadas em pormenores. Lloyd
(1979) detém-se na arbitrariedade das aijtivai kataV fuvsin do tratado,
advertindo que elas nĂŁo representam uma informação âtecnolĂłgicaâ, uma vez
que o tratado supĂ”e a âepilepsiaâ curĂĄvel. Contudo, a rejeição das aijtivai dos
mavgoi, que para Lloyd (op.cit.,p.67 et ss.) distinguia-se da aijtiva do tratadista
apenas por dizer respeito a uma âintervenção sobrenaturalâ, tem por referente
cultural uma relação de intercùmbio com a esfera divina que a estrutura
polĂade nĂŁo mais suportava.
As explicaçÔes do fisiologismo que o tratado fornece atribuem toda a
ĂȘnfase ao papel da fuvsiÏ no corpo. O exemplo da descrição da função do
cĂ©rebro bem representa essa ĂȘnfase. O cĂ©rebro Ă© a sede do corpo, e, como
argumento em prol dessa tese, o autor do tratado alega experiĂȘncias com a
dissecação de cĂ©rebros caprinos. O capĂtulo terceiro (LittrĂ©) do tratado se
inicia com a assertiva: ai!tioÏ oJ ejgkevfaloÏ touvtou tou~ pavqeoÏ, w@sper
kaiV tw~n a!llwn noushmavtwn tw~n megivstwn [o cérebro é o causador dessa
afecção, assim como das outras doenças gravĂssimas]. O cĂ©rebro como
ai!tioÏ da doença sagrada redimensiona â e, mais exatamente, estende â o
conceito que esse termo expressa. O cĂ©rebro Ă© ai!tioÏ porque Ă© a sede da
consciĂȘnia; mas a consciĂȘncia nĂŁo estĂĄ nele. O cĂ©rebro Ă© a sede da
inteligĂȘncia, mas apenas porque a interpreta: fhmiV toVVn ejgkevfalon ei^nai
117
toVn eJrmhneuvonta thVn xuvnesin [afirmo que o cérebro é o interpretador da
inteligĂȘncia] (17LittrĂ©)173.
HĂ©cate e os herĂłis tĂȘm uma relação evidente e direta como o mundo da
magia. Suas numerosas apariçÔes no canto III dos Argonautas de ApolÎnio174
apontam claramente essa relação. No tratado Da doença sagrada, Hécate é a
epĂcrese divina dos mavgoi de todos os sintomas que o mĂ©dico tratadista atribui
ao cĂ©rebro. O cĂ©rebro nĂŁo Ă© o ai!tioÏ da doença por produzir a substĂąncia de
sua origem nem por ter uma atividade que provoque essa mazela. O cérebro é
apenas o lugar que realmente adoece, expandindo o mal para o resto do
corpo, como um lĂder que repassa algo aos comandados. A substĂąncia do
conhecimento, que preenche os espaços do cérebro que a difunde pelo corpo é
o ar (17Littré).
Pigeaud (1987:58) mostra como o tratado Da doença sagrada pretende
resolver um dos maiores problemas da histĂłria do pensamento sobre a
loucura: a relação entre o conhecimento, as paixÔes e a moralidade. Segundo
o helenista, o tratado, que visa a desculpabilizar o homem pela doença
sagrada, tende a objetivar a moral.
O conhecimento e sua intelecção tĂȘm, para o mĂ©dico tradista, uma
existĂȘncia extra-corpĂłrea e extra-humana, no ar, em um elemento da natureza.
O ar traz a xuvnesiÏ ao cĂ©rebro, e essa xuvnesiÏ torna-se a matĂ©ria prima da
frovnhsiÏ e da gnwvmh:
oJkovtan gaVr spavsh/ toV pneu~ma w@nqrwpoÏ ejÏ eJwutoVn, ejÏ toVn ejgkevfalon prw~ton ajfiknevetai, kaiV ou@twÏ ejÏ toV loipoVn sw~ma skivdnatai oJ ajnhVr, katalipwVn ejn tw/~ ejgkefavlw/ eJwutou~ thVn ajkmhVn kaiV o@ ti a#n e!h/ frovnimovn te kaiV gnwvmhn e!con.
173 Em 16LittrĂ© hĂĄ uma assertiva equivalente: ou%toÏ [oJ ejgkevfaloÏ] h%mi~n ejsti tw~n ajpoV tou~ hjevroÏ ginomevnwn eJrmeneuvÏ [ele (i.e., o cĂ©rebro) Ă© o intĂ©rprete das ocorrĂȘncias oriundas do ar]. 174 vv.200, 242, 467, 861, 1035, por exemplo. HĂ©cate Ă© uma divindade absolutamente ligada ao mundo da magia, e alguns autores helenĂsticos, como ApolĂŽnio de Rodes, atribuem-lhe a primazia nesse domĂnio.
118
quando pois o homem inspira, este (i.e., o ar) chega primeiramente ao cĂ©rebro, e assim o ar se dispersa pelo resto do corpo, deixando no cĂ©rebro sua parte apogĂstica e o que houver de concernente Ă consciĂȘncia (frovnimon) e possuir de conhecimento (gnwvmh). (16LittrĂ©)
A frovvnhsiÏ e a gnwvmh sĂŁo, portanto, produçÔes do cĂ©rebro a
partir do que hĂĄ de inteligĂȘncia (xuvnesiÏ) no ar. Pigeaud (1987:56) escreveu
dois subcapĂtulos sobre o papel do ar no tratado Da doença sagrada, um
intitulado âo ar moveâ, e outro, âo ar conheceâ. Neste segundo, Pigeaud
desenvolve sua teoria acerca do ar no tratado Da doença sagrada a partir da
idĂ©ia incontestĂĄvel de que os trĂȘs termos (suvnesiÏ, frovnhsiÏ e gnwvmh)
dizem respeito tanto ao conhecimento, quanto ao cérebro. Talvez para reforçar
sua tese, tenha lhe ocorrido traduzir suvnesiÏ por âconhecimentoâ. Por essa
razĂŁo, creio convir um exame do uso deste termo. Como um deverbal de
sunivhmi, suvnesiÏ traz consigo a carga semĂąntica desse verbo. Sunivhmi Ă©
encontrado, por exemplo, na prosa jĂŽnica de HerĂłdoto (IV, 114) com o
significado de âinteligirâ. No excerto de HerĂłdoto escolhido como exemplo â
muito especialmente por tratar-se de prosa jĂŽnica â, o verbo sunivhmi refere-
se a inteligibilidade lingĂŒistica:
ThVn deV fwnhVn thVn meVn tw~n gunaikw~n oiJ a!ndreÏ oujk ejdunevato maqei~n, thVn deV tw~n ajndrw~n aiJ gunai~keÏ sunevlabon. jEpeiV deV sunh~kan ajllhvlwn, e!lexan proVÏ taVÏ jAmazovnaÏ tavde oiJ a!ndreÏ (...)
Os homens nĂŁo podiam aprender a lĂngua das mulheres, mas as mulheres compreendiam a dos homens. Quando se entenderam (sunh~kan) mutuamente, os homens disseram isto Ă s Amazonas: (...)
119
Outro trecho de HerĂłdoto (III,46) poderia ser tomado como exemplo
dessa caracterĂstica semĂąntica do verbo sunivhmi:
jEpeivte deV oiJ ejxelasqevnteÏ Samivwn uJpoV PolukravteoÏ ajpivkonto ejÏ thVn Spavrthn, katastavnteÏ ejpiV touVÏ ejpiV touVÏ a!rcontaÏ e!legon pollaV oi%a kavrta deovmenoi. OiJ deV sfi th~/ prwvth/ katastavnteÏ a!llo meVn prw~ta lecqevnta ejpilelhqevnai, taV deV u@stera ouj sunievnai Quando aqueles que, dentre os sĂąmios, foram perseguidos por PolĂcrates chegaram a Esparta, tendo se colocado diante dos arcontes, diziam as muitas coisas que desejavam ardorosamente. Os arcontes, na primeira apresentação, responderam que, tendo eles se esquecido da parte precedente do discurso, nĂŁo poderiam compreender (sunivenai) a seguinte.
Esse Ă© um significado recorrente desse verbo, e Ă© essa sua postura
semĂąntica que justifica a minha tradução de suvnesiÏ por âinteligĂȘnciaâ. O
verbo sunivhmi vai um pouco alĂ©m do puro âconhecerâ como uma captação (ou
retenção) de um saber ou de uma informação; ele abarca também a idéia da
elaboração deste saber. Motivado pela ocorrĂȘncia do sufixo -siÏ, sabidamente
indicador da ação verbal, procurei ver no termo suvnesiÏ (na edição de LittrĂ©,
xuvnesiÏ175) uma duvnamiÏ, ou uma propriedade, do ar.
Para Pigeaud, o âar cienteâ do tratado estĂĄ inscrito no projeto de
desculpabilização dos deuses e dos homens. Escreve o helenista que, para o
autor do tratado, âĂ© preciso âobjetivarâ a moral, reduzi-la Ă percepçãoâ
175 LittrĂ© tem uma tendĂȘncia a padronizar o dialeto dos tratados. Sobre esse tema, ver CAIRUS (1994), pp. 21-2.
120
(1987:58), e o ar Ă© central na interpretação anti-divina da doença. O novmoÏ, o
kairovÏ176 e o que Ă© Ăștil tornam-se fatores secundĂĄrios diante do profundo
objetivismo que encontra sua expressĂŁo paroxĂstica na atribuição da suvnesiÏ
(traduzida por Pigeaud, lembro mais uma vez, por âconhecimentoâ) ao ar.
Segundo Pigeaud, âo conhecimento Ă© objetivo conquanto feito de arâ (loc.cit).
Trata-se, portanto, no dizer de Pigeaud, de vincular a saĂșde fĂsica, moral e
mental às condiçÔes de possibilidade do acesso do ar ao cérebro.
O cérebro é, de fato, esse espaço a ser preenchido. E, se de um lado
tem-se o ar como suvnesiÏ; por outro, tĂȘm-se a bile e o fleuma como
ostentadores da duvnamiÏ da maniva. Duas substĂąncias, duas manifestaçÔes
distintas da maniva.
O capĂtulo quinze (LittrĂ©) do tratado esclarece:
OiJ meVn gaVr uJpoV tou~ flevgmatoÏ mainovmenoi h@sucoiv tev eijsi kaiV ouj bow~sin oujdeV qorubevousin, oiJ deV uJpoV colh~Ï kekravktai kaiV kakou~rgoi kaiV oujk ajtremai~oi, ajll j aijeiv ti a!kairon drw~nteÏ. Os que enlouquecem devido ao fleuma sĂŁo pacĂficos e nĂŁo gritam, nem bramem. Mas os que enlouquecem devido Ă bile costumam berrar, e tornam-se furiosos e inquietos, sempre fazendo algo inorpotuno.
(MS, 15LittrĂ©) Esse capĂtulo, conforme lembra Pigeaud (1987:59), esteve sob suspeita
de interpolaçÔes. Tal suspeita repousa sobre o fato de o tema ter se desviado
da âepilepsiaâ, e de o fleuma, que agora quase causa um torpor, ter sido
aventado como a origem de espasmos:
176 Observe-se o capĂtulo 14LittrĂ© do MS, onde se revela a face da sintomatologia que tem o cĂ©rebro por origem e que Ă© contrĂĄria ao novmoÏ: plavnoi a!kairoi (erros inoportunos), frontivdeÏ oujc iJkneuvmenai (preocupaçÔes inconvenientes), ajgnwsivh tw~n kaqestewvtwn (ignorĂąncia sobre o estabelecido), ajhqivh (contrariedade ao costume) e ajpeirivh (inexperiĂȘncia).
121
JOkovtan gaVr ejpikatevlqh/ toV flevgma yucroVn ejpiV toVn pleuvmona h# ejpiV thVn kardivhn, ajpoyuvcetai toV ai%ma: aiJ deV flevbeÏ proVÏ bivhn yucovmenai proVÏ tw/~ pleuvmoni kaiV th/~ kardivh/ phdw~si, kaiV hJ kardivh pavlletai, w@ste uJpoV th~Ï ajnavgkhÏ tauvthÏ taV a@sqmata ejpipivptein kaiV thVn ojrqopnoivhn. Quando o fleuma frio desce sobre o pulmĂŁo ou sobre o coração, o sangue se esfria; as veias violentamente esfriadas pulsam contra o pulmĂŁo e o coração. O coração palpita, de sorte a sobrevirem necessariamente os acessos de asma e a ortopnĂ©ia; pois o indivĂduo nĂŁo recebe a quantidade de fĂŽlego que deseja, atĂ© que o fluxo do fleuma seja controlado e derramado, aquecido, pelas veias.
(MS,6Littré)
Pigeaud (loc.cit.) argumenta que nĂŁo se deve deixar de considerar que o
capĂtulo 15LittrĂ© trata de uma enfermidade do cĂ©rebro, e nĂŁo das veias, e que,
por isso, naquela passagem, o fleuma diz respeito Ă consciĂȘncia, e nĂŁo ao
movimento. Poder-se-ia ainda acrescentar que o Corpus hippocraticum Ă©
abundante nesse tipo de digressĂŁo que tem por mote uma epĂcrise ou um
sintoma.
HĂĄ uma maniva mansa e uma exaltada, uma fleumĂĄtica e uma biliosa.
Pode parecer que não haja entre essa idéia e a doença sagrada qualquer
relação â e, por isso mesmo, falou-se em interpolação â, mas parece-me
haver alguns pontos a serem considerados para além de uma associação direta
entre maniva e essa doença.
Para estudar as relaçÔes entre a maniva e a doença sagrada, serå preciso
voltar Ă reflexĂŁo acerca do novmoÏ que consta do segundo capĂtulo desta tese, e
considerar que a loucura reserva estreitos laços com a moralidade.
