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DADOS DE COPYRIGHT · 2017-03-22 · Como a luta de dois homens contra o cólera ... 6 DE SETEMBRO A manivela da bomba d’água SEXTA-FEIRA, 8 DE SETEMBRO ... de carvão, madeira

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

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  • Steven Johnson

    O MAPA FANTASMAComo a luta de dois homens contra o clera

    mudou o destino de nossas metrpoles

    Traduo:SRGIO LOPES

    Reviso tcnica:LUIZ ANTONIO DA COSTA SARDINHA

    Hospital das Clnicas, Unicamp

  • s mulheres da minha vida: minha me e minhas irms,pelo trabalho sensacional no campo da sade pblica;

    Alexa, pelo Henry Whitehead que me deu de presente; e Mame,por me apresentar a Londres muitos anos atrs

  • SUMRIO

    Prefcio

    Limpadores de fossaSEGUNDA-FEIRA, 28 DE AGOSTO

    Olhos fundos, lbios lvidosSBADO, 2 DE SETEMBRO

    O investigadorDOMINGO, 3 DE SETEMBRO

    S para informar, Jo ainda no morreuSEGUNDA-FEIRA, 4 DE SETEMBRO

    Todo mau cheiro doenaTERA-FEIRA, 5 DE SETEMBRO

    Montando o casoQUARTA-FEIRA, 6 DE SETEMBRO

    A manivela da bomba dguaSEXTA-FEIRA, 8 DE SETEMBRO

    ConclusoO mapa fantasma

    EplogoRetorno Broad Street

    Nota do autor

    NotasApndice: Para saber maisReferncias bibliogrficasAgradecimentosndice remissivo

  • Crditos das ilustraes

  • Um quadro de Klee intitulado Angelus novus retrata um anjo que aparentemente est prestes ase afastar de algo que contempla. Seus olhos esto escancarados; sua boca, aberta; suas asas,desdobradas. Eis como representado o anjo da histria. Sua face est voltada para opassado. Onde identificamos uma cadeia de acontecimentos, ele v uma catstrofe nica que,sem cessar, acumula escombros e os lana diante de seus ps. O anjo almeja permanecer paradespertar os mortos e reerguer as runas. Mas uma tempestade sopra desde o Paraso e enfunasuas asas com tal violncia que o anjo no mais pode cerr-las. A tempestade o impeleirremediavelmente para o futuro, para onde suas costas esto voltadas, enquanto a pilha dedespojos sua frente cresce em direo aos cus. Essa tempestade o que chamamosprogresso.

    WALTER BENJAMIN, Teses sobre a filosofia da histria

  • E

    Prefcio

    STA UMA HISTRIA com quatro protagonistas: uma bactria letal, uma grande cidade edois homens igualmente talentosos, mas muito diferentes. Em uma semana sombria, h

    mais de cento e cinqenta anos, suas vidas se defrontaram em meio ao imenso horror esofrimento humano na Broad Street, extremo oeste do bairro do Soho.

    Este livro uma tentativa de narrar a histria desse encontro de modo a fazer justia aosmltiplos nveis de existncia que ajudaram a mold-la: do reino invisvel das bactriasmicroscpicas vastido da metrpole de Londres, passando pela vida trgica, destemida esolidria de tantos indivduos e pela extenso cultural de conceitos e ideologias. a histriade um mapa que se encontra na interseo de todos esses diferentes vetores, um mapa criadopara ajudar a entender o sentido de uma experincia que desafiou a compreenso humana. tambm um estudo de caso sobre como se d a mudana na nossa sociedade; a maneiraturbulenta por meio da qual idias equivocadas e ineficientes so superadas por outrasmelhores. Mais do que qualquer outra coisa, no entanto, esta anlise busca comprovar queaquela terrvel semana um dos momentos cruciais na inveno da vida moderna.

