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JULIANA APARECIDA GARCIA CORRA
DE REINADOS E DE REISADOS:FESTA,VIDA SOCIAL E EXPERINCIA COLETIVA EM
JUSTINPOLIS/MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE
2009
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Juliana Aparecida Garcia Corra
DE REINADOS E DE REISADOS:FESTA,VIDA SOCIAL E EXPERINCIA COLETIVA EM
JUSTINPOLIS/MG
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Antropologia Social da
FAFICH/UFMG como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em
Antropologia.
Orientadora: Prof. Dr. La Freitas Perez
Belo Horizonte, MG
2009
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Aos meus mestres.
Com carinho.
Ana Lcia Modesto, Capit Luiza, CapitNenzinha(in memoriam), Capito Adelmo,Dona Edinha,Jos Moreira, La FreitasPerez, Pierre Sanchis, Saul Marins,Romeu Sabar, Seu Dirceu e Seu Zez.
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Agradecimentos
H alguns anos me propus lanar no desafio de entrar no campo investigativo da
antropologia e no poderia t-lo feito melhor. Maintenan1, concluindo essa passagem,
respiro e sinto todo o processo.
Reconheo primeiramente, s instituies que tornaram possveis a realizao do
mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, em especial ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social pela aprovao e apoio durante o curso. Prefeitura
Municipal de Sabar e ao Governo de Estado de Minas Gerais, em especial, pelas suas
secretrias de educao V.Ex.as Marta DelRio e Wanessa Guimares, pela autorizao
especial concedida para freqentar o curso. Importante acentuar que a entrada neste curso
de mestrado foi especialmente possibilitada com o apoio dos pesquisadores e amigos:
Prof. Jos Moreira, Wanessa Lott, Prof, Lucilene Alencar, Leonardo Jber, Lauro Barbosa que
atuaram de forma significativa na escolha e definio do lcus de pesquisa.
De fato, no difcil perceber como o mestrado no se faz s, esta dissertao ,
pois, fruto de uma experincia partilhada. Falo agora das diferentes pessoas que ao seu
modo, [estudando ou fazendo festa], ensinaram-me como esse fenmeno deve ser levado
a srio.
Agradeo aos professores do curso, La Perez, Pierre Sanhis e Ana Lcia Modesto
pela dedicao, competncia e prazer na elaborao e execuo das disciplinas. A forma
como preparam e realizam as aulas colocaram-me diante de uma leitura preciosa e
fundamental na constituio terica desta pesquisa, afirmando o ambiente de sala de aula,
lcus privilegiado na produo coletiva do conhecimento. Do outro lado, agradeo aos
mestres do campo, Seu Zez e Seu Dirceu, em nome de toda irmandade de Nossa Senhora
do Rosrio que me recebeu de braos abertos aos encontros. Agradeo a eles pelas horasdedicadas nas longas conversas, pela disposio em compartilhar um pouco na infindvel
sabedoria que possuem sobre a festa e sobre a vida.
Muitos acompanharam o trabalho de campo, trocando conversas, compartilhando
imagens e sentimentos. Aline Moraes, Carlinhos Ferreira, Damasceno e Denise Falco
que, especialmente, acompanhou-me no somente no campo, mas tambm no gabinete,
realizando conversas dirias, revises cuidadosas na formatao dos textos e das fotos.
1Neste momento, em francs.
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Assim tambm toda a famlia, Efignia, Juliano e Luciana que, de perto ou de longe,
sempre, presentes e dividindo cada experincia vivida.
Gostaria de agradecer a banca examinadora, a prof Eufrsia, uma figura
inspiradora, vibrante nos congressos sobre festa. Obrigada pela generosidade em receber
meu trabalho e por ter se deslocado do litoral para enveredar pelas Minas e Gerais.
prof Vnia Noronha, companheira de profisso e dos festejos do Rosrio a quem no
posso deixar aqui de reconhecer, foi uma das culpadas nessa minha incurso ao estudo da
festa.
Por fim, e por tudo, prof La, minha orientadora, logo no primeiro contato,
claro, fui contagiada pela sua magia. Junto com sua filha Helena, acompanhou do comeo
ao fim o mestrado. [Agradeo a voc, La] no somente pela competncia e coerncia de
suas reflexes, mas fundamentalmente por fazer o estudo acadmico uma experincia
com vida, pela orientao nas diferentes dimenses de atuao e pela cuidadosa e valiosa
leitura que fizestes do meu trabalho.
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Em todos os tempos e em todas associedades, o homem quer honrar seusdeuses com festas; estabelece, assim dias
durante os quais somente o sentimentoreligioso reinar em sua alma, sem serchamado a pensamentos ou a trabalhosterrenos. Do nmero de dias que o homemtem pra viver, deu uma parte aos deuses.
Fustel de Coulanges, 1995
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Resumo:
Esta dissertao apresenta uma reflexo antropolgica sobre a festa, que teve como
inspirao emprica o ciclo e o circuito festivo anual de uma tradicional irmandade do
congado mineiro. Animados por seus santos de devoo, os membros da irmandade se
movimentam com um nico fim: o de festejar. Mais do que um fenmeno de lazer, a festa
aqui se constitui numa obrigao social, sendo movida pela f, ndice marcador de
temporalidade destas pessoas, constituindo na forma privilegiada da vida social e da
experincia coletiva do grupo. A periodicidade festiva, tratada sob a tica da variabilidade
da vida social e da experincia coletiva, remete diretamente ao princpio maussiano da
alternncia de ritmos da vida social e da experincia coletiva, permitindo pensar como os
diferentes momentos festivos podem nos dizer sobre o modo como este grupo organiza
sua vida coletiva. Todavia, o estudo revelou que a variabilidade no corresponde a uma
simples circularidade, implica num mecanismo de inverso posicional. Por fim, pelas
contribuies de Van Gennep, o tema nos conduziu ao que est em jogo: a rotatividade
do sagrado.
Festa, vida social, sagrado.
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Resum:
Cette thse prsente une rflexion anthropologique sur la fte, qui a eu comme
inspiration empirique le cycle et le circuit festive annuel d'une traditionnelle comunidade
de la congado minire. Anims par leurs saints de dvotion, les membres de la fraternit
rencontrent avec seule objectif: de fter. Plus qun phnomne de loisir, la fte ici se
constitue avec une obligation sociale, en tant motiv par la foi, elle est aussi indicateur
de le temporalit de ces personnes, en constituant une forme privilgie dela vie sociale et
de l'exprience collective du groupe. La rgularit de fte, traite sous l'optique de la
variabilit de la vie sociale et de l'exprience collective nous envoie directement au
principe maussien de l'alternance de rythmes de la vie sociale et d'exprience collective,
en permettant de penser comme les diffrents moments de la fte peuvent nous faire
penser sur la manire comme ce groupe organise sa vie collective. Nanmoins, l'tude a
rvl que la variabilit ne correspond pas simple circularidade, implique un mcanisme
d'inversion de position. la fin, avec le contributions de Van Gennep, le sujet nous a
conduit a sujet central : la rotation du sacr.
Fte, vie sociale, sacre
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Lista de Ilustraes
Figura 1: Mapa da comarca de Belo Horizonte e suas regies vizinhas ............ 26
Figura 2: Calendrio anual das festas em Justinpolis ...................................... 28
Figura 3: Ciclos festivos mineiros .................................................................... 32
Figura 4: Ciclos festivos de Justinpolis .......................................................... 36
Figura 5: Sequncias rituais das festas de reinado ............................................ 48
Figura 6: Sequncias rituais das festas de reisado ............................................. 49
Figura 7: Vista superior do terreiro da festa de congado ................................... 55
Figura 8: Vista superior da casa de um devoto de Santos Reis .......................... 56
Figura 9: Cortejo nas festas do congado ........................................................... 64
Figura 10: Cortejo nas festas de reis ................................................................. 81
Figura 11: Alternncia dos elementos nos ciclos festivos ............................... 112
Figura 12: Coroas e reis do reinado (Festa a Nossa Senhora do Rosrio, 2008)118
Figura 13: Mscaras e reis magos (2008) ....................................................... 119
Figura 14: Tambores do candombe (acervo da irmandade 2005) .................... 120
Figura 15: Lapinha, devoto e caravana a Santos Reis (2008) .......................... 121
Figura 16: Bandeiras e guardas no terreiro (Festa de reinado, 2008) ............... 122
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Figura 17: Tambores do reinado, em destaque gungas do moambique (2008)123
Figura 18: Teatro na praa, entrada no terreiro e guarda de congo (Festa a So
Benedito, 2008)......................................................................................................... 124
Figura 19: Cozinha da irmandade (Festa a Nossa Senhora do Rosrio, 2007) . 125
Figura 20: Membros da irmandade de Justinpolis (2007, 2008) .................... 126
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Sumrio
1 Parte: Alguma introduo ............................................................................ 14
1. Questes preliminares .......................................................................... 16
2. Rastros de uma trajetria ou de como a festa se impe ......................... 20
3. Justinpolis e suas festas ...................................................................... 26
2 Parte: Ciclo festivo e alternncia .................................................................. 41
4. Nota terica 1: primeiras consideraes ............................................... 43
5. Estrutura ritual e testemunho ................................................................ 58
5.1. Ciclo do Rosrio ou Reinado..................................................................... 58
5.1.1. Abertura e fundamento: o candombe ..................................... 58
5.1.2. Inaugurao: levantamento dos mastros e das bandeiras ........ 62
5.1.3. Alvorada e coroao dos reis ................................................. 62
5.1.4. Procisso: conduo e exibio pblica do congado .............. 64
5.1.5. Preces de entrada no terreiro: pedidos de licena e oraes.....68
5.1.6. Almoo: banquete aos reis e ao povo ..................................... 69
5.1.7. Cumprimento de promessas e obrigao da festa ................... 71
5.1.8. Encerramento e despedida: descoroao dos reis ................... 72
5.1.9. Descimento das bandeiras e fim da festa ................................ 74
5.1.10. Fim do ciclo .......................................................................... 75
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5.2. Ciclo de Reis ou Reisado .......................................................................... 75
5.2.1. Abertura e fundamento: a lapinha .......................................... 76
5.2.2. Inaugurao e retirada da bandeira .......................................... 79
5.2.3. Alvorada: a formao da folia ................................................. 79
5.2.5. Preces de chegada na casa do devoto: adoraes e passos ....... 81
5.2.6. Promessas e exibio dos reis ................................................. 87
5.2.7. Jantar ...................................................................................... 89
5.2.8. Retirada da caravana e despedida da festa ............................... 90
5.2.9. Festa de arremate e despedida da festa .................................... 905.2.10. Fim do ciclo .......................................................................... 91
3 Parte: Alguma Concluso ............................................................................ 93
6. Sistema ritual e circuito das trocas ....................................................... 95
7. Nota terica 2 : consideraes finais .................................................. 107
4 Parte: O ps-texto ou o fim di-certa-ao................................................ 116
Bibliografia ................................................................................................... 127
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Ento quem escrever o estudo desses
atos sem finalidade que no ficamrestritos a normas, mas que ocupam umlugar imenso no curso da vida doshomens, envolvendo o que chamamos dehistria, de uma trama sem a qual a
histria no passaria de jogo demarionetes?
