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Debates em Direito Público Revista de Direito dos Advogados da União ano 11 - n. 11 - outubro de 2012 RDDP11.indd 1 22/10/2012 12:15:40

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Debates em Direito PúblicoRevista de Direito dos Advogados da União

ano 11 - n. 11 - outubro de 2012

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Diretoria da ANAUNI – Biênio 2011/2013

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DEBATES EM DIREITO PÚBLICOREVISTA DE DIREITO DOS ADVOGADOS DA UNIÃOano 11 - n. 11 - ISSN 1677-8146Brasília – outubro 2012Periodicidade: anualTiragem: 1.250 exemplaresEdição: Associação Nacional dos Advogados da UniãoSHS Qd. 06 Conj. A Bl. “C” Salas 504/505 – Edifício Brasil 21 CEP 70316-109 – Brasília, DF

Conselho Fiscal da ANAUNI – Biênio 2011/2013<[email protected]>

Titular:Titular:Titular:

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Marcos Luiz Silva (PU/PI) <[email protected]>Rommel Madeiro de Macedo Carneiro (CONJUR/MJ) <[email protected]> Ciro Carvalho Miranda (CONJUR/MS)Vitor Pierantoni Campos (PU/PR) <[email protected]>Ciro Benigno Porto (CONJUR/MDA)Claudio Fontes Faria e Silva (CONJUR/MT) <[email protected]> Maria Clarice Maia Mendonça (CONJUR/MJ)Thiago Carvalho Barreto Leite (SGCT) <[email protected]>Marconi Arani Melo Filho (CONJUR/ME)Camila Araújo Soares (Sec. Especial dos Portos/PR) <[email protected]> Sérgio Eduardo Freire Miranda (PU/PI)Rogério Antonio Dornelas Sóther (PRU-5/PE) <[email protected]>Armando Miranda Filho (CONJUR/MPOG)Pedro Vasques Soares (PU/MG) <[email protected]>Geraldine Lemos Torres (CONJUR/MDA)Márcia Bezerra David (PRU-4/RS) <[email protected]>

Sumário

Apresentação .................................................................................................................7

La difesa dello Stato in giudizio e la soluzione italianaIgnazio Francesco Caramazza ....................................................................................9

1 Lo Stato in giudizio e la sua difesa in generale ......................................................92 La soluzione italiana ...........................................................................................122.1 Gli uffici del contenzioso ....................................................................................142.2 La riforma del 1865 e l’istituzione della Avvocatura Erariale ................................152.3 La c.d. “controriforma Crispi” .............................................................................172.4 L’evoluzione successiva alla Costituzione repubblicana ........................................192.5 La crisi di trasformazione in atto ........................................................................213 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili descrittivi ..................233.1 Il rapporto dell’Avvocatura dello Stato con le amministrazioni statali e con il

Governo ............................................................................................................233.2 Organizzazione dell’Avvocatura dello Stato ........................................................243.3 La funzione di rappresentanza e difesa giudiziaria e la funzione consultiva .........294 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili critici e ricostruttivi

dell’attività funzionale ........................................................................................314.1 La funzione di rappresentanza e difesa giudiziaria – Il mandato legislativo

diretto ex lege ....................................................................................................314.2 La funzione consultiva. Natura istituzionale dell’attività – Caratteri comuni o

differenziali rispetto alla consulenza generale del Consiglio di Stato ....................345 Considerazioni conclusive e brevi notazioni sui costi e benefici dell’attività di

istituto ...............................................................................................................36

A Fazenda Pública no novo Código de Processo CivilMarco Aurélio Ventura Peixoto ...............................................................................41 Introdução .........................................................................................................411 O novo Código de Processo Civil – Instrumento hábil para se atingir a duração

razoável e a efetividade na prestação jurisdicional? ............................................432 A Fazenda Pública no novo Código de Processo Civil ..........................................482.1 A razoabilidade das normas processuais afeitas à Fazenda Pública ......................492.2 A consagração da Advocacia Pública no novo CPC .............................................502.3 A responsabilização do advogado público por descumprimento de decisões

judiciais .............................................................................................................512.4 Honorários advocatícios nas demandas contra a Fazenda Pública e sucumbência

recursal progressiva ...........................................................................................532.5 A nova sistemática das prerrogativas de prazos para manifestações da Fazenda

Pública ..............................................................................................................542.6 A remessa oficial no novo CPC ...........................................................................562.7 Dispensa de custas processuais e de preparo recursal .........................................572.8 A eficácia imediata das decisões – Ausência de efeito suspensivo ........................582.9 O depósito imediato da multa por descumprimento de obrigação ......................592.10 A execução da obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública .........60

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2.11 A participação da Fazenda Pública no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas ....................................................................................61

Conclusão ..........................................................................................................63 Referências ........................................................................................................64

A criação de conselhos profissionais e a delegação da atividade de fiscalização de profissões regulamentadasFelipe Nogueira Fernandes ......................................................................................67 Introdução .........................................................................................................67 Da competência .................................................................................................69 Da natureza das atividades ................................................................................69 Da descentralização ...........................................................................................71 Do regime jurídico .............................................................................................73 Conclusão ..........................................................................................................82 Referências ........................................................................................................82

Despesas plurianuais e a proibição do artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000 – Lei de Responsabilidade FiscalPaulo Fernando Feijó Torres Jr. ................................................................................83 Introdução .........................................................................................................831 Abordagem constitucional .................................................................................832 Análise infraconstitucional .................................................................................86 Conclusão ..........................................................................................................89 Referências ........................................................................................................89

A moralidade no controle da discricionariedade do ato administrativoCesar Jackson Grisa Júnior .......................................................................................91 Introdução .........................................................................................................911 O controle do ato administrativo discricionário ...................................................931.1 Do ato administrativo discricionário ...................................................................931.2 Da possibilidade do controle do ato administrativo discricionário .......................972 O princípio constitucional da moralidade administrativa ...................................1002.1 Breve histórico da moralidade administrativa ....................................................1002.2 A autonomização da moralidade administrativa ...............................................1013 A definição do princípio da moralidade administrativa para o controle da

discricionariedade do ato administrativo ..........................................................104 Conclusão ........................................................................................................107 Referências ......................................................................................................109

Estruturação de cargos em carreira na Advocacia-Geral da UniãoMarco Antonio Perez de Oliveira...........................................................................1111 O artigo 131, §2º, da Constituição e a estruturação em carreira .......................1112 Ausência de diferenciação funcional nas carreiras da Advocacia-Geral da

União – A omissão inconstitucional do legislador complementar ......................1133 A delegação das atribuições da Advocacia-Geral da União a pessoas

estranhas aos cargos da instituição – A ação inconstitucional do administrador público ......................................................................................117

4 Conclusões ......................................................................................................121 Referências ......................................................................................................122

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A nova roupagem da autoridade racional-legal – Os novos pressupostos (inclusivos) do Estado Democrático de DireitoFlávia do Espírito Santo Batista ............................................................................123 Introdução .......................................................................................................1231 A autoridade como elemento de legitimação do Estado ...................................1251.1 A visão da dominação em Marx e em Weber ....................................................1252 Classificação tripartida da autoridade de Weber ...............................................1272.1 A racionalidade da dominação legal .................................................................1283 A evolução da dominação legal do Estado .......................................................1293.1 O paradigma do Estado Liberal de Direito – Das garantias individuais ...............1313.2 O paradigma do Estado Social de Direito – Dos direitos sociais .........................1333.3 O paradigma do Estado Democrático de Direito (inclusivo) ...............................1344 Conclusão ........................................................................................................140 Referências ......................................................................................................141

O direito à moradia entre a norma e a realidade – O caso do Jardim Botânico do Rio de JaneiroArmando Miranda Filho .........................................................................................145

Introdução .......................................................................................................1451 As políticas de gestão dos imóveis da União – A Secretaria do Patrimônio

da União (SPU) ................................................................................................1522 Contextualizando os fatos – O complexo caso do Jardim Botânico do Rio

de Janeiro ........................................................................................................1583 O retrato da Comunidade do Horto .................................................................1644 Processos judiciais – A interação entre os atores institucionais envolvidos .........1664.1 Processo nº 2005.51.01.008835-7 – Ação de reintegração de posse

tendo como autora a União .............................................................................1684.2 Processo nº 2003.51.01.027485-5 – Ação Civil Pública tendo como

autor o Ministério Público Federal ....................................................................1724.3 Processo nº 00.0932754-1 – Ação de reintegração de posse tendo como

autora a União ................................................................................................175 Conclusão ........................................................................................................178 Referências ......................................................................................................180

O alcance da Emenda Constitucional nº 57/2008 e a inconstitucionalidade material das normas estaduais que suprimiram a realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas na criação dos municípios após a promulgação da Constituição Federal de 1988Andréa de Freitas Varela ........................................................................................185

Introdução .......................................................................................................1861 Breve histórico .................................................................................................1872 Do reconhecimento da repercussão geral no Recurso Extraordinário

nº 614.384/SE pelo STF ...................................................................................1893 Das limitações do poder constituinte derivado ..................................................1914 Da inconstitucionalidade material insanável e do desrespeito ao

princípio da soberania popular .........................................................................193 Conclusão ........................................................................................................195 Referências ......................................................................................................196

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A proteção à intimidade na Constituição da República de 1988Ciro Benigno Porto .................................................................................................1971 Introdução .......................................................................................................1972 O direito fundamental à intimidade .................................................................1982.1 O direito à vida privada e o direito à intimidade – Identidade de conceitos? ......1992.2 Origem e fontes jurídico-positivas do direito à intimidade .................................2022.3 O direito à intimidade como direito fundamental de primeira geração ..............2043 O direito à intimidade na Constituição da República de 1988 ...........................2053.1 Breve histórico da positivação do direito à intimidade nas constituições

brasileiras ........................................................................................................2053.2 Previsão constitucional da tutela do direito à intimidade na Constituição

Federal de 1988 ...............................................................................................2083.3 O sigilo das comunicações telefônicas como manifestação do direito à

intimidade .......................................................................................................2093.4 Restrições expressas à inviolabilidade das comunicações telefônicas ..................2104 Considerações finais .........................................................................................212 Referências ......................................................................................................213

Dignidade da pessoa humana e ponderaçãoEmanuel de Melo Ferreira ......................................................................................215

1 Introdução .......................................................................................................2152 Aspectos filosóficos da dignidade – A doutrina cristã e a filosofia moral

de Kant............................................................................................................2173 Conceituação e concretização da dignidade .....................................................2204 Aspectos jurídicos da dignidade .......................................................................2234.1 Aspecto geral – Fundamento do Estado Democrático de Direito .......................2234.2 Aspecto específico – Dignidade da pessoa humana como norma jurídica ..........2255 Dignidade da pessoa humana e ponderação ....................................................2295.1 Dignidade da pessoa humana e a submissão do réu ao exame de DNA ............232 Considerações finais .........................................................................................234 Referências ......................................................................................................235

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Apresentação

Comemorando dez anos da sua criação em outubro de 2002, a Revista Debates em Direito Público alcança a sua 11ª edição firmando-se como publicação de referência nas letras jurídicas nacionais.

Cumprindo sua missão de contribuir para o aperfeiçoamento e difusão do conhecimento jurídico dos membros da carreira de Advogado da União, esta edição trata de temas de grande relevância para o exercício e desenvolvimento da advocacia pública brasileira e, por conseguinte, do próprio Estado Brasileiro.

Iniciamos esta edição com as letras do Dr. Ignazio Francesco Caramazza, Avvocato Generale dello Stato Italiano, sobre o modelo italiano de representação judicial do Estado Italiano. Já o Dr. Marco Aurélio Ventura Peixoto brinda-nos com oportunas considerações sobre a Fazenda Pública no projeto de lei do Novo Código de Processo Civil. O Dr. Felipe Nogueira Fernandes, por sua vez, analisa em seu artigo a natureza jurídica e a função fiscalizatória dos conselhos profissionais, enquanto o Dr. Paulo Fernando Feijó Torres Jr. dedicou-se ao exame do alcance do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal em relação às des-pesas plurianuais. A aplicação do princípio da moralidade administrativa no controle da discricionariedade do ato administrativo foi o tema de dissertação do Dr. Cesar Jackson Grisa Júnior. Por sua vez, a Dra. Flávia do Espirito Santo Batista lança luzes sobre a concepção moderna de Estado Democrático de Direito. O Dr. Marco Antonio Perez de Oliveira nos oferece relevante contribuição para a estruturação em carreira dos cargos na Advocacia-Geral da União e o Dr. Armando Miranda Filho nos presenteia com percuciente artigo sobre a execução das políticas públicas de moradia pelo Estado Brasileiro a partir do caso judicial envolvendo o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Destaca-se igualmente o artigo em que Dra. Andréa de Freitas Varela analisa com propriedade as normas estaduais que suprimiram a realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas na criação dos municípios após a promulgação da Constituição Federal de 1988 em face da Emenda Constitucional nº 57, de 2008. A proteção ao direito fundamental a intimidade foi objeto do

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eloquente artigo do Dr. Ciro Benigno Porto e o Dr. Emanuel de Melo Ferreira contribui com relevantes ponderações sobre o princípio da dig-nidade da pessoa humana.

Concluo esta apresentação registrando meus sinceros agradecimen-tos ao Presidente da ANAUNI, Dr. Marcos Luiz Silva, pela confiança na assunção desta relevante função; ao ex-Presidente do Conselho Editorial, Dr. Marcelo Ribeiro do Val, pelo apoio e companheirismo; aos autores e aos membros do Conselho Editorial, pela excelência de suas contribui-ções; e à parceria inestimável da Editora Fórum, pela seriedade de sua equipe e qualidade do trabalho realizado.

Boa leitura!

Francisco Alexandre Colares Melo CarlosPresidente do Conselho Editorial.

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La difesa dello Stato in giudizio e la soluzione italiana*Ignazio Francesco CaramazzaSecretario Geral da Avvocatura Generale dello Stato em 1994. Vice Avvocato Generale em 2002. Avvocato Generale dello Stato desde outubro de 2010.

Sommario: 1 Lo Stato in giudizio e la sua difesa in generale – 2 La soluzione italiana – 3 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili descrittivi – 4 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili critici e ricostruttivi dell’attività funzionale – 5 Considerazioni conclusive e brevi notazioni sui costi e benefici dell’attività di istituto

1 Lo Stato in giudizio e la sua difesa in generaleIl problema dello Stato in giudizio e del come possa essere

organizzata la sua difesa, suole generalmente essere collegato al principio della divisione dei poteri ed è considerato figlio della Rivoluzione francese sotto l’etichetta dell’assoggettamentodell’esecutivo al giudiziario.

E’ questa una semplificazione riduttiva che appiattisce centinaia di anni di storia in una sintesi imprecisa, in quanto il problema nacque ben prima della rivoluzione francese e questa, lungi dall’assoggettare l’esecutivo al giudiziario volle creare, invece, un’amministrazione senza giudice. Bisogna, infatti, attendere la seconda metà dell’ottocento perché quell’assoggettamento possa considerarsi realizzato. In Francia come in Italia come in molti altri Paesi a regime amministrativo.

Per la verità l’esigenza che lo Stato, quanto meno in qualche suo aspetto, debba essere assoggettato al giudizio è stata avvertita — in modo invero confuso — anche in tempi antichissimi. La prima definizione razionale del problema compete al diritto romano dell’età imperiale, che, come è noto, distingueva l’Aerarium — patrimonio pubblico — dal Fiscus, patrimonio non personale ma privato dell’imperatore, affidatogli perchè potesse provvedere — da privato qual’ era — ad amministrare i servizi di Stato. Una singolarità del diritto romano dell’età imperiale era data dal fatto che l’imperatore non era considerato un pubblico funzionario ma un privato, anche se dotato di tutte le potestà pubbliche; potestà per il cui esercizio era necessario una adeguata provvista finanziaria.

* Lezione magistrale tenuta presso la LUISS l’8 maggio 2012.

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Ignazio Francesco Caramazza10

Tale singolarità deriva dalla raffinata tecnica utilizzata da Ottaviano per realizzare il passaggio di Roma dalla repubblica alla monarchia.

Dopo il trionfo della battaglia di Azio Ottaviano rinunciò alla carica di triumviro rei publicae constituendae ed il Senato lo insignì del titolo di Augusto, che aveva valenza quasi religiosa e che doveva prefigurare la futura deificazione — sia pure solo post mortem — degli imperatori romani1 e gli offrì tutte le più importanti cariche dello Stato. Ottaviano rifiutò di volta in volta le cariche ma accettò di svolgerne le funzioni. Non volle, ad esempio, la carica di Tribuno ma accettò di esercitare la tribunicia potestas. Si trovò, così, in breve tempo, a cumulare nelle sue mani tutte le fondamentali potestà pubbliche, dall’imperium militiae in giù. Il passaggio dalla repubblica alla monarchia imperiale divenne così un fatto compiuto.

In questo quadro il Fisco, patrimonio privato, a differenza dell’Erario, era dunque soggetto al giudizio ordinario2 ed aveva quindi bisogno di un avvocato che lo difendesse in giudizio: il più famoso advocatus fisci fu Papiniano, non a caso evocato come predecessore dal Mantellini, ultimo Avvocato Regio di Toscana e primo Avvocato Generale Erariale del Regno d’Italia.

L’età di mezzo, con la sua assoluta confusione di poteri, risospinse il problema nell’indistinto e bisogna attendere i regimi preliberali dell’assolutismo illuminato per vedere ricomparire il concetto abbozzato dal diritto romano e vederlo anzi precisare in termini dogmatici di assoluta chiarezza. Mentre nell’assolutismo puro vigeva il principio — consacrato nell’editto di Saint Germain — della assoluta inassoggettabilità a giudizio della pubblica Amministrazione, nei regimi di assolutismo illuminato — si parla della Prussia di Federico II il Grande, dell’Austria di Maria Teresa, della Toscana di Pietro Leopoldo di Lorena — si distingueva l’attività pubblica, l’actum principis, posto in essere iure imperii, come tale non giustiziabile (ma, a differenza che nell’assolutismo puro, già autolimitantesi con le regole della cameralistica e del diritto di polizia) dall’attività privata, iure gestionis, dello Stato inteso come ente patrimoniale e come tale assoggettata al sindacato dei giudici ordinari.3

1 E. Malcovati, Augusto in Enc. Italiana Treccani.2 U. Tambroni, Avvocature Erariali, in II Digesto Italiano, UTET, 1893-1899 – p. 719 ss.3 M.S. Giannini, Istituzioni di diritto amministrativo, Milano, 1981, p. 11 ss.

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La difesa dello Stato in giudizio e la soluzione italiana 11

Si tratta dei famosi giudici di Berlino che già conosceva il mugnaio di Sans-Souci, si tratta dei giudici ordinari di Firenze, cui Pietro Leopoldo commise le cause patrimoniali del Granducato, affidandone la difesa ad un avvocato pubblico all’uopo istituito.

Al tardo settecento prerivoluzionario va dunque datata la nascita del problema della difesa dello Stato in giudizio e nella stessa epoca va collocata la prima soluzione adottata, quella lorenese ora accennata.

Con motuproprio 27 maggio 1777, infatti, il Granduca Leopoldo di Toscana istituiva la magistratura dell’Avvocato Regio4 per “la difesa delle cause interessanti il Fisco, le Regalie ed il Nostro patrimonio ... le quali vogliamo siano trattate e difese con puro spirito di verità e di giustizia e che l’interesse del Fisco non prevalga mai alla ragione dei privati”.

Veniva, così, realizzata una delle tante riforme grazie alle quali il Granducato, in un quarto di secolo (1765-1790), cambiò radicalmente volto. Quello che era stato un povero ed infelice paese, schiacciato da un regime assoluto di rigore secondo solo all’inefficienza organizzativa e dissanguato dal disordine e dalla rapacità degli amministratori, si trasformò in una serena oasi di civiltà, retta da un ordinato ed efficiente regime “pre-liberale”, che fece della Toscana leopoldina il centro di attenzione della cultura europea, il campo sperimentale delle più avanzate innovazioni propugnate dai filosofi, dagli economisti e dai giuristi più insigni del “secolo dei lumi”.

Elencando alcune soltanto delle riforme leopoldine e con limita-zione al settore della giustizia ricorderemo: la soppressione del Tribunale dell’inquisizione e di tutti i fori privilegiati, l’abolizione della pena di morte e della tortura “che assolve il reo robusto e condanna il debole innocente”, l’inviolabilità del diritto di difesa, l’introduzione dell’istituto del risarcimento dei danni per errori giudiziari e per ingiusta detenzione. Per sottolineare quanto in anticipo sui tempi fossero queste riforme, sia consentito ricordare che per l’introduzione nell’ordinamento dei due istituti per ultimo citati, l’Italia unita dovette attendere la seconda metà del secolo scorso. Cioè circa duecento anni... .

4 Agli uffici pubblici del Granducato competeva la qualifica di “regi”, nonostante non facessero parte di un Regno, in virtù del titolo di Altezza Imperiale e Reale che spettava ai granduchi della dinastia Asburgo-Lorena (L. Pacinotti, L’Avvocatura Regia del Granducato di Toscana, in Rassegna Mensile dell’Avvocatura dello Stato, 1956, 125).

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Ignazio Francesco Caramazza12

2 La soluzione italianaIl sistema italiano derivato dall’antenato toscano sopra descritto e

che è proprio anche dell’Austria e della Spagna, potrebbe essere definito come sistema asburgico, perchè Austria, Spagna ed Italia (o, per essere più esatti, uno degli Stati italiani preunitari) hanno in comune la circostanza storica di essere stati governati da dinastie che discendevano dal comune ceppo degli Asburgo.

La matrice storico-culturale di tale sistema va cercata in quell’Austria teresiana che vide nascere la Cameralistica e il Diritto di polizia, scienze che furono precorritrici del diritto amministrativo.

La relativa civiltà esprimeva una concezione schiettamente illu-ministica dell’amministrazione dello Stato, e privilegiava una ordinata ed attenta gestione del settore finanziario. In quello spirito e nell’ottica di una natura privatistica di quella attività, con conseguente sua sot-toposizione a giudizio, fu dunque previsto, nell’ambito della gestione del patrimonio e della riscossione delle imposte, un ufficio legale che tutelasse gli interessi dell’amministrazione finanziaria nei confronti degli amministrati. Il sistema vide, quindi, il nascere di uno speciale organo, cui venne istituzionalmente affidata la difesa dello Stato in giudizio. L’Istituto, nato, così come si è visto, nella Toscana lorenese nel tardo ‘700 fu, poi trapiantato, dopo l’unificazione, nel Regno d’Italia. Dell’800 sono, invece, le analoghe “Finanzprokuratur” austriaca — con cui l’Avvocatura italiana è legata da un vero e proprio gemellaggio storico-culturale — e la “Direcciòn de lo Contencioso del Estado” spagnola, che ha assunto dal 1985, in occasione di una riforma, il nome di Servizio Giuridico dello Stato.

Questo sistema in esame prevede che la difesa dello Stato in giudizio sia assunta da uno speciale organo tecnico costituito da avvocati che sono allo stesso tempo funzionari dello Stato ed esercitano una competenza a carattere generale, estesa, in linea di principio, a tutti i tipi di giudizio. La razionalità del sistema comporta tre vantaggi fondamentali: il primo è quello di ispirare una linea di condotta uniforme per tutte le cause, quale che sia il giudice davanti al quali si discute, il secondo è quello di creare una classe di avvocati-funzionari altamente specializzati. Il terzo

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vantaggio è di tipo economico, perchè si tratta ovviamente di un sistema che consente allo Stato, come meglio si vedrà in prosieguo, notevoli risparmi di spesa.

Finanzprokuratur, Servizio Giuridico dello Stato, Avvocatura dello Stato sono istituti caratterizzati da un vincolo di dipendenza strutturale dalla pubblica amministrazione. In Austria l’istituto è alle dipendenze del Ministero delle Finanze, in Ispagna alle dipendenze del Ministero della Giustizia (ma era alle dipendenze di quello delle Finanze fino al 1984), in Italia è alle dipendenze della Presidenza del Consiglio, ma si tratta beninteso di un vincolo di dipendenza strutturale, non funzionale. Da un punto di vista funzionale esiste, invece, una garanzia di indipendenza correlata alla professionalità della funzione, professionalità incompatibile, com’è ovvio, con il principio di gerarchia.

In altri termini l’incardinazione dell’Avvocatura nell’amministrazione in senso soltanto strutturale comporta una netta distinzione dell’organo tecnico da tutte le singole branche dell’Amministrazione che devono essere rappresentate e consiliate, con una conseguente visione d’insieme di tutto il contenzioso dello Stato dinanzi a tutte le giurisdizioni.

Caratteristica, quest’ultima, particolarmente importante in uno Stato di non piccole dimensioni territoriali con una magistratura indipendente e caratterizzato dalla soggezione alla giurisdizione di una coesistente pluralità di Corti nazionali e sovranazionali, quale è il caso dell’Italia oggi.

Una difesa dello Stato non unitaria ma parcellizzata in vari uffici del contenzioso incardinati nelle singole amministrazioni o confidata a vari avvocati liberi professionisti potrebbe, ad esempio, essere indotta a non impugnare una sentenza che viene reputato conveniente accettare nel singolo caso, con conseguente passaggio in giudicato di un precedente che, se diventasse diritto vivente, potrebbe esporre lo Stato alla soccombenza nelle migliaia di altri casi pendenti nel Paese ed ignoti al singolo difensore responsabile della decisione di non impugnare, con drammatiche conseguenze finanziarie per il Bilancio dello Stato.

Altra ipotesi potrebbe essere quella della elaborazione di una tesi difensiva che, se accolta nella singola causa e divenuta poi diritto vivente, potrebbe esporre l’ordinamento ad una declaratoria di incostituzionalità

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della norma così interpretata o, peggio, ad una condanna in sede sovranazionale.

Il sistema austro-ispano-italiano è stato adottato, con varie modificazioni, da qualche decina di Paesi. Gli Stati di tradizione anglosassone si ispirano, invece, in linea di principio ad una promiscuità di funzioni civili e penali del P.M.; Francia e Germania si affidano a funzionari specializzati delle singole Amministrazioni. In quasi tutti i sistemi diversi dal nostro è poi prevista, in varie misure, la possibilità del ricorso ad avvocati del libero foro.5

2.1 Gli uffici del contenziosoCome si è accennato, l’Avvocatura dello Stato italiana deriva

dall’avvocato regio di Toscana.Il trapianto dell’istituto lorenese nell’ordinamento italiano non fu,

però, immediato. All’indomani dell’unificazione, con R.D. 9.10.1962, n. 915 venne esteso, invece, a tutto il Regno il sistema borbonico delle agenzie del contenzioso, modellato sull’esempio francese dell’agent judiciaire du trésor.

Il che era perfettamente logico in un sistema, ispirato anch’esso a quello francese, di un contenzioso dello Stato affidato essenzialmente ai tribunali ordinari del contenzioso amministrativo, che costituivano una sorta di sistema di giustizia interno all’Amministrazione e dinanzi ai quali lo Stato si difendeva direttamente con propri funzionari.

Gli uffici del contenzioso interpretarono in maniera estremamente riduttiva i loro compiti e si ridussero “... ad una amministrazione di spese pagate e di spese riscosse per liti perdute o per liti guadagnate ...”6 guadagnando inoltre una fama di scarsa trasparenza nei metodi seguiti per l’affidamento ai liberi professionisti delle (peraltro poche) cause dello Stato che dovevano essere trattate dinanzi ai giudici ordinari e che erano naturalmente, all’epoca, soltanto quelle relative alle attività iure gestionis.

5 Per la bibliografia su tale specifico argomento comparatistico si rinvia agli atti del Convegno Giuridico Internazionale delle Istituzioni di assistenza e difesa legale delle Amministrazioni dello Stato, tenutosi a Roma il 10-14 maggio 1976, Roma, 1978.

6 G. Mantellini, Lo Stato e il Codice civile, Firenze, 1883, III, 37.

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2.2 La riforma del 1865 e l’istituzione della Avvocatura ErarialePrima di passare alla storia della nascita e dello sviluppo dell’istituto

sia consentita una osservazione di carattere generale.Quando la difesa dello Stato in giudizio venga affidata, come accade

nel nostro ordinamento, ad un organo tecnico incardinato nell’Ammi-nistrazione, ma distinto dalle singole branche dell’Amministrazione, tale organo diventa allora un osservatorio privilegiato del variare del punto di equilibrio tra principio di libertà e principio di autorità. Punto di equilibrio che evolve nel tempo, in sintonia con le grandi crisi di tra-sformazione della società, dello Stato e del diritto.

Si tratta di crisi che, per linee generalissime, possiamo individuare in quattro momenti: il passaggio dall’ancien régime allo Stato liberal borghese; il passaggio dallo Stato liberal borghese allo Stato sociale o, per usare una terminologia gianniniana, allo Stato pluriclasse; il passaggio dallo Stato pluriclasse allo stato cosiddetto post-moderno. L’ultima crisi, quella attuale, che stiamo vivendo ai giorni nostri, segna, infine, il passaggio dallo Stato post-moderno allo Stato minimo.

Sono tutti cambiamenti che, semplificando al massimo, possiamo descrivere attraverso un diverso bilanciamento dei punti di equilibrio dei tre poteri tradizionali, legislativo, esecutivo e giudiziario che, da quando nacquero dall’indistinto del potere assoluto del sovrano, videro mutare (e di molto) le reciproche valenze nell’arco di due secoli, con conseguente intuitivo riflesso di tale mutamento sia sulla giustizia che sui compiti e le funzioni dell’avvocato che difende lo Stato in giudizio.

Dobbiamo, ovviamente, prendere l’avvio da quella che è tuttora la pietra miliare del nostro ordinamento di giustizia amministrativa, la legge abolitrice del contenzioso amministrativo del 1865, legge che, come è noto, soppresse i tribunali speciali del contenzioso, devolvendo al giudice ordinario tutte le cause, anche contro l’Amministrazione, in cui si facesse questione di un diritto civile o politico. L’unico limite posto al giudice ordinario nei confronti dell’Amministrazione fu il divieto di annullare l’atto amministrativo, che poteva essere soltanto disapplicato.

Fu una scelta di civiltà liberale coraggiosissima, perché si modellò su quella che era l’esperienza inglese, mediata attraverso la Costituzione belga del 1831 (dei cui articoli 92, 93 e 107, gli articoli 2, 4 e 5 della

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legge italiana abolitrice del contenzioso amministrativo rappresentano la letterale traduzione).

Si trattò però di una scelta probabilmente troppo in anticipo sui tempi, tanto vero che fiorì, immediatamente dopo l’approvazione della legge abolitrice, la primavera di una giurisprudenza che, sulla falsariga del modello belga, concesse aperture estremamente allarmanti per la classe dirigente del tempo, inducendola a correre ai ripari con energiche controspinte conservatrici. Nell’anno 1876 era pacifica, infatti, una giurisprudenza di tutte le Corti di Cassazione italiane che consentiva a chi fosse stato danneggiato da un atto amministrativo (ad esempio da un provvedimento prezzi) di chiedere il risarcimento del danno.7 Era un riconoscimento della risarcibilità dei danni da lesione di interesse legittimo ante litteram, che precorreva i tempi di ben 125 anni.

Tutto questo avveniva, poi, nonostante l’arcigna guardia montata dal Consiglio di Stato, all’epoca incardinato nell’esecutivo e però contraddittoriamente eretto in giudice dei conflitti fra potere esecutivo e potere giudiziario.

In sintomatica coincidenza con la concessione alla Corte di Cassazione romana della funzione di giudice dei conflitti, la classe politica ebbe il timore di spingersi troppo in là, considerata anche la larga apertura liberale già effettuata dalla giurisprudenza. Come controspinta ad una riforma troppo in anticipo sui tempi istituì, quindi, l’avvocatura allora chiamata erariale, e non a caso perché la riduttiva denominazione dava ragione di quella che sarebbe stata la linea di difesa commessa al nascente istituto, creato al dichiarato scopo di contenere i poteri di sindacato del giudice sull’atto della pubblica amministrazione.

L’avvocatura erariale si mosse, quindi, lungo la linea di contenere al massimo possibile l’ingerenza del giudiziario nei confronti dell’esecutivo. D’altra parte non dobbiamo dimenticare quale fosse all’epoca il rispettivo valore dei tre poteri tradizionali. Lo Stato liberal-borghese era nato con una supremazia del potere legislativo rispetto agli altri due. Era quella l’epoca delle grandi codificazioni, che realizzarono il sogno illuminista di una rete di regole generali ed astratte che imbrigliasse tutta la variegata

7 Cass. Roma, 13.3.1876, in Foro it., 1876, I, 842. Nella nota redazionale si attestava che il principio affermato costituiva “giurdisprudenza costante di tutte le cassazioni del Regno”.

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dimensione dell’operare umano. In proposito aveva scritto Napoleone: Waterloo sarà dimenticata, ma il mio codice civile vivrà per sempre.

Il potere esecutivo, forte nella sostanza, aveva però un campo di azione estremamente limitato: era quello il tempo dello “Stato gendar-me”, che si limitava sostanzialmente a difendere le frontiere all’esterno e l’ordine pubblico all’interno. Il potere giudiziario, poi, era veramente figlio di un dio minore, perché dalla rivoluzione francese era nato un potere giudiziario guardato con sospetto e diffidenza, soprattutto quando veniva chiamato a sindacare l’esecutivo, perché era considerata verità di fede l’equazione: “giudicare l’Amministrazione equivale ad amministrare”.

L’Avvocatura erariale del tempo, sotto la guida di Giuseppe Mantellini, ultimo Avvocato Regio di Toscana e che era diventato primo Avvocato Generale Erariale, al fine di contenere i poteri del giudiziario nei confronti dell’esecutivo si mosse — con pieno successo — lungo tre direttrici: quella di negare la natura di diritti alle situazioni nascenti da leggi amministrative; quella di negare la possibilità per i giudici di disapplicare l’atto amministrativo che avesse direttamente recato un pregiudizio; infine, quella più grave, di negare giurisdizione al giudice quando l’Amministrazione avesse operato jure imperi. Ecco, quindi, perché l’Avvocatura si denominava erariale: perché lo Stato intendeva assoggettarsi al giudizio soltanto quando avesse operato nella sua veste di diritto privato. Quando avesse operato, invece, come autorità esso doveva ritenersi sottratto al sindacato giurisdizionale. Alla stregua, cioè di quanto avveniva ai tempi dell’assolutismo illuminato. Alla primavera della giurisprudenza liberale succedette, quindi, per gli amministrati, l’inverno del più profondo scontento.8 Si verificava, così, uno di quegli ironici contrappassi di cui la storia non è avara: un Istituto nato cento anni prima in uno Stato preunitario come avanguardia preliberale veniva trapiantato nell’Italia unita in funzione di controspinta conservatrice.

2.3 La c.d. “controriforma Crispi”Il révirement giurisprudenziale ora descritto suscitò le più vibrate

proteste della società civile e dei suoi più illuminati rappresentanti, fra i quali spiccava Silvio Spaventa, dalle cui iniziative nacque, nel 1889, la

8 Atti Parlamentari, Senato del Regno, Discussioni, Tornata del 20.3.1888, 1170.

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Quarta Sezione del Consiglio di Stato. La relativa legge è nota anche come “controriforma Crispi” e va notato, però, che essa non nacque affatto in spirito controriformistico, perché si continuava a pensare che unico giudice, unica giurisdizione, fosse quella del giudice ordinario. La Quarta Sezione del Consiglio di Stato veniva investita quindi, secondo le intenzioni del legislatore del tempo, di un compito amministrativo di giustizia interna all’Amministrazione, con la funzione di sindacare la legittimità degli atti amministrativi attraverso una valutazione di tipo esclusivamente cassatorio.9

L’Avvocatura erariale, per bocca del suo Avvocato Generale, fu tra i grandi sostenitori della legge Crispi. Fu, poi, ancora l’Avvocatura erariale, con un ricorso alle sezioni unite della Cassazione romana, a provocare nel 1893 quella sentenza che riconobbe al Consiglio di Stato natura giurisdizionale,10 determinando quindi, il passaggio, nell’arco di appena quattro anni, del Consiglio di Stato, da organo di giustizia interna, ad organo giurisdizionale, per tale legislativamente confermato nel 1907. Questo, però, determinava anche una promozione dell’Avvocatura, che non era più soltanto il difensore della personalità patrimoniale dello Stato, ma diventava difensore del potere esecutivo e delle sue prerogative e quindi avvocato a tutto tondo “dello Stato” e non più soltanto dello Stato come persona privata.

Il disegno si doveva completare negli Anni ‘20 e ‘30 del secolo scorso con l’unificazione della Cassazione a Roma, con l’incardinamento dell’Avvocatura dello Stato, del Consiglio di Stato e della Corte dei Conti nella Presidenza del Consiglio, con l’istituzione del Foro erariale e con il mutamento, anche formale, della denominazione da Avvocatura erariale in Avvocatura dello Stato.11

Tale mutazione corrisponde al passaggio dallo Stato liberal-bor-ghese allo Stato sociale, o pluriclasse, in cui l’equilibrio dei tre poteri si modifica; il potere esecutivo abbandona le dimesse vesti di guardiano notturno e comincia ad occuparsi di edilizia, di sanità, di istruzione, di credito, di assicurazioni. Aumenta anche l’importanza del potere giudizia-rio che finalmente può sindacare l’esecutivo mentre arretra il legislativo.

9 N. Scialoia, Come il Consiglio di Stato divenne organo giurisdizionale, Riv. Dir. Pubbl. 1931, 411.10 Cass. SS.UU. Roma 21.3.1893 n. 177 in Foro it. 1893, I, 294.11 G. Manzari, Avvocatura dello Stato, Digesto, IV ed., Torino, 1988, II ss.

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Dominante, in questa fase, appare dunque il potere esecutivo, tant’è vero che tra le due grandi guerre del secolo scorso, allignarono le peggiori dittature che la storia ricordi.

In questo periodo l’Avvocatura dello Stato diventò il difensore delle prerogative del potere pubblico, e questo sia nel giudizio civile, nel quale allora le prerogative del potere pubblico erano molte ed importanti (basti ricordare il solve et repete), sia dinanzi al giudice amministrativo, dove l’avvocato dello Stato deduceva in giudizio la presunzione di legittimità dell’atto amministrativo.

Così come nella fattoria degli animali tutti gli animali sono uguali, ma alcuni sono più uguali degli altri — diceva acutamente Piccardi — ci sono giudizi di parti in cui una parte è un po’ meno parte dell’altra. Que-sto era il caso del giudizio amministrativo in cui, anche simbolicamente, la funzione dell’avvocato dello Stato era raffigurata in posizione diversa da quella dell’avvocato difensore della parte privata, perché l’avvocato dello Stato siede alla destra del giudice, sul banco che nei giudizi penali compete al Pubblico Ministero.

Oggigiorno, probabilmente, questo è soltanto un retaggio del passato, un simbolo, così come è un simbolo la parrucca bianca dell’avvocato inglese, perché, come è noto, al tempo attuale le prerogative della difesa pubblica non esistono praticamente più.

2.4 L’evoluzione successiva alla Costituzione repubblicanaTerza crisi di trasformazione è quella del passaggio dallo Stato

sociale allo Stato detto post-moderno, con definizione puramente diacronica. Essa intercorre nel periodo che, per semplificare, va dalla Costituzione repubblicana fino, grosso modo, al 1990.

Volendo ricorrere ad una definizione più sostanzialistica e ricorrendo al criterio del bilanciamento dei poteri tradizionali, si può constatare come il potere che avanza impetuosamente nella seconda metà del secolo scorso è il giudiziario, tant’è vero che il relativo tipo di Stato è stato anche autorevolmente chiamato da Mario Nigro “Stato di giurisdizione”. La mano pubblica, non solo in Italia, in quel torno di anni, aveva dilatato enormemente la sua sfera di influenza, quindi i punti di crisi, di contatto e conflitto tra Amministrazione e cittadino erano andati aumentando. Si diceva che un bravo cittadino inglese,

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prima della prima guerra mondiale, non si sarebbe mai accorto della presenza dello Stato se non fosse stato per gli uffici postali e per i poliziotti.12 Certo questo non avrebbe più potuto essere detto in nessun paese dell’occidente negli anni ‘70 o negli anni ‘80 del secolo scorso. Vi era quindi un’esigenza accresciuta di domanda di giustizia e di partecipazione determinata anche da un miglioramento del tenore di vita e sintomatizzata in tutto il mondo da una serie di dati caratteristici, come l’irraggiamento dell’istituto dell’ombudsman, che, se non è istituto giurisdizionale, è però uno strumento di giustizia nell’Amministrazione; il progredire delle regole sul procedimento ed una maggior attenzione alle esigenze partecipative del cittadino; l’introduzione nei procedimenti amministrativi di regole quasi giudiziali; un aumento dei poteri del giudiziario nei confronti dell’esecutivo. In una parola, un aumento della domanda di giustizia, un aumento della risposta di giustizia, un aumento della incisività della risposta di giustizia, soprattutto nei confronti della Pubblica Amministrazione. Questo sia nei paesi a regime amministrativo, come il nostro, sia nei paesi di common law come ad esempio, l’Inghilterra.

In Italia l’avanzata impetuosa del potere giudiziario è andata addirittura al di là, perché quella che ormai viene chiamata comunemente la “rivoluzione dei giudici”, alle soglie dell’ultimo decennio del secolo scorso, ha spazzato via un’intera classe politica, agendo come punta avanzata di una marea montante di lungo respiro che aveva interessato l’intero occidente industrializzato e determinando, in Italia, quello che è stato definito come passaggio dalla prima alla seconda Repubblica.

Come è mutata in questo periodo la natura della difesa dello Stato? E’ mutata nel senso che l’Avvocatura ha assunto un’altra dimensione, ulteriore rispetto a quelle precedenti. E’ rimasta, certo, la difesa dello Stato sia come persona pubblica che come persona privata dinanzi agli organi di giustizia ordinaria e amministrativa, (difesa depurata, però, di quelli che erano stati i privilegi del passato). Ma ad essa si è aggiunta una nuova dimensione, quella di una rappresentanza e difesa dello Stato non soltanto come potere esecutivo, ma nella sua unitarietà, segnatamente di soggetto di diritto internazionale o sopranazionale. Ciò ad esempio dinanzi alla Corte di Giustizia dell’Unione europea, o dinanzi alla

12 A.J.P. Taylor, English History, 1914-1915 cit. in H.W.R. Wade, Administrative Law, V ed. Oxford 1984.

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Corte internazionale di giustizia dell’Aja; ed ancora, rappresentanza e difesa dello Stato non come potere esecutivo ma come ordinamento, ad esempio nei giudizi incidentali dinanzi alla Corte Costituzionale sulla legittimità delle leggi. Questa appare indubbiamente come l’assunzione di una dimensione ulteriore e direi di non poco momento cui va aggiunta l’assunzione delle difesa di nuovi soggetti assistiti, quali numerosissimi enti pubblici nazionali ed internazionali o sovranazionali quali numerosi Stati esteri, la Commissione UE, la B.E.I. e la F.A.O..

2.5 La crisi di trasformazione in attoVeniamo adesso alla parte più difficile della nostra analisi, più diffi-

cile perché attiene alla crisi di trasformazione che stiamo vivendo adesso, ed il contemporaneo è il meno privilegiato degli osservatori. Si tratta del passaggio dallo Stato di giurisdizione allo Stato attuale e che è stato chiamato in molti modi. Forse la denominazione più suggestiva è però quella di “Stato minimo”. Il pendolo della storia ha cambiato direzione a seguito di molti avvenimenti, primo fra tutti la caduta del “muro di Berlino”, caduta che è simbolo della crisi di un’ideologia collettivistica che aveva realizzato il massimo dell’intervento della mano pubblica. L’implosione dell’impero che ne rappresentava l’inveramento in terra ed il consolidarsi a livello continentale dei valori guida dell’Unione europea — la concorrenza ed il mercato — hanno innescato quella che è stata definita la corsa verso il privato e quindi verso lo Stato minimo, in uno scenario in cui i valori del mercato si sostituiscono a quelli della politica.

Il quadro non è privo, naturalmente, di singolari contraddizioni, perché, come insegnava un liberista della statura di Einaudi, la prima necessità di un mercato sono i carabinieri che ne fanno osservare le regole ed i nuovi carabinieri di questo nuovo Stato gendarme sono le Autorità Indipendenti che debbono far osservare le regole del mercato.

Sennonché le Autorità indipendenti sono, dal punto di vista formale, autorità amministrative, che operano attraverso atti amministrativi. La loro attività ricade, quindi, in via generale sotto il sindacato del giudice amministrativo, così come sotto il sindacato del giudice amministrativo viene a ricadere l’attività svolta con procedure ad evidenza pubblica di soggetti che, in realtà, non sono pubblici ma privati. La privatizzazione

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dello Stato si è risolta, quindi, contraddittoriamente in Italia in un ampliamento della competenza del giudice, quanto meno nella sua epifania di giudice amministrativo.

A ciò si è aggiunta la rivoluzione di fine millennio nella giustizia amministrativa. Rivoluzione che ha la caratteristica di avere realizzato nell’arco di tre anni, dal 1997 al 2000, attraverso un’accelerazione improvvisa, i risultati finali di linee di tendenza che si erano venute faticosamente dipanando nel corso dei precedenti cinquant’anni, in particolare con l’affidamento al giudice amministrativo di quel formidabile strumento di controllo sociale che è la tutela risarcitoria e ciò non solo con riguardo ai danni da lesione di diritti soggettivi, in sede di giurisdizione esclusiva, ma anche a quelli derivanti da lesione di interessi legittimi. Veniva così esorcizzato un duplice dogma più che centenario e segnata un’ulteriore importante tappa nella avanzata del potere giudiziario.13

Cosa muta in questo quadro nel rapporto tra poteri dello Stato? Qual è la posizione dell’Avvocatura dello Stato in questo nuovo assetto? L’osservatore contemporaneo, lo ripeto, è il meno privilegiato, in quanto è estremamente difficile cogliere una realtà in divenire, ed un divenire, per di più, così rapido. Ho l’impressione che il progresso tecnologico velocissimo abbia superato quelle che sono le nostre realtà istituzionali, attualmente inadeguate a contenerlo. Lo stesso dicasi per la fuga in avanti di una finanza internazionale disancorata, non solo da qualunque principio etico, ma anche da qualsiasi collegamento con l’economia reale e che costituisce una seria minaccia per l’economia degli Stati e per lo stesso equilibrio geopolitico.

De Rita ha parlato di deistituzionalizzazione, di destrutturazione dell’Amministrazione Pubblica e sicuramente i punti di equilibrio e di bilanciamento dei tre poteri dello Stato non sono più quelli del passato anche recente, mentre, per l’Avvocatura si va accentuando un dualismo già constatato nello Stato di giurisdizione. Essa è, infatti, da un lato, difensore dello Stato, soprattutto dinanzi al giudice amministrativo (recessive apparendo le funzioni del giudice ordinario nei giudizi con

13 I.F.Caramazza, Le nuove frontiere della giurisdizione amministrativa (dopo la sentenza della Corte Costituzionale 8 luglio 2004 n. 204) in R. Avv. S. 2004, 741 ss.

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lo Stato) con una posizione da avvocato tendenzialmente equiordinata a quella del difensore privato. Essa acquista e potenzia, poi, una dimensione diversa e più squisitamente pubblicistica in quelli che sono i giudizi di costituzionalità (in cui opera più come amicus curiae che come avvocato) ed i giudizi dinanzi alle corti internazionali e sovranazionali in cui rappresenta non già lo Stato-amministrazione, sibbene lo Stato come personificazione anche esterna di tutta la Comunità nazionale; per non parlare, da ultimo, delle cause in cui difende le Autorità indipendenti, e che presentano problematiche tutte particolari.

Dal punto di vista della natura della crisi che lo Stato, la società e il diritto stanno attraversando, forse si sta avverando la profezia che Giannini faceva più di vent’anni fa, quando parlava della crisi dello Stato nazionale nella sua configurazione seicentesca teorizzata da Jean Bodin. Stato nazionale che, dopo quattro secoli di storia, sarebbe giunto alla fine del suo ciclo vitale.

Un segnale importante in questo senso nel nostro Continente è il dialogo quotidiano che gli operatori del diritto nazionali debbono intrattenere, in Europa, con le Corti di Lussemburgo e di Strasburgo, auspicabile auspicio di un possibile, ma purtroppo non certo né prossimo futuro intitolato agli Stati Uniti d’Europa.

3 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili descrittivi3.1 Il rapporto dell’Avvocatura dello Stato con le amministrazioni statali

e con il GovernoPassando a delineare un breve quadro descrittivo dell’ordina-

mento dell’Avvocatura, si può osservare come la normativa che regge l’Istituto nella sua attuale configurazione si articoli in due testi legislativi fondamentali: il t.u. r.d. 30.11.1933, n. 1611 che segnò il culmine e la sistematizzazione di una serie di riforme maturate fra le due guerre e la l. 3.4.1979, n. 103 che, a sua volta, sistematizzò, da un lato, le nuove funzioni che l’Istituto era andato assumendo nel nuovo assetto dello Stato repubblicano accentuò, dall’altro, insieme con la vocazione giustiziale, quella tecnico-professionale dell’Avvocatura nel quadro di una riforma che, seppure parziale, ha valori di fondo ispirati a principi di efficienza e democraticità.14

14 B.G. Carbone, Avvocatura dello Stato in N.N.D.I. App. I, Torino, 1980 p. 625-626.

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Riservando al seguito l’approfondimento della posizione acquisita dall’Istituto nel sistema della Costituzione vigente, è certo da escluderne l’immedesimazione con gli organi dell’amministrazione pubblica, nei cui confronti esercita la funzione istituzionale, autonoma e indipendente, di consulenza e difesa in giudizio.15

L’Istituto è, infatti, attributario per legge, in via generale, del compito di provvedere “alla tutela legale dei diritti e degli interessi dello Stato” di corrispondere alla richiesta di consultazione di tutte le amministrazioni statali, “di consigliarle e dirigerle quando si tratti di promuovere, contestare o abbandonare giudizi”.

A tal fine, corrisponde “direttamente” con dette amministrazioni, che sono tenute a fornirgli i chiarimenti, le notizie e i documenti necessari per l’adempimento delle sue attribuzioni.

Tale disciplina concorre a chiarire la portata della statuizione di legge secondo la quale “gli uffici dipendono dal Capo del Governo Primo Ministro Segretario di Stato (oggi Presidente del Consiglio dei Ministri) e sono posti sotto l’immediata direzione dell’Avvocato Generale”.

Siffatta dipendenza dal vertice del governo, espressamente riferita agli “Uffici” non può che riguardare il sistema organizzatorio di questi, e così la provvista del personale e dei mezzi finanziari e strumentali, la costituzione dei rapporti di servizio (le nomine sono disposte per gli avvocati e procuratori, con decreto del Presidente della Repubblica su proposta del Presidente del Consiglio) e gli eventuali altri provvedimenti di stato giuridico nonché ogni altra iniziativa connessa con la responsabilità politica del Presidente del Consiglio e inerente all’organizzazione e alla rispondenza dell’attività dell’Istituto ai compiti fissati dalla legge o sulla base di essa affidatigli. Fuori discussione è invece l’indipendenza e l’autonomia funzionale di ordine tecnico-professionale,16 vieppiù accentuata dalle innovazioni portate dalla l. n. 103 del 1979.

3.2 Organizzazione dell’Avvocatura dello StatoSotto il profilo organizzativo gli uffici dell’Avvocatura sono costituiti

dalla Avvocatura Generale e dalle Avvocature Distrettuali. La prima con

15 P.G. Ferri, Avvocatura dello Stato, Voce dell’Enciclopedia italiana Treccani.16 Cons. Stato Ad. Gen. 23.11.1967 n. 1237.

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sede in Roma e competenza estesa all’ambito nazionale per quanto non riservato alla competenza degli uffici distrettuali, aventi sede in ciascun distretto di Corte d’Appello e quindi, di massima, in ciascun capoluogo di regione.

Fanno eccezione alla regola il distretto di Roma, per il quale l’Avvocatura generale svolge anche l’attribuzione territoriale di Avvoca-tura distrettuale e la Valle d’Aosta per cui ha competenza l’Avvocatura distrettuale di Torino. Il criterio di riparto delle competenze è, ovvia-mente, quello territoriale della localizzazione del giudice competente o dell’ufficio richiedente il parere. L’Avvocatura generale è inoltre compe-tente funzionalmente dinanzi ai collegi internazionali o comunitari, e, in materia consultiva, per i pareri che involgano questioni di massima.

Al vertice dell’Istituto è posto l’Avvocato generale, coadiuvato dall’Avvocato Generale Aggiunto,17 qualifiche che la legge tiene separate e distinte, dagli altri avvocati dello Stato, i quali, con l’entrata in vigore della l. n. 103 del 1979, sono ordinati in tale unica qualifica, a sua volta distinta dalla quarta qualifica che è quella dei procuratori.

L’Avvocato generale dello Stato è nominato con decreto del Presidente della Repubblica su proposta del Presidente del Consiglio dei Ministri previa deliberazione del Consiglio stesso. I suoi compiti sono i seguenti:

- determinare le direttive inerenti alla trattazione degli affari contenziosi e consultivi;

- presiedere e convocare il Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato ed il Comitato consultivo;

- vigilare su tutti gli uffici, servizi e il personale dell’Avvocatura dello Stato e soprintendere alla loro organizzazione, dando le opportune disposizioni ed istruzioni generali;

- risolvere, sentito il Comitato consultivo, le divergenze di parere sia tra gli uffici distrettuali dell’Avvocatura dello Stato, sia tra questi e le singole amministrazioni;

- assegnare agli avvocati e procuratori in servizio presso l’Avvocatura generale dello Stato gli affari contenziosi e consultivi, in base a criteri stabiliti dal Comitato consultivo;

17 Art. 6 bis, D.L. 24.12.2003 n. 354 convertito con L. 26.2.2004 n. 45.

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- riferire periodicamente al Presidente del Consiglio dei Ministri sull’attività svolta dall’Avvocatura dello Stato, presentando apposite relazioni, e segnalare le eventuali carenze legislative ed i problemi interpretativi che emergono nel corso dell’attività dell’istituto;

- fare le proposte ed adottare i provvedimenti espressamente attribuiti alla sua competenza, nonché ogni altro provvedimento riguardante gli uffici ed il personale dell’Avvocatura dello Stato, che non sia attribuito ad altra autorità.

L’Avvocato generale dello Stato è coadiuvato, nei suoi compiti, da otto avvocati dello Stato che abbiano conseguito l’ultima classe di stipen-dio, cui viene conferito — su sua proposta motivata, formulata sentito il Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato e con decreto del Pre-sidente della Repubblica, previa deliberazione del Consiglio dei Ministri — l’incarico di Vice Avvocato generale. Gli otto Vice Avvocati Generali sono responsabili dell’attività di altrettante sezioni, competenti ciascuna per la consiliazione e la difesa di un certo numero di Amministrazioni.

L’Avvocato generale è, inoltre, assistito da un avvocato dello Stato che abbia conseguito la terza classe di stipendio con l’incarico di Segretario generale. Tale incarico viene conferito per un periodo di cinque anni (rinnovabile una sola volta) con le stesse modalità di cui sopra, esclusa la necessità di una deliberazione del Consiglio dei Ministri.

Il Segretario generale, oltre ad assistere l’Avvocato generale nell’esercizio delle sue funzioni, cura il funzionamento degli uffici e dei servizi, sovrintende agli affari amministrativi e riservati ed esercita le funzioni di capo del personale amministrativo.

Gli Avvocati distrettuali sono incaricati della direzione degli uffici periferici — con la stessa procedura prevista per il conferimento dell’incarico di Segretario generale — con scelta effettuata fra gli avvocati dello Stato che abbiano conseguito da almeno cinque anni la terza classe di stipendio, ed esercitano mutatis mutandis, in sede locale, le stesse funzioni assolte dall’Avvocato generale in sede centrale.

Passando agli organi collegiali, occorre rammentare in primo luogo il Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato, che è organo capace di sviluppare funzioni di autogoverno del corpo, pur avendo limitate funzioni deliberanti. Esso è composto dall’Avvocato generale dello Stato che lo presiede, dai due Vice Avvocati generali e dai due

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Avvocati distrettuali rispettivamente più anziani nell’incarico, e da quattro componenti di cui almeno uno procuratore dello Stato, eletti da tutti gli avvocati e procuratori dello Stato riuniti in un unico collegio elettorale.

Oltre ad esplicare le funzioni in precedenza attribuite alla Com-missione permanente per gli avvocati e procuratori dello Stato, previste dai rr.dd. 30.11.1933, n. 1611 e n. 1612, tale organo provvede ad espri-mere pareri sulla distribuzione dei legali dell’Avvocatura tra l’Avvocatura generale e le Avvocature distrettuali nonché sull’assegnazione degli avvocati e procuratori di prima nomina ai vari uffici e sui trasferimenti; esprime giudizi in merito alla progressione nelle classi di stipendio; decide i ricorsi proposti dagli avvocati e procuratori dello Stato avverso il provvedimento con cui viene disposta la sostituzione nella trattazione degli affari loro affidati; formula parere sul conferimento degli incarichi e sui collocamenti fuori ruolo; esercita nei confronti degli avvocati e dei procuratori dello Stato funzioni di Commissione di disciplina; designa gli avvocati dello Stato che debbono far parte del Comitato consultivo.

Il Comitato consultivo — espressione del principio di collegialità sul piano tecnico-istituzionale — è, invece, composto dall’Avvocato generale che lo presiede, da sei avvocati dello Stato, designati dal Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato, i quali devono aver conseguito almeno la terza classe di stipendio, non ricoprire l’incarico di Segretario generale e non essere componenti del Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato. L’organo è di volta in volta integrato con due avvocati designati, per ogni singolo affare, dall’Avvocato generale. Nell’attività istituzionale dell’Avvocatura tale organo “attiva l’esigenza della collegialità” a livello centrale.18 Esso, infatti, ha il potere di dirimere le divergenze di opinione che insorgono nella trattazione degli affari contenziosi e consultivi fra avvo-cati che esercitano funzioni direttive e avvocati cui sono assegnati gli affari stessi; di determinare i criteri per l’assegnazione degli affari; di formulare pareri su questioni di massima o particolarmente rilevanti e, quando lo disponga l’Avvocato generale, esprimere i pareri richiesti all’Istituto.