  • A

    Limpadores de fossa SEGUNDA-FEIRA, 28 DE AGOSTO

    GOSTO DE 1854. Londres uma cidade de catadores de lixo, cujos nomes, isoladamente,soam hoje tal qual um estranho catlogo zoolgico: catadores de ossos, de fezes, de

    ostras, junta-trapos, lameiros, exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas, cata-bagulhos, varredores da costa. Eles eram as classes baixas de Londres, umcontingente de no mnimo cem mil pessoas. Os catadores de lixo eram to numerosos que, setivessem resolvido fundar sua prpria cidade, esta seria a quinta maior de toda a Inglaterra.Ainda mais notveis que seu grande nmero, no entanto, eram a diversidade e a preciso desuas rotinas. Quem acordasse ao nascer do Sol e passasse furtivamente ao longo do Tmisaveria os cata-bagulhos se arrastando em meio ao monturo que se acumulava na vazante,vestidos quase comicamente com seus casacos flutuantes de belbute, com os enormes bolsosabarrotados de pedaos de cobre recolhidos s margens do rio. No lusco-fusco da manh, afim de melhor enxergar, caminhavam com uma lanterna atada ao peito e empunhavam umcomprido basto que usavam para tatear o caminho e ajud-los a sair quando atolavam nalama. O basto e o brilho misterioso da lanterna luzindo atravs dos mantos davam-lhes oaspecto de magos maltrapilhos, que percorriam a margem enlameada do rio em busca demoedas mgicas. A seu redor, agitavam-se os lameiros, geralmente crianas vestidas emandrajos e contentes por limpar toda a sujeira que os cata-bagulhos menosprezavam: pedrasde carvo, madeira velha, restos de corda.

    Acima do rio, nas ruas da cidade, os catadores de fezes garantiam seu sustento com acoleta de excrementos de cachorros, enquanto os catadores de ossos procuravam carcaas dequalquer espcie. No subsolo, no restrito, mas crescente, sistema de canalizao sob as ruasde Londres, os exploradores de esgotos se arrastavam em meio aos dejetos flutuantes dametrpole. De tempos em tempos, uma concentrao de metano surpreendentemente densa seinflamava ao contato de uma lamparina de querosene e, em meio a um rio de guas ftidas,seis metros abaixo do cho, as chamas consumiam um daqueles desafortunados.

    Os catadores de lixo, em outras palavras, viviam em um mundo de excremento e morte. Noincio de Nosso amigo comum, Dickens descreveu o encontro no Tmisa de dois cata-bagulhos, pai e filha, com um cadver flutuante, cujas moedas solenemente embolsam. A quemundo pertence um homem morto?, pergunta retoricamente o pai, ao ser repreendido por umcompanheiro de ofcio por pilhar um cadver. Ao outro mundo. E a que mundo pertence odinheiro? A este. Embora no o explicite, o argumento de Dickens o de que os dois mundos,o dos vivos e o dos mortos, passavam a coexistir nesses espaos marginais. O comrcioflorescente da grande cidade invocava sua contraparte: uma classe de fantasmas que de algummodo mimetiza os marcadores de status e as avaliaes de prestgio do mundo material. Veja-se, por exemplo, a assombrosa preciso da rotina dos catadores de ossos, da forma como foiregistrada em 1844 na obra pioneira de Henry Mayhew, London Labour and the LondonPoor:

  • Em geral, o catador de ossos leva de sete a nove horas para percorrer seu itinerrio/durante esse tempo perfaz de trinta acinqenta quilmetros, com um saco de at vinte e cinco quilos nas costas. Em geral, no vero, volta para casa em tornodas onze horas da manh e, no inverno, em torno da uma ou duas da tarde. Em casa, faz a seleo do contedo da suabolsa. Separa os trapos dos ossos, e estes das sucatas (se tiver sorte de encontrar alguma). Divide os trapos em vriaspores de acordo com a cor brancos ou tingidos e, caso tenha apanhado algum pedao de lona ou pano de sacogrosseiro, coloca-o igualmente em um lote parte. Ao terminar a seleo, leva as vrias pores a uma loja de retalhos ouao armazm do cais, a fim de auferir o que quer que valham. Pelos farrapos brancos, recebe de quatro a seis centavos porquilo, dependendo se estiverem limpos ou emporcalhados. extremamente difcil encontrar farrapos brancos; em geralesto muito sujos e so, portanto, vendidos em conjunto com os tingidos a uma taxa de dois centavos por quilo.