Jean Duvignaud, 1983.
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1. Questes preliminares
Inauguro esta escritura com uma espcie de apresentao. Apresento aqui [eu,
Juliana] uma dentre as mltiplas possibilidades de narrativas suscitadas por um encontro.
No tratamos [ns, antroplogos], de um outro, mas sim de uma experincia partilhada
com um mundo que encanta e que afeta. Rastros de uma trajetria de pesquisa modelam
esta escritura, que no tem comeo nem fim, se apresenta em seu desenrolar. Este
trabalho no se prope a nada alm do que simplesmente : narrar de um modo dentre
outros possveis, uma hi[e]stria que se descobre pela experincia da alteridade.
Revelada pela teoria dos autores e pela prtica do campo, ou pelas prticas dos
autores e pelas teorias do campo, uma experincia que se inscreve em momentos de
solido e de compartilhamento. A dimenso emprica, elaborada a partir do trabalho
etnogrfico, ocupa um lugar especial, se insere no para comprovar ou confrontar com a
teoria previamente admitida. uma experincia disciplinadora da imaginao que se
projeta, no sentido apresentado por Otvio Velho (2006), como um paraso aberto
possibilidades mltiplas de reflexo.
O exerccio da diferena acomete tanto o campo quanto a literatura, que foi
escolhida de forma interessada, lida e citada categoricamente porque, como qualquer
escritura, tem algo a nos dizer. A alteridade, ponto detonador deste processo
antropolgico, se d na relao de diferentes que, no opostos, dialogam em seus
possveis comuns. Teoria e prtica aqui no tm lugar definido, se fundem e se
confundem.
Quero comear esta dissertao compartilhando experincias, algumas alhures ao
tempo-espao do mestrado e que so recuperadas de um modo outro, agora com reflexes
pertinentes ao estudo acadmico.Nas festas, participei de diferentes modos. Ao acaso, cheguei a Justinpolis, em
pouco tempo de contato, tornei-me pesquisadora. De incio, muitos no me conhecendo,
tomavam-me por uma jornalista ou como produtora de vdeos. Durante este tempo,
conheci outras pessoas da irmandade e descobri que algumas delas moravam no mesmo
bairro onde a minha residncia. Desde ento, mudei de status, pois passei a frequentar
as festas, acompanhada das minhas vizinhas, Dona Aparecida [rainha conga da
irmandade] e suas filhas, Jocasta [caixeira] e Josiane [danarina]. Esta categoria, nomeadapelos congadeiros acompanhante, indica uma noo de pertencimento irmandade. Deste
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modo, passei a conversar e a conhecer pessoas mais velhas e reservadas. Os membros da
irmandade aproximavam-se com outro olhar, deixei de ser visitante, passei a ser
integrante. Assim repetiu-se comigo a cena cannica da entrada do antroplogo no
campo... O mito re-encenado!
Foi nesta dupla existncia, de pesquisadora e de acompanhante, que realizei meu
trabalho de campo durante os anos de 2007 e 2008. Em maio de 2008, durante a festa de
So Benedito, recebi um convite do Seu Zez, membro mais velho e bem respeitado na
irmandade. Ele me convidou a mudar de categoria, parar de brincar e levar a festa a
srio. Tratava-se de me tornar uma congadeira, integrar-me ao corpo de baile como
danante na guarda de moambique. Muito representou esse convite, apesar de no ter
sido aceito. Ainda como pesquisadora, precisava marcar a diferena.
So a estas pessoas que se dirige este estudo, que o resultado emprico ou a
epifanizao acadmica de uma experincia de relao. Conhecida como Irmandade de
Nossa Senhora do Rosrio de Justinpolis, situa-se na regio metropolitana da capital
mineira, envolvida pelos sopros da modernidade, enquanto vive sua tradio festiva por
cinco geraes. Seu Dirceu, um dos membros mais antigos da irmandade, capito regente
das guardas, mestre da folia e um dos interlocutores privilegiados desta pesquisa me
disse: entre uma festa e outra, a gente procura trabalhar (2005).
Essas pessoas se movimentam com um nico fim: o de festejar. Mais do que um
fenmeno de lazer, a festa aqui uma obrigao social, sendo movida pela f, tambm
ndice marcador de temporalidade dos membros da irmandade.
Estabeleo ento um recorte para a pesquisa. Trata-se de festas que constituem a
forma privilegiada de vida coletiva deste grupo: Festa a Nossa Senhora do Rosrio, a So
Benedito, a So Sebastio, Caravana de Santos Reis e Folia de So Sebastio. Festas
tradicionais do estado de Minas Gerais.
Trata-se, portanto, de um ciclo-circuito festivo que corresponde a um calendrioanual. A periodicidade festiva remete diretamente ao princpio maussiano da alternncia
de ritmos de vida social e de experincia coletiva:A vida social no se mantm no mesmo
nvel nos diferentes momentos do ano, mas passa por fases sucessivas e regulares de
intensidade crescente e decrescente, de repouso e de atividade, de dispndio e reparao
(Mauss, 1974: 324). Nesta perspectiva, o foco de anlise ajustado para pensar como os
diferentes momentos festivos podem nos dizer sobre o modo como este grupo organiza
sua vida social e sua experincia coletiva. Poderiam as diferentes festas, consoante a
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afirmao de Mauss, serem causas ocasionais de um princpio mais geral da vida social
e da experincia coletiva?
O ciclo festivo, dado seu carter repetitivo, implica em um movimento no linear,
que no tem comeo nem fim, pois tem um mesmo ponto de partida e de chegada. Seu
movimento [espiralado] indica uma rotatividade, implica em mudana posicional, deste
modo, sendo sempre o mesmo, se faz outro. Como diria Manuel de Barros (2004), repete,
repete at se tornar diferente. Assim tambm se do estas festas que, sempre se repetindo,
retornam de outra forma. No fim [de uma] se faz tambm o comeo [de outra].
A experincia em Justinpolis possibilitou-me compreender algo sobre um ciclo
outro. Aquele que nos indica e nos conduz ao encontro de ns e dos ns [no duplo
sentido do tropo] que a vida nos coloca. Num mundo moderno onde, parafraseando
Marshall Berman (1986), tudo que slido se desmancha no ar, deparei-me com outro
mundo, no qual no h verdades absolutas,onde no h certo e nem errado, para o qual
uma coisa uma coisa e outra coisa outra coisa, e, por serem coisas diferentes, podem
ser a mesma coisa ao mesmo tempo. Busco com esta dissertao firmar o dilogo
estabelecido entre o mundo acadmico e o mundo emprico, no qual eu, assumindo a
postura de diferente, de ambos, assumo um lugar nesta relao.
Importante pontuar que o tratamento que tenho dado ao processo investigativo em
parte deve-se experincia de danarina, em outra parte teve como inspirao o trabalho
da antroploga Marisa Peirano (2008), que considera o fazer etnogrfico como
experincia mente - corporal, ou nas suas palavras, como uma experincia vivida, como
uma teoria em ao.
Foi nos meandros dessa experincia, vivida de festa em festa, fazendo e me
fazendo em hi[e]strias, que fui despertada e atentada para perceber os ciclos de nossas
vidas. Resolvi ento hi[e]stori-las. J que s nos resta contar hi[e]strias, por que no
contar mais uma?Sigo a escritura desse modo, alinhavando os rastros da minha trajetria de
pesquisa, indicando como se deu a minha relao com a festa at se tornar um campo de
investigao. Apresento, ainda nesta primeira parte, a irmandade de Justinpolis e suas
festas, introduzindo temas fundamentais do trabalho.
Aps apresentar as questes que preliminarmente orientaram a pesquisa, a ateno
se volta para o ciclo festivo. Apresento desse modo, na segunda parte, a minha descrio
densa da estrutura ritual das festas de Justinpolis, acentuando a composio dassequncias rituais. Antes, entretanto, registro uma nota terica sobre a literatura que me
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forneceu subsdios para a composio do esteio terico-metodolgico da pesquisa.
Convido ao dilogo estudos contemporneos realizados por La Freitas Perez (2002,
2004, 2008), bem como sua interlocuo com Jean Duvignaud (1983), pois apresentam
um vis emprico-interpretativo que norteia todo este trabalho. Da teoria clssica
antropolgica, tomo como referncia autores da escola sociolgica francesa que trazem
contribuies significativas para se pensar o carter de alternncia da festa. Nesta seo
procuro aproximar-me da teoria da alternncia de Marcel Mauss (1974) para pensar a
experincia social e coletiva do grupo estudado.
Ainda no vis da escola francesa, na terceira parte, alinhavando alguma concluso,
retomo alguns dos autores apresentados na seo anterior; agora para estabelecer um
dilogo com o circuito festivo. Nesta seo, dou ateno ao mecanismo que atua em
suspenso espao/temporal na festa e estabeleo trs sistemas rituais.
Em seguida, lano mo das contribuies tericas dos estudos rituais,
representadas por Arnold Van Gennep (1978), de modo a pensar a rotatividade das
sequncias rituais, o sistema ritual e circuito de trocas nas sequncias rituais.
Por fim, retomo as contribuies discutidas ao longo do texto, sobretudo num
dilogo entre Mauss e Van Gennep, com consideraes sobre o ciclo-circuito da festa e
suas implicaes necessrias: a da variabilidade da experincia social e coletiva e a da
rotatividade do sagrado.
