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DE COMO O HOMEM DAS 120 MULHERES FUNDOU UMA NOVA RAÇA SOBRE A TERRA E DO ENCONTRO DA SEREIA MUDA COM AS CRIATURAS MAIS BONITAS DO MUNDO QUE MORAVAM NO MESMO QUARTEIRÃO GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008

DE COMO O HOMEM DAS 120 MULHERES FUNDOU UMA NOVA RAÇA

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DE COMO O HOMEM DAS 120 MULHERES FUNDOU UMA NOVA RAÇA SOBRE A TERRA E DO ENCONTRO DA SEREIA MUDA COM AS CRIATURAS MAIS BONITAS DO MUNDO QUE MORAVAM NO MESMO QUARTEIRÃO GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO - 2008

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DE COMO O HOMEM DAS 120 MULHERES FUNDOU UMA NOVA

RAÇA SOBRE A TERRA E DO ENCONTRO DA SEREIA MUDA

COM AS CRIATURAS MAIS BONITAS DO MUNDO QUE MORAVAM

NO MESMO QUARTEIRÃO

GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO

2008

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A todas as famílias da mesma

raça da pedra partida,

especialmente os Castros, Silvas,

Teixeiras, Souzas, Farias, Soares,

Marianos, Belarminos, Araújos,

Marques, Leais, Façanhas, Limas,

Chaves, Moreiras, Pachecos,

Bleasbys, Assunções, Pintos,

Barrosos, Pracianos, Alves,

Pereiras, Bragas, Albuquerques,

Bezerras, Pinheiros, Cordeiros,

Azevedos, Oliveiras, Tomés,

Magalhães, Benevides, Araújos,

Rodrigues etc, que me ensinaram,

com suas próprias vidas, o

segredo escondido nas letras da

palavra doação.

* A pintura que ilustra a capa é um auto-retrato de Vincent van Gogh.

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Dizem que inexplicavelmente algumas coisas na humanidade se

espalham como o vento. Foi assim com a maquinação de Goethe e

Mefistófeles, que provocou um rastro de adeus em toda parte do

mundo, ou ainda com as lendas do homem do retrato encantado, que

espalharam um infinito de tom rubro em todas as rosas brancas

beijadas pelo rouxinol lilás.

Um velho homem que morava exatamente na curva dos ventos do

monte das Sete Vidas ouviu falar desse fenômeno inexplicável da

humanidade. E resolveu finalmente realizar o sonho de sua vida:

fundar uma nova raça sobre a terra, composta só de gente muito

especial, que tinha a missão de preparar o mundo para a chegada de

Deus, que estava prevista lá para dia de Nossa Senhora das Mercês,

que era a pessoa encarregada de ajeitar um lugar para o divino

descansar os pés fora do firmamento.

Foi então que o homem chegou à inexorável conclusão de que

seu intento fantástico somente seria viável se ele virasse boto e saísse

pelo mundo, encantando 120 mulheres. Há quem afirme,

assustadoramente, que esse homem na verdade era dois, que se

seguiam em genes maravilhosos de dois cromossomos de par

amarelo, o que aumentava muito o desejo da criatura de povoar a

terra e modificar o enredo de toda a história.

E assim foi feito.

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Numa noite em que o Sol encontrou a Lua por debaixo dos olhos

da serra de Santa Rita, o homem se jogou no rio do Anastácio

Sanharão, nadando freneticamente até encontrar o sítio de João

Cativo, onde um certo Paurilo, cientista e feiticeiro paleontólogo,

registrou o admirável feito do primeiro homem da história do mundo

que virou boto só para não morrer afogado em seus pecados.

Desde então, o homem das 120 mulheres saiu disfarçado de boto

simplesmente por toda a Pangéia, engravidando toda espécie feminina

de gente, flor, bicho, pedra, areia, ou qualquer outra coisa fêmea que

pudesse dele emprenhar. Foi justamente esse excesso de prenhez

que fez peso na Terra e obrigou os vulcões do Barrento e do Deserto

a jorrarem amor no universo, o que necessariamente causou a divisão

da Terra em continentes e aumentou o volume de água nos mares.