Fra gli organi collegiali va ricordato, ancora il Comitato permanente per il personale amministrativo, composto dall’Avvocato generale, che lo presiede, da rappresentanti degli avvocati e procuratori e da rappre-sentanti del personale amministrativo, con i compiti che il testo unico

18 S. Santoro, l’Avvocatura dello Stato dopo la legge 3.4.79 n. 103, T.A.R. 1981, II, 291.

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impiegati civili dello Stato attribuisce al Consiglio di amministrazione.Il Consiglio di amministrazione dell’Avvocatura dello Stato, provvede a formulare pareri e proposte sull’organizzazione e sullo svolgimento dei servizi, a fissare i criteri per la ripartizione, tra i vari uffici dell’Avvoca-tura, delle somme stanziate in bilancio; ad esercitare le attribuzioni di cui all’art. 146 d.p.r. 10.11.1957, n. 3.

In tale sistema organizzativo si inquadra l’attività tecnica di Istituto — consistente nella “trattazione di affari consultivi e contenziosi” — affidati, mediante atti di assegnazione, a singoli avvocati e procuratori dello Stato (il cui ruolo prevede complessivamente 369 posti) che provvedono alla relativa trattazione nella pienezza della loro autonomia tecnico-professionale, ed osservate nell’ambito dell’organizzazione istituzionale, le direttive di massima impartite dagli avvocati che esercitano nell’Istituto le funzioni direttive.

Una delle più radicali innovazioni introdotte dal legislatore del 1979, è stata quella di affrancare la figura dell’avvocato dello Stato da obsolete scorie burocratiche esprimentesi in un complesso di qualifiche vicarianti e sostitutive, non consone con la sostanziale identità della funzione di tutti gli appartenenti al corpo e alla dignità della professione.

Ispirandosi, in base a una costante prassi di equiparazione, ai criteri seguiti per la progressione in carriera dei magistrati ordinari dalla l. 22.12.1973,n. 831, il legislatore del ‘79 ha ridotto a quattro le qualifiche: Avvocato generale, Avvocato Generale Aggiunto, Avvocato dello Stato e Procuratore dello Stato. Nell’ambito della terza e della quarta è, poi, previsto un criterio di progressione economica (articolato in quattro classi di stipendio) secondo anzianità congiunta al giudizio di merito favorevole espresso dal Consiglio degli avvocati e procuratori dello Stato: va rilevato che all’interno della qualifica di avvocato la distinzione di classi non ha soltanto rilevanza di progressione economica ma anche di qualificazione professionale (per la scelta dei Vice Avvocati generali, degli Avvocati distrettuali e del Segretario generale).

Alla carriera si accede esclusivamente per pubblico concorso, di primo grado per i procuratori e di secondo grado per gli avvocati. I pro-curatori dello Stato possono, peraltro, diventare avvocati per promozione invece che per concorso (art. 5 l. n. 103 del 1979) per anzianità (almeno otto anni) congiunta a merito valutato dal menzionato Consiglio.

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Particolare rilevanza deve attribuirsi ai fini interpretativi della normativa giuridica (ed economica) di stato degli avvocati dello Stato, di cui all’art. 23 del r.d. n. 1611 del 1933 che ne stabilisce l’equiparazione (secondo una tabella di raffronto, costantemente aggiornata in sede legi-slativa) ai magistrati dell’ordine giudiziario. In forza di tale disposizione, e se non diversamente stabilito da altra speciale norma legislativa, ad esempio, un avvocato dello Stato alla quarta classe di stipendio è equi-parato a tutti gli effetti giuridici (quale l’applicazione dell’art. 135, 2º co., Cost.) ad un Presidente di sezione della Corte di cassazione.

Esiste infine un ruolo del personale amministrativo dell’Avvocatura, soggetto, salvo a specifiche deroghe, all’ordinamento generale del pubblico impiego statale. Detto personale è addetto ai servizi relativi: a) agli affari generali e amministrativo-contabili, b) all’attività professionale (a supporto degli avvocati e procuratori dello Stato), c) all’informazione e alla documentazione (art. 1 l. 15.10.1986, n. 664).

3.3 La funzione di rappresentanza e difesa giudiziaria e la funzione consultiva

Le due fondamentali funzioni dell’Avvocatura dello Stato sono la rappresentanza e difesa in giudizio, da un lato, e la consulenza legale, dall’altro. La prima è ispirata ad una tendenziale universalità di patroci-nio di fronte “a tutte le giurisdizioni” con pochissime e non significative eccezioni. L’elencazione — dai tradizionali giudizi civili, penali, ammi-nistrativi e arbitrali ai più recentemente contemplati giudizi dinanzi alla Corte Costituzionale ed ai Collegi comunitari (quali la Corte di Giustizia delle Comunità europee) ed internazionali (quali la Corte di Giustizia internazionale dell’Aja) sarebbe un fuor d’opera.

Strettamente connesse con la difesa in giudizio sono le deroghe al comune diritto processuale in tema di rappresentanza (conferita ex lege con la conseguente esenzione della necessità di mandato d litem), di foro speciale (foro dello Stato), di notifica presso l’Avvocatura dello Stato competente di tutti gli atti processuali diretti a soggetti da essa patrocinati introdotto dalla l. 25.3.1958,n. 260.

Passando all’esame della funzione consultiva, giova subito osservare come la normativa in materia sembra attribuire all’istituto due tipi di consulenza: una consulenza legale di tipo “giudiziario” funzionalmente

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collegata ad una lite in potenza o in atto ed una consulenza giuridica “generale” (anche su atti di normazione do varo rango). L’art. 1 del t.u. del 1933 recita testualmente: “L’Avvocatura dello Stato provvede alla tutela legale dei diritti e degli interessi dello Stato; alle consultazioni legali richieste dalle amministrazioni ed inoltre a consigliarle e dirigerle quando si tratti di promuovere, contestare o abbandonare giudizi; esamina progetti di legge, di regolamenti, di capitolati redatti dalle amministrazioni, qualora ne sia richiesta; predispone transazioni, d’accordo con le amministrazioni interessate; esprime parere sugli atti di transazione redatti dalle amministrazioni; prepara contratti e suggerisce provvedimenti intorno a reclami o questioni mossi amministrativamente che possono dar materia di litigio”.

L’esercizio della consulenza è attribuzione di istituto e la relativa esternazione sotto forma di parere, compete all’ufficio territorialmente competente e cioè l’Avvocatura distrettuale o l’Avvocatura generale.

La competenza territoriale è derogata quando si tratti di pareri “di massima” o di “particolare rilevanza” per i quali il parere deve essere reso dall’Avvocatura generale, che in tale ipotesi lo rende sentito il Comitato Consultivo (art. 26 l.n. 103 del 1979, 1º co.).

L’attività consultiva dell’Avvocatura si caratterizza per autonomia e indipendenza del giudizio ed assume il connotato garantistico di una pronuncia pro-veritate di natura giustiziale.

Tale natura è resa evidente anche dalla disciplina dell’eventuale contrasto di opinioni insorte tra estensore e responsabile dell’Ufficio.

In tal caso la legge rimette la questione alla risoluzione del Comitato consultivo, al quale è riservata la definizione dell’atteggiamento dell’Istituto al riguardo, ferma restando la facoltà dell’estensore la cui tesi sia rimasta minoritaria, di chiedere di essere sollevato dalla trattazione dell’affare. Il che garantisce l’autonomia professionale del singolo avvocato.

Va, per ultimo, considerata la competenza diretta del Comitato consultivo ad esprimere pareri, quando l’Avvocato generale investa quell’organo collegiale del compito di corrispondere esso stesso alla richiesta dell’amministrazione.

Può infine inquadrarsi nell’ambito della funzione consultiva il potere-dovere che l’art. 15 della l. n. 103 del 1979 conferisce all’Avvocato

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generale di segnalare al Presidente del Consiglio dei Ministri eventuali carenze legislative ed i problemi interpretativi che emergano nel corso dell’attività di Istituto.

Se per il primo tipo di consulenza — quello specificamente defini-bile “giudiziario” — non sorgono problemi particolari, risolvendosi essa, all’evidenza, in una funzione strumentale al giudizio che è propria, in ogni tempo, dell’avvocato, per il secondo tipo — quello ad estensione definibile “generale” — qualche dubbio può sorgere, e sarà affrontato in prosieguo, in relazione alla delimitazione di confini fra la consulenza giuridica generale commessa all’Avvocatura e quella commessa al Con-siglio di Stato.

Sin da ora ed in linea meramente descrittiva può rilevarsi come la consulenza dell’Avvocatura presenti peculiari caratteristiche spesso mal riducibili alle tradizionali classificazioni. Si pensi alla caratteristica della spontaneità, nel senso che — a differenza di quanto tipicamente accade per la funzione di consulenza — l’Avvocatura rende i propri avvisi, specie quando può insorgere lite, a prescindere dalla richiesta del soggetto ausiliato.19

Si pensi alla scarsa utilizzabilità delle tradizionali categorie qualifi-catorie del parere come facoltativo, obbligatorio e vincolante, in quanto solo in qualche raro caso la legge configura il parere dell’Avvocatura come obbligatorio o addirittura come vincolante. Ma soprattutto si pensi alla richiamata correlazione della funzione consultiva con quella di rappre-sentanza e difesa in giudizio, che tipizza il parere dell’Avvocatura con una immanente caratteristica di necessarietà istituzionale, i cui profili funzionali saranno di seguito esaminati.

4 L’Avvocatura dello Stato nell’ordinamento vigente – Profili critici e ricostruttivi dell’attività funzionale

4.1 La funzione di rappresentanza e difesa giudiziaria – Il mandato legislativo diretto ex lege

L’attività di rappresentanza e difesa in giudizio dell’Avvocatura dello Stato presenta caratteri di assoluta originalità sia rispetto all’attività

19 F. Favara, La Costituzione repubblicana e l’Avvocatura dello Stato, in Studi per il Centenario, Roma 1976, 458 s.

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professionale privata degli avvocati liberi professionisti, sia rispetto alla attività di quelli organicamente inseriti in uffici legali di soggetti pubblici non assistiti dall’Avvocatura dello Stato.

L’originalità non attiene al momento contenutistico dell’attività difensiva, che in qualunque esplicazione dell’attività forense non può che essere informato alla professionalità dell’avvocato né al dato meramente estrinseco del tipo di rapporto — locatio operarum o operis — nell’ambito del quale le persone fisiche esercenti l’attività forense trovano la regolamentazione economica dei loro interessi, sibbene alla particolarissima configurazione che assume lo ius postulandi dell’Avvocatura dello Stato.

Essa è organismo unico nel nostro ordinamento, in quanto pubblica istituzione dotata come tale, ex lege, del mandato necessario e irrevocabile di rappresentanza e difesa in giudizio delle amministrazioni statali (e di quelle assimilate).

La rappresentanza e la difesa nel diritto processuale comune sono riservate nell’ordinamento italiano alle persone fisiche fornite di abilitazione ed iscritte in apposito albo professionale, investite di mandato fiduciario e revocabile relativo ad ogni singolo giudizio (o fase di giudizio).

Ciò vale anche per gli avvocati inseriti in “uffici legali”, come dipendenti di enti pubblici o privati.

Gli avvocati e procuratori dello Stato, per contro, esercitano la loro attività, in adempimento ad una funzione istituzionale dell’organo tecnico professionale di appartenenza, innanzi a tutte le giurisdizioni ed in qualunque sede e non hanno bisogno di mandato neppure nei casi in cui le norme processuali comuni richiedono il mandato speciale, bastando che consti della loro qualità.

La rappresentanza processuale dell’Avvocatura non comporta, peraltro, anche la rappresentanza “sostanziale” della Pubblica Ammini-strazione. L’Avvocatura dello Stato può compiere, però, tutti quegli atti processuali, quali ad es. la rinunzia agli atti del giudizio, che, pur non costituendo disposizione del diritto controverso, possono determinare effetti di natura sostanziale20 e deve guidare e indirizzare, a norma di

20 Cons. Stato, Sez. IV, 6.5.1980 n. 502.

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legge, l’Amministrazione nelle determinazioni concernenti la disponi-bilità del rapporto controverso.

Come ha affermato, infatti, una autorevole dottrina21 sebbene non dispongano dell’interesse sostanziale dedotto in giudizio, gli avvocati dello Stato godono di autonomia ed indipendenza nella condotta tecnica della causa, con l’unico limite del divieto di assumere iniziative processuali che incidano su interessi politico-amministrativi di particolare rilievo (i quali sono rimessi, in quanto tali, al Presidente del Consiglio dei Ministri). A tali concetti la giurisprudenza ricollega la proponibilità dell’appello da parte dell’Avvocatura senza bisogno di una delibera dell’Amministrazione.22

Infatti interest rei publicae che gli scopi demandati ai singoli Enti siano legittimamente ed opportunamente perseguiti ed, inoltre, che la loro realizzazione avvenga, anche in sede contenziosa, in maniera coordinata ed armonica e non già secondo visioni atomistiche e settoriali alla cui stregua ciascuno degli interessi pubblici verrebbe a concepirsi come confliggente con altri: è questa esigenza ... che sta a fondamento dell’estensione del patrocinio dell’Avvocatura agli enti pubblici, affinché gli interessi di questi, filtrati attraverso l’ottica dell’organo che ha per suo compito istituzionale quello di considerare e salvaguardare gli interessi dello Stato nella sua unità, risultino opportunamente coordinati e tutelati secondo una teleologica visione e non già contingentemente difesi, a discapito di altri, in questa o quella controversia giudiziaria.23

Il coordinamento fra unitarietà di indirizzo dell’Istituto ed autonomia professionale dei singoli avvocati dello Stato si compie poi, come si è già visto in sede consultiva, all’insegna del principio di collegialità.

Tale principio, — ipostatizzato nel Comitato consultivo — costitu-isce, d’altronde, criterio-guida di ogni attività di indirizzo professionale anche al di fuori di interventi formali dell’organo collegiale. Il che appare strettamente conseguenziale con i principi ispiratori della rifor-ma del 1979, essendo la professionalità incompatibile con la gerarchia

21 A.M. Sandulli, Manuale di diritto Amministrativo, Napoli 1979, 765 ss.22 Cons. Stato A.G. 23.11.1967 n. 1237 e sez, IV 9.11.1979 n. 979.23 S. Laporta, Interesse Pubblico o patrocinio facoltativo di enti non statali da parte dell’Avvocatura, R.Av.S.

1975, I, 699.

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e suscettibile solo di coordinamento collegiale funzionale all’adozione di un indirizzo unitario d’istituto.

Sembra potersi così concludere, quanto all’attività difensiva dell’Istituto (e dei singoli avvocati assegnatari dell’affare contenzioso), che essa è processualmente identica e contenutisticamente analoga a quella del libero professionista, ma che, attesa la natura dei soggetti tutelati, la pluralità dei giudizi nei quali si svolge, la natura di organo pubblico dell’Istituto e la sua indipendenza tecnica — cui è funzionale quella dei suoi avvocati — assurge a livello di funzione (non giurisdizionale ma) giustiziale.24 Si è già detto dell’autonomia professionale degli avvocati dello Stato. Quanto a quella dell’Istituto giova richiamare il disposto dell’art. 12 l. 103/79, norma che in caso di contrasto di opinioni insanabile tra Avvocatura dello Stato e Ministero interessato circa la instaurazione di un giudizio o la resistenza nel medesimo, dispone che il contrasto sia risolto dal Ministro competente con determinazione non delegabile e conseguente assunzione di responsabilità politica (ferma la assoluta autonomia dell’Avvocatura nella scelta degli argomenti difensivi).

4.2 La funzione consultiva. Natura istituzionale dell’attività – Caratteri comuni o differenziali rispetto alla consulenza generale del Consiglio di Stato

Analoghe considerazioni possono valere per la funzione consultiva dell’Avvocatura. Questa si caratterizza, in primo luogo, come attività istituzionale, in secondo luogo come attività formale, in terzo luogo come consulenza giuridica a competenza generale, nel senso che non incontra alcuna limitazione di predeterminazione dell’oggetto o di fini o di specifici e particolari obiettivi. Ha carattere, inoltre, di spontaneità, non essendo necessaria, per l’espressione del parere, una richiesta dell’amministrazione.

La prima caratteristica fa si che la consulenza istituzionale si distingua da quella di uffici e di persone che, in posizione di dipendenza, operano all’interno dell’amministrazione pubblica come organi di supporto tecnico-legale della stessa.

24 G. Manzari, Avvocatura dello Stato, Voce del Digesto UTET, V ed., 38.

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La distinzione di ruolo tra Avvocatura e amministrazione, costituisce il fulcro della funzione consultiva, tanto più autorevolmente esercitabile dall’Avvocatura quanto più essa è estranea all’esercizio del potere pubblico. E non è per caso che questa si sia andata estendendo dall’originario ambito dell’apparato amministrativo statale ad organi costituzionalmente autonomi come la Presidenza della Repubblica, le due Camere, il Consiglio superiore della Magistratura, fino a numerosi enti pubblici ed anche a soggetti ed organismi internazionali e sovranazionali.

La terza caratteristica, quella della “generalità” pone il problema della differenziazione nei confronti della competenza consultiva, anch’essa generale, del Consiglio di Stato.

E’ stato in proposito rilevato come esegesi letterale e storico-sistematica convergano insieme a qualificare quella del Consiglio di Stato, in quanto “consulenza giuridico-amministrativa” (e non “giuridica ed amministrativa”) originariamente prestata in prò del Monarca assoluto, come ausilio di merito, quella dell’Avvocatura, in quanto “consulenza legale” sin dall’origine data ad un esecutivo soggetto al giudiziario, come consiglio di legittimità.25

L’intuizione è acuta ma non appagante, in quanto riduttiva di entrambe le funzioni consultive.

Sembra più aderente alla realtà normativa riportare la funzione di consulenza dell’Avvocatura dello Stato alla matrice unitaria che come si è già rilevato, afferisce in ogni caso alla funzione propria dell’avvocato, che non è solo quella di assistenza legale per le controversie in atto, ma anche di prevenzione di quelle meramente potenziali.

In questo senso la consulenza dell’Avvocatura è funzione immanente e necessaria allo svolgimento dell’azione amministrativa, dovendo essa per legge assicurare la difesa giudiziaria non a favore dell’interesse contingente e parziale della singola amministrazione, ma a tutela degli interessi pubblici generali nel rispetto del principio di legalità.

Ciò non significa che tale consulenza debba avere dimensioni riduttivamente “giudiziarie” nel senso di rigorosa correlazione con liti in atto o in potenza, poiché il “caso” o la “questione” (o — più spesso — la serie aperta ed indeterminata di numerosissimi “casi” o “questioni”)

25 S. Varvesi, La funzione consultiva dell’Avvocatura dello Stato, R.Av.S, 1948, nn. 11-12, 1 ss.

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che il parere dell’Avvocatura considera vanno intesi non nella accezione processuale tradizionale ma in quella ben più vasta derivante dalla intera gamma di giudizi cui istituzionalmente partecipa: non solo quindi giudizi penali, civili o amministrativi, ma ogni tipo di giudizio (costituzionali, nel loro complesso e diverso atteggiarsi, internazionali e comunitari). Una consulenza, dunque, afferente ad ogni tipo di rapporto: dal rapporto particolare già costituito a quello da costituire con atti contrattuali privatistici o con strumenti pubblicistici; dalla conformità delle leggi alla Costituzione, ai limiti di attribuzione dei soggetti istituzionali pubblici statali e non statali; dall’ammissibilità di un referendum popolare alla conflittualità tra Stato e Regioni, tra Regioni, tra poteri dello Stato; alla ricerca di un consenso sulla regula iuris da applicare per la corretta composizione sia di contrastanti interessi pubblici, diversamente graduati nell’unità dell’ordinamento, sia di interessi pubblici confliggenti con quelli privati, individuali o di gruppo fino al contenzioso internazionale e comunitario.

In tale dilatata dimensione del “giudizio” ben può dirsi che ogni consulenza dell’Avvocatura è ad esso funzionalizzata in quanto sempre riferibile al parametro del sindacato di un atto o di un comportamento alla stregua di una norma invocabile dinanzi ad un “giudice”.

5 Considerazioni conclusive e brevi notazioni sui costi e benefici dell’attività di istituto

Alla stregua di quanto si è andato fin qui dicendo appare ormai antica e inadeguata la tralatizia definizione di una così singolare istitu-zione-avvocato come organo ausiliario dell’Amministrazione centrale dello Stato gerarchicamente subordinato alla Presidenza del Consiglio alle cui dipendenze è posto per legge.

L’ambito soggettivo delle istituzioni assistite si è esteso, come si è visto, ben oltre tale quadro originario, e l’ambito oggettivo della funzione si è contestualmente spostato dalla tutela legale di intessi prevalentemente patrimoniali a quella di tutti i primari valori giuridici dell’ordinamento dello Stato e del suo assetto costituzionale, insieme pluralistico ed unitario.

La dipendenza dal Presidente del Consiglio, come si è visto, è affermata in funzione della responsabilità politica, con caratteri quindi

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di esteriorità (si è espressamente parlato di “gerarchia esterna”);26 essa non interferisce minimamente sull’autonomia tecnico-professionale dell’Istituto.

Del resto, anche nell’ambito interno, la l. n. 103 del 1979 ampliando e vieppiù qualificando la funzione autonoma (e quindi giustiziale) dell’attività di consulenza e di difesa dell’Avvocatura ha introdotto, pur nei limiti di compatibilità con il carattere istituzionale e non personale dell’attività professionale degli avvocati dello Stato, forme di “autoamministrazione, autodichia e autogoverno” che tendono a configurarne uno status sostanzialmente assimilabile, sotto il profilo in considerazione, a quello dei magistrati.27

Si deve peraltro notare che la Carta Costituzionale non contempla nel Titolo III, Parte I, (artt. 99 e 100) tra gli “organi ausiliari del Governo” l’Avvocatura dello Stato. Ma non è solo per tale considerazione formale che si può esitare ed estendere tale qualificazione in via esegetica o sistematica28 all’istituto.

Da tempo si è verificata, infatti, l’attrazione dell’istituto nella costituzione materiale che si è andata via via realizzando dell’entrata in vigore della Carta costituzionale repubblicana.

Una prima attrazione, anche di rilevanza formale, si è verificata con il richiamo nella legge costituzionale 11.3.1953, n. 1 contenente “norme integrative della Costituzione concernenti la Corte Costituzionale” che espressamente rinvia alla legge ordinaria (in pari data, n. 87) “emanata per la prima attuazione” delle norme costituzionali relative al funzionamento della Corte stessa. Questa infatti stabilisce che il “Governo, anche quando intervenga nella persona del Presidente del Consiglio dei Ministri o di un Ministro a ciò delegato, è rappresentato e difeso dell’Avvocato generale dello Stato o da un suo sostituto”.

Del resto, anche a prescindere dal dato formale, si è già messo in luce come in non pochi casi l’Avvocatura operi formalmente non a tutela dello Stato-amministrazione ma dello Stato-ordinamento.

Quanto ai giudizi costituzionali la notazione appare del tutto intuitiva: si pensi all’intervento del Presidente del Consiglio — e per esso

26 Cons. Stato Ad. gen. 23.11.67 n. 1237.27 Cons. Stato Ad. plen 16.12.83 n. 27.28 P.G. Ferri, op. cit.

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dell’Avvocatura dello Stato — nei giudizi sulla legittimità costituzionale delle leggi. In tali giudizi il Presidente non interviene per la tutela di un interesse di parte, ma nell’interesse dell’ordinamento alla conservazione delle leggi che, immuni da difetti di costituzionalità, ne costituiscono parte integrante. La circostanza che l’intervento dell’Avvocatura non sia obbligatorio ma legato alla decisione politica del Presidente si spiega in relazione alla valutazione, a questo completamente demandata, della maggiore o minore rilevanza politica della legge sindacata nel sistema normativo, rilevanza atta ad indurre il Governo a patrocinarne o meno la conservazione.

Analogamente nel giudizio per conflitto di attribuzioni tra poteri dello Stato o tra Stato e Regioni, dove pure l’Avvocatura sostiene le ragioni “di parte” del Governo, l’intervento va inteso sempre in funzione dell’interesse unitario dello Stato-ordinamento a una corretta dialettica fra soggetti e fra poteri.

De tutto superflua sarebbe l’analisi in relazione agli altri tipi di giudizio costituzionale.

A ciò si aggiunga che anche nei giudizi (e nelle consultazioni) in cui l’interesse formalmente protetto si riferisce ad una rivendicazione di potere da parte dell’esecutivo nei confronti di altri poteri dello Stato, in posizione più propriamente di parte, vi è sempre l’immanenza della tutela di quel più generale interesse al rispetto del sistema di articolazioni delle competenze disegnato dalla Costituzione cui si collega la funzione dell’Avvocatura dello Stato.29 Si deve, infine, rilevare come nei giudizi dinanzi ai collegi internazionali e comunitari non sia certo in difesa dello Stato-amministrazione che opera l’Istituto, sibbene in rappresentanza dello “... Stato come personificazione anche esterna di tutta la comunità nazionale”.30

Si può conclusivamente affermare che pur nel silenzio della Carta del ‘48 l’Avvocatura dello Stato occupa un posto ben preciso nella costituzione materiale della Repubblica con riferimento alla molteplicità ed alla natura così dei soggetti ausiliati come delle funzioni ad essa commesse ed alle modalità istituzionali di assolvimento di tali funzioni,

29 Cass. SS.UU. 24.2.75 n. 700.30 Atti parlamentari Senato, VI legislatura, 429° seduta resoconto sommario, 7.

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La difesa dello Stato in giudizio e la soluzione italiana 39

essendo chiamata ad esercitare, accanto alla contingente funzione di assistenza del soggetto pubblico, una immanente funzione di giustizia nel sistema unitario e indivisibile dello Stato-ordinamento.

L’evoluzione del sistema giuridico costituzionale ha così portato l’Istituto da una elementare funzione mediatrice fra amministrazione e giurisdizione nell’ambito di un esecutivo di concezione ottocentesca, ad un compito di attiva presenza su tutti i terreni in cui si verifica il confronto di entità attributarie di pubbliche potestà o in cui si presenti comunque una necessità di tutela legale del pubblico interesse.

Essa è, infatti, ora chiamata a collaborare quale “avvocato pubblico istituzionale”, alla costante verifica di una congruenza fra normativa ordinaria e normativa costituzionale, fra normativa interna e normativa sovranazionale, fra normativa nazionale, normativa regionale e normativa di rango inferiore nella gerarchia delle fonti, così suggellando l’evoluzione di un processo storico più che bicentenario.

Sia consentito a questo punto concludere riportando due giudizi lusinghieri sull’Istituto a cui ho l’onore di appartenere e che, provenendo da un illustre giurista scomparso e da uno studio economico effettuato da soggetti terzi imparziali ed autorevoli, posso permettermi di citare senza essere tacciato della colpa di autocelebrazione.

Scriveva alcuni decenni fa un giurista della statura di Arturo Carlo Jemolo: “Quante volte sento affermare che lo Stato è sempre servito peggio dei privati, mi sorge spontanea l’obbiezione: Però c’è l’Avvocatura dello Stato. In questo crederei arduo dimostrare che vi sia grande impresa che dal lato dell’assistenza legale ottenga un servizio migliore di quello che presta l’Avvocatura”.

Credo che le cifre dimostrino che quelle parole di alto apprezzamento sono ancora attuali.

Faccio riferimento ad un recente studio della Scuola Superiore della Pubblica Amministrazione ripreso dal “Sole 24 Ore” (che ha dedicato al tema due intere pagine nel numero del 10.12.2007) dal quale si desume che il costo che lo Stato sopporta per l’esistenza e la gestione dell’Avvocatura è di 164,4 milioni di euro annui, comprensivi di ogni voce, ivi compresi i redditi figurativi degli immobili utilizzati e gli onorari riscossi nelle cause vinte, e che ogni causa — quale che sia la sua durata ed il numero di gradi di giudizio — costa quindi allo Stato in media € 785 (euro più — euro meno i dati sono ancora attuali).

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Da quello studio risulta ancora che le cause vinte sono pressoché i due terzi del totale (si precisa che la statistica relativa è stata condotta in modo assolutamente rigoroso, di talché sono considerate vinte solo le cause in cui la domanda avversaria è totalmente rigettata, e quindi se chi pretendeva 1000 ha ottenuto 1 la causa si considera persa). A ciò si aggiunga che sono comprese nella statistica anche le cause in cui la soccombenza dello Stato è pressoché certa, quali, ad esempio, quelle numerosissime di risarcimento dei danni derivanti dalla eccessiva durata dei processi, previste dalla notissima “legge Pinto”.

Visto quanto sopra sembra legittimo domandarsi se esista altro sistema di difesa in giudizio altrettanto economico ed efficiente. Lo studio della Scuola Superiore concludeva testualmente che “a differenza di molti altri settori della P.A., la gestione del contenzioso dello Stato tramite un organo interno è di gran lunga più economica di una difesa affidata a professionisti esterni”. Il che è stato ampiamente dimostrato da esperienze recenti e meno recenti. Aggiunge ancora lo studio — e conferma il “Sole 24 Ore” — che il vantaggio economico è monetizzabile in un risparmio del 90% sul costo di mercato e che a tale vantaggio se ne aggiungono altri non monetizzabili e “funzionali” quali la uniformità e imparzialità della condotta processuale, la coerenza fra attività consultiva e contenziosa, le sinergie difensive ai vari livelli di giurisdizione, la garanzia di riservatezza, la assoluta selettività dei sistemi di reclutamento del personale togato.

“Ciò — aggiunge ancora la relazione — nonostante l’attuale carico di lavoro sia rappresentato dalla impressionante cifra di 550 nuovi affari contenziosi all’anno pro capite”. Il che, aggiungiamo noi, considerata la durata media dei processi in Italia, significa che ogni avvocato dello Stato ha sul ruolo circa 4000 affari pendenti.

Credo che quanto ho ora detto mi consenta di concludere con una constatazione consolatoria, utile in questi tempi così calamitosi: esistono in Italia pubbliche Istituzioni che superano brillantemente l’esame del rapporto costi-benefici e che sanno quindi ispirare la loro attività ai principi di economicità ed efficienza.

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A Fazenda Pública no novo Código de Processo CivilMarco Aurélio Ventura PeixotoAdvogado da União. Especialista em Direito Público pela UnB. Mestre em Direito Público pela UFPE. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Sócio Fundador da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP). Professor Honorário da Escola Superior de Advocacia Ruy Antunes (ESA – OAB/PE). Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Marista do Recife e da Faculdade Estácio do Recife.

Resumo: Avizinha-se, no ordenamento jurídico brasileiro, um novo Código de Processo Civil. Fruto do trabalho iniciado por uma Comissão de Juristas, o projeto tramitou no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, contando com inédita participação social na elaboração de críticas e propostas ao texto. Um dos temas que ganha relevância, nas discussões do novo CPC, é o disciplinamento da atuação da Fazenda Pública em juízo, notadamente porque é sabido que essa atuação é sempre alvo de muitas críticas da sociedade, em decorrência das prerrogativas processuais. Pretende-se desenvolver uma análise de como o texto do projeto do novo CPC afetará a atuação da Fazenda Pública, bem como os respectivos impactos positivos e negativos que advirão com as mudanças.

Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Reforma do Judiciário. Fazenda Pública.

Sumário: Introdução – 1 O novo Código de Processo Civil – Instrumento hábil para se atingir a duração razoável e a efetividade na prestação jurisdicional? – 2 A Fazenda Pública no novo Código de Processo Civil – Conclusão – Referências

IntroduçãoO tema escolhido para o desenvolvimento do presente estudo

se insere no contexto atual de mudanças por que passa a legislação processual civil no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente a partir das previsões estabelecidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004.

A Reforma do Judiciário trazida por tal emenda introduziu no art. 5º da Carta Magna de 1988 o inciso LXXVIII, que trata do princípio da razoável duração do processo.

A importância da discussão resta verificada em função de que o processo civil representa o instrumento de resolução de boa parte dos conflitos de direito material verificados em sociedade, de sorte que a lentidão, o excesso de formalismos e a falta de efetividade nos procedi-mentos em curso perante o Poder Judiciário merecem rigoroso combate.

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Parte-se do pressuposto de que as modificações processuais até hoje introduzidas não foram ainda o bastante para que se conclua possuir o Brasil um sistema jurisdicional célere e eficaz.

A busca por uma melhor tutela jurisdicional e, consequentemente, da efetiva aplicação da justiça ao caso concreto, vem sendo objeto de estudo por renomados doutrinadores e de debates nas Casas Legislativas Federais.

Prova disso são as inúmeras mudanças sofridas pelas leis infracons-titucionais, em especial o Código de Processo Civil (CPC), cujo objetivo é acelerar a prestação jurisdicional em prol da sociedade, sem ferir, dentre outros, os princípios do Devido Processo Legal e da Razoável Duração do Processo.

Ao que parece, ainda que de forma desintegrada e desorganizada, tal processo de mudança já começou. Os movimentos de reforma processual, nos quais se buscam mecanismos de agilidade e eficiência na prestação jurisdicional, acarretaram a edição de algumas recentes reformas na legislação processual, notadamente no CPC, como ocorreu em 1994 (primeira onda de reformas), 2001/2002 (segunda onda de reformas) e 2005/2010 (terceira onda de reformas).

Tal movimento reformista culmina com as discussões para a elaboração de um novo diploma processual, que virá a revogar o então vigente. Tramita na Câmara dos Deputados, como é cediço, o Projeto de Lei nº 8.046/2010, que foi originado no Senado, fruto do trabalho de uma comissão de juristas previamente constituída e que, de modo inédito, recebeu sugestões de toda a sociedade, por meio dos mais variados fóruns de discussão abertos nas duas casas legislativas.

Um dos temas que ganha relevo no novo CPC é exatamente o disciplinamento da atuação da Fazenda Pública em juízo e o tratamento acerca de uma série de questões que envolvem a defesa dos mais diversos órgãos da Administração Pública.

É notório que a atuação da Fazenda Pública no processo civil é sempre alvo de ácidas críticas da sociedade, em decorrência das prerrogativas processuais por ela possuídas.

Em razão disso, não foram poucos os debates acerca da manutenção ou da extinção de algumas dessas prerrogativas, entendidas por uns como privilégios, quando da elaboração do anteprojeto do novo CPC.

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Buscar-se-á, portanto, no artigo presente, partindo das previsões constantes do Projeto de Lei em discussão na Câmara dos Deputados, analisar como se dará a atuação judicial da Fazenda Pública quando da entrada em vigor do novo diploma processual.

1 O novo Código de Processo Civil – Instrumento hábil para se atingir a duração razoável e a efetividade na prestação jurisdicional?

Com as três ondas de reformas processuais, não foram poucas as leis que alteraram a redação original do CPC de 1973, no mais das vezes com o intuito de dinamizar e desburocratizar as relações processuais.

Segundo se sabe, a EC nº 45/2004 introduziu o princípio da duração razoável do processo à ordem constitucional brasileira, no inciso LXXVIII do art. 5º, consagrando-o como garantia fundamental dos cidadãos que buscam o Judiciário. Na verdade, toda a reforma e tantas outras leis que decorreram da alteração constitucional foram editadas com tal espírito, o de fazer com que os processos judiciais durassem apenas o estritamente necessário.1

Mesmo com tantas mudanças, restou ainda um sentimento de que não se tinha atingido o cenário ideal, propício a fazer com que os cidadãos pudessem efetivamente receber a prestação jurisdicional de modo célere.

Nesse contexto, o Senado Federal constituiu, em setembro de 2009, uma Comissão de Juristas, sob a presidência do então Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Fux, hoje no STF, e sob a relatoria de Tereza Arruda Alvim Wambier, com o intuito de elaborar um anteprojeto do novo CPC. Essa comissão se reuniu com periodicidade até junho de 2010, realizando inclusive audiências públicas em várias capitais do país, a fim de colher sugestões e impressões da sociedade e dos operadores do Direito, bem como divulgou, com transparência, as propostas aprovadas por seus membros, visando essencialmente à simplicidade na linguagem, à celeridade na tramitação, à efetividade do resultado e à modernização dos procedimentos.

A Comissão identificou três fatores primordiais para a longa duração dos processos, quais fossem, o excesso de formalidades, a litigiosidade desenfreada advinda da conscientização da cidadania

1 PEIXOTO. Tópicos de processo civil, p. 30.

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decorrente da Constituição de 1988 e o grande elenco recursal, fruto do modelo francês.2

Ao final das discussões, o anteprojeto foi entregue pela Comissão ao Presidente do Senado Federal, para que fossem iniciadas as discussões naquela casa legislativa. Tal projeto, que ganhou o número PLS 166/2010, teve no Senado a relatoria do Senador Valter Pereira, havendo sido aprovado um substitutivo de tal relator no final de 2010, com alterações em relação ao anteprojeto da comissão de juristas.

Presentemente, o projeto se encontra em discussão na Câmara dos Deputados, que constituiu, a exemplo do que já se havia feito no Senado, uma Comissão Especial para tratar do assunto, sob a relatoria do Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA).

Pretende-se que o novo CPC venha a se tornar, de fato, um mecanismo hábil para se atingir a duração razoável e a efetividade na prestação jurisdicional, rompendo-se as quase intransponíveis barreiras que, na sistemática até então vigente, acarretam a mora processual.

O diploma passará a ser dividido nos seguintes livros: parte geral, processo de conhecimento, processo de execução, processo nos tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais e disposições finais e transitórias.

O novo CPC cuidará de excluir o livro destinado ao processo cau-telar, passando a haver um tratamento em conjunto das tutelas de urgên-cia, como ocorre, por exemplo, nos ordenamentos italiano e português. Compreende-se como salutar dita mudança, já que não se deixará de ter a possibilidade de manejo da tutela cautelar, a qualquer tempo, mas sem a necessidade de uma espécie processual própria e autônoma para tanto. Logo, como bem ressaltou destacou José Herval Sampaio Júnior, a retirada da autonomia do processo cautelar, se bem compreendida, não fará falta alguma, já que agora se poderá ter a concessão desse tipo de medida em qualquer tempo.3

Releva ainda destaque a ideia de criação de um incidente de resolução de demandas repetitivas, no tocante à legitimidade para as chamadas ações de massa, com a prevenção do juízo e a suspensão das

2 FUX. O novo processo civil. In: FUX (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil, p. 4-6.

3 SAMPAIO JÚNIOR. Tutelas de urgência: sistematização das liminares, p. 37.

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demandas individuais. O objetivo desse incidente é o de transformar em uma única ação coletiva processos individuais semelhantes, para acelerar e uniformizar o trabalho jurisdicional, além de evitar insegurança jurídica com a multiplicação de questões idênticas. Nesse contexto, sempre que uma nova ação surgir sobre algum assunto já decidido por incidente de resolução de demandas repetitivas — como, por exemplo, a contestação de assinatura básica de telefonia —, a decisão já produzida será automaticamente aplicada, sem que seja necessária uma nova tramitação, já que se produz coisa julgada em relação aos processos pendentes e supervenientes.

O incidente de resolução de demandas repetitivas parece ser mesmo a “menina dos olhos” do novo CPC, revelando-se o tema de maior debate entre os que discutem o projeto, especialmente porque visa à promoção da segurança jurídica, da confiança legítima, da igualdade e da coerência da ordem jurídica mediante julgamento em bloco e fixação de tese a ser observada por todos os órgãos do Poder Judiciário, ainda que se saiba que não conseguirá atenuar por completo a carga de trabalho da jurisdição.4

Sem dúvida, a elaboração de um novo diploma processual civil teria que passar por uma completa revisão da temática recursal, tendo em conta que, na ordem jurídica brasileira, boa parte da demora na tramitação de um processo se deve à quantidade de recursos, aos seus efeitos e outros fatores acessórios já comentados.

O projeto do novo CPC apresenta alguns pontos importantes para se tentar quebrar tais amarras. Um desses pontos reside na unificação dos prazos recursais em quinze dias úteis, com exceção dos embargos de declaração. Na atual sistemática, há prazos de cinco, dez e quinze dias, dificultando muito a atividade dos operadores. Tal medida decerto facilitará a contagem e o acompanhamento dos prazos pelos advogados, bem como pelos próprios serventuários, que não raras vezes certificam indevidamente a perda do prazo quando eles ainda estão em curso ou que deixam de fazê-lo quando já há muito expirados.

Outra medida salutar parece ser a extinção de algumas figuras recursais já bastante criticadas pela doutrina e pela jurisprudência, como os embargos infringentes. Apesar de haver vozes dissonantes na

4 MARINONI; MITIDIERO. O projeto do CPC: críticas e propostas, p. 178.

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doutrina quanto à sua extinção, como é o caso de Rodrigo Klippel e Antonio Adonias Bastos, que entendem que as críticas não se baseiam em dados estatísticos ou em pesquisas, mas sim em argumentos retóricos,5 o legislador tendeu a aceitar o posicionamento majoritário, defensor de sua extinção.

Em relação a essa figura, prevista tão somente no ordenamento brasileiro, e já extinto até do português, de onde se originou,6 parece ter faltado coragem ao legislador para extinguir tal instituto na segunda onda de reformas processuais, não possuindo também qualquer razão de ser, visto que a decisão colegiada, ainda que não unânime, deve ser respeitada internamente naquela corte, cabendo a impugnação tão somente para as instâncias superiores, pela via dos recursos excepcionais.

Por seu turno, em relação à remessa necessária, as discussões iniciais giraram em torno da extinção, já que no atual cenário, em que a defesa judicial da Fazenda Pública se encontra, em regra, bem organizada e estruturada, teria perdido a razão de ser. No entanto, prevaleceu a ideia de manutenção do instituto, com o aumento da restrição, já que só terá vez nas condenações acima de mil salários mínimos, para a União e suas autarquias e fundações, quinhentos salários mínimos para Estados, Distrito Federal e suas autarquias e fundações, e de cem salários mínimos para os Municípios e suas autarquias e fundações.

O excesso de impugnações às decisões interlocutórias, pela via dos agravos de instrumento, parece também estar com os dias contados. Isso porque o projeto apresenta a previsão de que não haja a preclusão em primeira instância, de modo que o agravo de instrumento se restringirá às decisões de urgência satisfativas ou cautelares. Todas as demais matérias, ainda que proferidas em decisão interlocutória, serão objeto de um recurso de apelação único, em que se ataque tanto o conteúdo da sentença como o das eventuais decisões interlocutórias pretéritas.

Ponto que desde o primeiro instante gerou polêmica, notadamente entre os advogados, é a ideia da sucumbência recursal progressiva. Tal raciocínio implica em se fixar ampliativamente os honorários advocatí-cios, a cada recurso não provido. Essa medida visa a inibir a utilização

5 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil: atualizado com a Lei nº 12.322/10, p. 793.6 DIDIER JR.; CUNHA. Curso de direito processual civil, v. 3, p. 211.

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das espécies recursais, como muito ocorre, com intuito meramente protelatório, de modo que as partes e seus advogados deverão refletir bastante antes de se valer de uma dada espécie recursal, sabedores que o insucesso no seu julgamento pode aumentar o prejuízo com o pagamento de honorários sucumbenciais à parte adversa.

Não obstante algumas críticas que serão tecidas no capítulo seguinte, notadamente em relação à atuação da Fazenda Pública em juízo, dita previsão vem atraindo elogios da maior parte dos processualistas, por penalizar aquele que retarda a tramitação processual e por proporcionar justa remuneração aos advogados que empregaram seu labor na instância recursal, após a fixação ocorrida na sentença.7

A verdade é que, diferentemente do que outrora era comum ocorrer, no cenário atual, parou-se de atribuir a culpa a quem quer que seja que não a si próprio, iniciando-se um momento de pensamento conjunto e integrado, na busca de soluções que atendam a todos os poderes, desburocratizando o funcionamento da máquina processual e propiciando maior rapidez e efetividade na resolução das lides subme-tidas ao Judiciário.

Por tudo isso, revela-se inegável a importância da discussão am-pliada acerca das disposições do novo CPC. Optou-se por debater um novo código a conviver com o atual, cheio de remendos e mudanças constantes. Segundo se viu, é pensamento comum entre os juristas a necessidade de corrigir defeitos da velha lei e especialmente de adequá-la a uma realidade que demanda processos simples, de fácil acesso e sem tantas amarras.

Essas ideias contidas no novo CPC por certo não representam uma fórmula mágica, que virá a atender a todos os anseios sociais e a eliminar por completo a mora processual. No entanto, é de se convir que as conclusões a que se tem chegado, abrangendo os mais variados temas da legislação processual, serão dignas de reconhecimento, porque representarão passos largos para que se atenda, ao máximo, a pretendida duração razoável dos processos.

7 SOUZA E SILVA. Honorários de sucumbência recursal no projeto do novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR.; ARAÚJO; KLIPPEL (Coord.). O projeto do novo Código de Processo Civil: estudos em homenagem ao Prof. José de Albuquerque Rocha, p. 335.

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2 A Fazenda Pública no novo Código de Processo CivilSegundo leciona Leonardo Carneiro da Cunha, a expressão

Fazenda Pública é utilizada para designar as pessoas jurídicas de direito público que figurem em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse sobre matéria estritamente fiscal ou financeira.8

Assim, pode-se incluir no âmbito de utilização dessa expressão a União, os Estados da Federação, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias (incluindo as agências reguladoras, constituídas sob a natureza de autarquias de regime especial) e as fundações públicas.

Equívoco não raro cometido por estudantes e até mesmo por pro-fissionais do Direito é o de confundir Fazenda Pública com Administração Pública. Isto porque, como sabido, a Administração Pública divide-se em direta e indireta, sendo que nesta última estão compreendidas também as sociedades de economia mista e as empresas públicas, que não são constituídas sob a personalidade jurídica de direito público, mas sim de direito privado, de modo que não podem ser consideradas como partes integrantes da Fazenda.

Notadamente na condição de ré, os entes integrantes da Fazenda Pública são as figuras mais presentes nas relações processuais do ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando, na visão de Hélio do Vale Pereira, a falta de sintonia entre o seu agir e as determinações legais, mormente constitucionais,9 o que contribui evidentemente para a sobrecarga do Poder Judiciário e para a lentidão na prestação jurisdicional.

Em função dessa presença estatisticamente marcante da Fazenda Pública em juízo, as normas processuais foram, com o passar dos anos, adaptando-se, amoldando-se à sua participação nas demandas, o que faz parecer existir um sistema processual à parte, como se houvesse um direito processual público,10 típico para as situações em que se litiga contra a Fazenda.

Nessa linha de raciocínio, não são poucas as críticas de advogados privados, magistrados e mesmo de doutrinadores acerca das prerrogativas

8 CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 15.9 PEREIRA. Manual da Fazenda Pública em juízo, p. 1.10 BUENO. O poder público em juízo: as (constantes) alterações impostas pela Medida Provisória nº 1.984 no

Processo Civil, p. 1.

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processuais inerentes à atuação em juízo da Fazenda Pública. Previsões atuais, como citação pessoal, reexame necessário, prazo quadruplicado para contestar e dobrado para recorrer, possibilidade de suspensão de liminares, da segurança e de tutelas antecipadas, honorários advocatícios fixados de modo equitativo, impenhorabilidade de bens e pagamento das dívidas por meio de precatórios, sempre despertaram polêmica, calorosos debates e opiniões contrárias, de modo que essa temática evidentemente seria trazida à tona quando das discussões do projeto do novo CPC.

2.1 A razoabilidade das normas processuais afeitas à Fazenda PúblicaComo dito acima, a atuação da Fazenda Pública em juízo é sempre

alvo de críticas das mais ácidas pela sociedade, em grande parte como fruto das tais prerrogativas por ela possuídas.

Discute-se sempre, quer entre profissionais do Direito, quer mesmo entre os leigos, se a fixação de regras específicas para os entes dotados de personalidade jurídica de direito público causa algum tipo de afronta ao constitucional princípio da isonomia.

Não parece merecer resposta afirmativa tal questionamento. Ora, a Fazenda não deve ser vista como simplesmente mais uma pessoa jurídica, já que possui dimensão tão profunda que veda seja vista como um ente jurídico a disputar, com outros, interesses individualizados. Não há que se imaginar vinculação entre a Fazenda Pública e propósitos egoísticos, singularizados.11

Ora, se cabe à Fazenda Pública velar pelo interesse público, e este deve ser colocado em posição de supremacia em relação aos interesses privados, não há inconstitucionalidade ou ilicitude em se conferir prerrogativas aos seus entes quando da atuação junto ao Poder Judiciário.

A Fazenda Pública não reúne, para sua defesa em juízo, as mesmas condições que tem um particular na tutela de seus interesses, já que mantém uma burocracia inerente à sua atividade, como dificuldade em ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa.12

Já se ouviu muito criticar a atuação da Fazenda porque seus prazos ampliados acarretariam demora às relações processuais ou feririam

11 PEREIRA. Manual da Fazenda Pública em juízo, p. 25.12 CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 34.

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o constitucional princípio da duração razoável dos processos. Ocorre que é sim razoável a ampliação desses prazos, na linha de que, além de o interesse perseguido e defendido ser o público, e de suas derrotas refletirem ainda que indiretamente na própria sociedade, é de se convir que sua defesa é mais complicada quando envolve matéria fática, já que se faz necessário movimentar a máquina administrativa em busca de documentos, fichas financeiras e outras comprovações que possam embasar a defesa do ente público.

Não se deve, portanto, encarar as prerrogativas conferidas por lei à Fazenda Pública como privilégios, já que o tratamento diferenciado tem uma razão de ser — proteção do interesse público — e atende plenamente à ideia da isonomia processual. Encarar de modo diferente implicaria compreender que as prerrogativas estatuídas aos beneficiários da justiça gratuita (prazos ampliados, defesa judicial pela Defensoria Pública, dispensa de custas/honorários, etc.) seriam também inconstitucionais ou ilícitas. Se há desigualdade entre os polos de uma relação processual, desigualmente devem ser tratados pelo legislador.

2.2 A consagração da Advocacia Pública no novo CPCSe a Advocacia Pública já estava consagrada na Constituição Fede-

ral de 1988, em seus artigos 131 e 132, no capítulo atinente às funções essenciais à Justiça, faltava sua positivação no âmbito do diploma pro-cessual, visto que suas atribuições infraconstitucionais decorriam apenas de leis esparsas ou organizadoras das respectivas instituições incumbidas de promover a defesa da Fazenda Pública em juízo.

E assim se fez no projeto do novo CPC. No Livro I (Parte Geral), Título IV (Das partes e dos procuradores), Capítulo IV (Dos procurado-res), do Projeto de Lei nº 8.046/2010, há a Seção II, intitulada “Da Advo-cacia Pública”, em cujos artigos 105 e 106 constam previsões atinentes à atuação dos órgãos incumbidos da representação judicial da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas autarquias e fundações públicas.

Prevê-se, no art. 105, que incumbe à Advocacia Pública defender e promover os interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio da representação judicial, em todos

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os âmbitos federativos, das pessoas jurídicas de direito público que integram a administração direta e indireta.

Ressalva-se que, no caso de Municípios que sejam desprovidos de Procuradoria própria, o que ainda é uma lamentável realidade da maior parte dos entes municipais, a advocacia poderá ser exercida por advogado privado, munido de procuração.

Atribuiu-se, ademais, a responsabilidade aos membros da Advocacia Pública, para aquelas situações em que, no exercício de suas funções, tiverem agido com dolo ou fraude, em previsão análoga a que se atribui ao membro do Ministério Público, como constante no atual código e no art. 159 do projeto.

Por fim, no art. 106 do projeto, em local aparentemente inadequado, visto que melhor situado restaria se estabelecido nas tratativas acerca dos prazos processuais, fixou-se que a Fazenda Pública disporá de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais, com a contagem tendo início a partir da vista pessoal dos autos.

2.3 A responsabilização do advogado público por descumprimento de decisões judiciais

Esclarecendo melhor a defeituosa redação constante do art. 14 do atual Código de Processo Civil, o projeto prevê, no art. 80, §5º, que aos advogados públicos não se aplica o disposto nos parágrafos 1º a 4º, devendo sua responsabilização ser apurada pelos órgãos de classe respectivos, aos quais o juiz oficiará.

Tal previsão foi inserida no artigo que trata dos deveres das partes, dos procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participarem do processo. Em tal dispositivo, estabelece-se que a violação ao dever de cumprir com exatidão as decisões de caráter executivo ou mandamental e de não criar embaraços à efetivação de pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória ou final, importa em ato atentatório ao exercício da jurisdição, devendo o juiz aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa.

No art. 14 do código ainda em vigor, consta a previsão da multa em seu parágrafo único, estabelecendo que estariam ressalvados dessa

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regra os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da Ordem dos Advogados do Brasil. Ora, evidente que Advogados da União, Procuradores Federais, Procuradores da Fazenda Nacional, Procuradores de Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não estão sujeitos exclusivamente aos estatutos da OAB, pois devem obediência às leis específicas que regulamentam as respectivas carreiras e funções.

Tal parágrafo inclusive teve sua constitucionalidade questionada na ADI nº 2.652-6, em que se determinou sem redução de texto, por emprestar à expressão “ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”, interpretação conforme a Carta, a abranger advogados do setor privado e do setor público. Ainda assim, como a redação não foi objeto de alteração no CPC, alguns juízes e desembargadores insistem em impor multa pessoal aos advogados públicos, o que motivou inclusive uma série de reclamações recentemente junto ao Supremo Tribunal Federal.13

Revela-se, assim, de absoluta importância a previsão expressa, no projeto do novo CPC, de que os advogados públicos, assim como os privados, os defensores públicos e os membros do Ministério Público estarão excluídos da possibilidade de imposição da responsabilização pessoal por eventual descumprimento de decisão judicial imposta aos órgãos por eles representados.

Isso não significa que o novo CPC garantirá uma atuação arbitrá-ria, livre de quaisquer responsabilidades, aos advogados públicos. Pelo contrário. O que se está a garantir é que a multa por ato atentatório à jurisdição não lhe será imposta, mas sim ao órgão, pois o advogado é mero representante deste. Tanto o CPC prevê a possibilidade de respon-sabilização por atuação dolosa ou fraudulenta, segundo acima já anali-sado, como se estatui, no próprio art. 80, §5º, que o juiz deverá oficiar ao respectivo órgão de classe, a fim de apurar a conduta do profissional.

Mais que uma obediência ao texto da própria Constituição Federal, é instrumento importante de garantia à atuação livre, isenta e alheia às pressões externas, para os membros da Advocacia Pública.

13 A título de exemplo, nas Reclamações nº 5.133 e nº 7.181, relatadas pela Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, ratificou-se o entendimento de que a multa pessoal a suposto litigante de má-fé não pode ser imposta a advogado público, mas apenas ao órgão que ele defende. No mesmo sentido, apresentam-se as Reclamações nº 5.865, também relatada pela Min. Cármen Lúcia; nº 5.941, Rel. Min. Eros Grau; nº 5.746, Rel. Min. Menezes Direito; e nº 4.656, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

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2.4 Honorários advocatícios nas demandas contra a Fazenda Pública e sucumbência recursal progressiva

Um dos assuntos que mais despertou a atenção daqueles envolvidos nas discussões do novo Código de Processo Civil foi, sem dúvida, a questão pertinente aos honorários advocatícios.

Nessa temática, gerou debate a questão da fixação dos honorários naquelas ações ajuizadas em face dos entes que integram a Fazenda Pública, já que é motivo de crítica a redação atual do art. 20, §4º, que prevê que naquelas causas em que restar vencida a Fazenda Pública, os honorários serão fixados consoante apreciação equitativa do juiz.

Não são poucos os advogados privados que se queixam, e isso é motivo inclusive de bandeira levantada pelo Conselho Federal da OAB, que em alguns casos os valores fixados a título de honorários contra a Fazenda Pública são irrisórios, em razão de falta de um critério objetivo ou de um parâmetro concreto para a sua determinação.

Pelo projeto, o art. 87, §3º, diz que nas causas em que a Fazenda Pública for parte, os honorários advocatícios serão fixados conforme o mínimo de 10% e o máximo de 20% para as causas de até duzentos salários mínimos; mínimo de 8% e máximo de 10% para causas de até dois mil salários mínimos; mínimo de 5% e máximo de 8% para as ações de dois mil até vinte mil salários mínimos; mínimo de 3% e máximo de 5% para ações de vinte mil até cem mil salários mínimos; e mínimo de 1% e máximo de 3% nas ações acima de cem mil salários mínimos.

Não há como negar que parâmetros mais objetivos foram estabelecidos. De toda forma, carece o artigo de previsão para aquelas causas mais repetitivas, que possuem valores por vezes elevados, já que, em tais situações, o trabalho exercido pelo profissional e o tempo exigido para o seu serviço acabam por se afigurar desproporcionais em relação aos honorários que virão a ser fixados.

Importa, ademais, destacar que pelo §10 do art. 87 do projeto do novo CPC os honorários advocatícios serão taxativamente reconhecidos como direito do advogado e possuidores de natureza alimentar, com os mesmos privilégios inerentes aos créditos trabalhistas, sendo ainda vedada a compensação em caso de sucumbência parcial, que era outra luta antiga da classe dos advogados.

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Restou omisso, também neste aspecto, o projeto do novo CPC, no sentido de reconhecer expressamente que os honorários também são direito dos advogados públicos nas causas em que a Fazenda Pública sagrar-se vencedora. Isto porque, da forma que se tem atualmente, essa previsão depende de leis próprias de cada ente. No âmbito estadual e municipal, há situações em que os honorários advocatícios são divididos entre os procuradores e outras em que são encaminhados a um fundo próprio para capacitação e melhorias da carreira e dos órgãos. Já em outros, como também ocorre no âmbito federal, os honorários advocatícios não revertem às carreiras, mas ao tesouro do próprio ente.

Ora, se os honorários representam a contraprestação legal pela atuação do advogado, independentemente de ser ele público ou privado, correto seria se o novo CPC estatuísse expressamente a extensão desse direito àqueles que advogam para a Fazenda Pública.

Finalmente, ainda na temática dos honorários advocatícios, ponto inovador apresentado pelo novo CPC é o da sucumbência recursal progressiva, prevista no art. 87, parágrafos 1º e 7º. Isso significa que na instância recursal, fixar-se-á nova verba honorária, observando-se os limites aqui já colocados em percentuais e o limite total de 25% para a fase de conhecimento.

Não há como negar a posição espinhosa que os advogados públicos serão colocados diante da ideia da sucumbência recursal progressiva. Ainda que se compreenda que a ideia é exatamente a de inibir a utilização daqueles recursos com finalidade meramente protelatória, há de se convir que, na maior parte dos casos, a interposição do recurso é dever de ofício do advogado público, podendo incorrer inclusive em infração administrativa caso deixe de recorrer sem autorização legal ou superior. Sendo assim, há de se ressaltar que o momento de decidir quanto à interposição do recurso se revelará árduo, pois precisará sempre levar em consideração que o fracasso importará em mais uma condenação para a Fazenda Pública.

2.5 A nova sistemática das prerrogativas de prazos para manifestações da Fazenda Pública

Segundo já visto, no art. 106 do projeto, que cuida da Advocacia Pública, estabelece-se que a União, os Estados, o Distrito Federal, os

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Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas gozarão de prazo dobrado para todas as suas manifestações processuais.