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2. Rastros de uma trajetria ou de como a festa se impe
Esta hi[e]stria comea a ser traada a partir de memrias de infncia, poderia
partir de qualquer ponto, mas se faz deste, no para definir uma trajetria de maturao oude familiarizao com o objeto no decorrer do tempo linear, mas, sobretudo, por outra
questo que me parece mais plausvel. Recorremos memria de infncia quando
tratamos daquilo que nos sagrado2. E este texto trata disto: o homem e sua experincia
instituinte, o sagrado.
Comecemos por compartilhar cenas que se construram na interao com as ruas
da cidade. Infncia vivida na capital mineira, nas ruas de um bairro tradicional nas
proximidades da regio central. As primeiras lembranas chegam-me pela percepoauditiva, sentido to pouco explorado, mas que meio de comunicao e, assim como os
outros sentidos, manifesta-se no contexto da situao, na expresso de Bronislaw
Malinowski (1972), ou na composio da cena, como prefere Vincent Crapanzano
(2005), apresentando ao pesquisador seu fazer etnogrfico3.
Em algumas noites em casa, depois de chegar da escola, lembro-me da hora em
que comeava os deveres e meus ouvidos eram despertados pelo som produzido por
tambores, seguido de vozes e de chocalhos. Comeavam de longe e iam se aproximando
at chegar rua, do lado de fora de casa. L vem o congado! Era inconfundvel. O som
se aproximava, o corao acelerava, o corpo se inquietava. Medo e curiosidade tomavam
conta de mim at que me dispunha a sair ao porto para ver o congado de Seu Bentinho e
de Dona Conceio passar. Se me perguntassem quem eram aquelas pessoas, no saberia
dizer muito para alm do que via e ouvia: eram reis e seu cortejo.
A imponncia da bandeira conduzindo aqueles homens, de cabeas reluzentes seja
pelo brilho das coroas ou pelo suor das testas, exigia respeito. No tinha como no sair ao
2 Inspirei-me na leitura de Le sacr dans la vie quotidienne de Michel Leiris(1979). O sagrado qualitativamente caracterizado pelo autor pela via da experinciainfantil.
3A noo de contexto da situao implica, leva em conta, a interferncia doambiente na linguagem, ou seja, a situao em que os textos (enunciados) so produzidos(Malinowski, 1972: 304-306). A cena tem sua base na intersubjetividade, corresponde aquela aparncia, a forma ou refrao da situao "objetiva" em que nos encontramos,colorindo-a ou nuanando-a e, com isso, tornando-a diferente daquilo que sabemos queela quando nos damos ao trabalho de sobre ela pensar objetivamente (Crapanzano,2005: 359).
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porto e, no mnimo, me curvar, ainda que sutilmente, sem que ningum percebesse,
diante da rainha. Digo sem que ningum percebesseporque aquilo tudo ainda era muito
estranho aos meus olhos, no sabia se silenciava, salvava de palmas ou se me deixava
levar pela vontade de adentrar pelo cortejo danando e cantando junto a eles. Mas
enquanto eu no tomava coragem de seguir os homens que batem caixa e cantam ao Seu
rei e S rainha, dava-me por satisfeita por restar ali, participando ao alcance do que me
era possibilitado pelo olhar e pela escuta. Intrometia-me s vezes de forma muito
acanhada, perguntando a um fardado com suas vestes azuis e brancas, ou a outro portando
roupas comuns, sobre o que faziam, de onde vinham e para onde iam. Sempre passando e
passando pelo meu porto, seguiam um caminho desconhecido.
Da curiosidade nasceu uma investigao pueril. A cada vez que eles passavam,
acumulava mais informao. Com o tempo percebi que havia uma sequncia na festa. Os
tambores tm dias certos para sair, o cortejo no passa em qualquer lugar e tocam em
louvor aos seus santos. Dispus-me a segui-los, mantendo distncia. Descobriria assim que
a rua era lugar de passagem e que o cortejo tinha como destino uma casa do bairro. Ao
entrarem na casa, mais um mistrio, os tambores silenciavam permanecendo mudos por
um tempo.Mas o que acontecia dentro daquela casa?Intrigada por desvendar o mistrio,
mas contida pelo medo atribudo ao silncio, ficava inibida de fazer qualquer movimento
para entrar. Ademais, para alm do medo, no me sentia autorizada, pois a boa e
tradicional educao mineira reza que s se deve entrar em casa dos outros quando
convidado.No entrara na casa, portanto no avanara muito na investigao. O congado
voltava ao seu lugar e a vida voltava sua normalidade...
No ano seguinte o evento se repetia. O congado comeava a descida da rua
novamente, tocando os tambores, passando pela porta da minha casa. Consegui
estabelecer outra aproximao, j com outros informantes para a pesquisa, descobrindo o
motivo da passagem. Era uma festa em cumprimento de uma promessa, pois uma crianase curara de uma doena sria. Como graa, durante sete anos, os congadeiros [pagadores
de promessas, em louvor a So Cosme e So Damio] se deslocavam de suas casas em
procisso at a casa de Dona Zica, a feitora da promessa. Ela oferecia, em troca, uma
festa. Acredito hoje que esta descoberta tenha sido um grande avano na minha pesquisa,
pois permitiu-me deslocar do lugar de observadora recalcada para o de observadora
participante. Tratava-se de uma festa para todas as crianas!A estava minha permisso
para acompanh-los.
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ritual nas danas. Interesse que tomou outra forma logo nos primeiros dias de pesquisa,
pois tratar dos gestos nas danas implica compreender o contexto de sua efetivao: a
festa.
Quem se lana a uma pesquisa antropolgica sabe que, em se tratando de festa,
no basta somente observ-la, ela nos convida a participar. Nesta atividade investigativa
somos tomados de tal modo que, participar se impe e acarreta o distanciamento do
roteiro previamente elaborado. Foi assim que, numa destas conversas, um mestre da folia
se props a me contar uma hi[e]stria que fugia do roteiro, e, pelo mesmo motivo, no
deixo escapar aqui.
Vou contar o mais importante, aquilo quevoc no v,, a histria da primeira folia,a folia de origem. Este um grupo desdeh 210 ano...
E a histria inicia com So Francisco,quando ainda era embaixador dos
franciscanos.Na poca, 23 anos depois, na festa dosreis do oriente, ele reuniu algumas
pessoas que fizeram uma prece promenino Jesus. Formouse assim uma
conferncia, em que estavam presentes ahumildade e fora e a unio no intuito defazer um canto ao menino Jesus. SoFrancisco convidou a Floriza de Aquino,irm do rei negro, e vestiu a pessoa querepresentou esse rei, cujo nome era
Belquior. Seguiu outro com o nome do reiGaspar, que era o dono da festa, e vestiuum homem mais moo para representar orei rabe: Baltazar. Naquela poca elesandavam de dia e todos tinha suas
obrigaes. Apressaram uma viola, umviolo e um chique-chique pr toc. Aoobservar a caravana, Simo Varoapreciou e se ofereceu para compor aletra das msicas que eles tocavam.Foi assim que se formou a caravana daFolia dos Reis na cidade de So Franciscode Assis, formada por So Gonalo, SoVicente de Paulo e So Francisco de
Assis: o embaixador dos Franciscanos
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(Mestre Geraldo Gonalo dos Santos,2001) 5.
Esta experincia na Festa Nacional do Folclore permitiu-me aproximar-me da
folia de reis. Tradicional manifestao do ciclo natalino, bastante difundida no interior doestado de Minas Gerais e de ocorrncia mais restrita na capital. Em Jequitib, e no seu
entorno, esto localizadas as folias mais antigas e mais respeitadas do estado.
Os laos estabelecidos com os grupos das folias durante esta pesquisa
despertaram-me a vontade do reencontro e fizeram-me retornar nos anos seguintes, e,
aps trs anos, percebi que a festa ainda acontecia. Notei que muitas mudanas
ocorreram. Uma outra estrutura foi criada para a recepo de turistas: barraquinhas e
palcos de apresentao dos grupos. Confesso que, a princpio, pairava um sentimentomelanclico em relao tradio que se dava por finda, na medida em que a apropriao
da festa pelo mercado resultava numa descaracterizao. assim que, pelo menos, reza a
doxa. Para alm dos julgamentos de cunho esttico, fato que este acontecimento
permanece na cidade at os dias de hoje, dez anos depois da minha primeira visita.
Trato agora de pontuar um terceiro evento que antecede a entrada no mestrado, e
que participa diretamente da pesquisa. O encontro com a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosrio de Justinpolis em maro de 2000. Este encontro no tinha pretenso nenhuma,
foi desses que se d por acasos da vida. Na ocasio eu ciceroneava dois msicos paulistas,
que pesquisavam crianas que cantavam, quando os conduzi at Justinpolis, onde pude
ouvir a guarda de congo entoar maravilhosamente o Congo da Maria Amada6. No h
como no ficar deslumbrado com a musicalidade,pois, se, de acordo com a narrativa
mtica fundadora da festa, Nossa Senhora se encantou e saiu das guas ao ouvir a msica
e os tambores, como eu, no ficaria encantada com aquela magia que soava, de vozes
infantis, com f, fora e delicadeza?
Durante dois dias acompanhei o processo de gravao. Cantei, dancei, fui
envolvida. Esta experincia semelhante vivida na infncia tomava-me os sentidos do
5Os registros dos depoimentos, transcritos no momento do relato, oscilam entrelinguagem formal e informal. Durante a escrita, tentei manter-me fiel ao modo de falar,ou melhor, ao modo de contar hi[e]stria, dos mestres. Notei que estes tentam estabelecerum protocolo de narrativa no momento da entrevista, ocorre um discurso que comportasimultaneamente o coloquial e o formal.
6 A melodia pode ser apreciada na faixa 7 do Livro Cd, Canes do Brasil: oBrasil cantado por suas crianas. Lanado pelo Selo Palavra Cantada, 2000.
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corpo inteiro. Como uma boa danarina, pensei, se algo faz sentir porque faz sentido. A
partir desta experincia resolvi ficar mais atenta ao que meus olhos ouviam. No era a
primeira vez que encontrara o congado, mas o interesse agora despertara de outra forma.
Ao mesmo tempo em que apreciava aquelas crianas, eu me perguntava por que nunca
ouvira falar daquele grupo to conhecido pelo meio artstico de So Paulo, mas que em
Minas passava, ou melhor, dizendo, cantava despercebido. Este duplo lugar de
centralidade para o distante e de marginalidade para o prximo despertou-me curiosidade
e interesse.