122
Primeiramente Ă© necessĂĄrio reconhecer que, distanciando-se do mago, o
mĂ©dico assume riscos, mas professa a idĂ©ia de que a natureza Ă© cogniscĂvel. A
doença é, dentro desse universo a conhecer, um acidente e, portanto,
desprovida de um sentido moral, como um mivasma no texto de cunho literĂĄrio.
EntĂŁo, o novmoÏ, que pode sempre estar entre os ai!tia da doença, nĂŁo pode se
relacionar com a sua manifestação. A manifestação mórbida é do universo da
fuvsiÏ, porque nĂŁo comporta nenhum grau de moralidade.
Para Pigeaud (1987:61), o indivĂduo que pressente o ataque da doença
foge por medo da doença, e não por vergonha, como diz o tratado (12Littré).
De fato, o autor do Da doença sagrada logo depois de afirmar que o
indivĂduo foge por vergonha do acesso (uJp jajscuvnhÏ tou~ pavqeoÏ) e nĂŁo por
medo da divindade (kaiV oujc uJpoV fovbou tou~ daimonivou), explica que as
crianças fogem por medo da violĂȘncia do ataque, e nĂŁo por vergonha,
âporque, sendo crianças, ainda nĂŁo conhecem a vergonhaâ (toV gaVr
aijscuvnesqai pai~deÏ o!nteÏ ou!pw ginwvskousin). Pigeaud (loc.cit.) nota,
nesse passo, uma tendĂȘncia Ă completa amoralização do ataque patolĂłgico:
para comprovar que o adulto fugiria por medo do vigor do ataque convulsivo,
e nĂŁo por vergonha, Pigeaud argumenta que os adultos agem como as
crianças, que fogem para as suas mães por medo do ataque, pois, para repetir
as palavras do tratado, elas nĂŁo conhecem a vergonha.
Todavia, Ă© difĂcil evitar a expressĂŁo textual. A atitude do adulto difere
da tendĂȘncia infantil. NĂŁo me parece haver impedimento para que o adulto
fuja por vergonha e a criança por medo, ainda que a fuga pareça exigir uma
mesma causa em ambos, como prefere considerar Pigeaud.
No tratado Ares, ĂĄguas e lugares, no capĂtulo que trata dos
macrocĂ©falos (14LittrĂ©), novmoÏ e fuvsiÏ unem-se em torno do valor de uma
espĂ©cie de ânobreza especĂfica de uma estirpeâ expressa pelo adjetivo
gennai~oÏ: TouVÏ gaVr makrotavthn e!contaÏ thVn kefalhVn gennaiotavtouÏ
123
hJgevontai [consideram mais nobres (gennaiovtatoi) os que possuem a
cabeça mais dilatada].
à certo que a noção de vergonha impÔe-se como fundamental para a
compreensĂŁo da distinção entre novmoÏ e fuvsiÏ no tratado Da doença sagrada.
O novmoÏ de que falam os passos 14LittrĂ© do Ares, ĂĄguas e lugares e o
12Littré do Da doença sagrada produz o que Canquilhem (1990) chama de
ânormaâ.
Conforme lembra Claude Debru (1998:46), âCanguilhem sublinha que
uma norma nĂŁo Ă© um fato, ainda que estatĂstico, mas um valorâ. Essa
interpretação ilumina de modo especial o final do comentårio sobre os
macrocéfalos no Ares, åguas e lugares, em que o autor testemunha que o povo
em questĂŁo nĂŁo ostenta mais cabeças tĂŁo volumosas como antes, e onde se lĂȘ:
Nu~n d j oJmoivwÏ oujkevti givnontai h%/ provteron: oJ gaVr novmoÏ oujkevti
ijscuvei diaV thVn oJmilivhn tw~n ajnqrwvpwn [agora, isso nĂŁo ocorre mais
como antes, pois o novmoÏ jĂĄ nĂŁo vigora mais por causa da relação com os
homens] (AAL, 14LittrĂ©). A norma-valor engendra o novmoÏ, que, por sua vez,
gera uma fuvsiÏ somĂĄtica. Essa fuvsiÏ somĂĄtica, conquanto hereditĂĄria, nutre-
se desse valor, e, na falta dele, não somente perde o sentido, como também se
enfraquece e desaparece.
A maniva situa-se no confronto entre fuvsiÏ e novmoÏ. A sua fuvsiÏ nĂŁo
Ă© capaz de interagir com o novmoÏ, senĂŁo eventualmente pela sua negação. A
maniva, que como lembra Pigeaud (1987:63), Ă© tambĂ©m a face psiquĂca da
doença sagrada, concerne a uma fuvsiÏ que, por sua relação com o novmoÏ,
conduz o doente para além da moral. A maniva, na compreensão do Corpus
hippocraticum, Ă© a tomada mais completa do psiquismo pela fuvsiÏ. A
contingĂȘncia humoral produz um manikoVn h^qoÏ, uma conduta que, uma vez
fundada sobre a fuvsiÏ, caracteriza-se por negar o novmoÏ e exigir a
intervenção da ijatrikhV tevcnh. Com a maniva estabelecida, a fuvsiÏ passa,
124
então, a ocupar o lugar central na discussão acerca da doença sagrada. O
fleuma ou a bile, que distinguem, pela aijtiva, os dois h!qh da maniva,
representam também o rompimento profundo entre a maniva da medicina e a
maniva do contexto literårio, e mais especificamente, da tragédia.
A fuvsiÏ Ă©, portanto, para a nosologia hipocrĂĄtica, a resposta ao projeto
poĂ©tico de um manikoVÏ novmoÏ177, incorporado pela figura do homem e!nqeoÏ,
tal como as bacantes ou o poeta tomado pelas musas.
A fuvsiÏ Ă© tambĂ©m, para a medicina hipocrĂĄtica, uma fronteira que
demarca os limites da ação da tevcnh, e cria uma distinção entre a tevcnh e a
gnwvmh.
Assim, no tratado Da arte, que foi datado por Jouanna (1992:532) como
do Ășltimo quartel do sĂ©culo Va.C., o autor inicia o texto argumentando que a
medicina é uma tevcnh. Para tanto, ele oferece uma definição de tevcnh que é
considerada uma das melhores glosas do termo na Grécia clåssica.
Trata-se de um texto de cunho filosĂłfico que se inicia com uma defesa
da equivalĂȘncia entre os oJratav e os ei!dh. Para o seu autor, a tevcnh Ă© um
ei^doÏ. O uso prĂ©-platĂŽnico do termo ei^doÏ alude, de fato, ao aspecto visĂvel,
prĂłximo que ainda andava de sua origem no verbo ei!dw. O ei^doÏ Ă© onde Ă©
possĂvel a observação, e, portanto, consoante ao pensar hipocrĂĄtico, constitui
a base do real. Por isso, LittrĂ© traduz o termo por ârealidadeâ. Eu nĂŁo iria tĂŁo
longe, mas não me parece ser essa uma intervenção exagerada do filólogo
positivista.
O objetivo dessa primeira parte do tratado Ă© livrar a tevcnh das mĂŁos
dos sofistas, argumentando que, sendo a tevcnh um ei^doÏ, Ă© absurdo
177 A expressĂŁo manikoVÏ novmoÏ Ă© a minha sugestĂŁo para exprimir a sistematização de um manikoVn h^qoÏ ao qual se referem tantos autores, como, por exemplo AristĂłteles na Arte poĂ©tica (1455a), onde afirma que eujfuou~Ï hJ poihtikhv ejstin h# manikou~: touvtwn gaVr oiJ meVn eu!plastoi oiJ deV ejkstatikoiv eijsin [a criação poĂ©tica provĂ©m daquele (personagem) que Ă© de boa constiuição (eujfuhvÏ) e do manikovÏ, pois os primeiros modelam-se bem, e os outros extrapolam a si prĂłprios]. O exemplo de AristĂłteles Ă© a maniva de Orestes, que tambĂ©m Ă© sua salvação. A idĂ©ia de uma maniva producente e de seu h^qoÏ generalizĂĄvel levou-me a formular a hipĂłtese do manikoVÏ novmoÏ.
125
considerĂĄ-la apenas um nome (o!noma), posto que um nome nĂŁo pode produzir
um ei^doÏ. Essa reflexĂŁo sobre o conceito expresso por ei^doÏ serĂĄ ratificada
por PlatĂŁo (GĂłrgias, 501a)178, que mostra que a tevcnh implica na consciĂȘncia
das aijtivai, razĂŁo pela qual a culinĂĄria nĂŁo pode ser uma tevcnh, mas somente
uma ejmpeiriva:
SwkravthÏ â (....) !Elegon dev pou, o@ti hJ meVn ojyopoiikhV ou! moi dokei~ tevcnh ei^nai ajll j ejmpeiriva, hJ d j ijatrikhv, levgwn o@ti hJ meVn touvtou ou% qerapeuvei kaiV thVn fuvsin e!skeptai kaiV thVn aijtivan w%n pravttei, kaiV lovgon e!cei touvtwn eJkavstou dou~nai, hJ ijatrikhv: hJ d j eJtevra th~Ï hJdonh~Ï, proVÏ h$n hJ qerapeiva aujth/~ ejstin a@pasa, komidh/~ ajtevcnwÏ ejp j aujthVn e!rcetai, ou!te ti thVn fuvsin skeyamevnh th~Ï hJdonh~Ï ou!te thVn aijtivan, ajlovgwÏ te pantavpasin, wJÏ e!poÏ ejpei~n, oujdeVn diariqmhsamevnh, tribh/~ kaiV ejmpeiriva/ mnhvmh movnon sw/zomenh tou~ eijwqotoÏ givgnesqai, w%/ dhV kaiV porivzetai taVÏ hJdonavÏ. SĂłcrates â (....) Eu dizia ainda hĂĄ pouco que a culinĂĄria nĂŁo me parece ser uma tevcnh, mas uma ejmperiva; ao contrĂĄrio da medicina, que observa a natureza daquele a quem dedica seus cuidados e a causa (aijtiva) das suas açÔes; assim, pode atribuir razĂŁo (lovgoÏ) a cada uma delas. A culinĂĄria, por sua vez, dedicada ao prazer, ao qual dedica todo o seu cuidado, cumpre-se ajtevcnwÏ179; sem haver observado a natureza do prazer, nem a sua causa (aijtiva), completamente ajlovgwÏ180, e, por assim dizer, sem nada calcular, conservando, somente pela tribhv e pela ejmpeiriva, a memĂłria daquilo que Ă©
178 O fato do GĂłrgias, ao contrĂĄrio do Fedro (que serĂĄ citado a seguir), ser considerado um diĂĄlogo da juventude de PlatĂŁo, parece ser bem oportuno para esse estudo; pois, nesse excerto do GĂłrgias, hĂĄ aspectos que parecem ser premissas do serĂĄ dito no trecho do Fedro citado mais abaixo. A diferença de datas que a filologia e a filosofia lhes atribui, nesse caso, oferecem uma relação de complementaridade, mais do que de divergĂȘncias oriundas do percurso filosĂłfico que os separa. 179i.e., sem qualquer tevcnh. 180 i.e., sem qualquer lovgoÏ.
126
habitual, e atravĂ©s disso, procura os prazeres. (PLATĂO, GĂłrgias, 501 a)
Por esse excerto de PlatĂŁo, pode-se inferir que, para o FilĂłsofo, a
tevcnh Ă© caracterizada pela observação da fuvsiÏ do objeto e da aijtiva de seu
h^qoÏ, e ainda que a tevcnh atribui lovgoÏ Ă s açÔes do objeto. A atribuição de
um lovgoÏ Ă© o que vai afastar a medicina do empirismo que Cornford (1981)
queria ver filiado ao Corpus hippocraticum. Se a medicina hipocrĂĄtica nĂŁo era
cientĂfica, tambĂ©m nĂŁo era empirista, conquanto se preocupava examinar as
aijtivai e inseri-las em um lovgoÏ. Para o autor do Da doença sagrada nĂŁo era
suficiente, por exemplo, saber, através da sinples relação entre causa e efeito,
como agir diante do paciente convulsivo, mas era-lhe necessĂĄrio determinar as
razÔes pelas quais o ataque se dava.
A oposição que se faz claramente nesse trecho do Górgias då-se entre
os conceitos de tevcnh, por um lado, e de ejmpeiriva e de tribhv, por outro.
Inicialmente pode-se dizer que estas Ășltimas, ao contrĂĄrio da primeira, nĂŁo
atribuem lovgoÏ Ă ação do objeto. Tanto a ejmpeiriva, quanto a tribhv, tĂȘm por
origem a memória do håbito, e não a observação da natureza e da ação do seu
objeto. A opção pela culinåria como exemplo parece-me muito cuidadosa,
pois o carĂĄter subjetivo do prazer acentua a dificuldade â ou mesmo a
impossibilidade â de inserção dessa prĂĄtica no domĂnio do lovgoÏ.
No Fedro (270b), PlatĂŁo opĂ”e mais uma vez a tevcnh Ă ejmpeiriva e Ă
tribhv181, ao fazer referĂȘncia Ă quilo a que ele chama de mĂ©todo:
SwkravthÏ â JO aujtoVÏ pou trovpoÏ tevcnhÏ ijatrikh~Ï o@sper kaiV rJhtorikh~Ï. Fai~droÏ â Pw~Ï dhV;
181 A dissemelhança entre os conceitos de ejmpeiriva e tribhv parece consistir no fato de o primeiro termo referir-se a aquisição de experiĂȘncia, enquanto o segundo expressa a idĂ©ia de âexperiĂȘncia adquiridaâ, ou seja, algo que jĂĄ foi incorporado ao saber atravĂ©s da ejmpeiriva.