Isso implica, por evidente, em alteração significativa em relação à regra do código vigente, que indica no art. 188 prazo quadruplicado para contestar e dobrado para recorrer. Uniformizar-se-ão, a partir da vigência do novo CPC, as prerrogativas de prazo para a Fazenda Pública, para o Ministério Público e para a Defensoria Pública.

Não parece que a alteração processual venha a resultar em prejuízos para a Fazenda Pública. Do contrário, o projeto procura respeitar a isonomia, a celeridade e a efetividade do processo.14

Se há diminuição no prazo para contestar, que era quadruplicado (60 dias) e passa a ser dobrado (30 dias), atribuiu-se à Fazenda Pública o prazo dobrado para todas as manifestações judiciais sob sua respon-sabilidade, como ocorre atualmente com litisconsortes com diferentes procuradores e defensores públicos, o que representa uma vantagem em relação ao código vigente. Assim, manifestações simples e contrarrazões recursais, por exemplo, passarão a ser dotadas de prazo em dobro para a Fazenda Pública.

Essa previsão do prazo contado em dobro para a Fazenda Pública somente será ressalvada naquelas situações em que a lei estabelecer, de forma expressa, prazo próprio para a prática de um dado ato processual, como estabelecido no art. 186.

De acordo com o que já foi explicitado anteriormente, a previsão de prazos ampliados para a atuação da Fazenda Pública em juízo justifica-se plenamente, porque está a defender não interesses privados, mas sim o interesse público, que merece prevalência. Ademais, a dificuldade na coleta de elementos fáticos para a defesa, aliada à sobrecarga de trabalho a que são acometidos, em regra, os advogados públicos, justificam plenamente o tratamento especial conferido pelo legislador no novo CPC.

Não há como ignorar também outra importante previsão atinente aos prazos, desta feita não específica à Fazenda Pública, mas que a ela também bem atende, que é a de que os prazos serão contados tão somente em dias úteis, como se indica nos artigos 186 e 249 do projeto.

14 NUNES. As prerrogativas da Fazenda Pública e o Projeto de Lei nº 166/10: novo Código de Processo Civil. Jus Navigandi.

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Independentemente das críticas que já surgiram, de que essa previsão pode acarretar mais mora à relação processual — mora essa que, diga-se de passagem, será insignificante — a verdade é que essa inovação atende a um desejo antigo de advogados públicos e privados, que não raro sacrificam seus finais de semana e feriados para o cumprimento de tarefas com prazos curtos.

2.6 A remessa oficial no novo CPCNão foram poucas as oportunidades que o legislador teve de banir

a remessa oficial do ordenamento jurídico brasileiro, como ocorreu com a Lei nº 10.352/2001 e mais recentemente na terceira onda de reformas processuais. No entanto, em todas essas ocasiões, o legislador, de forma con-servadora, não analisou concretamente a utilidade do instituto atualmente.15

Em um dos relatórios parciais divulgados pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, ainda no ano de 2009, afirmou-se que um dos objetivos era o de não mais existir a previsão da remessa oficial, ou reexame necessário, no novo diploma adjetivo.

Tal ideia se justificaria na conclusão de que a defesa judicial da Fazenda Pública se encontra, em regra, bem organizada e estruturada, e então a remessa oficial teria perdido a razão de ser. Além disso, há situações esdrúxulas em que a União, por exemplo, deixa de recorrer baseada em súmula administrativa do Advogado-Geral da União — portanto, por vontade própria — e a decisão acaba tendo que ser, obrigatoriamente, reexaminada pelo tribunal respectivo.

Ocorre que, já no trabalho final da Comissão de Juristas, e isso prevaleceu no Senado, optou-se pela manutenção do instituto, com um aumento ainda maior da restrição que já havia sido estabelecida no art. 475 do CPC atual, quando da Lei nº 10.352/2001.

Uma das mais fortes justificativas para a não extinção da remessa oficial foi a de que a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal estão plenamente organizadas, mas essa não seria a realidade da maior parte das Procuradorias Municipais, de

15 PEIXOTO; MARQUES. A análise de possíveis mudanças processuais e a possibilidade de extinção do reexame necessário como forma de alcançar os princípios da celeridade processual e da duração razoável do processo. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru, p. 275.

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modo que a proteção ao Erário ainda se fundamentaria em tal reexame obrigatório pelos tribunais.

Assim, no art. 483 do projeto, consta a figura da remessa oficial. Ampliou-se, no inciso III, seu cabimento, para as situações em que não se puder indicar, de logo, o valor da condenação.

No §2º, restringiu-se sua incidência nas situações em que o valor da condenação, do proveito, do benefício ou vantagem econômica em discussão for de valor certo inferior a mil salários mínimos para União e suas autarquias e fundações, quinhentos salários mínimos para os Estados, Distrito Federal e suas autarquias e fundações e cem salários mínimos para os Municípios e suas autarquias e fundações. Revela-se, sem dúvida, um substancial aumento no rol de restrições pelo valor, notadamente nas condenações da União, Estados e Distrito Federal, considerando que o atual teto é de sessenta salários mínimos para todos os entes.

Já no §3º, mantendo a linha do atual CPC para as questões pacificadas pela jurisprudência, prevê-se que não haverá a remessa oficial quando a sentença estiver fundada em súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão proferido pelo STF ou STJ no julgamento de casos repetitivos ou em entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

Desse modo, não obstante a manutenção do instituto revele a timidez do legislador, nesse aspecto, para extirpar da ordem jurídica a remessa oficial, há de se convir que com o aumento no rol das restrições implicará necessariamente na sensível diminuição dos casos submetidos a reanálise, contribuindo assim com a pretendida duração razoável dos processos judiciais.

2.7 Dispensa de custas processuais e de preparo recursalA exemplo do que já ocorre na sistemática atual, a Fazenda Pública,

nos seus mais diversos níveis, está dispensada do recolhimento de custas processuais, como ocorre no caso da distribuição de petição inicial, prerrogativa esta também possuída pelo Ministério Público e pelos beneficiários da justiça gratuita.

No projeto do novo CPC, são mantidas tais prerrogativas, ressal-vando-se apenas que, conforme o art. 93, diferentemente da redação do

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art. 27 do CPC atual, as despesas periciais devem ser pagas de plano por aquele que requerer a prova, de modo que, caso o pedido de perícia venha a ser formulado pela Fazenda Pública, caberá a esta recolher tal quantia.

Manter-se-á a dispensa do preparo recursal, conforme o art. 961, I, que diz que são dispensados de preparo os recursos interpostos pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias.

Por igual, restarão os entes integrantes da Fazenda Pública dispensados de efetuar o depósito da importância de cinco por cento sobre o valor da causa, a título de multa, quando do ajuizamento das ações rescisórias, conforme o previsto no art. 921, II, §1º, do projeto, ressaltando-se que, por este novo diploma, o prazo de ajuizamento será reduzido para apenas um ano contado do trânsito em julgado.

2.8 A eficácia imediata das decisões – Ausência de efeito suspensivoUma das questões basilares e motivadoras do trabalho da Comissão

de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do novo CPC foi a previsão da execução imediata das decisões e do efeito suspensivo ope iudicis.

Tal ideia era das mais defendidas pelos doutrinadores, inspirados pelo pensamento de que a tutela jurisdicional deve ser tempestiva, sendo imprescindível evitar o abuso no direito de recorrer.16

A nova regra, estatuída no art. 949 do projeto, quebra especialmente a previsão do art. 520 do Código vigente, cuja previsão indica que a regra geral para o recebimento das apelações é o da atribuição do efeito suspensivo, isto é, tal efeito revela-se ope legis.

Na nova sistemática, os recursos não impedirão a eficácia da deci-são, de modo que sua execução pode ser requerida imediatamente. Tal eficácia somente pode ser suspensa pelo relator do recurso se demons-trada a probabilidade de provimento do recurso ou, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou difícil reparação.

Dito pedido de efeito suspensivo não será feito e nem analisado pelo órgão a quo, mas sim pelo relator no tribunal, em petição autônoma. Tratando-se de apelação, suspende-se a eficácia da decisão caso tal petição seja protocolizada, até que o pedido de efeito suspensivo seja apreciado pelo relator, em decisão irrecorrível.

16 MARINONI; MITIDIERO. O projeto do CPC: críticas e propostas, p. 178.

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Tratando-se da atuação em juízo da Fazenda Pública, neste aspecto, é de se entender como de grande risco a inexistência de efeito suspensivo nos recursos. Por mais que se compreenda que o espírito é o de propiciar maior celeridade processual e diminuir o manejo de recursos com fim estritamente protelatório, não há como se ignorar que a Fazenda está a velar pelo interesse público.

Imaginar o cumprimento imediato de algumas obrigações de fazer em face da Fazenda Pública, implicará em diversos casos na impossibilidade de reversão da decisão, de sorte que a mudança em grau recursal pouca ou nenhuma utilidade traria à coisa pública e ao Erário.

É de se criticar ainda a forma pela qual se previu o referido efeito suspensivo ope iudicis. Se o objetivo é o de gerar celeridade e possibilitar o imediato cumprimento das decisões, não se poderá garanti-la.

Isso porque, do lado privado, não há dúvidas que haverá um con-siderável número de petições autônomas, tentando buscar, por meio do relator, a suspensão da decisão. Como se viu no procedimento, a simples petição obsta a execução, até que o relator decida pela atribuição ou não do efeito suspensivo.

De outra sorte, saindo sucumbente a União, Estados, Distrito Fede-ral, Municípios, autarquias e fundações públicas, certamente haverá casos de formulação dessa petição autônoma, ou mesmo de expediente que é inerente apenas à Fazenda Pública e ao Ministério Público, previsto na Lei nº 8.437/92, que é a suspensão da execução da sentença, dirigida ao presidente do respectivo tribunal competente para o julgamento do recurso, fundada em grave lesão à ordem, à economia, à saúde ou à segurança pública. A utilização dessas petições autônomas, ou mesmo da suspensão, pode acarretar ainda mais tumulto à relação processual.

2.9 O depósito imediato da multa por descumprimento de obrigaçãoO projeto do novo Código de Processo Civil, diferentemente do

que ocorre na legislação em vigor, prevê o depósito imediato da multa coercitiva nas obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, conforme estatuído nos artigos 118, VI, e 522, §1º.

É de se registrar que, na sistemática atual, a multa é instrumento dos mais utilizados pelo juiz para constranger o devedor ao cumprimento de

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obrigações, quer em tutelas antecipadas ou liminares, quer nas execuções. Ocorre que, como tal multa não é de ser levada a depósito imediato, sendo apurada apenas ao final, como obrigação de pagar quantia certa, muitos compreendem que acaba por não apresentar o efeito prático desejado de propiciar o cumprimento imediato das decisões.

Por essa razão, uma das bandeiras sustentadas pela Comissão de Juristas, objeto de aprovação no Senado e que certamente constará do texto final do novo CPC, foi exatamente essa ideia de fazer com que as multas sejam objeto de imediato depósito em juízo, para seu levantamento apenas após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo de admissão contra decisão denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.

Preocupa, no entanto, essa previsão nas ações que envolvam decisões desfavoráveis à Fazenda Pública. Ora, a previsão constitucional do pagamento das dívidas judiciais da Fazenda por meio de precatórios se deve, dentre outras coisas, à necessidade de previsão orçamentária.

Se é assim, como imaginar a obrigação para a Fazenda Pública de, a cada demora no cumprimento de determinadas decisões, por vezes inerentes à intricada burocracia da Administração Pública, ter que depositar em juízo o valor correspondente às multas fixadas? A tomar em consideração a pouca paciência de muitos magistrados em relação às dificuldades que tem a Fazenda em adimplir rapidamente certas decisões, fica difícil mensurar como resistirá o orçamento público, especialmente o dos Municípios, menos abastados e dotados de maiores problemas financeiros.

2.10 A execução da obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda PúblicaNa legislação em vigor, o art. 730 prevê rito especial para a execu-

ção das obrigações de pagar quantia certa em face da Fazenda Pública, mesmo naquelas situações que decorrem de título executivo judicial, com nova ação, nova citação, e possibilidade de embargos no prazo de trinta dias.

Por outro lado, de acordo com a previsão do art. 519 do projeto do novo CPC, haverá alteração substancial nessa sistemática. Quando

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transitada em julgado a sentença, o exequente deve apresentar demons-trativo discriminado e atualizado do crédito, nos próprios autos.

Assim, a Fazenda não será novamente citada, mas sim apenas intimada, pois a execução, tal como ocorre com os particulares desde a Lei nº 11.232/2005, será mera fase e não novo processo. Consoante o art. 520, ela terá trinta dias para, querendo, impugnar a execução.

De toda forma, a expedição de precatório ou de requisição de pequeno valor somente se dará caso não impugnada a execução ou se forem rejeitadas as alegações da Fazenda Pública contidas na im-pugnação. Por conseguinte, a natureza jurídica da decisão que houver rejeitado a impugnação, total ou parcialmente, será de mera decisão interlocutória, e não mais de sentença, como ocorre atualmente com o julgamento dos embargos.

O projeto do novo CPC dispõe ainda explicitamente sobre a execução de títulos extrajudiciais contra a Fazenda Pública, no art. 866. Nela, a Fazenda será citada para, em trinta dias, opor embargos à execução. Da mesma forma, a expedição de precatório ou de requisição de pequeno valor somente ocorrerá na ausência da oposição de embargos ou na sua rejeição.

2.11 A participação da Fazenda Pública no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivasConsoante já exposto linhas atrás, a “menina dos olhos” do novo

Código de Processo Civil é a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas, estabelecida entre os artigos 930 a 941 do projeto em discussão na Câmara dos Deputados.

Pela ideia do projeto, o incidente é de ser instaurado perante o tribunal, por iniciativa do juiz, do relator, de uma das partes, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, com o fito de estabelecer a tese jurídica a ser aplicada aos diversos casos repetitivos.

O incidente gerará a suspensão, após sua admissão, de todas as causas repetitivas que tenham por fundamento a questão tratada nele, de modo que, uma vez julgado, a tese se tornará aplicável a todas as demandas então suspensas. Possível é, ainda, segundo os ditames do projeto, que o STJ ou o STF suspendam todos os processos em trâmite

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no território nacional, desde que tratem da matéria objeto do incidente de resolução de demandas repetitivas.

De acordo com o projeto, o incidente é instaurado de forma preventiva, já que terá vez quando se identificar controvérsia que possa, potencialmente, gerar relevante multiplicação de processos fundados na mesma questão de direito.

No entanto, doutrinadores que se debruçaram sobre o tema sustentam, com razão, que mais adequado seria que o incidente tivesse vez quando já houvesse algumas sentenças antagônicas, ou seja, uma prévia controvérsia sobre o assunto.17

O plenário do respectivo tribunal, ou o órgão especial, naquelas cortes com mais de vinte e cinco magistrados, será o responsável pela admissão e julgamento do incidente. Parece ter se incorrido em equívoco neste aspecto, porque não é dado ao legislador indicar o órgão interno dotado de atribuição para o julgamento de determinada questão, de sorte que, em se mantendo a redação do art. 933 da forma em que está, não é de se duvidar que venha a ser suscitada a sua inconstitucionalidade.

Os órgãos responsáveis pela defesa da Fazenda Pública em juízo deverão redobrar suas atenções, quando o novo CPC entrar em vigor. Isto porque, de acordo com o já afirmado — e de conhecimento notório — a Fazenda Pública é a principal figura, geralmente na condição de demandada, nas relações processuais cíveis do ordenamento jurídico brasileiro.

Sendo assim, não serão poucas as situações em que poderá pro-vocar, ou ver instaurado o procedimento do incidente de resolução de demandas repetitivas, em causas que, nos dias atuais, chegam aos montes em todo país, julgadas das mais variadas formas possíveis e imagináveis.

A exemplo da previsão contida no art. 285-A do atual CPC, fruto da Lei nº 11.277/2006, o incidente de resolução de demandas repetitivas, logicamente em escala bem maior, representa instrumento da maior importância no julgamento de questões massificadas, como são a maior parte daquelas que envolvem a Fazenda Pública como ré.

17 CUNHA. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo CPC. In: DIDIER JR.; ARAÚJO; KLIPPEL (Coord.). O projeto do novo Código de Processo Civil: estudos em homenagem ao Prof. José de Albuquerque Rocha, p. 275-276.

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Inúmeras questões de cunho tributário ou de Direito Administrativo, como aquelas que envolvem servidores públicos, são trazidas diariamente e incessantemente ao Poder Judiciário. Não há como duvidar que o julgamento do incidente, em casos como tais, uniformizará o julgamento dessas teses, facilitando a defesa da Fazenda e a aplicação por parte dos mais variados magistrados vinculados ao respectivo tribunal.

Quando se diz, pois, que a atenção daqueles que promovem a defesa em juízo dos entes que compõem a Fazenda Pública deve estar redobrada, é porque o não acompanhamento, ou o acompanhamento displicente do processamento de um determinado incidente poderá gerar não um simples prejuízo no caso concreto, mas sim um grande prejuízo com efeito multiplicador, já que aplicável a centenas e até milhares de casos idênticos.

Aumenta, dessa forma, a responsabilidade do advogado público. Para tanto, necessário que se valham da previsão contida nos arts. 935 e 936, §2º, formulando razões não apenas por escrito, como realizando sustentações orais por ocasião do julgamento dos incidentes, a fim de que consigam convencer o plenário ou a corte especial de seus argumentos, firmando-se a tese favorável.

ConclusãoDesde a EC nº 45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário,

vive-se uma era de profundas e substanciais mudanças na legislação processual civil brasileira.

Não obstante todas as reformas introduzidas na legislação pro-cessual, como fruto resultante das discussões da Reforma do Judiciário, levadas a cabo entre 2005 e 2010, o momento é de debate acelerado e instigante acerca da edição do novo Código de Processo Civil.

Evidentemente, não há que se ter a pretensão de que um novo diploma adjetivo venha a resolver o colapso vivido nas relações proces-suais brasileiras. Não se promove isso com uma nova lei, mas com uma mudança cultural, com o amadurecimento da sociedade e o comprome-timento de todos os atores envolvidos na temática.

Algo que já é histórico e que ficará marcado, neste aspecto, é que o novo CPC nascerá, como antes nunca visto, como fruto de debates em

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âmbito nacional, com a participação dos mais diversos personagens, inclusive do cidadão comum, que teve no Senado e na Câmara dos Deputados canais diretos com o legislador, por meio de audiências públicas ou de mensagens eletrônicas, enviando suas insatisfações e propondo soluções para o aperfeiçoamento da legislação.

Segundo visto ao longo do estudo, a importância da Fazenda Pública nas relações processuais é inegável. Presença constante nas demandas, possui no Código atual uma série de prerrogativas, necessárias a diferenciar a atuação daquela que, longe de defender interesses singulares, está a zelar pelo Erário e pelo interesse público.

Por maiores que tenham sido e ainda sejam as críticas a essas prerrogativas, haverão elas de subsistir no novo CPC, com algumas alterações e acréscimos.

Para aqueles que defendem os interesses da Fazenda Pública em juízo, grande era o receio de que o legislador, no afã de promover a duração razoável do processo, sem sequer entender o que isso significa, viesse a suprimir garantias necessárias à defesa da coisa pública.

Felizmente, não foi isso que aconteceu. Soube o legislador ouvir, em inúmeras ocasiões, representantes dos entes componentes da Fazenda Pública e assimilar a ideia de que as prerrogativas são realmente vitais para a sua atuação em juízo.

É momento, portanto, de se esperar que o novo Código de Processo Civil venha a atender às expectativas da sociedade brasileira. Se já nascerá dotado de um espírito democrático, almeja-se que possa apresentar, com o tempo e a necessária maturidade, respostas mais céleres, garantindo segurança e efetividade nas decisões e gerando, por conseguinte, a satisfação do cidadão jurisdicionado.

Referências

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CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2007.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; ARAÚJO, José Henrique Mouta; KLIPPEL, Rodrigo (Coord.). O projeto do novo Código

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de Processo Civil: estudos em homenagem ao Prof. José de Albuquerque Rocha. Salvador: JusPodivm, 2011.

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MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Tópicos de processo civil. Recife: Nossa Livraria, 2008. (Série Concursos Públicos e Exames da OAB).

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PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Tutelas de urgência: sistematização das liminares. São Paulo: Atlas, 2011.

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A criação de conselhos profissionais e a delegação da atividade de fiscalização de profissões regulamentadasFelipe Nogueira FernandesAdvogado da União.

Resumo: Os conselhos profissionais são entidades que se destinam ao controle e fiscalização de determinadas profissões regulamentadas. Embora venham exercendo suas atividades há bastante tempo, a natureza jurídica dessas entidades é objeto de grande controvérsia. O Supremo Tribunal Federal considerou que, por se tratar de função típica de Estado, o controle e a fiscalização do exercício de atividades profissionais não poderia ser delegado a entidades privadas. Disso resultou o entendimento de que os conselhos profissionais teriam natureza autárquica. Portanto, não seriam meros entes de colaboração, mas pessoas jurídicas de direito público. Não havendo qualquer exceção constitucional, é possível concluir que a lei não poderia excepcionar tais entidades da aplicação do regime jurídico que a Constituição reserva para as pessoas jurídicas de direito público. Diante disso, conclui-se que as leis que atribuíam poderes estatais típicos para entidades associativas de caráter privado não teriam sido recepcionadas pela Constituição de 1988 e que, em havendo necessidade de descentralização administrativa da atividade de regulação e fiscalização de atividades profissionais, deveriam ser criadas entidades autárquicas integralmente submetidas ao regime que a Constituição impôs às pessoas jurídicas de direito público que compõem a Administração indireta.

Palavras-chave: Conselho profissional. Natureza jurídica. Autarquia. Fiscalização de profissões regulamentadas. Organização administrativa.

Sumário: Introdução – Da competência – Da natureza das atividades – Da descentralização – Do regime jurídico – Conclusão – Referências

IntroduçãoA Constituição de 1937, inspirada no fascismo italiano, autorizou

a delegação de funções típicas do poder público para sindicatos e associa-ções profissionais (art. 138).1 As Constituições que se seguiram (art. 159 da

1 Art. 138. A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público.

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Constituição de 1946;2 art. 159 da Constituição de 1967;3 e art. 166 da Constituição de 19694) mantiveram a possibilidade de exercício de funções delegadas do poder público por associações profissionais ou sindicais.

Durante esse longo período em que vigorou a autorização consti-tucional para a delegação de funções típicas de Estado para sindicatos e associações profissionais, foram constituídos os chamados conselhos profissionais, com a atribuição de normatizar e fiscalizar o exercício de determinadas profissões regulamentadas, além da prerrogativa de cobrar contribuições necessárias à sua manutenção.

Todavia, a Constituição de 1988 não renovou essa autorização, em vigor desde a Constituição de 1937, deixando de prever qualquer possi-bilidade de delegação de poderes estatais para associações profissionais.

Na tentativa de suprir a ausência de norma constitucional autorizadora de delegação de funções típicas de Estado para as associações profissio-nais, lançou-se mão de lei ordinária, mais especificamente o art. 58 da Lei nº 9.649, de 1998.5

Porém, essa tentativa de manter o status quo dos conselhos profis-sionais como espécies de associações de caráter privado restou frustrada por decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 1.717, que declarou inconstitucionais o caput do art. 58 da Lei nº 9.649, de 1998, assim como os seus §§1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º. Segundo concluiu o Excelso Pretó-rio, a Constituição de 1988 impede a delegação de atividades típicas de Estado para entidades privadas.

Ocorre que a atribuição de personalidade jurídica de direito público aos chamados conselhos profissionais resulta em importantes

2 Art. 159. É livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo Poder Público.

3 Art. 159. É livre a associação profissional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de Poder Público serão regulados em lei. §1º Entre as funções delegadas a que se refere este artigo, compreende-se a de arrecadar, na forma da lei, contribuições para o custeio da atividade dos órgãos sindicais e profissionais e para a execução de programas de interesse das categorias por eles representadas.

4 Art. 166. É livre a associação profissional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de poder público serão regulados em lei. §1º Entre as funções delegadas a que se refere este artigo, compreende-se a de arrecadar, na forma da lei, contribuições para custeio da atividade dos órgãos sindicais e profissionais e para a execução de programas de interesse das categorias por eles representados.

5 Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.

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consequências quanto ao funcionamento dessas entidades, haja vista a repercussão sobre o seu regime jurídico.

Diante desse quadro, é relevante avaliar o regime jurídico a que devem se submeter os conselhos profissionais para que continuem a desempenhar as atividades de normatização e fiscalização de profissões regulamentadas.

Da competênciaEm seu art. 5º, inciso XIII,6 a Constituição da República assegura

o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

A competência legislativa para estabelecer normas relativas às condições para o exercício de profissões foi atribuída à União, conforme dispõe o inciso XVI do art. 22 da Carta de 1988.7

Por força do art. 21, XXIV, da Constituição,8 também cabe à União cuidar da inspeção do trabalho, o que inclui o poder-dever de fiscalizar o exercício de profissões, em especial aquelas cujo exercício demanda o atendimento de condições fixadas por lei federal.

Por conseguinte, compete à União legislar a respeito do exercício de profissões, assim como fiscalizar o cumprimento da legislação que estabeleça condições para o exercício de atividades profissionais.

Da natureza das atividadesA fiscalização do exercício de atividades profissionais implica o

desempenho de poder de polícia, do qual é sucedâneo o poder de punir os profissionais que atuarem em desacordo com as normas que regulem o exercício da respectiva atividade.

Neste ponto, cabe transcrever o seguinte trecho de decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 953.127/SP:9

6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

7 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...] XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;

8 Art. 21. Compete à União: [...] XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;9 Fonte: Dje, 1º set. 2010.

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1. Os conselhos profissionais têm poder de polícia, inclusive nos aspectos de fiscalização e sanção. Precedentes.

As contribuições impostas aos profissionais sob fiscalização dos conselhos, normalmente denominadas de “anuidades”, têm evidente natureza de tributo, cujo conceito encontra-se previsto no art. 3º do Código Tributário Nacional.10 É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal11 no sentido de que as contribuições recolhidas pelos conselhos profissionais são tributos, classificadas como contribuições de interesse das categorias profissionais, nos termos do art. 149 da Constituição.12 Por conseguinte, devem ser estabelecidas por lei, conforme o art. 150, inciso I, da Carta de 1988.

É pertinente reproduzir o seguinte excerto da decisão do Supremo Tribunal Federal no MS nº 21.797:

Natureza autárquica do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Odontologia. Obrigatoriedade de prestar contas ao Tribunal de Contas da União. Lei 4.234/64, art. 2º. C.F., art. 70, parágrafo único, art. 71, II. II. - Não conhecimento da ação de mandado de segurança no que toca à recomendação do Tribunal de Contas da União para aplicação da Lei 8.112/90, vencido o Relator e os Ministros Francisco Rezek e Maurício Corrêa. III. - Os servidores do Conselho Federal de Odontologia deverão se submeter ao regime único da Lei 8.112, de 1990: votos vencidos do Relator e dos Ministros Francisco Rezek e Maurício Corrêa. IV. - As contribuições cobradas pelas autarquias responsáveis pela fiscalização do exercício profissional são contribuições parafiscais, contribuições corporativas, com caráter tributário. C.F., art. 149. RE 138.284-CE, Velloso, Plenário, RTJ 143/313. V. - Diárias: impossibilidade de os seus valores superarem os valores fixados pelo Chefe do Poder Executivo, que exerce a direção superior da administração federal (C.F., art. 84, II). VI. - Mandado de Segurança conhecido, em parte, e indeferido na parte conhecida.

Especificamente em relação à natureza tributária das anuidades cobradas pelos conselhos profissionais, assim já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

10 Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

11 RE nº 613.799 AgR; AI nº 768.577 AgR-segundo; e MS nº 21.797.12 Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio

econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, §6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.

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A contribuição social de interesse das categorias profissionais são (sic) de natureza tributária e como tal devem observar as limitações constitucionais ao poder de tributar. (REsp nº 928.272/PR)13

O pagamento de anuidades devidas aos Conselhos Profissionais constitui contribuição de interesse das categorias profissionais, de natureza tributária, sujeita a lançamento de ofício. (REsp nº 1.235.676/SC)14

Portanto, não há dúvida de que as atividades inerentes ao poder cometido aos conselhos profissionais, em particular o poder de polícia e a competência para fiscalizar e arrecadar tributos, constituem funções típicas da Administração Pública.

Conforme exposto, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela impossibilidade de delegação de atividades típicas de Estado, tais como o exercício do poder de polícia, de tributar e de punir, para entidades privadas. Cabe aqui reproduzir o seguinte trecho do acórdão proferido por ocasião do julgamento da ADI nº 1.717:

1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos §1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados.

Disso se conclui que os conselhos profissionais constituídos como associações de caráter privado não podem exercer funções típicas de Estado. Eventuais leis que assim prevejam são inconstitucionais ou, se anteriores à Constituição de 1998, devem ser consideradas como não recepcionadas.

Da descentralizaçãoDiante de sua indelegabilidade a entidades de natureza privada,

as atividades típicas de Estado só podem ser exercidas pela União,

13 Fonte: Dje, 04 nov. 2009.14 Fonte: Dje, 15 nov. 2011.

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Estados, Distrito Federal ou Municípios, conforme as suas respectivas competências constitucionais, ou por entidades com personalidade de direito público constituídas mediante lei, integrantes da Administração indireta (art. 37, XIX, CRFB).15

Por conseguinte, no caso específico da fiscalização de profissões regulamentadas e da fiscalização e arrecadação de contribuições de interesse das categorias profissionais, trata-se de atividade que só pode ser desempenhada diretamente pela União, através de seus órgãos, ou por entidade autárquica criada por lei de iniciativa do Presidente da República (art. 61, §1º, III, “e”, CRFB).16 Cabe mencionar que, embora a Constituição tenha mencionado expressamente apenas a criação de ministérios e órgãos, é pacífico o entendimento de que a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo também abrange os projetos de lei que objetivem criar as entidades que compõem a Administração Pública indireta, como autarquias, fundações públicas e empresas estatais. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal17 já decidiu que a disciplina normativa pertinente ao processo de criação, estruturação e definição das atribuições dos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública traduz matéria que se insere, por efeito de sua natureza mesma, na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo, em face da cláusula de reserva inscrita no art. 61, §1º, inciso II, alínea “e”, da Constituição.

No que concerne às autarquias, José dos Santos Carvalho Filho sustenta, com respaldo no art. 61, §1º, inciso II, alínea “e”, da Constitui-ção, que a sua criação depende de lei de iniciativa do Poder Executivo:

A lei de criação da autarquia deve ser da iniciativa privativa do Chefe do Executivo. De acordo com a regra constitucional [Art. 61, §1º, II, “e”, CF] cabe ao Presidente da República a iniciativa das leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Pública, sendo essa regra aplicável também a Estados e Municípios. Além disso, a criação de pessoas administrativas é matéria própria de administração

15 Art. 37. [...] XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;

16 Art. 61. [...] §1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;

17 ADI nº 1.391/SP.

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pública, razão por que ninguém melhor do que o Chefe do Poder Executivo para aferir a conveniência e a necessidade de deflagrar o processo criativo.18

Disso decorre a inconstitucionalidade formal de todos os projetos de lei de iniciativa parlamentar que se proponham a criar conselhos profissionais. Em se tratando de entidades autárquicas, só podem ser criadas por leis de iniciativa do Poder Executivo.

Como visto, a delegação das atividades atualmente executadas pelos chamados conselhos profissionais deve decorrer de descentralização administrativa, mais precisamente mediante a criação de entidades autárquicas especificamente para essa finalidade.

Sobre o tema, cito a seguinte passagem da obra de Raquel Melo Urbano de Carvalho:

Com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 58, que atribuía personalidade de direito privado aos Conselhos de Fiscalização, entende-se, permissa venia dos entendimentos contrários, que estas entidades apresentam natureza autárquica, malgrado seu substrato pessoal. Irrepreensível é a lição de Ricardo Teixeira do Valle Pereira ao explicitar que as autarquias são como longa manus do Estado e normalmente são criadas para desempenhar atividades típicas da Administração, as quais não podem ser trespassadas para pessoas jurídicas de direito privado. São, portanto, instrumentos de descentralização administrativa, aos quais deve o Estado obrigatoriamente recorrer quando se mostra presente a necessidade de repassar uma atividade que é tipicamente sua a outra pessoa jurídica (distinta da União, dos Estados, Distrito Federal ou Município).19

No atual panorama constitucional, para que possam realizar a atividade de fiscalização do desempenho de profissões regulamentadas e cobrar eventuais contribuições corporativas, os conselhos profissionais devem ter personalidade jurídica de direito público. Em outras palavras, devem ser concebidos como verdadeiras autarquias.

Do regime jurídicoNa medida em que os conselhos profissionais são criados com o ob-

jetivo de fiscalizar o exercício de profissões regulamentadas, desempenham

18 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 442.

19 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da Administração. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 678.

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uma parcela do poder que a Carta Magna atribuiu à União. Consequen-temente, devem integrar a Administração Pública federal indireta e, pelas razões já expostas, ter personalidade jurídica de direito público.

Neste ponto, cabe mencionar a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

Diante disso, pode afirmar-se que toda pessoa integrante da Administração Indireta é submetida a controle pela Administração Direta da pessoa política a que é vinculada. E nem poderia ser de outra maneira. Se é a pessoa política que enseja a criação daquelas entidades, é lógico que tenha que se reservar o poder de controlá-las. Por esse motivo é que tais entidades figuram como se fossem satélites das pessoas da federação.20

Do ponto de vista constitucional, não é admissível que tais conselhos profissionais tenham personalidade jurídica de direito privado e, ao mesmo tempo, gozem de prerrogativas próprias do Estado. Como já exposto, a atual Constituição não mais prevê a possibilidade de exercício, por asso-ciações profissionais ou sindicais, de funções delegadas do poder público.

Nesse contexto, a criação de conselhos profissionais com natureza autárquica seria uma forma de descentralizar uma atividade adminis-trativa que não pode mais ser delegada a associações profissionais de caráter privado.

Sobre esse tema, é pertinente transcrever trecho da obra de Marçal Justen Filho:

Em princípio, todas as atividades administrativas relacionadas diretamente com a promoção de direitos fundamentais ou com o exercício de poderes de coerção jurídica devem ser reservadas para sujeitos dotados de personalidade jurídica de direito público. [...]A forma de direito privado destina-se ao desempenho de atribuições que não importem o exercício de poderes autoritativos, privativos e próprios da autoridade pública. Ou seja, a definição da forma pública ou privada da enti-dade dependerá da natureza das necessidades coletivas a serem atendidas.21

Por consequência, quando conveniente a sua criação, os conselhos profissionais devem ser concebidos como pessoa jurídica de direito público integrantes da Administração Pública federal indireta.

20 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 374.

21 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 158-159.

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No entanto, não basta que a lei afirme que os conselhos profissionais têm personalidade jurídica de direito público para que, a partir de então, essas entidades possam continuar operando sem alteração substancial em seu modo de funcionamento. Considerando que os conselhos profissionais devem ser criados por lei para desempenhar uma atividade tipicamente estatal, devem submeter-se integralmente ao regime jurídico de direito público estabelecido constitucionalmente.

A Constituição não deixa margem para que autarquias de fiscaliza-ção profissional se submetam a um regime híbrido. Todas as autarquias devem necessariamente obedecer às regras que a Constituição de 1988 impôs às pessoas de direito público. Não havendo qualquer exceção no texto constitucional, é evidente que a lei não pode criar uma pessoa de direito público e excluí-la da observância do regime jurídico que a Consti-tuição atribuiu a tais entidades. Disso resultam importantes consequências.

Como todas as demais autarquias, as entidades destinadas à fiscali-zação de profissões regulamentadas devem ser criadas por lei de iniciativa do Presidente da República para compor a estrutura administrativa da União na qualidade de entidades integrantes da Administração Pública indireta (art. 37, XIX, e 61, §1º, II, “e”, CRFB); os seus servidores devem ser admitidos mediante concurso público, ressalvados os cargos comissio-nados (art. 37, incisos II e V, CRFB); suas contratações devem observar a legislação pertinente às licitações e contratos administrativos (art. 37, inciso XXI, CRFB); as suas receitas e despesas devem constar da lei orçamentária da União (art. 165, §5º, inciso I, CRFB); além de estarem obrigadas a prestar contas aos órgãos federais de controle (arts. 70 e 71, CRFB). Além disso, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 2.135, os servidores das autarquias também devem submeter-se ao regime jurídico único. Como a Constituição não excepciona qualquer autarquia do cumprimento desses dispositivos, torna-se evidente que também devem ser obedecidos pela lei que venha a instituir entidades destinadas à fiscalização de profissões regulamentadas.

Sobre a aplicação do regime jurídico único aos servidores de autarquias de fiscalização profissional, é relevante destacar o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 356.710/RJ):22

22 Fonte: DJ, p. 649, 26 fev. 2007.

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2. Antes do advento da Lei nº 9.649/98, que definiu como sendo de direito privado a natureza jurídica dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, esta Corte já havia assentado a compreensão de que os servidores das aludidas entidades, classificadas como autarquias especiais, estavam submetidos ao regime jurídico único.4. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN nº 1.717/DF, Relator o Ministro Sydney Sanches, DJU de 28/3/2003, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 58 da Lei nº 9.649/98, reafirmou a natureza jurídica de direito público dos serviços de fiscalização de profissionais regulamentadas.

Cabe mencionar que o regime jurídico das autarquias admite particularidades. Há certa margem para que as leis que instituírem essas entidades detalhem o regime a ser aplicado a cada uma. Nada impede, por exemplo, que o processo de escolha dos seus dirigentes ocorra mediante voto dos integrantes da respectiva categoria econômica, sem ingerência da Administração direta. Porém, é certo que a lei não poderia criar entidades autárquicas de “regime especial” quando isso significar o descumprimento das normas de hierarquia constitucional. Como não há exceção prevista no texto constitucional, as leis que criarem autarquias, independentemente de sua finalidade, não podem violar a moldura jurídica que a Constituição conferiu às entidades de direito público.

Isso não significa que tais conselhos profissionais de natureza autárquica sejam destituídos de qualquer autonomia. Pelo contrário, a sua criação só se justifica quando for conveniente que o serviço de fiscalização de profissões regulamentadas seja executado de forma descentralizada, por pessoa jurídica criada para essa finalidade específica.

A lei que instituir cada conselho profissional pode conferir-lhe maior ou menor grau de autonomia, da mesma forma que as demais autarquias também podem se sujeitar a um regime diferenciado em relação àquele comumente atribuído a essa espécie de entidade. No entanto, a lei que criar um conselho profissional não pode excepcionar a aplicação das normas que a Constituição reservou às pessoas jurídicas de direito público.

Por conseguinte, os gestores públicos devem avaliar a conveniência de criar conselhos de fiscalização profissional, tendo em vista a sua natureza de verdadeiras autarquias federais, o que implica a assunção,

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pela União, dos custos inerentes à descentralização administrativa. Da mesma maneira, os gestores também devem sopesar a necessidade de manter os conselhos que já existem. Considerando que o ordenamento jurídico não admite a delegação de função típica de Estado a uma entidade associativa de natureza privada e não sendo possível que as autarquias tenham uma natureza híbrida, os conselhos profissionais criados pelo poder público devem ser convertidos em verdadeiras autarquias, com todas as implicações daí decorrentes, ou simplesmente extintos, se assim exigir o interesse público.

Por outro lado, é pertinente destacar que as leis anteriores à Cons-tituição de 1988 que atribuíam funções típicas de Estado para conselhos criados como associações profissionais de caráter privado devem ser consideradas como não recepcionadas pela atual ordem constitucional. Trata-se de consequência que decorre logicamente da conclusão emanada da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 1.717.

Nada impede que sejam criadas entidades associativas de natureza privada, na forma do art. 8º da Constituição da República,23 com a finalidade de defender os interesses de determinada categoria profissional. Todavia, em se tratando de pessoas jurídicas de direito privado, não podem gozar das prerrogativas próprias do Estado, nem executar suas funções típicas. O que não é admissível, diante do sistema constitucional vigente, é a criação de conselhos corporativos como entidades de natureza quase privada com poderes e prerrogativas que a Constituição só outorgou às pessoas de direito público. Não é suficiente que a lei as defina como entidades públicas. Conforme já exposto, a atribuição de natureza autárquica a determina entidade implica

23 Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical; II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município; III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei; V - ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato; VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; VII - o aposentado filiado tem direito a votar e ser votado nas organizações sindicais; VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.

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o cumprimento compulsório das normas constitucionais que foram reservadas para essa categoria de pessoa jurídica.

Exceção deve ser feita apenas em relação à Ordem dos Advogados do Brasil que, segundo já decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADI nº 3.026), não integra a Administração Pública, sendo um “serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro”. Cabe aqui transcrever o seguinte trecho da referida decisão do Supremo Tribunal Federal:

2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como “autarquias especiais” para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas “agências”. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente.

No mesmo sentido, assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça (EREsp nº 503.252/SC):24

1. Embora definida como autarquia profissional de regime especial ou sui generis, a OAB não se confunde com as demais corporações incumbidas do exercício profissional.2. As contribuições pagas pelos filiados à OAB não têm natureza tributária.3. O título executivo extrajudicial, referido no art. 46, parágrafo único, da Lei n.º 8.906/94, deve ser exigido em execução disciplinada pelo Código de Pro-cesso Civil, não sendo possível a execução fiscal regida pela Lei n.º 6.830/80.

24 Fonte: DJ, p. 181, 18 out. 2004.

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4. Não está a instituição submetida às normas da Lei n.º 4.320/64, com as alterações posteriores, que estatui normas de direito financeiro dos orçamentos e balanços das entidades estatais.5. Não se encontra a entidade subordinada à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, realizada pelo Tribunal de Contas da União.

Especificamente no que concerne à natureza distinta entre as contribuições recolhidas pela Ordem dos Advogados do Brasil e aquelas cobradas pelos demais conselhos profissionais, cabe mencionar a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 1.074.932:25

As anuidades dos conselhos profissionais, à exceção da OAB, têm natureza tributária e, por isso, seus valores somente podem ser fixados nos limites estabelecidos em lei, não podendo ser arbitrados por resolução e em valores além dos estabelecidos pela norma legal.

Portanto, a Ordem dos Advogados do Brasil não pode ser compa-rada aos demais conselhos profissionais, exatamente porque é a única instituição de caráter corporativo cuja existência encontra expressa pre-visão constitucional26 e que detém, dentre outras, a função de fiscalizar o próprio Estado. Daí decorre o regime especial a que se submete a Ordem dos Advogados do Brasil.

Por sua vez, os demais conselhos profissionais são criados por lei para exercerem função administrativa que a Constituição atribuiu à União. Não havendo previsão constitucional a respeito de sua existência, os conselhos profissionais não podem suplantar o regime que a própria Constituição reservou às pessoas jurídicas criadas por lei para executar funções estatais típicas. Consequentemente, só podem executar tais funções, aí incluída a fiscalização de profissões regulamentadas, caso sejam criados como pessoas jurídicas de direito público para fins de descentralização administrativa e, como tal, devem submeter-se a todas as regras constitucionais aplicáveis às entidades dessa natureza.

25 Fonte: Dje, 05 nov. 2008.26 Arts. 93; 103; 103-B; 129; 130-A; e 132 da Constituição de 1988.

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Foi nesse sentido que se manifestou o Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do REsp nº 507.536/DF,27 cuja ementa segue abaixo:

1. A atividade de fiscalização do exercício profissional é estatal, nos termos dos arts. 5º, XIII, 21, XXIV, e 22, XIV, da Constituição Federal, motivo pelo qual as entidades que exercem esse controle têm função tipicamente pública e, por isso, possuem natureza jurídica de autarquia, sujeitando-se ao regime jurídico de direito público. Precedentes do STJ e do STF.2. Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, era possível, nos termos do Decreto-Lei 968/69, a contratação de servidores, pelos conselhos de fiscalização profissional, tanto pelo regime estatutário quanto pelo celetista, situação alterada pelo art. 39, caput, em sua redação original.3. O §1º do art. 253 da Lei n. 8.112/90 regulamentou o disposto na Constituição, fazendo com que os funcionários celetistas das autarquias federais passassem a servidores estatutários, afastando a possibilidade de contratação em regime privado.4. Com a Lei n. 9.649/98, o legislador buscou afastar a sujeição das autarquias corporativas ao regime jurídico de direito público. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, na ADI n. 1.717/DF, julgou inconstitucional o dispositivo que tratava da matéria. O exame do §3º do art. 58 ficou prejudicado, na medida em que a superveniente Emenda Constitucional n. 19/98 extinguiu a obrigatoriedade do Regime Jurídico Único.5. Posteriormente, no julgamento da medida liminar na ADI n. 2.135/DF, foi suspensa a vigência do caput do art. 39 da Constituição Federal, com a redação atribuída pela EC n. 19/98. Dessa forma, após todas as mudanças sofridas, subsiste, para a administração pública direta, autárquica e fundacional, a obrigatoriedade de adoção do regime jurídico único, ressalvadas as situações consolidadas na vigência da legislação editada nos termos da emenda declarada suspensa.6. As autarquias corporativas devem adotar o regime jurídico único, ressalvadas as situações consolidadas na vigência da legislação editada nos termos da Emenda Constitucional n. 19/97.7. Esse entendimento não se aplica a OAB, pois no julgamento da ADI n. 3.026/DF, ao examinar a constitucionalidade do art. 79, §1º, da Lei n. 8.906/96, o Excelso Pretório afastou a natureza autárquica dessa entidade, para afirmar que seus contratos de trabalho são regidos pela CLT.8. Recurso especial provido para conceder a segurança e determinar que os impetrados, com exceção da OAB, tomem as providências cabíveis para a implantação do regime jurídico único no âmbito dos conselhos de fiscalização profissional, incidindo no caso a ressalva contida no julgamento da ADI n. 2.135 MC/DF.

Portanto, ressalvada a Ordem dos Advogados do Brasil, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como um “serviço público

27 Fonte: Dje, 06 dez. 2010.

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independente”, todos os demais conselhos profissionais devem ser vinculados à Administração direta por meio de algum dos seus órgãos.

Porém, é importante ressalvar que isso não significa que os atuais conselhos profissionais tenham sido automaticamente transformados em entidades autárquicas após o advento da Constituição de 1988. Como visto, o regime constitucional anterior, desde a Constituição de 1937, autorizava a delegação de funções típicas de Estado para associações profissionais privadas, permissão essa que não foi renovada pela Carta de 1988. Portanto, a promulgação da Constituição cidadã não transformou as associações profissionais então existentes em autarquias, até porque foi garantida a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a interferência estatal em seu funcionamento (art. 5º, incisos XVII e XVIII, CRFB).28 Mais que isso, a Constituição vigente dispõe que as associações só podem ser dissolvidas mediante decisão judicial transitada em julgado (art. 5º, inciso XIX, CRFB).29 Portanto, a conclusão de que a Constituição de 1988 teria convertido associações profissionais privadas em autarquias seria absolutamente contraditória com os dispositivos constantes nos incisos XVII, XVIII e XIX do art. 5º da própria Carta constitucional. A conclusão correta é que não foram recepcionadas as leis anteriores que delegavam atribuições típicas de Estado para conselhos profissionais constituídos sob a forma de associações profissionais de caráter privado.

Nessa linha de raciocínio, conclui-se que a lei não pode transformar em autarquias os conselhos profissionais que foram constituídos sob a forma de associações privadas, ainda que se trate de entidade que exercia funções delegadas do Estado, pois isso significaria violação direta ao inciso XVIII do art. 5º da Constituição, que veda a intervenção estatal sobre o seu funcionamento. Obviamente, isso não significa que tais entidades possam continuar executando funções típicas de Estado. Qualquer lei anterior à Constituição de 1988 que assim dispusesse não poderia ser recepcionada pela atual ordem jurídica.

Por fim, é relevante destacar que não há obrigatoriedade de criar um conselho corporativo sempre que uma profissão for regulamentada.

28 Art. 5º [...] XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.

29 Art. 5º [...] XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado.

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Quando a descentralização administrativa não se mostrar conveniente, a atividade de fiscalização do exercício de atividades profissionais pode ser exercida pela Administração direita, mais especificamente pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A instituição de autarquia para tal finalidade depende da avaliação da sua efetiva necessidade em cada caso, considerando os custos inerentes à descentralização administrativa.

ConclusãoOs conselhos profissionais criados com natureza de associações

privadas não podem exercer funções estatais típicas, devendo ser consideradas como não recepcionadas pela Constituição de 1988 todas as leis anteriores que lhes tenham delegado competência para fiscalização do exercício de profissões regulamentadas ou fiscalizar e arrecadar tributos. Caso se mostre conveniente a descentralização administrativa das atividades de fiscalização de profissões regulamentadas, devem ser constituídas entidades autárquicas especificamente para esse fim, mediante lei de iniciativa do Presidente da República. A essas entidades deve ser integralmente aplicado o regime jurídico que a Constituição reservou às pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração indireta.

Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da Administração. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2009.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. A natureza jurídica dos conselhos fiscais de profissões regulamentadas. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1211, 25 out. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/9082>. Acesso em: 04 abr. 2012.

SOARES, Letícia Junger de Castro Ribeiro. Natureza jurídica dos conselhos e ordens de fiscalização profissional. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1211, 25 out. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/9083>. Acesso em: 04 abr. 2012.

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Despesas plurianuais e a proibição do artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000 – Lei de Responsabilidade FiscalPaulo Fernando Feijó Torres Jr.Advogado da União. Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Resumo: O artigo tem como objetivo examinar o alcance da proibição presente no art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal em relação às des-pesas plurianuais.

Palavras-chave: Despesas plurianuais. Artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000. Processos lógico e sistemático de interpretação.

Sumário: Introdução – 1 Abordagem constitucional – 2 Análise infracons-titucional – Conclusão – Referências

IntroduçãoO objeto do presente estudo restringe-se ao exame do alcance da

proibição inserta no artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal em relação às despesas plurianuais. Eis o teor do referido dispositivo:

Art. 42. É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.Parágrafo único. Na determinação da disponibilidade de caixa serão conside-rados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício.

1 Abordagem constitucionalContudo, antes de se adentrar no exame da aludida norma, cumpre

assinalar que a exegese das leis, além da interpretação literal, é também orientada pelos processos lógico e sistemático. Ao comentar o processo lógico, o eminente jurista Carlos Maximiliano conclui:1

1 Hermenêutica e aplicação do direito, p. 101.

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O Processo Lógico tem mais valor do que o simplesmente verbal (1). Já se encontrava em textos positivos antigos e em livros de civilistas, brasileiros ou reinícolas, este conselho sábio: “deve-se evitar a supersticiosa observância da lei que. Só olhando a letra dela, destrói a sua intenção” (2).Por outras palavras o Direito romano chegara a conclusão idêntica: declara — “age em fraude da lei aquele que, ressalvadas as palavras da mesma, desatende ao seu espírito” — Contra Legem facit, quid id facit quod lex prohibet: in fraudem vero, qui, salvis verbis legis, sententiam ejus circumvenit (3). O apóstolo São Paulo lançara na segunda Epístola aos Coríntios a frase que se tornou clássica entre os jurisconsultos: “a letra mata; o espírito vivifica” — Littera occidit; spiritus vivificat.A segurança jurídica, objetivo superior da legislação, depende mais dos princípios cristalizados em normas escritas do que da roupagem mais ou menos apropriada em que os apresentam (4). Deve, portanto, o pensamento prevalecer sobre a letra, a idéia valer mais do que seu invólucro verbal (5): — Prior atque potentior est, quam vox, mens dicentis — “mais importante e de mais força que a palavra é a intenção de quem afirma” (6). “Acima da palavra e mais poderosa que ela está a intenção de quem afirma, ordena, estabelece.”

Inicialmente, afigura-se imprescindível examinar o referido dis-positivo à luz das normas constitucionais correlatas. Nessa linha, os artigos 37, caput, e 167, I e II, §1º, todos da Constituição Federal, assim prescrevem, respectivamente:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte: [...]Art. 167. São vedados:I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual;II - a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;§1º Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.

O princípio da eficiência, como não poderia deixar de ser, assume destaque na abordagem da presente matéria. A eficiência, por sua vez, deve ser entendida não só como maximização do lucro e minimização de custos, mas também como um melhor exercício das missões de interesse coletivo que incube ao Estado, que deve obter a maior realização prática possível das finalidades do ordenamento jurídico, com os menores ônus

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possíveis, tanto para o Estado, especialmente de índole financeira, como para as liberdades do cidadão.2

As questões jurídicas devem ser resolvidas, não pelo menosprezo da lei, mas pela valorização dos seus elementos finalísticos. Segundo as lições de Alexandre Santos de Aragão, “é sob este prisma que as regras legais devem ser interpretadas e aplicadas, ou seja, todo ato, normativo ou concreto, só será válido ou validamente aplicado, se, ex vi do Princípio da Eficiência (art. 37, caput, CF), for a maneira mais eficiente ou, na impossibilidade de se definir esta, se for pelo menos uma maneira razoavelmente eficiente de realização dos objetivos fixados pelo ordenamento jurídico”.3

Nessa linha, ganha, igualmente, relevo o princípio da razoabilidade. Ao comentar o referido princípio, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera:4

Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas tam-bém ilegítimas — e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis —, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada. Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversi-dade de situações a serem enfrentadas, a providências mais adequada a cada qual delas. Não significa, como é evidente, que lhe haja outorgado o poder de agir ao sabor exclusivo de seu líbito, de seus humores, paixões pessoais, excentricidades, ou critérios personalíssimos, e muito menos significa que liberou a Administração para manipular a regra de Direito de maneira a sacar dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela lei aplicanda. Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei que esta sufrague as providências insensatas que o administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desarrazoadas, pois isto corresponderia a irrogar dislates à própria regra de Direito.

2 ARAGÃO. O princípio da eficiência. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE.3 Op. cit.4 Curso de direito administrativo, p. 97.

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A eficiência e razoabilidade aqui sugeridas não têm como fito mitigar ou ponderar o princípio da legalidade, mas, ao revés, a de conferir-lhe uma nova lógica, onde se priorize a legalidade finalística e material — dos resultados práticos alcançados —, e não mais a legalidade meramente formal e abstrata. Nesse sentido, fecundo, mais uma vez, o magistério de Alexandre Santos de Aragão:5

Não se trata de descumprir a lei, mas apenas de, no processo de sua aplicação, prestigiar os seus objetivos maiores em relação à observância pura e simples de suas regras, cuja aplicação pode, em alguns casos concretos, se revelar antitética àqueles. Há uma espécie de hierarquia imprópria entre as meras regras contidas nas leis e seus objetivos, de forma que a aplicação daquelas só se legitima enquanto constituir meio adequado à realização destes.

Esse é o espírito que deve nortear o intérprete no exame das leis. Feitos esses esclarecimentos, cumpre observar que os investimentos que ultrapassam um exercício financeiro, por exigência constitucional, devem ser incluídos no plano plurianual, assim como na lei orçamentária anual, consoante se depreende da leitura das normas reproduzidas anteriormente.

Paralelamente a isso, não se pode olvidar do princípio da anua-lidade orçamentária, cujos fundamentos constitucionais estão contidos nos artigos 48, II, 165, III e §5º e 166, todos da Carta Magna.6 De acordo com o referido princípio, as receitas arrecadadas no exercício destinam-se as despesas assumidas no mesmo período, ou seja, não se admite que despesa futura se ampare em receita atual. A característica da plurianualidade das despesas de investimentos, previstas no §1º, do artigo 167 da Constituição Federal, não esvazia o conteúdo do princípio da anualidade, eis que as metas e programas sempre serão executados ano a ano, com recursos advindos do orçamento de cada período.7

2 Análise infraconstitucionalUma vez ultrapassado o exame constitucional da matéria, convém

agora analisar a questão no plano infraconstitucional. De início, a Lei nº 12.465/2011 – LDO 2012, em seu artigo 102, parágrafo único, assim dispõe:

5 Op. cit.6 O princípio também guarda assento no art. 51 da Lei nº 4.320/643.7 PETTER. Direito financeiro, p. 180.

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Art. 102. Para efeito do disposto no art. 42 da LRF, considera-se contraída a obrigação no momento da formalização do contrato administrativo ou instrumento congênere.Parágrafo único. No caso de despesas relativas à prestação de serviços já existentes e destinados à manutenção da Administração Pública, consideram-se compromissadas apenas as prestações cujos pagamentos devam ser realizados no exercício financeiro, observado o cronograma pactuado.

Sobreleva, outrossim, anotar que o artigo 57, I, da Lei nº 8.666/93, assinala que as despesas referentes à expansão da atividade governamen-tal, os denominados projetos, podem estar amparados em empenhos que se fracionam pelos quatro exercícios do plano plurianual. De igual sorte, o artigo 7, §2º, III, da mesma lei, em relação às obras e serviços de engenharia, reafirma o procedimento de que em cada ano só precisa haver recursos para o cronograma nele executado, vale dizer, o empenho só onera o orçamento de cada ano na medida, a mais próxima possível, do nível de execução da avença nesse período, veja-se:

Art. 7º As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte sequência: [...]§2º As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando: [...]III - houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma; [...]Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quando aos relativos:I - aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório;

Feitas essas considerações, convém agora analisar o artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000. O referido dispositivo encontra-se inserido na Seção VI da Lei de Responsabilidade Fiscal, qual seja: “Dos Restos a Pagar”. Logo, todas as demais normas que se encontram situadas em sua seção devem ser interpretadas em conformidade com o seu conceito, cuja definição guarda assento no artigo 36 da Lei nº 4.320/64, in verbis:

Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro, distinguindo-se as processadas das não processadas.

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Parágrafo único. Os empenhos que correm a conta de créditos com vigência plurianual, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a Pagar no último ano de vigência do crédito.

Não é difícil perceber que os Restos a Pagar se encontram con-dicionados à existência de prévio empenho que os suportem orçamen-tariamente. A referida conceituação dever ser, também, examinada em conformidade com o disposto no artigo 50, II, da Lei de Responsabilidade Fiscal que estabelece como normas de escrituração das contas públicas a observância de que a despesa e a assunção de compromissos sejam registrados segundo o regime de competência, apurando-se, em caráter suplementar, o resultado dos fluxos financeiros pelo regime de caixa.8

Em razão do disposto na referida norma (art. 50, II, da LRF), somente poderão ser inscritos em Restos a Pagar as despesas de com-petência do exercício financeiro, considerando-se como despesa liqui-dada9 aquela em que o serviço, obra ou material contratado tenha sido prestado ou entregue e aceito pelo contratante, e não liquidada, mas de competência do exercício, aquele em que o serviço ou material contratado tenha sido prestado ou entregue e que se encontre, em 31 de dezembro de cada exercício financeiro, em fase de verificação do direito adquirido pelo credor ou quando o prazo para cumprimento da obrigação assumida pelo credor estiver vigente.