Fui convidada por Seu Dirceu, na poca presidente da irmandade, a assistir a uma
missa conga, durante a festa de So Benedito, no ms de maio. Esta celebrao tem
elementos que a diferem da liturgia tradicional no ofertrio e nos cnticos, pois estes so
realizados pelas guardas, conferindo um carter especial missa.
Aps o encerramento da missa, a festa ainda continuava e outro convite surgira.
Outra festa j estava sendo preparada para outubro. No dia 27 de outubro, retornando
irmandade conheci a grande festa de Reinado a Nossa Senhora do Rosrio de
Justinpolis. Esta festa fez parar a cidade, frequentada por aproximadamente setecentas
pessoas. Antes mesmo do trmino da festa, fiquei sabendo pelo prprio Seu Dirceu que
tambm sairia, em dezembro, a folia de reis, mais uma tradio festiva.
Entre idas e vindas, de festa em festa, comecei a definir e a incorporar o caminho
investigativo e pude chegar a uma concluso: a festa, modo privilegiado de estabelecer o
encontro, a estava, pois no h como se esquivar dela, e diante dos olhos, dos ouvidos, do
tato e da boca, ia se impondo. Sempre passando, sempre retornando, a festa se modifica,
mas nunca se extingue.
Essas diferentes experincias rapidamente aqui evocadas possibilitaram-me
deslocar a festa para outro patamar, o da investigao antropolgica sistemtica e
acadmica. E assim veio o mestrado, e com ele a dissertao. O resto, claro, [como bemdiria La Perez], so hi[e]strias...
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3. Justinpolis e suas festas
Aproximemo-nos, ento, de Justinpolis e sua tradio festiva.
Saindo da capital mineira, pegamos uma via de acesso sentido norte, a longa
avenida que recebe o nome de Padre Pedro Pinto, que atravessa o distrito de Venda Nova,
seguindo at a cidade de Ribeiro das Neves, quando passa a ser chamada de Avenida
Civilizao. To logo a avenida muda de nome, paradoxalmente, nota-se uma diferena
no panorama visual. Um estreitamento na pista e um movimento intenso de pessoas e de
carros vo compondo outra paisagem, marcada pela poeira e pela pobreza. Chegamos
periferia. Estamos em Ribeiro das Neves.
Figura 1: Mapa da comarca de Belo Horizonte e suas regies vizinhas
Cidade de aproximadamente 150 km2 de extenso, localizada ao norte de Belo
Horizonte, composta aproximadamente por 340.000 habitantes distribudos nos distritos
de Justinpolis, Areias, Regional Centro e Veneza. Iniciou seu povoamento em fins do
sculo XVII, s margens do ribeiro, mas somente recebeu este nome em 1953 conforme
documento da Sesmaria (Carta SC 265 p. 121, 121 v, 122).
O ribeiro que batizou o municpio compe a bacia do Rio das Velhas/Paraopeba,
e corta seu territrio no sentido sudeste-norte, passando por Justinpolis e por Areias e
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seguindo para o municpio de Pedro Leopoldo. Nas vrzeas desse ribeiro, a lavra de
mineral (areia e argila) grande potencial gerador de renda no ramo ceramista, na
fabricao de tijolos furados, nas olarias de mdio e de grande porte. Outra fonte de renda
da regio est no cultivo de hortalias, destinadas ao mercado da Ceasa, bem como
comrcios especializados do centro de Belo Horizonte, tais como o Mercado Central e o
Mercado Novo.
A cidade conhecida por sediar um centro para meninos carentes da sociedade
So Vicente de Paula e um presdio estadual, a antiga penitenciaria agrcola (PAN). Alm
dos problemas, como falta de pavimentao, precariedade do transporte pblico, falta de
estruturao dos servios de sade e de saneamento bsico, Ribeiro das Neves
constituiu-se como uma cidade dormitrio de Belo Horizonte.
Durante dois anos de trabalho de campo, fiz vrias vezes o percurso Belo
Horizonte/Justinpolis/Belo Horizonte. Em tantas idas e vindas, o ambiente que nos
parece estranho comea a se tornar familiar. Com o tempo, no se percebe mais a sujeira,
o barulho, a poluio da cidade. Outras coisas passam a ocupar nossa ateno. Foi, pois,
nesta periferia da periferia, entre a poluio e o perigo, [relembrando Mary Douglas
(1991) que me acompanhou sempre] neste depsito de impuros da capital, que,
paradoxalmente, descobri a irmandade de Justinpolis como uma espcie de paraso
admico aberto a possibilidades mltiplas.
A irmandade, que recebe o prprio nome do distrito, est instalada h cento e
quinze anos, quando este local ainda recebia o nome de Campanh. Antecedendo
criao da prpria cidade de Ribeiro das Neves, a localidade pertenceu inicialmente ao
distrito de Belo Horizonte chamado de Venda Nova do Vilarinho; em 1911, passou para o
municpio de Contagem, em 1938 ao municpio de Pedro Leopoldo e somente em 1956
integrou-se ao municpio de Neves, passando a ser chamada Justinpolis. A maioria das
informaes que nos possibilitam compreender o processo de migrao, de instalao e deformao da irmandade se encontram em registros escritos ou na memria das pessoas
mais antigas, fragmentadas em lembranas e em esquecimentos.
Diferentes rituais do forma vida festiva na irmandade. Obviamente que, como
espao de experimentao individual e coletiva, h inmeras festas e motivos para
festejar. Aniversrios, formaturas, casamentos, jantares, visita de antroploga em dias de
entrevista.
Entretanto, conforme mencionado na introduo, o que nos servir de recorte paraeste estudo so as festas religiosas conforme descrevo no quadro:
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Festas Dia do santo Dia da festa
Festa a Santos Reis
Festa a So Sebastio
Festa a Nossa Senhora
da Luz
Festa a So Benedito
Festa a Nossa Senhora
do Rosrio
06 de janeiro
20 de janeiro
02 de fevereiro
14 de abril
06 de outubro
06 de janeiro
1 domingo aps dia 20 de janeiro
02 de fevereiro
ltimo domingo de maio
3 domingo de outubro
Figura 2: Calendrio anual das festas em Justinpolis
Tais festas aos santos padroeiros, como bem demonstra Alba Zaluar, so
expresso singular do catolicismo popular brasileiro. Constitui uma religio
eminentemente prtica na qual a linguagem inserida no conjunto de uma ao ritual,
onde nos rituais e na maneira de conceber as relaes entre os homens e os santos, est
simbolicamente expresso o cdigo rege as relaes dos homens entresi (1983: 116-117).
Diz ela ainda:
A prtica popular espontnea isto ,fora do controle da igrejano manejo dossmbolos que os santos e as associaesreligiosas constituem sugere qual aqualidade principal desses smbolos: suacapacidade de desdobrar-se ou
reproduzir-se de acordo com odesdobramento e reproduo dos grupos,
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redes ou categorias de pessoas pelossantos e associaes religiosasrepresentados (1983: 64).
Em pequenas conversas com as pessoas durante a pesquisa, foi possvel notar
como o desdobramento das festas acompanha o desdobramento do grupo fundao da
localidade, constituio de parentesco, definio de grupo de profissionais. A referncia
ao ato festivo foi, em primeira instncia, recuperada pela memria dos entrevistados para
dizer da constituio de uma coletividade. Como mostro a seguir, a vida na festa
tambm expresso na e da vida coletiva como um todo.
Numa conversa, Seu Zez, capito mor da irmandade, contou-me da sua
procedncia de Areias relembrando hi[e]strias que lhe foram contadas e vividas com seu
av, Manuel Messias. Sua saudosa lembrana revive situaes em que ele, ainda pequeno,
avistava os capinadores vindos em mutiro das roas para festejar a chegada do milho,
comemorada na segunda capina em meados de dezembro.
Antigamente existiam muitas outras festas,muito antes da Irmandade do Rosrio,elas se davam na poca da colheita naroa, as festas eram muito boas: nos dias
da capina do milho, as mulherescomeavam com a cantiga de roda, depoisos homens chegavam e faziam o rito decapina, a, vinha o batuque, a dana dorecortado, e, mais tarde a dana braba e obatuque paulistana. Eu era bem pequeno,
saa de casa em dezembro e s voltavadepois da folia de Reis. Essa da bemantiga! Vindo pra cidade essas tradiesque so d roa ia se perdendo, mas aqui,
foi surgindo outras festas (2008).
Pelo que me foi dito por Seu Zez, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio de
Justinpolis provavelmente provm da Irmandade dos Arturos, uma das mais antigas de
Minas Gerais. Hoje, fixados na cidade de Contagem, os Arturos ainda mantm a tradio
do rito de capina, chamada por eles de festas de chegada do milho 7.
7 Uma etnografia detalhada sobre a festa da primeira capina de milho entre osArturos encontrada no trabalho de Romeu Sabar, 1998.
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seus mestres. Quando visita outras festas, um bom folio nunca deixa de carregar consigo
o seu caderno de passo ou, talvez possa dizer, seu caderno de campo.
Em Justinpolis, a Caravana a Santos Reis e a Folia de So Sebastio, tm duas
razes familiares, visto que aos Messias, juntaram-se os Vieira. Seu Jos Jorge Messias,
filho de Manoel Messias e pai de Seu Zez, folio e congadeiro em Areias, fundou a
Irmandade do Rosrio em Campanh quando emigrou com sua famlia. Entretanto, no
trouxe a folia de reis, continuou saindo com esta na regio de Areias, pois em Campanh
j havia uma folia comandada por Francisco Vieira, irmo de Teovina Vieira. Teovina,
por sua vez, emprestava seu terreiro quando os congadeiros dos Messias ainda no tinham
lugar para fazer suas festas. Com o tempo as famlias se tornaram uma s: Seu Dirceu
sobrinho neto de Francisco Vieira casou-se com Luiza, neta de Seu Jorge Messias, e
tiveram trs filhas. Esta famlia, carro-chefe condutor das festas de Justinpolis, re-uniu
as duas tradies. Elos festivos e de parentescos que se confundem. Cultura na prtica,
como diria Marshall Shalins (2004).