127
Swk. â jEn ajmfotevraiÏ dei~ dielevsqai fuvsin, swvmatoÏ meVn ejn th~/ eJtevra/, yuch~Ï deV ejn th/~ ejtevra/, eij mevlleiÏ mhV tribh/~ movnon kaiV ejmpeiriva/, ajllaV tevcnh,/ tw/~ meVn, favrmaka kaiV trofhVn prosfevrwn, uJgiveian kaiV rJwvmhn ejmpoihvsein, th/~ dev, lovgouÏ te kaiV ejpithdeuvseiÏ nomivmouÏ, peiqwV h$n a#n bouvlh/ kaiV ajrethVn paradwvsein.
SĂłcrates â NĂŁo Ă© a mesma maneira de agir a da tevcnh ijatrikhv e a da tevcnh retĂłrica? Fedro â Como, entĂŁo? SĂłcr. â Em ambas deve-se reconhecer a fuvsiÏ; numa, a do corpo, noutra, a da yuchv. Deves, nĂŁo somente pela tribhv ou pela ejmpeiriva, mas pela tevcnh, engendrar, no corpo, a saĂșde e a força, ministrando remĂ©dios e alimento, e na yuchv, os lovgoi e as prĂĄticas costumeiras, para atribuir-lhes a força persuasiva (peiqwv) e a ajrethv que desejes. (PLATĂO, Fedro, 270b)
Esse excerto de PlatĂŁo traz Ă discussĂŁo sobre a tevcnh duas novas
questÔes, uma acerca dos objetivos da tevcnh e outra relativa à relação entre
medicina e retĂłrica.
Quanto ao primeiro problema, o dos objetivos da tevcnh, nota-se, na
ijatrikhV tevcnh, um acentuado pragmatismo que visa Ă saĂșde e Ă força, tendo
por meios os remédios e os alimentos. Na rJhtorikhV tevcnh, o objetivo é
incutir na yuchv os lovgoi e as prĂĄticas costumeiras (ejpithdeuvseiÏ novmimoi).
O conceito de tevcnh, que no GĂłrgias tinha por fim atribuir o lovgoÏ aos seus
objetos, parece ganhar, no Fedro, contornos mais pragmĂĄticos, referindo-se
diretamente aos seus resultados; mas Ă© a mevqodoÏ que vai tornar a tevcnh
digna de lovgoÏ (Fedro, 270c182).
182 Esse excerto encontra-se citado na pĂĄgina 13 desta tese.
128
Sobre a relação entre a medicina e a retórica, seria preciso notar que
SĂłcrates lega a resposta Ă prĂłpria medicina (Fedro, ibidem), ao lembrar que,
segundo HipĂłcrates, nĂŁo Ă© possĂvel conhecer a natureza da alma de uma forma
digna de lovgoÏ, sem que se conheça a natureza do todo (tou~ o@lou). As
discussÔes acerca do significado contextual da palavra o@lon nesse passo de
PlatĂŁo gerou vĂĄrios embates entre os especialistas a partir de LittrĂ© (LITTRĂ,
1839:295-312); DIĂS, 1972[1926]:30-7), que tinham em vista a polĂȘmica
acerca da autoria dos tratados Da natureza do homem e Da medicina antiga.
Contudo, a observação do o@lon refere-se mais Ă mevqodoÏ do que Ă tevcnh. Ă,
portanto, a medicina â e nĂŁo a retĂłrica â a tevcnh Ă qual corresponde um
método.
Depois de discorrer sobre o conceito de tevcnh, o autor do tratado Da
arte, no seu terceiro capĂtulo, passa ao tema especĂfico do tratado: a medicina.
O objetivo agora Ă© mostrar (ajpovdeixin poihvsomai) como a medicina Ă© uma
tevcnh. A sua conclusĂŁo Ă© de que a medicina Ă© uma tevcnh porque ela pode
obter resultados e, sobretudo, porque conhece os seus limites.
à definição de tevcnh que lemos no Fedro, o tratado Da arte,
acrescenta, portanto, o elemento a que se pode chamar de âconsciĂȘncia do
limiteâ. De fato, o tratado (3LittrĂ©) Ă© claro sobre isso, pois afirma que nĂŁo se
deve ejgceirevein toi~si kekrathmevnoisin uJpoV tw~n noshmavtwn, eijdovtaÏ
o@ti tau~ta ouj duvnatai ijhtrikhv [pĂŽr as mĂŁos naqueles que estĂŁo
totalmente dominados pelas doenças, uma vez sabedores de que a medicina
nada pode quanto a elas].
O tratadista, em seguida, combaterĂĄ a principal tese contrĂĄria Ă
atribuição do tĂtulo de tevcnh Ă medicina: a cura Ă© casual. Essa idĂ©ia sofista
conta com trĂȘs sustentĂĄculos: (1ÂȘ) HĂĄ doentes que se recuperam sem a ajuda
do mĂ©dico; (2ÂȘ) alguns doentes morrem depois de serem atendidos por
mĂ©dicos, e (3ÂȘ) Os mĂ©dicos se recusam a tratar de alguns casos, alegando que
o paciente estĂĄ desenganado.
129
O autor do Da arte responde às supostas acusaçÔes dos detratores da
ijatrikhV tevcnh com os seguintes argumentos: primeiramente, a tuvch tem um
poder muito limitado. Ele nĂŁo nega a influĂȘncia da tuvch, mas mostra como
essa influĂȘncia Ă© limitada, lembrando os sucessos dos bons tratamentos e os
fracassos dos tratamentos equivocados. Quanto ao fato de alguns doentes
curarem-se sem o auxĂlio do mĂ©dico, o tratadista explica que eles podem
casualmente estar corretos em algum procedimento terapĂȘutico, mas a tevcnh
consiste em discernir entre o procedimento correto e o errado. Essa Ă©, de
resto, uma prova de que a medicina Ă© uma tevcnh no raciocĂnio do autor.
Sobre os pacientes que morrem mesmo quando atendidos por médicos,
o autor responsabiliza a indocilidade183 do doente, eximindo o médico de
qualquer contribuição para o Ăłbito. HĂĄ, nesse capĂtulo, um admirĂĄvel, embora
breve, estudo sobre a psicologia do paciente. O sofrimento a que estĂĄ
submetido pode fazer com que ele não siga as recomendaçÔes do médico, ou
as siga mal. O que, pergunta o autor, Ă© mais verossimilhante (eijkovÏ): que o
doente, nesse estado, não seguirå ou seguirå mal as recomendaçÔes do
médico, ou que o médico, como pretendem os detratores, tenha feito mås
prescriçÔes? (7Littré)
Quanto à recusa do médico a tratar dos pacientes desenganados, o autor
nĂŁo a nega, mas lembra que a tevcnh Ă© limitada pela fuvsiÏ. Quem desconhece
esse limite é ignorante, e não por causa da falta de instrução (ajmaqiva), mas
devido mesmo Ă maniva.
183 O impasse gerado pela indocilidadedo paciente aparece tambĂ©m na obra de PlatĂŁo, onde a sofĂstica, que Ă© combatida pelo Da arte, surge como uma solução para o problema que o tratado apresenta. PlatĂŁo mostra-nos GĂłrgias (GĂłrgias, 456b) dizendo-se ser capaz de vencer, pela âretĂłricaâ, a incdocilidade do paciente: pollavkiÏ gaVr h!dh e!gwge metaV tou~ ajdelfou~ kaiV metaV tw~n a!llwn ijatrw~~n eijselqwVn parav tina tw~n kamnovntwn oujciV ejqevlonta h# favrmakon piei~n h# kau~sai parascei~n tw/~ ijatrw/, ouj dunamevnou tou~ ijatrou~ pei~sai, ejgwV e!peisa oujk a!llh/ tevcnh h# th/ ~ rJhtorikh~/ [JĂĄ muitas vezes eu mesmo fui com meu irmĂŁo e com outros mĂ©dicos a casa de doentes que nĂŁo queriam se submeter a tomar um remĂ©dio, ou sofrer incisĂ”es, ou ser queimados. Quando o mĂ©dico nĂŁo podia persuadi-lo, eu prĂłprio o persuadia apenas com a retĂłrica, sem uso de outra tevcnh].
130
Eis um recurso retórico conhecido: desabilitar o pré-conhecimento
como requisito para a compreensĂŁo do argumento. NĂŁo compreender que a
natureza limita a tevcnh nĂŁo Ă© uma questĂŁo de ajmaqiva, de falta de
conhecimento, mas sim um problema de falta de raciocĂnio, portanto, um
problema de maniva. Acredito que esse tenha sido nĂŁo mais do que um bom
dispositivo retĂłrico, pois comprovadamente esse limite nĂŁo era assim tĂŁo
claro no século V, e nem seria mais tarde. Por muito tempo ainda o homem
duvidarĂĄ que a fuvsiÏ limita a tevcnh. O que me parece que estava
acontecendo naqueles tempos hipocrĂĄticos era a criação de uma consciĂȘncia
de que esse limite deveria ser levado em consideração na condução polĂtica da
cidade e, por conseguinte, na administração privada do cidadão.
A concepção da tevcnh como ei^doÏ comporta um problema relativo ao
empirismo que a idéia comporta. O problema consiste na incompatibilidade
entre a acepção hipocrĂĄtica de ei^doÏ e a necessidade de se conhecer as
doenças internas, que, portanto nĂŁo eram visĂveis, ou, nas palavras do
tratadista, sĂŁo duvsopta. VĂȘ-las Ă©, de fato, difĂcil, mas nĂŁo impossĂvel. Os
noshvmata são kriteva, devem ser discernidos. E, para avaliar as doenças
internas, as que sĂŁo duvsopta, Ă© necessĂĄrio observar os sinais externos do
estado interno.
Os signos dessa semiótica médica, segundo o tratado (11Littré), podem
ser apreendidos por dois meios, pela visĂŁo e pelo tato, na medida em que
esses sinais afloram (taV ejxanqeu~nta) na superfĂcie do corpo em forma de
uma intumescĂȘncia ou de uma coloroção diferente. O tato tem a
responsabilidade de observar os seguintes traços desses signos: a consistĂȘncia,
a umidade e a temperatura. O carĂĄter de traço sĂȘmico Ă© bem definido pelo
autor: Ă© pela ausĂȘncia ou pela presença de cada uma dessas caracterĂsticas que
as doenças são o que são.
131
O autor do tratado lembra que ainda resta um problema a ser ressolvido:
o lapso entre o começo da doença e o seu diagnóstico, e as maléficas
conseqĂŒĂȘncias disso para a terapia (11LittrĂ©).
O tratado mostra que não hå doenças que não mostrem sinais; fala-se
mesmo de taV noushvmata h^sson fanerav. As doenças internas situam-se em
algumas cavidades. Essas cavidades sĂŁo cheias de ar, quando se estĂĄ sĂŁo, e, de
humor, quando se estĂĄ doente. A drenagem, se nĂŁo Ă© terapĂȘutica, ao menos
pode servir como uma prova de que um humor se encontra onde nĂŁo poderia
haver senĂŁo ar. Mas Ă© difĂcil saber onde se forma esse depĂłsito humoral
indevido antes que ele se torne consideravelmente manifesto. Por isso, o autor
do tratado esclarece uma questĂŁo de nomenclatura: a tevcnh considera essas
doenças a!dhla, em oposição às demais, que são eu!dhla.
As doenças a!dhla oferecem um desafio para o médico, cuja tevcnh estå
restrita pela fuvsiÏ do paciente. Ă necessĂĄrio que a fuvsiÏ do doente permita o
exame para um diagnĂłstico mais rĂĄpido. Mas uma fuvsiÏ que nĂŁo Ă© propĂcia
ao exame, pode retardar, mas nĂŁo impossibilitar o diagnĂłstico: o@sa gaVr thVn
tw~n ojmmavtwn o!yin ejkfeuvgei, tau~ta th/~ th~Ï gnwvmhÏ o!yei kekravthtai
[pois o que escapa da visĂŁo do olhos, Ă© capturado pela visĂŁo da gnwvmh]184.
A anamnese Ă© considerada digna de ser evitada, pois os pacientes
acabam dando mais opinião (dovxa) do que informação sobre a doença, e, se
eles soubessem tanto sobre suas doenças, não teriam ficado doentes. Então, o
recurso do mĂ©dico Ă© a gnwvmh, uma espĂ©cie de conhecimento especĂfico
gerador e tambĂ©m fruto da tevcnh. A gnwvmh consistirĂĄ em forçar a fuvsiÏ a
externalizar a doença. Quem conhece a tevcnh saberå o que fazer.
A fuvsiÏ Ă©, portanto, o limite para a tevcnh, mas pode ser forçada por
essa. A administração de alimentos e bebidas amargos capazes de fazer aflorar 184Essa idĂ©ia sobre a eficiĂȘncia da gnwvmh parece dar prosseguimento Ă hierarquia proposta por HerĂĄclito: ojfqalmoiV gaVr tw~n w!twn ajkribevsteroi mavrtureÏ [pois os olhos sĂŁo testemunhos mais fiĂ©is do que os ouvidos] (22B101a DK). A gnwvmh, para o autor do Da arte, parece ser mais
132
o fleuma, por exemplo, denotaria que aquele humor estĂĄ ocupando o lugar que
o ar ocuparia em alguma cavidade.
A tuvch, no tratado Da arte, parece estar em situação anåloga aos
deuses no Da doença sagrada. O autor diz que não a desconsidera, mas a
submete aos rigores da tevcnh:
jEgwV deV oujk ajposterevw meVn oujd j aujtoVÏ thVn tuvchn e!rgou oujdenoVÏ, hJgeu~mai deV toi~si meVn kakw~Ï qerapeuomevnoisi noushvmasi taV pollaV thVn ajtucivhn e@pesqai, toi~si deV eu^ thVn eujtucivhn. Eu mesmo nĂŁo desprovejo a tuvch de qualquer efeito (e!rgon), mas creio que geralmente a mĂĄ fortuna (ajtucivh) acompanha as doenças mal tratadas, e a boa fortuna (eujtuciva) acompanha as que sĂŁo bem tratadas.