Era impressionante constatar que em todo lugar do mundo havia

um representante da nova raça fundada pelo homem das 120

mulheres. Não se sabe muito bem por que uns tinham os olhos

puxados e falavam uma língua quem nem o pai-dos-santos do

candomblé de Mãe Pretinha sabia decifrar. Outros viravam todo tipo

de bicho, sendo certo que toda a raça tinha uma fração de pelo menos

um par de cromossomos amarelos, o que insofismavelmente

desaguava na garantia da perpetuação da humanidade.

O homem das 120 mulheres foi feliz assim, até o pavoroso dia em

que seus filhos, pretos de mãe branca, não quiseram mais falar com

seus irmãos, brancos de pai marrom, só porque o Sol tinha se

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escondido dois dias em busca de se acertar com a bela das filhas

lindas, que um dia desconfiou de sua integridade na aurora boreal de

uma filha loura.

A intriga se alastrou por toda o Globo e pais e filhos começaram a

se estranhar; os rios começaram a secar, as cachoeiras a subir de

volta pra serra e o mar a crescer imprevisivelmente nos ombros de

uma baleia que ninguém ainda tinha amado direito.

Pela primeira vez na nova Terra, a discórdia instalou o caos,

fazendo com que o homem das 120 mulheres precisasse se socorrer

de um velho deus há muito esquecido pelos homens: o Perdão.

E foi mesmo o Perdão a harmonizar o caos que destruía a

familiaridade existente no mundo novo, impondo somente uma

condição. Para que todo filho pudesse se ver nos olhos coloridos do

pai para todo o sempre, seria necessário que uma das netas de

coração puro do homem das 120 mulheres se oferecesse em sacrifício

da paz entre os seres encantados que povoam a Terra

excepcionalmente fundada.

Estava em jogo a paz mundial. Logo se ofereceu para o sacrifício

uma linda sereia muda, que falava pelos olhos de seu coração e

harmonizava a todos com o seu feitiço benfazejo. A criatura mitológica

pensou oferecer a vida em prol da humanidade, mas o Perdão

explicou que bastavam duas gotas de seu sangue encantado para dar

vida a um velho deus menestrel que padecia de uma peste vermelha

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de saudade, a qual lhe maltratava o cérebro e o coração e o impedia

de cantar.

No exato dia das almas do São Miguel, a linda sereia muda doou

duas gotas de seu sangue de peixe-mulher ao velho deus adoentado,

que milagrosamente ficou restabelecido, fazendo pelo encanto da

poesia sertaneja a linda sereia voltar a falar.

E ela falou tanto, mas tanto, que quase virou miss Brasil, de

carona nos mil balões que fizeram desaparecer o pequeno príncipe

bem na hora dele voltar para sua rosa única de três espinhos, que

tinha se arrependido amargamente de ter ficado sozinha com os

baobás.

A alegria da sereia falante era tanta que o mundo inteiro sorriu,

fazendo inclusive com que dois caciques antigos de tribos rivais da

pedra lascada pela saudade de Deus fizessem as pazes para todo o

sempre. Foi quando aconteceu o extraordinário evento de o filho mais

velho de um dos caciques encontrar na lenda o seu irmão mais velho

nunca nascido, que tinha sido parido inexplicavelmente no seio da

outra tribo, isso somente sendo possível em virtude do juízo aleijado

de um, que se identificou na perna manca do outro, este conhecido no

meio de todos os seres da mata como o índio da lombra etérea por se

embriagar de bondade e simpatia sempre que o sofrimento batia à sua

oca e por deixar o resto da aldeia completamente tonta de correr atrás

dos 2.573 cachorros que ele criava nas casas alheias.

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Não foi só isso que aconteceu, porém, na região, depois que a

sereia sorriu. Dizem que para lá de meio mundo, precisamente onde o

vento faz a curva a fim de não secar as águas do poço verde, nem

derrubar o Floriano, o Donda, o Frei Sabugo e o rapazinho que recolhe

tampas de refrigerante nas ruas do alto de meus corações alados,

sucedeu um fato admiravelmente impressionante: o casamento de

duas serras inteiras, que pertenciam a famílias nobres na região e que

ficaram bastante intrigadas com o fenômeno.

Na verdade, uma dessas serras inteiras andava à noite numa

bicicleta amarela cheia de molas e, durante o dia, tinha o aspecto de

um homem de pujança visível e espírito iluminado, que havia parido a

primeira estrelinha do mar só por piedade do Pequenino Grão de

Areia, um pobre sonhador cuja história ninguém nunca soube até hoje

explicar.