A migrao de uma rea rural para uma rea urbana e industrial corresponde a
uma diferena quantitativa e qualitativa na substituio e no aumento do nmero de
festas. Algumas festas so mais antigas, advm do processo de migrao, outras foram
institudas com a fixao na rea urbana. Enquanto umas deixam de existir, vrias
surgem, como os festejos juninos de So Joo. Seu Zez ainda guarda um sentimento
saudosista da poca de infncia, entretanto, mantendo uma impressionante lucidez, ele
afirma que:
Mas, a tradio assim, umas coisassaem outras coisas entram...E a vidasegue(2008).
A frase de Seu Zez quase que, se no totalmente, uma parfrase, no propositalbien sr, da frase de Pierre Sanchis, numa ntida evidncia da possibilidade de encontro
da prtica dos autores com a teoria de campo:
Por uma que desaparece, reforam-se dez,e quantas novas festas surgem um pouco
por toda a parte! As mesmas? Ousemelhantes? No completamente. E, sedesaparecem algumas particularidades,
criam-se outras e estabelece-se novadiversificao (1992: 16).
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matriz imaginria e imagtica que orienta a devoo do congadeiro (Alves, 2006)10.
Como ela ressalta, as festas do ciclo do reinado se concentram nos mistrios gloriosos.
Nos meses que ns estamos vivendo aquaresma, o Reinado fica parado, o
Reinado t fechado. No tem nenhuminstrumento rufano, ento, para secelebrar o tero a gente celebra o mistriodoloroso que ns to vivendo a paixo de
Jesus Cristo morto (Seu Dirceu apudAlves, 2006: 150).
Observei que em Justinpolis, a lei do rosrio mantida para todo calendrio
anual: as festas do reisado se concentram nos mistrios gozosos, no perodo quecorresponde aos mistrios dolorosos, a irmandade guarda todos os tambores e permanece
sem festas. Fato corroborado pela fala de Seu Dirceu quando nos diz:
Cada tero tem cinco mistrios, cadamistrio so dez ave-marias. O rosriotem o total de 150 ave-marias. Antes noexistia o rosrio, existia o que o negrotinha, ptala de rosa. A igreja inventou o
tero, mas as rezas do rosrio j existiapros negros. Em cada uma das festas, nsreza um dos mistrios do rosrio (2008).
Seria muito interessante atentarmos para o perodo de pausa da festa, para qual
maneira ele nos diz sobre o modo de estabelecer a relao com o sagrado. Entretanto, uma
reflexo mais desenvolvida sobre a pausa festiva e suas implicaes deixarei para
aspiraes futuras. Passo agora a compreender a forma como algumas festas ensejam s
outras, formando camadas de pequenos ciclos at a formao do ciclo-circuito, fococentral desta dissertao, sua razo de ser. Comecemos por uma primeira aproximao.
O ciclo maior (anual) comporta dois pequenos ciclos (Rosrio e Reis) e cada um
deles possui trs festas dedicadas aos santos padroeiros. As festas do ciclo do rosrio,
10 Os mistrios do rosrio de Maria so: gozosos [nascimento de Jesus Cristo,jbilo e glria], dolorosos [sofrimento de Jesus, crucificao, morte], gloriosos[ressurreio de Jesus]. H ainda os luminosos, produto de acrscimo feito por Joo PauloII e refere-se vida do Filho de Deus, seus milagres, suas pregaes e seus feitos
importantes (Perez, 2009).
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Segundo Seu Dirceu, o dia 06 de janeiro, no o dia de desmonte da lapinha
tampouco o dia que marca o fim dos festejos natalinos. Diz ele:
A histria ensina o contrrio, pois aps o
dia da chegada dos magos, a coroao e aentrega dos presentes que o povoadocomeou a festa (2008).
Cada uma das trs festas de Reisado marca uma das trs etapas que corresponde a
um trecho da caminhada dos reis. Realizada na casa de algum dos devotos, a Festa a
Santos Reis e a Festa a Nossa Senhora da Luz no tem lugar fixo, variando de ano para
ano. A festa a So Sebastio, por pertencer simultaneamente ao congado e ao reisado,
diferentemente das outras duas, acontece sempre no terreiro do congado.
Durante todo o perodo, a caravana percorre diferentes casas visitando as lapinhas,
cantando versos e recolhendo doaes. Cada vez que a folia bate numa casa, ela conta
trechos da hi[e]stria da peregrinao do reis magos, uma narrativa que tem no texto
bblico sua escritura principal, mas que recebe algumas pinceladas de outros eventos
mticos, acrescentando uma colorao diferente ao modelo inicial(1994)12.
A primeira etapa da folia sai no ritmo das batidas de caixa de nome Rei Novo,
narrando o Ciclo da Boa Nova ou Nascimento. chamado de giro de ida, pois
corresponde sada dos reis de suas terras at a chegada lapinha. Comea na virada do
dia 24 para o dia 25 de dezembro, estendendo-se at o dia 06 de Janeiro, quando se
comemora a Festa de Reis.
A segunda etapa indica a chegada dos reis na lapinha, o oferecimento de seus
presentes e suas respectivas coroaes pela Virgem Maria. Nesta etapa, a folia troca de
bandeira, muda suas batidas de caixa e os versos cantados, seguindo com estes at o dia
21 de janeiro na Festa a So Sebastio.
A terceira etapa da folia acompanha os ritmos de nome Rei Velho, comea com aapresentao do menino Jesus ao templo e narra o retorno dos reis magos para suas terras.
A festa de encerramento do ciclo do reisado chamada, pelos membros da irmandadade,
de festa depifania, diferentemente do que ocorre no costume cristo, a epifania na
irmandade no se d no dia de reis, comemorada no dia 02 de fevereiro, em homenagem
a Nossa Senhora da Luz.
12 O termo colorao nos remete interferncia da cultura negra na tradioIbrica, tratada por Gomes e Pereira (1994: 61).
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Segundo Seu Dirceu, a festa da pifania a festa de encerramento, a festa de
arremate da folia. Ela a maior festa, representa a viagem de volta dos reis, o ltimo
encontro antes da despedida final do retorno definitivo para suas terras.
deste modo que a irmandade de Justinpolis segue sua vida, com muita
festividade e com muito trabalho. Sob a direo de Seu Dirceu, Seu Zez, Edinha, Luiza,
Adelmo e Nenzinha (in memoriam), eles se quebram e requebram [na festa e fora dela],
ludibriando os tempos do trabalho e os tempos do lazer. Contando-nos suas hi[e]strias
mostram-nos tambm, de um modo especial, o jeito que lidam com a prpria hi[e]stria.
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2 Parte:
Ciclo festivo e alternncia
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4. Nota terica 1: primeiras consideraes
A festa vista como acontecimento coletivo ultrapassa o sentido da comemorao e
atua na formao dos vnculos que fundamentam a experincia humana. Ao longo dos
captulos anteriores, procurei esboar como ela marca hi[es]strias, e de um modo
particular em Justinpolis, pontuando e regulando o curso das vidas das pessoas.
A festa ndice de temporalidade, marca os tempos fortes, culminantes, para a
coletividade. Materialidade disso nos nossos calendrios, que colocam em destaque os
dias de domingo e de feriados [leia-se, dias de festas]. De fato, como nos diz Roberto
DaMatta (1983), temos um modo especial de sociabilidade, pois somos submetidos s
regras de um pas carnavalizado, logo, s regras da festa.
Antes de avanar na questo, quero considerar primeiramente a proposio de
Perez (2002) de tomar a festa como
uma forma ldica de sociao e comofenmeno gerador de imagens multiformesda vida coletiva, que busca mostrar comoo vnculo social pode ser gerado a partirda poetizao e estetizao da experincia
humana em sociedade (2002: 17).
Assim, o estudo da festa fornece elementos para pensar as bases constitutivas dos
vnculos que fundamentam a experincia humana nas dimenses da vida social [regra
estrutural] e da vida coletiva[ordem dos sentimentos]. Admitimos a noo de estrutura da
vida social, bem entendida, em seu dinamismo, incorporando o termo sociao de
Simmel,
como um processo permanente do vir aser social que, no se confunde nem com asocializao nem com a associao, umavez que d conta, no de contedos, masda forma (realizada de incontveis
maneiras diferentes) pela qual osindivduos se agrupam (Simmel apudPerez 2002: 18).
Tal proposta aproxima o estudo da festa ao domnio da esttica, do ldico, dosonho, da arte, [en bref], do imaginrio. A teoria seminal de Durkeim nos fornece bases
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elementares para a compreenso da festa como lugar privilegiado de exaltao dos
sentimentos coletivos. Para o autor, a festa um agrupamento nico em estado de
exaltao geral em torno de uma coisa ou algum e gera efervescncia coletiva, exaltao
das paixes comuns, produzindo a comunho de sentimentos que possibilita a
transgresso de normas e reforo dos vnculos (1985). Diz ele:
No seio de uma assemblia que esquentauma paixo comum, encontramo-nos
suscetveis de sentimentos e de atos de quesomos incapazes quando estamosreduzidos s nossas foras (1985: 300-301).
De outro modo, podemos acentuar o carter do estar - junto na festa, a partir das
reflexes trazidas por Mauss (1981) com seus estudos sobre rituais funerrios autralianos.
A passagem abaixo exibe o carter coletivo e, ao mesmo tempo, obrigatrio da expresso
fisiolgica dos sentimentos.
No so somente os choros, mas todos ostipos de expresses orais dos sentimentosque so essencialmente no fenmenosexclusivamente psicolgicos, ou
fisiolgicos, mas fenmenos sociais,marcados eminentemente pelo signo dano espontaneidade, e da obrigao mais
perfeita (1981: 325).
Neste pensamento, o autor indica a centralidade da festa na experincia humana.
Pela incorporao de trs elementos: corpo, conscincia individual e a coletividade, a
festa expressa a prpria vida, o homem, sua vontade de viver ele mesmo sua vida (Mauss,
1981: 334).
Avanando um pouco mais, necessrio considerar como os trabalhos inaugurais
de Durkheim e Mauss forneceram ingredientes para Roger Callois (1989) elaborar sua
teoria que ressalta a alternncia de ritmos que a festa produz.