(Da arte, 4Littré)
Pode-se entrever uma certa ironia no uso do verbo e@pomai, que tem por
significado mais usual âir depois deâ, âseguirâ. A qualidade do tratamento
precede a qualidade do evento casual. O que equivale a dizer que, se a tuvch
exerce alguma influĂȘncia no processo terapĂȘutico, isso sĂł Ă© possĂvel na
medida em que um evento casual difere de um evento espontĂąneo185 (toV
aujtovmaton), que, para o autor, nĂŁo existe ou nĂŁo pode ser considerado uma
aijtiva: toV meVn gaVr aujtovmaton oujdeVn faivnetai ejoVn ejlegcovmenon [pois a
espontaneidade não se mostra argumento186 de nada] (6Littré).
um passo que conduz a dovxa Ă ejpisthmh, para usar a cĂ©lebre imagem do diagrama de linha que encerra o sexto livro da RepĂșblica de PlatĂŁo. 185 LittrĂ© nĂŁo faz distinção muito clara entre tuvch e aujtovmatoÏ, traduzindo o primeiro por âfortuneâ e o segundo por âhasardâ. Contudo, os significados dos termos parecem-me consideravelemente distintos. 186 O particĂpio ejlegcovmenon tem por significado âreprovarâ, mas, por injunçÔes diacrĂŽnicas, adquiriu o significado de âprocurar uma provaâ, âinterrogarâ. Ă com este Ășltimo significado que o encontramos na AntĂgona (vv.434-5), na passagem em que o guarda traz AntĂgona presa e diz tĂȘ-la interrogado: kaiV taVÏ te provsqen tavÏ te nu~n hjlevgcomen pravxeiÏ [interrogamos sobre suas
133
Contudo, a tuvch, ao contrårio dos deuses, não pressupÔe a idéia de
responsabilidade. Assim como a fuvsiÏ, a tuvch Ă© neutra no que concerne a
uma vontade ou à moral. Impor limites a ação da tuvch é, portanto, menos
problemĂĄtico â uma vez que se trata de uma atitude menos moral e menos
religiosa â do que adequar as influĂȘncias divinas na nosologia Ă nova
perspectiva cultural ascendente no século V a.C.
A preocupação, no Da arte, em delimitar a tuvch pela tevcnh, e a tevcnh
pela fuvsiÏ encontra, no Da doença sagrada, sua tradução mutatis mutandi
para o Ăąmbito religiosidade especificamente teolĂłgica.
Acerca do aspecto religioso da fuvsiÏ, Owsei Temkim (1991:191) alega
que o autor do tratado Da doença sagrada, ao provar pormenorizadamente
que a doença sagrada não é oriunda de algum deus, estabelece uma etiologia
natural, uma patogĂȘnese fundada sobre o conceito de fuvsiÏ, mas essa
ânaturezaâ, lembra Temkim, Ă© organizada pelos deuses.
De fato, o tratado Da dieta, do final do século V a.C.187 oferece-nos
uma abordagem inusitada do conceito de tevcnh, partindo do princĂpio de que
os homens nĂŁo conseguem compreender o que nĂŁo Ă© aparente a partir do que Ă©
aparente, porque igualam a tevcnh Ă fuvsiÏ. Mas o nou~Ï dos deuses ensinou
aos homens a imitarem suas prĂłprias prĂĄticas:
açÔes atuais e anteriores]. A tradução de ejlegcovmenon por âargumentoâ pareceu-me a mais adequada, embora ainda distante do sentido original. 187 A datação do tratado Ă© quase unĂąnime, e Joly argumenta a seu favor, indicando a intertextualidade com os autores do V sĂ©culo que o tratado apresentava (Cf. JOLY,1967a, p.xiv). Geoffrey Kirk (1954:28) argumenta que o ecletismo filosĂłfico nĂŁo era comum no sĂ©culo V a.C., e, por isso e pela influĂȘncia que o tratado exerceu em Diocles, sua composição deveria ter sido um pouco posterior a 400 a.C. J. H. KĂŒhn corrobora com a datação de Kirk. Jouanna (1992:559; 1974:91) considera que o tratado pode ser tanto do fim do sĂ©c. V, quanto dos primĂłrdios do sĂ©culo IV a.C. (tal como o Da geração, o Da natureza da criança, o Doenças IV), mas lembra que o argumento mais contundente para o retardemanto da datação do tratado seria frĂĄgil, pois o termo ajnusoÏ (10LittrĂ©), o seu vocĂĄbulo mais recente, jĂĄ ocorrera em prosa jĂŽnica (AnaxĂĄgoras, 59B4 DK e MĂ©lissos, 30B2 DK) e na poesia (28B2 DK e EURĂPIDES, Heraclidas, 961), constando sempre nos tratados que sĂŁo reconhecidamente datados entre o final do sĂ©culo V e começo do sĂ©culo IV. Galeno, em vĂĄrios momentos de sua obra notava-lhe uma polĂȘmica entre as escolas de CĂłs e de Cnido (cf. JOLY, 1967a, p. xvi). O tratado Ă© seguramente da escola de CĂłs. A maioria dos especialistas soem considerar sua autoria isoladamente da dos demais tratados (Cf.CORVISIER, 1985:78; LITTRĂ, 1939: 292-439), sempre inserindo-o entre os escritos da escola de CĂłs.
134
OiJ deV a!nqrwpoi ejk tw~n fanerw~n taV ajfaneva skevpttesqai oujk ejpivstantai: tevcnh/si gaVr crewvmenoi oJmoivh/sin ajnqrwpivnh/ fuvsei ouj gignwvskousin: qew~n gaVr novoÏ ejdivdaxe mimei~sqai taV eJwutw~n, ginwvskontaÏ a$ poievousi, kaiV ouj ginwvskontaÏ a$ mimevontai. (....) Novmon meVn a!nqrwpoi e!qesan aujtoiV eJwutoi~sin, ouj ginwvskonteÏ periV w%n e!qesan, fuvsin deV pavntwn qeoiV diekovsmhsan. TaV meVn ou^n a!nqrwpoi dievqesan oujdevpote kataV twujtoV e!cei ou!te ojrqw~Ï ou!te mhV ojrqw~Ï: o@as deV qeoiV dievqesan aijeiV ojrqw~Ï e!cei: kaiV taV ojrqaV tosou~nton diafevrei. Os homens nĂŁo sabem observar o que nĂŁo Ă© aparente a partir do que Ă© aparente, pois, usando tevcnai semelhantes Ă natureza humana, desconhecem que o fazem. O nou~Ï dos deuses ensinou (os homens) a imitarem as açÔes divinas, conhecendo o que faziam, mas nĂŁo o que imitavam. (....) Os prĂłprios homens estabeleceram o novmoÏ entre eles, sem nada saber acerca daquilo que estabelecem, mas os deuses deram ordem (diekovsmhsan) Ă natureza de todas as coisas.
(Diet., 11Littré)
O autor refere-se a uma falsa tevcnh, aquela que simplesmente aceita
seus limites, através da ignorùncia acerca das aijtivai e de uma insatisfação
com a âordem da naturezaâ estabelecida pelos deuses. Para enfrentar os limites
impostos pelos deuses, atravĂ©s da fuvsiÏ, Ă© necessĂĄrio uma gnwvmh a respeito
das aijtivai. Ă nesse ponto que a medicina hipocrĂĄtica mais se afasta do
empirismo que Cornford (1981:60) lhe notava.
O tratado Da dieta apresenta claramente o problema que subjaz no Da
doença sagrada, qual seja, o da relação entre novmoÏ e fuvsiÏ: NovmoÏ gaVr kaiV
fuvsiÏ, oi%si pavnta diaprhssovmeqa, oujc oJmologei~tai oJmologeovmena
135
[Pois o novmoÏ e a fuvsiÏ , atravĂ©s dos quais realizamos tudo, nĂŁo concordam,
ainda que concordem]188.
Os deuses que estabeleceram189 a ordem da natureza, como explica o
tratado Da dieta190, encontram, no Da doenca sagrada, uma outra ordem, a do
novmoÏ polĂade, que nĂŁo comporta mais a intervenção divina exercida de
forma direta e iterativa, através de doenças e curas. O tratado Da doença
sagrada responde à necessidade de se criar uma nova tevcnh, como propÔe o
Da dieta, uma tevcnh que se liberte das raias da mivmhsiÏ das açÔes divinas,
atravĂ©s do conhecimento de uma etiologia a partir da fuvsiÏ. Os tratados
hipocrĂĄticos do sĂ©culo V a.C. nĂŁo se satisfazem ao indicar o tratamento â
188 GarcĂa Gual (1986:34) e Joly (1967a: 13) lembra que o tema da oposição entre novmoÏ e fuvsiÏ Ă© um topos da sofĂstica do sĂ©culo V a.C., o que sugeriria tambĂ©m aĂ uma influĂȘncia dos sofistas no tratado. Eu acrescentaria que se trata de uma confluĂȘncia em um tema que perpassa os tratados da escola de CĂłs. A esse respeito deve-se fazer referĂȘncia a uma passagem do tratado PrognĂłstico, que Ă© da escola de CĂłs e data tambĂ©m da segunda metade do sĂ©culo V a.C.: Gnw~nai ou^n crhV tw~n toiouvtwn noshmavtwn taVÏ fuvsiaÏ, oJkovson uJpeVr thVn duvnamivn eijsin tw~n swmavtwn a@ma deV kaiV ei! ti qei~on e!nestin ejn th/ ~si nouvsoisi kaiV touvtwn thVn provnoian ejkmanqavnein [Deve-se conhecer, pois, as naturezas dessas enfermidades, em que medida sĂŁo superiores Ă força do corpo, se hĂĄ algo divino nessas doenças, e aprender a prever esses casos] (1LittrĂ©). Jones omite a expressĂŁo a@ma deV kaiV ei! ti qei~on e!nestin ejn th/ ~si nouvsoisi [se hĂĄ algo divino nessas doenças], considerando-a uma interpolação, mas indicando, em nota, a sua presença em todas as fontes. LittrĂ©, coerentemente com as fontes, registra o texto tal qual Ă© encontrado em todos os mss. Acredito tambĂ©m tratar-se de uma interpolação, e nĂŁo de uma concessĂŁo Ă atuação do sobrenatural nos corpos. Se nĂŁo se considerar essa oração condicional uma interpolação, ela significaria que as doenças podem ser previstas quando nelas houver algo de divino; no entanto, por todo o tratado expĂ”em-se recursos para o procedimento de prognĂłsticos, desconsiderando-se o aspecto divino ou sagrado da doença. Dodds (1977[1959]:92, n.20) e GarcĂa GUAL (1983 [I]:330, n.2) nĂŁo consideram a expressĂŁo uma interpolação. LaĂn Entralgo (1987:57) percebe nesse ti qei~on do tratado uma âpiedade fisiolĂłgicaâ que, segundo o autor espanhol, Ă© âatitude comum reliogiosa e mental dos mĂșltiplos autores do CHâ. LaĂn Entralgo argumenta a favor de seu ponto de vista que o epĂteto qei~oÏ, em Homero, acompanhava freqĂŒentemente algumas realidades naturais (p.ex., âo sal divinoâ, Il., XI, 214; âa bebida divinaâ, Od.. II, 341). De minha parte, creio que o que havia de divino nesses casos era a tevcnh tal como a entende o Da dieta, e dessa tevcnh derivam, tanto o sal (observe-se que os poemas homĂ©ricos atribuĂam o epĂteto qei~oÏ ao a@lÏ, e nĂŁo Ă a@lÏ), quanto o vinho. A divindade fisiolĂłgica que LaĂn Entralgo nota no PrognĂłstico sĂł pode ser considerada a partir do ponto de vista do Da dieta; segundo o qual, a tevcnh que desconhece a sua aijtiva restringe-se Ă natureza humana. 189 O tempo verbal (aoristo) do verbo diakosmevw (dispor) marca o carĂĄter fundador da ação divina, uma vez que o significado desse verbo permitiria um tempo iterativo, como o presente. 190 O tratado Da dieta , contudo, nĂŁo combate a arte divinatĂłria, apenas lhe denuncia o desconhecimento de suas aijtivai, o que, de resto farĂĄ com todas as doze atividade humanas que enumera (12-24LittrĂ©).
136
dietĂ©tico ou farmacolĂłgico â que tenha eficĂĄcia em alguma doença; esses
tratadistas invariavelmente apontam uma etiologia natural de origem interna,
externa ou â como Ă© mais comum â de ambas as fontes, como no Da doença
sagrada.
137
5. ITERAĂĂO E COMPLEMENTAĂĂO ENTRE OS TRATADOS
DA DOENĂA SAGRADA E ARES, ĂGUAS E LUGARES
O tratado Da doença sagrada é um texto central no Corpus
hippocraticum quanto às idéias que expressa. Sua relevùncia e as
caracterĂsticas de seu conteĂșdo nĂŁo se restringem ao que concerne Ă laicização
da nosologia, mas abarca ainda outros aspectos relevantes para a formação do
ambiente cultural do século V a.C. Em todos os seus aspectos mais
pertinentes a essa formação, o tratado Da doença sagrada encontra reflexos
no Ares, ĂĄguas e lugares.
A discussĂŁo acerca da autoria comum do Ares, ĂĄguas e lugares e do
Da doença sagrada não é muito antiga. Littré sequer a considerava, pois, em
sua taxionomia dos tratados, o Ares, ares e lugares Ă© tido como um tratado da
primeira classe, o que, segundo a sua classificação (LITTRĂ, 1839:292-4339),
significa que este é um tratado da lavra de Hipócrates. Mas o Da doença
sagrada foi inscrito por Littré na quarta classe de tratados, que é o grupo dos
textos de contemporĂąneos ou dos discĂpulos de HipĂłcrates.
De fato, as similitudes podem ser insuficientes para adjudicar os dois
textos a um mesmo autor, mas nĂŁo sĂŁo apenas as confluĂȘncias textuais que
fazem helenistas como Jouanna (1992:529) suporem a mesma autoria para
esses tratados.