    Embora continuem a assombrar as cidades ps-industriais de hoje, os sem-teto raramenteexibem a clareza profissional do comrcio improvisado dos catadores de ossos, por duasrazes bsicas. Em primeiro lugar, salrios mnimos e seguridade social so agorasuficientemente substanciais para que no seja necessrio apelar para a catao de lixo comomeio de subsistncia. (Onde os salrios continuam baixos, revirar o lixo permanece sendouma ocupao vital; como provam os perpendadores da Cidade do Mxico.) Alm disso, ocomrcio dos catadores de ossos entrou em decadncia, pois a maioria das cidades modernasdispe de elaborados sistemas de manejo do lixo gerado por sua populao. (De fato, oscatadores de latas de alumnio que, na sociedade norte-americana, so os que mais seassemelham aos catadores de lixo vitorianos se apiam, para auferir seus rendimentos,justamente nesses sistemas de manejo.) Porm, em 1854, Londres era ainda uma metrpolevitoriana s voltas com uma infra-estrutura pblica elisabetana. A cidade era vasta at mesmopara os padres de hoje, com dois milhes e meio de habitantes amontoados em uma rea decinqenta quilmetros de circunferncia. No entanto, a maior parte das tcnicasadministrativas para esse tipo de densidade populacional, que hoje consideramos normais centros de reciclagem, departamentos de sade pblica, remoo segura da gua dos esgotos, ainda no havia sido inventada.

    E, assim, a prpria cidade improvisou uma resposta a bem da verdade, uma respostaorgnica e no-planejada, mas que, ao mesmo tempo, se adaptava perfeitamente snecessidades de remoo de dejetos da populao. medida que se avolumavam o lixo e osexcrementos, desenvolveu-se para os refugos um mercado informal, que se ancorava nocomrcio estabelecido. Surgiram especialistas, cada qual carreando zelosamente seusprodutos para o local apropriado no comrcio oficial: os coletores de ossos vendiam seusprodutos para coco, os catadores de fezes vendiam o fruto de sua coleta para curtimento, noqual se empregava excremento de cachorro para livrar o couro do visgo que o embebia porsemanas, a fim de remover o plo dos animais. (Um processo considerado por muitos, comobem observou um curtidor, a mais desagradvel entre todas as manufaturas.)

    Naturalmente, ficamos inclinados a considerar esses catadores de lixo figuras trgicas e afulminar o sistema que permitiu que milhares de indivduos buscassem seu sustento no refugohumano. De certa forma, essa , sem dvida, a reao adequada. (Era, a bem da verdade, areao dos grandes paladinos da poca, entre os quais Dickens e Mayhew.) No entanto, essaindignao deveria estar acompanhada de uma boa dose de admirao e respeito: semqualquer planejador social que centralizasse as aes e sem qualquer conhecimento formal,essa subclasse itinerante conseguiu dar forma a um sistema de processamento e seleo dolixo gerado por dois milhes de pessoas. Em geral, o grande mrito atribudo ao LondonLabour de Mayhew simplesmente sua prontido para perceber e registrar as mincias da

  • vida desses desvalidos. Mas igualmente importante foi o discernimento que surgiu a partirdessa contabilidade, uma vez lanados os nmeros: Mayhew descobriu que, longe de seremvagabundos improdutivos, esses indivduos desempenhavam, na verdade, uma funoessencial em sua comunidade. A remoo de dejetos de uma grande cidade, escreveu ele,, talvez, uma das mais importantes aes sociais. E os catadores de lixo da Londresvitoriana no apenas se desfaziam dos dejetos eles os reciclavam.

    A RECICLAGEM DE LIXO, embora muitas vezes seja considerada uma inveno do movimentoambiental, to moderna quanto as sacolas de plstico que enchemos atualmente comembalagens de detergente e latas de refrigerante, uma arte antiga. Valas de compostagemeram empregadas pelos cidados de Cnossos, em Creta, h quatro mil anos. Grande parte daRoma medieval foi construda com materiais extrados das runas da cidade imperial. (Antesde ser um ponto turstico, o Coliseu serviu como uma verdadeira pedreira.) A reciclagem dolixo na forma de compostagem e adubao desempenhou um papel crucial na explosivaexpanso das cidades medievais da Europa. Uma densa concentrao de seres humanos exige,por definio, uma significativa absoro de energia para se sustentar, a comear por umsistema confivel de abastecimento de alimentos. As cidades da Idade Mdia no dispunhamde rodovias ou cargueiros para o transporte de gneros alimentcios e, assim, o tamanho desuas populaes estava limitado fertilidade do solo circundante. Se a terra pudesse proveralimentos para cinco mil pessoas, a populao estava limitada a esse nmero. Ao restituir terra o lixo orgnico que produziam, no entanto, as primeiras cidades medievais aumentaram aprodutividade do solo, elevando, portanto, o teto populacional, e, conseqentemente,produzindo mais lixo e cada vez mais solo frtil. Esse ciclo de realimentao transformou asextenses pantanosas dos Pases Baixos, que historicamente sustentavam no mais queisolados grupos de pescadores, em alguns dos solos mais produtivos de toda a Europa. Aindahoje, quando comparada a qualquer outra nao do mundo, a Holanda tem a maior densidadepopulacional.