A noo de efervescncia coletiva de Durkheim foi incorporada como momento
que corresponde ao cume do ritual, indicando assim a existncia de um rompimento
temporal da festa com a vida profana para realizao da experincia plena do sagrado
(Callois, 1989). Assim, com base no autor, podemos dizer que a amplitude ritual, ou, em
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Acompanhando as contribuies dos autores, [ainda que falem da festa em relao
sociedade, diferente do tratamento que tenho dado, pois adoto a verso de Perez (2004),
que trata a festa como perspectiva], notamos como a festa, em sua multiplicidade de
formas, evidencia a experincia singular do sagrado, fazendo-se como um perodo
peculiar de transgresso da ordem e de atividade coletiva intensa. Podemos assumir ento
que de maneiras inusitadas, a festa atua sobretudo como um operador de ligaes. Como
bem salientado por Perez, trata-se, portanto, de um mecanismo festivo atuante. Diz ela,
O fato (leia-se festas institudas) no seconfunde e no se sobrepe aomecanismo. A desconstruo,desrealizao do real institudo e a
decorrente abertura para o imaginrio,isto , o no institudo, operaofundamental realizada pelo mecanismofestivo, uma virtualidade que podeeclodir ou no no interior das festasinstitudas (2004: 16).
Creio que chegamos ao ponto que me permite retomar e lanar um outro olhar
para as questes preliminares da pesquisa. Tomo a liberdade de usar do mesmo
argumento que foi utilizado por Mauss, Callois, entre outros, de outro modo. Adoto aqui a
teoria da sazonalidade no como uma ilustrao da vida religiosa, mas como princpio
geral de alternncia da vida social e da experincia coletiva.
A passagem a seguir um convite para pensar o princpio da alternncia como via
de regra para a experincia humana. J mencionada na introduo desta dissertao,
devido sua importncia, repito-a novamente.
A vida social no se mantm no mesmo
nvel nos diferentes momentos do ano, maspassa por fases sucessivas e regulares deintensidade crescente e decrescente, derepouso e de atividade, de dispndio ereparao(Mauss, 1974: 324).
Sinto-me inclinada a propor que as duas modalidades de festa de Justinpolis,
alternando-se, possibilitam a variabilidade de experincias e produzem modos distintos de
estabelecer vnculos. A alternncia pode ser pensada em boa medida se utilizarmos as
categorias desenvolvidas por Arnold Van Gennep (1978) e Victor Turnner, (2000),
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autores que inauguram o estudo de rituais, como categoria a autnoma em relao a
outros domnios14.
A dinmica da mudana que o ritual favorece se aplica no somente aos ritos de
passagens, onde ela estrutural, mas a todos os ritos. A ocorrncia do rito destinada a se
repetir todas as vezes que ocorrem circunstncias que o produzem (Van Gennep, 1978).
Desse modo, descartamos uma viso esttica de rito, introduzindo um dinamismo a partir
da considerao de sequncias rituais que compe cada rito.
Aqui, a ideia de sequncia indica que no se devem tratar as partes do rito
isoladamente, mas na sua situao lgica, ou seja, no conjunto de seus mecanismos(Van
Gennep, 1978: 86).
Seguindo as orientaes do autor, passemos agora para a estrutura ritual tpica das
festas do catolicismo popular brasileiro, presentes tambm nas festas em Justinpolis,
examinando suas partes constitutivas, ou seja, suas sequncias rituais: santos, bandeiras,
reis, procisses, cumprimento de promessas, msicas, danas, comidas, preces.
Esses elementos compem sequncias rituais que, por sua vez, do forma
estrutura das festas [reinado, reisado]. Em cada festa, adquirem diferentes atributos,
podendo se repetir em diferentes sequncias do mesmo ciclo e retornar de outro modo, no
ciclo seguinte.
Conforme sugiro a seguir, esta caracterstica que confere o carter de
alternncia, dando estrutura das festas sua forma cclica. Caracterstica de suma
importncia a este trabalho.
14 Rito passa a ser compreendido no como representao, mas como realidadevivida, paradoxo produtivo, como drama social em que comportamentos constituemunidades scio-temporais mais ou menos fechadas sobre si mesmas (Victor Turnner,
2000).
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Nas festas de reisado os elementos so acionados de outro modo, configurando
outras sequncias rituais:
Elemento Atributo
Montagem da lapinha Abertura do ciclo
Retirada da bandeira Inaugurao do perodo festivo
Alvorada, mascaramento dos reis e formao
da caravana
Incio da noite de festa
Cortejo Conduo dos reis a casa do devoto
Preces Pedidos de licena para realizao da festa.
Seqncia celebrativa de entrada na casa do
devoto
Alimento sagrado Jantar oferecido pelo devoto
Promessas Seqncia profana realizada pelos reis aos
devotos
Retirada da bandeira Passos de agradecimentos e passos de
retirada da caravana da casa
Guarda da bandeira Despedida e mudana do perodo festivo
Desmontagem da lapinha Fechamento do ciclo
Figura 6: Sequncias rituais das festas de reisado
Para compreenso das sequncias importante enfatizar que os elementoscamdombe, lapinha, bandeiras e reis configuram sequncias rituais no incio e no fim das
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festas. Assim, para cada sequncia de entrada na festa corresponde uma sequncia de
sada idntica, porm inversa. Sabendo-se que o candombe e a coroao dos reis congos
e a lapinha fazem referncia aos ciclos [reinado, reisado], que ocorrem desse modo, uma
vez em cada um dos seus respectivos ciclos. O elemento bandeira recebe atributo em
relao ao perodo festivo e ocorre no incio e no fim de cada uma das trs festas de
ambos os ciclos. Os outros elementos fazem referncia ao dia da festa, e se repetem em
cada dia no caso das festas do congado, e vrias vezes em cada noite de sada da folia.
O toque do candombe e a montagem da lapinha constituem o fundamento da
festa, pois evocam a cena fundante, onde tudo comeou. Assim, eles so presena
obrigatria para a realizao da abertura e do encerramento dos seus ciclos festivos
correspondentes. Como diz Seu Dirceu, as festas da irmandade falam sobre reis e sobre
realezas de modos distintos, o candombe evoca o fundamento dos reis congos africanos e
a lapinha evoca o fundamento bblico dos reis magos (2008).
A realeza exibida de formas diferenciadas nas festas: no reinado os reis so
solenes e consagrados pela utilizao da coroa e do cetro; no reisado, os reis so
reconhecidos pelo uso de suas mscaras.
O fundamento da festa transmitido pela oralidade, entoado pelos cantos e
acompanhados das danas que se fazem presentes em toda a sequncia festiva, dando cor,
calor e agitao cena festiva. Euridiana Souza (2009) nos lembra brilhantemente como a
msica mana, essa substncia manejvel, mas independente, exatamente pelo poder que
tem de dar valor s coisas e s pessoas. Acompanhada pelos gestos, responde sobretudo a
uma experincia que no est servio de nada, se no pelo fato de responder
necessidade de gesticular e de produzir agitao. A eficcia do gesto, como nos diz
Duvignaud, se d no s porque ele aparenta um si da existncia e nos engaja na vida
imaginria, mas, sobretudo porque extrai o mito da linguagem e o substitui na rede de
uma comunicao (1983:88). Assim canta-se e dana-se muito nas festas. A festa, essedom do nada, movimento corporal. Para alm de tentar decifrar os significados dos
cantos e das danas, importante frisar a necessidade obrigatria de eles acontecerem.
o que Perez (2002) toma como significante flutuante.
Os cantos do reinado so entoados pelos capites e pelas guardas. Cada guarda
possui seu canto e seu movimento especfico realizado pelos ritmos produzidos pelos
instrumentos. Alm das caixas de percusso, contam com um reco-reco e um patangome,
instrumento tpico de congado, que construdo por duas calotas de carro unidas epreenchidas por gros de arroz. Quando tocada, produz um som de chocalho. Os toques
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podem ser serra acima, serra abaixo, repicado e dobrado. A variao desses toques dada
pelo tempo empregado na frase rtmica em cada um deles.
Cada sequncia ritual pede um toque de caixa especfico. Alguns destes so
definidos previamente, outros determinados pelo capito da guarda na sequncia da festa.
uma sabedoria que somente os mestres congadeiros possuem. Como diz Seu Dirceu, se
tem muito morro pra subir, mando um toque mais forte pra ajudar a seguir em frente e
chegar l em cima, se ns tamo descendo eu mudo pra serra a baixo, se no corre de
mais(2008).
No reisado, os cantos so realizados pelo mestre e pela caravana e se dividem em
hinos de adorao e de passos. Os instrumentos tocados pelos folies de Justinpolis so a
viola, o violo, o cavaquinho, a sanfona e a caixa. A maioria dos folies tem uma
hi[e]stria que relaciona seu instrumento com a entrada na folia. Vale dizer que esses
instrumentos tm mana, sendo utilizados com o nico propsito de tocar na festa. De fato
o que se nota no relato que foi feito no ano de 1996 por Seu Ado, h quinze anos
violeiro da folia de reis de Justinpolis.
Esta viola tem quatro anos que tenho ela,eu fiz um voto de compara especialmente
para acompanh a folia. Essa como diz,eu j passei a orde l pra casa, que o diaque eu fizer a minha ltima viagem, praessa aqui s doada pr folia (apud KtiaCupertino, 2006: 126)
Nas festas de reinado as danas ficam a encargo das guardas. A guarda de
moambique faz danas com gestos mais contidos e solenes, com os troncos curvados e
os ps firmes no solo. De outro modo, a guarda de congo dana para o alto realizando
gestos mais soltos e amplos, erguendo-se em direo ao cu. Nas festas do reisado, so osreis que exibem suas danas, variando entre fagote, fagote para lundu e lundu. Eles
variam entre danas mais lentas e suaves para sapateados firmes e marcados.
De acordo com Van Gennep, h uma regra geral de ocupao de territrio em que
os limites territoriais so marcados por um objeto que expressam interdio de carter
mgico-religioso (1978: 35). Postes, mastros, postios, pedras ou esttuas, no mundo
clssico, ou outros objetos mais simples que, hoje em dia, so colocados para demarcar
esses limites e normalmente vm acompanhados por um rito de consagrao. desse
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O levantamento das bandeiras do congado e a troca de bandeiras da folia so
realizados sem obrigatoriedade das pessoas estarem com suas fardas, exceto a bandeira do
dia da festa. No caso dos reis congos, eles no precisam usar suas coroas, e no caso dos
reis magos eles tambm no precisam usar suas mscaras. na alvorada que as pessoas se
transformam, vestem suas fardas, pegam seus instrumentos, preparam-se para assumir
seus respectivos papis, mantidos por todo o dia de festa.