Dois pontos se impoem nessa discussão, o da laicização da doença e a
pangenética. Esses tópicos consistem nas duas teses mais evidentemente
convergentes dos dois tratados. Subjaz a essas duas idéias a distinção entre
novmoÏ e fuvsiÏ, e a conseqĂŒente matização do conceito de fuvsiÏ, que tem
como parĂąmetros paroxĂsticos a fuvsiÏ ajnqrwvpou e a qeiva fuvsiÏ.
138
Para os dois tratados, determinadas doenças não podem ser mais
sagradas do que outras, ainda que nenhuma deixe de sĂȘ-lo. Para o autor dos
tratados, o erro não é considerar as doenças segradas ou divinas, mas
considerar uma especialmente mais divina do que outra:
MS,1Littré (1Jones) AAL, 22Littré
PeriV meVn th~Ï iJerh~Ï nouvsou kaleomevnhÏ w%d je!cei: oujdeVn tiv moi dokevei tw~n a!llwn qeiotevrh ei^nai nouvswn oujdeV iJerwtevrh, ajllaV fuvsin meVn e!cei h$n kaiV taV loipaV noushvmata, o@qen givnetai. Sobre a chamada doença sagrada, hĂĄ isto: em nada me parece ser mais divina, nem mais sagrada do que as outras doenças, mas tem a natureza e a origem que tĂȘm as demais enfermidades.
jEmoiV deV kaiV aujtw/~ dokei~ tau~ta taV pavqea qei~a ei^nai kaiV ta^lla pavnta kaiV oujdeVn e@teron eJtevrou qeiovteron oujdeV ajnqrwpinwvteron, ajllaV pavnta oJmoi~a kaiV pavnta qei~a. Parece-me serem essas afecçÔes divinas, assim como todas as outras, e não ser nenhuma mais divina nem mais humana do que a outra, mas serem todas semelhantes e todas divinas.
Os dois tratados partem do mesmo princĂpio: nenhuma doença Ă© mais
divina, nem mais sagrada do que qualquer outra. Entretanto, cada um dos
tratados dirige-se para uma direção diferente na observação da doença. Poder-
se-ia mesmo dizer que, quanto à idéia de sagrado, o discurso do Da doença
sagrada Ă© mais negativo do que o do Ares, ĂĄguas e lugares. Enquanto o
primeiro parece ter por motivação a negação do caråter especialmente divino
de uma determinada doença, o outro procura essa sacralidade pelo viés da
natureza do meio ambiente.
NĂŁo Ă© possĂvel deixar de notar-se, nesse campo, uma continuidade entre
os dois textos, especialmente se se observar o começo do Ășltimo capĂtulo do
Da doença sagrada191, que sentencia:
191 O Ășltimo capĂtulo do MS tem um carĂĄter notoriamente conclusivo, mas o AAL sempre foi tema de discussĂŁo acerca da unidade de suas duas partes. Creio que, depois da excelente edição de Jouanna (1996), a discussĂŁo, se nĂŁo estĂĄ encerrada, ao menos ascendeu a um patamar muito alĂ©m das observaçÔes impressionistas ou da fragilidade dos argumentos que eram ora meramente
139
Au@th deV hJ nouvsoÏ hJ iJerhV kaleomevnh ejk tw~n aujtw~n profasivwn givnetai ajf j w%n kaiV aiJ loipaiV ajpoV tw~n aujtw~n prosiovntwn kaiV ajpiovntwn, kaiV yuvceoÏ, hJlivou, pneumavtwn metaballomevnwn te kaiV mhdevpote ajtremivzovntwn. Tau~ta d j ejstiV qei~a, w@ste mhdeVn diakrivnonta toV nouvshma qeiovteron tw~n loipw~n noushmavtwn nomivzein, ajllaV pavnta qei~a kaiV ajnqrwvpina pavnta: fuvsin deV e!cei e@kaston kaiV duvnamin ejf j eJwutou~, kaiV oujdeVn a!porovn ejstin oujdeV ajmhvcanon. Essa doença dita sagrada provĂ©m das mesmas motivaçÔes que as demais, ou seja, provĂ©m de coisas que se aproximam e que se afastam, como o frio, o sol e os ventos que estĂŁo em mutação e nunca se estabilizam. Mas tudo isso Ă© divino; de sorte que em nada se distinga essa enfermidade como mais divina do que as outras enfermidades, mas elas todas sĂŁo divinas e todas elas sĂŁo humanas. E cada (doença) tem sua natureza e sua propriedade em si mesma, e nenhuma delas Ă© incurĂĄvel nem intratĂĄvel.
(18Littré)
Essa conclusão acerca do caråter divino da doença serå, no que tange a
esse aspecto, o ponto de partida do Ares, ĂĄguas e lugares. Essa esfera divina,
em que tudo se insere pela ação oscilante do meio, não é o espaço da tevcnh,
nĂŁo Ă© o ambiente de atuação do ijatrovÏ, e qualquer incursĂŁo aĂ serĂĄ punida
com os vitupérios que abrem o tratado Da doença sagrada.
O Ares, ĂĄguas e lugares tem por tema um grande desafio da tevcnh:
conviver com a fuvsiÏ divina, isto Ă©, com os ares, com as ĂĄguas e com as
peculiaridades das regiÔes. Esse tratado seria, portanto, na visão de um
lingĂŒĂsticos, ora simplesmente ecdĂłticos. Reproduzo aqui a orientação de Jouanna (1996:21) que adoto neste tese:
Admitir-se-å então a unidade de autor e igualmente a unidade da obra (com uma lacuna importante na segunda parte), sem interpolação maior e sem transposiçÔes relativas à ordem dada na tradição manuscrita antes da perturbação acidental que ocorre em um ancestral do manuscrito mais antigo, o Vaticanus graecus 276.
140
HerĂłdoto o lesse, uma obra de u@briÏ, um tratado onde o ijatrovÏ arrostearia
os desĂgnios divinos. Mas o Ares, ĂĄguas e lugares nĂŁo se dedica Ă terapia,
apenas a sugere, ao identificar o mal. Bom exemplo Ă© o caso do novmoÏ dos
citas, a que me referi anteriormente. Para eles, segundo esse tratado, a
equitação produz efeitos patogĂȘnicos de ordem genĂ©tica. EstĂĄ, pois,
subentendido que a moderação nesse hĂĄbito, a tĂtulo de divaita, seria
terapĂȘutica. Contudo, o problema torna-se mais complexo quando Ă© menos
humano, como, por exemplo, quando se refere ao ambiente onde se vive.
A localização malsã de um povo pode trazer-lhe determinados
malefĂcios, que poderiam ser remediados atravĂ©s da orientação das
construçÔes em função dos ventos e do sol. O autor apresenta (AAL, 10Littré)
cinco configuraçÔes locais que considera maléficas:
1. Inverno seco e boreal seguido de um inverno chuvoso e austral.
2. Inverno austral e chuvoso seguido de uma primavera boreal e seca.
3. VerĂŁo chuvoso e austral, e outono semelhante.
4. VerĂŁo seco e austral, outono chuvoso e boreal.
5. VerĂŁo boreal e seco, e outono seco.
No que diz respeito Ă saĂșde, ao mĂ©dico cabia reconhecer em que cada
uma dessas conjunturas podia implicar. Como instrumentos de sua terapia
sugerida, a adequação topológica possuia limites bem definidos. As situaçÔes
do meio restringiam-se a quatro, e cada uma delas supÔe suas mazelas e seus
recursos especĂficos:
1. construçÔes voltadas para o noto (isto é, para o vento quente) e de
acordo como o solstĂcio invernal, ou seja, orientadas para o sul.
(AAL,3Littré)
141
2. construçÔes voltadas para o boreal (isto é, para o vento frio) e de
acordo com o solstĂcio de verĂŁo, ou seja, orientadas para o
norte.(AAL,4Littré)
3. construçÔes expostas ao nascer do sol. (AAL,5Littré)
4. construçÔes expostas ao por so sol, e que não recebem ventos do
leste, mas estĂŁo sujeitas lateralmente ao boreal e ao austral. (AAL,
6Littré)
Jouanna (1996:33-44) identifica trĂȘs fatores que o autor do Ares, ĂĄguas
e lugares recomenda que o médico observe: a orientação das construçÔes em
relação aos ventos e ao sol; as propriedades da ågua, e o solo.
As ĂĄguas podem ser, segundo o autor do tratado192:
1. estagnantes (AAL,7Littré),
2. fontanais (AAL, 7Littré),
3. pluviais (AAL, 8Littré),
4. oriundas de degelo (AAL,8Littré) e
5. mistas (AAL, 9Littré)193
Ă a qualidade da ĂĄgua que motivarĂĄ o interesse do autor pelo solo, ou,
para ser mais preciso, pelo subsolo. As ĂĄguas que provĂȘm de um subsolo
rochoso sĂŁo âdurasâ (sklhrav), e as que sĂŁo oriundas de um subsolo maleĂĄvel
e elevado â como o de algumas colinas â sĂŁo mais doces e claras (glukeva kaiV
leukav), e capazes de comportar uma mistura de vinho de baixo teor (toVn
oi^non fevrein ojlivgon oi%av tev ejsti) (AAL, 7Littré).
192 A qualidade da ĂĄgua Ă© tema de alguns prĂ©-socrĂĄticos, como Anaximandro (12A27DK), XenĂłfanes (21A46DK), DiĂłgenes de ApolĂŽnia (64A17DK, que explica porque o mar Ă© salgado). Quanto a este Ășltimo em confronto com o AAL, v. o capĂtulo âPor que a ĂĄgua do mar Ă© salgada?â em JOUANNA (1992:367). 193 O capĂtulo 9LittrĂ© relata uma litĂase devida Ă agua mista.
142
O Ășltimo capĂtulo do tratado (24LittrĂ©) oferece uma categorização dos
solos, para finalmente declarar a relevĂąncia do solo para a natureza fĂsica e
moral dos que habitam sobre ele.
As quatro categorias de solo sĂŁo:
1. seco e estéril,
2. Ășmido e vegetado,
3. baixo e quente e
4. elevado e frio.
O autor do tratado, ao reconhecer a importùncia do solo na constituição
do homem, inscreve-se em uma maneira de pensar que a literatura do século V
a.C. nĂŁo se furtou em registrar.
PĂndaro faz referĂȘncia Ă influĂȘncia do solo sobre o homem na quinta
Ode Neméia, onde os habitantes de Egina, juntamente com o seu mitológico
lĂder Focos, suplicam diante do altar de Zeus HelĂȘnio que aquela terra seja
fecunda em homens valerosos e em suas naus afamadas:
ejk deV Krovnou kaiV ZhnoVÏ h@- rwaÏ aijcmataVÏ futeuqevn- taÏ kaiV ajpoV crusea~n Nhrhi?dwn AijakivdaÏ ejgevrairen matrovpolin te, fivlan xevnwn a!rouran: tavn pot j eu!androvn te kaiV nausiklutavn qevssanto, paVr bwmoVn patevroÏ Jellanivou stavnteÏ, pivtnan t j ejÏ aijqevra cei~raÏ aJma/~ jEndai?doÏ ajrignw~teÏ uiJ- oiV kaiV biva Fwvkou krevontoÏ oJ ta~Ï qeou~, o$n Yamavqei- a tivkt j ejpiV rJhgmi~ni povntou.
de Cronos e de Zeus, os herĂłis belicosos oriundos e das ĂĄureas Nereidas,
143
os EĂĄcidas194, ele os honrou195, e para que fosse a cidade-mĂŁe, terra amiga dos estrangeiros, fecunda em homens valerosos e de cĂ©lebres naus, rogaram, junto ao altar de Zeus HelĂȘnio, e abriram, juntos, os braços ao Ă©ter os de Endeida afamados filhos,
e, com vigor, o seu lĂder Focos, filho da deusa, aquele que PsamatĂ©ia
gerou sobre o vĂłrtice do mar. (Nem., V, (9) vv.12-24)
A presença no imaginårio grego da relação entre o homem e o
solo também se encontra em outra ode pindårica, a XI Neméia, na qual o
carĂĄter da terra Ă© apresentado analogicamente ao do homem:
ejn scerw/~ d jou!t j w^n mevlainai karpoVn e!dwkan a!rourai, devndreav t j oujk ejqevlei pav- saiÏ ejtevwn perovdoiÏ a!nqoÏ eujw~deÏ fevrein plouvtw/ i!son, ajll j ejn ajmeivbonti. KaiV qnatoVn ou@twÏ e!qnoÏ a!gei moi~ra.
e, no continente, nem as negras terras deram fruto, nem as årvores querem, em todas as épocas dos anos, produzir uma flor olente e valiosa como a riqueza, mas sempre estão a mudar. Assim também o destino conduz a estirpe mortal.
(Nem., XI, (40) vv.49-55)
194 Filhas de Ăaco, como Focos. 195 o sujeito da oração Ă© subentendido; trata-se de PĂteas de Egina, um jovem ainda imberbe, vencedor no pancrĂĄcio.
144
Nesses excertos das duas odes NemĂ©ias, a palavra que PĂndaro usa para
referir-se à terra é a!roura, que, paralelamente a cwvra e a gh~, designa a idéia
de solo, no entanto Ă© um termo mais agrĂĄrio. O que me leva a crer que, no
trecho da quinta NemĂ©ia apresentado acima, trata-se de uma referĂȘncia ao
solo, e nĂŁo Ă regiĂŁo196.
A analogia proposta por PĂndaro poderia reconduzir-nos Ă discussĂŁo
acerca dos nĂveis da fuvsiÏ diretamente divino e indiretamente divino. Mas
parece-me estar claro que essa distinção nĂŁo pertencia ao universo do PrĂncipe
dos poetas. Serve-nos a este estudo como uma referĂȘncia temporal de uma
sugestão de relação entre homem e solo.