    A reciclagem de lixo demonstra ser o selo de qualidade de quase todo sistema complexo,quer os ecossistemas da vida urbana construdos pelo homem, quer as economiasmicroscpicas das clulas. Nossos prprios ossos so o resultado de um programa dereciclagem levado a cabo pela seleo natural bilhes de anos atrs. Todos os organismoseucariontes produzem excesso de clcio como resduo. Desde, no mnimo, a Era Cambriana,os organismos acumulam essas reservas de clcio e a usam de modo produtivo: construindoconchas, dentes e esqueletos. O homem deve sua capacidade de caminhar ereto habilidadeevolutiva de reciclar resduos nocivos.

    OS MAIS DIVERSOS ECOSSISTEMAS da Terra tm como atributo crucial a reciclagem do lixo. Asflorestas tropicais tm um grande valor, por desperdiarem muito pouco a energia fornecidapelo Sol, graas a seu extenso e interligado sistema de organismos que exploram cada nichomnimo do ciclo de nutrientes. A diversidade da floresta tropical no apenas um casocurioso de multiculturalismo biolgico, mas reside precisamente no fato de a floresta fazer umgrande trabalho de captura da energia que a atravessa: um organismo absorve certa quantidade

  • de energia, gerando, ao process-la, um resduo. Em um sistema eficiente, esse resduo setorna uma nova fonte de energia para outro indivduo da cadeia. (Essa eficincia uma dasrazes que comprovam a viso limitada de quem promove queimadas nas florestas tropicais:os ciclos de nutrientes so to interligados que o solo , em geral, muito pobre para aagricultura, toda a energia disponvel foi capturada ao longo de seu percurso at o solo dafloresta.)

    Os recifes de corais demonstram uma destreza semelhante na administrao de resduos.Os corais vivem em simbiose com pequenas algas chamadas zooxantelas. Graas fotossntese, as algas capturam a luz do Sol e a aproveitam para transformar dixido decarbono em carbono orgnico, tendo o oxignio como resduo nesse processo. O coral usaento o oxignio no seu ciclo metablico. Por sermos, ns mesmos, criaturas aerbicas, temosdificuldade em conceber o oxignio como um produto residual, porm, do ponto de vista daalga, justamente o que ele : uma substncia intil, descartada como parte de seu ciclometablico. O prprio coral produz resduos na forma de dixido de carbono, nitratos efosfatos, que auxiliam o desenvolvimento das algas. Essa ntima cadeia de produo ereciclagem de resduos uma das razes primordiais para que os recifes de corais sejamcapazes de dar suporte a uma populao to densa e diversificada de animais, a despeito deresidirem em guas tropicais, que em geral so pobres em nutrientes. Esses recifes so ascidades do mar.

    Muitas so as causas que podem estar por trs de uma extrema densidade populacional seja a populao composta por peixes-anjos, cuats ou seres humanos. Sem uma formaeficiente de reciclagem de resduos, no entanto, essas densas concentraes de vida nosobrevivem por muito tempo. Grande parte do trabalho de reciclagem, tanto nas florestastropicais como em centros urbanos, ocorre no nvel microbiano. Sem os processos dedecomposio promovidos pelas bactrias, a Terra teria ficado coberta de carcaas milhesde anos atrs, e o invlucro vital garantido pela atmosfera terrestre estaria prximo dasuperfcie inabitvel e cida de Vnus. Se algum vrus pernicioso exterminasse todos osmamferos do planeta, a vida na Terra prosseguiria sem sofrer grandes danos com essa perda.Se as bactrias desaparecessem da noite para o dia, no entanto, toda a vida no planeta seextinguiria em questo de anos.