Em reforço à tese até aqui desenvolvida, calha relembrar, permita- me a insistência, o princípio da anualidade orçamentária, já analisado alhures, segundo o qual as parcelas dos contratos e convênios somente deverão ser empenhadas e contabilizadas no exercício financeiro se a execução for realizada até 31 de dezembro, de sorte que as parcelas remanescentes do contrato deverão ser incluídas na previsão orçamen-tária para o exercício financeiro em que estiver prevista a competência da despesa.10

8 Art. 50. Além de obedecer às demais normas de contabilidade pública, a escrituração das contas públicas observará as seguintes:

II – a despesa e a assunção de compromisso serão registradas segundo o regime de competência, apurando-se, em caráter complementar, o resultado dos fluxos financeiros pelo regime de caixa;

9 Art. 63 da Lei nº 4.320/64: A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

10 MARTINS. Princípios da continuidade e da competência: algumas reflexões sobre o artigo 42 da Lei Complementar 101/2000 – da Responsabilidade Fiscal.

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Como se vê, a aplicação do artigo 42 da Lei Complementar nº 101/2000 em relação às despesas plurianuais deve observar o contexto da execução orçamentária financeira, norteada pelo princípio constitucional da anualidade, de modo que a exigência de disponibilidade orçamentária de caixa em 31 de dezembro limita-se apenas às despesas regularmente empenhadas nos dois últimos quadrimestres.

Nesse sentido, convém reproduzir entendimento do Tribunal de Contas da União sobre a matéria, presente no item 9.6.2 do Acórdão nº 2.354/2007 – TCU – Plenário, que sinaliza excetuar as despesas plurianuais da proibição inserta do aludida norma, in verbis:

ACORDAM OS Ministros do Tribunal de Contas da união, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, em: [...]9.6. orientar os titulares de todos os poderes e órgãos federais referidos no art. 20 da lei Complementar nº 101/2000 para que: [...]9.6.2. atentem para a previsão de cláusulas contratuais que gerem obrigação de pagamento de parcelas sem que haja disponibilidade de caixa suficiente, até 31 de dezembro, para honrar os compromissos assumidos a cargo do orçamento em curso, quando não se tratar de despesas plurianuais.

ConclusãoPor todo exposto, em homenagem aos princípios da eficiência

administrativa, da razoabilidade, da anualidade orçamentária, assim como aos artigos 102, parágrafo único, da Lei nº 12.465/2011 – LDO 2012; 7º, §2º, III e 57, I, ambos da Lei nº 8.666/93; 50, II, da Lei Complementar nº 101/2000 – LRF e 36 e 63, todos da Lei nº 4.320/64, conclui-se que proibição presente no artigo 42 da Lei nº 101/2000 não abrange as despesas plurianuais.

Referências

ARAGÃO, Alexandre Santos. O princípio da eficiência. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 4, nov./dez. 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

BRASIL. Casa Civil. Disponível em: <http://www.casacivil.planalto.gov.br>.

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.

MARTIN, Lino. Princípios da continuidade e da competência: algumas reflexões sobre o artigo 42 da Lei Complementar 101/2000 – da Responsabilidade Fiscal. Texto extraído do sítio: <http://linomartins.wordpress.com/2009/08/04/principios-da-con-tinuidade-e-da-competencia-algumas-reflexoes-sobre-o-artigo-42-da-lei-complementar-1012000-%E2%80%93-da-responsabilidade-fiscal/>.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

PETTER, Lafayete Josué. Direito financeiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009.

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A moralidade no controle da discricionariedade do ato administrativoCesar Jackson Grisa JúniorAdvogado da União. Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Especialista em Direito do Estado pela UFRGS. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil em cursos de Graduação e Pós-Graduação. E-mail: <[email protected]>.

Resumo: No Brasil, o sistema administrativo foi construído tendo como base o dogma da ausência de controle do mérito do ato administrativo discricionário. Assim, ao legislador incumbia-se a escolha dos atos da Administração cujo mérito somente a ela caberia valorar. O controle desses atos, portanto, não poderia ir além da sua legalidade formal. Aos poucos, no século passado, com o fortalecimento das instituições de controle da Administração Pública após a Constituição Federal de 1988, passou-se ao uso dos princípios constitucionais do Direito Administrativo com o intuito de adequar os atos discricionários não somente à legalidade formal, mas também ao manancial principiológico e axiológico do ordenamento jurídico. Propõe-se o estudo do uso do princípio da moralidade como meio de ir-se além do mero controle formal da legalidade dos atos administrativos discricionários, analisando-se as feições que esse princípio deve e pode ter para que possa ser utilizado como meio de controle pelos órgãos constitucionalmente legitimados para este tanto.

Palavras-chave: Constituição. Princípio da moralidade administrativa. Ato administrativo discricionário. Controle dos atos administrativos.

Sumário: Introdução – 1 O controle do ato administrativo discricionário – 2 O princípio constitucional da moralidade administrativa – 3 A definição do princípio da moralidade administrativa para o controle da discricionariedade do ato administrativo – Conclusão – Referências

IntroduçãoO presente trabalho traz um breve estudo do fenômeno do controle

do ato administrativo discricionário e o uso do princípio constitucional da moralidade administrativa para tal mister.

Para isso, discorrer-se-á, brevemente, sobre natureza e histórico dos fatores pertinentes para o controle dos atos administrativos discri-cionários, bem como da mesma análise no que se refere ao princípio da moralidade administrativa.

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Deve-se citar ainda a doutrina contemporânea sobre a matéria e como ela vem tratando o tema. Acrescenta-se o fato de ser um tema ainda controvertido no direito brasileiro, posto que tanto o controle da discricionariedade do ato administrativo quanto o uso do princípio constitucional da moralidade administrativa, somente são objeto de análise com maior apuro após o advento da atual Constituição, o que a transforma em verdadeiro paradigma fundante do ordenamento jurídico.

No artigo, citam-se os entendimentos doutrinários em torno da moralidade e conclui-se sobre qual seria o mais atual e o que se entende que possa ser mais efetivo no controle sempre problemático do conceito de discricionariedade, argumentando o porquê dessa escolha.

A Assembleia Nacional Constituinte eleita em 1986, por evidente influência da experiência funesta do regime autoritário que a precedeu, dotou o país de vários mecanismos de controle da Administração Pública. A democracia, entretanto, é o que mais fortaleceu o controle, já que o cidadão passou a não mais ter receio de usar de remédios processuais anteriores à Constituição tais quais, por exemplo, o mandado de segu-rança e a ação popular.

Pode-se afirmar que o aspecto desencadeante desse fato foi a volta da democracia ao país, que autorizou o questionamento do agir da Administração e causou o extravasamento da exigência do respeito a uma cultura social que é natural ao cidadão brasileiro: o de querer o bem administrar da coisa pública, dentro dos valores da ética e da democracia.

Um dos meios previstos pelo novo paradigma instaurado pela Constituição democrática de 1988 foi a positivação do princípio da moralidade administrativa de forma expressa no art. 37, caput1 da Constituição Federal.

A prática democrática, com a atuação de órgãos de controle livres, a publicidade dos atos estatais, bem como a liberdade de expressão

1 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”

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e de imprensa, levam a uma maior exigência de conformidade do Administrador com os valores trazidos pela moralidade administrativa.

A jurisprudência ainda não deu sinalização uniforme da extensão do controle dos atos administrativos, ou da noção definitiva em concreto do princípio da moralidade administrativa, e parece não ter se adaptado ao novo paradigma democrático, usando muitas vezes de lições dogmáticas antigas provenientes de conceitos e legislações ultrapassadas ou mal adaptadas ao nosso ordenamento atual.

O princípio da moralidade administrativa positivado na Constitui-ção Federal ainda não tem uma feição definida para sua aplicação, dado o seu histórico de estudo, que também será objeto de rápida e necessária abordagem na seção específica.

O certo é que, em se tratando de princípio constitucional, a moralidade administrativa engloba aspectos maiores e norteadores de interpretação de uso necessário, quando da análise de todo e qualquer ato administrativo exposto ao controle democrático.

O trabalho da doutrina e a efetiva arguição na esfera judicial autorizam o uso do princípio da moralidade administrativa, derivado de uma Constituição democrática, para adentrar a análise daquilo que antes era apenas “discricionário e ponto final”.

Com isso, igualmente, enriquece-se o referido princípio ao apro-fundar-se no seu estudo e ao agregar a ele novos elementos de definição. A triste constatação de casos de descalabros ético e legais, pontuais ou gerais, que atingem os administrados acarreta maior responsabilidade na concretização da busca do efetivo respeito ao princípio da moralidade administrativa e uma atuação mais firme pelos organismos de controle da Administração Pública como, por exemplo, a Advocacia Pública, o Ministério Público, e os corpos correicionais.

1 O controle do ato administrativo discricionário1.1 Do ato administrativo discricionário

Em que pese o tema proposto nesta seção seja já bastante debatido, ele ainda é controverso. Por isso, perfeitamente cabível a abordagem em face do tema proposto no artigo.

Os sistemas públicos sociais de saúde, educação, assistência; as funções essenciais de Estado tais quais diplomacia, advocacia pública,

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justiça e polícia; os departamentos de infraestrutura dos transportes e obras; enfim, todos os entes da Administração Pública funcionam e dão impulso à declaração do querer da Administração através de atos.

Deve-se atentar para o fato de que, em sentido amplo, adjetiva-mente, todo o ato da Administração seria um ato administrativo, mas para o estudo da atividade típica — singular — da Administração Pública, convencionou-se nomear de “atos administrativos” aqueles que estives-sem sob o regime jurídico do Direito Administrativo e ligados à função de cada Poder. Por isso, o gênero Atos da Administração, também engloba a espécie atos administrativos.

O ato administrativo para Diogo de Figueireido Moreira Neto2 é “a manifestação unilateral de vontade da administração pública, que tem como objeto constituir, declarar, confirmar, alterar, ou desconstituir uma relação jurídica entre ela e os administrados, ou entre seus próprios entes, órgão e agentes”.

Os atos administrativos, portanto, em sendo emanações de vontade não do agente, mas do ente, balizado em lei, de conteúdos específicos e funcionais, são classificados ou como vinculados, ou como discricionários.

Para melhor entendimento da classificação é necessário um breve histórico. Quando do surgimento da noção de tripartição de Poderes pós-revolução francesa, instituiu-se, basicamente, que cada Poder independente não deveria interferir na esfera de atuação típica do outro. Havia a previsão de uma pureza conceitual de atividade dos Poderes sob o manto da independência. Essas noção e teorização eram frutos do momento histórico da sociedade francesa.

À época, difundia-se a observação de que o princípio da legali-dade por si só bastaria para que a Administração não praticasse atos abusivos. Ou seja, ou os atos estavam de acordo com a lei, ou de acordo com o espaço que a lei deu ao administrador, mas sempre vinculado à norma, não podendo outro Poder interferir nesse “espaço de manobra” da Administração.

Boa parte da nossa doutrina deriva do sistema francês, que não detém controle judicial dos atos administrativos, senão um sistema peculiar de controle diverso do brasileiro.

2 MOREIRA NETTO. Curso de direito administrativo, p. 132.

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Outra vertente seria o direito alemão no que tange à aplicação das teses dos conceitos jurídicos indeterminados que os aceita, majoritaria-mente, como discricionariedade lato sensu,3 como duas faces da abertura complementativa de normas.4 A Alemanha, também, tem um Tribunal Administrativo específico, o que difere em muito do nosso ordenamento.5

Atualmente, fica evidente a defasagem desse pensamento baseado nas duas vertentes originais citadas, seja pela própria necessidade de controle da Administração, necessidade essa surgida talvez exatamente dessa inexistência de interferência externa e pela necessidade de se adequar o entendimento ao nosso ordenamento pela nossa doutrina, mas de forma coerente como paradigma constitucional brasileiro.

Na realidade, as duas vertentes do ato administrativo no que con-cerne à extensão de ação do administrador são muito mais próximas do que parte da doutrina e alguns tribunais insistem em classificar, como aduz Di Pietro.6

Entretanto, a vontade e o subjetivismo do administrador não são ili-mitados, devendo estar dentro dos ditames do que lhe autoriza a norma,7 sob pena de arbítrio no uso da “conveniência e oportunidade”. Esta é a discricionariedade de hoje, genericamente aplicada pelos tribunais. Um conceito um tanto quanto vago e tomado de bordas não limitadas e que, por isso, dá espaço ao estudo dos seus limites e das formas com as quais pode ser atacado.

A permanência do brocardo e do dogma de que o mérito do ato discricionário não pode ser controlado, seja pelo Poder Judiciário, seja pelos outros órgãos legitimados (Tribunais de Contas, sistemas de controle interno e Poder Legislativo), empobrece os caminhos de atuação destes. Destaca-se disso o fato do Poder Executivo ser um dos grandes incentivadores dessa pobreza conceitual, atuando com o intuito de evitar o controle dos seus atos, usando da discricionariedade como uma espécie de “alegação-escudo” que a imunizaria da arguição de invalidade dos seus atos.

3 MAURER. Elementos de direito administrativo alemão, p. 48.4 KRELL. A recepção das teorias alemãs sobre conceitos juridicos indeterminados e o controle da

discricionariedade no Brasil. Revista do instituto de Hermenêutica Jurídica, p. 51.5 KRELL. A recepção das teorias alemãs sobre conceitos juridicos indeterminados e o controle da

discricionariedade no Brasil. Revista do instituto de Hermenêutica Jurídica, p. 53.6 “[...] pode-se afirmar que não existe ato administrativo inteiramente discricionário. No ato vinculado todos

os elementos vêm definidos em lei; no ato discricionário, alguns elementos vêm definidos na lei com precisão, e outros são deixados à decisão da Administração, com maior ou menor liberdade de apreciação de oportunidade e conveniência. [...]”.

7 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 204.

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A crítica à teoria tradicional do controle do mérito do ato admi-nistrativo toma força com novos argumentos e bem lançadas sustenta-ções. Para o entendimento de como se dá e trata a doutrina clássica e a jurisprudência brasileiras, a apreciação desses atos faz-se necessária uma pequena digressão.

Deve-se ter em mente que a distinção clássica entre ato adminis-trativo vinculado e discricionário não mais atende às necessidades dos operadores do direito. Essa conceituação sempre foi acompanhada da explanação de que a regra era de total antagonismo entre as espécies.

Trata-se, na realidade, de uma diferença no espaço de escolha do administrador, mas, em nenhuma delas, existe arbítrio, ou pode servir para agir ilegal, ou seja, ambas estão presas à normatividade, seja de forma totalmente vinculada, seja na eleição de limites de atuação para o administrador.

É o que salienta Celso Antônio Bandeira de Mello8 ao sustentar a relatividade da discricionariedade, a qual, para o autor, não se trata de qualidade do ato, mas de exercício de competência atribuída a um agente.9

O ato administrativo discricionário é aquele em que existe um contéudo volitivo, subjetivo, entregue ao administrador para que faça uma decisão de sua competência. Essa decisão é sempre amparada pela lei que lhe dá limites e indicativos para a concretização.

Assim, fica claro que a diferenciação está no grau de amplitude de atuação desse “poder”10 do administrador, ou não tem nenhuma amplitude e se traduz em verdadeiro dever de agir daquele modo (ato vinculado), ou a lei vincula o administrador dando-lhe os limites e as possibilidades dentre as quais pode transitar. A lei, portanto, vincula

8 “É a falta desta necessária precisão conceitual o que leva a inúmeras e desnecessárias confusões provocadas pela simplificada linguagem vertida na fórmula ‘ato discricionário’ e ‘ato vinculado’. Com efeito, através dela desperta-se a enganosa sugestão de que existe uma radical antítese entre atos de uma ou de outra destas supostas categorias antagônicas. Não é o que ocorre, entretanto, pois a discricionariedade não é atributo de ato algum. É apenas a possibilidade — aberta pela dicção legal — de que o agente qualificado para produzi-lo disponha de uma ‘certa’ (ou ‘relativa’) margem de liberdade, seja para avaliar se efetivamente ocorreram (a) os pressupostos (isto é, motivos) que legalmente o ensejariam, seja para (b) produzi-lo ou abster-se, seja (c) para eleger seu conteúdo (conceder ou negar, expedir o ato ‘x’ ou ‘y’), seja (d) para resolver sobre o momento oportuno de fazê-lo, seja (e) para revesti-lo com a forma tal ou qual. E tudo isto na medida, extensão e modalidades que resultem da norma jurídica habilitante e, ademais, apenas quando comportado pela situação concreta que lhe esteja anteposta” (BANDEIRA DE MELLO, 2001).

9 Sem levar a cabo a discussão em torno da natureza da discricionariedade, tem-se que toda a doutrina é versada com a nomenclatura de ato discricionário ou vinculado, não necessariamente querendo com isso ser cientificamente precisa, mas, sim, usar do modo corriqueiro de estudo. É correta a explanação de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a natureza da discricionariedade e sua ligação com o agente, mas não será objeto de maior divagação neste trabalho.

10 MAURER, op. cit., p. 48.

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ambos, mas dá margem de atuação para agir no ato discricionário. No ato vinculado, há dever de agir conforme, e no discricionário há o espaço de manobra para o uso do poder da administração dentro das margens de atuação, mas nunca transbordando do que lhe confere a Constituição.

1.2 Da possibilidade do controle do ato administrativo discricionárioOs termos conveniência e oportunidade estão ligados intimamente

ao estudo do ato discricionário no Brasil. Sempre se traduziu a esfera de atuação do administrador permitida por lei como critério de conveniência e oportunidade desde que a expressão surgiu no Brasil no final do século XIX pela Lei nº 221, de 20.11.1894.

No ato discricionário, existem elementos que não são avaliáveis em seu mérito, ou no que a doutrina nacional clássica define como opor-tunidade e conveniência da Administração, e que hoje pode-se definir apenas como poder discricionário.11

Os elementos da competência e da finalidade são vinculados, ou seja, estão diretamente ligados aos princípios da repartição de compe-tências e da persecução do interesse público,12 respectivamente.

Os elementos da forma,13 motivo e objeto do ato administrativo são os chamados intrínsecos à discricionariedade. São os elementos em que existe a possibilidade de que o agente tenha uma margem de atuação, ao contrário dos supracitados. Salienta-se que, somente nesses aspectos, é que se fala em mérito, e pode a Administração agir conforme seus critérios de conveniência e oportunidade.

A Administração Pública insiste em levar ao Poder Judiciário, e tem conseguido algum sucesso no passado recente, em especial nos Tribunais, de forma geral, o uso simplificado da palavra discricionariedade com o fito de afastar a análise do teor dos atos administrativos.

Essa orientação — cada vez mais permeável a novas visões — é fruto da adoção da posição histórica expressamente contida na Lei nº 221, de 1894, que continua a recepcionar e repetir o que foi positivado há mais de um século, em desacordo com o paradigma Democrático instaurado pela Constituição de 1988.

11 Idem.12 Mesmo reconhecendo que o conceito de interesse público pode ser avaliável, se ele for usado de maneira

tendente a mascarar a finalidade do ato.13 Em regra a forma é vinculante, pois substancial ao mesmo, entretanto, haverá discricionariedade quando

inexistir forma prescrita e o administrador puder escolher a forma.

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Há muito que o Poder Executivo não mais necessita ser uma forta-leza inexpugnável a fim de que seus atos sejam impostos com o escopo de garantir a própria existência. No decorrer do século passado, a Adminis-tração passou a ser necessariamente funcional, com obrigação de servir à sociedade dentro do critério atual de boa administração e nos ideais de instauração e efetivação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Tal dogma tradicional, surgido a partir da literalidade da Lei nº 221 de 1894, não deve ser entendido como absoluto, já que a discricio-nariedade pressupõe uma limitação pela legalidade, cuja avaliação só é possível em se discutindo em que consiste o chamado mérito.

Para isso, o Judiciário adentrará, necessariamente, no mérito da questão, mas de forma tangente, dando limitações tão somente. É vedado que haja, como salientado acima, uma substituição de uma decisão do administrador pelo do juiz, transformando o mérito do ato administrativo em ato jurisdicional de mérito.

Assim, para os tradicionais, o Judiciário somente controla os limites do mérito, balizando-o, mas não o avaliando. Essa corrente tem encon-trado eco nos tribunais até hoje, sem que haja nessas decisões maiores indagações do porquê da adoção dessa linha. Aparentemente, a conti-nuidade do uso do bordão “o Judiciário não pode adentrar nos critérios de conveniência e oportunidade da Administração” dá-se mais por um exercício de repetição do que pela avaliação do seu valor jurídico atual.

O começo da derrubada do paradigma clássico veio com a utilização dos princípios constitucionais da razoablidade e da proporcionalidade — derivados do direito norte-americano e germânico — hoje positivados, expressamente, no ordenamento jurídico brasileiro na Lei nº 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal) e, por exemplo, no art. 19 da Constituição gaúcha;14 e da aplicação do princípio da moralidade admi-nistrativa, o que é o objeto deste artigo.

Deve-se destacar que alguns doutrinadores, como Di Pietro,15 já interpretaram a discricionariedade como inatacável pelo Judiciário, não

14 “Art. 19 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte: [...]”.

15 DI PIETRO, op. cit., p. 211.

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com base na teoria tradicional, mas sustentando que o controle dá-se na limitação do espaço de ação.

Discorda-se desse entendimento, pois ao se adentrar o exame da limitação da esfera de ação já se está atuando dentro da zona da discricionariedade, podendo-se até mesmo restringi-la ao se decidir que a lei não dá maior espaço para a escolha do administrador. Isso já passa a ser o exame da própria discricionariedade, posto que é impossível restringi-la sem atingi-la.

O fato é que a discricionariedade é sindicável, mas não simples-mente por um processo de substituição do Administrador, mas em uma interpretação e fundamentação jurídica que considere todo o ordena-mento e a sua intenção dentro do paradigma constitucional democrático instaurado em 1988.

O ato discricionário pode sim ser controlado de forma a conformá-lo a todo sistema jurídico vigente. Essa conformação deve ser feita diante de todos os princípios e normas vigentes no ordenamento jurídico. A legalidade estrita pode, inclusive, autorizar o administrador a fazer escolhas, mas, dentre elas, ele pode escolher uma que não atende à finalidade do ordenamento, o que pode ser sindicado.

Ao Judiciário, ao fazer o exame, incumbe a declaração da nulidade com a invalidação do ato, e a declaração de qual seria a escolha correta à luz do Direito, sob pena de se criar um vácuo jurídico na atuação apenas negativa.

Ao final, o chamado mérito do ato discricionário será analisado toda vez que se puder encontrar a nulidade que se quer ver declarada, incumbindo a quem aproveitar a declaração fazer a alegação e demonstrar onde ela se encontra.

O parágrafo acima pode parecer simplista, e a análise feita de forma invertida, mas o fato é que o julgador não deixará de anular um ato inválido diante do ordenamento — princípios explícitos, implícitos, normas, leis — pelo simples fato de ele ter, em seu âmago, um quê de discricionariedade.

Atualmente, mais das vezes, esta é a tese da Administração: o ato é discricionário. Ocorre que atos discricionários clássicos — tal qual, por exemplo, o licenciamento de militar das forças armadas serviço obriga-tório — podem ser feitos com motivações escusas ou inconstitucionais, em ofensa à finalidade da norma.

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Tudo isso deve ser objeto de prova daquele que quer ver o ato invalidado, e somente na apreciação desta — e aí já se estará analisando o chamado mérito — é que se analisará se esse ato foi regularmente exarado dentro da competência discricionária em confronto com todo o sistema jurídico vigente.

2 O princípio constitucional da moralidade administrativa2.1 Breve histórico da moralidade administrativa

O surgimento da teoria da moralidade administrativa pelas mãos de Maurice Hauriou16 delineava esta como meio de se definir quando o agente atuou em desvio de poder e desvio de finalidade, ou seja, quando teria deturpado a finalidade da ação pública prevista em lei.

Desde então, historicamente, o conceito da moralidade admi-nistrativa já teve várias outras definições. Foi considerado como sendo uma faceta do controle da motivação do ato administrativo e, também, incluiu-se mais tarde a ideia de que a legalidade entendida em sentido lato poderia abranger a moralidade administrativa, o que acabou por causar o desuso do termo em detrimento da expressão “desvio de poder”, de uso generalizado no Brasil.

Esse acontecimento pode-se dizer que retardou a abordagem e o emprego autônomo mais efetivo do princípio da moralidade adminis-trativa por anos no Brasil.

A legalidade descrita por Hauriou, criador da teoria, era estrita, formal, positivada. A lei formal por certo acabaria por autorizar o seu uso para atos entendidos por ele como administrativamente imorais. Esses atos seriam os que afetavam o conteúdo ético-moral da sociedade, mas que estavam em conformidade com a legislação em seu sentido literal. A imoralidade do ato afetava a finalidade da lei do poder discricionário, o aspecto subjetivo que incluia o conteúdo valorativo social citado.

A ideia de Hauriou baseia-se no conceito de que o ato imoral caminha em desvio de finalidade, ou desvio de poder, quando usa da autorização legal para atingir outros fins que não o interese público inerente que ditou a promulgação desse comando legal. Ou seja, a finalidade do ato é também elemento vinculado.

16 HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 12e éd. Paris: Sirey, 1921. p. 352, 455-456.

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Como, na concepção de Hauriou, a legalidade era meramente formal, esses aspectos ou causas extralegais que ditaram a promulgação da norma legal, também não poderiam fazer parte da legalidade. E, por consequência, o critério que ditaria um possível controle desse âmbito com menor razão, ainda poderia ser um critério integrante dessa legalidade.

A moralidade administrativa, portanto, agiria como esse outro critério a somar-se à legalidade formal para que houvesse a validade do ato administrativo. A moralidade serviria para avaliar os casos em que presentes o “desvio de poder” ou “desvio de finalidade”,17 em que a norma mascararia uma intenção imoral do agente, que, entretanto, estaria protegida por uma forma externa legal.

2.2 A autonomização da moralidade administrativaNo Brasil, voltou-se ao estudo mais aprofundado da moralidade

administrativa com a consagração positiva do princípio na Constituição Federal de 1988.

O princípio constitucional da moralidade administrativa como norma de valor que é, pode-se dizer, serviu para dar autonomia no estudo da moralidade administrativa, passando esta a ser objeto do direito administrativo. Serviu, então, também, para dar novo valor ao estudo do controle do ato adminstrativo, que, no início do século XX, era uma mera análise de legalidade.

Com isso, foi-se obrigado a tentar outros caminhos para a sua defi-nição e estudo, desvinculando a moralidade administrativa do princípio da legalidade e dando-lhe conteúdo próprio dentro do novo paradigma.

A partir de então, pode-se exemplificar com, pelo menos, quatro interpretações da expressão moralidade administrativa.

A primeira é exatamente a que sustenta que a moralidade admi-nistrativa confunde-se com o desvio de finalidade, o que não enriquece o sistema jurídico, e acaba por aplicar um pelo outro, enquanto o constituinte optou pela expressão moralidade administrativa sem a intenção de excluir a aplicação do desvio de finalidade, que, mais das vezes, tem sido objeto de arguição em casos em que se poderia cogitar de aplicação do princípio da impessoalidade (posto que grande maioria

17 A doutrina trata as duas expressões como sinônimas.

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dos casos de infração levada a cabo por atos administrativos por desvio de finalidade fere a impessoalidade).18 Como situações de infração, a impessoalidade por desvio de finalidade pode-se citar, por exemplo, os editais de licitações e de concursos públicos dirigidos a determinado público, com limitação de participação a determinado nicho de pessoas, a supervalorização de títulos em concurso para beneficiar pessoa de determinada carreira (ex: assessores jurídicos do MP comissionados têm maior pontuação do que assessores — concursados ou não — do judiciário ou de órgão do executivo para os concursos a cargo de promotor).

Assim, a manutenção do conceito de moralidade administrativa, como sendo sinônimo de desvio de poder, acaba por diminuir o instituto, ao inseri-lo dentro da legalidade, perdendo a oportunidade de moldar uma nova definição ao mesmo — o que parece ter sido a intenção expressa da Constituição ao elencar, lado a lado, os princípios que regem a Administração.

Incumbe aos doutrinadores e pesquisadores do direito a criação de conteúdo autônomo, ou ao menos diferencial, para o que a Constituição assim quis fazer.

A segunda interpretação é a que define a moralidade administra-tiva como probidade administrativa e está positivada na Lei nº 8.429/92. Pode-se definir a improbidade administrativa como uma moralidade qua-lificada, cujo desrespeito constitui ato ilícito e ímprobo e que exige culpa grave e dolo e que é cominada penalização administrativa e criminal.

Essa interpretação é restrita ao uso do conceito de moralidade para averiguação de atuação ou não de forma ímproba pelo administrador ou quem a lei der o mesmo status para fins de penalização. Esta é a

18 “EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VENDA DE IMÓVEL DO MUNICÍPIO. DIS-TRITO COMERCIAL. ILEGALIDADE POR AUSÊNCIA DE PRÉVIA LICITAÇÃO. AVALIAÇÃO E DESATENÇÃO À IMPESSOALIDADE. ILEGALIDADE MANIFESTA INEXISTENTE. Conforme documentação carreada aos autos, existe prévia desapropriação de terrenos visando à criação de distrito comercial e lei autorizativa da de-safetação estipulando o valor das vendas e as condições dos contratos. A espécie não reúne os requisitos da flagrante ilegalidade para amparar juízo liminar de suspensão de qualquer construção, por parte de adquirente de um dos terrenos vendidos. Agravo provido. Voto vencido. (Agravo de Instrumento Nº 70012178208, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 30.11.2005)”;“EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. EDITAL. O edital de licitação não pode estabelecer exigência ou restrição que implique preferência ou persecução a concorrentes, sob pena de violação aos princípios da isonomia e da impessoalidade. RECURSO PROVIDO EM PARTE. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70013599774, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Roque Joaquim Volkweiss, Julgado em 10/05/2006)” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 04 abr. 2006).

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definição de José Afonso da Silva e de José Guilherme Giacomuzzi,19 que sustentam que a probidade é uma faceta subjetiva do princípio da moralidade administrativa, criando o dever de agir do administrador de forma correta, honesta. Na mesma esteira, entende-se que a moralidade é o gênero da qual a probidade administrativa é espécie e deve ter seu estudo limitado ao seu alcance.20

A terceira interpretação está ligada ao conceito de “boa admi-nistração” ou “bom governo” a ser seguido pelos agentes públicos, ligada, também, à ideia de eficiência, de resultado para o administrado. Novamente, aqui, surge a sobreposição de princípios, ao se definir que o administrado tem direito a uma boa administração, posto que essa definição já é abarcada, pelo menos parcialmente, pelo princípio da eficiência, alçado a conteúdo autônomo pela Emenda Constitucional nº 19. Desde a sua previsão expressa, o princípio da eficiência tomou para si o conteúdo do direito do administrado a um bem servir do sistema público, confome Di Pietro.21 Logo, a moralidade não mais deve conter essa definição, posto que também é objeto de estudo autônomo e de controle pelo princípio da eficiência.

A quarta e última interpretação é a que traduz entendimento moderno trazido da consagração de novos paradigmas administrativos advindos da Lei nº 9.784/99. É o entendimento da moralidade admi-nistrativa como sendo corolário de atuação conforme da administração aos princípios ético constantes das ideias de boa-fé, decoro, honestidade e bons costumes.

A definição trazida por José Guilherme Giacomuzzi22 é a que melhor serve ao uso do princípio da moralidade como meio de controle da discricionariedade administrativa sem que haja invasão de outros conceitos e outros princípios.

Ainda, essa definição, como se verá mais detalhadamente a seguir, é fruto de análise sistemática do princípio em tela e das normas mais modernas e garantidoras dos direitos dos administrados, e que devem ser a tendência da legislação infraconstitucional administrativa futura.

19 GIACOMUZZI. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública, p. 287.20 ZANCANER, Weida. Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do

estado social e democrático de direito. Revista Diálogo Jurídico, p. 11.21 DI PIETRO, op. cit., p. 83.22 GIACOMUZZI ,op. cit., p. 227.

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Essa tendência, por certo, deriva, também, da existência do princípio da moralidade administrativa em nível constitucional.

3 A definição do princípio da moralidade administrativa para o controle da discricionariedade do ato administrativo

A previsão de princípios jurídicos para observância pela Adminis-tração serve para o controle da sua atividade, limitando o seu poder. O poder, no caso, é a essência da discricionariedade, e esta é o espaço de manobra que se quer ver utilizado sem arbítrio.

O fenômeno da proliferação legislativa soma-se ao fenômeno da “legislatura do Poder Executivo” — muito presente no Brasil atual, em que, ou as leis são provenientes de medidas provisórias, ou de projetos de lei de iniciativa do Executivo, atuando, em regra, o legislativo como mero chancelador de normas — os princípios insculpidos na Constituição Federal passam a ser norteadores interpretativos que fixam as linhas mestras do ordenamento jurídico.

A cada vez maior “executivização” das leis acaba por aumentar a presença da discricionariedade dentro das próprias normas, já que o Poder Executivo começa a dar a si mesmo os poderes que entende necessários para por em prática as regulamentações de políticas públicas crescentemente mais complexas.

Se o legislador, cada vez mais, usa conceitos indeterminados na legislação com o escopo de desengessar e deslegalizar23 a atuação administrativa, os princípios surgem como nortes interpretativos, como substratos valorativos variáveis, possibilitando o seu amoldamento a determinado tempo e realidade social.

Atualmente, versa-se, popularmente, a moralidade administrativa como conceito ético que tem o condão de garantir a responsabilização e punibilidade do mal agir dos homens públicos em geral, desde a classe política até o servidor público. A ideia atual de limpeza na Administração é, sem dúvida, a comprovação de que o princípio tem sua feição dada pela realidade em que ele vige e do aspecto em que é estudado.

23 GIACOMUZZI, op. cit., p. 212.

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Aqui se insere o princípio da moralidade administrativa como meio de controle da discricionariedade cada vez mais presente na legislação, sob o ponto de vista do estudo jurídico.

O princípio, mesmo que sem feição normativa expressa, pode ser utilizado para controle,24 mas quem fizer uso dele deve trazer consigo o que entende por moralidade administrativa e por que entende que

24 “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL – IMPOSSIBILIDADE – CONTRARIEDADE AO ART. 164, §3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO – ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA – EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS ESTADOS-MEMBROS SERÃO DEPOSITADAS EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. – As disponibilidades de caixa dos Estados-membros, dos órgãos ou entidades que os integram e das empresas por eles controladas deverão ser depositadas em instituições financeiras oficiais, cabendo, unicamente, à União Federal, mediante lei de caráter nacional, definir as exceções autorizadas pelo art. 164, §3º da Constituição da República. – O Estado-membro não possui competência normativa, para, mediante ato legislativo próprio, estabelecer ressalvas à incidência da cláusula geral que lhe impõe a compulsória utilização de instituições financeiras oficiais, para os fins referidos no art. 164, §3º da Carta Política. O desrespeito, pelo Estado-membro, dessa reserva de competência legislativa, instituída em favor da União Federal, faz instaurar situação de inconstitucionalidade formal, que compromete a validade e a eficácia jurídicas da lei local, que, desviando-se do modelo normativo inscrito no art. 164, §3º da Lei Fundamental, vem a permitir que as disponibilidades de caixa do Poder Público estadual sejam depositadas em entidades privadas integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO – CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. – A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, §3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. As exceções à regra geral constante do art. 164, §3º da Carta Política — apenas definíveis pela União Federal — hão de respeitar, igualmente, esse postulado básico, em ordem a impedir que eventuais desvios ético-jurídicos possam instituir situação de inaceitável privilégio, das quais resulte indevido favorecimento, destituído de causa legítima, outorgado a determinadas instituições financeiras de caráter privado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. A EFICÁCIA EX TUNC DA MEDIDA CAUTELAR NÃO SE PRESUME, POIS DEPENDE DE EXPRESSA DETERMINAÇÃO CONSTANTE DA DECISÃO QUE A DEFERE, EM SEDE DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. – A medida cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc, ‘operando, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere’ (RTJ 124/80). Excepcionalmente, no entanto, e para que não se frustrem os seus objetivos, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, em caráter retroativo, com repercussão sobre situações pretéritas (RTJ 138/86). Para que se outorgue eficácia ex tunc ao provimento cautelar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal assim o determine, expressamente, na decisão que conceder essa medida extraordinária (RTJ 164/506-509, 508, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Situação excepcional que se verifica no caso ora em exame, apta a justificar a outorga de provimento cautelar com eficácia ex tunc. (ADI 2661 / MA – MARANHÃO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 05/06/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal.)” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 mar. 2006).

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ela foi violada por aquela escolha do administrador, dentro de uma interpretação que respeite, como define Lênio Streck,25 o novo paradigma do Estado Democrático de Direito instaurado na Constituição de 1988.

A definição do princípio da moralidade que melhor se amolda à arguição para o controle da discricionariedade é o que verte as ideias de honestidade, decoro, bons costumes e boa-fé objetiva da Administração.26

Essa definição se apresenta como a melhor fundamentada na medida em que ela não se confunde com nenhum outro princípio ou conceito da Administração Pública. Não se confunde, também, com a subjetividade da faceta “improbidade administrativa”, sendo, por isso, uma base firme para assentar a argumentação de que determinado ato administrativo discricionário fere o princípio da moralidade definido como expressão do respeito à boa-fé objetiva.

Não se trata de afirmar que o princípio da moralidade — cujo conteúdo, como se viu, por ser norma de valor é mutante no tempo e sociedade e não estanque — seja apenas isso ou aquilo, mas de que a violação ao conteúdo da definição escolhida é a que melhor autoriza a invocação de ferimento à moralidade administrativa do art. 37, caput da Constituição Federal.

Isso se dá porque, desde a vigência da Lei nº 9.784/99, foi inserido como dever da Administração Pública a lealdade e a boa-fé27 por lavra do professor Almiro do Couto e Silva. A boa-fé está prevista no mesmo inciso da espécie subjetiva da moralidade administrativa, qual seja, o padrão de probidade e, interpretativamente, em antagonismo a esta subjetividade. Por isso sustenta-se que a boa-fé aqui sustentada é a objetiva, como visto anteriormente.

Com a ideia de que a moralidade administrativa abarca a boa- fé objetiva, surge um dever de comportamento da Administração, um mandado de lealdade em que não se perquire apenas se o agente agiu com probidade ou não (parte subjetiva), mas se o ato do ente público atende ao dever que a moralidade administrativa lhe ordena.

25 STRECK. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, p. 268.26 GIACOMUZZI, op. cit., p.227.27 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,

motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. [...]IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; [...]” (Lei nº 9.784/99).

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E esse dever está em todo o sistema legislativo que lhe ordena que a Administração aja de determinada forma, e não de uma outra que permita a quebra do comportamento esperado e ordenado.

Não há interferência na aplicabilidade da definição de que a boa-fé objetiva da Administração está ínsita no princípio da moralidade com a extensão do princípio da legalidade. Não há dúvidas de que legalidade não é só garantia para o administrado, mas também para a Administração e a moralidade entendida como dever de boa-fé objetiva não vai derrogar isto nos casos em que a legalidade for preponderante, dentro do sopesamento de princípios.

Desse modo, acolhe-se, dentre as definições trazidas neste trabalho e presentes nas doutrinas mais modernas, a arguição da quebra da boa-fé objetiva pela Administração como meio de fazer válido, autônomo e independente, o princípio da moralidade administrativa sobre o agir discricionário, controlando-o.

ConclusãoTecnicamente, o Brasil já esteve mais perto de atingir uma legislação

administrativa moderna e coerente, e acredita-se que seja a hora de dar continuidade ao que já continha a inovadora Lei nº 9.784/99, com cada vez mais deveres exigíveis da Administração e dos que a integram ou, simplesmente, passam pela máquina pública. E isso não está adstrito ao Poder Executivo por certo, já que todos os outros poderes são, também, Administração.

Se é verdade que existem juristas ousados, criativos, e leis modernas e bem redigidas, também é fato que nem mesmo os princípios mais básicos e com definição consolidada na doutrina e jurisprudência são observados de forma corriqueira pela Administração Pública.

Não se pauta este artigo, e em especial esta conclusão, apenas pela análise da legislação federal, mas pela constatação de que a administração federal ainda é, salvo raras exceções estaduais e municipais, a esfera mais bem aparelhada legalmente, no que tange ao controle dos seus atos, e, mesmo assim, é autora de um sem número de arbitrariedades.

Os abusos e arbitrariedades nos rincões do país, em sua maioria, apenas chegam ao controle da jurisdição por motivações políticas (que

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também é um mecanismo de controle, além de antigo, legítimo), e não por desforço do administrado, posto que o grande contingente da população desconhece os meios que tem para buscar a invalidação do ato antijurídico.

O princípio da moralidade administrativa parece ser o valor jurídico certo a ensejar o entendimento de que a Administração deve agir de boa-fé, que tem deveres para com os administrados e não somente com a lei, posto que isso é moral, isso é correto, é honesto.

Aos órgãos de controle, sejam judiciais, sejam administrativos (inclusive da própria Administração/Poder Executivo) cabe definir a extensão do dever de ação moral da Administração e o campo da dis-cricionariedade, com base em fundamentações jurídicas lastreadas na doutrina e na jurisprudência.

Afirma-se que toda a concentração do estudo em torno do cabimento ou não da análise de mérito do ato administrativo discricionário deve-se muito ao agir antijurídico dos agentes públicos e do pouco trabalho preventivo de análise da validade dos atos públicos pela Administração, quase que como se estivesse apenas à espera da repressão externa.

Em uma sociedade democrática, em que existe previsão expressa da inafastabilidade da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, não se pode tentar criar uma salvaguarda para escudar atos injurídicos, sobretudo quando toda e qualquer análise de mérito pela jurisdição deve ser fundamentada em argumentos sólidos e jurídicos por expressa previsão constitucional, evitando-se o risco do arbítrio da toga e a mera transferência do exercício da discricionariedade da Administração para o Judiciário.

A sindicabilidade não faz desaparecer a discricionariedade, mas há de condicioná-la a ser utilizada de modo válido, conforme o sistema jurídico, o direito vigente.

Nesta esteira, o princípio da moralidade, como valor ético jurídico temporal que é, deve o quanto antes refletir o moderno entendimento doutrinário de que ele abarca o conceito de atenção da Administração à boa-fé objetiva no que tange à vontade honesta do agente público.

É o caminho sinalizado pela Lei nº 9.784/99 e que foi bem aplicado pela doutrina, e que permite uma reflexão intensa sobre a atuação adminis-trativa e o conteúdo dos princípios constitucionais expressos na Constituição.

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O princípio da moralidade administrativa não se confunde con-ceitualmente com nenhum outro e a sua vinculação à boa-fé objetiva é singular, já que este conceito não se enquadraria, em princípio, em nenhum dos outros princípios positivados na Constituição.

Nem mesmo o princípio da eficiência poderia abarcar a boa-fé objetiva, posto que a máquina pública, para ser eficiente, necessariamente, violará esses deveres éticos e de decoro. Sem medo de errar, pode-se dizer que a Administração pode atuar de forma eficiente, mas imoral, sem que respeite aos ditames da boa-fé objetiva, dos seus deveres para com o administrado e a expectativa dos cidadãos.

Indaga-se: qual princípio representaria o decoro, os bons costumes, a confiança em choque com a necessária eficiência? Responde-se: o princípio da moralidade administrativa.

Assim, a definição de que o seu elemento principal é a defesa da boa-fé objetiva, autoriza a arguição do princípio da moralidade admi-nistrativa no caso concreto e permite o seu uso no controle da discricio-nariedade administrativa, por ser um imperativo de direito e de justiça reconhecido pelo ordenamento jurídico em vigor.

Abstract: In Brazil, the government administrational system was built over the dogma of the total control absence of the discretionary administrational act merits. In this way, the national legislative body was the responsible to choose the administrational acts which would be discretionary to the government executive body. The control of this kind of acts was restricted to its conformity to the rule formality. Slowly, through the past century, with the strengthening of the public control bodies after the 1988 Brazilian Constitution these in charge bodies passed to argue administrational law principles, trying to adequate the discretionary executive acts not just to its rule formality, but also to the values and principles of entire law system. Through the present work is proposed the study of the morality doctrine use as a way to control the discretionary choice on its merits, in despite of its restricted formality analysis. To make it possible is necessary to study the many concepts that the morality doctrine can assimilate, allowing the public control bodies to argue it.

Key words: Constitution. Principle. Morality doctrine. Discretionary gov-ernment administrational act. Control of the administrational acts merits.

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Estruturação de cargos em carreira na Advocacia-Geral da UniãoMarco Antonio Perez de OliveiraAdvogado da União. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo.

Resumo: O artigo registra o descumprimento, por parte da Lei Comple-mentar nº 73/93, da vigente Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, em estruturar os cargos da Instituição em carreira segundo o determinado pela Constituição de 1988, e discute as repercussões da omissão.

Palavras-chave: Lei Complementar nº 73/93. Advocacia-Geral da União. Cargos da instituição.

Sumário: 1 O artigo 131, §2º, da Constituição e a estruturação em carreira – 2 Ausência de diferenciação funcional nas carreiras da Advocacia-Geral da União – A omissão inconstitucional do legislador complementar – 3 A delegação das atribuições da Advocacia-Geral da União a pessoas estranhas aos cargos da instituição – A ação inconstitucional do administrador público – 4 Conclusões – Referências

1 O artigo 131, §2º, da Constituição e a estruturação em carreiraAo criar a Advocacia-Geral da União para as finalidades de repre-

sentação judicial e extrajudicial da União, bem como a consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo, a Constituição determinou no parágrafo segundo do artigo 131 que “o ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos”, de onde se depreende duas regras a que deveria se vincular a instituição a ser criada: primeiro, a estruturação em carreira de seus cargos e, segundo, a necessidade de concurso público específico de ingresso nas respectivas classes iniciais. Enquanto a segunda regra não oferece muitas dificuldades, na medida em que o concurso público de ingresso veio a se consolidar em nossa prática administrativa, a primeira delas merece algum exame mais aprofundado. Este é o propósito do texto que segue: queremos examinar a que se dirige a regra constitucional, o que foi feito dela pela legislação regulamentadora, e respondermos se a intenção do constituinte foi atingida por esse arcabouço legal.

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Antes de iniciarmos essa análise, é necessário esclarecer o que significa, exatamente, a estruturação em carreira. E para que possamos fazê-lo, primeiro é necessário fixar a antecedente noção do que seja um cargo público, pois a carreira nada mais é do que uma relação que se estabelece entre diferentes cargos, dentro de uma estrutura organizacional. “Cargo público”, pois, de acordo com uma tradicional definição1 que foi incorporada ao direito positivo pela Lei nº 8.112/90,2 é o feixe de atribuições específicas que a lei comete a um agente público.3 As atribuições, como se vê, constituem a matéria que define e individualiza um cargo público, e que o distingue dos demais.4

Carreira, por sua vez, é uma modalidade de estruturação vertical de diferentes cargos com atribuições correlatas, de maneira tal que aumenta a complexidade das atribuições conforme se movimenta para cima na estrutura.5 O acesso aos cargos superiores não se dá por concurso público de ingresso, mas por promoção, a que podem concorrer apenas os titulares de cargos inferiores da mesma carreira.6 Como o provimento se dá de um cargo para outro, assim, trata-se de provimento derivado e não originário.

Dessa forma, está implícito na exigência constitucional o enten-dimento de que as funções inerentes à advocacia pública não são todas dotadas da mesma complexidade. Dentro do amplo espectro abrangido pela defesa em juízo, pela consultoria e assessoramento da União, há

1 Para Odete Medauar, cargo público é um “conjunto de atribuições e responsabilidades criadas por lei em número determinado, com nome certo e remuneração especificada por meio de símbolo numérico ou alfabético, tendo como atributo a efetividade, que tem o condão de impedir a dispensa imotivada” (Direito administrativo moderno, p. 290).

2 Referimo-nos à definição constante do art. 3º da Lei nº 8.112/90, segundo a qual “Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor”.

3 Conforme ensinam Manolo Del Olmo e Reinaldo Moreira Bruno, “as atribuições são repartidas tanto às entidades estatais como às autárquicas, empresariais ou mesmo fundacionais, que, por sua vez, as distribuem entre seus órgãos internos, ensejando, a partir daí, a divisão dessas atribuições pelos cargos, lugares criados nos vários órgãos das entidades e funções que nada mais são que encargos atribuídos tanto aos órgãos como aos seres humanos incumbidos de realizá-las” (Servidores públicos: doutrina e jurisprudência, p. 1-2).

4 Atributos acessórios do cargo, segundo o parágrafo único ao mesmo artigo, são a “denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos”.

5 Nos termos da lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, os cargos são de carreira quando “encartados em uma série de ‘classes’ escalonada em função do grau de responsabilidade e nível de complexidade das atribuições” (Curso de direito administrativo, p. 309). A propósito, é interessante destacar que é o próprio art. 39, inciso I, §1º da Constituição que estabelece que os diferentes cargos componentes das carreiras do serviço público devem apresentar graduação em sua “natureza, grau de responsabilidade e complexidade”, sendo que o escalonamento destes elementos é tomado como fator que deve orientar a fixação dos respectivos padrões de vencimento.

6 Como esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “promoção (ou acesso, no Estatuto paulista) é forma de provimento pela qual o servidor passa para cargo de maior grau de responsabilidade e maior complexidade de atribuições, dentro da carreira a que pertence. Constitui uma forma de ascender na carreira” (Direito administrativo, p. 660).

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atividades mais simples, até mesmo corriqueiras, que em muito pouco se diferenciam da advocacia em geral, de modo que do advogado do Estado — embora não se prescinda da qualificação técnica elevada que o concurso público visa a aferir — não se exige aquela especialização singular proporcionada pela experiência aprofundada no exercício da advocacia pública.

Outras atividades, contudo, para serem bem desempenhadas, exigem mais do que aquele conhecimento técnico teórico que pode ser aferido pelo concurso público, com todas as limitações que esse método de seleção apresenta. Trata-se de funções de alta responsabilidade, que exigem do advogado público, do contencioso ou do consultivo, a espe-cialização que decorre de sua experiência com o processo civil de direito público, com a técnica de consultoria, e de maneira geral, da familiari-dade com o funcionamento da administração do Estado. Cite-se, como exemplo, a atuação contenciosa perante tribunais superiores ou inter-nacionais, a análise de tratados, ou a atividade consultiva destinada a padronizar entendimentos sobre a interpretação da lei perante os demais órgãos da instituição e da Administração Pública. Para isso se exige um aprendizado de corte prático, que somente se pode adquirir por meio da vivência na atividade por um período de tempo relativamente extenso, e que pode eventualmente ser compensada pela dedicação mais apro-fundada do agente público aos campos de conhecimento relacionados à sua atividade. À vista dessas duas formas de aquisição do conhecimento específico, as estruturas de carreira geralmente alternam critérios de antiguidade e mérito para orientar a evolução funcional do servidor.

O objetivo da carreira, portanto, é o de estimular a progressiva especialização do agente público, mediante o desenvolvimento profissional proporcionado pela crescente complexidade de suas atribuições. Ela pode ser enxergada como um instrumento para o aperfeiçoamento da eficiência na administração, objetivo que foi elevado pelo mesmo texto de 1988 em um princípio geral (art. 37, caput).

2 Ausência de diferenciação funcional nas carreiras da Advocacia-Geral da União – A omissão inconstitucional do legislador complementar

A inserção da Advocacia-Geral da União em capítulo próprio da organização do Estado brasileiro na Constituição de 1988 apontava para

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um projeto de profissionalização da advocacia pública, por meio de uma instituição independente, organicamente segregada da administração central do Poder Executivo, que tivesse por únicas funções a defesa dos interesses da União em juízo, bem como a consultoria jurídica dos seus agentes públicos no Poder Executivo. Esse projeto, contudo, foi muito pre-judicado pelo descaso que se seguiu por parte do próprio Poder Executivo, que demorou cinco anos para encaminhar o projeto de lei complementar que organizaria e estruturaria a Advocacia-Geral. Quando finalmente o fez, apresentou um texto lacunoso e de pobre técnica organizacional no conteúdo, insuficiente para que a nova instituição se firmasse de maneira a desempenhar adequadamente o encargo que a Constituição lhe cometia. Não bastasse isso, em diversos pontos o texto da lei não se harmonizava com a legislação administrativa federal, o que gera sérias dificuldades de interpretação até os dias que correm, e em tantos outros ele era incompatí-vel com a Constituição. De maneira que não é exagerado dizer que muitas das notórias dificuldades que a AGU encontra para se firmar, quase vinte anos após sua criação, se devem ao trabalho legislativo de baixa qualidade contido na Lei Complementar nº 73/93.

Para que não se abra demasiadamente o espectro do presente texto, contudo, interessa-nos aqui apenas destacar o fato de que a lei orgânica descumpriu a determinação constitucional de que os cargos da instituição fossem estruturados em carreira, de modo a se estabelecer uma correlação entre as funções de complexidade mais elevada na advocacia pública com a especialização dos membros encarregados de desempenhá-las.

Tão pouco foi o cuidado do legislador nessa matéria, que — em uma omissão sem paralelo na legislação de pessoal da União — a Lei Orgânica não chega sequer a estabelecer as atribuições correspondentes aos cargos de Procurador da Fazenda ou Advogado da União, limitando-se a afirmar que eles compõem a instituição na qualidade de “membros”. Por derivação, assim, o que se pode entender é que as atribuições dos cargos são aquelas próprias aos respectivos órgãos: aos Advogados da União cabem as atribuições da Consultoria-Geral da União (arts. 10 e 11), da Procuradoria-Geral da União (art. 9º) e da Corregedoria-Geral da Advocacia-Geral da União (art. 5º); aos Procuradores da Fazenda cabem as atribuições da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (art. 12), e parece razoável interpretar que também possam atuar junto à

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Corregedoria-Geral, já que sua competência os abrange. Como se vê, assim, mesmo a identificação das atribuições dos cargos já exige algum esforço interpretativo.

Quanto às carreiras, como a Lei Complementar as chama, o artigo 20 limita-se a dizer que elas serão compostas de “cargos efetivos” correspondentes a uma categoria inicial, uma categoria intermediária e uma categoria final; o artigo 21 dispõe que o ingresso, por concurso de provas e títulos específico dar-se-á na categoria inicial; e mais adiante, os artigos 24 e 25 determinam que o acesso às categorias superiores é condicionado a concursos de promoção em que serão alternados critérios de antiguidade e merecimento. E é tudo. Ao Advogado-Geral da União é outorgada a competência de “distribuir” os cargos entre as diferentes categorias na forma do Regimento Interno (art. 62), o que, considerada a identidade de atribuições entre elas, não tem nenhum significado prático para o funcionamento da instituição.7 Revela apenas o poder arbitrário de estabelecer remunerações diferenciadas para um mesmo cargo, o que é de difícil explicação frente ao princípio constitucional da isonomia.8

E se no plano da Lei Orgânica as atribuições dos “cargos” não foram individualizadas, tampouco a regulamentação interna da Advocacia-Geral da União se preocupou em estabelecer competências exclusivas e privativas de cada uma das classes. Se isso houvesse sido feito, é bem verdade, teríamos uma inconstitucionalidade formal, pois cargos públicos somente se podem criar por lei (art. 48, inc. X, da Constituição), mas ao menos se teria tentado salvar a ideia da carreira como instrumento para uma atuação eficiente da instituição, evitando-se a inconstitucionalidade material pela qual responde a omissão da Lei Complementar nº 73/93.

De fato, a ausência de atribuições específicas e mais complexas para os cargos mais elevados desnatura a carreira. Sua estrutura, em lugar

7 A rigor, “distribuição” é a alocação inicial e “redistribuição” a movimentação do cargo público de um órgão para outro dentro da própria Administração, sempre justificada pelo interesse público no deslocamento do cargo para outra repartição. É assim que o art. 37 da Lei nº 8.112/90 define esta espécie de movimentação. Segue daí, como notado por Marcos Antonio Fernandes, que “nesta modalidade de deslocamento, o servidor, ainda que redistribuído para qualquer outro órgão ou entidade — dede que dentro do mesmo poder — carrega sempre consigo o próprio cargo”, característica esta que torna o instituto incompatível com a simples alteração de um dos elementos essenciais que definem o cargo público, que é sua remuneração (Regime Jurídico do Servidor Público Civil da União comentado, p. 57). A distribuição da Lei Complementar nº 73/93 não é verdadeira distribuição, portanto, mas transformação do cargo público sem autorização legislativa específica.

8 Além do princípio da isonomia, a atribuição de remunerações distintas para um cargo de “atribuições iguais” viola a regra específica do art. 41, §4º, da Lei nº 8.112/90.

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do perfil verticalizado pelo qual se permite a ascensão às atribuições mais complexas, a partir do provimento derivado em um cargo diferenciado que por elas responde, adquire uma feição horizontal, em que os membros da instituição se encontram todos no mesmo plano e estão todos em condições de assumir as atividades mais simples ou mais complexas, independentemente do estágio funcional em que se encontrem. Ao feixe de atribuições idêntico, nessa estrutura horizontal, corresponde materialmente um único cargo. Em lugar de carreira, portanto, se tem aquilo que a doutrina chama de cargo isolado, isto é, aquele que não permite ascensão para outro de atribuições mais complexas.9

E como isso se reflete na atuação da Advocacia-Geral da União? Em substância, a ausência de estruturação em carreira impede a instituição de incrementar sua eficiência, de um lado pela gradual especialização de seus membros, e de outro pela vinculação de seus postos-chave a profissionais amadurecidos e desenvolvidos pelo processo de encarreiramento.

O primeiro problema diz respeito ao desenvolvimento profissional dos Advogados da União e Procuradores da Fazenda Nacional. Sem o encaminhamento da carreira, a progressão funcional entre as três categorias formalmente existentes não assegura que os membros da instituição sejam progressivamente expostos a funções mais complexas, de modo que aperfeiçoem suas habilidades de forma correspondente às suas novas atribuições. Ao mesmo tempo, as regras de remoção irrestritas e orientadas apenas pela antiguidade produzem resultado diametralmente inverso: os membros mais experientes tendem a buscar tarefas de menor complexidade e responsabilidade, afastadas da administração central, a despeito da maior remuneração que corresponde às categorias superiores.10 Em poucas palavras, o Estado gasta mais com um profissional estagnado, que deixou de progredir funcionalmente, por que a estrutura horizontalizada de organização de pessoal o incentivou à acomodação.