Jacqueline de Romilly (1995:174), ao dissertar sobre a natureza e a
educação em EurĂpides, refere-se a uma passagem de HĂ©cuba. No passo
assinalado pela Helenista, nota-se mais uma vez a analogia entre o solo e o
homem, mas dessa vez, a comparação é motivada justamente pelos resultados
paradoxais que por vezes decorrem da relação entre causa e efeito. Assim, o
solo ruim pode produzir bons frutos, da mesma maneira que o ambiente
inadequado pode engendrar grandes homens:
(....) Ou!koun deinovn, eij gh~ meVn kakhv tucou~sa kairou~ qeovqen eu^ stavcun fevrei, crhsthV d j aJmartou~s j w%n crewVn aujthVn tucei~~n kakoVn divdwsi karpoVn, ejn brotoi~Ï d j ajeiv oJ meVn ponhroVÏ oujdeVn a!llo plhVn kakoVÏ, oJ d j ejsqloVÏ ejsqloVÏ, oujdeV sumfora~Ï u@po fuvsin dievfqeir j, ajllaV crhstoVÏ ejst j ajeiv; NĂŁo Ă© incrĂvel? se a terra mĂĄ obtĂ©m dos deuses condiçÔes favorĂĄveis, sobeja em espigas;
196 Jacqueline de Romilly (1995:183) chega a essa mesma conclusĂŁo, mas acredita tratar-se de uma comparação entre o solo e o homem, e nĂŁo de uma influĂȘncia. No trecho retirado da XI NemĂ©ia, acredito tambĂ©m tratar-se de uma analogia; contudo, os versos da V NemĂ©ia parecem-me expressar a idĂ©ia de influĂȘncia. NĂŁo creio que nem em um caso, nem em outro seja possĂvel depreender uma opiniĂŁo. Por outro lado, o sĂmile nĂŁo Ă© gratuito, mas denota uma possibilidade de compreender as relaçÔes atravĂ©s dessa analogia.
145
mas a boa terra estando carente do que lhe Ă© preciso, dĂĄ mau fruto, e entre os mortais Ă© sempre assim: o perverso nĂŁo Ă© outro senĂŁo o mau, e o bom Ă© exatamente o bom, nem sob situaçÔes especĂficas destruiria sua natureza, mas serĂĄ sempre virtuoso.
(HĂ©cuba, 592-8)
O sĂmile nĂŁo poderia ser menos hipocrĂĄtico197. O nĂvel da natureza que
o homem Ă© capaz de tanger e do qual ele mesmo faz parte nĂŁo influencia o
outro nĂvel. Mesmo sendo boa a terra , se estiver sob uma ação desfavorĂĄvel
do nĂvel divino da natureza, os frutos serĂŁo ruins. Assim tambĂ©m acontece
com o homem. Naturalmente o tema aqui â no que concerne o homem â nĂŁo Ă©
a saĂșde, mas o aspecto moral. A qualidade que estĂĄ sendo discutida nĂŁo Ă© da
ordem da fuvsiÏ, mas da esfera do novmoÏ. PorĂ©m, o significante do sĂmile Ă©
fĂsico, e remete Ă s teorias expostas no Ares, ĂĄguas e lugares acerca da
natureza. A relação que a tragĂ©dia HĂ©cuba estabelece entre novmoÏ e fuvsiÏ
não vai coincidir com aquela proposta pelo tratado médico, não é de
influĂȘncia de que se trata na tragĂ©dia, mas de uma comparação.
No tratado, o episódio dos macrocéfalos, jå estudado nesta tese, mostra
como o novmoÏ podia interferir na fuvsiÏ; mas na fuvsiÏ Ă qual o homem tem
acesso, e nĂŁo na fuvsiÏ em seu nĂvel divino, a dos fenĂŽmenos climĂĄticos, das
ĂĄguas e dos ventos. Na tragĂ©dia, o recurso poĂ©tico do sĂmile volta-se, de um
lado, para o solo e a qualidade de seus frutos, e, de outro, para o homem e a
qualidade moral de suas açÔes.
197 MĂ©ridier, tradutor e estabelecedor do texto, nota uma, nessa passagem, um opiniĂŁo socrĂĄtica, uma vez que a paideiva (no texto referida como trofhv) exerce uma influĂȘncia decisiva da formação moral. O helenista remete a reiteraçÔes dessa idĂ©ia em IfigĂȘnia em Aulis (559 et sq.) e nas Suplicantes (914). Contudo, MĂ©ridier observa uma certa valorização da hereditariedade por parte do coro. A sua leitura conduz a um conflito entre o ideĂĄrio aristocrata e o socrĂĄtico, um defendendo a relevĂąncia da hereditariedade, o outro, a da educação. O ensaio de Jacqueline de Romilly intitulado Nature et Ă©ducation dans le thĂ©Ăątre dâEuripide discute o tema sob novas perspectivas. A autora lembra que, em HĂ©cuba, EurĂpides opĂ”e-se gravemente ao socratismo, uma vez quem conhece o bem nĂŁo o pratica necessariamente. Acredito que o tratado Ares, ĂĄguas e lugares poderia lançar mais um golpe de luz sobre as falas de HĂ©cuba e sobre sua hesitação entre a trofhv e os tevkonteÏ, para usar uma expressĂŁo do prĂłprio texto (HĂ©c.,599).
146
O solo, as ĂĄguas e os ventos, com as suas caracterĂsticas, formam as
contingĂȘncias divinas com as quais os homens tem de conviver, dispondo as
suas vidas de acordo com essa realidade à qual nem o leigo nem o médico tem
acesso.
Wilamowitz198, ao defender a mesma autoria para os tratados Da
doença sagrada e Ares, åguas e lugares, enumera quatro pontos comuns
entre eles:
1. a negação de toda doença âsagradaâ, ou seja, devida a uma
divindade particular;
2. a afirmação da transmissão de particularidades adquiridas ou
enfermidades, pela crença na pangenética;
3. influĂȘncia das mudanças climĂĄticas sobre a doença, e
4. o estilo e o vocabulĂĄrio.
Os argumentos de Wilamowitz foram considerados por vĂĄrios
helenistas199 insuficientes para considerar os dois tratados da mesma lavra.
Jouanna, por sua vez, declara-se de acordo com Gresemann, que sentencia que
âos melhores argumentos estĂŁo do lado daqueles que querem atribuir os dois
escritos a um sĂł e mesmo mĂ©dicoâ200.
Os pontos assinalados por Wilamowitz podem, de fato, nĂŁo ser
suficientes para atribuir os dois textos ao mesmo autor, mas se se analisar
mais detidamente o primeiro item de sua argumentação, encontrar-se-å mais
do que coincidĂȘncias.
Primeiramente, o que os textos fazem, parece-me, nĂŁo Ă© apenas negar a
atribuição da doença a uma divindade especĂfica, mas condenar a crença em
uma relação direta com os deuses, uma relação entre homens e deuses quase 198 Die hippokartische Schrift PeriV iJerh~Ï nouvsou (1901). Apud JOUANNA (1996), p.71. 199 Jouanna (1996:72) oferece a bibliografia contrĂĄria a essa tese, citando obras alemĂŁs que foram publicadas entre 1929 e 1968. Lembra ainda os autores, como Edelstein, que seapoiam nas divergĂȘncias entre os dois textos para defender a autoria .
147
homérica. Mas isso não seria negar o sagrado, mas a maneira de se inserir a
esfera divina na diagnose e na terapia.
O tratado Da doença sagrada conduz o raciocĂnio de seu pĂșblico da
alçada humana para a divina, revelando os aspectos nosológicos vinculados ao
nĂvel mais imanente da fuvsiÏ. O tratado Ares, ĂĄguas e lugares, por sua vez,
percorre o caminho inverso, partindo da fuvsiÏ onde tudo Ă© divino, para a
fuvsiÏ do homem, revelando os aspectos hĂgidos do nĂvel mais divino de
fuvsiÏ. Os dois tratados parecem acordar perfeitamente sobre esses dois nĂveis
da fuvsiÏ e sobre os limites do homem nesse contexto.
O novmoÏ, em ambos os tratados, Ă© o espaço de ação do homem, onde o
homem entre os seus iguais vive kataV sunqhvkhn, e nĂŁo kataV fuvsin. O
ijatrovÏ pode dispor desse espaço para desempenhar a sua função, mas deve
ter em mente a relação entre novmoÏ e fuvsiÏ.
Para observar essa relação, os dois tratados partem do mesmo ponto, da
pangenĂ©tica, da crença de que cada semente (govnoÏ) provĂ©m de uma parte do
corpo. Segundo os tratados: âA semente provĂ©m de todas as partes do corpo,
das partes sĂŁs ela vem sĂŁ, das partes doentes, doenteâ. Observe-se a quase
total igualdade dos termos:
oJ gaVr govnoÏ pantacovqen e!rcetai tou~ swvmatoÏ, ajpov te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏ ajpoV te tw~n noserw~n noserovÏ. Ares, ĂĄguas e lugares, 14LittrĂ©
wJÏ oJ govnoÏ e!rcetai pavntoqen tou~ swvmatoÏ, ajpoV te tw~n uJgihrw~n uJgihroVÏ ajpoV te tw~n noserw~n noserovÏ. Da doença sagrada, 2LittrĂ©
200 Die hippokratische Schrift â Ăber die heilige Krankheitâ. Apud JOUANNA (1996), p.73
148
A tese pangenética201 é um dos temas do tratado Da geração, que esse
tratado assim explicita: KaiV ejn aujth/~fi th/~ gonh/~ ejxevrcetai kaiV th~Ï
gunaikoVÏ kaiV tou~ ajndroVÏ ajpoV pantoVÏ tou~ swvmatoÏ, kaiV ajpoV tw~n
ajsqenevwn ajsqenhVÏ kaiV ajpoV tw~n ijscurw~n ijscurhv [Quanto Ă prĂłpria
semente, tanto da mulher quanto do homem, ela sai de todo o corpo, das
partes fracas, vem fraca; das fortes, forte ] (Da geração, 2Littré).
O Ares, åguas e lugares acrescenta à tese pangenética a idéia de que o
novmoÏ pode interferir na fuvsiÏ atravĂ©s da hereditariedade. O âlamarckismoâ
do episĂłdio dos macrocĂ©falos consiste no liame entre o novmoÏ e a fuvsiÏ202
por uma via sui generis, a da transformação de fenótipos em genótipos, e a
transmissão destes através da pangenética.
A âdoença sagradaâ Ă© tambĂ©m hereditĂĄria. Como um fleumĂĄtico nasce
de um fleumĂĄtico; um bilioso, de um bilioso; de um tĂsico nasce um tĂsico; de
um esplenético, um esplenético; um calvo nasce de um calvo; um cego, de
cego, e um estråbico, de um estråbico (AAL, 14Littré; MS, 2Littré; Da
Geração, 2Littré), da mesma forma, a doença sagrada e a cabeça oblonga dos
marocĂ©falos sĂŁo kataV gevnoÏ, hereditĂĄrias , ainda que a primeira seja ajpoV
fuvsioÏ e a segunda ajpoV novmou.
As caracterĂsticas, quando passam ao universo fĂsico,
independentemente de sua origem, tornam-se parte da fuvsiÏ, mas em um
nĂvel que o mĂ©dico pode alcançar, ainda que esteja limitado pelo outro nĂvel
da fuvsiÏ. O autor do tratado Da arte recorre freqĂŒentemente ao binĂŽmio
formado pela fuvsiÏ e pela tevcnh:
eij gavr tiÏ h# tevcnhn, ejÏ a$ mhV tevcnh, h# fuvsin, ejÏ a$ mhV fuvsiÏ pevfuken, ajxiwvseie duvnasqai, ajgnoei~ a!gnoian aJrmovzousan manivh/ ma~llon h#
201 A tese pangenĂ©tica Ă© enunciada pelos tratados AAL e MS , que parecem apenas aplicar a teoria do tratado Da geração (v.LONIE, 1981:116). Jouanna (1996:307) lembra que a tese de uma fonte comum poderia substituir a da precedĂȘncia. 202 Essa tambĂ©m parece ser a idĂ©ia de Pigeaud (1997:9).
149
ajmaqivh/. %Wn gaVr ejstin hJmi~n toi~siv te tw~n fusivwn toi~si te tw~n tecnevwn ojrgavnoisi ejpikratevein, toutevwn ejstiVn dhmiourgoi~Ï ei^nai, a!llwn deV ou!k ejstin. Se, pois, alguĂ©m exige que a tevcnh tenha mais poder do que o que concerne Ă tevcnh, ou que a fuvsiÏ tenha mais poder do que o que concerne Ă fuvsiÏ, Ă© ignorante, de uma ignorĂąncia que tem mais de loucura do que de falta de informação. Pois nos Ă© possĂvel soemente ter o controle atravĂ©s dos instrumentos das naturezas (fuvseiÏ) e das artes (tevcnai); Ă©-nos possĂvel ser operadores destes, mas dos outros, nĂŁo.
(Da arte, 8Littré)
A tevcnh Ă©, de fato, limitada pela fuvsiÏ, mas o uso dos instrumentos
(o!rgana, para usar a linguagem do texto) oriundos da fuvsiÏ tambĂ©m Ă© uma
tevcnh. Aqui encontramos outra maneira de atingir o nĂvel imediato da fuvsiÏ,
o sistema de trocas que a tevcnh estabelece com a fuvsiÏ. A fuvsiÏ oferece os
instrumentos Ă tevcnh que hĂĄ de curĂĄ-la.