    Na Londres vitoriana, o trabalho desses catadores de lixo microscpicos no erapercebido, e a grande maioria dos cientistas para no mencionar os leigos no tinha amenor idia de que o mundo, de fato, fervilhava com minsculos organismos que tornavam avida humana possvel. Apesar disso, era possvel detect-los por meio de outro canalsensorial: o olfato. Nenhuma descrio da Londres daquele perodo estaria completa se nomencionasse o fedor da cidade. Parte dessa fedentina vinha da queima de combustveisindustriais, mas os cheiros mais desagradveis aqueles que realmente ajudaram a promovertoda uma infra-estrutura de sade pblica vinham do constante e incansvel trabalho dedecomposio de matria orgnica pelas bactrias. Mesmo aquelas fatais concentraes demetano nas tubulaes dos esgotos eram produzidas por milhes de microrganismos que,diligentemente, transformavam excremento humano em biomassa microbiana, lanando, comoresduo, uma grande variedade de gases. Podem-se considerar essas exploses subterrneasuma espcie de conflito entre dois tipos de catadores de lixo: de um lado, os exploradores deesgotos; de outro, as bactrias embora vivendo em nveis diferentes, eles disputavam o

  • mesmo territrio.No fim do vero de 1854, no entanto, quando os cata-bagulhos, lameiros e catadores de

    ossos percorriam seus itinerrios, Londres se encaminhava para uma outra batalha, ainda maisassustadora, entre micrbios e seres humanos. Algo que, ao final da estao, se comprovariato mortal quanto qualquer outro conflito na histria da cidade.

    EM LONDRES, o mercado informal da catao de lixo tinha seu prprio sistema de castas eprivilgios. Prximos ao topo se encontravam os limpadores de fossa, que, como os adorveislimpadores de chamins de Mary Poppins, eram trabalhadores autnomos que atuavam noslimites da economia formal. Seu trabalho, porm, era significativamente mais repulsivo do queo de lameiros e cata-bagulhos. Os senhorios da cidade contratavam aqueles homens pararemover os dejetos das fossas transbordantes de suas casas. A coleta de excremento humanoera uma ocupao venervel: em tempos medievais, os limpadores de fossa eram conhecidoscomo catadores e desempenhavam um papel indispensvel no sistema de reciclagem deresduos que ajudou Londres a se transformar em uma verdadeira metrpole, graas vendade dejetos aos fazendeiros alm dos muros da cidade. (Mais tarde, alguns empreendedoresdesenvolveram uma tcnica de extrao de nitrognio a partir do esterco para reutilizao nafabricao de plvora.) Ainda que os catadores e seus sucessores recebessem uma boa paga,as condies de trabalho podiam ser fatais: em 1326, um desafortunado trabalhador conhecidocomo Richard, o Catador, caiu em uma fossa e literalmente se afogou em merda humana.

    No sculo XIX, os limpadores de fossa desenvolveram uma dinmica precisa para suaatividade. Trabalhavam no turno da madrugada, entre meia-noite e cinco da manh, em gruposde quatro: um homem-corda, um homem-buraco e dois homens-tonis. O grupo afixavalanternas na beirada da fossa e, em seguida, removia a pedra ou as tbuas que a cobriam, svezes com uma picareta. Se os dejetos estivessem muito prximos da borda, o homem-corda eo homem-buraco comeavam a encher o tonel com uma concha. Finalmente, medida que osdejetos eram removidos, abaixavam uma escada e o homem-buraco entrava na fossa paraencher o tonel. Uma vez cheio, o homem-corda ajudava a pux-lo e o passava aos doishomens-tonis que entornavam os dejetos na carroa. Era comum os limpadores de fossareceberem uma garrafa de gim por seu trabalho. Como um deles relatou a Mayhew: Eu diriaque bebamos uma garrafa de gim a cada duas fossas, ah, e s vezes eram duas a cada trsfossas limpas em Londres; se bem que, pensando bem, creio que eram trs garrafas a cadaquatro.