Pelos caminhos em que a vida levou, a serra-homem desiludiu-se

com seu destino híbrido em plena montanha dos alfinetes verdes e fez

carreira junto a Morfeu, Hipnos e Thanatos, ganhando dos deuses, por

seu brilhantismo, a coleira de Sísifo, com o que exercita o fantástico

dom de manter a morte aprisionada, enquanto sua irmã apaixonada

por um protegido de João Crisóstomo se vale de um fabuloso

microscópio quântico que ela pegou lá na casa da Ana Lígia, só para

ver se auxilia na descoberta da excentricidade do Patinho Feio, que

tinha nascido cisne na esperança de sua mãe pata nunca o

abandonar.

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Diante de tamanha desilusão, a grande serra das molas amarelas

resolveu atender ao chamado de um homem de muita fé, e saiu pelo

mundo removendo montanhas, até o dia fabuloso em que encontrou

outra serra apaixonada pela vida, parenta de uma santa mulher que

criava uma lagartixa abençoada num milagre não reconhecido de

Padre Cícero, o que fazia que nascesse nela de novo cada pedaço da

alma que o tempo cortava.

O casamento foi imediato, lá no meio dos olhos verdes de uma

menina linda, o que formou a mais encantadora cadeia de montanhas

coloridas que já se viu.

Dizem que no alto de uma dessas montanhas existia uma torre

mágica que fazia as crianças subirem até ela só para descerem de

volta, num ritual que se tornou milenar, espalhando-se de geração em

geração, até o dia em que um filósofo negro de nome avantajado

proferiu uma pérola da antropologia cósmica, segundo a qual os

buracos negros sempre apitam para avisar que vão obrar.

O feito do filósofo negro que tinha sido duas vezes imperador de

Roma foi tão inaudito que provocou a curiosidade de seres de vários

planetas e dimensões, que na verdade até pousaram uma iluminada

nave espacial no alto de um terceiro monte para conhecer melhor a

região encantada.

Essa nave intergalática ainda hoje pode ser vista à noite no

mesmo lugar, porque depois que os alienígenas provaram da cachaça

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de esquentamento que bebia Dona Zefa Pequena, nunca mais

quiseram saber de morar em outro lugar.

Narram que eles já têm inclusive muitos filhos com as índias de

lá, aumentando substantivamente a musicalidade e a diversidade

mítica da região, sendo que um desses seres, um cantor romântico

que inventou as calcinhas, se tornou o primeiro mecânico de discos

voadores de todo o Universo, e, juntamente com sua irmã, que a todos

encantava com sua insuperável Variant Prata, fundou a maior oficina

de consertar saudade que já se ouviu falar em todos os tempos.

Mas, dois dias antes do sol nascer furta-cor em minh”alma,

encontrei de novo a linda sereia que tinha sido muda, e ela se disse

muito entristecida, pois havia descoberto que na terra do desencanto

havia um quarteirão bem no centro da cidade, em que toda a beleza

do mundo tinha sido aprisionada, pela inveja do flautista de Hamelin,

que após encantar os ratos da cidade e raptar para sempre todas as

crianças, queria impedir que as criaturas mais bonitas do mundo

saíssem do velho quarteirão.

Era um pedaço de terra encantado, onde Gaia plantou a beleza

em forma de gente, ficando mais para perto do muito longe, juntinho

de uma imensa torre de um ferro que nunca existiu. Embora fosse um

lindo lugar, não se podia admitir que as criaturas mais bonitas do

mundo ficassem presas lá.

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Foi então que antiga sereia muda, ouvindo o cântico dos deuses

em que não se pode confiar, desenterrou uma antiga botija escondida

bem debaixo dos pés do coqueiro de São Sebastião, no desejo de

encontrar uma saída mágica para o encanto das criaturas mais bonitas

de todo o Mundo.

Qual não foi o espanto da sereia quando descobriu que a velha

botija era mesmo a fantástica caixa de Pandora, deusa mandada ao

mundo por Zeus para castigar os homens por terem recebido e

aprendido a conservar o fogo roubado por Prometeu.

Dizem que essa caixa foi parar lá, na verdade, porque Lampião

enterrou pelo mundo um bocado de coisa valiosa que roubou,

inclusive umas quinze preguiças gigantes que enterrou nos sítios de

uma pedra lascada por uma lágrima de Deus.