O tratado Da doença sagrada, que limita a ação do sagrado no nĂvel
mais imediato da fuvsiÏ, tambĂ©m se apĂłia no poder da tevcnh. Ă atravĂ©s dela
que o homem terĂĄ acesso ao nĂvel mais imanente da fuvsiÏ. Alguns poucos
anos antes203, SĂłfocles havia composto o seu cĂ©lebre canto coral da AntĂgona,
no qual decanta as façanhas humanas, declarando a sua fé na hegemonia da
humanidade sobre a natureza:
PollaV taV deinaV koujdeVn ajn- qrwvpou deinovteron pevlei HĂĄ muitas coisas espantosas, e, do que o ho-
203 A data mais aceita para a composição de AntĂgona Ă© 443-2, e o tratado Ă© da segunda metade do sĂ©culo V a.C.
150
mem, nenhuma Ă© mais espantosa (AntĂgona, 332-2).
Esse homem de SĂłfocles conhece apenas um limite: a morte. Em seu
canto apaixonado pela humanidade â e sobretudo por aquela de Atenas â o
coro alça um homem pantopovroÏ (360), de infinitos recursos, que supera o
noto (335). Mesmo quando reconhece o limite do homem na morte, o coro
ameniza essa impotĂȘncia com as conquistas da medicina.
(....) @Aida movnon feu`~xin oujk ejpavxetai. Nov- swn d j ajmhcavnwn fugaVÏ xumpevfrastai. Somente do Hades o escape nĂŁo domina. Mas de doenças incurĂĄveis fugas jĂĄ figurou.
(Ant., 361-4)
Para o autor do tratado Da arte, também não hå doenças que o médico
nĂŁo possa curar se lhe permitem agir plenamente ou se o mal nĂŁo for mais
forte do que a medicina, ou seja, se a fuvsiÏ da doença integrar o primeiro
nĂvel da fuvsiÏ, o nĂvel mais imanente e prĂłximo da tevcnh. O exemplo que o
tratadista oferece Ă© o fogo como o!rganon:
@Otan ou^n ti pavqh/ w@nqrwpoÏ kakoVn o$ krevsson ejstiVn tw~n ejn ijhtrikh/~ ojrgavnwn, oujdeV prosdoka~sqai tou~tov pou dei~ uJpoV ijhtrikh~Ï krathqh~nai a!n: aujtivka gaVr tw~n ejn ijhtrikh/~ kaiovntwn toV pu~r ejscavtwÏ kaivei, toutevou deV hJssovnwÏ a!lla pollav: tw~n meVn ou^n hJssovnwn taV krevssw ou!pw dhlonovti ajnivhta: tw~n deV krativstwn taV krevssw pw~Ï ouj dhlonovti ajnivhta; a$ gaVr pu~r ouj dhmiourgevei, pw~Ï ouj taV toutw/~
151
mhV aJliskovmena dhloi~ o@ti a!llhÏ tevcnhÏ dei~tai kaiV ouj tauvthÏ e!n h%/ toV pu~r o!rganon; Quando um homem experimenta um mal que Ă© mais forte do que os instrumentos da medicina, nĂŁo se deve esperar que esse mal seja controlado pela medicina; pois entre aquilo que, na medicina, queima, o fogo Ă© o que mais queima, e muitos outros cĂĄusticos queimam menos do que esse. As (doenças) mais fortes do que os (cĂĄuticos) mais fracos ainda assim nĂŁo sĂŁo notoriamente incurĂĄveis, mas quando (as doenças) sĂŁo mais fortes (do que os cĂĄusticos) mais fortes, como nĂŁo Ă© evidente que eles sejam incurĂĄveis? No caso em que o fogo nĂŁo opera, como nĂŁo Ă© evidente que aquilo que escapa ao fogo tem necessidade de uma outra tevcnh nĂŁo daquela em que o fogo Ă© um instrumento?
(Da arte, 8Littré)
No exemplo do tratado, a enfermidade Ă© caracterizada pelo comparativo
de poder (krevsson), que revela a impotĂȘncia da tevcnh diante de uma fuvsiÏ.
A tevcnh mais eficaz do que a do fogo Ă© a tevcnh impossĂvel, a julgar pelo
Aforismo VII,87: JOkovsa favrmaka oujk ijh~tai, sivdhroÏ ijh~tai: o@sa
sivdhroÏ oujk ijh~tai, pu~r ijh~tai: o@sa deV pu~r oujk ijh~tai, tau~ta crhV
nomivzein ajnivata [O que os medicamentos nĂŁo curam, o ferro cura; o que o
o ferro não cura, o fogo cura; o que o fogo não cura, a essas doenças é
necessĂĄrio reconhecĂȘ-las incurĂĄveis]. O fogo Ă©, por tanto, um extremo da
tevcnh. A sua ineficiĂȘncia assinala a novsoÏ Ă qual, parodiando o coro de
AntĂgona, poder-se-ia chamar deinotevra ajnqrwvpou.
O tratado Da doença sagrada não limita explicitamente o poder da
tevcnh terapĂȘutica porque se destina a descrever o campo de ação da medicina
aplicado Ă âdoença sagradaâ atravĂ©s de um novo olhar sobre a relação entre
fuvsiÏ e novmoÏ e entre homens e deuses.
O tratado Ares, ĂĄguas e lugares, por sua vez, por meio dessa mesma
perspectiva, expande os limites da tevcnh até as suas fronteiras, que são, por
152
um lado, o nĂvel mais divino da fuvsiÏ â como o clima â e, por outro, o
novmoÏ.
O novmoÏ Ă© sempre, para a medicina hipocrĂĄtica, um limite difĂcil de se
transpor, e Ă divaita cumpre lutar contra essa fronteira puramente humana e,
portanto, suscetĂvel Ă ação da tevcnh.
O autor do tratado Da dieta afirma (4Littré) que a diferença entre
nascer e morrer, crescer e descrescer, unir e desunir nĂŁo Ă© kataV fuvsin, mas
kataV novmon: e@kaston proVÏ pavnta kaiV pavnta proVÏ e@kaston twujtoV, kaiV
oujdeVn pavntwn twujtov: oJ novmoÏ gaVr th~/ fuvsei periV touvtwn ajnantivoÏ
[um por todos, todos por um, sĂŁo a mesma coisa, e, do todo, nada Ă© a mesma
coisa; porque o novmoÏ acerca dessas coisas Ă© contrĂĄrio Ă fuvsiÏ].
O que pode parecer apenas uma caracterĂstica de um tratado fortemente
influenciado pela sofĂstica, apresenta, na verdade, um dado interessante
acerca da posição da doença diante da dicotomia formada por novmoÏ e fuvsiÏ.
Mesmo considerando-se a influĂȘncia dos sofistas, nĂŁo se pode deixar de notar
a informação de que, para o autor do tratado Da dieta, a doença também é
kataV novmon, uma vez que a prĂłpria morte o Ă©.
Se a doença genericamente considerada é kataV novmon, o que se poderia
pensar de uma doença como a maniva, que atinge especialmente o novmoÏ?
Pigeaud (1987:63) lembra que a maniva implica em erros de julgamento.
A maniva, ao contrĂĄrio da âdoença sagradaâ que toma todo o corpo, atinge
somente o cérebro; mas é exatamente o cerébro que é a sede do corpo,
conforme sentencia o capĂtulo 14LittrĂ© do tratado Da doença sagrada:
Eijdevnai deV crhV touVÏ ajnqrwvpouÏ, o@ti ejx oujdenoVÏ hJmi~n aiJ hJdonaiV givnontai kaiV aiJ eujfrosuvnai kaiV gelwvteÏ kaiV paidivai h# ejnteu~qen, kaiV lu~pai kaiV ajnivai kaiV dusfrosuvnai kaiV klauqmoiv. KaiV touvtw/ froneu~men mavlista kaiV noeu~men kaiV blevpomen
153
kaiV ajkouvomen kaiV ginwvskomen tav te aijscraV kaiV taV kalaV kaiV taV kakaV kaiV taV ajgaqaV kaiV hJdeva kaiV ajhdeva, taV meVn novmw/ diakrivnonteÏ, taV deV tw/~ xumfevronti, aijsqanovmenoi, tw/~ deV kaiV taVÏ hJdonavÏ kaiV taVÏ ajhdivaÏ toi~si kairoi~si diaginwvskonteÏ, kaiV ouj taujtaV ajrevskei hJmi~n. Tw/~ deV aujtw/~ touvtw/ kaiV mainovmeqa kaiV parafronevomen, kaiV deivmata kaiV fovboi parivstantai hJmi~n taV meVn nuvktwr, taV deV meq jhJmevrhn, kaiV ejnuvpnia kaiV plavnoi a!kairoi, kaiV frontivdeÏ iJkneuvmenai, kaiV ajgnosivh tw~n kaqestewvntwn kaiV ajhqivh kaiV ajpeirivh.
Ă preciso que os homens saibam que nossos prazeres, nossas alegrias, risos e brincadeiras nĂŁo provĂȘm de coisa alguma senĂŁo dali (, isto Ă©, do cĂ©rebro), assim como os sofrimentos, as afliçÔes, os dissabores e os prantos. E, sobretudo, atravĂ©s dele, pensamos, compreendemos, vemos, ouvimos e reconhecemos o que Ă© feio e o que Ă© belo, o que Ă© ruim e o que Ă© bom, o que Ă© agradĂĄvel e o que Ă© desagradĂĄvel, tanto distinguindo as coisas conforme o costume, quanto sentindo-as conforme o que for conveniente ââââ e distinguindo dessa forma os prazeres dos desprazeres; de acordo com a ocasiĂŁo, as mesmas coisas nĂŁo nos agradam sempre. Ă tambĂ©m atravĂ©s dele que enlouquecemos e deliramos, e nos vĂȘm os terrores, os medos, alguns durante a noite, outros durante o dia, e, as insĂŽnias, os erros inoportunos, as preocupaçÔes inconvenientes, a ignorĂąncia do estabelecido, a falta de costume e a inexperiĂȘncia.
(MS,14Littré)
Pigeaud (loc.cit.) lembra que nĂŁo se pode falar de uma cisĂŁo entre fĂsico
e mental, no que concerne à distinção entre maniva e doença sagrada, uma vez
que na origem da doença, o mental e o fĂsico se confundem. Por outro lado, os
efeitos da maniva partem exclusivamente do cérebro. O cerébro é, portanto,
154
onde se localiza a maniva, que parece ser a face proVÏ toVn novmon da âdoença
sagradaâ.
O tratado Ares, åguas e lugares, ao contrårio do Da doença sagrada,
terĂĄ como ponto de partida o novmoÏ e o nĂvel menos imanente da fuvsiÏ,
propondo um movimento de anĂĄlise que vai do que Ă© extra-corpĂłreo em
direção ao corpo, que Ă© passivo tanto da fuvsiÏ, quanto do novmoÏ.
O interesse do tratado Ares, ĂĄguas e lugares pelo novmoÏ pode ser
verificado no seu interesse pelos novmoi que apresentam grandes diferenças:
KaiV oJkovsa meVn ojlivgon diafevrei tw~n ejqnevwn, paraleivyw [Aqueles povos
que apresentam apenas pequenas diferenças, eu os deixarei de lado]
(14Littré).
O que o autor do Ares, ĂĄguas e lugares parece procurar nesse
momento do tratado Ă© o contraste entre diversos novmoi para depreender-lhes a
influĂȘncia na natureza do homem.
Os tratados Da doença sagrada e Ares, åguas e lugares não apenas
reiteram mutuamente suas idéias, mas apresentam um certo grau de
complementaridade, verificando, cada um deles, aspectos dessemelhantes â
mas jamais divergentes â de questĂ”es semelhantes que tĂȘm por alicerce a
construção de limites mais claros para a natureza do homem.
O tratado Da doença sagrada é, no Corpus hippocraticum, o que mais
claramente prenuncia a relação que o homem da Grécia clåssica estabelecerå
com a esfera divina, especialmente em Atenas. Depois de HerĂłdoto e antes de
TucĂdides, o tratado expande o domĂnio do lovgoÏ, gerando ab anteriori
débitos na filosofia, na literatura e na historiografia. O Da doença sagrada e o
Ares, åguas e lugares lançam luzes sobre a história de determinados conceitos
fundadores da Grécia clåssica, apontando para um novo modelo de relação
entre a fuvsiÏ e o sagrado.
O Da doença sagrada, em seu prĂłlogo polĂȘmico, critica aqueles que
curam evocando uma relação com deuses jå inaceitåvel em alguns contextos
155
sociais. O que parece incomodar o autor do tratado Da doença sagrada não é
o fato de a doença sagrada ser assim considerada, mas o fato de considerarem
essa doença mais sagrada do que as outras. A isonomia da condição de
sagrado entre as doenças é explicitada pelo Ares, åguas e lugares, no célebre
capĂtulo 22LittrĂ©, que trata do caso dos citas:
jEmoiV deV kaiV aujtw/~ dokei~ tau~ta taV pavqea qei~a ei^nai kaiV ta^lla pavnta kaiV oujdeVn e@teron eJtevrou qeiovteron oujdeV ajnqrwpinwvteron, ajllaV pavnta oJmoi~a kaiV pavnta qei~a.
Parece-me serem essas afecçÔes divinas, assim como todas as outras, e não ser nenhuma mais divina nem mais humana do que a outra, mas serem todas semelhantes e todas divinas.
(AAL, 22Littré)
O problema que o tratado Ares, ĂĄguas e lugares â assim como o Da
doença sagrada â propĂ”e nĂŁo Ă©, portanto, a dessacralização da doença, mas a
distribuição igualitĂĄria da caracterĂstica sagrada por todas as doenças.
LaĂn Entralgo204 (1987:57-8) crĂȘ tratar-se, nĂŁo somente nos textos aqui
em questão, mas em todo o Corpus hippocraticum, de uma divinização da
natureza, ainda caracterĂstica de um âradical naturalismo religioso dos povos
indo-europeusâ.
O que acredito que precisaria ser acrescentado a essa discussĂŁo
proposta por LaĂn Entralgo acerca do aspecto divino da fuvsiÏ Ă© a noção de
que o termo fuvsiÏ abriga um espectro semĂąntico mais amplo do que aquele
que o nosso vocĂĄbulo ânaturezaâ apresenta. Assim, tomando em consideração
um certo feixe de traços semĂąnticos abarcado pela palavra fuvsiÏ, nĂŁo haveria
204 v. p.134 desta tese, a respeito da posição de LaĂn Entralgo.