De fato, a alvorada corresponde a um procedimento de diferenciao, como
acrescenta Seu Dirceu, as pessoas deixam de ser chamadas pelos seus nomes [Seu Dirceu]
e passam a ser nominadas pelas funes no ritual [capito regente do congado; mestre da
folia de reis]. Assim ela nos introduz na performance festiva, esse conjunto de atos de
mudana de vesturio, exteriorizado pelos materiais impressos no corpo, que integra uma
sequncia que faz o grupo sair domundo profano e o agregam ao mundo sagrado(Van
Gennep, 1978: 154).
Nas festas do congado, as funes esto dispostas numa hierarquia ritual formada
primeiramente pelos reis, pelas rainhas e pelas princesas do reinado, seguida pelo capito
mor, pelo capito regente, pelo capito da guarda de moambique e pela capit da guarda
de congo. Por ltimo, os caixeiros e os danarinos das guardas formam o corpo de baile
da festa. A hora mais importante da alvorada quando os reis recebem suas coroas. A
coroao chamada tambm de tirada dos reis (Seu Dirceu 2008).
Os reis e as rainhas do congado devem portar coroas, cetros e roupas finas. Os
capites usam fardas e portam bastes e espadas. O modelo das fardas da guarda de
moambique deve ser branco e azul formado por um saiote, por uma blusa, um leno na
cabea, pelas gungas nos ps e pelo rosrio, que entrelaado no tronco em forma de X.
Na guarda de congo no h uma cor definida, nem um modelo fixo, no h gungas, o
rosrio colocado sobre um dos ombros trespassado at o quadril do lado oposto ao
ombro.A hierarquia ritual no reisado menos complexa que do reinado. Iniciada pelos
trs reis magos, seguida pelo mestre, finalizada pelo coro de seis vozes e violas. As
fardas dos violeiros no tm cores ou desenhos especficos, a uniformidade dada pela
cala social, sapatos pretos e um chapu que no pode faltar na cabea. J os reis possuem
uma roupa com cores e mscaras especficas. O Rei Belquior usa mscara negra e veste-
se de vermelho, o Rei Baltazar usa barba e veste-se de branco e o Rei Gaspar usa mscara
de jovem e veste-se de preto. Do mesmo modo, a alvorada no dotada de tanto rigor eseriedade como no reinado. De modo mais informal, os integrantes da caravana vo
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chegando e se reunindo na casa do mestre para aquecer suas vozes e violas. No h na
sequncia algo que corresponderia coroao dos reis, mesmo porque a ao de colocar e
de retirar as mscaras realizada em separado, mantendo em segredo a identificao das
pessoas.
As procisses exibem o carter pblico da festa, caracterstica peculiar das festas
do catolicismo popular brasileiro, tido como um catolicismo processional. Reconhecidas
como atividades urbanas mais antigas, apresentam um rito-espetculo, como nos diz
Perez. Mostram uma maneira singular de viver em sociedade, de ver o mundo e de com
ele relacionar, pois (...)
(...) revelam uma sociedade que desde o
comeo vive do espetculo, das mudanase da fuso de vrios cdigos e registrosintermutveis, que ri de si mesma, que
poetiza as relaes dos homens consigomesmo e dos mundos nos quais vivem, ou
seja, o profano e o sagrado (Perez, 2002:43).
Podemos ainda considerar que as procisses so um meio conduzir as bandeiras,
os santos e os reis. Essa sequncia ritual encontrada em todas as festas da irmandade e
que corresponde ao perodo de transporte do objeto sagrado de um lugar para outro , por
esse motivo, classificada na categoria dos ritos de margem (Van Gennep, 1978: 155).
Permanecendo nessa via de anlise, observei um conjunto de sequncias rituais
que se destacaram pela sua preeminncia celebrativa. So preces de carter obrigatrio,
realizadas por um procedimento de recitao rgida e solene que corresponde aos pedidos
de licena para entrada no terreiro do congado e para entrada na casa do devoto de santos
reis. Segundo Van Gennep, esses procedimentos como passagem material na transio do
espao da rua para o local sagrado ocorrem pela existncia da interdio de carter
mgico-religiosa, que normalmente expressa por marcos, muros, imagens, poste, prtico
e soleira.
As sequncias rituais de passagem nas festas da irmandade indicam como o rito de
passagem material se torna um rito de passagem espiritual. Aqui, a margem, ou melhor
dizendo, as margens, correspondem a uma simples passagem pelo porto de entrada,
passagem pelos mastros no terreiro do congado, passagem pelas imagens dos santos e das
bandeiras. O mesmo ocorre nas festas da folia de reis, que tm como interdio o porto
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de entrada no terreiro do devoto, a porta de entrada e a imagem dos santos reis na
bandeira e na lapinha consagrada.
O terreiro apresenta a seguinte espacialidade:
espao para refeio
Porto de entrada
band eiras
sede
igreja
Figura 7: Vista superior do terreiro da festa de congado
Nas festas do reinado, procedem-se sequncias de licena para passagem pelo
porto de entrada do terreiro e sequncias de licena para passagem pela cruz e pelos
mastros. Em seguida h sequncias de oraes na sede em adorao aos tambores do
candombe e aos outros objetos sagrados e oraes na igreja, ocorrendo na maioria das
vezes em forma de celebrao pblica de missa.
No reisado o espao sagrado a casa de cada um dos devotos. Assim, a seqncia
de pedidos de licena ocorre vrias vezes na noite, o que a torna mais bem percebida pelo
observador do que a que ocorre no terreiro. De fato, importante ressaltar que a folia de
reis uma festa de interao mais direta entre os devotos e os folies.
As casas dos devotos possuem a seguinte diviso espacial:
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Figura 8: Vista superior da casa de um devoto de Santos Reis
A sequncia ritual celebrativa de pedidos de licena no reisado correspondem
passagem pela porta, aos pedidos de licena, entrega da bandeira, adorao lapinha e
orao ao dono da casa.
Nota-se que h uma analogia entre as sequncias rituais do reinado e do reisado,
que comea pela passagem pela porta, em seguida pelo fundamento da bandeira, depois
pelo local sagrado onde est o fundamento da festa, (a lapinha ou a sede do candombe),
terminando pelo local onde se realiza o cerimonial pblico (igreja ou a sala da casa do
devoto). Desse modo, a casa do devoto de Santos Reis e o terreiro do congado
estabelecem limites entre o mundo estrangeiro e domstico e o mundo sagrado e profano,
pois, como diz o autor, atravessar a soleira significa entrar num mundo novo(1978: 37).
A experincia de comer est na ordem da experincia fundamentalmente orgnica
[corporal] e assim como a msica e a dana sentida no paladar, na escuta, e na ao
gestual. O alimento, signo digervel, est presente em todas as festas. Como nos diz
Callois (1989), no h festa que no comporte um elemento de pandega de excesso
realizado pelo ato que comer. Se na vida cotidiana dos membros da irmandade de
Justinpolis o alimento regrado conforme as possibilidades econmicas, na festa, como
tambm observou Zigmund Freud, ele figura um excesso permitido, ou melhor,
obrigatrio, a ruptura solene de uma proibio (1974: 168).
Assim, come-se muito em todas as festas. Nas festas de reinado servido caf da
manh para as guardas visitantes, s vezes um jantar ou um lanche no fim da tarde. Mas o
Porto de entrada
espao para refeio
Lapinha
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momento em que ocorre a maior distribuio de alimento na sequncia ritual do almoo
de domingo. No reisado o alimento oferecido pelo devoto, normalmente em forma de
jantar ou lanche noturno, em cada casa a folia recebe algo para comer.Durante o percurso
de uma noite da caravana podem ser servidos em torno de cinco lanches no perodo de
seis horas. a pandega a que se refere Callois. A sequncia ritual do jantar o nico
momento festivo em que os reis retiram suas mscaras. O ato de alimentar um
procedimento de aliana e de agregao. Todos se tornam iguais diante do alimento
sagrado.
Assim como o alimento, as promessas indicam procedimentos de agregao (Van
Gennep, 1978). Promessas so elementos fundamentais para a constituio das festas
religiosas mineiras, como j pontuado por Zaluar (1983) e por Sanchis (1983), e
evidenciam as relaes de trocas entre os festeiros e os festejados. O cumprimento das
promessas possibilita o estabelecimento de duplo vnculo: com a ordem divina e com a
ordem dos homens.
Constitui-se como a sequncia que mais se diferencia entre os ciclos. No reinado,
o cumprimento das promessas o cumprimento de uma obrigao, realizada com
seriedade, revela o plo da magia. As guardas circulam,cantando e danando, em torno
da igreja, conduzindo o dono da promessa a pagar o pedido realizado ao santo. As
guardas convidadas que recebem o almoo tm a obrigao de retribuir.
No ciclo do reisado o cumprimento das promessas realizado pelos reis que
danam para os devotos recebendo deles um pagamento em troca do espetculo. Sempre
com muito escrnio, com muito canto, e com muitos versos, essa sequncia revela o plo
agonstico.
A sequncia ritual das promessas nos coloca, em ambos os casos, diante de uma
relao de troca a qual ser mais adiante tratada.
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5. Estrutura ritual e testemunho
Seguindo as pistas fornecidas na nota terica, procurei compreender a constituio
da estrutura ritual das festas em sua dinmica, como indica Turner, ou seja, a funo do
smbolo em ao ritual (2000). Dito de outro modo: as atuaes nos diferentes perodos
da festa compondo as sequncias rituais. Para tanto, acompanhei junto irmandade as
diferentes sequncias, as que antecedem e as que sucedem o dia da comemorao. Tomo
como referncia a observao pessoal associada ao testemunho nativo. Apresento desse
modo a estrutura ritual de cada um dos ciclos, colocando em destaque as sequncias
rituaise suas respectivas cenas.
5.1. Ciclo do Rosrio ou Reinado
As trs festas de reinado apresentam as mesmas sequncias rituais. Entretanto,
conforme se verifica pelo programa anexo, h particularidades que as diferenciam, como,
por exemplo, o santo homenageado e o horrio da missa. As programaes so feitas e
distribudas pelos membros da irmandade, tornando a festa pblica. Entretanto, o dia
principal da festa no traduz toda a experincia festiva do ciclo, como aponta-nos Seu
Dirceu, afirmando com propriedade:
As pessoas s vem o resultado final, masmuita coisa j aconteceu at l... (2008).