O fato é que a sereia muda, porém, resolveu abrir a caixa de

Pandora exatamente no meio do velho quarteirão, libertando todas as

criaturas mais bonitas do mundo e também toda a herança dos

gregos, a fome, a sede, a guerra e a violência, só restando no fundo

da caixa a esperança, graças à qual os homens até hoje podem se

consolar de seus males.

O desespero foi geral; impressionantemente, as criaturas mais

bonitas do mundo se misturaram ao sopro de Pandora, somente

sendo possível acalmar os ventos quando todos os guardiães no Novo

Mundo começaram a imitar o canto do uirapuru e do sabiá, este último

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harmoniosamente nascido do índio divino, que tinha um alçapão velho

encantado em casa.

Depois que tudo se acalmou, viram que a humanidade precisava

de um novo Perdão, o que foi eficazmente providenciado por toda a

imensa descendência do homem das 120 mulheres e pelo resto de

seres fantásticos narrados nessa história verdadeira que ouvi da boca

abençoada da própria radiadora do Cafita.

Mas, o fato era que o perdão dado a toda humanidade não tinha

alcançado dois velhos amigos que se separaram exatamente no

encontro dos pecados de seus antepassados. Tinham sido

inseparáveis, até que o destino inusitadamente os banhou com a

estranha fórmula do Dr. Jekyll, um médico brilhante que, nos caminhos

de si mesmo, inesperadamente se transformava em monstro,

chamado Hyde.

Realmente há relatos fidedignos de que Hyde não se continha em

permanecer incorporado ao velho médico e saía pelos espelhos das

casas alheias procurando um inocente para reinar, transformando a

sua alma para sempre.

Não se sabe exatamente por que os dois velhos amigos tinham

sinas parecidas, carregavam nomes de reis iguais em si, a estampar

toda a nobreza de suas almas, mas atingidos pelos destinos de Hyde,

ambos foram desterrados da aldeia de todos os mundos por seus

próprios corações envergonhados de agora serem mais de um.

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Antes de partir, cada um para um lado que não se conhece, eles

choraram cada qual uma lágrima no mesmo lugar, que, com o passar

dos anos, deu forma a duas pequenas rosas de cores distintas, que o

rouxinol do homem do retrato encantado sempre vinha visitar,

atravessando exatamente seiscentos e vinte e dois mil mares, só para

encontrar as criaturas valiosas que ele dizia morar naquelas rosas.

A diferença das almas dos velhos amigos fazia com que eles de

longe sentissem o perfume das rosas, sem que pudessem para elas

retornar.

Foi então que uma rosa, com saudade do pai, resolveu virar gente

só para que todo mundo pudesse ver a inocência da alma corcunda de

seu velho criador. Por força da sugestão hipnótica inventada nos

jardins do Dr. Urbano, a outra rosinha também se decidiu da mesma

forma.

Vestidas de alegria, as duas pequenas meninas que já tinham

sido rosas procuraram a velha sereia que um dia foi muda para

aprender uma canção que trouxesse seus amores de volta.

Machucada com a experiência com os deuses em que não se pode

confiar, a sereia disse que não poderia ajudar, pois suas canções não

podiam encantar os monstros.

As rosinhas imediatamente se lembraram da esperança que tinha

ficado no fundo da caixa roubada por Lampião, e passaram a procurar

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o rei da floresta para se aconselhar. Como sempre tinham vivido nos

jardins encantados da fantasia se espantaram terrivelmente com o que

viram... um bicho imenso, assustador, feroz e com sede de carne e

sangue.

Lembraram-se de que seus amores às vezes se sentiam assim.

Então, sussurraram uma velha oração de um pajé baiano de todos os

cantos, que as suas duas mães ensinaram:

“Gosto muito de te ver leãozinho

Caminhando sob o sol

Gosto muito de te ver leãozinho

Para desentristecer leãozinho

O meu coração tão só

Basta encontrar você no caminho

Um filhote de leão raio da manhã

Arrastando o meu olhar como um imã

O meu coração é o sol pai de toda cor

Quando ele lhe doura a pele ao léu

Gosto muito de te ver leãozinho

De te ver entrar no mar

Tua pele tua luz tua juba

Gosto de ficar ao sol leãozinho

De molhar minha juba

De estar perto de você e entrar numa٭”

.Música “O Leãozinho”, de Caetano Veloso ٭

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Parece que, quando as flores cantam, os deuses se alegram. E foi

justamente nessa hora que surgiu num carnaval de felicidade uma

deusa da tribo dos Betzaidas, que, não se sabe porque, também

fundou a biólogia, ciência muito apreciada por uma raça loura de gente

sabida que descendeu da primeira mulher do mundo a encontrar um

certo nazareno nas letras do próprio nome, o que foi suficiente para

ele agradecer com muitos anos de vida.