156
como refutar os argumentos do erudito espanhol. Mas o termo fuvsiÏ Ă© tĂŁo
plural, quanto parecem ser as suas relaçÔes como o divino.
Historicamente relevante parece-me ser a condenação de um modelo de
relação entre homens e deuses, em prol de uma nova forma de pensar sobre o
sagrado. NĂŁo era mais possĂvel, para um padrĂŁo intelectual que se instaurava
no século Va.C., a ética antropomórfica dos deuses que se nota na poesia, e,
de modo particular, na Ă©pica.
Os caprichos e as vinganças divinas ainda teriam seu lugar na
historiografia de HerĂłdoto, que, protegido pelo wJÏ levgousi, evita posicionar-
se com relação a isso, assumindo assim o lugar limĂtrofe entre as aijtivai de
Homero e as de HipĂłcrates.
A resposta Ă questĂŁo acerca do alvo da parte polĂȘmica do tratado Da
doença sagrada encontra mais profundidade, quando se pensa nas etiologias
de HerĂłdoto, e especialmente na sua patogĂȘnese. O que propĂ”e o autor do Da
doença sagrada nĂŁo Ă© que sejam os deuses excluĂdos das etiologias, mas que
sejam desconsiderados no estudo da patogenia e, por conseguinte, na terapia.
O sagrado Ă© deslocado de uma fuvsiÏ imediatamente ligada ao homem
atravĂ©s das aijtivai para um outro nĂvel de fuvsiÏ mais genĂ©rico e abstrato,
que se traduz por um novmoÏ oriundo de um lovgoÏ transcendente ao homem. A
conclusão do tratado Da doença sagrada consiste no texto mais esclarecedor
dessa proposta:
Au@th deV hJ nou~soÏ hJ iJerhV kaleomevnh ejk tw~n aujtw~n profasivwn givnetai ajf j w%n kaiV aiJ loipaiV ajpoV tw~n prosiovntwn kaiV ajpiovntwn, kaiV yuvceoÏ, hJlivou, pneumavtwn metaballomevnwn te kaiV mhdevpote ajtremizovntwn. Tau~ta d j ejstiV qei~a, w@ste mhdeVn diakrivnonta toV nouvshma qeiovteron tw~n loipw~n noushmavtwn nomivzein, ajllaV pavnta qei~a kaiV ajnqrwvpina pavnta.
157
Essa doença dita sagrada provém das mesmas causas que as demais, ou seja, provém de coisas que se aproximam e que se afastam, como o frio, o sol e os ventos que estão em mutação e nunca se estabilizam. Mas tudo isso é divino; de sorte que em nada se distinga essa enfermidade como mais divina do que as outras enfermidades, mas elas todas são divinas e todas elas são humanas.
(MS, 18Littré)
Poder-se-ia mesmo pensar, a partir desse excerto, em uma iJeraV (ou
qeiva) fuvsiÏ, e acredito que nĂŁo hĂĄ como se dizer que isso seria um equĂvoco.
A dificuldade, parece-me, estĂĄ em se reconhecer que a fuvsiÏ ajnqrwvpou, por
exemplo, â ou outra fuvsiÏ que se relacione diretamente com o homem, como
a dos animais ou a das plantas â Ă© divina, especialmente se se levar em
consideração que a natureza do corpo humano foi claramente definida no
tratado PeriV fuvsioÏ ajnqrwvpou205:
ToV deV sw~ma tou~ ajnqrwvpou e!cei ejn eJwutw/~ ai%ma kaiV flevgma kaiV colhVn xanqhvn te kaiV mevlainan, kaiV tau~t j ejstiVn aujtevw/~ hJ fuvsiÏ tou~ swvmatoÏ, kaiV diaV tau~ta ajlgevei kaiV uJgiaivnei.
O corpo do homem contĂ©m sangue, fleuma, bile amarela e negra, e nisso consiste a natureza do corpo (fuvsiÏ tou~ swvmatoÏ) , atravĂ©s da qual adoece e tem saĂșde.
(NH, 4Littré)
Não é aà que se vai encontrar a divindade da doença. O aspecto sagrado
nĂŁo se encontra nas aijtivai nosolĂłgicas â que sĂŁo, por via de regra, fundadas
na homeostase humoral â, mas nas profavseiÏ â como os ares, as ĂĄguas e os
205 O tratado Da natureza do homem seguramente data do final do século V a.C.
158
climas â que sobrepujam tanto o novmoÏ, quanto essa fuvsiÏ imediata sobre a
qual pode agir o ijatrovÏ â tecnivthÏ.
O campo de ação da ijatrikhV tevcnh é precisamente o dessa natureza
imediata cujo espectro é o que o autor do Da doença sagrada parece
identificar, no trecho citado acima, como a face humana da doença.
Os tratados Da doença sagrada e Ares, åguas e lugares206 parecem
tentar substituir o espaço do sagrado por uma patologia fisiológica207 que se
opÔe a um uJgiaivnein absoluto, que é o padrão de uma normalidade que cabe
ao ijatrovÏ restituir ou instituir, conforme algum novmoÏ.
Ao ijatrovÏ, cabe adequar, em prol de uma fuvsiÏ humana, o novmoÏ,
atravĂ©s dos dois instrumentos da ijatrikhV tevcnh â o favrmakon e a
principalmente a divaita â, a um outro nĂvel da fuvsiÏ, que Ă©, conforme nos
mostra o trecho acima do tratado Da doença sagrada, divino e, por isso,
sagrado.
206 O mesmo poder-se-ia dizer de outros tratados, como o Da natureza do homem, o Da medicina antiga, e os tratados sobre a mulher, ... 207 A patologia fisiolĂłgica Ă© longamente discutida e compatida por Canguillhem (1990: passim).
159
6. CONCLUSĂO
A âdoença sagradaâ nĂŁo Ă© mais divina nem mais sagrada do que
qualquer outra doença. Assim se inicia o tratado Da doença sagrada. à uma
assertiva que tambĂ©m Ă© encontrada no capĂtulo 14LittrĂ© do tratado Ares,
åguas e lugares. Não se trata propriamente de uma negação do caråter
sagrado da doença; trata-se sobretudo de uma questão de método: não é o
aspecto divino da doença que interessarå aos tratados, mas aquilo que, na
enfermidade, concerne Ă fuvsiÏ.
O estudo do tratado Da doença sagrada contou com trĂȘs momentos
fundamentais até o presente. O prestigioso estudo de Littré, que acompanha a
sua edição do Corpus hippocraticum foi considerado por mim a primeira entre
essas anĂĄlises, pois resgata os tratados do Corpus hippocraticum da ciĂȘncia,
para conferir-lhes foros de fonte para histĂłria da ciĂȘncia. LittrĂ© respaldava no
tratado o ideårio cientificista que caracterizou o século XIX. O tratado Da
doença sagrada atendia os desĂgnios do positivista francĂȘs tambĂ©m no que diz
respeito a dessacralização da doença e de toda a natureza.
O segundo momento dos estudos acerca do tratado foi introduzido por
Cornford, que percebia não somente no Da doença sagrada, mas em quase
todo o Corpus hippocraticum as raĂzes do empirismo, e â apenas por
conseguinte â da ciĂȘncia
Foram dois passos fundamentais para a atual compreensĂŁo do tratado,
que tiveram como princĂpio a definitiva inserção do Corpus hippocraticum
nas veredas historiogrĂĄficas.
160
O terceiro instante das anålises que são dedicadas ao tratado Da doença
sagrada consiste na proposta de Jackie Pigeaud, que notava, no tratado, um
esforço de desculpabilização do homem. Para Pigeuad, a fuvsiÏ circunscreve
uma ĂĄrea de neutralidade moral, para onde o tratado faz convergir as causas
das mazelas humanas.
Observei, no entanto, que o conceito de fuvsiÏ, amplo e mesmo
oscilante na cultura grega, nĂŁo pode ser percebido sem que se leve em
consideração todas as suas nuanças semùnticas. Nesse aspecto, a teoria de
Paul Veyne acerca das modalidades de crença apontou a possibilidade de
matização do conceito de fuvsiÏ, fundamentada nas relaçÔes que os tratados
Da doença sagrada e Ares, ĂĄguas e lugares estabelecem entre novmoÏ e
fuvsiÏ.
A matização do conceito de fuvsiÏ revela-se muito eficaz para o estudo
dos tratados do Corpus hippocraticum e especialmente dos que essa tese
estuda, uma vez que se depreendem, julgo, pelo menos, dois nĂveis claramente
observĂĄveis da fuvsiÏ. Um desses nĂveis, o mais imanente, presta-se a ser o
campo de ação da ijatrikhV tevcnh. A esse nĂvel pertence a natureza do
homem, tema de um tratado humoral homĂŽnimo.
O tratado Ares, åguas e lugares, que mantém com o Da doença sagrada
uma relação de compementaridade, estuda o encontro entre esses dois nĂveis
da fuvsiÏ, o imanente e o divino.
A posição do ijatrovÏ estĂĄ claramente delineada a partir dessa anĂĄlise.
Ao ijatrovÏ cabe agir com os instrumentos da tevcnh dentro dos estritos limites
do nĂvel mais imediato da fuvsiÏ.
A âdoença sagradaâ, assim como todas as doenças, Ă© divina e, portanto,
sagrada se se tomar como referĂȘncia a sua relação com o nĂvel mais divino da
fuvsiÏ; ao passo que, para o ijatrovÏ, interessava dominar, atravĂ©s da tevcnh, o
161
que, na doença concernia ao nĂvel mais tangĂvel da fuvsiÏ, sobre o qual ele
podia operar.
A literatura médica dos tratados Da doença sagrada e Ares, åguas e
lugares, de carĂĄter sobretudo pragmĂĄtico, tomou para si a responsabilidade de
conciliar o homem com a fuvsiÏ que lhe Ă© inatingĂvel.
162
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e Literatura Grega).
RESUMO
A presente tese investiga os limites do sagrado na nosologia hipocrĂĄtica exposta sobretudo no tratado Da doença sagrada. Primeiramente, a tese apresenta um estudo acerca do tratamento do tema pelos teĂłricos que a ele se dedicaram. Em seguida, procede-se a uma anĂĄlise dos reflexos literĂĄrios do processo de laicização das atividades polĂades. Essa anĂĄlise tem por fim verificar como e onde o Corpus hippocraticum, e principalmente o tratado Da doença sagrada, se insere nesse processo. Nos tratados do Corpus hippocraticum analisados, o tema da laicização da doença Ă© considerado sob a perspectiva de uma matização axiolĂłgica verificada principalmente na relação entre novmoÏ e fuvsiÏ, e promovida pela tevcnh. A tese apresenta tambĂ©m uma nova proposta de tradução do tratado, condição fundamental para essa pesquisa. TambĂ©m Ă© verificado o lugar do tratado no Corpus hippocraticum â mormente em relação ao Ares, ĂĄguas e lugares â, para determinar o grau de sua representatividade no Corpus hippocraticum e a sua contribuição para o pensamento ocidental.
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CAIRUS, Henrique Fortuna. Os limites do sagrado na nosologia
hipocrĂĄtica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1999.
175 fls. Mimeo. Tese de Doutorado em Letras ClĂĄssicas
(LĂngua e Literatura Grega).
RESUMĂ
La prĂ©sente thĂšse se propose de rechercher les limites du sacrĂ© dans la nosologie hippocratique exposĂ©e surtout dans le traitĂ© Sur la maladie sacrĂ©. Dans un premier moment, la thĂšse, presente un Ă©tude de lâapproche du thĂšme par les savants qui sây sont consacrĂ©. Ensuite, on a fait une analyse des reflets littĂ©raires du processus de laĂŻcisation des activitĂ©s de la pĂłlis. Cette analyse a pour but de vĂ©rifier comment et oĂč le Corpus hippocratique, et surtout le traitĂ© Sur la maladie sacrĂ©, apparaĂźt dans ce processus. Dans les traitĂ©s analysĂ©s du Corpus hippocratique, le thĂšme de la laĂŻcisation de la maladie est considerĂ© de la perspective dâune nuance axiologique verifiĂ©e surtout dans les relations entre le novmoÏ et la fuvsiÏ, et promue par la tevcnh. Cette thĂšse prĂ©sente Ă©galement une nouvelle traduction du traitĂ©, condition fondamentale pour cette recherche. Il est aussi verifiĂ© le lieu du traitĂ© dans le Corpus hippocratique â surtout par rapport au traitĂ© Airs, eux, lieux â, afin de dĂ©terminer le degrĂ© de sa reprĂ©sentativitĂ© dans le Corpus hippocratique et sa contribution Ă la pense occidentale.
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CAIRUS, Henrique Fortuna. Os limites do sagrado na nosologia
hipocrĂĄtica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1999.
175 fls. Mimeo. Tese de Doutorado em Letras ClĂĄssicas
(LĂngua e Literatura Grega).
ABSTRACT
This thesis investigates the limits of the sacred in hypocratic nosology shown in the treatise The Sacred Disease. At first, this thesis is a study about the treatment of this theme by the theorists. Secondly, there is an analyse of the influences of the laicization process in the political world inside the classical literature sphere. Finally this seeks the âwhereâ and the âhowâ in the Corpus Hippocraticum and, specially, how the Treatise The Sacred Disease is included in thise process. Among many treatises analysed, the laicization of the disease is considered under a perspective of a axiological nuance basically perceived in the relation between novmoÏ and fuvsiÏ, and construted by tevcnh. This thesis also presents a new translation of the treatise, fundamental condition to this study. The place of The Sacred Disease in the Corpus hippocraticum is also viewedâ specially in front of Airs, Waters, Places â to determine the importance of its representativity in the Corpus hippocratcum and its contribution to the western thought.