5.1.1. Abertura e fundamento: o candombe
O candombe na Irmandade no de bizarria, de fundamento, ele no sai
diariamente, no faz batuque em festas de aniversrio, pode at fazer, mas no faz. O
candombe de firmamento. Ele firma alguma coisa importante(Seu Dirceu, 2007). Ao
empregar o termo fundamento, Seu Dirceu nos diz do lugar que o candombe ocupa na
constituio da irmandade de Justinpolis. Mantido por poucos, considerado o que tem
de mais africano no congado, portanto mais sagrado. Como sequncia ritual fundante, ele
abre e fecha o ciclo do reinado, assim se fez na abertura do reinado no segundo domingo
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de janeiro do ano de 2008, iniciado pelas palavras de Seu Zez que, como membro mais
velho da irmandade, fez as vezes, tirando pontos de licena para se aproximar dos
tambores sagrados:
Chego no p de candombe de vera,Peo licena;Peo licena meu SantanaE tambm minha pucaDo Rosrio de Maria, no rosrioPeo licena..
Com os tambores em suas mos, o mestre Zez tocou em memria de seus mestres
ancestrais. Dona Edinha tirou outro ponto, depois Seu Dirceu tirou mais um, os mestres se
revezavam nos cantos, acionando o passado e reconstruindo o tempo da hi[e]stria de um
modo outro. A festa vai se tornando assim um espao para o exerccio dos sentimentos
coletivos.
Toda vez que tocado, os tambores evocam trechos do mito de retirada de Nossa
Senhora do Rosrio, uma hi[e]stria que fundamenta todas as festas de congado e que me
foi assim contada por Seu Zez em maio de 2008:
Isto aconteceu h muitos anos atrsquando negro era escravo dos senhores e
sinhs de engenho. Eles viviam nasenzala, e ela era o nico lugar quepodiam se divertir, a capoeira e ocandombe era o que faziam depois que oSenhor dormia.
Importante ressaltar que o candombe j existia. Neste momento, Seu Zez pontuou
veemente: no princpio era o candombe. Seguiu com sua narrativa:
Assim como j sabido, no meio de umamultido de cem pessoas, sempre encontraum com mais f, n!? Assim foi nestapoca quando um negro, no meio de cem,viu essa moa bonita na proa do rio
suspensa pelas plantas aquticas. Nasenzala, no momento da diverso, elecontava a histria pros outros.
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Outros negros de outras fazendas tambmviam a moa, mas s negro via, osbrancos no conseguiam ver. Os negroseram colocados no tronco, sob a roda debater tocada a gua, pelos carrascos
porque eram tidos como mentirosos. Masnenhum castigo adiantou e a histria foiespalhando pela regio.
Todo mundo comentava da moa que osnegros via, mas que os brancos no via!
Uma outra pausa foi provocada pela esposa de Seu Zez, que me trazia um caf
com broa de fub. Enquanto tomvamos o caf, o mestre me introduz ao saber/poder que
os negros possuem. Sem ler nem escrever na lngua de branco, restava ao negro manter apalavra. Seu Zez proferiu algumas palavras que no ouso reproduzir, mostrando-me
como o saber se converteu em poder e mantido em segredo pelos mestres do congado
que se comunicam na lngua de negro. Aps a pausa do caf, continuou com a narrativa.
De tanto insistir, a os senhores reunidosresolveram dar um dia de folga pra todosos negros irem ver a moa deles no rio.
Na virada na noite de lua minguante dodia 13 de maio, os negros juntaramtambores de tronco ocado, cobriram comcouro de cabrito amarrado com corda decip So Joo e formaram os candombes:Santana, Santina, guai.
No outro dia de manh, descalos, ospretos velhos seguiram com os candombespra beira do rio e os brancos ficaram do
alto da colina, longe pra espiar. Quandonegro tocou, a moa apareceu na proa dorio erguida pelas plantas e coberta poruma nuvem azul.
O poder mgico de outro modo ressaltado na narrativa quando nos conta que
somente os negros podiam ver a moa e somente eles conseguiram retir-la da gua:
Branco tocou negros com chicote, pegou
a santa e levou pra uma emdia [igreja
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pequena], mas noutro dia quando foraml, a santa no tava, tinha voltado pro rio.
Os brancos desceram l com banda demsica, tocou bonito com seus
instrumentos dourados, mas ela nem semexia. Quando negro tocou o candombea moa apareceu e veio em direo amargem. Mais uma vez, os negrosretiraram a Santa, branco tomava,colocava na igreja, mas ela voltava.
Isto aconteceu trs vezes at que o negrodesafiou seu senhor: se negro conseguisseretirar a santa e deixar na igreja, os
senhores dariam um dia de folga pronegro festejar. E foi assim que a moasaiu pela terceira vez.
Seu Zez se levanta da cadeira, toma seu basto nas mos, mostrando-me com gestos ofim dessa hi[e]stria:
Negro tocou o camdombe, tirou eladgua e beijou sua mo, Com licenamoa bonita.
A o nego cambeta, preto velho, ofereceuseu cajado [muleta] como pinguela, umapassagem da gua pra terra. Ela saiu dagua, sentou no tambor mais velho, oSantana, e chorou. Assim como diz amsica:
no santana ela sentou....h ela sentou
Esperando aquela hora...
E os negro liberth ela sentouEnquanto ouvia a questoEla chorouE a lgrima engrossouVirando o rosrioO rosrio de Maria.
Depois ela tomou o cajado em suas mos,beijou trs vezes, assim, e devolveu ao
negro, nosso basto. Tudo isso o que nstem de magia, o que ns tem de mais
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sagrado, o que voc ta vendo hoje nasfestas: o nosso basto, o nosso rosrio, eas nossas gungas que possui guardadadentro dela, sete conchas do mar.
No princpio era o s o camdombe (maiode 2008) [grifos meus].
5.1.2. Inaugurao: levantamento dos mastros e das bandeiras
O levantamento das bandeiras inaugural, constitui a sequncia mais ntima para
o congadeiro, instante onde ele coloca toda a f para o bom prosseguimento dos festejos.
O perodo festivo tem incio comumente quinze dias antes do dia da festa. O incio formal dado com o levantamento do mastro, que contm a bandeira de aviso, no terreiro. Na
inaugurao da festa de So Sebastio de 2008, estando porta do terreiro, visualizei essa
sequncia quando o silncio noturno de Justinpolis foi tomado pelo barulho dos
foguetes. Tratava-se da bandeira do divino, que era levantada no terreiro da irmandade
avisando a todos que ela j se encontrava em festa. Neste dia, os capites de guardas,
guiados por seus bastes e suas espadas, cantaram e ergueram o longo mastro ao cu.
Esta sequncia que apresenta a f pelo exerccio da fora fsica foi a nica em quevi o capito Adelmo retirar seu chapu de sementes. Com gestos quase imperceptveis, ele
segurava o chapu fazendo suas rezas, pedindo uma boa realizao da festa, foi
acompanhado por esta cano que se iniciou aos toques da marcha lenta e terminou, j
com a bandeira hasteada, com o regozijo da marcha dobrada.
dobra a marcha o instrumento; para abandeira levantar;
dobra a marcha o instrumento; para abandeira levantar...Apruma ela bem aprumada,h essa flor.E essa flor... Por ns adorada!
5.1.3. Alvorada e coroao dos reis
A alvorada marca o incio dos festejos do dia de domingo. Comea com o nascer
do sol, de modo que poucos so os visitantes que se animam a levantar to cedo paraparticipar desta sequncia da festa. Participam dela os congadeiros e as pessoas
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envolvidas diretamente com a preparao da festa. Esta uma sequncia organizacional
do dia, tal como aconteceu na manh de domingo da festa a So Sebastio em 2008.
Na porta de entrada da casa do capito Adelmo, eu me encontrava, ainda com
sono, s seis da manh do domingo de outubro do ano de 2008, quando uma salva de
fogos reuniu toda a irmandade no quintal. Os adultos se aproximavam, as crianas que,
desde pequenas participam com a mesma intensidade e responsabilidade adulta da festa,
aguardavam de forma ansiosa a chegada de suas caixas enquanto eram arrumadas pelos
maiores. Bebs, ainda de colo, tambm se vestiam de acordo. As fardas cobriam a pele, as
gungas colocadas nos ps, os rosrios entrelaados no peito, aos capites restavam seus
bastes e suas espadas. Esses objetos, na medida em que foram sendo colocados,
imprimiam na pele marcas da memria simultnea de um corpo negro escravizado e
acorrentado e de um corpo que carrega as lgrimas e a cor azul da virgem que os libertou.
Ao som do apito os tambores romperam o silncio, lanando o primeiro repique.
Aos poucos, o quintal da casa foi se transformando, o terreiro, normalmente ocupado pelo
movimento das galinhas e pela preguia dos cachorros, se modificou com a concentrao
das guardas. Os corpos comearam a se aquecer e a se mexer em conjunto num mesmo
compasso de dois pra l, dois pra c. Comea o caminho crescente de agitao coletiva.
Cor, movimento e som do outra forma ao terreiro que agora se torna festivo. o sinal de
que a festa comeava.
Muita ansiedade para quem se atrasava pois, o capito soprando o apito vrias
vezes, indicava o comando, convocando a todos para buscar o rei. Como manda o
fundamento do congado, a guarda de moambique assumiu seu papel de buscar os
coroados cantando sob o solo do capito mor Seu Zez. Comeou assim o primeiro de
uma centena de cantos que seriam entoados ao longo do dia:
de vera minha me, que eu quero pedirlicena, pra sarava o capitoSarava rei e rainha, o rosrio de Maria.
S rainha (eu) quero sua beno.Sob a licena de seus reis congos, as guardas se juntaram imagem do santo,
preparado no andor e retirado da igreja desde a noite anterior. Neste dia, aps a alvorada,
todos ali presentes seguiram em cortejo at a sede.
Diferentemente do dia de So Sebastio, a alvorada da Festa a Nossa Senhora do
Rosrio conta com a recepo de algumas das guardas visitantes. Desse modo, forma-se
um cortejo mais extenso. Aps a busca dos seus reis congos, seguem para a casa dos reis
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festeiros para tambm busc-los. Estes, aps receberem a coroao do dia, juntam-se aos
outros para continuar a festa.
5.1.4. Procisso: conduo e exibio pblica do congado
De fato, a festa tambm espetculo, assim as coroas com seu brilho necessitam
ser exibidas, por isso a forma processional marca das fest