Essa deusa alegre, pois, ensinou as rosas pequenas a dança do

furacão, que fazia todo o mundo girar, purificando a alma humana dos

preconceitos e devolvendo os filhos enjeitados aos seus filhos,

exatamente como acontece no pacífico, onde o vento devolve ao

mundo os filhos maltratados.

As meninas agradeceram à deusa poderosa, mas temeram que a

dança do furacão trouxesse seus amores de volta em meio a muitos

ressentimentos e destruição, pois tinha sido assim quando Camille,

Allen e Katrina retornaram para casa.

Foi então que elas tiveram a inusitada idéia de procurar não mais

o rei da floresta, mas o próprio rei Sol, que, envelhecido pela sombra

de estrelas maiores, explicou que na terra do homem das 120

mulheres só existia um ser capaz de trazer naturalmente, sem

assombro, os pais delas de volta.

Tal ser somente era possível de ser invocado numa canção que o

grande chefe da tribo saci descobriu na boca do inconsciente da

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humanidade, um certo homem que em verdade é dois, parente do

caboclo Belifel.

Não demorou um segundo do tempo que nunca passou para que

as meninas estivessem na Terra à procura do único verdadeiro amigo

do grande chefe da tribo saci, um sujeito de sobrancelhas estranhas

alcunhado Monteiro Lobato, que nascia precisamente do sangue

negro de um lugar chamado Brasil.

Exatamente quando a Lua dizia que já era 14 de maio, as

meninas se fantasiaram de boneca de pano e fizeram uma grande

festa na terra, convidando as personagens mais fantásticas que

tinham existido até então, se chegando entre eles o guardião do

cântico sagrado que invocava o deus desconhecido.

As conversas foram imediatas, a alegria das pequenas Emílias

contagiou completamente o velho chefe, que revelou ter abduzido de

antigas lendas que um homem em forma de gente ia nascer do

inexplicável justamente para esclarecer que, independentemente dos

mitos, somente o amor à diferença nos faz verdadeiramente humanos.

É certo que ninguém nunca viu esse tal homem, mas dizem que ele

realmente aparece, quando se canta a velha canção sagrada que

guardo.

Cada vez mais esperançosas, as lindas Emílias pediram para o

grande chefe cantar com elas a tal canção. O velho mito explicou

então que um animal não civilizado tinha inventado a propriedade, o

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que interditava o desejo das meninas. Como, no entanto, ninguém era

dono do grito de dor que corrói a humanidade, o velho saci começou a

cantar:

“Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui...

Olho no céu e vejo

Uma nuvem branca

Que vai passando

Olho na terra e vejo

Uma multidão

Que vai caminhando...

Como essa nuvem branca

Essa gente não

Sabe aonde vai

Quem poderá dizer

O caminho certo

É você meu Pai...

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui...

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Toda essa multidão

Tem no peito amor

E procura a paz

E apesar de tudo

A esperança não se desfaz...

Olhando a flor que nasce

No chão daquele que tem amor

Olho no céu e sinto

Crescer a fé no meu Salvador...

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui...

Em cada esquina vejo

O olhar perdido de um irmão

Em busca do mesmo bem

Nessa direção caminhando vem...

É meu desejo ver

Aumentando sempre

Essa procissão

Para que todos cantem

Na mesma voz essa oração...

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Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo eu estou aqui...٭”.

Não se sabe ao certo se os amores das rosas que viraram

meninas algum dia realmente voltaram, mas depois que essas duas

lindas crianças aprenderam essa catinga sagrada para invocar o

Homem jamais visto, nunca mais a Terra fundada pelo homem das

120 mulheres foi a mesma.

Eu acredito, estive lá pescando umas piabas de três cabeças que

só existem no riacho da Jurema, justamente no tempo do encontro dos

pais com os filhos, onde todo o mundo falava a única língua de todas

as gentes; o amor.

FIM

.Música “Jesus Cristo”, de Roberto e Erasmo Carlos ٭