9 Os quadros de servidores normalmente estruturados como cargos isolados são aqueles a que correspondem tarefas de baixa complexidade, como os de motorista, servente, etc., a que são cometidas atribuições que não é materialmente possível o desenvolvimento progressivo de habilidades profissionais voltadas a uma atuação mais eficiente.

10 A consulta às “relações nominais de lotação e exercício” periodicamente divulgadas pela Advocacia-Geral da União, e disponíveis na rede mundial de computadores (<http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=85650&id_site=3&tipo=c>) confirma a dedução lógica de que a organização atual leva a que unidades periféricas da Instituição sejam, em alguns casos, integralmente compostas por membros situados no último estágio da assim chamada “carreira”, ao passo que órgãos de direção superior contam com grande número de membros no estágio inicial.

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Ao mesmo tempo, os postos de maior responsabilidade dentro da estrutura da instituição, como: (i) os órgãos de contencioso que atuam junto a tribunais superiores, cuja atuação se reflete em todo o país, seja em razão do efeito de estabilização gerado pela jurisprudência desses tribunais, seja pela função de orientação e de formulação de estratégias que lhe é própria; (ii) os órgãos de consultoria junto aos Ministérios, que assessoram diretamente a cúpula hierárquica do Poder Executivo, atuando diretamente na formatação jurídica das políticas públicas finalísticas a serem executadas nos Estados; ou (iii) os órgãos da Consultoria-Geral da União que são responsáveis por fixar interpretação de leis e uniformizar entendimentos para toda a AGU, etc., acabam por ser assumidos por membros recém-admitidos no serviço público. Esses profissionais, embora dotados da base técnica sólida que o concurso de ingresso exige, não detêm a qualificação decorrente da especialidade, e por isso não têm condições de prestar serviços à altura do que um efetivo desenvolvimento de carreira poderia proporcionar. Para completar, como já foi demonstrado que a estrutura incentiva a busca de atribuições menos complexas, o quadro de pessoal dos postos de maior importância tende a sofrer uma rotatividade mais acentuada do que o restante da instituição, mantendo-se constantemente ocupados pelos membros menos experientes.

O objetivo da especialização da advocacia pública, assim, acaba por se ver frustrado. A ausência da carreira não incentiva o desenvol-vimento profissional dos membros da instituição, que fica a depender exclusivamente dos esforços pessoais de cada um. Os postos estratégicos tendem a ser ocupados por membros recém-admitidos e por uma mino-ria de cargos de confiança transitórios, comprometendo a eficiência da atividade jurídica.

3 A delegação das atribuições da Advocacia-Geral da União a pessoas estranhas aos cargos da instituição – A ação inconstitucional do administrador público

Falhas na estruturação de instituições de Estado, exatamente como a falha nos alicerces de um edifício, tendem a se constituir elas próprias em causa de novos problemas conjunturais que, ao se acumularem, podem vir a ameaçar a própria integridade da construção. Essa é a

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situação vivenciada pela Advocacia-Geral da União na atualidade, em especial nas suas unidades de consultoria e assessoramento jurídico junto aos Ministérios, mas também, embora em menor grau, junto aos órgãos de direção superior.

Como pudemos ver no item anterior, o fato de os cargos da Advocacia-Geral da União não terem sido estruturados em carreira produz o resultado de que a instituição é incapaz de oferecer advogados adequadamente especializados, ao menos na quantidade necessária, para a Administração federal. Ela pode sim disponibilizar membros de elevada qualificação técnica, aferida pelo concurso de ingresso, mas ela não consegue disponibilizar advogados experimentados pelo tempo e merecimento no exercício da advocacia pública, dotados assim daquelas qualidades únicas pessoais que incrementam a eficiência de sua atuação e o dotam de uma qualificação singular e quase insubstituível. Isso se deve à circunstância natural de que estes, podendo livremente escolher atribuições de baixa complexidade, e ao mesmo tempo conservar os vencimentos mais elevados da assim chamada carreira, são incentivados a optar por essa via mais fácil. A incapacidade da instituição Advocacia-Geral da União em fornecer ao administrador público aquilo de que ele precisa, e que o constituinte de 1988 quis lhe assegurar, por evidente gera reações e consequências indesejadas.

A primeira delas é a ocupação de órgãos da AGU por pessoas estranhas à instituição. Se isto no passado ocorreu por ausência de quadros próprios (o primeiro concurso de ingresso foi realizado apenas em 1996, e os candidatos aprovados empossados em 1998, dez anos após a Constituição), atualmente o fenômeno se deve exclusivamente às suas deficiências estruturais, dentre as quais a inexistência da carreira tem um papel fundamental. O mecanismo pelo qual a ocupação está ligada à omissão do legislador complementar é facilmente demonstrável. Muitos ministros de Estado, que não podem contar com um advogado público especializado para prestar consultoria e assessoramento às suas atividades, caminham na direção de se cercar, ao menos, de advogados de sua confiança pessoal, mesmo que seja para escolhê-los entre profissionais não concursados e nomeados livremente por cargos de confiança. Ou então optam por desenvolver estruturas paralelas, como Secretarias, Assessorias Especiais, cujas funções materiais são de consultoria e assessoramento

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jurídico, de maneira a contornar a Consultoria Jurídica “oficial”. E é compreensível que ajam dessa maneira, muito embora, sabidamente, isto se constitua em uma distorção por diversos ângulos de análise.

Uma dessas distorções é a violação ao concurso público, agravada por se dar em uma função de Estado que a Constituição atribuiu a um órgão organicamente separado do Poder Executivo,11 visando a lhe assegurar maior independência, e cujas funções foram expressamente subordinadas à investidura nas classes iniciais das respectivas carreiras mediante concurso público (art. 131, §2º, da Constituição). Por todos esses fatores, a função de advocacia pública, no âmbito da Administração federal, não pode ser delegada a pessoas estranhas aos quadros da Advocacia-Geral da União,12 e o provimento nos respectivos cargos somente pode ser feito por concurso público, sob pena de ofensa frontal à Constituição.13 Apesar disso, o quadro aqui exposto é disseminado em toda a Administração federal.

Obviamente, o concurso não é uma finalidade em si mesmo: ele quer resguardar a independência técnica do advogado público, por meio da estabilidade e demais prerrogativas que acompanham o cargo, e isso é o que nos leva ao segundo ponto. Trata-se do problema relativo à natureza do vínculo que se estabelece entre o consultor e o ministro responsável por sua nomeação, que é pessoal e exclusivo (pois os servidores públicos, mesmo em cargo de provimento precário, se tornam impedidos de exercer a advocacia). Como é sabido, o advogado, público ou privado, deve guardar independência completa em relação ao seu cliente: é da

11 A afirmação se deve ao próprio texto Constitucional, que trata da Advocacia-Geral da União e das demais funções essenciais à Justiça em Capítulo próprio, destacado do Poder Executivo. A incoerente omissão em se prever maiores níveis de autonomia administrativa e financeira para a Advocacia-Geral da União, entretanto, faz com que na prática mantenha a Instituição “fortes laços de dependência orgânica em relação ao Poder Executivo” (MACEDO. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988, p. 123). Este dado da realpolitik, porém, não prejudica sua autonomia funcional e “não retira a independência dos membros da instituição no exercício de suas competências” (Idem, p. 143).

12 MACEDO, op. cit., p. 55-59.13 “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR Nº 11/1991 DO ESTADO DO

ESPÍRITO SANTO (ART. 12, CAPUT, E §§1º E 2º; ART. 13 E INCISOS I A V) – ASSESSOR JURÍDICO – CARGO DE PROVIMENTO EM COMISSÃO – FUNÇÕES INERENTES AO CARGO DE PROCURADOR DO ESTADO – USURPAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – MEDIDA LIMINAR DEFERIDA – O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos” (STF. ADIn-MC nº 881/ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 02.08.1993, m.v., DJ, p. 15197, 25 abr. 1997).

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essência de seu munus, de seu dever para com a justiça e o direito, que ele esteja sempre em posição de discordar, bem como de manifestar de forma livre e isenta a sua opinião sobre os assuntos que lhe são submetidos. E isto exige liberdade frente ao cliente. No entanto, o provimento precário no cargo, desacompanhado das prerrogativas inerentes à advocacia pública, coloca o advogado nomeado para exercer essas funções em uma posição de subordinação quase completa ao gestor público, deitando por terra o trabalho de isolamento que a Constituição pretendeu iniciar com a institucionalização da Advocacia-Geral, e privando a sociedade do controle de legalidade proporcionado por uma advocacia pública forte e isenta. Se a isso tudo se somar a má intenção do administrador público, e um conluio prévio com seu advogado, tem-se em mesa a receita pronta para casos de corrupção, malversação de recursos públicos etc. Mas não é tudo.

Em um fenômeno de retroalimentação do problema da baixa especialização, o provimento precário também impede que a Advocacia-Geral da União se beneficie da sua condição de instituição permanente para melhorar continuamente a qualidade de seus quadros. O conhecimento específico das matérias jurídicas de competência da advocacia pública, capaz de gerar aquela desejada especialidade tão necessária à eficiência da administração, em lugar de gradativamente se incorporar à instituição, é adquirido por membros temporários que pouco tempo depois se desligam dos quadros da Administração federal, e que, não raro, o utilizarão para litigar futuramente contra a União no contencioso administrativo ou judicial. Em lugar de formar especialistas para a defesa do Estado, assim, a atual estrutura os forma para a iniciativa privada, enquanto incentiva a estagnação de seus membros permanentes.

Uma última consequência perniciosa da inexistência de carreira estruturada é o enfraquecimento da independência do membro da Advocacia-Geral da União, e por consequência, da própria instituição. A desvinculação entre o membro e a sua atividade faz com que esses agentes públicos se tornem facilmente intercambiáveis e substituíveis. Com isso, eles passam a estar sujeitos a pressões indevidas no exercício da função, na medida em que todos são absolutamente fungíveis, podendo ser afastados de seus órgãos de lotação e facilmente repostos. E a própria carreira, em médio prazo, acaba por se ver ameaçada de diluição por

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Estruturação de cargos em carreira na Advocacia-Geral da União 121

meio de fusões e transposições envolvendo outras classes de servidores,14 o que é mais um elemento facilitador das influências políticas em uma atividade que não poderia prescindir da independência.

4 ConclusõesA determinação constitucional de estruturação dos cargos da

Advocacia-Geral da União em carreira, embora possa parecer uma questão de menor importância, tinha um papel fundamental no arcabouço da nova instituição projetada pela Assembleia Constituinte. Tratava-se de um instrumento voltado para o progressivo desenvolvimento profissional e para a especialização de seus membros, destinado a incrementar a eficiência do serviço jurídico da União, e, por via indireta, da ação final do Estado sobre a sociedade. Mais de vinte anos depois, constata-se que o descumprimento da regra pelo legislador complementar de 1993, que estabeleceu uma estrutura de cargos horizontalizada, gerou sérios prejuízos para a afirmação da AGU e para a qualidade dos serviços por ela prestados. Incapacitada de formar e, portanto, de oferecer em larga escala membros especializados para as funções de maior importância na advocacia pública, a instituição assiste à invasão de suas atribuições por pessoas aos seus quadros ou ao próprio serviço público, deixando-se capturar por um círculo vicioso que perpetua essa incapacidade. Para reverter tal tendência, que atualmente se coloca como obstáculo ao projeto de advocacia pública traçado pela Constituição, a reforma da Lei Complementar nº 73/93 deve adotar como prioridade uma verdadeira estruturação das carreiras da Advocacia-Geral da União, com atribuições definidas para cada cargo e com um plano de desenvolvimento profissional planejado e adequado às necessidades da defesa judicial e extrajudicial da União, da consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo. Este é um grande desafio para os gestores de recursos

14 Apenas a fragilidade da Instituição, permitida pela ausência de uma estrutura definida de carreira com funções específicas, é que possibilitou que aberrações como o artigo 19-A da Lei nº 9.028/95, introduzido pela MP nº 2.180-35, tenham tido seus efeitos levados a termo. O dispositivo permitiu que qualquer servidor público federal admitido antes de 1988, desde que bacharel em direito, fosse “transposto” para o cargo de Advogado da União, normalmente para usufruir do nível final da estrutura remuneratória. Como a tal vencimento não corresponde a obrigação de desempenhar as atribuições de mais elevada responsabilidade da Advocacia-Geral da União, a frontal burla ao concurso público não comprometeu o funcionamento da Instituição, que continuou a ser conduzida pelos membros concursados, ao tempo em que se constituiu em excelente negócio para seus beneficiários.

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humanos da AGU, é verdade, mas não nos parece exagero dizer que o futuro da instituição depende de sua coragem e de sua habilidade em enfrentar esse encargo.

Abstract: The article describes the failure of Complementary Law Nr. 73 of 1993, the existing Organic Statute of the Office of the Attorney General of the Union, to organize its offices in career-structure fashion, as previously determined by the 1988 Constitution, and discusses the consequences of this omission.

Referências

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A nova roupagem da autoridade racional-legal – Os novos pressupostos (inclusivos) do Estado Democrático de DireitoFlávia do Espírito Santo BatistaAdvogada da União, com atuação na Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo revisitar a autoridade racional-legal preconizada por Weber, representada pela vinculação jurídica do poder do Estado submetido à Lei, de modo a delinear as novas perspectivas para o paradigma do Estado Democrático de Direito, frente aos anseios da sociedade pluralista.

Palavras-chave: Autoridade racional-legal. Poder do Estado. Max Weber. Legitimação do Estado.

Sumário: Introdução – 1 A autoridade como elemento de legitimação do Estado – 2 Classificação tripartida da autoridade de Weber – 3 A evolução da dominação legal do Estado – 4 Conclusão – Referências

IntroduçãoO presente trabalho visa analisar a evolução normativa do Estado,

com escopo no estudo da autoridade e suas formas de legitimação ao longo da história, tomando-se como ponto de partida as clássicas visões de Marx e de Weber sobre o tema.

Nesta assertiva, ganha relevo o método racional-legal delineado por Weber como forma legítima da utilização da força pelo Estado, forma esta que, sem sombra de dúvidas, moldou os ordenamentos jurídicos atuais.

Em linhas gerais, o Estado é a instituição que detém o poder político, de modo a possibilitar a coexistência humana. Ao desempenhar este papel, tanto atua para reprimir condutas antissociais quanto para promover condutas qualificadas como positivas para a comunidade. Vê-se, portanto, que a organização do poder político mediante instrumentos jurídicos faz-se indispensável à garantia da unicidade estatal.

Não se pode negar que a concepção de Estado até a Idade Média estava centrada na ideia de o poder pertencer ao homem (monarca),

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explicitada nos contornos do Estado absolutista. No decurso da história, dando-se início à era do Constitucionalismo, passou-se a compreender o poder como pertencente às leis.

A expressão Estado de Direito, assim conhecida na vertente contem-porânea, é atribuída ao conjunto de normas referendadas pelo Estado, que predeterminam o facere e o non facere estatal, resguardando-se, assim, as liberdades individuais contra o temido Leviatã.1

Neste compasso, a proteção dos direitos dos cidadãos é consagrada sob a égide do Estado Liberal e aperfeiçoa-se quando do surgimento do Estado do Bem-Estar Social, ocasião em que os direitos sociais e da coletividade ganham evidência na ordem jurídica.

No entanto, infelizmente, os paradigmas constitucionais do Estado Liberal e do Estado Social de Direito não se mostraram suficientes como modelos à satisfação dos interesses e valores das sociedades contemporâneas.

Em decorrência do esgotamento do paradigma do Estado Social, por demasiado assistencialista, vieram à tona problemáticas acompa-nhadas de tentativas de superação da oposição existente entre o Estado Social e a estabilidade econômica.

Iniciou-se então o tempo de um novo paradigma de Estado, qual seja, o Estado Democrático de Direito, visto como um ente que deve atua-ções concretas a seus indivíduos, que agora se tornam sujeitos de Direito.

Neste momento, abandona-se o positivismo e a interpretação literal das normas, para que a sociedade possa interpretar os preceitos cons-titucionais de modo aberto. A interpretação sistemática e a cultura aos princípios rompem de vez com a antiga roupagem kelseniana dada às leis.

Migra-se então para a metafísica do Direito. Afirma-se o Direito como integridade. Passam a existir direitos decorrentes das discriminações inversas, diante da crescente estratificação da sociedade.

1 Sobre o tema, não seria demais transcrever singular passagem de Thomas Hobbes, em sua obra Leviatã: “Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do testado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum” (Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf>. Acesso em 14 jul. 2012, p. 60).

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Para esse novo paradigma de Estado-Administração, o cidadão é visto como cliente de uma Administração Pública garantidora de bens e serviços. Nesta perspectiva, surge um novel espaço às interpretações construtivistas e à participação popular, com vistas à aproximação do Direito aos reais anseios da sociedade pluralista.

1 A autoridade como elemento de legitimação do EstadoO Estado, segundo a concepção analítica, traduz-se em uma

comunidade humana, fixada em um território, que exerce dentro destes limites o poder político, tendo por finalidade a busca do bem comum.

A autoridade do Estado é necessária à paz social, assim como para o próprio desenvolvimento da sociedade. Neste contexto, a submissão às leis (método racional-legal, na visão de Weber) é a única forma de ser mantido o equilíbrio entre os vários interesses conflitantes inerentes à condição humana, sem a utilização arbitrária da força.

Para Norberto Bobbio,2 se for formulada em termos jurídicos, essa definição que Weber denomina sociológica, e restar afirmado, como o fez Kelsen, que o Estado é aquela ordem jurídica à qual se atribui, para a aplicação das suas normas, o uso exclusivo do poder coativo, e admitir-se que, ao lado do poder coativo, há em cada grupo humano outras duas formas principais de poder — o poder ideológico e o poder econômico —, pode-se então assegurar que o monopólio da força ou o uso exclusivo do poder coativo é condição necessária para a existência do Estado.

Lendo-se nas entrelinhas as palavras do ilustre jurista, tem-se que a dominação (autoridade-legitimidade) é elemento indispensável à manutenção da ordem estatal.

1.1 A visão da dominação em Marx e em WeberDiscutir o Estado em Karl Heinrich Marx (1818-1883) torna-se

uma tarefa árdua, uma vez que não há uma obra específica deste autor que sintetize a sua teoria sobre o Estado, em virtude do seu falecimento antes da conclusão dos volumes II e III da sua obra O capital.

Ousando sobre o tema, pode ser dito que Marx compreende o Estado como uma relação entre a infraestrutura e a superestrutura. A

2 BOBBIO. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, p. 134.

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infraestrutura é a base econômica (modo de produção), sendo composta pelo conjunto das relações de produção (classes sociais) necessárias ao desenvolvimento das forças produtivas (força de trabalho e meios de produção). Neste mote, a superestrutura constitui-se pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela psicologia individual e pela ideologia social (religião, ciências sociais, cultura e filosofia).

Na visão marxista, o Estado é o aparelho cuja principal função é impedir que o antagonismo de classe degenere em luta. Entretanto, este mesmo Estado não se atém a mediar os interesses das classes opostas, mas acaba por contribuir e reforçar a manutenção do domínio da classe dominante sobre a classe dominada.

Partindo-se desta premissa, não estaria o Estado encarregado de representar a sociedade, promovendo o bem comum e o respeito ao inte-resse geral. Ao contrário, o Estado atua como um instrumento de dominação da classe mais forte, tornando-se um gerente dos interesses burgueses.

Para Chilcote (1998), os elementos essenciais do pensamento de Marx, numa visão crítica da teoria do Estado, são a classe dominante, a superestrutura e a base estrutural, a realidade e a ideologia, as forças materiais e as relações de produção, bem como os modos de produção. O Estado existe ao lado da classe dominante. Por sua vez, a autoridade dominante é hierárquica e relacionada com o Estado e a classe dominante. As crenças e as simbologias da cultura são concebidas como parte da superestrutura da ideologia e da falsa consciência. A exploração e a autoridade ilegítima são os parâmetros do domínio da classe dominante.3

Diferentemente de Marx, que estava preocupado com as relações sociais decorrentes do modo de produção capitalista, Karl Emil Weber (1864-1920) tinha como ponto de partida para sua análise do Estado a ação social, a conduta humana dotada de sentidos.

Weber não via a dominação da mesma forma que Marx, como algo inconsciente. Pelo contrário. Ele acreditava que a dominação pudesse ser consciente, pois, para este autor, mesmo na submissão pacífica aos ditames do Estado, há dominação. Decerto, na visão weberiana a dominação estará sempre presente. A abordagem deste tema em Weber infere-se na análise da dominação como correta, aceita e legítima.

3 CHILCOTE. Teorias de política comparativa: a busca de um paradigma reconsiderado, p. 132-133.

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Em sua obra Economia e sociedade, este renomado autor assim define o Estado:

O Estado, do mesmo modo que as associações políticas historicamente precedentes, é uma relação de dominação de homens sobre homens, apoiada no meio da coação legítima (quer dizer, considerada legítima). Para que ele subsista, as pessoas dominadas têm que se submeter à autoridade invocada pelas que dominam no momento dado. Quando e por que fazem isto, somente podemos compreender conhecendo os fundamentos justificativos internos e os meios externos nos quais se apóia a dominação.4

Conclui-se, sobretudo, ser o Estado moderno uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pre-tendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da dominação e reuniu para este fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes supremos.5

2 Classificação tripartida da autoridade de WeberO Estado para Weber é definido como uma comunidade humana

que pretende o monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território. Desta feita, observa-se na visão weberiana dois elementos essenciais que constituem o Estado, quais sejam, a autoridade e a legitimidade. Derivam destes dois elementos três tipos básicos de dominação: a tradicional, a carismática e a racional-legal.

A dominação tradicional caracteriza-se por encontrar legitimidade e validade nas ordenações e poderes de mando herdados pela tradição. Nela, a relação entre Estado-indivíduo sustenta-se pela crença dos subordinados nas qualidades superiores do líder.

A dominação carismática é um tipo de apelo que se opõe às bases de legitimidade da ordem estabelecida e institucionalizada. O líder carismático, em certo sentido, é sempre revolucionário, na medida em

4 WEBER. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, p. 526.5 BOBBIO, op. cit., p. 529.

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que se coloca em oposição consciente a algum aspecto estabelecido da sociedade em que atua.

A dominação racional-legal, que será melhor abordada no presente trabalho na seção 2, concretiza-se ao encontrar legitimidade no Direito estatuído de modo racional, com pretensão de ser respeitado pelos membros de associação. Neste contexto, o Direito racional é um conjunto abstrato de regras a serem aplicadas em casos concretos, com fins de perpetuar a dominação exercida pelo Estado.

Novamente utilizando-se da maestria de Chilcote (1994, p. 132), pode-se argumentar que para Weber a autoridade dominante baseia-se em crenças e símbolos em relação a tipos ideais: tradicional, carismático e racional. A rotinização reflete a socialização crescente. O individualismo mais o voluntarismo (obediência) e o controle legítimo são os parâmetros da liberdade.6

2.1 A racionalidade da dominação legalO monopólio da força é a condição necessária, mas não suficiente

para a existência de um grupo político que possa ser definido como Estado. Em todas suas passagens sobre este tema, Weber acrescenta que essa força deve ser legítima.

Quanto maior o aparato de dominação a dar à justiça7 um caráter racional quanto ao conteúdo e à forma, eliminando-se meios processuais irracionais, confere-se sistematização e previsibilidade ao Direito material. A autoridade racional-legal mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas pela própria ordem.8

6 CHILCOTE, op. cit., p. 132.7 Não seria demais acrescentar ao presente trabalho, ainda que em tímida referência, para não se fugir ao

tema central de debate, pequena passagem de Aristóteles sobre a Justiça: “No que tange à justiça e à injustiça temos que indagar precisamente que tipos de ações elas concernem, em que sentido é a justiça uma mediania e entre quais extremos o ato justo é mediano [...]. Por outro lado, vimos que o transgressor da lei é injusto e aquele que a obedece, justo. Fica, portanto, claro que todas as coisas lícitas são justas num sentido da palavra, pois aquilo que é legal é decidido pela legislação e às várias decisões desta denominamos regras de justiça. Ora, todas as várias promulgações da lei colimam ou o interesse comum de todos, ou o interesse dos mais excelentes, ou o interesse dos que detêm o poder, ou algo do gênero, de sorte que, em um de seus sentidos, o termo ‘justo’ é aplicado a qualquer coisa que produz e preserva a felicidade, ou as partes componentes da felicidade da comunidade política [...]. A justiça, então, nesse sentido é virtude perfeita, ainda que com uma qualificação, a saber que é exibida aos outros [e não no absoluto]. Eis a razão porque a justiça é considerada amiúde como a virtude principal, não sendo ‘nem a estrela vespertina ou a matutina’ tão sublimes, de modo que dispomos do provérbio na Justiça se encontra toda a Virtude somada” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 145-148).

8 WEBER, op. cit., p. 100.

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Destarte, quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, com o desenvolvimento das estruturas buro-cráticas do Estado, toma a forma que hoje é conhecida por Administração Pública. De outra sorte, o poder político submete-se a uma progressiva juridicidade, consistente na sua contínua passagem do plano da força bruta para a dominação legal. Presentes estes fatores, está plantada a semente para o desenvolvimento do arcabouço normativo de um Estado.

3 A evolução da dominação legal do EstadoNa Baixa Idade Média, o Direito, apesar de mais diferenciado do

ponto de vista territorial; estava sujeito a grandes correntes de influência, nomeadamente às advindas do Direito da Igreja, do Direito letrado e do Direito romano.9

A escola do Direito Natural dominou o pensamento jurídico entre os séculos XVII e XVIII. Sob a influência do pensamento jurídico desta escola, foram efetuadas as grandes codificações do século XVIII e do início do século XIX.

No âmbito do Direito público, é preciso constatar que as consti-tuições dos diferentes países receberam muito das constituições france-sas de 1791, 1814 e 1830 e também do Direito constitucional inglês e americano. A partir desta época, o Direito público continuou a evoluir. O regime político tornou-se cada vez mais democrático pela extensão do direito de sufrágio e pela participação ativa dos governados na ação dos governantes; a intervenção do Estado estendeu-se, sobretudo, nos domínios econômicos e sociais.10

A terminologia Estado de Direito cultivou maiores contornos na segunda metade do século XVIII e início do XIX, com o surgimento da doutrina liberal, encampada pela Revolução Americana e pela Revolução Francesa, as quais vieram a consolidar um processo iniciado anteriormente de limitação do poder estatal frente aos indivíduos. Os detentores do poder passam a ter seu arbítrio cerceado por princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade.11

9 Cf. GILISSEN. Introdução histórica ao direito, p. 14.10 ibidem, p. 15.11 Para maior contextualização dos marcos históricos, leia-se a presente passagem: “A lei já desempenha

um papel importante como fonte de direito a partir dos sécs. XV e XVI. O desenvolvimento dos grandes Estados modernos, o fortalecimento do poder monárquico, o enfraquecimento do feudalismo, da Igreja

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Aliás, segundo esta assertiva, poder, que antes poderia ser definido como um Direito abstrato, constituído apenas em ideias, converte-se e aperfeiçoa-se em Direito positivo, garantindo concretude aos preceitos normativos postos.

Ora, é de clareza hialina que o poder político se justifica como exigência indispensável à organização do Estado, cabendo-lhe estabelecer as regras e aplicá-las, no tocante a sua própria estruturação (Estado-poder), e a sua relação com os particulares (Estado-sociedade).

Nas palavras de Weber:

O formalismo jurídico específico, ao fazer funcionar o aparato jurídico como uma máquina tecnicamente racional, concede ao interessado individual no direito o máximo relativo de margem para sua liberdade de ação e, particularmente, para o cálculo racional das conseqüências e possibilidades jurídicas de suas ações referentes a fins. Trata o procedimento jurídico como forma específica de uma luta de interesses pacífica, ligando esta a determinadas “regras do jogo”, fixas e invioláveis. Tanto o primitivo processo de expiação entre os clãs quanto a justiça da assembléia forense têm um direito probatório rigorosamente vinculado a determinadas formas. Em sua origem, como já vimos, este fenômeno estava condicionado por idéias mágicas.12

Ao parafrasear Bobbio, pode-se dizer que “bom governo é aquele do governante que exerce o poder em conformidade com as leis preestabelecidas”.13

Trilhando este mesmo caminho, vingam as constituições, cartas estas que guardam inspiração no princípio da responsabilidade política e jurídica, no equilíbrio e na separação dos poderes, na garantia jurídica dos direitos civis e no controle periódico dos governantes através de eleições livres mediante sufrágio universal.

Enfim, o antigo ideal do governo das leis encontrou no Consti-tucionalismo moderno a sua forma institucional e, definitivamente, a sua realização em uma série de institutos aos quais um moderno Estado Democrático não pode renunciar.14

e do espírito particularista, levam a dar valor de lei à vontade do soberano: ‘Se o rei quer, tal quer a lei’ (Loisel, Institutes Coustumières, 1607). As ordonnances (*) dos reis de França são muito numerosas; certas ordonnances de Luís XI e de Luís XV serão retomadas quase textualmente nos códigos napoleônicos” (Ibidem, p. 16).

12 Ibidem, p. 101.13 BOBBIO, op. cit., p. 206.14 Ibidem, p. 210.

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3.1 O paradigma do Estado Liberal de Direito – Das garantias individuaisRepise-se que na passagem do Estado absolutista para o Estado

Liberal, foram incorporadas à ciência do Direito15 influências advindas das revoluções francesa e norte-americana.

No decorrer do século XIX consolida-se o Estado Constitucional (clássico), que abandona as linhas jusnaturalistas16 e passa a ter a lei como expressão máxima da razão. Estava então em voga a corrente positivista do Direito, que buscava dar unidade a um conjunto de normas fragmentadas, de modo a afastar as incertezas e o arbítrio das autoridades julgadoras.

Registre-se que a teoria liberal está alicerçada sobre a ideia de liberdade do indivíduo em face do Estado. Sendo assim, embora o Estado seja uma manifestação da vontade inter partes (pacto social), são necessários mecanismos para procedimentalizar o exercício (legítimo) de seu poder. John Locke (1632-1704)17 foi um dos precursores ao afirmar que o indivíduo possuía o direito à liberdade e à propriedade.

Assim, a teoria do Estado Liberal, a qual se fundamentou na separação dos poderes preconizada por Montesquieu,18 juntamente com a obra Contrato social, de Rousseau,19 constituíram marcos fundamentais para a formação do Estado nos moldes atuais.

Nas sociedades liberais o Estado reveste-se de instrumentos que buscam a realização da liberdade, a limitação dos poderes dos governantes e a preservação dos direitos fundamentais como garantia da cidadania. Enfim, não há dúvidas do compromisso firmado para com os direitos

15 Para Luís Roberto Barroso, “O Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural, concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação da pacificação social” (BARROSO. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. Revista de Direito Administrativo, p. 13).

16 O mesmo autor traz a definição de jusnaturalismo: “O termo jusnaturalismo identifica uma das principais correntes filosóficas que tem acompanhado o Direito ao longo dos séculos, fundada na existência de um direito natural. Sua idéia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em si, legitimado por uma ética superior, e estabelece limites à própria norma estatal. Tal crença contrapõe-se a outra corrente filosófica de influência marcante, o positivismo jurídico, que será examinado mais à frente” (BARROSO, op. cit., p. 17-18).

17 Cf. LOCKE. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos.18 Cf. MONTESQUIEU. O espírito das leis.19 Para o autor, “a passagem do Estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudança consi-

derável, substituindo em sua conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas ações a moralidade que anteriormente lhes faltava. Foi somente então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e ao direito ao apetite, fizeram com que o homem, que até esse momento só tinha olhado para si mesmo, se visse forçado a agir por outros princípios e consultar a razão antes de ouvir seus pendores” (ROUSSEAU. Contrato social).

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políticos e civis. Todo este escopo, por seu turno, deve estar alicerçado nos balizamentos impostos aos governantes, evitando-se o poder ilimitado da autoridade, sob pena de ascensão de regimes de exceção.

Nesta acepção, o Estado Liberal desempenha um papel negativo, ou seja, abstém-se de intervenção na sociedade, ao regular-se de modo autônomo, como instrumento de regulação das liberdades de seus membros. Trata-se, pois, da concepção minimalista do Estado, pautada tão somente para fins da segurança individual, em face do próprio Estado.

Não se pode olvidar, contudo, que Estado Liberal preconizava a liberdade dos indivíduos, porém, limitada ao conteúdo legal, estando a atuação dos movimentos sociais, portanto, também restrita, sujeitando-se à legalidade.

Em passagem sobre o tema, Andrew Vicent assevera:20

Afirmou-se que o liberalismo estava comprometido com um Estado mínimo, restrito ás tarefas de ordem interna e de defesa externa, e distinguindo esfera pública de esfera privada. Apresar de alguns liberais clássicos periodicamente assumirem paroxismos de ansiedade em relação ao modo como limitar o Estado, são incapacitados pelo fato de o constitucionalismo liberal ser uma teoria do Estado e dizer respeito ao bem público. Se há limitações, estas são arquitetadas dentro do Estado. O sine qua non das limitações é o próprio Estado. A suposta fronteira entre o público e privado muda constantemente. O Estado liberal está formalmente comprometido com o respeito ao domínio privado, e ainda assim, como em seções anteriores, não há nenhuma norma rigorosamente definida para distinguir entre privado e público. Admitidamente em tempo de guerra os Estados liberais, como era de se esperar, alteram as fronteiras.

Neste momento histórico, o Direito reduzia-se ao conjunto de leis positivadas postas enquanto normas pelo legislador. Tal panorama mundial vem a se modificar com a derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha,21 movimentos estes que ascenderam ao poder sob o pálio de suas constituições pátrias.

20 VICENT. Ideologias políticas modernas, p. 58.21 Sobre o julgamento de Adolf Eichmann, o qual retrata toda a dialética existente entre lei, moral e Direito,

ver obra de Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

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3.2 O paradigma do Estado Social de Direito – Dos direitos sociaisO Estado Liberal não foi capaz de saciar as necessidades dos

diversos grupos sociais. Sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, constatou-se que, para o adequado exercício dos direitos civis e políticos, mostrava-se necessário que aos indivíduos fossem asseguradas condições mínimas de vida e bem-estar.

Chegou-se à conclusão de que os direitos fundamentais de pri-meira e segunda gerações formavam um conjunto uno e indissociável, constatando-se que a liberdade individual afigura-se como mera ilusão caso não fosse acompanhada de um mínimo de igualdade social.22

Sob esta conjuntura histórica, o Estado Social representava efetiva-mente uma transformação superestrutural do Estado Liberal, por buscar a superação das desigualdades sociais. Fez-se, então, uma releitura dos primeiros direitos garantidos formalmente (liberdade e propriedade), à luz da nova demanda social, já que o velho liberalismo não trazia solução alguma às contradições sociais.

Como a liberdade no Estado Liberal não podia mais ser considerada como mero desdobramento da legalidade estrita, floresceram as leis sociais e coletivas, de modo que fossem minoradas as diferenças entre os indivíduos menos favorecidos. Ganhou espaço o conceito de igualdade material, na medida em que tal mudança na atuação estatal não se limitou à condecoração de direitos chamados de 2ª geração (direitos coletivos e sociais), em detrimento aos de 1ª geração (direitos individuais).

O Estado Social, em síntese, passou a representar uma transformação efetiva das instituições jurídicas e políticas, de modo que o sujeito passivo dos direitos sociais é o próprio Estado, por ser o responsável pela implementação desta nova categoria de direitos, quais sejam, o direito à educação, à saúde, à previdência social, ao lazer, entre outros.

Ingo Sarlet23 traduz com maestria esta evolução entre o paradigma do Estado Liberal e a nova roupagem dada ao Estado Social:

A nota distintiva dos direitos sociais é sua dimensão positiva, uma vez que não mais estamos diante de situações nas quais o que se busca é evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual; pelo contrário, o

22 COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 337.23 SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 56-57.

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que se pretende, com o reconhecimento dos direitos sociais, é a garantia de participação do indivíduo no bem-estar social. Não se cuida mais, portanto, de liberdade “do” e “perante” o Estado, e sim de liberdade “por intermédio” do Estado.

Seguindo estas vertentes, as constituições incorporam em seus textos normas e princípios aptos a garantir (e mesmo a exigir) esta atuação estatal, de modo a referendar a materialização dos direitos fundamentais preceituados constitucionalmente.

Acerca do tema, leciona Habermas:24

Quando se parte desse modelo, a ordem jurídica materializada do Estado social — a qual não consiste apenas, e em primeira linha, em programas condicionais claramente delineados, pois inclui objetivos políticos e uma fundamentação em princípios — pode aparecer como um abalo, ou melhor, como uma corrupção da arquitetônica constitucional. Comparada à tese positivista da separação, a materialização do direito carrega atrás de si uma “remoralização”, a qual afrouxa a ligação linear da justiça às vantagens do legislador político, na medida em que a argumentação jurídica se abre em relação a argumentos morais de princípio e a argumentos políticos visando à determinação de fins. As normas de princípio, que ora perpassam a ordem jurídica, exigem uma interpretação construtiva do caso concreto, que seja sensível ao contexto e referida a todo o sistema de regras.

Abandonou-se, assim, o formalismo da lei para se mergulhar na efetividade da norma, na busca incessante pelo fim das desigualdades sociais, sem, contudo, abandonar o sistema capitalista de produção.

3.3 O paradigma do Estado Democrático de Direito (inclusivo)Se de um lado o modelo liberal consagrou apenas liberdades for-

mais, de outra sorte, o modelo social se mostrou inadequado, pela im-propriedade da política assistencialista realizada, em razão da incansável procura pela redução das desigualdades. Chega então a era do Estado Democrático de Direito que, embora incorpore entre seus dogmas a filosofia igualitária presente no socialismo, não está dissociado do modelo capitalista de produção.

Os direitos sociais referem-se agora à dimensão globalizada, inte-grada (não excludente e não refratária) almejando-se a máxima realização

24 HABERMAS. Direito e democrática: entre facticidade e validade, v. 1, p. 305-306.

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da isonomia e da proporcionalidade, sem, contudo, colocar em xeque a estabilidade econômica do Estado.

Acerca do tema, Marcelo Neves25 assim discorre:

O princípio da igualdade é o núcleo da cidadania. Contudo, esta — com-preendida aqui não no seu sentido técnico-jurídico, mas sim como mecanismo jurídico-político de inclusão social — apresenta-se em uma pluralidade de direitos reciprocamente partilhados e exercitáveis contra o Estado. Não se trata de um conceito estático. Pode-se afirmar que há uma permanente amplia-ção da cidadania com a emergência de novos direitos. Assim, é que se pode constatar uma evolução do conceito de cidadania de um sentido estrito para uma concepção ampla.

O ordenamento jurídico, na vertente pós-positiva, emerge como um sistema normativo entrelaçado por regras e princípios, os quais desempenham o papel de densificar os preceitos programáticos contidos nas constituições,26 de modo a romper com a valorização da legalidade estrita e privilegiar a interpretação como meio de composição de conflitos, garantindo-se, desse modo, a legitimidade do Estado diante dos novos anseios da sociedade.

Neste norte, enfatiza-se que para a validade dos direitos funda-mentais não se pressupõe uma uniformidade. Konrad Hesse, ao tratar da importância da unidade política de uma Constituição, explicita a pre-ocupação em se garantir um processo político livre, com vistas a limitar o papel do Estado, para restarem garantidas as liberdades individuais. Veja-se peculiar ensinamento de Iris Marion Young:

La unidad política que debe ser constantemente perseguida y conseguida en el sentido aquí adoptado es una unidad de actuación posibilitada y realizada mediante el acuerdo o el compromiso, mediante el asentimiento tácito o la simple aceptación y respeto, llegado el caso, incluso, mediante la coerción realizada con resultado positivo; en una palabra, una unidad de tipo funcional. La cual es condición para que dentro de un determinado

25 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, p. 175.26 Como exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, trouxe em

seu preâmbulo forte vertente principiológica, verbis: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. Preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.

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territorio se puedan adoptar y se cumplan decisiones vinculantes, para que, en definitiva, exista “Estado” y no anarquía o guerra civil.27

Peter Häberle inova ao invocar a sociedade para a interpretação das normas constitucionais, colocando em voga a interpretação pluralista da Constituição, verbis:

A análise até aqui desenvolvida demonstra que a interpretação consti-tucional não é um “evento exclusivamente estatal”, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático. A esse processo tem acesso potencialmente todas as forças da comunidade política O cidadão que formula um recurso constitucional é interprete da Constituição tal como partido político que propõe um conflito entre órgãos ou contra o qual se instaura um processo de proibição de funcionamento.28

Por certo, em razão da materialização do Direito,29 resultante do modelo paradigmático social e de bem-estar social, o Estado vivencia um momento de vasta ampliação em sua esfera de atuação.

Nas palavras de Habermas, verbis:

Não houve nenhuma mudança no pensamento acerca da autonomia privada, o qual se expressa através do direito a um máximo de liberdades de ação subjetivas iguais para todos. No entanto, modificaram-se os contextos sociais nos quais deve realizar-se harmoniosamente a autonomia privada de cada um. Junto com sua autonomia privada, o indivíduo recebe o status de sujeito de direito; no entanto, esse status não se apóia somente na proteção de uma esfera de vida privada em sentido sociológico, mesmo que aqui seja o lugar onde a liberdade jurídica pode comprovar-se como possibilidade de liberdade ética.30

27 HESSE. Escritos de derecho constitucional, p. 8.28 HÄBERLE. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição

para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 23-24.29 No que concerne à materialização dos direitos, não se poderia deixar de registrar certa crítica da sempre

presente autora Iris Marion Young, que, ao analisar o paradigma distributivo, enfatiza que se conceitua a justiça social em modelos finalistas, ao invés de fixar-se nos processos sociais. “La definición distributiva de la justicia, a menudo, incluye, sin embargo, bienes sociales no materiales tales como derechos, oportunidades, poder y autoestima. Lo que marca el paradigma distributivo es una tendencia a concebir la justicia social y la distribución como conceptos coextensivos. [...]. El paradigma distributivo de justicia podría ser sesgado en el sentido de centrarse en distribuciones fácilmente identificables tales como la distribución de cosas, ingresos o puestos de trabajo. Sin embargo, su atractivo y simplicidad consiste en la capacidad para dar cabida a cualquier cuestión de justicia incluyendo aquellas que atañen a la cultura, la estructura de toma de decisiones y la división del trabajo. [...] Se conceptualiza la justicia social ante todo en términos de modelos finalistas, en vez de centrarse en los procesos sociales” (YOUNG. La justicia y la política de la diferencia, p. 33-46).

30 HABERMAS. Direito e democrática: entre facticidade e validade, v. 2, p. 137.

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Nesta perspectiva, o Estado Democrático de Direito fomenta as interpretações construtivistas. Discute-se o papel da Constituição, do Parlamento e do próprio Poder Judiciário (atuação contra majoritária),31 frente à necessidade de densificação das normas programáticas, abstratas em sua essência.

Ressalte-se que a releitura do paradigma anterior (Liberal-Social) não ocorre apenas no âmbito dos direitos individuais. Frise-se que o princípio da separação de poderes também é reinterpretado: ao Poder Executivo são atribuídos novos mecanismos jurídicos e legislativos de intervenção direta e imediata na economia e na sociedade civil, em nome do interesse coletivo, público, social e nacional.

Ao Poder Legislativo, por sua vez, além de sua atividade típica, com-pete o exercício de funções de controle, ou seja, fiscalização e apreciação da atividade da Administração Pública e da atuação econômica do Estado.

Outrossim, as regras de accountability já se encontram delineadas no próprio texto constitucional, como regras de observância obrigatória a todos os braços do Estado.

31 Acerca da atuação contramajoritária desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal, confira-se as transcrições contidas no Informativo nº 626 de 2011, no qual foi feita referência ao julgamento da ADI nº 4.277/DF e da ADPF nº 132/RJ, as quais trataram da união homoafetiva. “Examino, agora, Senhor Presidente, tema que, intimamente associado ao presente debate constitucional, concerne ao relevantíssimo papel que incumbe ao Supremo Tribunal Federal desempenhar no plano da jurisdição das liberdades: o de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica. Em um dos memoriais apresentados a esta Suprema Corte (e, aqui, refiro-me, de modo particular, àquele produzido pelo Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual), pôs-se em relevo a função contramajoritária do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, considerada a circunstância de que as pessoas que mantêm relações homoafetivas representam ‘parcela minoritária [...] da população’, como esclarecem dados que a Fundação IBGE coligiu no Censo/2010 e que registram a existência declarada, em nosso país, de 60.000 casais homossexuais. Esse aspecto da questão talvez explique a resistência que as correntes majoritárias de opinião, representadas no Congresso Nacional, opõem às propostas de incorporação, ao sistema de direito positivo, de inovações fundadas nas transformações por que passa a sociedade contemporânea. O Poder Legislativo, certamente influenciado por valores e sentimentos prevalecentes na sociedade brasileira, tem se mostrado infenso, no que se refere à qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar, à necessidade de adequação do ordenamento nacional a essa realidade emergente das práticas e costumes sociais. Tal situação culmina por gerar um quadro de submissão de grupos minoritários à vontade hegemônica da maioria, o que compromete, gravemente, por reduzi-lo, o próprio coeficiente de legitimidade democrática da instituição parlamentar, pois, ninguém o ignora, o regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários. É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade e da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito” (Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 03 ago. 2012).

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Mais uma vez, Habermas32 preceitua sobre os atores da sociedade pluralista:

Na medida em que funcionam como uma espécie de pano de fundo não temático, os paradigmas jurídicos intervêm na consciência de todos os atores, dos cidadãos e dos clientes, do legislador, da justiça e da administração. E, com o esgotamento do paradigma do Estado social, vieram à tona problemas relevantes para os especialistas em direito. As tentativas da doutrina jurídica visando superar a oposição entre Estado social e direito formal burguês, criando relações mais ou menos híbridas entre os dois modelos, promoveram, ou melhor, desencadearam uma compreensão reflexiva da constituição: e tão logo a constituição passou a ser entendida como um processo pretensioso de realização do direito, coloca-se a tarefa de situar historicamente esse projeto. A partir daí, todos os atores envolvidos ou afetados têm que imaginar como o conteúdo normativo do Estado democrático de direito pode ser explorado efetivamente no horizonte de tendências e estruturas sociais dadas.

Salienta-se, por fim, que o conjunto normativo no verdadeiro Estado de Direito Democrático, para que este seja eficazmente legítimo, necessita superar o positivismo estático que outrora imperou, para, sob esta nova perspectiva, promover a inclusão social e garantir a sempre desejada unicidade estatal.

Sobre o tema, leciona o professor Marcelo Neves:33

As discriminações afirmativas ou inversas rompem com a concepção universalista clássica dos direitos dos cidadãos, abrindo-se fragmentariamente com relação às diferenças e condições particulares de grupos minoritários, sem que disso resulte negação do princípio da igualdade. Há apenas a pluralização da cidadania

Observa-se, ainda, que a legitimação do Estado não se define somente com a justificação do Direito, mas com a ação consensual des-tinada a produzir adesão e integração social. O processo de legitimação surge não por temor ou obediência, mas porque os atores sociais reconhecem tal condição como boa e justa.34

Vencido o despotismo político (da lei), trata-se agora de vencer a batalha contra o despotismo social. Nesta toada, é preciso redescobrir

32 Ibidem, p. 131.33 NEVES, op. cit., p. 178.34 WOLKMER. Ideologia, Estado e direito.

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a sociedade como lugar subjacente ao Estado, no qual o indivíduo desenvolve a sua própria personalidade e persegue os próprios interesses, ressaltando evidente a importância do fator associativo como momento intermediário entre indivíduo e Estado.35

Para tanto, é indispensável a participação da sociedade nas escolhas feitas pelo Estado-legislador, para que as normas produzidas alcancem a todos.

A concepção de democracia elaborada por Schumpeter (1961) articula em torno do protagonismo central do povo, da delegação e da representatividade, capaz de produzir uma vontade coletiva, alicerçada na noção de soberania popular do governo do povo, para o povo e pelo povo. Contudo, para fazerem sentido as palavras delegação e representação, tais conceitos devem referir-se não ao cidadão isolado, mas ao povo em geral, que delegara seu poder ao Parlamento, órgão do Estado que representa.36

Santos (2002) traz a ideia de democratização da democracia e da representação, lastreada na implementação de processos participativos perante a sociedade civil, de modo que a política fosse pensada além dos aspectos institucionais.37

De mesma sorte, Dahl (1997) considera a democratização como formada por duas dimensões: contestação pública (liberalização) e direito de participação (inclusividade).38 Na medida em que um sistema torna-se mais competitivo ou mais inclusivo, os políticos buscam o apoio dos grupos que passam a participar mais ativamente da vida política.39

Seguindo-se esta mesma vertente, tem-se que o pluralismo político representa, na seara política, o reconhecimento de que vários partidos possuem igual direito ao exercício do poder político, representando, assim, uma das mais importantes características da democracia moderna, ao restar guarnecido o posicionamento de setores minoritários.

A democracia pressupõe a dignidade da política, que, por sua vez, prima por derivar de um procedimento submetido ao princípio majoritário com respeito às minorias discordantes. A integração social,

35 Cf. BOBBIO, op. cit., 32836 Cf. SCHUMPETER. Capitalismo, socialismo e democracia, p. 300-307.37 Cf. SANTOS. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.38 Cf. DAHL. Poliarquia, p. 29.39 Ibidem, p. 43.

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frise-se, não se faz apenas mediante programas de inclusão estruturados pelos Governos. É preciso que a esfera pública seja constituída pela participação dos cidadãos, devendo a Administração Pública criar mecanismos de participação para que as escolhas feitas pelo Estado sejam antes compartilhadas pelos diversos grupos sociais presentes na sociedade estratificada.

4 ConclusãoNão há como negar que os paradigmas constitucionais do Estado

Liberal e do Estado Social de Direito não se mostraram suficientes como modelos aptos à satisfação dos interesses e valores que informam as sociedades pluralistas.

É cediço que modelo liberal consagrou apenas liberdades formais, e, por sua vez, o modelo social se mostrou ineficaz, em razão da inadequada política assistencialista desenvolvida.

Nesse contexto, o advento do Estado Democrático de Direito representou, grosso modo, a junção entre os direitos de cunho individualista, garantidos no Estado Liberal, e os direitos sociais, oriundos da era do Estado do Bem-Estar Social. Contudo, a busca pelo fim das desigualdades sociais foi racionalizada, de modo a não interferir na seara econômica do Estado, capitalista, evidentemente.

Os direitos sociais, ou melhor, fundamentais, na vertente pós- positiva, referem-se à dimensão globalizada, imanente à sociedade plu-ral, que passa a ser constituída não apenas por cidadãos, mas sim por sujeitos de Direito. O ordenamento jurídico abandona o formalismo legal e passa a ser regido por um sistema normativo composto por regras e princípios, no afã de serem concretizados os preceitos programáticos contidos nas constituições.

O novo paradigma do Estado Democrático de Direito revisita a ideia de liberdade anteriormente preceituada no Estado Liberal. Antes, o direito à liberdade possuía status negativo, mais próximo da defesa do cidadão como indivíduo. Agora, no Estado Democrático, o caráter libertatis torna-se positivo, de forma a ser o ente estatal demandado a suprir carências da sociedade.

Soma-se a este conceito o emblema da interpretação construtivista. Para este cenário, a interpretação dos princípios referendados pelas cons-tituições democráticas é o ponto de partida para qualquer atuação estatal.

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Todo este prólogo na intenção de se construir uma sociedade (mais) justa e igualitária. Sem dúvida, está por vir um novo Estado-paradigma, onde o papel (harmonia) dos poderes estatais junto à sociedade será desenhado sob nova perspectiva.

Abstract: This article aims to revisit the rational-legal authority as defined by Weber, represented by the state power submission to the law, in order to project new perspectives on the paradigm of a Democratic State vis-à-vis the expectations of a pluralistic society.

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O direito à moradia entre a norma e a realidade – O caso do Jardim Botânico do Rio de JaneiroArmando Miranda FilhoAdvogado da União. Aluno regular do Curso de Mestrado em Direito e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Membro da Coordenação Geral Jurídica de Patri-mônio da União na Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde setembro de 2008.

Resumo: O artigo pretende demonstrar o distanciamento existente, no Brasil, entre o discurso normativo e a prática jurídica quanto ao direito à moradia em assentamentos informais, considerado o robusto arcabouço jurídico-legal que, ao menos em tese, protege esse direito. Para tanto, será analisado o caso concreto das habitações situadas na região do entorno do parque Jardim Botânico da cidade do Rio de Janeiro (comunidade do Horto), consolidadas em área de propriedade da União. A investigação pressupõe a análise da argumentação jurídica levada a cabo por representantes da União, do Ministério Público Federal, do Estado-Juiz e das partes rés em três processos judiciais iniciados nos anos 1980, que tramitam na Justiça Federal do Rio de Janeiro, sempre tendo como norte a manutenção ou não das ocupações no local, à luz das políticas de gestão de imóveis da União, que têm passado por um processo contínuo e gradativo de mudança de visão nos últimos vinte anos. Serão utilizados os métodos histórico-comparativo, conceitual-dedutivo e empírico-indutivo. A complexidade das relações entre os mais diversos atores institucionais envolvidos permite uma abordagem voltada para a percepção, no campo da realidade, de como o direito à moradia deve (ou pode) se materializar frente à compreensão de argumentos tradicionais do direito. Situa-se o tema, portanto, no campo da efetividade do direito à moradia, entre a norma jurídica e o fato social.

Palavras-chave: Direito à moradia. Políticas públicas. Discurso normativo e práticas jurídicas.

Sumário: Introdução – 1 As políticas de gestão dos imóveis da União – A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) – 2 Contextualizando os fatos – O complexo caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 3 O retrato da Comunidade do Horto – 4 Processos judiciais – A interação entre os atores institucionais envolvidos – Conclusão – Referências

IntroduçãoO presente artigo pretende abordar o distanciamento existente, no

Brasil, entre o discurso normativo e a prática jurídica no que respeita ao

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direito à moradia em assentamentos informais. Para tanto, relacionare-mos as políticas públicas desenvolvidas pela União quanto à gestão de seus imóveis e voltaremos os olhos para a região do entorno do parque Jardim Botânico da cidade do Rio de Janeiro (onde, ao longo do tempo, se instalou a comunidade do Horto por meio de habitações informais consolidadas em área de propriedade da União), e para os argumentos jurídicos levados a cabo em processos judiciais, bem como em que medida essa argumentação jurídica, nos últimos anos, influenciou os rumos da atuação da administração pública e foi por ela influenciada. Serão rela-cionadas as principais linhas de raciocínio adotadas por representantes da União, do Ministério Público Federal, do Estado-Juiz e das partes rés, sempre tendo como norte a manutenção ou não das ocupações no local. Nosso tema, portanto, situa-se no campo da efetividade do direito à moradia, entre a norma jurídica e o fato social.

Mas por que o caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro? A resposta dessa pergunta passa pelo conhecimento que tivemos de um caso extremo, consubstanciado por uma ordem judicial emitida em ação de reintegração de posse no ano de 2009, favorável à União, que determinava a retirada de uma moradora idosa — e de baixa renda — da residência em que vivia com sua família há 70 anos, sob o fundamento de que a sua casa estava inserida dentro de área pública pertencente à União (autora do processo ajuizado ainda na década de 1980). Intimada, na condição de representante legal da União, para promover execução do cumprimento desta ordem judicial, a autoridade responsável pela Superintendência do Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro resolveu, invocando o direito à moradia titularizado pela idosa expropriada, sem observar os rigores procedimentais previstos em lei, lavrar contrato administrativo de cessão gratuita, mediante concessão de direito real de uso, em normas jurídicas materiais da Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007.

Com este contrato, a decisão judicial tornou-se inexequível e a idosa permaneceu em sua residência fixada dentro de área pública.1 A

1 A Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União no Estado do Rio de Janeiro instaurou procedimento de controle tombado naquele órgão sob o nº 030.186/2010-2, para averiguar os procedimentos adotados quando da lavratura do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso Gratuita, firmado entre a União e a ocupante de imóvel público federal.

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partir daí, começamos a nos interessar por outros processos judiciais que tratavam de casos semelhantes de moradores da Comunidade do Horto e nos deparamos com um universo de mais de 230 ações judiciais propostas pelo poder público desde a década de 1980, constatando a multiplicidade e a complexidade das mais diversas situações decorrentes das argumentações submetidas pelas partes envolvidas aos tribunais e os desfechos em decorrência das decisões judiciais, mesmo num conjunto limitado de pouco mais de seis centenas de habitações que formam a comunidade. Chamou-nos também atenção a repercussão que as decisões administrativas ou judiciais relativas às ocupações no entorno do Parque Jardim Botânico possuem para a população da cidade Rio de Janeiro, em razão da natural importância cultural e histórica do parque. Esse universo tornou-se fonte incessante de pesquisa, materializando-se como objeto de nosso projeto de pesquisa que ora desenvolvemos no curso de Mestrado em Direito e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília.

Nesse contexto, considerando as previsões da Declaração dos Direitos Humanos (1948), do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), que denotam a atuação da Organização das Nações Unidas para a proteção do direito à moradia, e, no Brasil, os princípios implícitos já na Constituição de 1988 e, posteriormente, a previsão constitucional expressa conferida pela Emenda nº 26 (2000), bem como uma série de leis infraconstitucionais criadas desde a década de 1990, tem-se por pressuposto a existência de vasto arcabouço jurídico voltado para a proteção do direito à moradia. O discurso formal decorrente das leis ou normas jurídicas, portanto, ao menos em tese, protege robustamente esse direito.

Mas será que a prática dos órgãos jurídicos brasileiros fomenta essa proteção quando está em jogo o direito de pessoas de baixa renda que vivem em assentamentos informais? Dispõem os nossos tribunais de instrumentos processuais adequados para o enfrentamento de questões coletivas e socialmente complexas? Como se pode desenvolver um diálogo eficiente nos processos judiciais, de acordo com as técnicas do Direito, entre a Administração Pública e o Judiciário, na tentativa de apresentação de soluções concretas para a efetivação do direito à moradia por meio da execução de políticas púbicas? Esses são os problemas centrais que enfrentamos em nossa jornada.

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Deve-se aqui apor que essa linha de pensamento pressupõe a existência de uma crise do direito com a exaustão de um paradigma juspositivista,2 transformação verificada no Brasil — e nos países do oci-dente — pelo menos nas últimas quatro décadas, depois de longos anos da dominação do discurso voltado para a insistente busca pela genera-lização do fenômeno social através da ciência jurídica, onipresente no discurso jurídico dos séculos XVIII, XIX e na maior parte do século XX.

Não se olvide que o positivismo jurídico é ainda hoje fortemente presente na teoria e na prática do direito. Os seus princípios, conceitos e métodos continuam influenciando o ensino jurídico nas universidades e o cotidiano das atividades forenses em todo o mundo ocidental, não obstante as diversas teorias críticas desenvolvidas principalmente a partir da segunda metade do século passado.3 O modelo exposto por Roberto Freitas Filho, na linha dos ensinamentos de José Eduardo Faria,4 no que ele denomina de crise de um paradigma5 no direito é essencial para situarmos a linha de nossas ideias:

Há, portanto, momentos em que os paradigmas entram em crise. Isto ocorre quando eles não conseguem mais fornecer orientações, diretrizes e normas capazes de nortear o trabalho científico. Os problemas deixam de ser resolvidos conforme as regras vigentes — para cada problema solucionado vão surgindo outros de maior complexidade. A certa altura, o efeito cumulativo deste processo entra num período de crise: não tendo mais condições de fornecer soluções, os paradigmas vigentes começam a revelar-se como fonte última dos problemas e das incongruências, e o universo científico que lhes corresponde gradativamente converte-se num amplo sistema de erros, onde nada pode ser pensado corretamente. A partir daí, outros paradigmas emergem no horizonte científico — e o processo em que eles aparecem e se consolidam constitui o que Kuhn chama de revolução científica. O Direito em sua matriz juspositivista kelseniana vem sendo discutido não é de agora, e trabalhos das mais diversas áreas das ciências humanas apontam para as condições de mudança e complexidade na realidade social.6

2 Cf. FREITAS FILHO. Crise do direito e juspositivismo: a exaustão de um paradigma.3 De modo breve, pode-se pensá-lo como sendo a abordagem científica ao direito (i) comprometida com a

construção e utilização de um método específico capaz de fornecer descrições neutras sobre o fenômeno ju-rídico e (ii) que concebe o direito como um sistema de normas produzidas pelos órgãos oficiais do Estado. Cf. GUIMARÃES. Avvocatura dello Stato, amministrazione pubblica e democrazia: il ruolo della consulenza legale nella formulazione ed esecuzione delle politiche pubbliche. Rassegna Avvocatura dello Stato, p. 283-311.

4 FARIA. A noção de paradigma na ciência do direito: notas para uma crítica ao idealismo jurídico. In: FARIA (Org.). A crise do direito numa sociedade em mudança, p. 22.

5 As noções de paradigma empregadas pelo autor e que utilizamos neste ensaio são aquelas delineadas em KUHN. A estrutura das revoluções científicas.

6 FREITAS FILHO. Crise do direito e juspositivismo: a exaustão de um paradigma, p. 37-38.

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Também de se registrar que essa crise do direito, como bem des-taca o primeiro capítulo da dissertação de mestrado que ensejou a obra de Freitas Filho, se dá em três diferentes níveis: o normativo, o institu-cional e o jurídico cultural. Especialmente interessante para nós que as instituições jurídicas brasileiras revelam-se, diante de casos complexos, notadamente aqueles que envolvem multi-interesses e cujo problema esteja judicializado, não dispor de instrumentos ou mecanismos de que possam lançar mão para enfrentar com eficiência essas questões multi-laterais, que demandam cada vez mais comumente respostas concretas e céleres por parte do Welfare State.

Nesse passo, quando os interesses são complexos e multifacetados (todos moral e legalmente sustentáveis) a conformação do interesse público (tão caro ao direito administrativo) acaba representando não uma definição jurídica precisa do instituto que corresponderia a uma realidade direta e univocamente definível, mas um jogo de forças dentro do tabuleiro sociopolítico7 cujo resultado é não outro que a instabilidade do discurso e, com o tempo, a própria descrença nas instituições.

Por falarmos em interesse público, é preciso registrar que no contexto dos dois últimos séculos,8 realiza-se, na administração pública ocidental, uma espécie de homogeneização dos interesses, o que pressupõe a concepção de sociedades homogêneas, tendendo-se para

7 Essa pluralidade de discursos, todos consagrados no campo político jurídico, sejam conflitantes ou aparentemente conflitantes, é identificada em Rawls por Luiz Eduardo de Lacerda Abreu: “Rawls introduz a distinção entre concepção política e doutrinas abrangentes (comprehensive doctrines) que vai basear tanto a formulação do problema quanto a sua solução. Por ‘concepção’ ele entende uma ‘concepção política e suas partes, como o conceito de pessoa como cidadão’; por ‘doutrina’, as ‘perspectivas abrangentes de todos os tipos’ (RAWLS, 2005, p. XXXV, 441), isto é, doutrinas que incluíssem não apenas a dimensão político-constitucional, mas também idéias que perpassassem outras esferas da vida social, tais como concepções religiosas, filosóficas, morais, científicas etc. Assim, ‘uma vez que a questão é colocada [a distinção entre concepção política e doutrina abrangente], fica claro — acredito — que o texto [de Uma teoria] percebe a justiça como eqüidade e o utilitarismo como doutrinas abrangentes ou parcialmente abrangentes’ (RAWLS, 2005, p. XVI). Daí, a solução de Rawls é a transformação daquilo que, em Uma teoria da justiça, é uma doutrina abrangente, numa concepção puramente política e, portanto, independente (freestanding); em outras palavras, uma concepção que não está fixa a nenhuma doutrina abrangente e pode ser subscrita por uma pluralidade de doutrinas razoáveis — fato que ele chama de ‘consenso sobreposto’ (overlapping consensus). A partir daí, a justiça como eqüidade poderia ser considerada como uma concepção puramente política e, portanto, limitada à formulação da estrutura básica da sociedade, aos valores propriamente políticos” (Qual o sentido de Rawls para nós?. Revista de Informação Legislativa, p. 157).

8 Odete Medauar parte para uma definição valorativa: “a palavra público significa que o valor ético no padrão do interesse público se aplica a todo membro da comunidade política: é um valor que se deve distinguir de algo que é vantajoso para uma pessoa e desvantajoso para outra. A palavra interesse indica o sentido estimativo do padrão; refere-se a algo em que deveríamos estar ‘interessados’, muito embora possamos não estar. Por isso, dizer que uma ação é do interesse público significa julgá-la de acordo com uma situação política que é benéfica para todo mundo” (O direito administrativo em evolução, p. 37).

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a redução dos interesses das pessoas — ainda que profundamente complexos, diversos e difusos entre si — em um denominador comum. O mesmo raciocínio vale para as comunidades. Giannini, citado por Odete Medauar, denominou de “publicização potencial de todo interesse tendo alguma relevância social”.9 Assim qualquer assunto, desde que assumido pelo poder público, passa a se qualificar como questão de interesse público.

Na atuação do Estado, o quadro acima se reflete na burocracia da administração pública: o emaranhado de normas jurídicas (leis, portarias, regulamentos), a diluição de competências no exercício das funções públicas entre diversos órgãos, as práticas isoladas de cada órgão público, entre outros fatores, leva a uma atuação desconexa por parte do poder público, que, no fundo, apenas catalisa e reproduz essa multilateralidade de interesses da comunidade nos diversos campos de atuação do Estado.

Essa desconexão é mais ainda sentida quando se voltam os olhos para a atuação prática de instituições públicas que se envolvem numa dada demanda socialmente complexa. Não raro essas questões são levadas ao Judiciário ou aos órgãos de controle — e as decisões do Estado refletem exatamente o tal jogo de forças e interesses, desprovido de mecanismos eficientes para apresentar soluções. Assim, em casos como o do Jardim Botânico do Rio de Janeiro qualquer intervenção estatal pode ter consequências dramáticas a partir do aniquilamento de alguns dos interesses envolvidos e da prevalência de outros, sem que haja uma apreciação profunda dos complexos fatores que permeiam o caso.

Por oportuno, devemos esclarecer que nosso objeto reside na análise de um processo de natureza administrativa, em que se pode dessumir a multiplicidade dos interesses políticos envolvidos e dos discursos jurídicos desenvolvidos em torno da questão relativa às ocupações consolidadas nos arredores do Jardim, processo este impulsionado dentro da estrutura organizacional da União e que contém elementos importantíssimos para a nossa pesquisa empírica. Carlos Ari Sundfeld, proeminente professor brasileiro de Direito Administrativo faz a seguinte reflexão: “os males do excesso (a principiologia frouxa desamarrando as normas, embaralhando tudo) e do superficial (o princípio lugar-comum, pura forma sem substância); nisso vivemos”. E mais:

9 MEDAUAR. O direito administrativo em evolução, p. 48.

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Não é questão de conhecer a substância, o núcleo duro, expresso em institutos ou princípios (ou outras variáveis com essa função). O modelo é outro. Mentalizo o direito administrativo como um oceano: grandes águas, vagas, marés; eterno balanço e rodopio. Conhecê-lo é entender as constantes de seu movimento, dos fluxos e refluxos, enfim, dos contrários batendo-se e convivendo. Teoria dos antagonismos é o nome dessa matriz de análise, que foca no jogo de oposições a circundar as leis, as regras, as práticas, os casos, as decisões, os princípios, os institutos. A teoria dos antagonismos não crê na solução dos casos pela incidência direta de elementos fixos; ela não renega os institutos nem os princípios. A lei constrói figuras, a doutrina as tenta classificar e definir, o operador as testa ao decidir; eis os institutos, um modo inevitável do direito como norma, teoria e prática. Mas há de vê-los como institutos flexíveis, compatíveis com o inclassificável, o experimentalismo responsável, a acomodação dos contrários.10

Nessa linha, o Processo nº 00405.008207/2010-50, que tramita na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal (CCAF),11 reúne documentos, dados, estatísticas, relatórios, memorandos, ofícios e outros expedientes técnicos gestados no poder executivo, assim como petições de moradores, do Ministério Público, além de decisões judiciais de diversas instâncias e do Tribunal de Contas da União que abordaram a questão ao longo do tempo. Enfim, trata-se de um vasto material bruto que nos permite extrair do caso concreto os aspectos generalizáveis das argumentações delineadas pelos mais diversos atores em torno dos interesses que permeiam a questão. Nossa metodologia requer, para perseguir de modo frutífero os objetivos propostos, até porque a pretensão de aproximação do real configura-se desafio por demais complexo, a utilização dos métodos histórico-comparativo, conceitual-dedutivo e empírico-indutivo.

Este ensaio, dadas as limitações naturais de espaço, encontra-se seccionado em três partes, além desta introdução. Inicialmente, (i) com o objetivo de demonstrar as profundas transformações de visão e a exaustão de um paradigma relativo à gestão de imóveis da União que

10 SUNDFELD. O direito administrativo entre os clips e os negócios. In: ARAGÃO; MARQUES NETO (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 88.

11 A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), órgão da Consultoria-Geral da União, foi criada pelo Ato Regimental nº 5, de 27 de setembro de 2007, e tem sua forma de atuação regulamentada pela Portaria AGU nº 1.281, de 27 de setembro de 2007, cujo objetivo principal é evitar litígios entre órgãos e entidades da Administração Federal. Com a edição da Portaria AGU nº 1.099, de 28 de julho de 2008, as controvérsias de natureza jurídica entre a Administração Pública Federal e a Administração Pública dos Estados ou do Distrito Federal também são matérias de competência da CCAF. Cf. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO – AGU. Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF: cartilha.

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vigorava no século XX, a análise das políticas públicas se dará a partir de uma abordagem das práticas desenvolvidas, no Brasil, pela Secretaria do Patrimônio da União, órgão federal legalmente incumbido de realizar essa gestão,12 destacando, especialmente, que as diretrizes de atuação desse órgão, apoiadas em recentes e profundas transformações na legislação, têm passado por um processo político contínuo e gradativo de mudança na visão, nas últimas duas décadas, com particular referência às áreas que possuem ocupações consolidadas com moradias instaladas. Em seguida,13 (ii) esboçaremos o perfil da comunidade do Horto, a partir da exposição de dados sócio-econômicos das pessoas que habitam o local, obtidos por meio de estudo desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por derradeiro, (iii) analisaremos a interação entre os atores sociais e institucionais envolvidos a partir de três processos judiciais que tratam do problema, apontando os principais argumentos levados a cabo por representantes da União, do Ministério Público Federal, do Estado-Juiz e das partes rés, sempre tendo como norte a manutenção ou não das ocupações no local.

1 As políticas de gestão dos imóveis da União – A Secretaria do Patrimônio da União (SPU)

De forma geral, a administração e a gestão do patrimônio imobiliá-rio da União é competência atribuída por lei à Secretaria de Patrimônio

12 Como pressuposto, enxergamos a política pública como um norte dinâmico, que deve estar apto a resolver os problemas e conflitos a que se propõe enfrentar, considerando, inclusive, as variáveis imanentes ao sistema social. A análise ora proposta pressupõe, portanto, uma visão organizacional da atividade estatal, porque ela privilegia as realidades vitais e a dinâmica que permeiam as estruturas e atividades públicas, considerando variáveis e alterações de cenários que o enfoque meramente jurídico não seria capaz de fornecer. Embora a perspectiva jurídica seja de suma importância para subsidiar os quadros referenciais das políticas aqui analisadas, a construção de um estudo fundado somente em tal perspectiva levaria a uma consideração um tanto quanto estática da visão de Estado e da administração pública, o que aqui não se deseja. Enrique Saravia explica que, aos poucos, as circunstâncias foram mostrando a conveniência de analisar o funcionamento do Estado por meio de seus fluxos, da sua dinâmica, e modificar, assim, a perspectiva — até então privilegiada ou única — de exame de normas e estruturas [Introdução à teoria da política pública. In: SARAVIA; FERRAREZI (Org.). Políticas públicas: coletânea, v. 1]. Ana Luiza Viana afirma que a produção em matéria de políticas públicas busca analisar o modo de funcionamento da máquina estatal, tendo como ponto de partida a identificação das características das agências públicas ‘fazedoras’ de política; dos atores participantes desse processo de ‘fazer’ políticas, das inter-relações entre essas variáveis (agências e atores); e das variáveis externas que influenciam esse processo (Abordagens metodológicas em políticas públicas. Revista de Administração Pública, p. 5-43).

13 Em nosso projeto de dissertação de Mestrado que desenvolvemos no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), abordamos em detalhes o problema da ocupação de área da União destinada ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, focando as origens das ocupações e a história da formação da comunidade instalada no local. Para este artigo, contudo, dispensaremos essa abordagem, tendo em vista as limitações naturais de espaço.

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da União (Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998), órgão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Como dito, as diretrizes dessa gestão têm passado por um processo político contínuo e gradativo de mudança na visão, especialmente nas últimas duas décadas. Contribui e influi substancialmente no desenrolar deste processo a previsão, na Constituição Federal de 1988, de dispositivo inserto no título dos direi-tos e garantias fundamentais com o comando “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, XXIII, CF), que repercutiu na formulação de políticas voltadas para o atendimento dessa regra nos últimos anos.

Especificamente com relação à gestão do patrimônio imobiliário da União, a partir da elaboração da Política Nacional de Gestão do Patrimônio da União (PNGPU) no ano de 2003, a busca pela função social dos bens imóveis da União refletiu a missão institucional definida em planejamento estratégico da própria SPU, qual seja: “conhecer, zelar e garantir que cada imóvel da União cumpra sua função socioambiental, em harmonia com a função arrecadadora, em apoio aos programas estratégicos para a Nação”.

Deve-se frisar que até o fim do século XX a principal característica da gestão era privilegiar o uso dos bens com vistas a gerar receitas e reduzir custos operacionais para o governo federal. Isso porque, de modo geral, a terra e o direito à propriedade eram tratados sob a ótica da acumulação de riquezas, tendo como consequência a exploração da propriedade em benefício — especialmente econômico — de seu proprietário. Tal lógica estendia-se também à propriedade imobiliária da União, pelo menos até o início deste século, quando ela passou a ser explicitamente revista.14 A inclusão do atendimento da função social como orientação da utilização e destinação dos imóveis públicos federais rompeu com o paradigma até então conferido à função de arrecadação e, ao mesmo tempo, com a lógica de alienação de imóveis não utilizados no serviço público como forma de redução de custos operacionais e ampliação de receitas. Evidentemente que a expressão “função socioambiental” talhada na missão institucional do órgão traz um amplo leque possível de significados, de modo que a política adotada para a resolução de conflitos

14 Cf. MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO – MPOG. Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Balanço de gestão: 2003-2010.

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fundiários pode ser amoldada de acordo com as realidades encontradas em cada caso particular. Sendo assim, o patrimônio imobiliário passou a ser visto como recurso estratégico a ser aplicado no apoio às políticas públicas voltadas para a inclusão social. Essencialmente, portanto, essa nova visão de gestão reflete um certo compasso para com os ideais orientadores dos macro-programas de governo que visam à promoção do desenvolvimento sustentável e crescimento econômico, com redução de desigualdades por meio da inclusão social.

Desse modo, a SPU tem entendido que o alinhamento de suas ações para fins de materialização dessa função social insculpida em sua missão institucional passa pela primazia da regularização fundiária de interesse social de imóveis já ocupados por famílias de baixa renda, bem como apoio a programas de provisão habitacional aos imóveis que se encontrem vazios ou subutilizados.15 Para tanto, o órgão gestor do patrimônio imobiliário da União tem se valido de parcerias com outros entes da federação, especialmente municípios. Nota-se, nesse sentido, que o orçamento da SPU experimentou substancial aumento desde 2003, passando de R$18,26 milhões previstos na lei orçamentária daquele ano para R$56,00 milhões constantes da lei de 2010. A arrecadação no período também subiu exponencialmente, de R$195,7 milhões em 2003 para R$626,5 milhões em 2010,16 resultado do aparelhamento do órgão e do aumento do número de imóveis identificados e cadastrados. Nesse novo modelo de gestão, entre 2003 e 2010,17 157.754 famílias foram beneficiadas em todo o país por atos administrativos de regularização fundiária efetivados pela SPU, totalizando área de 101.531.008,41m², e

15 “Destaca-se, assim, na gestão do Patrimônio Imobiliário da União, a efetivação de algumas ações estrutu-rantes, como o apoio à reforma agrária, o reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos e sua fixação nas terras de seus antepassados, a demarcação das terras indígenas, o reconhecimento de direitos das comunidades tradicionais e extrativistas, a destinação de imóveis da União para o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, para o Programa Minha Casa Minha Vida e para demais programas de urbanização de assentamentos precários e de provisão habitacional do Ministério das Cidades e, ainda, a regularização fundiária em terras da União na Amazônia. Todas elas, independentemente do modelo estrutural em que são alocadas dentro da forma de condução da PNGPU, refletem necessariamente os mesmos princípios ideológicos que constituem a base de sustentação da política de gestão pública que orientou a formulação dos programas de governo: o Patrimônio da União a serviço do Brasil, a serviço de todos os brasileiros, na construção de um país de todos” (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO – MPOG. Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Balanço de gestão: 2003-2010, p. 10).

16 Fonte: MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO – MPOG. Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Balanço de gestão: 2003-2010, p. 75.

17 Fonte: MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO – MPOG. Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Balanço de gestão: 2003-2010, p. 68-72.

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14.154 famílias foram contempladas com áreas da União destinadas a programas de provisão habitacional, totalizando 3.034.468,46m².

Contribui sobremaneira para esse viés de atuação da SPU o respaldo jurídico normativo conferido por leis aprovadas desde a edição da Constituição, que se voltaram para o reconhecimento formal de ocupações de baixa renda, especialmente nos espaços urbanos, acreditando-se que a regularização jurídica dessas posses em áreas públicas significa promoção de inclusão social e cidadania. No arcabouço normativo que rege a matéria, destaca-se inicialmente a Lei nº 9.636, editada em maio de 1998, que, em sua redação original, já autorizava logo no art. 1º o Poder Executivo, por intermédio da SPU, a “regularizar as ocupações e promover a utilização ordenada dos bens imóveis de domínio da União”. A edição da referida lei representa a superação jurídico formal do paradigma da gestão patrimonialista dos imóveis da União, que era regulado basicamente pelo Decreto-Lei nº 9.760, de 1946 (que ainda mantém alguns dispositivos em vigor, por não haver incompatibilidade material para com as regras atuais).

A Lei nº 9.636/98, posteriormente, sofreu importante reforma proveniente da Medida Provisória nº 335, de 23 de dezembro de 2006, cuja vigência foi prorrogada pela Presidência da República até a sua aprovação pelo Congresso Nacional, o que resultou na edição da Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007. O mencionado art. 1º teve a sua redação alterada para deixar claro que a forma de gestão dos imóveis da União deve privilegiar o reconhecimento jurídico das ocupações até então consideradas informais pelo ordenamento, de modo que o Poder Executivo, por intermédio da SPU, está, a partir de então, legalmente autorizado a promover a “regularização das ocupações nesses imóveis, inclusive de assentamentos informais de baixa renda”.

Por outro lado e no mesmo sentido, tem-se a Medida Provisória nº 2.220, editada em 4 de setembro de 2001, que se propôs a regulamentar o art. 183 da Constituição Federal,18 tendo pioneiramente introduzido no

18 Referido dispositivo está inserido no Capítulo II, Título VII, referente à Política Urbana nacional. À sua redação: “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. §1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. §2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. §3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

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ordenamento o instituto da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM), com vistas a regularizar ocupações de áreas públicas urbanas para promover a moradia dos ocupantes, a partir do reconhecimento dos seus ditos direitos subjetivos, uma vez que sua outorga é deferida àqueles que atendem aos requisitos objetivos nela delineados,19 independentemente da discricionariedade da Administração.20 Não bastasse, importante fator no plano operacional das políticas de gestão de áreas públicas voltadas para o reconhecimento formal de assentamentos nela situados foi a criação, em 2003, do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Programas Urbanos.21 A partir de ações concatenadas desses órgãos públicos, pela primeira vez foi entabulada uma política nacional para a regularização fundiária sustentável de áreas urbanas, que se concretizou no “Programa Papel Passado”. O objetivo fundamental da política é o estímulo aos processos de regularização fundiária em áreas urbanas, especialmente quando pertencentes à União, Distrito Federal, Estados e Municípios, por meio de descentralização da execução, fomento ao acesso a recursos e desburocratização de procedimentos. Nesse prisma, foram editadas as leis nº 11.481, de 31 de maio de 2007, que inovou trazendo a possibilidade de Concessão de Direito Real de Uso para ocupantes de baixa renda, e nº 11.977, de 7 de julho de 2009, importante marco legal que, além de superar entraves constantes de legislações anteriores, trouxe o regramento formal para a operacionalização da política de regularização

19 Veja-se da redação do art. 1º, MP 2.220/2001, que expõe as condições para a obtenção da CUEM: “Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural”.

20 A CUEM já havia constado do projeto de lei que culminou na edição da Lei nº 10.257, de julho de 2001 (Estatuto da Cidade). Na oportunidade, toda a Seção VI (artigos 15 a 20) foi vetada pelo Presidente da República que, em sua mensagem de veto, apresar de ter reconhecido que “o instituto jurídico da concessão de uso especial para fins de moradia em áreas públicas é um importante instrumento para propiciar segurança da posse — fundamento do direito à moradia — a milhões de moradores de favelas e loteamentos irregulares”, assinalou que “algumas imprecisões do projeto de lei trazem, no entanto, riscos à aplicação desse instrumento inovador, contrariando o interesse público”. Ao final, a mensagem assevera que “em reconhecimento à importância e validade do instituto da concessão de uso especial para fins de moradia, o Poder Executivo submeterá sem demora ao Congresso Nacional um texto normativo que preencha essa lacuna, buscando sanar as imprecisões apontadas”, o que resultou na publicação da Medida Provisória nº 2.220, em setembro de 2001.

21 O Ministério das Cidades foi instituído em 1º de janeiro de 2003, através da Medida Provisória nº 103, depois convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio do mesmo ano. O Decreto nº 4.665, de 3 de abril de 2003, aprova a Estrutura Regimental do Ministério, incluindo a Secretaria Nacional de Programas Urbanos, que, com a edição do Decreto nº 7.618, de 2011, passou a se chamar Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos.

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fundiária pensada pelo governo federal, tendo estatuído os seus princípios fundamentais. Curioso é que a própria lei, num esforço retórico, conceitua, em seu art. 46, a regularização fundiária como o “conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Importa ressaltar, por oportuno, que foram promovidas algumas transformações na redação original da Lei nº 11.977, por meio da edição da Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, visando adequar os ditames da legislação às demandas encontradas durante a implementação e execução do programa Minha Casa Minha Vida.

Tem-se, pois, no início do século XXI, em consonância com o novo paradigma apresentado quanto à gestão dos imóveis da União norteada pela função social da propriedade pública, o reconhecimento da legislação quanto às facetas inerentes às possibilidades postas à disposição de gestores de políticas públicas habitacionais para a concretização do direito de moradia de famílias de baixa renda, por intermédio da regularização de suas posses e ocupações, dentro de determinados critérios. Evidentemente que os critérios e limites trazidos pela legislação permitem a diminuição de um enorme passivo de áreas já consolidadas, especialmente nos aglomerados urbanos das grandes cidades, mas não se prestam a resolver os problemas referentes ao crescente número de famílias que enfrentarão, no futuro, o déficit habitacional que só faz aumentar, em escala global. Também é de se observar que a preocupação com a questão ambiental está presente no desenho das políticas públicas de gestão de imóveis da União e de regularização fundiária, o que se reproduz em todas as normas jurídicas apontadas, refletindo a noção relativa à necessidade do uso sustentável dos solos urbanos, em harmonia e integração com a natureza. Por sinal, essa harmonização entre desenvolvimento e meio ambiente saudável é objeto de recente preocupação das Nações Unidas quanto ao futuro da humanidade, especialmente a partir das mudanças climáticas constatadas mundialmente nos últimos anos, em decorrência da forte urbanização e concentração das populações nas cidades.22

22 UNITED NATIONS HUMAN SETTLEMENTS PROGRAMME – UN-HABITAT. Cities and Climate Change: Policy Directions: Global Report on Human Settlements 2011.

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2 Contextualizando os fatos – O complexo caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro

No Brasil, na segunda metade dos anos 1980, mais de duas centenas de ações judiciais de reintegração de posse23 — que até hoje desafiam o Judiciário — foram propostas pelo poder público brasileiro, então representado pelo já extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).24 Essas ações objetivaram a retomada de áreas onde se situam atualmente 621 habitações — a Comunidade do Horto, que se localiza dentro dos limites de propriedade da União Federal onde também fica o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Deve-se contextualizar que, no mesmo ambiente, localiza-se ainda uma das sedes do SEPRO, que conta com aproximadamente dois mil funcionários trabalhando no local.

O polo ativo dessas ações judiciais, tendo em vista as profundas alterações orgânicas por que passou a Administração Pública no período — com a promulgação da Constituição da República e a introdução de diversas novas leis estruturantes — foi sucedido pelo IBAMA, depois Mi-nistério Público Federal25 e, finalmente, pela Advocacia-Geral da União.

Em regra os espaços territoriais utilizados não se confundem, não se descartando, contudo, esse tipo de ocorrência. Certo é que a proximidade e os tênues limites sempre permitiram uma comunicação e uma interação contínua entre os múltiplos interesses latentes sobre a questão.

Deve-se repisar que toda a área (parque e comunidade) pertence à União e é, em tese, gerida pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IPJBRJ), autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Assim, todas as implicações resultantes deste regime, especialmente relativos à personalidade jurídica própria (com natureza de direito público), autonomia administrativa, financeira e para ajuizar ações são inerentes à instituição.26

23 Os números acerca da quantidade de ações possessórias propostas são imprecisos. Segundo dados do Processo Administrativo nº 00405.008207/2010-50, existem 268 ações identificadas, em fases processuais distintas e heterogêneas.

24 O IBDF foi criado pelo Decreto-Lei nº 289/1967. Tratava-se de autarquia federal vinculada ao Ministério da Agricultura, encarregada de temas afetos às florestas brasileiras. Foi extinto pela Lei nº 7.732/89, e sucedido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA (Lei nº 7.735/89).

25 Deve-se frisar que o MPF, nos últimos 20 anos, também propôs ações autônomas, inclusive de natureza coletiva, conforme adiante será comentado.

26 Criada pela Lei nº 10.316, de 6 de dezembro de 2001, cabe à autarquia, fundamentalmente, “promover, realizar e divulgar o ensino e as pesquisas técnico-científicas sobre os recursos florísticos do Brasil, visando o conhecimento e a conservação da biodiversidade, bem como manter as coleções científicas sob sua responsabilidade”.

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A origem do problema é antiga e retroage especialmente ao início do século XIX, a partir da desapropriação da fazenda de engenho anteriormente pertencente a Rodrigo de Freitas Mello e Castro (que dá nome à famosa lagoa situada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro),27 promovida à época por D. João VI que, com a vinda da família real para o Brasil em 1808, desejava implementar no local — como de fato o fez — uma fábrica de pólvora e uma fundição de artilharia visando à proteção da Corte Portuguesa (havia temores inerentes às invasões napoleônicas na Europa). Tais instalações bélicas ali permaneceram até o ano de 1826.28 Também visava o governante à preservação e expansão da botânica, com o resguardo das espécies nativas europeias e sua adaptação no Brasil, além do fomento ao cultivo de especiarias na Colônia,29 o que ensejou a instalação de um jardim de aclimação, logo depois denominado “Real Horto”, ainda no ano de 1808.

Levando-se em consideração que se tratava de local ermo, situado na zona rural distante do centro urbano onde se concentrava boa parte da população carioca, permitiu-se, nos anos seguintes, a progressiva instalação de residências para moradia dos trabalhadores da fábrica de pólvora, mas não só: nas décadas seguintes também foram ali se instalando, sem oposição por parte do poder público — gestor do espaço — funcionários, colaboradores, pesquisadores, enfim, estruturas e prestadores de serviços necessários ao bom funcionamento do próprio Jardim Botânico, além de ocupações de naturezas diversas que acabaram se desenvolvendo tolerada e naturalmente.30

27 “A história da região, assim como de toda a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, está associada a do Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, um dos mais antigos engenhos de açúcar da cidade, fundado por Diogo de Amorim Soares, em 1596. Em 1660, a propriedade foi adquirida por Rodrigo de Freitas Mello e Castro, que mais tarde passou para seus filhos e posteriormente para seus netos. No final do século XVIII, as terras do engenho compreendiam todas a área atualmente ocupada pelos bairros do Jardim Botânico, Gávea Leblon, Ipanema, Arpoador, Lagoa, parte do Humaitá e grande parte do Parque Nacional da Tijuca. Além do engenho de açúcar, localizado na área onde atualmente se situa o Jardim Botânico, existiam ainda dentro desta grande propriedade 59 chácaras arrendadas a terceiros” (Serviço Público Federal, Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Laudo de vistoria – bens imóveis tombados, Brasil). Fonte: Processo nº 90.0049294-7, em trâmite na 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro, fls. 293, 318.

28 JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: 1808-2008, p. 27. Frise-se que a Fábrica de Pólvora e a Fundição de Artilharia tiveram suas sedes transferidas para Petrópolis em 1826, região serrana do Estado do Rio de Janeiro.

29 “[...] a exemplo de outros jardins botânicos estabelecidos nos trópicos, sua criação teve por objetivo aclimatar especiarias e introduzir novas plantas na colônia” (JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: 1808-2008, p. 26).

30 Cf. BELLO, Enzo. Conflitos sócio-ambientais na sociedade do risco: um estudo de caso sobre os litígios fundiários no Jardim Botânico. CONGRESSO NACIONAL DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO– CONPEDI, 17.

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A instalação de moradias no local, portanto, refletia mera conveni-ência à proximidade da força de trabalho então demandada na região. Foram, assim, ao longo da história, permitidas e, em dados momentos, até mesmo incentivadas pelo poder público. Havia total interação das pessoas com o meio ambiente, restando ausente qualquer preocupação para com questões relativas à eventual degradação ambiental.

Em 1819, os portões do jardim foram abertos à visitação restrita31 e, já em 1822, houve a abertura para o público geral com visitas monitoradas, o que contribuiu para que o parque, na década de 1870, se consolidasse como importante referência de convivência e turismo da cidade do Rio de Janeiro — faceta que permanece até os dias atuais — propiciando que o espaço adquirisse suma e incontestável importância na formação das características socioculturais da cidade. Em 1890, a visitação ao Jardim foi franqueada ao público geral, diariamente, e sem a necessidade de acompanhamento, medida que proporcionou a visita de cerca de 180 mil pessoas entre abril de 1890 e julho de 1894.32

Pari passu, no final do século XIX, o parque começou a deixar para trás seu caráter eminentemente agronômico e foi ganhando uma dimensão mais acadêmico científica, voltada às pesquisas botânicas, ensino e conservação da flora. Assim, a partir de 1890 foram criados o Herbário, o Museu e Biblioteca, tendo sido a coleção ampliada para incluir como objeto as espécies nativas brasileiras. No ano de 1910, a estrutura administrativa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro era então responsável pelas pesquisas botânicas, culturas de plantas úteis, bem como pelo arboreto, o que já contemplava a moldura das atividades e objetivos do parque para o século XX.33

31 “D. João, em 1819, anexou o horto ao Museu Real e o tornou público, sob a denominação de Real Jardim Botânico. A ele só tinham acesso notáveis visitantes, naturalistas e viajantes como o alemão Carl Seidler, Charles de Ribeyrolles, Hermann e Burmeister que em suas passagens pelo Brasil na primeira metade do século XIX reconheciam sua riqueza paisagística. A britânica Maria Grahan narra em seu diário as tardes de passeio pelo horto e ressalta a ‘maior liberdade com estrangeiros’ nos estabelecimentos brasileiros” (JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: 1808-2008, p. 156).

32 JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: 1808-2008, p. 173-174.33 No final do século XIX, “as realizações mais marcantes, de impacto direto no uso público do Jardim,

foram: as alterações no regulamento Policial; a publicação do Primeiro Guia para o visitante, com histórico, regulamento policial e relação de todas as plantas com sua localização no Jardim; a organização paisagística, que criou canteiros, aléias, sinalização para orientar o público e identificação das espécies botânicas; criação do Museu Kuhlmann; a criação da Biblioteca Barbosa Rodrigues, do Herbário e de Laboratórios; a instalação de setores destinados a estudos botânicos para possibilitar o atendimento às comunidades científicas; realização de Exposições Botânicas e Históricas; a instalação do Parque Infantil; a realização de cursos; criação de setores destinados à Educação para o Meio Ambiente e a Responsabilidade Social, além

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Em 1916, por meio da publicação do Decreto nº 11.904, de 19 de janeiro, o então Presidente da República Wenceslau Braz promoveu a anexação jurídico-formal do Horto Florestal ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, de modo que aquele se tornou uma seção deste. Até meados do século XX, o funcionamento e os objetivos do parque conviveram harmonicamente com as moradias que foram se instalando nos arredores da área de visitação. Importa salientar que, a partir de 1942, o Jardim Botânico teve sua administração vinculada ao Serviço Florestal, integrante da estrutura do Ministério da Agricultura, por meio da edição do Decreto presidencial nº 9.015, de 16 de março, o que não alterou o viés básico de suas atividades.

Na década de 1960, houve certa pressão de mercado para que grande parte da área do Horto Florestal fosse destinada a empreendi-mento imobiliário ligado ao BNH (Banco Nacional de Habitação), em consonância com a política habitacional nacional desenvolvida pelo regime militar.34 Essa pressão foi veementemente rechaçada por impor-tantes expoentes da sociedade e cultura carioca e brasileira, como Pedro Calmon, Carlos Drummond de Andrade e Roberto Burle-Marx, que era, à época, conselheiro do IPHAN.35

Desse modo, em virtude das atividades desenvolvidas em seu ter-ritório relativas à preservação ambiental, à pesquisa científica, aos equi-pamentos públicos de lazer e cultura, bem como em razão presença de

de ações e eventos que aproximaram a iniciativa privada da Instituição, em parcerias que possibilitam apoiar diversos de seus projetos e a manutenção de seu acervo físico” (JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO: 1808-2008, p. 174).

34 A política habitacional era baseada na casa própria, fundada em política de financiamento levada a efeito pelo Banco Nacional de Habitação e apoiada por captação de recursos específicos e subsidiados pelo governo, inclusive FGTS, conforme se percebe das diretrizes constantes da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964.

35 Roberto Burle Marx (São Paulo, 4 de agosto de 1909 – Rio de Janeiro, 4 de junho de 1994) foi artista plástico, renomado internacionalmente ao exercer a profissão de arquiteto-paisagista. Trabalhou como colaborador do IPHAN nas décadas de 1960 e 1970, tendo proferido os seguintes dizeres sobre a possibilidade, aventada no fim da década de 1960, de cessão de área do Horto Florestal para o Banco Nacional de Habitação desenvolver projeto imobiliário: “O Jardim Botânico tem sido retalhado e diminuído de sua área, através do constante uso de manobra sorrateira e hábil [...]. O Horto é uma gleba de 83 hectares, o prolongamento natural do Jardim Botânico [...]. Todas as atividades técnicas a que se propunha nunca foram interrompidas até a presente data (1969). Não é admissível que uma parte seja desmembrada e cedida ao Banco Nacional de Habitação, que apenas vê o problema habitacional e que nega completamente a validade cultural dessa instituição, onde um grande número de botânicos, de valor nacional e internacional, trabalhou e produziu para a ciência. Se consumar a cessão da área, veremos o Jardim Botânico transformado em quintal dessas habitações, como muito bem disse o eminente colega Pedro Calmon. Por estas circunstâncias, é que se contra-indica a construção de blocos residenciais, com finalidade imobiliária, nesta zona. [...] Em face do exposto, a oferta de qualquer área do Horto Florestal, em parcelas mínimas ou no todo (83 hectares), constitui uma violação das instituições culturais e da história, o mesmo se afirmando ao Jardim Botânico que, com o Horto, se constitui num todo indivisível, na totalidade da área de 1.370.000m²”. Fonte: Processo Administrativo nº 00405.008207/2010-50, fl. 380.

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edificações e monumentos de valor histórico, cultural, paisagístico, houve o tombamento de todo o conjunto paisagístico do Jardim Botânico e Horto Florestal, consubstanciado pela instrução de três atos administrativos, o primeiro já a partir do fim da década de 1930 e o último finalizado em 1973.36 Até os dias atuais, no entanto, os órgãos públicos não possuem um consenso exato sobre o quê efetivamente foi objeto do tombamento.

Dentre os bens que compreendem parte relevante do patrimônio imaterial do Jardim Botânico, destacam-se o arboreto, onde são encon-trados, além das coleções vivas, estufas francesas do final do século XIX e monumentos históricos, chafarizes e obras de arte de diversas origens e autores. Do patrimônio arquitetônico, não se pode deixar de mencio-nar a edificação que um dia foi a sede do Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, a Casa dos Pilões, o Portão da Academia de Belas Artes e a Casa dos Cedros, todas datadas entre os séculos XVI e XIX.

Tem-se que, até então, naquele contexto, a existência de moradias e de outras estruturas edificadas, estranhas ao objeto do Jardim, pareciam não incomodar o poder público ou interferir no bom funcionamento dos espaços de pesquisa e visitação.

Esse comportamento perdurou até a década de 1980, quando a presença dos moradores e de suas habitações começou a sofrer fortes impugnações, especialmente na esfera judiciária. Percebeu-se, no mesmo período, um crescimento exponencial do número de habitações erguidas na área e constatou-se que boa parte dos moradores já não mais tinha quaisquer vínculos com a Administração Pública aptos a justificar a permanência no local. Desse modo, foram propostas as centenas de ações judiciais de reintegração de posse.

Muitas dessas ações judiciais começaram a apresentar resultados apenas no início do século XXI, tendo a Justiça Federal no Estado do Rio de Janeiro sentenciado a procedência dos pedidos e o direito de a

36 Informações extraídas do Processo Administrativo nº 00405.008207/2010-50, fl. 379, verbis: “Processo de Tombamento nº 101-T-38 e 157-T. Jardim Botânico do Rio de Janeiro, inclusive o Pórtico da Academia de Belas Artes, Portão da Antiga Fábrica de Pólvora e o Antigo Aqueduto da Levada – Inscrição nº 02/fls. 02, datada de 30/05/38, no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Processo de Tombamento nº 762-T-65. Parque Nacional da Tijuca e Remanescentes Florestais da Mata Atlântica situados acima da cota de 100 metros do nível médio do mar dentro da área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, parte integrante do JBRJ – Inscrição nº 42/fls. 10, datada de 27/04/67, no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Processo de Tombamento nº 633-T-73. Conjunto Paisagístico do Antigo Horto Florestal – Inscrição datada de 17/12/73 no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico”.

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União ser reintegrada na posse dos imóveis localizados dentro da área do parque a ela pertencente.

O cumprimento e execução dessas determinações frequentemente encontram variáveis decorrentes da realidade social inerente à Comuni-dade do Horto, da compreensão acerca do novo paradigma conferido nos últimos anos à gestão do patrimônio da União à luz do direito à moradia, especialmente pelo Poder Executivo (autor dos pedidos de reintegração), e do regime jurídico especial de preservação e conservação a que está submetida a área do Jardim Botânico.

Deve-se salientar que a maior parte das ações judiciais encontra-se com seu curso suspenso desde 2010, quando a Advocacia-Geral da União formulou requerimentos nesse sentido, fundada na perspectiva de resolução administrativa interna do problema, mediante instauração de Câmara de Conciliação para tal fim. Nesse ponto, a maioria dos juízes mostrou-se sensível, confiando na capacidade de a Administração entabular política coordenada de gestão daquela área pública ocupada por apenas 621 moradias e outras edificações estranhas aos fins institucionais do Jardim.

Há de se ponderar, contudo, que a CCAF não constitui a primeira tentativa de resolução administrativa do caso. Os Ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Meio Ambiente, ainda no ano de 2004, através de portaria interministerial, constituíram comissão conjunta que tinha por finalidade promover estudos técnicos e propor soluções para o problema.37

Referida comissão, que contou com a participação de representantes da SPU e do IJBRJ, mesmo tendo apontado que a resolução do problema passa por uma ação de governo mais ampla que extrapolaria os limites do grupo, chegou a apresentar relatório no início de 2007, com diversas hipóteses para a resolução da questão, propondo medidas que iam desde a retirada integral das ocupações, com realocação dos moradores

37 Portaria Interministerial nº 360-A, de 27 de dezembro de 2004: “Os Ministros de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Meio Ambiente, no uso de suas atribuições legais e tendo em vista o disposto na Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, e no Acórdão no 1.028/2004 - TCU - Plenário, publicado no Diário Oficial da União de 5 de agosto de 2004, Seção 1, páginas 80 e 81, resolvem: Art. 1º Instituir Comissão Interministerial com a finalidade de promover estudos e propor soluções que possibilitem à Secretaria do Patrimônio da União – SPU a regularização da cessão do imóvel de domínio da União, constituído pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro – JBRJ, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente”.

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em outra área destinada pelo poder público, passando por soluções intermediárias, até a manutenção integral das famílias, com possíveis remanejamentos internos dentro da própria Comunidade do Horto, em virtude de moradias localizadas em áreas consideradas de risco.38

Pois bem. Cabe-nos a esta altura expormos os dados relativos à Comunidade do Horto.39

3 O retrato da Comunidade do HortoPara melhor compreensão dos complexos fatores que influenciam

na elaboração e execução de políticas que visam à resolução do problema fundiário existente no local, é preciso trazer à baila algumas informações que refletem o perfil da comunidade que ali se instalou ao longo do tempo.

Dados do registro cadastral do Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), colhidos a partir da década de 1970, indicam aumento sensível do número de habitações na localidade. Segundo levantamentos feitos pelo Instituto nos anos de 1975 e 1985, em dez anos, a quantidade de casas subiu de 377 para 408, o que representa um crescimento de 7,6%. Já em 2007, de acordo com números de relatório elaborado por Comissão Interministerial instituída para tal fim, a quantidade de casas constatadas era de 589, um crescimento aproximado de 44% em vinte e dois anos.40

No ano de 2010, com vistas a subsidiar a atuação do poder público, especialmente da Secretaria do Patrimônio da União, novo estudo foi elaborado pela UFRJ com vistas a fornecer dados sobre a extensão das áreas ocupadas, bem como quanto ao perfil socioeconômico da comunidade. Referido levantamento fornece e possibilita uma visão de conjunto quanto a aspectos particularmente relevantes do quadro sócio-territorial relativo ao conflito fundiário existente, constituindo o elemento mais sólido e confiável para que seja traçado o perfil da comunidade.

38 Relatório da Comissão Interministerial, de 22 de fevereiro de 2007. Fonte: Processo nº 90.0049294-7, em trâmite na 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro, fls. 293, 318.

39 Observe-se que, por conveniência da nomenclatura, temos neste ensaio denominado de Comunidade do Horto o conjunto de aglomerados residenciais compreendido pelas moradias instaladas dentro dos limites de terreno da União onde também funcionam áreas, edificações, e equipamentos afetos ou não ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

40 Os dados absolutos indicados constam do Relatório de Comissão Interministerial, de fevereiro de 2007. Fonte: Processo nº 90.0049294-7, em trâmite na 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro, fls. 293, 318.

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Os extratos do mencionado estudo, que foram publicados pelo jornal O Globo em sua edição de 14.10.2010, apontam a existência de 621 casas identificadas (o que representa um crescimento de 5,15% em relação aos dados de 2005), distribuídas em 11 setores que estão espalhados por toda a extensão da área pertencente à União desta forma: Dona Castorina (101 habitações), Pacheco Leão I (76 habitações), Solar da Imperatriz (62 habitações), Pacheco Leão II, III, IV (28 habitações), Pacheco Leão V (68 habitações), Grotão I (26 habitações), Morro das Margaridas (40 habitações), Caxinguelê (61 habitações), Grotão II (95 habitações), Vila na Major Rubens Vaz, nº 64 (40 habitações) e Vila na Major Rubens Vaz, nº 122 (24 habitações).

O relatório da UFRJ contabilizou 1.890 moradores em 573 residências.41 Em relação à renda familiar declarada, 441 (71,7%) do total possuem renda de zero a cinco salários mínimos, sendo 277 com renda de até três e o restante (134) com renda superior a três e até cinco salários mínimos. Do universo cadastrado pela UFRJ, em 121 unidades habitacionais (21,1% do total), as famílias possuem renda de mais de cinco e até dez salários mínimos, sendo que 5,6% (32 famílias) possuem renda superior a dez salários mínimos. Apenas nove famílias (1,6% do total) não informaram a sua faixa de renda.

Outro indicador relevante diz respeito ao tempo de moradia das famílias entrevistadas e cadastradas pelo estudo da UFRJ. Dos dados apresentados, verifica-se que 316 famílias residem no local há mais de quarenta anos, o que corresponde a 55,2% do total, e que apenas 2,3%, ou seja, 13 famílias, habitam a localidade há menos de cinco anos. Segundo o jornal O Globo, o setor que teve maior expansão no número de casas cadastradas foi o da Estrada Dona Castorina, que saltou de 40 famílias em 2007 para 95 em 2010, aumento de 138% em três anos. Ainda de acordo com o periódico, entre os imóveis cadastrados, o estudo da UFRJ confirmou que treze casas foram negociadas (vendidas ou alugadas) nos cinco anos anteriores à publicação da matéria.

41 Segundo matéria do jornal O Globo, 14 out. 2010, 43 casas não foram cadastradas por ausência de seus moradores. Outras 5 famílias não quiseram se cadastrar. O total de 48 casas não cadastradas representa 7,7% do montante total de 621 habitações identificadas.

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4 Processos judiciais – A interação entre os atores institucionais envolvidosA compreensão do fenômeno social inerente à ocupação dessas

áreas e das políticas públicas entabuladas para o local, especialmente voltadas às famílias de baixa renda, passa pela investigação acerca da participação de cada ator envolvido no problema, seus discursos e argumentos desenvolvidos para sustentar uma ou outra posição quanto à permanência ou não dos moradores na região. As ações de cada ator e a interação mútua de suas práticas constituem importantes variáveis para a avaliação das políticas formatadas para a comunidade local. Como dito alhures, a permanência das moradias na área em que se desenvolveu a comunidade do Horto começou a sofrer sensível resistência a partir da década de 1980, especialmente com a propositura de diversas ações judiciais que visavam à retirada dos ocupantes tidos como invasores. À luz do novo paradigma de gestão de imóveis pertencentes à União, nos últimos anos, diversamente, a SPU adotou postura administrativa tendente a promover o reconhecimento formal das ocupações existentes no local, propondo sistematicamente a regularização fundiária das moradias, posição que tem encontrado significativas resistências de diversos atores que integram esse complexo processo de relações socio-institucionais e influem diretamente nas diretrizes e implementação de políticas públicas pensadas para a região.

Deve-se destacar que, até setembro de 2012, nenhuma ordem judicial de reintegração de posse formalmente deferida pelo Judiciário chegou a ser efetivamente cumprida. A maioria dos processos judiciais encontra-se com a suspensão de seu curso deferida ou com o andamento sobrestado, em virtude de pedidos aviados pela Advocacia-Geral da União informando da instauração de Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) que visa a buscar solução para o problema internamente, priorizando o diálogo entre os órgãos públicos envolvidos.

Prudente mencionar que, no ano de 2005, tentou-se executar ordem judicial de reintegração de posse contra ocupação individual, o que ocasionou forte resistência coletiva dos moradores. Narra-se o acontecido a partir dos dizeres constantes de artigo do presidente do IJBRJ, Liszt Vieira, publicado na imprensa:

[...] na ocasião, os moradores resistiram à ordem judicial. A polícia, convocada pela Justiça para assegurar a reintegração de posse, recuou após

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enfrentamento com os ocupantes [...]. O incidente, em 7 de junho passado, contou com a intervenção de profissionais ligados à defesa dos direitos humanos. Ao fim do dia, o juiz da 17ª Vara Federal revogou a ordem de reintegração, evitando um confronto de consequências imprevisíveis.42

Atualmente, em razão de inúmeros componentes da realidade, produzidos com a aglomeração de moradias na localidade, as habitações apresentam uma significativa diversidade de situações relacionadas às suas condições ambientais e urbanísticas que foram produzidas ao longo do tempo. Nesse passo, propomos verificação que busca especialmente dimensionar em que medida a judicialização do problema, ao longo dos anos, influenciou o comportamento da Administração na entabulação das políticas públicas adotadas para a região e seus reflexos e resultados para a comunidade, em cada dado momento histórico, ora norteadas pela visão liberal tradicional protetiva da propriedade, ora pelo protecionismo conferido aos vulneráveis (em que se elegeu a função social da propriedade como prioridade política para a resolução de conflitos), tudo isso dentro do contexto de preservação do meio ambiente a que estão afetas as áreas em comento, bem como da mudança paradigmática relativa à gestão de imóveis da União.

Para tanto, lançamos mão de análise dos principais argumentos delineados em três processos judiciais43 que tramitam na Justiça Federal do Rio de Janeiro, entabulados por representantes da União, do Ministério Público Federal, do Estado-Juiz e das partes rés, no tocante à manutenção ou não das ocupações de imóveis, todos situados dentro dos limites da propriedade da União, na Rua Pacheco Leão. O objetivo é traçar uma análise crítica acerca da argumentação e teses delineadas por cada sujeito do processo judicial. Ressalte-se que tal análise não tem qualquer preocupação com a apresentação ordenada de acordo com a forma processual utilizada para carrear as argumentações (petição inicial, contestação, pareceres, sentença, recursos, acórdãos), já que os fundamentos delineados praticamente se repetem nas sucessivas

42 VIEIRA. Jardim Botânico: o interesse público. O Globo.43 A análise se deu a partir de peças processuais constantes de cada um dos autuados analisados. Os processos

foram selecionados em razão de suas particularidades: uma ação possessória proposta pela União já na década de 2000; uma ação civil pública de natureza ambiental proposta pelo Ministério Público Federal também na década de 2000; uma ação possessória proposta pela União na década de 1980.

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manifestações de cada ator envolvido e a sua ordenação não traria quaisquer contribuições significativas ao método ora proposto.

4.1 Processo nº 2005.51.01.008835-7 – Ação de reintegração de posse tendo como autora a União

Em seus pedidos, a União sustentou, em síntese, (i) que a ré não é servidora pública e reside no local sem o consentimento da administração do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico; (ii) que o imóvel ocupado pos-sui natureza de bem público federal de uso especial, e nele está instalado estabelecimento público destinado à pesquisa e à conservação da natureza; (iii) que a ocupação da área pela família da ré vem causando a destruição dos recursos naturais e o inadequado uso do solo, o que constituiria risco à integridade e à sobrevivência do “conjunto Jardim Botânico”.

Já as peças de resistência aviadas pela ré esclarecem que sua ocupação decorre da condição de viúva de ex-prestador de serviços ao Jardim Botânico a quem, em setembro de 1979, foi oferecido o imóvel para moradia e de sua família. Sustenta que reside no imóvel desde então, atualmente com seus sete filhos e dois netos menores de idade. Alegou a “supremacia do seu direito à moradia sobre o direito de propriedade da União”, invocando os novos mecanismos de destinação presentes na legislação para embasar a regularização de sua ocupação, mencionando expressamente a concessão de uso especial para fins de moradia. Informou que, naquele mesmo local, “moram mais de 150 famílias, sendo que a maioria (senão todas) de ex-funcionários ou familiares de ex-funcionários do Jardim Botânico”.

Formulou pedido eventual, em caso de procedência da ação, no sentido de que fosse mantida na posse do imóvel até que o poder público providencie novo local para estabelecimento da residência de sua família.

O Ministério Público Federal, atuando na condição de custus legis, emitiu opinativos pela procedência do pedido inicial, sustentando a ocorrência dos requisitos necessários para a reintegração de posse: o esbulho e a perda da posse pela União, alcunhada como incontroversa proprietária do bem. Sustentou que a “área em litígio localiza-se no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, área de preservação ambiental de propriedade federal. Portanto, a ocupação da área pela ré é irregular.

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Assim, não há que se falar em posse da ré, diante do princípio da indisponibilidade e da imprescritibilidade aquisitiva dos bens públicos, sendo certo que a ré exercia mera detenção do bem”. Apoiado em entendimentos tradicionalmente adotados pelo Judiciário44 quanto à matéria, rechaçou os argumentos levados ao processo pela ré, afirmando, que seu falecido marido “ocupava o imóvel em razão dos serviços prestados ao Jardim Botânico, por permissão da União, proprietária do bem. Tal ocupação, porém decorria unicamente do trabalho prestado por ele, sendo de natureza precária e revogável a qualquer tempo pela Administração”, de modo que, com o seu falecimento, “cessaram as razões para a moradia no local, não havendo qualquer irregularidade na atuação da União ao requerer a desocupação do imóvel” de maneira que, ademais, restava ao particular a obrigação em restituir o bem.

De se destacar, por fim, o afastamento quanto ao reconhecimento do direito de moradia invocado pela ré: “em matéria envolvendo a realização de serviço público de tamanha relevância, atinente ao meio ambiente saudável e de interesse da humanidade, o direito à moradia alegado em contestação não deve prevalecer mormente por se tratar também de área de preservação permanente, que deve exercer sua função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas”.

O Estado-Juiz manifestou-se pelo provimento do pleito da União, fundamentando suas decisões nos tradicionais entendimentos sobre a matéria. Diz o voto condutor da decisão de segunda instância: “sobre o tema, consolidou-se entendimento jurisprudencial no sentido de que a ocupação irregular de bem público não caracteriza posse, mas sim, mera detenção, o que não gera efeitos possessórios”. Na mesma esteira, a decisão judicial de primeiro grau sacramenta:

[...] indiferente que a ré resida no imóvel há mais de vinte e seis anos, pois, quer de acordo com a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal,45 quer de

44 Apontou duas decisões proferidas pelo próprio Tribunal Regional Federal da 2ª Região: Acórdão nº 334.014/RJ (DJU, 18 abr. 2008); e Acórdão nº 391.538/RJ (DJU, 18 set. 2007).

45 “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião” (Súmula STF nº 340).

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acordo com o art. 200 do Decreto-lei nº 9760/46,46 quer de acordo com o art. 102 do Código Civil,47 quer, ainda, de acordo com a própria Constituição Federal, em seu art. 183, §3º,48 o bem ocupado não é suscetível de aquisição por usucapião. Frise-se que a ocupação irregular de bem público não caracteriza posse, ou, em outras palavras, mera detenção, que não gera efeitos possessórios (cf. artigos 99, 100 e 1223 do Código Civil de 2002,49 e, com ampla explicação cf. RDA 175/158 ou, para citar julgado mais recente, cf. RT 770/258).

Imperioso destacar, ainda, no voto condutor da decisão de segunda instância, trecho que demonstra o raciocínio construído para afastar a aplicabilidade (ou reconhecimento) do direito à moradia no caso concreto:

(...) ressalte-se que a Constituição, ao estabelecer o direito à moradia, é num contexto de busca da efetivação desse e de outros direitos sociais, através de programas próprios que possibilitem o acesso de todos os cidadãos aos bens essenciais à qualidade de vida. Entretanto, isso não dá ensejo a que seja mantida a ocupação irregular de um bem público, principalmente, considerando-se que o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, além de ser uma área de preservação ambiental, é também um bem de uso comum do povo, devendo ser preservada a sua finalidade, que não é residencial. [...] Quanto ao pedido formulado na contestação de que seja conferido à ré/apelante o título de concessão de uso especial para fins de moradia, não merece acolhida. Os arts. 15 a 20 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que tratavam sobre a concessão de uso foram vetados pelo Presidente da República. A Medida Provisória nº 2.220/2001 não estabelece a possibilidade de concessão de uso de qualquer área pública, em especial àquelas destinadas a um fim específico como o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico. Além disso, nela há uma série de requisitos, dentre os quais, o primeiro é que a ocupação do bem seja “sem oposição”, o que não se verifica, in casu.

46 “Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião” (art. 200, Decreto-Lei nº 9.760/46).

47 “Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião” (art. 102, Código Civil).48 “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” (art. 183, §3º, CF).49 “Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II -

os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.

Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. [...]

Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196” (Código Civil).

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Mesmo com todo o desenho da argumentação técnico-jurídica uniformemente adotada pelos atores institucionais neste processo, chama atenção a ressalva feita pela juíza de primeira instância na parte final de sua sentença, nos seguintes termos:

[...] registro que tenho conhecimento de que a União está em tratativas com alguns ocupantes a fim de celebrar transação sobre o objeto desta demanda. Dessa forma, considerando que o acordo sempre é a melhor solução para o conflito uma vez que ele decorre da vontade das partes envolvidas e não do Estado-Juiz distante do conflito, poderá a União não executar este título. Em caso de acordo a homologação judicial substitui o presente título para todos os fins de direito. Registro, no entanto, que nestes autos não houve qualquer requerimento de suspensão do processo para negociação, de modo que se prosseguiu com a demanda.

Como se percebe, o Judiciário e a própria União adotam discurso uniforme quanto ao direito empregado no caso concreto, atestando-se a impossibilidade de a ré permanecer ocupando o local. Tem-se o estabelecimento de um conflito de direitos, em que a supremacia da preservação do meio ambiente (de maneira geral) é invocada como supedâneo para afastar o direito de moradia eventualmente titularizado pela ré. Também são invocadas clássicas e tradicionais lições do direito civil e da jurisprudência brasileira em relação à impossibilidade de serem reconhecidos efeitos possessórios decorrentes da ocupação da ré, uma vez que se trata de bem público que só pode ser objeto de mera detenção e que não pode ser usucapido.

Em nossa visão, trata-se de argumentos de autoridade, distantes do real problema e que, de fato, ignoram não só os novos paradigmas de gestão de imóveis da União, mas também importantes alterações legislativas operadas no início do século XXI, assim como os próprios pedidos da autora, que em momento algum requer a aquisição de propriedade da área (usucapião), mas apenas o reconhecimento por parte do Estado em relação ao seu direito de moradia. O raciocínio argumentativo desenvolvido no processo quanto à preservação ambiental também encontra fragilidades ao ser contrastado com fatores da realidade no local, dos quais se menciona especialmente, dente outros e a título de exemplos, a ocupação de grande edifício pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), empresa pública federal, criada pela

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Lei nº 4.516/1964, fixada no local desde 1967, com a circulação diária de centenas de veículos (inclusive voltados ao transporte coletivo regular) e pessoas, bem como o funcionamento do Espaço Cultural Tom Jobim,50 casa que frequentemente sedia eventos culturais que atraem diversas pessoas ao local e as consequências danosas ao meio ambiente advindas dessa circulação de pessoas e de veículos, além da poluição sonora que decorre dos ruídos inerentes a essas atividades.

Ainda que adote o discurso tradicional para dizer o direito, demonstrando sensibilidade quanto às políticas públicas pensadas para o local, mesmo sem ter sido formalmente provocada no processo judicial, a juíza prolatora da sentença acabou por atestar a complexidade da questão que envolve as habitações insertas na área do Jardim Botânico e a ausência de instrumentos disponíveis para o processo judicial resolver o problema, tendo assim facultado à União a possibilidade de não executar os comandos da sentença. Tal fato reflete o reconhecimento da própria Justiça em relação às dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário, que em regra tem atuação formalista, de lidar com os complexos fatores sociais envolvidos quando do enfrentamento jurídico processual da causa, bem como de se tornar agente protagonista no arranjo institucional que deve ser pensado para a solução efetiva das ocupações existentes na área.

4.2 Processo nº 2003.51.01.027485-5 – Ação Civil Pública tendo como autor o Ministério Público Federal

Nesta ação judicial a Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro pede ao Judiciário a condenação de um único morador a reparar o dano causado ao meio ambiente, pretendendo a demolição de sua residência e a “recuperação da área degradada, sob a supervisão do IBAMA, do IPHAN e do Instituto Jardim Botânico”. Também requer o órgão ministerial que o processado pague indenização pelos danos ambientais causados à área de preservação ambiental de vegetação nativa. Como

50 “Inaugurado em 2003, o Espaço Tom Jobim – Cultura e Meio Ambiente está instalado em antigas construções do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro e conta com a Casa do Acervo, o Galpão das Artes e o Teatro, no qual são apresentados shows e espetáculos, com capacidade para até 500 pessoas. A casa leva o nome do maestro por ser ele um dos maiores propagadores do Jardim Botânico. O Espaço Tom Jobim promove ainda diversos eventos culturais, como os Sábados Musicais e o Projeto Quatro Estações — este último com uma apresentação a cada início de estação do ano” (Resenha disponível em: <http://rioshow.oglobo.globo.com/musica/estabelecimentos/espaco-tom-jobim-275.aspx>. Acesso em: 28 set. 2012).

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fundamento de seus pedidos, o órgão alega que o réu ocupa irregularmente área de proteção ambiental e cultural, sem as devidas autorizações, o que causaria impactos negativos sobre a fauna e a flora preservadas, apontando o art. 225, §1º, I,51 da Constituição da República como supedâneo de suas alegações, já que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Concretamente, narra-se que o réu teria praticado atividade degradadora consistente na supressão de vegetação no local para a construção de edificação em sua residência.

A defesa do réu negou integralmente os fatos, sustentando que as fotografias anexadas à petição inicial diziam respeito a outro imóvel, que não o ocupado pelo réu. Imputou danos ambientais à administração do próprio Instituto Jardim Botânico, que “na área construiu estacionamento, permitiu a alocação de antena de telefonia celular, além de promover o corte de árvores centenárias”. Sustentou que é servidor aposentado do INCRA e que residia no imóvel há 78 anos, tendo sido autorizado pelo Ministério da Agricultura. Ponderou que sua residência não fica dentro da área de visitação do Jardim Botânico, mas sim no Horto Florestal. Invocou a situação fática relativa à área no entorno de sua residência, afirmando que “na mesma área há o SERPRO, a LIGHT, o Clube de Engenheiros e uma escola pública, o que evidencia a urbanização do local”.

A pedido do Ministério Público Federal, foram intimados IBAMA, IPHAN, União e Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, tendo os dois últimos manifestado interesse em ingressar no

51 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

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polo ativo da ação, o que foi indeferido na sentença por um óbice de natureza processual assim apontado:

[...] inicialmente, inadmito o ingresso da União Federal e do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico – JBRJ no feito. Isso porque, tal pleito não se justifica na atual fase processual, quando já citado o réu, encontrando-se o processo apto a receber sentença. Sem dúvida, o ingresso pretendido, na presente fase, acarretaria retrocesso ou tumulto processual, o que não se pode admitir.

Embora sua participação formal enquanto sujeito-parte do processo judicial tenha sido negada, não se pode deixar de trazer a lume a postura adotada pelo IPJB, destacando-se este trecho de sua manifestação levada ao processo:

[...] o imóvel sub-judice encontra-se exatamente ao lado do herbário do JBRJ e da área de pesquisa do instituto, sendo área natural de expansão e pesquisa. Atualmente as atividades da Botânica Sistemática são realizadas em contêineres por total falta de espaço. E, o imóvel, sito à [...] encontra-se exatamente ao lado destas atividades. Da mesma forma a nova biblioteca do JBRJ também não tem onde se instalar por falta de espaço, e o imóvel seria um excelente lugar para tal. Ou seja, a ré desta ação reside ilegalmente nesta localização que é uma das mais privilegiadas do Rio de Janeiro com alto valor de mercado e a cidade do Rio de Janeiro está privada de uma nova biblioteca. O JBRJ que é a instituição de pesquisa mais antiga do Brasil tem de colocar suas espécies em estudo dentro de um contêiner porque não tem onde colocar.

Os pedidos deduzidos pelo Ministério Público não foram acolhidos e alguns deles sequer apreciados pelo Judiciário, tendo sido extinto o pro-cesso sem julgamento de mérito com relação aos pleitos de desocupação e demolição do imóvel e julgados improcedentes os pedidos decorrentes da reparação do dano ambiental. Não obstante a inadequação da via processual eleita pelo autor, a sentença de primeiro grau traz trechos particularmente interessantes, que denotam a complexidade da questão:

[...] constata-se [...] que o imóvel em questão foi objeto de ação de reintegração de posse, proposta pela União Federal, tendo sido julgado parcialmente procedente o pedido formulado naqueles autos (Processo nº 00.0922893-4), concedendo-se a reintegração de posse em favor da União, após a indenização das respectivas benfeitorias. [...] No que concerne ao pedido de condenação do réu ao pagamento de indenização pelos danos ambientais [...], bem como de

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recuperação da área degradada, a improcedência se impõe [...] Nenhum dos documentos que instruíram a inicial se referem ao imóvel ocupado pelo réu [...] o autor juntou cópia de fotografias de algumas edificações, dentre as quais não consta indicação da casa do réu. Frise-se que, em relação à introdução de animais na área do Jardim Botânico [...] o autor não apontou a prática de tal ato especificamente quanto ao réu, limitando-se a narrar, de forma genérica, os danos causados pela ocupação de casas na área do JBRJ, dentre as quais, a ação de animais domésticos (cachorro e gato) que atacam a fauna nativa; não houve portanto, qualquer alegação de que o réu mantém animais domésticos, que estariam impactando negativamente a fauna do Jardim Botânico. Assim, a despeito das alegações do autor, não restou comprovada qualquer conduta do réu no sentido de provocar danos ao meio ambiente, sendo certo que a construção de sua moradia, e isso ninguém controverteu, foi autorizada pela Administração. Em tal contexto, se considerada agressão ao meio ambiente a própria construção, a responsabilidade por tal ato deve ser atribuída à Administração.

Percebe-se, neste processo, que o autor da ação, utilizou-se do argumento da ocorrência de dano ambiental para alcançar os mesmos fins que teria uma ação possessória regular, ou seja, a retirada da moradia do local. Condutas genéricas danosas ao meio ambiente foram imputadas ao réu, mas nenhuma delas foi devidamente individualizada, tendo o magistrado prolator da sentença registrado que a construção da moradia, que foi autorizada pelo próprio poder público, poderia ser enquadrada, em tese, como danosa ao meio ambiente, mas a responsabilização por tal dano só poderia residir na pessoa que outorgou referida autorização: a própria Administração.

4.3 Processo nº 00.0932754-1 – Ação de reintegração de posse tendo como autora a União

Este é o processo que inicialmente nos despertou o especial interesse pelo problema das ocupações da Comunidade do Horto, que narramos na introdução deste artigo. Nesta ação, sob o mesmo pálio argumentativo das ações possessórias então ajuizadas na década de 1980, a União obteve pronunciamento judicial favorável à reintegração de sua posse no imóvel indevidamente ocupado por terceiros.

Por longos anos e depois de percorridas diversas instâncias judiciais, apesar do reconhecimento formal por parte do Estado-Juiz em relação aos direitos da União com o trânsito em julgado da sentença, não houve

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o cumprimento e a execução da ordem judicial, tendo permanecido a ré com sua família em sua moradia erguida há cerca de sete décadas na Comunidade do Horto.

Já no ano de 2010, ao apreciar pedido de suspensão do processo formalizado pela Advocacia-Geral da União, sob a justificativa de que a questão se encontrava pendente de resolução administrativa no âmbito interno da União, seus órgãos e autarquias, o Juízo, assumindo postura jurídico-formalista perante os complexos problemas e conflitos fundiários na área, desconsiderou o pedido de suspensão processual formulado pela autora da ação e exarou a seguinte ordem:

[...] trata-se de decisão transitada em julgado, mantida pelo STJ, determi-nando a reintegração de posse de bem público, pelo que não cabe ao órgão administrativo dispor do direito concedido. Sendo assim, em cumprimento ao acórdão supracitado, expeça-se o competente mandado de reintegração de posse em favor da União Federal, do imóvel localizado à Rua Pacheco Leão [...] Estrada do Grotão [...] Jardim Botânico, Rio de Janeiro [...] devendo o Oficial de Justiça, em caso de resistência, certificar o ocorrido.

Deve-se salientar que o próprio IPJBRJ manifestou-se formalmente no processo judicial, aduzindo o seu desinteresse no cumprimento da ordem judicial de reintegração, naquela dada ocasião.

Em momento seguinte, diante de novo pedido apresentado pela União visando o não cumprimento da ordem de reintegração emitida, o julgador de primeira instância tornou a se manifestar, renovando a necessidade de execução da decisão anteriormente exarada e determi-nando seu cumprimento, desta feita impondo a aplicação multa pessoal diária de dois mil reais ao chefe da Procuradoria Regional da União da 2ª Região e à Superintendente do Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro, em caso de descumprimento do comando judicial.

Diante da nova ordem judicial proferida, a União, por sua Advocacia- Geral, apresentou recurso ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, procurando principalmente desconstituir a multa pessoal aplicada aos seus agentes e levar ao Judiciário a nova percepção do órgão gestor do patrimônio em relação à questão fundiária do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Chama a atenção a linha desenvolvida pela AGU em sua peça recursal:

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[...] não cabe ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito das políticas públicas de regularização fundiária levadas a efeito por ato da Secretaria do Patrimônio da União. Esse órgão optou por não mais prosseguir com todas as ações de reintegração de posse dos imóveis situados no Jardim Botânico, com exceção daquelas nas quais se discute eventual indenização por benfeitorias. [...] O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão enxerga na concessão de uso de imóveis federais um instrumento para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais [...]. Existe a possibilidade de ser outorgada à agravada Título de Concessão de Direito Real de Uso para fins de moradia, na forma como estabelecido nos arts. 7º do Decreto-Lei 271/1967 e 18, §§1º e 6º, I da Lei 9.636/1998 [...]. Assim, decisão da SPU no sentido de deixar de dar cumprimento à sentença de reintegração de posse referente ao imóvel ocupado representa o legítimo exercício de uma competência constitucional, a qual não cabe ao Judiciário adentrar [...]. A proposta de regularização fundiária levada a efeito através da SPU não caracteriza ato de disposição do patrimônio federal, na medida em que a agravante preserva consigo os poderes de gozar, dispor e reivindicar o bem, recebendo a agravada tão-somente o Direito Real de Uso Resolúvel do Imóvel.

A União não obteve sucesso imediato no pleito levado à instância seguinte, visto que a liminar pedida no recurso por ela apresentada foi indeferida.

Em virtude dos sucessivos fracassos da União em demover o Judiciário de executar sua ordem, na iminência da execução do comando judicial de reintegração, em razão do iminente risco de retirada da moradora do local e da repetição dos conflitos havidos em 2005, a SPU no Rio de Janeiro, adotando postura independente e desvinculada do Judiciário, resolveu lavrar contrato de Concessão de Direito Real de Uso em nome da ré, fundamentando a prática desse ato administrativo no art. 18, II e §1º, da Lei nº 9.636/98, cuja redação foi conferida pela Lei nº 11.481/2007, em cumulação com o art. 7º do Decreto-Lei nº 271/67.52 De posse deste

52 Conforme Portaria SPU nº 73: “Superintendência no Rio de Janeiro. Portaria nº 73, de 28 de setembro de 2010. A Superintendente do Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro, no uso da competência que lhe foi delegada no art. 1º, inciso I, do Decreto nº 3.125, de 29 de julho de 1999, tendo em vista o disposto no art. 64, §3º, Decreto-lei nº 9.760 de 05 de setembro de 1946; no art. 18, inciso II e §1º, da Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, e no art. 7º do Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, e de acordo com os elementos que integram o Processo nº 04967.015519/2010-13, resolve: Art. 1º Autorizar a cessão sob o regime de concessão de direito real de uso gratuito, à Sra. G.S.S inscrita sob o CPF nº [...], do imóvel urbano com área de 102,43m², localizado na Rua Pacheco Leão, [...], Jardim Botânico, Município do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, pertencente à porção maior registrada sob o nº 346, às Folhas 346, Livro 4, do Serviço Registral de Imóveis da Cidade do Rio de Janeiro. Parágrafo único. O imóvel mencionado situado na área denominada Grotão, no bairro Jardim Botânico, assim se descreve e caracteriza: edificação No- 124 do nº 1235 da Rua Pacheco Leão, constituído por casa e respectivo terreno, mede 8,80m de frente, com o nº126, 7,91m de fundos, totalizando uma área de 102,43m². Art. 2º O imóvel descrito no art. 1º

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novo instrumento jurídico, a ordem judicial de retirada não obteve a concretude desejada pelo Juízo prolator e a ré, de uma forma ou de outra, permanece em sua residência localizada em propriedade pública da União, desta feita sob o manto do reconhecimento administrativo de sua ocupação.

Neste processo, percebe-se não só uma compreensão inadequada sobre o novo paradigma conferido à gestão do patrimônio da União em relação ao trato de ocupações de moradias nessas áreas pertencentes ao ente federal, mas também um completo desprestígio às políticas públicas voltadas à consecução do direito à moradia, que nem chegou a ser objeto de debate jurídico no processo. Nota-se que o magistrado, diferentemente do que ocorreu na maioria das ações judiciais que foram suspensas a pedido da União no início da década de 2010, ignorou as tratativas administrativas voltadas para a solução do problema e os próprios pedidos formulados pela autora União nesse sentido. Pode-se concluir que o Judiciário, neste caso específico, tentou levar às últimas consequências posição legalista e dogmática (que já se demonstrou insuficiente e inadequada para resolver os conflitos fundiários do Jardim Botânico), insistindo na reintegração de posse que já não era mais aspirada pela autora da ação judicial.

ConclusãoPercebe-se, em todos os casos analisados, que não foram efetiva-

mente aplicados os mecanismos jurídico normativos já existentes na legislação brasileira (e apresentados neste ensaio), que privilegiam a concessão de titulação formal de utilização de imóvel da União à luz da percepção da função social da propriedade e que, por tal razão, repre-sentam importantes ferramentas para se lidar com um novo cenário das relações sociais, especialmente no caso das ocupações da comunidade do Horto. Pode-se afirmar, portanto, que os argumentos das referidas

destina-se à regularização fundiária de interesse social, com a finalidade específica de reconhecimento do direito à moradia. Art. 3º O prazo da cessão é indeterminado. Art. 4º A cessão tornar-se-á nula, se ao imóvel vier a ser dada destinação diversa da prevista no art. 2º desta Portaria ou, ainda, se ocorrer inadimplemento de quaisquer das cláusulas contratuais. Art. 5º Fica a beneficiária impedida de transferir o imóvel sem a autorização prévia da SPU/RJ. Art. 6º Os direitos e obrigações mencionadas nesta portaria não excluem outros, explícita ou implicitamente, decorrentes do contrato de cessão e da legislação pertinente. Art. 7º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação” (DOU, 1º out. 2010).

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decisões judiciais encontram-se defasados, saltando aos olhos o fato de não ter havido discussão minimamente aprofundada sobre direito à moradia e os novos instrumentos de destinação e meios de utilização de imóveis da União.

Um dos maiores desafios para o novo paradigma de gestão do patrimônio da União é conciliar o alinhamento dos seus programas e ações ao cumprimento da função social em cada um dos imóveis, em especial àqueles já ocupados por famílias de baixa renda, vazios ou subutilizados. No centro desse enfrentamento residem as objeções e resistências claras consubstanciadas pela defesa irrestrita do direito de propriedade e pela constante invocação de regras de direito ambiental como aptas a afastar políticas tendentes a privilegiar programas de regularização fundiária ou provisão habitacional, especialmente aqueles voltados a famílias de baixa renda. No caso da comunidade do Horto, essas questões são plenamente verificáveis e influem diretamente no fomento e implementação de políticas públicas para o local.

Nos últimos trinta anos, a judicialização do problema relativo à comunidade do Horto mostrou-se ineficaz para levar solução às popula-ções e órgãos públicos envolvidos, uma vez que o Judiciário não dispõe de mecanismos e instrumentos suficientemente adequados ou ágeis que se prestem a apresentar respostas para os problemas concretos enfren-tados diretamente pela comunidade do Horto e pela própria população do Rio de Janeiro. Ademais, a atuação desarticulada dos diversos atores institucionais em processos judiciais contribui para a insegurança da comunidade, leva a um desenho disforme e contraditório das políticas de gestão e administração da área envolvida, estabelece regimes e enten-dimentos jurídicos diferenciados aplicáveis a cada caso e desconsidera a gestão contextual do problema, tudo em franca contribuição para com o acirramento dos conflitos fundiários existentes no local.

Nota-se que as rápidas e contínuas mudanças das estruturas sociais apresentam novos problemas para a teoria tradicional do direito. A dinâ-mica das relações sociais revela processos complexos e acelerados dessas mudanças e transformações, que se mostram profundas e marcantes, constituindo-se uma das razões para a crise atual do juspositivismo. Isso permite asseverar que, para a resolução de determinados problemas, a compreensão do direito enquanto algo autômato voltado à regulação

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estática de fenômenos sociais encontra-se superada, de modo que se deve vislumbrá-lo como um mecanismo dinâmico direcionado à solução de problemas concretos, especialmente para a sustentação de políticas públicas que buscam tal fim.

Right to Housing between Law and Reality – The Case of the Botanical Garden of Rio de Janeiro

Abstract: This article highlights the gap in Brazil between the legal discourse and legal practice about the right to housing in informal settlements, considered the robust set of rules, at least in theory, that protects that right. To do so, will analyze the case of dwellings in the area surrounding the Botanical Garden of the city of Rio de Janeiro, consolidated in area owned by the Federal Government of Brazil. Research involves the analysis of legal reasoning carried out by representatives of the Federal Government, the Federal Public Ministry, the Judges and the parties defendant in three lawsuits initiated in 1980’s, which has as a central point or not the maintenance of dwellings. It is also on focus the management of Federal Government’s public housin policies, which have undergone a continuous and gradual change of view in the last twenty years. Methods are used comparative-historical, conceptual and empirical-deductive-inductive. The complexity of relationships among the various institutional actors involved allows for a focused approach to perception, in the field of reality, as the right to housing should (or can) materialize arguments against the traditional understanding of the law. Lies the issue, therefore, the effectiveness in the field of housing rights, between the rule of law and social fact.

Key words: Right to housing. Public policies. Legal discourse and legal practices.

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O alcance da Emenda Constitucional nº 57/2008 e a inconstitucionalidade material das normas estaduais que suprimiram a realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas na criação dos municípios após a promulgação da Constituição Federal de 1988Andréa de Freitas VarelaAdvogada da União com atuação na Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Cidades. Bacharel em Direito pela UFRJ. Especialista em Direito Público pela UGF.

Resumo: Este trabalho visa analisar o alcance da Emenda Constitucional nº 57/2008 promulgada pelo Congresso Nacional com o fito de convalidar a criação de municípios em desacordo com as disposições do §4º do art. 18 da Constituição Federal que, originalmente, determinava a realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas, além da edição de lei complementar, de caráter geral, e lei ordinária específica para cada município a ser criado; ambas inseridas na esfera de competência dos legislativos estaduais. Com o advento da EC nº 15/1996, a competência para a edição da supramencionada lei complementar foi transferida para o legislativo federal. O Congresso Nacional ao invés de editar a sobredita lei complementar, resolveu promulgar a EC nº 57/2008 com vistas a convalidar as normas estaduais que criaram municípios, até o ano de 2006, em desacordo com as disposições constitucionais. Reputamos, contudo, que a EC nº 57/2008 não teria o poder de afastar o vício de inconstitucionalidade da legislação estadual que suprimisse a realização de plebiscito em razão do desrespeito ao princípio da soberania popular, representado por tal medida. Recentemente, o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário interposto pelo Município de Aracaju em virtude de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que reconhecera, em caráter incidental, a inconstitucionalidade da criação dos municípios em desacordo com as disposições do art. 18 da CF.

Palavras-chave: Emenda Constitucional nº 57/2008. Supressão da reali-zação de plebiscito. Repercussão Geral. Inconstitucionalidade material insanável. Violação ao princípio da soberania popular.

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Sumário: Introdução – 1 Breve histórico – 2 Do reconhecimento da repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 614.384/SE pelo STF – 3 Das limitações do poder constituinte derivado – 4 Da inconstitucionalidade material insanável e do desrespeito ao princípio da soberania popular – Conclusão – Referências

IntroduçãoPreliminarmente, convém registrar que apesar da Constituição

Federal ter consignado as expressões “criação” e “desmembramento”, neste artigo utilizaremos, na maior parte das vezes, a primeira expres-são, visto que a “criação de um novo município sempre resultará de desmembramento, de tal forma que a repetição do constituinte, sobre ser deselegante, é rigorosamente inútil”.1

Dito isto, convém registrar que logo após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, inúmeros municípios foram criados sem que fossem observados os requisitos elencados na Carta Magna. Muitos Estados ao invés de editarem lei complementar, de caráter geral, e lei ordinária, específica para cada ente a ser criado, conforme determinava a redação original do §4º do art. 18, consignaram a criação dos municípios diretamente nas Constituições Estaduais,2 outros simplesmente editaram leis ordinárias estabelecendo novos limites geográficos para as comunas.3

1 Ives Gandra da Silva Martins assim comenta o dispositivo: “A lei complementar será estadual e o plebiscito far-se-á entre a população do município diretamente interessado, ou seja, da própria região. Não me parece necessária a utilização da expressão ‘criação e desmembramento’, não visualizando como possa um município ser criado sem que resulte de desmembramento de outro, visto que todas as regiões do país pertencem a municípios, só o Distrito Federal não podendo ser neles divididos” (Cf. BASTOS; MARTINS. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, v. 3., t. 1).

2 Em estudo preliminar, verificamos que, além do Estado do Sergipe, também os Estados do Piauí e de Alagoas consignaram a criação de municípios diretamente em suas constituições estaduais, respectivamente nos artigos 35 e 41 do ADCT, sem a previsão da realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas.

3 A título de exemplo, podemos citar a Lei nº 498/92 do Estado de Tocantins que trata da modificação da área, limites e confrontações do Município de Cariri do Tocantins, editada sem a prévia consulta plebiscitária e julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº 1.262/TO, antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 57/2008: “Direito Constitucional. Município. Alterações: ato normativo (art. 102, I, ‘a’, da Constituição Federal). Plebiscito: art. 18, §4, da CF. 1. É ato normativo, impugnável mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade, Lei estadual que altera outra Lei, quanto à origem do desmembramento, à área, aos limites e às confrontações de município. (Precedente: ADI 733). 2. É inconstitucional essa Lei, se realiza tais alterações, sem a consulta plebiscitária de que trata o §4º do art. 18 da Constituição Federal. Precedente. 3. Rejeitada a preliminar suscitada pela Advocacia Geral da União, a Ação Direta é julgada procedente, pelo STF, para o efeito de declarar a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 498, de 21.12.1992, do Estado de Tocantins, na parte em que, dando nova redação ao inciso IX do art. 4º da Lei nº 251, de 20.02.1991, alterou a origem do desmembramento, a área, os limites e as confrontações do Município de Cariri do Tocantins” (ADI nº 1.262/TO, Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches. Julg. 11.09.1997. DJ, 12 dez. 1997).

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Em ambos os casos, contudo, tanto por meio das Constituições Estaduais, quanto através de leis estaduais infraconstitucionais, podemos constatar que diversos Constituintes e/ou legisladores estaduais optaram por suprimir a realização de plebiscitos junto às populações diretamente envolvidas.

Com vistas a estancar o processo de criação dos municípios, foi editada a Emenda Constitucional nº 15/1996 que, além da realização de plebiscito contida na redação original do artigo, também acrescentou a necessidade de realização de Estudo de Viabilidade Municipal. A referida emenda transferiu a competência para a edição de lei complementar dos legislativos estaduais para o Congresso Nacional.

Após o transcurso dos anos, o Congresso Nacional, ao invés de editar a sobredita lei, optou por promulgar a Emenda Constitucional nº 57/2008 com o objetivo de garantir a “constitucionalidade” dos municípios criados até dezembro de 2006, sem a observância dos requisitos constitucionais supramencionados.

Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja pacífica quanto à inconstitucionalidade das normas estaduais que criaram municípios sem a prévia realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas, tais decisões foram proferidas antes do advento da EC nº 57/2008.

Não obstante a clara intenção do constituinte derivado em conva-lidar os atos de criação dos municípios até 2006 em desacordo com as disposições constitucionais, consideramos que a supressão da consulta popular não deve ser tratada como vício formal, como nos parece ser o caso da substituição de lei complementar estadual por leis ordinárias, mas sim inconstitucionalidade material insanável e, portanto, insuscetível de ser convalidada pela EC nº 57/2008.

1 Breve históricoCom vistas a contextualizar o leitor, apresentaremos um breve

histórico das alterações promovidas no §4º do art. 18 da Constituição Federal, cuja redação original assim determinava:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. [...]

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§4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei Complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas. (grifos nossos)

Embora o texto constitucional fosse bastante claro no sentido de indicar a necessidade de edição de lei complementar estadual dispondo acerca dos requisitos para a criação dos municípios, o que somente ocorreria com a edição de lei ordinária estadual específica, por diversas vezes a criação dos novos municípios foi consignada nas constituições estaduais.

Além da inobservância do requisito formal, o legislador estadual, quer na hipótese de criação dos municípios por meio das constituições estaduais ou mesmo através de leis ordinárias, em muitos casos, suprimiu a necessidade de realização de consulta às populações diretamente envolvidas.

Tomemos por exemplo a Constituição de Sergipe, cujo art. 37 foi considerado inconstitucional incidenter tantum pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe; contra esta decisão foi interposto Recurso Extraordinário, cuja repercussão geral foi recentemente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.

Pois bem, o processo de criação dos municípios no Estado de Sergipe não previa a realização de plebiscito para as populações diretamente envolvidas, senão vejamos:

Art. 37. Fica alterada a delimitação do Município de Aracaju com o Município de São Cristóvão a partir do Pontal N da barra do rio Vaza-Barris, que passa a ter a seguinte descrição: inicia na foz do rio Vaza-Barris seguindo seu curso até o talvegue até o encontro das águas do seu afluente Santa Maria, seguindo pelo talvegue deste até o ponto em frente à Capela Bom Jesus dos Navegantes no povoado Areia Branca; daí em linha reta até o marco do Mondé da Onça na estrada da Cabrita; daí em linha reta ao marco nas cabeceiras do riacho Palame, somente até o ponto em que esta reta corta o rio Poxim. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 16 de 1999)§1º Ficam, em conseqüência, alterados os limites do Município de Aracaju com o Município de São Cristóvão a partir do Mondé da Onça, que passa a ter a seguinte descrição: linha reta a partir do Mondé da Onça até o talvegue do rio Santa Maria em frente à Capela Bom Jesus dos Navegantes no povoado Areia Branca; rio Santa Maria até o encontro das águas do rio Vaza-Barris, seguindo pelo talvegue desde até sua foz no oceano Atlântico. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 16 de 1999)§2º Com a alteração estabelecida neste artigo, ficam situados no território do Município de Aracaju as localidades denominadas povoado Mosqueiro,

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povoado Areia Branca, povoado São José, povoado Robalo e povoado Terra Dura, neste compreendendo as localidades Lixeira da Terra Dura e núcleos habitacionais Santa Maria, Maria do Carmo Alves e Antônio Carlos Valadares. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 16 de 1999)

Com o advento da Emenda Constitucional nº 15/1996, a compe-tência para a edição da lei complementar tratando dos requisitos para a criação de municípios foi transferida para a União, foi mantida, contudo, a necessidade de consulta às populações “diretamente” envolvidas e foi acrescido novo requisito: o estudo de viabilidade dos municípios.

Art. 18. [...]§4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos municípios envolvidos, após divulgação dos estudos de viabilidade municipal, apresentados e publicados na forma de lei.

Submetida a questão ao STF quando do julgamento da ADI nº 3.682, a Suprema Corte fixou o prazo de 18 meses, contados de 9 de maio de 2007, para o Congresso elaborar a lei complementar prevista no §4º do art. 18 da CF. Embora o projeto de lei complementar tenha sido inicialmente aprovado no Senado, encontra-se atualmente dormitando na Câmara dos Deputados.

Ao invés de promulgar a sobredita lei complementar, o Congresso preferiu editar a EC nº 57/2008, convalidando os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento publicados até dezembro de 2006, transferindo, contudo, o fundamento para a criação dos municípios da Constituição Federal para “legislação” de cada Estado.

Art. 96. Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação. (grifos nossos)

2 Do reconhecimento da repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 614.384/SE pelo STF

Recentemente a constitucionalidade dos diplomas legais editados pelos estados membros em desconformidade com as disposições contidas

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no §4º do art. 18 da Constituição Federal voltou a ser objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu a repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 614.384/SE,4 ajuizado pelo Município de Aracaju, por meio do qual a referida municipalidade pleiteia o direito de efetuar a execução do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) supostamente devido por um contribuinte de outro município, aduzindo que o povoado onde se localiza o imóvel objeto da cobrança do tributo pertence a Aracaju, por força do art. 37 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de Sergipe.

O Município de Aracaju recorreu contra decisão do Tribunal de Justiça do referido Estado que negou provimento a apelação e manteve o entendimento pela inconstitucionalidade do art. 37 do ADCT da Constituição Sergipana, pois o desmembramento do povoado de Mosqueiro, pertencente ao Município de São Cristóvão teria ocorrido em desacordo com o §4º do art. 18 da Constituição Federal.

Conforme razões apresentadas pelo Município de Aracaju, o art. 37 do ADCT da Constituição Sergipana teria sido convalidado pela EC nº 57/2008, mediante a inserção do art. 96 do ADCT. Tal emenda ratificou a criação, fusão, incorporação e o desmembramento dos municípios por lei estadual publicada até dezembro de 2006.

A Justiça de primeiro grau declarou a extinção fiscal do débito, em razão da ilegitimidade do Município de Aracaju em realizar a cobrança, reconhecendo incidenter tantum a inconstitucionalidade do processo de desmembramento do povoado do Município de São Cristóvão, do qual faria parte até hoje. O mesmo entendimento prevaleceu no julgamento de apelação, no Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. O TJ-SE admitiu a subida do Recurso Extraordinário ao Supremo.

Ao propor o reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional suscitada, o Relator do Recurso Extraordinário, Min. Luiz Fux, observou que a decisão de primeiro grau que extinguiu a execução

4 “Recurso Extraordinário. Processo civil. Execução fiscal. IPTU. Extinção. Ilegitimidade ativa de Município. Inconstitucionalidade do artigo 37 do ADCT da Constituição do Estado de Sergipe. Desmembramento de municípios em desobediência ao artigo 18, §4º, da Constituição Federal. Superveniência da Emenda Constitucional nº 57, de 18/12/2008. Ratificação dos municípios criados por lei publicada até 31 de dezembro de 2006. Situação diversa do precedente da ADI nº 2.381, Relatora Ministra Cármen Lúcia. Crivo do Plenário. Manifestação pela existência da repercussão geral” (STF. RE nº 614.384-RG/SE, Rel. Min. Luiz Fux. Julg. 21.06.2012. DJe, 29 jun. 2012).

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fiscal foi proferida em 12 de novembro de 2008, portanto um mês antes da edição da EC nº 57/2008, que ratificou o processo de desmembramento e criação de municípios com base apenas em lei estadual.

Segundo Fux, embora várias ações versando sobre o assunto tenham sido decididas monocraticamente, nenhuma teve seu mérito julgado pelo Plenário, embora o assunto tenha repercussão em todos os Estados da Federação que tenham realizado desmembramento municipal em desacordo com a norma do art. 18, §4º, da CF, antes da entrada em vigor da EC nº 57/2008.

3 Das limitações do poder constituinte derivadoA questão da criação e desmembramento dos municípios, portanto,

mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 57/2008, continua provocando intensos debates, em razão das implicações inerentes ao tema.

Consoante explicitado anteriormente, o Recurso Extraordinário interposto pelo Município de Aracaju sustenta que a EC nº 57/2008 teria convalidado as normas de criação de municípios em desacordo com as disposições constitucionais.

Registre-se que, diferentemente do poder constituinte originário, o poder constituinte derivado é limitado, de sorte que a edição de emenda constitucional disciplinando determinada matéria esbarra em limitações explícitas e implícitas, motivo pelo qual se sujeita ao controle de constitucionalidade.

O poder constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional, portanto, conhece limitações constitucionais expressas e implícitas e é passível de controle de constitucionalidade.Apresenta as características de derivado, subordinado e condicionado. É derivado porque retira sua força do poder constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, às quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade; e por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.5

O poder constituinte derivado subdivide-se em poder constituinte reformador e derivado. O primeiro consiste na possibilidade de alterar o

5 Cf. MORAES. Direito constitucional.

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texto constitucional e será exercido pelo Congresso Nacional. Já o poder constituinte derivado decorrente consiste na possibilidade conferida aos Estados Membros se auto-organizarem por meio de suas respectivas Constituições Estaduais. Ambos, porém, devem observar as regras limitativas estabelecidas pela Constituição Federal.

A análise da constitucionalidade das espécies normativas pressupõe a comparação com determinados requisitos formais e materiais, com vistas a verificar sua compatibilidade com as normas constitucionais.

A inconstitucionalidade formal ocorre quando a lei ou o ato nor-mativo infraconstitucional contiver algum vício em sua forma, ou melhor, em seu processo de formação, “no processo legislativo de sua elaboração, ou, ainda, em razão de sua elaboração por autoridade incompetente”.6

Por seu turno a inconstitucionalidade material diz respeito ao conteúdo do ato normativo e ocorre quando este afronta norma ou princípio constitucional. Segundo Pedro Lenza, não nos interessa “saber aqui o procedimento de elaboração da espécie normativa, mas, de fato, o seu conteúdo. Por exemplo, uma lei discriminatória que afronta o princípio da igualdade”.7

Conforme ensinamentos do mestre Luís Roberto Barroso, o “con-trole material de constitucionalidade pode ter como parâmetro todas as categorias de normas constitucionais: de organização, definidoras de direito e programáticas”.8

Impende ressaltar, ainda, que uma mesma lei pode conter vícios de inconstitucionalidade formal e material. Nos dois casos, o reconhecimento da inconstitucionalidade acarretará a invalidade da norma.9

Assim, buscando afastar a inconstitucionalidade dos procedimentos de criação dos municípios, foi editada a EC nº 57/2008, convalidando o “procedimento” de criação dos entes previstos nas normas estaduais, independente do cumprimento das condições elencadas no §4º do art. 18 da CF.

6 LENZA. Direito constitucional esquematizado, p. 251.7 LENZA. Direito constitucional esquematizado, p. 254.8 BARROSO. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e

análise crítica da jurisprudência, p. 51. “Há uma única situação em que o caráter formal ou material da inconstitucionalidade acarretará efeitos diversos: quando a incompatibilidade ser de uma nova Constituição — ou uma emenda Constitucional — e norma infraconstitucional preexistente” (Idem).

9 BARROSO. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência, p. 51.

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Em nosso entendimento, contudo, não nos parece que a supressão de plebiscito configure vício formal ou de “procedimento”, posto que ao suprimir a manifestação das populações diretamente interessadas na criação de novo município, o legislador infraconstitucional violou frontalmente os preceitos da Constituição Federal, em evidente usurpação da competência preservada pelo titular do poder constituinte originário.

4 Da inconstitucionalidade material insanável e do desrespeito ao princípio da soberania popular

Conforme explicitado anteriormente, a Emenda Constitucional nº 57/2008 foi editada visando à convalidação das normas estaduais que criaram inúmeros municípios em desacordo com as condições estabelecidas na Constituição Federal.

No caso do Estado de Sergipe, por exemplo, o poder constituinte decorrente suprimiu uma dessas condições, qual seja a manifestação das populações diretamente envolvidas, utilizando-se para tanto da Constituição Estadual.

No caso sub examine, o povo, titular do poder constituinte originá-rio, não obstante tenha preservado a sua parcela de competência para autorizar ou não a deflagração de procedimento de criação de novos municípios, teve sua competência simplesmente suprimida pelo consti-tuinte derivado decorrente.

Ocorre que o poder constituinte derivado, por ser condicionado, deve submeter-se não apenas às limitações expressas, como também às limitações implícitas. Assim, a inconstitucionalidade, no caso em tela, pode ser verificada pela afronta ao princípio da soberania popular, consignado no parágrafo único do art. 1º da CF, in verbis:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (grifos nossos)

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Consoante estabelecido no parágrafo único do art. 1º da Consti-tuição Federal, o exercício do poder, que emana do povo, será exercido por meio de representantes ou diretamente, “nos termos” dispostos na Magna Carta.

O princípio da soberania popular, que é o fundamento do exercício do poder, seja por meio de representantes eleitos ou pela forma direta, restou flagrantemente violado pelas normas estaduais que afastaram a consulta popular como condição prévia para deflagração do processo de criação de novos municípios, conforme aventado pela Constituição Federal.

A teoria do poder constituinte está relacionada com a legitimidade do poder, com a soberania nacional e a soberania popular em um dado Estado. Nasceu do fortalecimento do racionalismo, em oposição ao poder absoluto das monarquias de direito divino, com a invocação da substituição de Deus pela nação, ou pelo povo, como titular da soberania.Contemporaneamente, é hegemônico o entendimento de que o titular do poder constituinte é o povo, pois só este tem legitimidade para determinar quando e como deve ser elaborada uma nova Constituição, ou modificada a já existente. A soberania popular, que é na essência, o poder constituinte do povo, é a fonte única de que procedem todos os poderes públicos do Estado.10

Destarte, embora o poder seja geralmente exercido por meio de representantes, em alguns casos, o titular do poder constituinte estabe-leceu o exercício direto de tais faculdades, como na questão relativa à criação de novos municípios, visto que tal decisão suscita repercussões de ordem social, política, econômica e tributária para as populações envolvidas.

Sociais, em virtude da melhora ou piora da prestação de serviços públicos essenciais; políticas, em razão da criação de novas estruturas de poder legislativo e executivo; econômicas, pois nem sempre o desmem-bramento contribui para o desenvolvimento local ou regional, e tributá-rias, pois estes novos municípios passaram a deter a competência ativa, sem muitas vezes oferecerem qualquer contrapartida aos contribuintes.11

10 PAULO; ALEXANDRINO. Direito constitucional descomplicado, p. 76.11 Embora o Estudo de Viabilidade Municipal introduzido pela EC nº 15/1996 tenha contribuído para afastar

em grande parte o risco de fragilidade econômica dos novos municípios, sustentamos que a realização de plebiscito também é imprescindível sob o ponto de vista econômico, visto que possibilita a manifestação da população a respeito da escolha de quais atividades econômicas devem ser incentivadas pela autoridade local.

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Registre-se, por fim, que a supressão da participação popular, ao tornar o procedimento mais rápido e menos dispendioso, gerou, por via de consequência, a criação desenfreada de municípios, em muitos casos, sem quaisquer condições de sobrevivência autônoma, dependentes da transferência de recursos federais e do Fundo de Participação dos Municípios.

Além disso, convém consignar que os novos municípios, criados após a promulgação da Constituição Federal, deveriam corresponder às expectativas de seus munícipes como instrumentos de formulação e implementação de políticas públicas; sendo, portanto, um meio para se atingir um fim, e não um fim em si mesmo.

ConclusãoAnte todo o exposto, reputamos que a promulgação da EC nº 57/2008

visando à convalidação das normas estaduais que criaram municípios em desacordo com o disposto no §4º do art. 18 da Constituição Federal não teve o condão de afastar o vício de inconstitucionalidade material das normas que suprimiram a realização de plebiscito junto às populações diretamente envolvidas, posto que tal participação encontra seu funda-mento no princípio da soberania popular, não podendo ser afastada pelo constituinte derivado.

Abstract: This work intends to make a brief study about the reach of the Brazilian Constitutional Amendment n. 57/2008 which validated the creation of the municipal districts in disagreement with the article 18, 4th paragraph, of the Federal Constitution; pointing out that the Amendment n. 57/2008 would not have the power of validating the rules that suppressed the realization of plebiscite. The plebiscite has its source in the principle of the popular supremacy, thus the laws that suppressed the plebiscite would be reached by unconstitutional material. Recently the Brazilian Supreme Court declared the reverberation of the cases that broached the laws that suppressed the popular participation. The leading case is waiting to be judged.

Key words: Constitutional Amendment n. 57/2008. Plebiscite suppression. Leading case. Irremediable unconstitutional material. Disobedience of the popular supremacy principle.

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Referências

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BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 3, t. I.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 2. ed. Niterói: Impetus, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

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A proteção à intimidade na Constituição da República de 1988Ciro Benigno PortoAdvogado da União. Especialista em Direito Processual Civil.

Resumo: O direito à intimidade é imprescindível ao desenvolvimento da personalidade humana. Atento à sua força e relevância, o constituinte de 1998 previu pela primeira vez em nossa história constitucional a sua previsão explícita. A expressa positivação permitiu definitivamente a construção de sua autonomia e distinção com a proteção à vida privada. O presente artigo objetiva expor as principais notas conceituais do direito fundamental à intimidade, caracterizar sua autonomia e identificar as hipóteses constitucionais de exceção.

Palavras-chave: Direito fundamental à intimidade. Sigilo das comunicações telefônicas. Interceptação telefônica.

Sumário: 1 Introdução – 2 O direito fundamental à intimidade – 3 O direito à intimidade na Constituição da República de 1988 – 4 Considerações finais – Referências

1 IntroduçãoTodo homem, por mais tímido ou reservado que seja, tem em sua

essência a necessidade de conviver e de se comunicar com seus semelhan-tes. Há mais de dois mil anos já havia enunciado Aristóteles a verdadeira máxima: “O homem é um animal político”.

Entretanto, ao lado da sua inafastável vocação social, é igualmente natural que todo ser humano, em alguns momentos da vida, busque o distanciamento da sociedade desejoso de manter fora do conhecimento de terceiros os fatos de sua vida pessoal, zelando pela tranquilidade e estabilidade tão imprescindíveis ao desenvolvimento da personalidade humana. A intimidade corresponde a essa dimensão da existência humana, revelando-se como manifestação da liberdade espiritual e refletindo a ideia de extrema interioridade.

O direito, fenômeno social por excelência, não poderia se omitir de tutelar esse aspecto ínsito ao psiquismo humano. Nessa esteira foi que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não se fez indiferente a este particular modo de existir dos homens. Previu

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expressamente a proteção à intimidade de homens e mulheres em seu inciso X, art. 5º, o qual conta com a seguinte redação, litteris:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a “indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Ao tutelar expressamente a intimidade, buscou o constituinte originário resguardar a personalidade dos cidadãos, protegendo-os da ingerência ilegítima do Estado e de terceiros.

2 O direito fundamental à intimidadeA natureza humana encerra em si duas dimensões distintas e

complementares, de cuja interação dependem o desenvolvimento da personalidade e a satisfação dos interesses humanos. O homem possui, a um só tempo, uma vida interior e outra exterior.

Atento a essa verdade, o Professor Arnaldo Vasconcelos com extre-ma precisão observa que “livre, o homem pertence ao mesmo tempo a dois planos distintos, que se hão de compor, para que possa realizar seus fins. Como ser individual, é-para-si; na qualidade de ser social, é-para--o-outro”.1 Ainda de acordo com o comentário esclarecedor do Professor Maurício Benevides, “o ser humano procura satisfazer dois interesses paralelos: como indivíduo, o interesse a uma existência livre; e como membro do consórcio humano, o interesse a um pleno desenvolvimento dentro na vida social”.2

Em toda sociedade, segundo o entendimento uníssono dos antro-pólogos, há mecanismos de distanciamento social. Com efeito, não é exagero se afirmar que é natural e esperado que os homens busquem, em determinados momentos de sua vida, o distanciamento da sociedade. Não se quer aqui defender que nesses momentos o homem busque viver fora dela, aqui se concordado com vocação social do homem já

1 VASCONCELOS. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 12.2 BENEVIDES FILHO, Maurício. Direito à intimidade e o processo de investigação de paternidade: direito

à recusa ao exame hematológico. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 159.

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enunciada por Aristóteles no século IV a.C.3 De fato, a vida solitária é exceção. Entretanto, não se pode negar ser natural ao ser humano que em certos momentos, ou diante de determinadas circunstâncias, se busque o afastamento do convívio social a fim de obter ou recuperar a tranquilidade e a estabilidade necessárias ao desenvolvimento de sua personalidade humana.

Sobre esse aspecto da natureza humana, veja-se a valiosa lição de Martins Valentino:

O homem, muitas vezes, não deseja compartilhar fatos e informações particulares com terceiros. Outras vezes, necessita de um momento consigo mesmo para reflexão e meditação, ou simplesmente permanecer afastado da sociedade com o fim de obter a paz e tranquilidade necessárias ao seu desenvolvimento material e, sobretudo, espiritual.4

Esse aspecto interior do indivíduo é que se denomina vida privada, que, grosso modo, representa o modo particular de cada indivíduo existir.

2.1 O direito à vida privada e o direito à intimidade – Identidade de conceitos?

De antemão, faz-se necessário anotar que não há na doutrina posição unânime quanto à diferenciação entre vida privada e intimidade. Tal confusão certamente advém da indistinta e corriqueira utilização dessas expressões no nível do senso comum.

Não obstante a utilização de vida privada e intimidade como sinônimos, a doutrina, a exemplo de Paulo José da Costa Jr.,5 tem empenhado visíveis esforços em estabelecer a diferença e o alcance de cada uma das expressões. Nessa investida destacam-se duas posições.

Maurício D’Olivo6 anota que o alemão Hubman edificou a teoria das esferas concêntricas para relacionar intimidade e vida privada. Para o

3 Cf. ARISTÓTELES. A política. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, 1965, I. 9.4 VALENTINO, Cyrlston Martins. As exceções ao sigilo das correspondências e comunicações na Constituição

de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4029>. Acesso em: 22 set. 2006.

5 Cf. COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal na Constituição. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991, p. 200.

6 Cf. D’OLIVO, Mauricio. O direito a intimidade na Constituição Federal de 1988. Cadernos de Direito Cons-titucional e Ciência Política, São Paulo, v. 4, n. 15, abr./jun. 1996, p. 192.

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doutrinador teutônico, a personalidade humana abrange três círculos concêntricos, que, em ordem crescente do comprimento dos raios, são a Intimsphäre (esfera íntima), Geheimnisphäre (esfera do segredo) e Privatsphäre (esfera privada).

No círculo de menor raio (Intimsphäre) estaria o âmbito da vida do indivíduo que este deseja manter em segredo, totalmente protegida do assédio de terceiros e do Estado. Com um pouco mais de amplitude, na esfera de tamanho intermediário (Geheimnisphäre) situar-se-ia uma parcela do segredo um pouco mais ampla, admitindo-se a presença de certas pessoas que fazem parte da vida cotidiana do indivíduo. “Apenas” a coletividade em geral estaria fora desse círculo interposto. Por fim, no círculo mais abrangente (Privatsphäre) de desenvolvimento da personalidade humana encontram-se os dados específicos de determinada pessoa, os quais são conhecidos não somente pelas pessoas que fazem parte do seu cotidiano, mas também pela coletividade que de alguma forma participa da vida dessa pessoa.

O círculo de maior monta representa a vida privada, dentro da qual se colocaria necessariamente a intimidade segundo uma relação de especialidade.

Em doutrina muito semelhante àquela desenvolvida por Hubman, René Ariel Dotti7 faz menção à existência de apenas dois círculos igualmente concêntricos. O de menor raio teria como conteúdo a intimidade, composta pelo segredo e pela reserva, ao passo que o de maior raio seria relativo à vida privada.

É simples observar que a dessemelhança entre as referidas teorias é bastante sutil e carece de efeitos jurídicos. É igualmente suave a tarefa de se identificar os pontos coincidentes entre os dois entendimentos, os quais nos interessarão mais de perto para o alcance dos fins deste estudo.

Em primeiro lugar, parece ser pacífico que vida privada é gênero8 do qual a intimidade é eixo central, núcleo. Assim, a vida privada representa um campo que compreende o particular modo de ser e viver de cada ser humano, é dimensão da vida do indivíduo que se desenvolve

7 DOTTI, René Ariel. A proteção da vida privada e a liberdade de informação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 67, n. 514, ago. 1978, p. 67.

8 Embora Maurício D’Olivo registre a existência de corrente minoritária que entende ser a vida privada uma faceta do que integra o conceito de intimidade para fins jurídicos, p. 191.

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fora das vistas do público. Por outras palavras, abrange “os aspectos que por qualquer razão não gostaríamos de ver cair no domínio público; é tudo aquilo que não deve ser objeto de direito à informação nem da curiosidade da sociedade moderna”.9

Como bem assevera José Adércio Leite Sampaio, o destacado estudioso pátrio da matéria,

a intimidade integra a vida privada, porém de uma forma muito mais dinâmica do que comumente apresentada; cuida-se de sua projeção no âmbito das informações pessoais, do relacionamento comunicativo do ser com os demais, enfim, de uma “autodeterminação informativa ou informacional”.10

Tércio Sampaio Ferraz Júnior diferencia intimidade e vida privada valendo-se do critério do grau de exclusividade entre ambos. Para o Professor da Universidade de São Paulo:

A intimidade é o âmbito exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada, que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros (na família, no trabalho, no lazer em comum). [...] Já a vida privada envolve a proteção de forma exclusiva de convivência (grifo original). [...] A vida privada pode envolver, pois, situações de opção pessoal (como a escolha do regime de bens do casamento) mas que, em certos momentos, podem requerer a comunicação a terceiros (na aquisição, por exemplo, de um bem imóvel). Por aí ela difere da intimidade, que não experimenta essa forma de repercussão.11 (grifos nossos)

Ainda, consoante a lição de Dotti,12 a intimidade se caracteriza como a parcela secreta da vida de um indivíduo, na qual este tem o poder legal de evitar os demais. É, portanto, formada por aquelas informações sobre as quais o indivíduo detém com exclusividade o poder de decidir se as resguardará para si ou se as divulgará para terceiros, não podendo ser compelido pelo Estado ou por quem quer que seja a revelar o conteúdo desses dados.

9 D’OLIVO, op. cit., p. 190.10 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da

família, da comunicação e informações pessoas, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 351.11 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o direito a privacidade e os limites à função fiscalizadora

do estado. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, v. 1, n. 1, out./dez. 1992, p. 79.12 Cf. DOTTI, op. cit., p. 69.

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Em segundo lugar, capta-se que a vida privada e a intimidade são aspectos do direito à personalidade por serem intrínsecos à essência do indivíduo. São atributos do indivíduo e lhe servem para determinar o reconhecimento como certa e determinada pessoa. Como consequência lógica, tanto o direito à vida privada quanto o direito à intimidade possuem a natureza jurídica de direito personalíssimo,13 ligados que estão à própria essência do indivíduo.

A consequência jurídica desse enquadramento é o reconhecimento de que os direitos à vida privada e à intimidade destinam-se a resguardar a personalidade da pessoa humana, fazendo por merecer do Estado a adequada tutela frente às agressões porventura intentadas por ele (Estado) ou por terceiros.

Pelo exposto, vê-se que o direito à intimidade e à vida privada não são conceitos jurídicos e filosóficos coincidentes. Há, porém, quem defenda que a referida distinção carece de juridicidade e por tal motivo as expressões poderiam ser, inclusive, usadas como sinônimas.14

Sou pela posição que sustenta serem o direito à intimidade e à vida privada figuras distintas. Aproximam-se, no entanto, enquanto direitos personalíssimos por natureza, e, como tais, imprescindíveis à realização de uma dimensão da existência humana, além de serem igualmente referenciadas pela dignidade da pessoa humana. Essa proximidade inegável não significa que se deva efetuar a redução dos dois institutos à mesma figura, devendo o intérprete reconhecer e identificar a autonomia de cada um desses direitos.

2.2 Origem e fontes jurídico-positivas do direito à intimidadeNa Antiguidade e na Idade Média não se tinha com nitidez a

diferença entre público e privado, ocasião em que se separava apenas o que era de utilidade comum e o que era de utilidade dos particulares. Tal fato, todavia, não quer dizer que a intimidade dos membros das diversas sociedades não recebia proteção das ordens jurídicas correspondentes. O direito à intimidade recebia proteção jurídica a partir dos efeitos que

13 Segundo Rubens Limongi França, o direito à intimidade compõe os chamados direitos da personalidade, situados, didaticamente, na subdivisão Direito à Integridade Moral.

14 Cf. D’OLIVO, op. cit., p. 190.

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radiavam de institutos clássicos já assentes pela dogmática jurídica, tais como o direito à honra e à propriedade.

É somente na modernidade ocidental que o direito à intimidade dei-xa de ser tutelado reflexamente e passa a contar com proteção específica.

Costuma-se a atribuir a sua formulação jurídica ao Juiz americano Cooley, que em 1873 o reconheceu como o direito de ser deixado em paz (the right of to be alone), e aos juristas Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis, que, em 1980 nos Estados Unidos, publicaram na Harvard Law Review o artigo The right of privacy.15 Este estudo foi que, na verdade, inaugurou um novo sentido de proteção jurídica do direito à intimidade.

Warren e Bradeis, cientes do assustador crescimento das cidades e do imenso progresso técnico conquistado no século XIX e desejosos de prevenir que os usos das conquistas da ciência e da técnica atentassem contra os direitos e liberdades democráticas, propuseram nova conceituação do direito da intimidade, desta vez não mais pautado em bases físicas (propriedade, honra, imagem, inviolabilidade do domicílio), mas na inviolabilidade da personalidade.16 Estavam lançadas as bases para a proteção específica dos sentimentos, emoções e sensações individuais.

Desde então, o direito à intimidade tem sido expressa e autonoma-mente tutelado em diversos Estados Ocidentais. A título de ilustração, podemos mencionar que nos Estados Unidos da América referido direito é denominado de the right of privacy ou the right to be alone. Na França, droit à la vie privée. Na Itália, diritto alla riservatezza. Na Espanha, derecho a la esfera secreta. Na Alemanha, Intimsphäre. Em Portugal, proteção à intimi-dade da vida privada e direito à zona de intimidade da esfera privada. Por fim, no Brasil,17 como de costume, não se varou das denominações estrangeiras, recebendo referido direito a denominação de direito à intimidade,18 direito à privacidade, direito ao resguardo, direito de estar só e direito ao recato.

Há ainda diversos dispositivos de ordem internacional que, ao primarem pela proteção jurídica dos direitos da personalidade, tutelam

15 Cf. MIRANDA, Rosâgelo R. Tutela constitucional do direito a proteção da própria vida privada. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, v. 3, n. 13, out./dez. 1995, p. 164.

16 Cf. SAMPAIO, op. cit., p. 57.17 Cf. POPP, Carlyle. Aids e a tutela constitucional da intimidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília,

v. 29, n. 115, jul./set. 1992, p. 141.18 Em momento anterior deste trabalho já manifestei alcance específico da expressão direito à intimidade,

não nos parecendo correta a utilização dos termos agora mencionados como sinônimos (vide item 1.2.1).

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o direito à intimidade. O primeiro a surgir no mundo jurídico foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), cujo art. 12 conta com a seguinte dicção:

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques da sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques (grifos nossos).

Sobrevieram a esse diploma normativo de natureza internacional a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (1969), também conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica, e o Pacto sobre Direitos Políticos e Civis da ONU (1976).

A positivação dos mais diversos dispositivos de proteção à intimidade advém da preocupação das sociedades políticas em evitar a exposição do ser humano a situações degradantes. A proteção à intimidade assegura a livre manifestação espiritual da pessoa humana e como tal não poderia ser desprezada pelos Estados modernos, tampouco pela Comunidade Internacional.

2.3 O direito à intimidade como direito fundamental de primeira geraçãoCostuma a doutrina classificar os direitos fundamentais em três

gerações. O estudioso Juiz Federal da Seção Judiciária do Ceará, George Marmelstein Lima, em ousado artigo19 nos leciona que foi o jurista Karel Vasak, ao proferir no ano de 1979 em Estraburgo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, que utilizou pela primeira vez a expressão gerações de direitos do homem. Buscou-se demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Leciona o dedicado magistrado cearense:

De acordo com o referido jurista [Karel Vasak], a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté). A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (egalité). Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité).20

19 LIMA, George Marmelstein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 173, 26 dez. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4666>. Acesso em: 02 out. 2006.

20 Ibidem.

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Como se procurou demonstrar alhures, o direito à intimidade tem por conteúdo a proteção da individualidade do homem, não apenas em oposição aos outros indivíduos e à sociedade como um todo, mas também, e principalmente, frente ao Estado.

O Professor Paulo Bonavides ensina com extrema precisão que “os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos de cada pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico”.21

Ora, diante de tais ensinamentos, é lícito concluir que o direito à intimidade é, por natureza, direito fundamental de primeira geração. Trata-se de direito de resistência ou de oposição perante o Estado, cuja observância assegura a cada membro da sociedade espaço reservado à sua interioridade, sendo a preservação desta uma necessidade inerente ao psiquismo humano.

3 O direito à intimidade na Constituição da República de 19883.1 Breve histórico da positivação do direito à intimidade nas constituições

brasileirasAs Constituições brasileiras anteriores a 1988 sempre tutelaram

o direito à intimidade, ainda que não explicitamente. Nas ordens constitucionais anteriores à inaugurada com a Constituição Cidadã, protegiam-se os direitos da personalidade e as diversas manifestações do direito à intimidade, especialmente o sigilo epistolar e a inviolabilidade do domicílio. Assim, desde antes de 5 de outubro de 1988 a tutela da intimidade sempre esteve consagrada pelo Direito Constitucional pátrio, ainda que não expressamente.

A Constituição Política do Império do Brasil, jurada em 24 de março de 1824 por D. Pedro I, tutelava a inviolabilidade individual ao conferir proteção genérica aos direitos da personalidade. Eis a dicção do seu art. 179, litteris:

Artigo 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...]

21 BONAVIDES, op. cit., p. 517.

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XXVII - O Segredo das Cartas é inviolável. A administração do Correio fica rigorosamente responsável por qualquer infracção deste Artigo.

Ao assegurar a inviolabilidade do domicílio e das cartas, a Cons-tituição do Império prestigiava a tutela da intimidade, ainda que impli-citamente.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, pro-mulgada em 24 de fevereiro de 1891, também previa tutela oblíqua da intimidade ao assegurar a inviolabilidade do domicílio e o sigilo de correspondências. Assim constava em nossa primeira constituição republicana:

Art. 72. A Constituição assegura a brazileiros e estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança, individual e á propriedade nos termos seguintes: [...]§11 A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. [...]§18 É inviolável o sigilo da correspondência.

Na esteira das antecessoras, a Constituição da República dos Esta-dos Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, a primeira a prever um capítulo próprio para os direitos e garantias individuais, igualmente se limitou a tutelar a intimidade através da proteção ao sigilo de correspondência e da inviolabilidade do domicílio:

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]8) É inviolável o sigilo da correspondência. [...]16) A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei.

A Constituição da República dos Estados Unidos, outorgada em 10 de novembro de 1937, mesmo instaurando um regime ditatorial no país, repetiu o conteúdo de suas antecessoras:

Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

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6º) a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei.

Em 18 de setembro de 1946 foi promulgada a nova Constituição dos Estados Unidos do Brasil, a qual logrou devolver ao país um regime democrático. Nesta, a intimidade dos membros da sociedade brasileira continua a ser reflexamente protegida através da garantia do sigilo das correspondências e da inviolabilidade do domicílio. Eis o dispositivo que contém referida prescrição:

Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

§6º É inviolável o sigilo da correspondência. [...]

§15 A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Ninguém, poderá nela penetrar à noite, sem consentimento do morador, a não ser para acudir a vitimas de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e pela forma que a lei estabelecer.

Encerrando intrigante contradição, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, a qual instalou o mais cruciante regime ditatorial entre nós, alargou o âmbito da tutela reflexa da intimidade. Desta vez, o Texto Constitucional não se limitou a proteger o sigilo das correspondências e a inviolabilidade do domicílio. Passou-se a garantir também (com enorme atraso, diga-se) o sigilo das comunicações tele-gráficas e telefônicas:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]§9º São invioláveis a correspondência e o sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas.§10 A casa é o asilo inviolável. do indivíduo. Ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer.

A Emenda Constitucional nº 01/1969 alterou a localização desses dispositivos, os quais, embora conservando a redação original, passaram a ser assentados art. 153, §§9º e 10 da Carta Magna então vigente.

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Com certa facilidade se observa que a intimidade era tutelada apenas genérica e reflexamente pelas Constituições anteriores, pois, na verdade, se conferia proteção jurídica a apenas algumas de suas formas de manifestação.

Apenas com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, “A Constituição Cidadã”, o direito à intimidade passou a contar com previsão constitucional expressa.

3.2 Previsão constitucional da tutela do direito à intimidade na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 alçou expressamente o direito à intimidade ao patamar de norma constitucional. Inserto em capítulo específico que versa sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, a inviolabilidade da intimidade encontra-se direta e explicitamente tutelada no art. 5º, inciso X, da Lex Fundamentalis vigente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabili-dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (grifei)

De plano, percebe-se que o Constituinte Originário considera diversos o direito à intimidade e à vida privada.22 O dispositivo constitu-cional vai além: não se restringe a diferenciar vida privada e intimidade, considerando o direito à intimidade autônomo em relação aos direitos à honra e à imagem, quando a doutrina as reputava manifestação daquele.23

Entretanto, a tutela direta, genérica e explícita da intimidade não implica em sua desconexão em relação a outros direitos igualmente previstos na Constituição. Uma vez que o direito à intimidade se revela como manifestação da liberdade espiritual e reflete uma ideia de extrema

22 José Afonso da Silva também reconhece a distinção operada pela Constituição. Entretanto, elege a expres-são direito à privacidade, “num sentido genérico, e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 206).

23 Cf. D’OLIVO, op. cit., p. 196.

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interioridade, projetando-se como o poder legal do indivíduo de excluir do conhecimento de terceiros ou do Estado os dados e fatos que lhe digam respeito, a inviolabilidade do domicílio, o direito ao sigilo da correspondência, do sigilo bancário, dos dados pessoais, das comuni-cações (telegráficas, de dados e telefônicas) e ao segredo profissional são corolários daquele, constituindo-se em aspetos particulares de seu conteúdo normativo.

3.3 O sigilo das comunicações telefônicas como manifestação do direito à intimidade

O homem, por mais tímido ou reservado que seja, tem a inafastável necessidade, ínsita à sua natureza, de conviver e de se comunicar com os seus semelhantes. Na busca da realização desse anseio, tem-se visto ao longo da história a constante evolução dos meios hábeis a estabelecer a comunicação entre os seres humanos, tendo, nessa linha do tempo, o telefone surgido apenas em 1876.

O fato é que, modernamente, o telefone é imprescindível nas relações sociais, tratando-se de um dos meios mais céleres e efetivos de comunicação. Em razão disso, o conhecimento das mensagens veiculadas por este meio desperta o interesse de terceiros e do próprio Estado. Ciente dessa visível realidade Volnei Ivo Carlin assevera que

por certo e em razão disso, as violações das conversas telefônicas adquiriram dimensões agudamente sentidas, porque se configuram, como regra, o desconhecimento do titular do direito, deixando o telefone de servir ao homem e a sua felicidade, para converter-se num instrumento de tortura psicológica.24 (grifos nossos)

Deste modo, a manutenção do sigilo das informações trocadas via telefone reflete um desejo da comunidade reconhecido pela nossa Ordem Constitucional vigente. O sigilo das comunicações telefônicas é especificamente protegido pela Carta Magna de 1988 em seu art. 5º, inciso XII, o qual conta com a seguinte dicção, litteris:

É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial e

24 CARLIN, Volnei Ivo apud FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 88.

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na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. (grifos nossos)

A partir da comparação das Constituições brasileiras anteriores com a que atualmente vige, constata-se que a proteção à intimidade precisou ser legislativamente modificada para acompanhar o desenvol-vimento tecnológico. A garantia da inviolabilidade do domicílio e das correspondências não mais se mostravam suficientes para propiciar a efetiva preservação da intimidade dos membros de uma sociedade que passou a conviver com o aparecimento de microcâmaras, aparelhos de interceptação telefônica e diversos inventos colocados a disposição daqueles que se dedicam a devassar a vida alheia.

Em razão disso, a Lei Fundamental teve de evoluir e, procurando assegurar a efetividade do direito à intimidade, destacou a inviolabilidade das comunicações telefônicas.

Sem maiores dificuldades, verifica-se que o direito fundamental à inviolabilidade das comunicações telefônicas repercute diretamente no âmbito conceitual do direito à intimidade encampado neste trabalho. O sigilo das comunicações telefônicas apresenta-se como desdobramento do direito à intimidade, à medida que qualquer sujeito tem o poder legal de retirar da curiosidade alheia o conteúdo de suas comunicações telefonadas. É patente o seu caráter de direito fundamental. Buscou o constituinte originário resguardar personalidade e aquilo que há de mais reservado na vida dos cidadãos, protegendo-os da ingerência ilegítima do Estado e de terceiros.

Pela Ordem Constitucional instaurada em 1988 a intangibilidade das comunicações telefônicas foi expressamente reconhecida como essencial à preservação da intimidade, tendo sido erigida ao status de cláusula pétrea.

3.4 Restrições expressas à inviolabilidade das comunicações telefônicasO sigilo das comunicações telefônicas, não obstante seja um direito

fundamental, não possui, a exemplo de qualquer outro direito desta natureza, caráter absoluto. Isso se deve a uma única razão: a dignidade da pessoa humana é a fonte ética de todos os direitos fundamentais, servindo, ao mesmo tempo, como fundamento e limite de todos os direitos fundamentais.

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Ocorre que, diante da multiplicidade de aspectos e projeções valorativas dos direitos fundamentais, não raramente surgirá uma situa-ção de colisão entre eles em um caso concreto e sendo a dignidade da pessoa humana o valor básico do qual provém todos os direitos funda-mentais, deve-se emprestá-los caráter relativo diante da ponderação dos interesses envolvidos.

Com maestria e concisão, o Professor Glauco Barreira Magalhães Filho nos ensina que:

O direito foi criado pelo homem, que é fim e não meio. O princípio da dig-nidade da pessoa humana, embora consagrado na Constituição, é um valor suprapositivo, pois é pressuposto do conceito de Direito e a fonte de todos os direitos, particularmente dos direitos fundamentais. Por força desse princípio é que o direito fundamental não pode excluir o outro, quando há entre eles colisão no caso concreto, pois a dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais, o que significa que o sacrifício total de algum deles impostaria violação do valor da pessoa humana.25 (grifos nossos)

Por óbvio, o sigilo das comunicações telefônicas não se trata de um direito absoluto, mas relativo que encontra seus em outros direitos ou bens consagrados constitucionalmente. Em razão da necessidade de proteger a sociedade como um todo contra a prática de atividades ilícitas ou criminosas, a Constituição Federal estabelece duas limitações expressas à inviolabilidade das comunicações telefônicas:

a) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (CF, art. 5º, XII26);

b) para a defesa do Estado e da democracia quando decretado o Estado de Defesa ou Estado de Sítio (CF, art. 136, §1º, inciso I, alínea “c”27 e art. 139, III28).

25 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2003, p. 228.

26 CF, art. 5º, [...], XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

27 CF, art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de: [...] c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.

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Para os fins deste trabalho, nos interessará mais de perto a primeira hipótese de restrição, pois é a que se verifica no curso normal da vida democrática.28

A redação do art. 5º, inciso XII, da Carta da República de 1988 contempla a relatividade da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas e se consubstancia num poderoso meio posto pelo Constituinte à disposição do Estado para fins de obtenção de prova. Entretanto, condiciona o Texto Constitucional a sua quebra da intimidade para o fim de obtenção de prova ao preenchimento simultâneo de três requisitos:

a) expedição de ordem judicial;b) finalidade de investigação criminal ou instrução processual

penal; ec) somente nas hipóteses que a lei estabelecer.Tratando-se de norma de eficácia limitada, somente com a edição

da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, o dispositivo constitucional adquiriu aplicabilidade plena.

4 Considerações finaisDesde os primeiros ordenamentos jurídicos a tutela da intimidade

dos indivíduos se dava apenas reflexamente, através da proteção de outros bens jurídicos então assentes na dogmática jurídica, tais como a inviolabilidade do domicílio e o sigilo epistolar.

Tal realidade não foi diversa no direito brasileiro. Somente quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988, o direito à intimidade foi expressamente alçado à condição de direito fundamental (art. 5º, inciso X). Por este diploma constitucional, o direito à intimidade ganhou autonomia, cercando-se-lhe de disciplina própria e distinta daquela que até então se conferia genericamente à vida privada.

Todavia, a tutela genérica e explícita da intimidade não implica em sua desconexão com outros direitos igualmente consagrados na constituição. Assim é que a Lei Fundamental, buscando assegurar a

28 CF, Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: [...]

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei.

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efetividade do direito à intimidade, destacou a inviolabilidade das comunicações telefônicas (art. 5º, XII).

É patente o seu caráter de liberdade pública.Embora consagrado pela Constituição da República como um

direito fundamental, o direito à intimidade não encerra em si um valor absoluto. Tanto é que o mesmo Texto Constitucional, explicitamente, através da previsão constante do inciso XII, art. 5º, o excepciona ao admitir a interceptação telefônica desde que presentes três requisitos: a) ordem judicial; b) finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal; c) nas hipóteses e na forma que lei estabelecer.

Reconhecida intangibilidade do sigilo das comunicações telefônicas como direito fundamental, a própria Constituição o excepciona diante da necessidade de o Estado proteger a sociedade como um todo, permitindo a quebra do sigilo das comunicações telefônicas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

São, portanto, preciosas e circundadas de rigorismo formal as restritas possibilidades de relativização desse direito. E assim o deve ser, dada sua vocação imanente à proteção da personalidade do cidadão em face de eventuais investidas do Estado ou de particulares.

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Dignidade da pessoa humana e ponderaçãoEmanuel de Melo FerreiraAdvogado da União. Especialista (LFG-UNISUL). Mestre em Ordem Jurídica Constitucional (UFC).

Resumo: A dignidade da pessoa humana ganhou extraordinária força após os trágicos eventos vivenciados na Segunda Guerra Mundial, quando o ser humano foi alvo das mais condenáveis barbáries. Apesar de apresentar status constitucional, a dignidade é uma qualidade essencial do ser humano, conforme os ensinamentos Cristãos, não cabendo à ordem jurídica conferir dignidade, mas sim reconhecê-la, protegê-la, promovê-la e respeitá-la. Através das ideias de Kant, a dignidade se laiciza, e ganha força a ideia do homem como um fim em si mesmo. Há profunda divergência acerca do caráter absoluto ou relativo da dignidade da pessoa humana, sendo que autores como Ingo Sarlet defendem a relativização do princípio, tendo em vista sua colisão com a dignidade de outrem.

Palavras-chaves: Dignidade da pessoa humana. Ponderação.

Sumário: 1 Introdução – 2 Aspectos filosóficos da dignidade – A doutrina cristã e a filosofia moral de Kant – 3 Conceituação e concretização da dignidade – 4 Aspectos jurídicos da dignidade – 5 Dignidade da pessoa humana e ponderação – Referências

1 IntroduçãoSabe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana ocupa

papel de destaque nas constituições contemporâneas, sobretudo nos países nos quais vige o regime democrático. Em verdade, tal tendência encontrou campo fecundo para proliferação após os horrores vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo tendo em vista, por exemplo, o genocídio de judeus perpetrado pelo regime nazista, demonstrando como o ser humano pode ter sua condição degradada mediante ataques desferidos pelas próprias autoridades públicas.1

1 É nesse sentido que Glauco Barreira Magalhães Filho aponta a necessidade de se reconhecer uma garantia aos direitos até mesmo frente à própria lei, pois esta pode amparar atitudes ditatoriais, como ocorreu em relação às práticas nazistas e a outras ditaduras nos mais diversos países. Tal garantia seria exercida pela Constituição, já que “a lei pode, às vezes, corromper; a Constituição, todavia, apresenta-se como garantia do poder autorizado ou legítimo, exercido em proveito da pessoa humana” (MAGALHÃES FILHO. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p. 64-65).

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Tal afirmação histórica, desse modo, mostrou-se consentânea com a vontade de resposta e reação que a humanidade de uma maneira geral sentiu em relação aos abusos cometidos contra o ser humano, havendo a necessidade, portanto, de se positivar em diversos textos constitucionais o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal consagração implicou a revisão de diversos conceitos antes aceitos como verdadeiramente absolutos, tendo em vista, sobretudo, o reconhecimento da supremacia da Constituição frente a então reconhecida supremacia da lei e, conse-quentemente, a aceitação da força normativa dos princípios, passando a concebê-los como normas jurídicas.

É nessa perspectiva neoconstitucional2 que se abordará o tema em questão, analisando em que consiste a dignidade da pessoa humana, seu caráter aberto e de difícil conceituação, seu aspecto normativo fundamental e sua implicação com os direitos fundamentais, passando-se, necessariamente, por uma consideração filosófica, na qual abordar-se-ão as tematizações feitas pelo cristianismo e pela filosofia moral de Kant, pressupostos necessários para o entendimento razoável desse princípio tão caro para a humanidade e para o constitucionalismo contemporâneo.

Além disso, enfrentar-se-á o problema referente ao caráter absoluto ou relativo do princípio em tela, analisando, assim, se numa eventual colisão com outros princípios constitucionais haveria a possibilidade de se ponderar as normas colidentes, relativizando, portanto, o princípio em questão. Há fecunda polêmica em torno dessa problemática, que será debatida a partir, sobretudo, dos referenciais teóricos propostos por Robert Alexy, para quem a dignidade da pessoa humana apresenta-se em parte como regra e em parte como princípio.3

Nesse momento, será apresentado o célebre HC nº 71.373, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) deparou-se com a questão acerca da constitucionalidade da condução coercitiva do réu que se nega a fazer o exame de DNA no curso da ação de investigação de paternidade. A

2 A expressão é utilizada e defendida, dentre outros, por Luís Roberto Barroso em seu artigo “Neocons-titucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)” na Revista de Direito Administrativo. Nesse texto o autor aponta as razões teóricas, históricas e filosóficas para o reconhecimento de uma nova maneira de ver a Constituição, agora compreendida como realidade normativa.

3 ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, p. 105-109.

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decisão dessa Corte mostrará como sua jurisprudência posiciona-se sobre a relativização da dignidade da pessoa humana.

2 Aspectos filosóficos da dignidade – A doutrina cristã e a filosofia moral de Kant

O cristianismo apresentou ao mundo uma doutrina pautada em ideais de igualdade e fraternidade, tendo mostrado formulações sobre a ideia de dignidade da pessoa humana até então desconhecidas. Em verdade, ao se estatuir que “amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento”, bem como “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, a doutrina cristã, através desses dois mandamentos,4 mostrou como a preocupação meramente individual era egoística, cabendo a cada um o respeito ao próximo. Tal respeito ao semelhante era devido porque o homem havia sido concebido à imagem e semelhança de Deus, não havendo, portanto, diferença ontológica entre eles. Todos seriam, assim, dotados da mesma dignidade, pois descendentes do mesmo Criador.

Partindo de tais premissas, Glauco Barreira Magalhães Filho assinala que:

para o cristianismo, o homem distingue-se dos animais por possuir uma alma imortal, racional e livre, dotada de capacidade de fazer opções morais e de poder de criatividade artística. Essa alma distingue-se do corpo, apesar de interagir com ele, daí porque muitas emoções diferentes provocam as mesmas reações físicas, evidenciando que há em nós um homem interior tão rico que as sensações físicas se mostram como uma linguagem pobre para lhe dar expressão.5

Já se pode perceber que a dignidade da pessoa humana, da maneira como apresentada pela doutrina cristã, deveria ser entendida como atributo inerente à qualidade de ser humano. Tal entendimento afasta-se frontalmente da ideia de dignidade relacionada à ocupação de determinado cargo, posição ou função de destaque em certa hierarquia administrativa, pois o que confere dignidade não é o exercício de certas funções ou a aquisição de certa honraria. Esse antigo entendimento,

4 Evangelho segundo São Mateus, cap. 22, vers. 37 a 40.5 MAGALHÃES FILHO, op. cit., p. 140.

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portanto, afastava-se completamente do conceito de dignidade da pessoa humana no âmbito da moral.6

Gradativamente, no entanto, o entendimento acerca da dignidade da pessoa humana foi se laicizando, encontrando na filosofia de Kant sua mais festejada concepção. Foi na clássica obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”, de 1785, que as bases do que hoje se aceita como ponto de partida para qualquer teorização sobre o princípio em questão foram lançadas, cabendo a Kant as honrarias de “grande filósofo da dignidade”.7 Analisando a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos constitucionais para se reconhecer a possibilidade de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, Wilson Antônio Steinmetz aponta que:

o objetivo de Kant era descobrir o princípio supremo da moralidade, um princípio incondicionado da moralidade — incondicionado no sentido de um princípio racional independente de conteúdos empíricos, válido para todos e independente de circunstâncias particulares. O filósofo alemão concluiu que esse princípio supremo era o imperativo categórico.8

Tal imperativo, notadamente no tocante ao tema ora desenvolvido, formulava-se da seguinte maneira: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio”.9 As implicações que se pode depreender de tal formulação são caríssimas ao Direito. Para Kant, o ser humano deveria ser considerado como um fim em si mesmo, não como meio para se alcançar determinado resultado. O ser humano, como ser dotado de autonomia, não poderia jamais ser instrumentalizado ou coisificado, não se prestando, portanto, a ter sua condição reduzida a de mera cobaia, pois “o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples

6 ROCHA. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, p. 53. Nesse artigo, a autora aponta que “etimologicamente, dignidade vem do latim dignitas, adotado desde o final do século XI, significando cargo, honra ou honraria, título, podendo, ainda, ser considerado o seu sentido de postura socialmente conveniente diante de determinada pessoa ou situação”.

7 Idem, p. 53.8 STEINMETZ. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 114.9 KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 59.

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meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo”.10

Fortificando tal argumentação, o autor aponta que tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço só poderia ser um objeto, admitindo-se sua substituição por algo também quantificável por um preço. Contrariamente, a dignidade está acima deste, e o ser humano é qualificado por ela, tornando-o insubstituível. O preço seria algo quantificável por ser exterior, servindo de meio, ao passo que a dignidade seria algo interior e impossível de mensuração, por ser um fim. Através dessa fórmula, a diferença entre o homem e o objeto estava traçada, não se podendo admitir, portanto, a redução daquele a este.11

Analisando o pensamento de Kant, Ingo Sarlet reconhece os avanços e a influência que tais ideias têm hodiernamente, não se furtando, no entanto, de fazer breve análise crítica, sobretudo no que concerne ao antropocentrismo que cerca a teoria kantiana, pois, ao colocar o homem como referencial único da dignidade, em face de sua racionalidade, estar-se-ia olvidando os demais seres vivos. Desse modo, poder-se-ia conceber a dignidade da vida de uma maneira geral, tendo em vista, por exemplo, a consagração da proteção ao meio ambiente como direito fundamental de terceira geração, através do qual se procura assegurar a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, mantendo um ambiente propício a preservação e desenvolvimento de toda a forma de vida, “ainda que se possa argumentar que tal proteção da vida em geral constitua, em última analise, exigência da vida humana e de uma vida humana com dignidade”.12

Indubitavelmente, os preciosos estudos de Kant serviram para densificar, mesmo que em plano ainda teórico, o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo sua fórmula do “homem-objeto” sido seguida por diversos doutrinadores, principalmente quando se pensa na árdua tarefa de conceituar o princípio em questão,

10 KANT, op. cit., p. 60.11 Idem, p. 65. Ainda nesse sentido, lapidares são as lições do filósofo: “o que diz respeito às inclinações e

necessidades do homem tem um preço comercial; o que, sem supor necessidade, se conforma a certo gosto, digamos, a uma satisfação produzida pelo simples jogo, sem finalidade alguma, de nossas faculdades, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); mas o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade”.

12 SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 34-35.

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como adiante referido. Assim, é a partir da concepção kantiana que se pode iniciar a demarcar alguns elementos intimamente relacionados à dignidade da pessoa humana, como o valor intrínseco da pessoa, sua não funcionalização, irredutibilidade de seu status, sua autonomia (autodeterminação), sua autofinalidade e sua liberdade, bem como seu respeito e sua promoção.13

3 Conceituação e concretização da dignidadeJá se disse, anteriormente, como o princípio da dignidade da

pessoa humana apresenta-se com uma formulação semanticamente aberta, causadora de dificuldades para a confecção de uma conceituação satisfatória. Além disso, igualmente complexa é a tarefa de densificar o princípio, estabelecendo seu conteúdo, o que é essencial para se perquirir, por exemplo, quando ele é violado ou não, fazendo com que se cesse ou se evite tal violação.

A “ambiguidade e porosidade”14 da expressão “dignidade da pessoa humana”, no entanto, não pode constituir óbice intransponível ao intérprete, mas este tem de ter em mente que o entendimento de tal princípio, bem como sua conceituação, é algo ainda inacabado, consubstanciando um conceito em permanente construção.15

Desfaça-se a ideia, desde já, de que a dignidade da pessoa humana seria uma qualidade conferida pelo ordenamento jurídico, em especial pela Constituição, no sentido de que se não houvesse tal consagração constitucional, não se poderia admitir que a pessoa humana, em determinado Estado, fosse dotada de dignidade. A dignidade é atributo inerente ao ser humano, como demonstrado na análise das concepções cristã e kantiana. Como tal, não necessita de concessão estatal para se fazer presente,16 pois ao Estado cabe, verdadeiramente, o reconhecimento, respeito, proteção e promoção da dignidade, o que já revela o caráter multidimensional do princípio. Se o Estado não é

13 STEINMETZ, op. cit., p. 116.14 ROCHA, op. cit., p. 50. 15 Idem, p. 50.16 Idem, p. 51. Nesse sentido, a autora assenta que: “o sistema normativo de direito não constitui, pois, por

óbvio, a dignidade da pessoa humana. O que ele pode é tão somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição de pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição”.

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capaz de conceder dignidade, como dito anteriormente, a consagração dela em texto constitucional torna a atuação estatal legítima.17 Sobre o tema, pode-se avançar ainda mais, no sentido de que, se a dignidade, eventualmente, não fosse conferida pela ordem constitucional, ou seja, mesmo que determinada Constituição não trouxesse, hodiernamente, o princípio de maneira expressa, o mesmo restaria consagrado de maneira implícita, bastando deduzi-lo do catálogo de direitos fundamentais postos.18

Tentando, ainda, trazer maior apuro técnico na pesquisa em torno do conteúdo e conceito do princípio, não se pode confundir as expressões “dignidade da pessoa” e “dignidade humana”. A primeira expressão faz referência ao aspecto concreto da dignidade, enquanto a segunda refere-se à humanidade como um todo. Ocorre que só há espaço para se conceber a violação da dignidade de maneira concreta, a saber, referindo-se especificamente a uma pessoa, não se admitindo uma violação à dignidade do homem abstratamente considerado.19

Referiu-se, anteriormente, acerca do caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o princípio pode ser compreendido em diversos aspectos, seguindo-se o magistério de Podlech, citado por Ingo Sarlet.20 Num primeiro momento, pode-se vislumbrar um caráter negativo, responsável pela imposição de limites à atuação estatal, que deve preservar e respeitar a dignidade humana, consistindo num aspecto fixo ou imutável do princípio. Diversamente, um caráter positivo ou prestacional também pode ser intuído dele, no sentido de que cabe ao Estado, além do respeito e preservação à dignidade, sua promoção e proteção, implicando, assim, prestações capazes de dignificar cada vez mais a pessoa humana. Tal dimensão consistiria num aspecto mutável da dignidade, pois tais prestações dependeriam, por exemplo,

17 Assim, “este princípio vincula e obriga todas as ações políticas públicas, pois o Estado é tido como meio fundado no fim que é o homem, ao qual se há de respeitar em sua dignidade fundante do sistema constituído (constitucionalizado). É esse acatamento pleno ao princípio que torna legítimas as condutas estatais, as suas ações e suas opções” (Idem, p. 55).

18 A relação entre dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais será adiante referida com mais temperamentos, quando da análise da dignidade como fundamento do Estado Democrático de Direito.

19 SARLET, op. cit., p. 52.20 PODLECH, Adalbert. Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 1 Grundgesetz. In: WASSERMANN, R. (Org.). Kommentar

zum Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Alternativkommentar). 2. ed. Neuwied: Luchterhand, 1989. v. 2 apud SARLET, op. cit., p. 47.

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das necessidades sociais e disponibilidades orçamentárias estatais.21 Nesse campo é que se pode inserir o conceito de mínimo existencial, no sentido de que as limitações orçamentárias não podem servir como desculpas para a não prestação de um mínimo de serviços estatais cujo objetivo seja realizar alguns dos direitos essenciais à dignidade humana, tais como educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça.22

Além desses aspectos negativo (limites) e positivo (prestacional) da dignidade da pessoa humana, pode-se referir — ainda nessa perspectiva multidimensional — a um caráter individual no qual prevalece a ideia de autodeterminação da pessoa, tendo em vista suas decisões fundamentais, bem como a um caráter assistencial, através do qual mesmo o indivíduo que não mais pudesse exprimir sua vontade de maneira livre — em face de estado de coma ou de demência, por exemplo, deveria ter sua dignidade protegida através desse aspecto do princípio. Com isso, impor-se-ia, eventualmente, a nomeação de um curador ou a submissão involuntária a tratamento médico e/ou internação, justificado, nesses casos, pela prevalência do caráter assistencial em face do autonômico.23

Tendo em vista essas referidas considerações, Ingo Sarlet propõe uma conceituação para o princípio da dignidade da pessoa humana, para quem ela se apresenta como:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.24

21 Sobre esse aspecto prestacional, preciosa é a lição de Carmem Lúcia Antunes Rocha, mais uma vez citada, para quem “com o acolhimento desse princípio o Estado é obrigado a adotar políticas públicas inclusivas, ou seja, políticas que incluam todos os homens nos bens e serviços que os possibilitem ser parte ativa no processo socioeconômico e cidadão autor da história política que a coletividade eleja como trajetória humana” (Idem, p. 57).

22 BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 277-333.

23 KOPPERNOCK, Martin. Das Grundrecht auf bioethische Selbsbestimmung. Baden-Baden: Nomos, 1997 apud SARLET, op. cit., p. 49.

24 Idem, p. 60.

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Percebe-se, dessa forma, como os aspectos da dignidade antes referidos estão presentes na brilhante conceituação proposta, tendo em vista o caráter negativo, positivo, autonômico e de proteção da dignidade da pessoa humana, princípio, repita-se, através do qual se concebe o homem com fim em si mesmo, condição essa que lhe é inerente, independendo, portanto, de qualquer concessão estatal nesse sentido. Mencionando como uma das finalidades do princípio a potencialidade de determinar condições materiais mínimas para uma vida saudável, através de prestações estatais, o autor opina no sentido de que o critério de “vida saudável” poderia ser aferido tendo em vista as determinações estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde.25 Ressalte-se, finalmente, que a amplitude da conceituação proposta autoriza, até mesmo, fundamentar a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais através da dignidade da pessoa humana, cujo respeito e consideração se impõem não só em face do Estado, mas também em face da comunidade.26

4 Aspectos jurídicos da dignidade4.1 Aspecto geral – Fundamento do Estado Democrático de Direito

A dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Esse texto foi o primeiro da história constitucional pátria a conceber explicitamente como norma fundamental o princípio em questão, acompanhando a tendência anteriormente referida acerca de sua consagração no plano internacional. Nesse sentido se encaixa o célebre art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao estatuir que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Esse prestígio à dignidade e, consequentemente, aos direitos fundamentais de um modo geral, foi fruto de um processo de internacionalização dos direitos, seguindo uma linha

25 Idem. p. 60.26 STEINMETZ, op. cit., p. 117. Também apontando a importância do princípio nas relações privadas, Luís

Roberto Barroso assenta que: “[...] merece destaque em todas as relações públicas e privadas o princípio da dignidade da pessoa humana, (art. 1º, III), que se tornou o centro axiológico da concepção de Estado democrático de direito e de uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais” (BARROSO. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 375).

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de evolução muito bem delineada por Norberto Bobbio.27 De acordo com esse autor, os direitos são, inicialmente, considerados filosoficamente nas obras de diversos autores, que, estudando o tema, teorizam sobre eles numa perspectiva universalista, mas abstrata. Quando tais teorizações são acolhidas nos textos constitucionais, fato ocorrido, pela primeira vez, nas Constituições americana de 1787 e francesa de 1791, tem-se a positivação de tais ideias, tornando os direitos particularizados e concretos, porque destinados aos cidadãos daqueles Estados. Avança-se, assim, de uma perspectiva universal e abstrata para uma realidade concreta e positiva. Finalmente, quando há uma previsão internacional nos moldes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tem-se, verdadeiramente, uma previsão universal e positiva dos direitos fundamentais, já que destinada não só a esse ou aquele cidadão, mas ao homem de um modo geral e previsto num texto formal de reconhecimento internacional.

Tecendo comentários sobre a República portuguesa, também fundada na dignidade da pessoa humana, Canotilho assenta que “a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”.28 Coloca-se em bom termo a discussão, negando-se a qualidade de meio ou instrumento ao ser humano para o alcance dos fins estatais.

A posição topográfica dos princípios fundamentais na Constituição brasileira, constantes logo após o preâmbulo, compondo o Título I, demonstra que tais normas consistem nas opções políticas básicas feitas pelo poder constituinte originário. Uma de suas funções é justamente informar toda a ordem constitucional, no sentido de que as disposições constitucionais subsequentes podem, com certo esforço interpretativo, refletirem o conteúdo das normas fundamentais. Veja-se, por exemplo, a relação estabelecida entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais, constantes, em seu maior número, no Título II. Pode-se dizer que aquela é a fonte ética destes,29 de modo que eles podem ser derivados dela, seja em maior ou menor grau.30

27 BOBBIO. A era dos direitos, p. 29-30.28 CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 225.29 MAGALHÃES FILHO, op. cit., p. 136.30 Ingo Sarlet afirma ser possível desenvolver certos direitos fundamentais a partir do princípio da dignidade

da pessoa humana, mostrando-se reticente, contudo, no concernente à possibilidade de que todos os direitos fundamentais formalmente postos na Constituição possam ser alvo de tal derivação (SARLET, op. cit., p. 131).

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Diga-se, por último, que a dignidade da pessoa humana também se encontra presente no art. 170, caput, no qual se estatui que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna e no art. 226, §7º, quando se determina que o planejamento familiar será fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável.

4.2 Aspecto específico – Dignidade da pessoa humana como norma jurídicaJá se disse que o ordenamento constitucional não confere dignidade,

mas apenas a reconhece, respeita, protege e promove. Dessa forma, não é tecnicamente correto falar num “direito fundamental à dignidade”, pois esta, como dito, é uma qualidade inerente ao ser humano, que o protege contra qualquer tratamento degradante ou coisificador, pois, repita-se, o homem deve ser concebido como um fim em si mesmo. Se, eventual-mente, o intérprete se deparar com tal equivocada expressão, deve ficar claro, verdadeiramente, que o direito fundamental existente diz respeito a um direito de reconhecimento, proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido é possível conceber a dignidade da pessoa humana como norma jurídica, devendo-se, a partir de agora, enfrentar o posicionamento de Alexy, para quem a norma consagradora da dignidade da pessoa humana é em parte regra e princípio. A partir dessa análise será possível adentrar no segundo ponto do trabalho, perquirindo se a dignidade humana pode ser relativizada ou não.

Não é o escopo da presente pesquisa analisar exaustivamente as diferenças entre regras e princípios,31 bastando assentar que estes são dotados de plena normatividade, pois, ao se admitir que a Constituição em si é dotada de uma força normativa, capaz de determinar a sociedade e não apenas ser determinada por ela,32 fazendo frente àqueles fatores reais de poder propostos por Lassale,33 deve-se, consequentemente, concluir acerca da normatividade de suas normas, que não mais podem

31 Para uma análise mais detida, consultar: BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 255-295; GUERRA FILHO. Processo constitucional e direitos fundamentais, p. 67-73; BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 44-70.

32 HESSE. A força normativa da Constituição, p. 25. 33 LASSALE. O que é uma constituição?, p. 21-31. Para o autor, os fatores reais de poder seriam o poder

militar exercido pelo exército; o poder econômico dos banqueiros e grandes industriais e o poder do latifúndio inerente à nobreza.

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ser consideradas como meros conselhos ou exortações morais aos Poderes constituídos.

Assim, para Alexy, os princípios seriam mandamentos de otimi-zação,34 pois determinariam que algo fosse cumprido da melhor maneira possível, não se admitindo, assim, uma aplicação absoluta. As regras, por sua vez, seriam mandamentos de definição,35 pois determinariam que algo fosse cumprido na exata medida de suas prescrições, seguindo, assim, uma aplicação absoluta ou uma lógica do tudo ou nada (rules are aplicable in all-or-nothing fashion), utilizando-se a expressão cunhada por Dworkin.36

Partindo-se de tal diferenciação, eventual conflito entre regras terá, fatalmente, uma solução bem distinta da colisão de princípios. Quando duas regras entram em choque, uma delas será excluída do ordenamento jurídico, já que uma será inválida, utilizando-se para tanto os clássicos critérios cronológico, hierárquico e da especialidade.37 Diversamente, quando dois princípios entram em colisão, não se pode falar em invalidade de um deles, pois tal colisão pressupõe, necessariamente, a validade de tais normas. Além disso, não há uma hierarquia entre princípios já que sua ambiência maior é a Constituição e esta não apresenta normas mais constitucionais que outras, reinando a plena unidade. Assim, a solução possível para uma colisão principiológica é recorrer a um exercício de ponderação, através do qual se avaliará qual princípio, no caso concreto e sob certas circunstâncias fáticas e jurídicas, pode prevalecer condicionadamente em face do outro.

Para se alcançar tal desiderato, faz-se mister analisar a lei de colisão de Alexy, que é assim enunciada: “Las condiciones bajo las cuales um principio precede a outro constituyen el supuesto de hecho de uma regla que expresa la consecuencia jurídica del principio precedente”,38 ou seja, “as condições sob as quais um princípio prevalece sobre outro constituem o pressuposto fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio prevalente”.

34 ALEXY, op. cit., p. 86.35 Idem, p. 86-87.36 DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. 24-25. 37 MAGALHÃES FILHO. Hermenêutica jurídica clássica, p. 81.38 ALEXY, op. cit., p. 94.

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Percebe-se que a aplicação da referida lei acaba gerando a incidên-cia de uma regra jurídica, que determinará a consequência jurídica do princípio prevalente. Tal regra incidirá sobre as condições de prevalência determinadas pelo julgador, as quais justificam a superação de um dos princípios colidentes. Para a fixação de tais condições é essencial o tra-balho argumentativo do intérprete, que deve buscar uma fundamentação exauriente e abundante, a fim de alcançar a racionalidade e evitar o subjetivismo, cuja incidência é fértil em sede de colisão entre princípios.

A busca pela racionalidade da decisão judicial em sede de colisão de princípios também passa pela análise do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionali-dade em sentido estrito, no qual se insere a lei da ponderação, também formulada por Robert Alexy. A utilização do princípio da proporcionali-dade pressupõe a existência de uma relação meio-fim, entendendo o fim como o objetivo constitucional que se busca com a limitação, e o meio como o próprio conteúdo da decisão limitadora que, no caso de uma colisão de princípios, provirá de uma decisão judicial.39

Ocorre que para determinar precisamente a aptidão de determinado meio para a consecução de certo fim, deve-se, necessariamente, “testá-lo”, sucessivamente, através dos três subprincípios ou princípios parciais do princípio da proporcionalidade. Assim, para um meio tornar-se hígido para limitar um direito fundamental, ele deve ser adequado, necessário e proporcional em sentido estrito.

Pela adequação tem-se a verificação da aptidão que certo meio apresenta para realizar o fim em questão. Se o meio for capaz de realizar o fim, ele será adequado e, dessa forma, haverá passado no primeiro teste da proporcionalidade. Percebe-se que neste momento há o confronto entre meio e fim. Virgílio Afonso da Silva sustenta que adequado não é somente o meio que propicia o atendimento do objetivo colimado, mas também aquele meio que fomenta ou promove aquele fim, mesmo que este não seja completamente realizado.40

Passa-se, então, para a análise do subprincípio da necessidade, também conhecido como princípio da exigibilidade, da indispensabilidade

39 STEINMETZ. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, p. 148-149.40 SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, p. 36. Aduz o autor que a melhor tradução para

o verbo förden, referente à adequação, seria “fomentar” e não “alcançar”.

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ou da intervenção mínima. Após perquirir se o meio é apto para alcançar o fim colimado, deve-se pesquisar se não há outro meio igualmente eficaz para o alcance daquele fim, mas que seja menos gravoso para o direito fundamental restringido. Atente-se para o fato de que o meio menos gravoso deve alcançar ou promover o fim objetivado com a mesma eficácia do meio mais gravoso,41 de modo que a existência de um meio menos gravoso e menos eficaz não se apresenta apto para passar no teste da necessidade. Através do subprincípio da necessidade, portanto, há o confronto entre meios.

Finalmente, pela proporcionalidade em sentido estrito, examina-se a proporcionalidade entre a medida fixada na decisão judicial e sua eficácia referente aos direitos fundamentais colidentes, tendo-se sempre em vista, repita-se, a finalidade perseguida. Nesse sentido é que Alexy formulou a lei da ponderação, pois “cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del otro”.42 Para o autor, a ponderação resta estabelecida nesse subprincípio, de modo que quanto maior for o grau de afetação ou não satisfação de um princípio, tanto maior tem de ser o grau de satisfação ou não afetação do outro, guardando-se, claramente, uma ideia de proporção entre perdas e ganhos. Nesse sentido, Willis Santiago Guerra Filho afirma que “mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens”,43 justificando a adoção de determinada medida restritiva, desde que pautada na lei da ponderação.

Feitas essas considerações sobre a lei de colisão e sobre o princípio da proporcionalidade, que inclui a ponderação, advirta-se que a preva-lência condicionada de certo princípio não implicará, sempre, na sua superioridade em face do princípio vencido, pois em outras circunstân-cias fáticas e jurídicas as condições podem, tranquilamente, alterar-se.

Traçadas essas premissas, pode-se indagar: o princípio da digni-dade da pessoa humana também se sujeita a essa relativização, típica

41 SILVA, op. cit., p. 38.42 ALEXY, op. cit., p. 161.43 GUERRA FILHO. Processo constitucional e direitos fundamentais, p. 95-96.

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dos princípios constitucionais? Em outras palavras, haveria condições fáticas e jurídicas capazes de condicionar a prevalência de um princípio colidente em face do princípio da dignidade da pessoa humana? Para responder a tais indagações, adentrar-se-á no segundo ponto do presente trabalho, analisando alguns posicionamentos doutrinários sobre o tema, bem como a jurisprudência do STF.

5 Dignidade da pessoa humana e ponderaçãoPara Inocêncio Coelho, o princípio da dignidade da pessoa humana

é valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional.44 O autor sustenta que:

Essa tomada de posição, conquanto majoritária entre os doutrinadores e contando com o respaldo das mais importantes cortes constitucionais, nem por isso é imune a críticas e impugnações, a partir da idéia, de resto válida no geral, mas imprestável no particular, de que não existem princípios absolutos, sujeitos que estão, em sua totalidade, a juízos de ponderação — em cada situação hermenêutica — com outros bens ou valores dotados de igual hierarquia constitucional.45

Tentando ampliar o debate, Alexy, engenhosamente, defende a tese acerca do duplo caráter da norma consagradora da dignidade da pessoa humana, que seria em parte regra e em parte princípio. O autor mostra-se preocupado em defender sua tese acerca do caráter relativo dos princípios, frente às dúvidas lançadas sobre tal posicionamento tendo em vista, sobretudo, a norma contida no art. 1º, parágrafo 1º, frase 1 da Lei Fundamental Alemã, cujo texto — “a dignidade da pessoa humana é intangível” — apresentaria um princípio absoluto.

Na verdade, tal impressão acerca desse pretenso caráter absoluto dever-se-ia ao fato de que, considerando apenas o caráter principioló-gico da norma, não se poderia conceber, facilmente, condições fáticas e jurídicas capazes de determinar a prevalência de qualquer outro princípio em face da dignidade da pessoa humana. Em outros termos: seria extremamente problemático que algum princípio colidente com

44 MENDES; COELHO; BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 150.45 Idem, p. 150-151.

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a dignidade da pessoa humana prevalecesse sobre este, pois, perante a dignidade da pessoa humana “existe un amplio grupo de condiciones de precedencia en las cuales existe un alto grado de seguridad acerca de que bajo ellas el principio de la dignidad de la persona precede a los princípios opuestos”.46 Tais óbices, portanto, não autorizariam a tese acerca do caráter absoluto do princípio.

Relativamente ao caráter de regra da dignidade da pessoa humana, tem-se que ela se mostra “en el hecho de que en los casos en los que esta norma es relevante no se pregunta si precede o no a otras normas sino tan solo si es violada o no”.47 Ocorre que tendo em vista a abertura semântica da expressão “dignidade da pessoa humana”, há um grande elenco de respostas possíveis a tal indagação, de modo que a análise da violação ou não da dignidade demandará, fatalmente, um percuciente estudo em cada caso concreto. Desse modo, dever-se-ia analisar a dignidade da pessoa humana sob um duplo critério, capaz de determinar a possibilidade de uma relação de prevalência em face de outros princípios (norma-princípio) ou, simplesmente, perquirir acerca de sua violação ou não (norma-regra), admitindo-se, portanto, a possibilidade de relativização.48

Ingo Sarlet também enfrenta a questão, iniciando seu estudo indagando se para assegurar a dignidade de alguns não se acaba, por vezes, impondo restrições à dignidade de outros, seja considerando a dignidade autonomamente ou como representativa do conteúdo de certo direito fundamental.49 Posicionando-se favoravelmente à possibilidade de relativização do princípio da dignidade da pessoa humana, o autor distingue, precisamente, que quando se fala em relativização está-se referindo à dignidade como norma, pois a dignidade como qualidade inerente ao ser humano não pode jamais ser relativizada, preservando-se, sempre e necessariamente, a qualidade humana como sujeito e não objeto de direitos.50

46 ALEXY, op. cit., p. 106.47 Idem, p. 107.48 Assim, arremata o autor: “La impresión de absolutidad resulta del hecho de que existen dos normas de

dignidad de la persona, es decir, una regla de la dignidad de la persona y un principio de la dignidad de la persona, como así también el hecho de que existe una serie de condiciones bajo las cuales el principio de la dignidad de la persona, com un alto grado de certeza, precede a todos los demás principios” (Idem, p. 109).

49 SARLET, op. cit., p, 124.50 Idem, p, 132.

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A relativização do princípio seria, em verdade, demandada pelo próprio caráter intersubjetivo dele, pois, concretamente, a dignidade de um indivíduo poderia colidir com a de outrem.51 Não se admitir uma relativização em tais casos seria equivalente a negar por completo a proteção pretendida pela dignidade, pois nenhum dos princípios poderia ceder. O autor também assinala que o princípio passa por uma relativização a partir do momento que se constata a dúvida ainda reinante acerca de seu preciso conteúdo sendo que este, fatalmente, será alvo de decisões tendentes a determiná-lo, gerando, portanto, um debate sobre se houve ou não violação ao mesmo.52 Assim, seria um fator de relativização, por exemplo, o entendimento divergente sobre o conceito de dignidade que os diversos órgãos julgadores poderiam apresentar, demonstrando a possibilidade de soluções distintas acerca da violação do princípio em casos idênticos.53

Questão extremamente complexa envolvendo a ponderação do princípio da dignidade da pessoa humana há quando este se encontra em colisão com o direito à vida. É o caso dos pacientes terminais, indagando-se se a dignidade englobaria “a necessidade de preservar e respeitar a vida humana, por mais sofrimento que se esteja a causar com tal medida”.54 Ora, em se optando pela preservação da vida a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana acabaria, consequentemente, por ser relativizada.

Indubitavelmente, tendo em vista as relações concretamente viven-ciadas pelos indivíduos, a dignidade de alguém poderia acabar colidindo com a dignidade alheia. Destarte, Ingo Sarlet arremata, esclarecendo que mesmo relativizado, o princípio da dignidade da pessoa humana apresentaria um conteúdo inviolável, nesses termos:

Assim, também nas tensões verificadas no relacionamento entre pessoas igualmente dignas, não se poderá dispensar — até mesmo em face da necessidade de solucionar o caso concreto — um juízo de ponderação ou (o que parece mais correto) uma hierarquização, que, à evidência, jamais poderá resultar — e esta a dimensão efetivamente absoluta da dignidade — no sacrifício da dignidade, na condição de valor intrínseco e insubstituível de

51 Idem, p, 125.52 Idem, p, 128-129.53 Idem, p, 139.54 Idem, p, 129.

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cada ser humano que, como tal, sempre deverá ser reconhecido e protegido, sendo, portanto — e especificamente nesse sentido — imponderável.55

Assim, deve-se reconhecer um núcleo essencial à dignidade, como se reconhece nos direitos fundamentais, sendo que tal essência é, verdadeiramente, absoluta e imponderável. Respeitando-se tal conteúdo, no entanto, a ponderação é uma tarefa que se impõe, tendo em vista a necessidade de harmonização dos princípios colidentes, cuja ideia de não relativização acabaria por gerar, repita-se, a própria negação da proteção pretendida. Percebe-se, portanto, como as teses de Alexy e Ingo Sarlet acabam coincidindo, já que ambos admitem a relativização, sendo forçoso reconhecer, entretanto, que tal corrente é minoritária.

5.1 Dignidade da pessoa humana e a submissão do réu ao exame de DNAAnalisar-se-á o conhecido HC nº 71.373,56 julgado pelo STF em

1996, no qual se discutiu a possibilidade de o juiz, com base nos seus poderes instrutórios gerais (art. 130 do Código de Processo Civil – CPC) determinar a condução coercitiva do réu — “condução debaixo de vara” — para a realização forçada de exame de DNA, quando o pretenso pai nega submeter-se ao exame no curso da ação de investigação de paternidade, no caso promovida por uma criança. Tem-se, assim, uma colisão de direitos fundamentais entre a intangibilidade do corpo do indigitado pai, decorrência direta do princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à identidade real da criança interessada, decorrência também direta de sua dignidade.57 Através da corrente minoritária antes exposta, seria possível operar uma relativização da dignidade, já que haveria um “empate” entre as dignidades envolvidas. Não foi essa a solução adotada pelo STF.

55 Idem, p, 130-131.56 Rel. para o acórdão Ministro Marco Aurélio, DJ, 22 nov. 1996.57 Para Canotilho, têm-se dois tipos de colisão de direitos fundamentais, a colisão própria e a imprópria.

Ocorre a colisão de direitos fundamentais em sentido próprio quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do mesmo ou de outro direito fundamental por parte de outrem. Ocorre a colisão imprópria de direitos fundamentais, quando colidem direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos. Como exemplo do primeiro caso, cite-se a colisão entre liberdade religiosa versus liberdade religiosa ou direito à intimidade versus liberdade de expressão e informação. Como exemplo do segundo caso, cite-se a colisão entre o direito de propriedade versus a proteção ao patrimônio histórico, concernente ao tombamento. O caso em estudo, evidentemente, trata-se de uma colisão própria de direitos fundamentais (CANOTILHO, op. cit., p. 1270-1271).

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O paciente alegara, em síntese, a impossibilidade de ser conduzido coercitivamente por inexistir lei que o obrigasse a tanto, o que feria o princípio da legalidade, bem como a possibilidade de sua negação ser interpretada como uma presunção contra ele, suprimindo sua recusa e presumindo sua paternidade. Além disso, aduziu que a condução coercitiva violaria seu direito à intimidade. O relator originário, Ministro Francisco Rezek, realizou em seu voto um juízo de ponderação, aplicando o princípio da proporcionalidade e relativizando a integridade corporal e a dignidade da pessoa humana do suposto pai para assentar a necessidade de se conhecer a verdade real sobre a paternidade. Sustentou que a intervenção sobre a integridade física do suposto pai era mínima em face do interesse almejado pelo investigante, já que um simples exame de DNA não traria maiores transtornos concretos. Argumentou ainda, concordando com o parecer do Ministério Público Federal, o fato de a Constituição impor à família, à sociedade e ao Estado o dever de respeitar a dignidade da criança, protegendo-a contra qualquer forma de negligência, sendo que consistiria uma flagrante forma desta alguém deixar de assumir a responsabilidade por sua paternidade.58

Essa, no entanto, não fora a corrente vitoriosa. Capitaneando a divergência, o Ministro Marco Aurélio não realizou esses juízos de ponderação, dando caráter absoluto à integridade corporal e à dignidade da pessoa humana do suposto pai. O Ministro contentou-se com a mera presunção da paternidade, justificando o afastamento do direito à real identificação da criança baseando-se nesse critério meramente formal. Sustentou, ainda, que o caso não se equipararia àqueles em que há

58 Assim dispôs o Ministro: “Lembra o impetrante que não existe lei que o obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, afronta ao art. 5º II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o art. 343, §2º do CPC, como uma confissão (fls. 6). Mas não me parece, ante a ordem jurídica da República neste final de século, que isso frustre a legítima vontade do juízo de apurar a verdade real. A lei 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação, e é certo que a recusa significará uma restrição a tal conhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim com a certeza que a prova pericial pode proporcionar à decisão do magistrado. Um último dispositivo constitucional pertinente, que o investigado diz ter sido objeto de afronta é o que tutela a intimidade, no inciso X do art. 5º A propósito, observou o parecer do Ministério Público: ‘a afirmação, ou não, do vínculo familiar não se pode opor ao direito ao próprio recato. Assim, a dita intimidade de um não pode escudá-lo à pretensão do outro de tê-lo como gerado pelo primeiro’, e mais, a Constituição impõe como dever de família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência. Como bem ponderou o parquet federal, no desfecho de sua manifestação, ‘não há forma mais grava de negligência para com uma pessoa do que deixar de assumir a responsabilidade de tê-la fecundado no ventre materno.’ [...]” (HC nº 71.373. Rel. para o acórdão Ministro Marco Aurélio, DJ, 22 nov. 1996).

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interesse público, como no caso das vacinações obrigatórias, esses sim justificadores do uso da força tendo em vista o bem comum ante o perigo de uma epidemia.59

Percebe-se, portanto, como a absolutização da dignidade da pessoa humana de um indivíduo pode abalar desproporcionalmente a dignidade da pessoa humana de outrem. No caso estudado, mesmo diante do irrisório efeito do exame de DNA à integridade física do suposto pai, e a pretexto de se preservar a sua dignidade, acabou-se por negar completamente a dignidade da criança investigante que teve de se contentar com uma mera presunção de paternidade. Em suma: ao tornar absoluta a dignidade do suposto pai, rechaçou-se por completo a dignidade da criança. Por outro lado, se a relativização tivesse ocorrido, não haveria qualquer desprezo pela dignidade da pessoa humana, já que a intervenção aos direitos fundamentais do investigado seria proporcional, tendo em vista a mínima restrição imposta a sua integridade física e o alto grau de satisfação ao direito fundamental do investigante.

Considerações finaisA dignidade da pessoa humana é, verdadeiramente, o valor supre-

mo da ordem constitucional, nacional e internacionalmente reconhecida nos diversos textos constitucionais, sobretudo no mundo ocidental. Nunca a humanidade exaltou tanto sua própria dignidade, como que numa resposta ao nível de barbárie até então nunca visto antes, tendo em vista os horrores perpetrados pelo nazismo e demais regimes autoritários, na página mais negra da história humana.

A dignidade da pessoa humana impõe respeito, reconhecimento, proteção e promoção por parte dos Estados que a consagram, expressa ou implicitamente, demandando, portanto, uma atuação negativa a fim de preservar a autonomia individual e uma prestação positiva, a fim de promover e proteger esse tão caro valor. Só assim o homem poderá ser

59 Gilmar Mendes critica o voto do Ministro Marco Aurélio, reconhecendo a complexidade do caso, mas apontando que: “o argumento formal relacionado com a presunção de paternidade — confissão ficta — parece desconsiderar o significado do conhecimento real da paternidade para o direito de personalidade do requerente. Não se pode, com absoluta tranqüilidade, afirmar, como o fez o Ministro Marco Aurélio, que ‘a hipótese não é daquelas em que o interesse público sobrepõe-se ao individual, como das vacinações obrigatórias, em épocas de epidemias, ou mesmo o da busca da preservação da vida humana, naqueles conhecidos casos em que convicções religiosas arraigadas acabam por conduzir à perda da racionalidade’” (MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit., p. 350).

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visto como fim em si mesmo, repetindo-se, ainda uma vez, a grandeza do pensamento kantiano, cujo eco aponta para a vedação de qualquer prática coisificadora do ser humano, já que este não pode ser mensurado através de um preço, pois detém dignidade.

A dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, pode ser relativizada, atendendo a razões de harmonia e de concordância prática, desde que seu núcleo essencial, ou seja, seu mínimo, que faz do homem sujeito e não objeto do direito, seja preservado. Tal entendimento ainda é minoritário na doutrina, o que não significa dizer que suas provocações não causem caloroso debate, com a possibilidade de, futuramente, constituir-se em corrente majoritária, tamanha a expressividade de algumas de suas vozes.

Nesse sentido, forçoso é reconhecer o desacerto da decisão proferida no supracitado HC nº 71.373, no qual o STF, a pretexto de proteger a dignidade do réu coagido a fazer o exame de DNA no curso de ação de investigação de paternidade, acabou por, verdadeiramente, negar por completo a dignidade do investigante.

Abstract: The human person’s dignity won extraordinary force after the tragic events lived in Second World War, when the human being was the target of the most condemnable barbarisms. In spite of presenting constitutional status, the dignity it is an essential quality of the human being, according to the Christian teachings, and the juridical order is not apt to check dignity, but to recognize, to protect, to promote and to respect it. Through Kant’s ideas, dignity laicizes itself, and wins force the idea of human being as an end in itself. There is deep divergence concerning the absolute or relative character of the human person’s dignity, and authors such as Ingo Sarlet relativizes the principle, tends in view its collision with somebody else’s dignity.

Key words: Human person’s dignity. Balancing.

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Esta obra foi composta em fontes New Baskerville e Humnst 777, corpo 11/15 e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa) pela Gráfica e Editora O Lutador. Belo Horizonte/MG, outubro de 2012.

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