    O trabalho era repugnante, mas o rendimento era bom. Muito bom, como se comprovaria.Graas sua proteo geogrfica contra invases, Londres se tornou a mais vasta das cidadeseuropias, expandindo-se muito alm dos muros romanos. (A outra grande metrpole dosculo XIX, Paris, tinha praticamente a mesma populao espremida em metade do territrio.)Para os limpadores de fossa, a expanso significava mais tempo de transporte agora asterras cultivveis disposio estavam, em geral, a quinze quilmetros de distncia , o queencarecia a remoo de dejetos. Na era vitoriana, os limpadores de fossa cobravam um xelimpor fossa, um rendimento que era ao menos o dobro do que ganhava um trabalhadormedianamente habilidoso. Para muitos londrinos, o custo financeiro da remoo de dejetos eramaior do que o custo ao ambiente de, simplesmente, deix-los acumular particularmente

  • para os senhorios, que em geral no moravam prximo das fossas transbordantes. Cenas comoa relatada por um engenheiro contratado para inspecionar a reforma de duas casas na dcadade 1840 tornaram-se comuns. Descobri que toda a rea dos pores estava coberta por ummonturo de cerca de um metro de dejetos humanos, que se acumularam ao longo dos anos como transbordamento das fossas. Ao atravessar a primeira casa, encontrei, em um jardimcoberto por uma camada de dez centmetros de excrementos, alguns tijolos que foram alicolocados para permitir que os moradores passassem sem sujar os ps. Outro relato descreveum monturo em Spitalfields, no corao de East End: Um monte de esterco da altura de umacasa razoavelmente grande e um tanque artificial no qual o contedo das fossas eraarremessado. Esses dejetos ficavam, ento, secando a cu aberto e eram freqentementerevolvidos com esse propsito. Em 1848, Mayhew descreveu esse cenrio grotesco em umartigo publicado no jornal londrino Morning Chronicle, que buscava identificar o ponto emque se originou o surto de clera daquele ano:

    Percorremos, ento, a London Street. No nmero 1 dessa rua o clera aparecera pela primeira vez h dezessete anos ese espalhara com terrvel virulncia; mas, neste ano, a doena irrompeu do lado oposto e desceu a rua com igual violncia. medida que passvamos pelos ftidos aterros da rede de esgoto, o Sol brilhava sobre uma fina camada de gua. Sob a luzbrilhante, assemelhava-se cor de ch verde forte e positivamente parecia to slida quanto mrmore preto sombra naverdade, era mais uma lama aquosa do que uma gua enlameada; e ainda assim nos asseguravam de que aquela era anica gua que aqueles infelizes moradores dispunham para beber. Enquanto a olhvamos horrorizados, vimos algunsencanamentos da rede de esgoto despejando ali seu imundo contedo; vimos toda uma srie de privadas, voltada para omeio da rua e construda sobre o filete de gua; baldes e baldes de imundcie ali entornados; e os braos de alguns jovensvagabundos que ali se banhavam pareciam, por fora do mero contraste, mrmore de Paros. E, ainda assim, enquantoestvamos ali parados, incrdulos diante daquela demonstrao, vimos, em uma das galerias adjacentes, uma menininhaabaixar uma lata com o auxlio de uma corda para encher o tonel que jazia a seu lado. Em cada um dos balces que seprojetavam sobre o canal, podia-se ver a mesma barrica na qual os moradores depositavam o ftido lquido, a fim de quepudessem, depois de um ou dois dias de descanso, livr-lo das partculas slidas de sujeira, poluio e doena. Enquanto amenininha balanava com a maior delicadeza possvel sua lata, um tonel de excrementos foi arremessado de uma galeriaprxima.

    A bem da verdade, a Londres vitoriana possua maravilhosos cartes-postais o Palciode Cristal, a Trafalgar Square, o reformado Palcio de Westminster. No entanto possuatambm maravilhas de outra ordem, no menos notveis: tanques artificiais de esgoto eenormes monturos de esterco do tamanho de casas.

    Os elevados custos dos limpadores de fossa no eram os nicos culpados pelo crescentefluxo de excrementos. A desenfreada popularidade dos vasos sanitrios com descarga dguaagravava a crise. No fim do sculo XVI, um dispositivo desse feitio fora inventado por sirJohn Harington, que at mesmo instalara uma verso de seu invento para uso de sua madrinha,a rainha Elizabeth, no Richmond Palace. O invento, porm, s decolaria no final do sculoXVIII, quando o relojoeiro Alexander Cummings e o marceneiro Joseph Bramah solicitaram apatente para duas distintas e aperfeioadas verses do projeto de Harington. Em seguida,Bramah iniciou um rentvel negcio de instalao de privadas em casas mais abastadas. Deacordo com uma fonte, a instalao de vasos sanitrios foi multiplicada por dez no perodo de1824 a 1844. Houve um novo impulso depois que o fabricante de vasos sanitrios GeorgeJennings instalou seus produtos para uso pblico no Hyde Park, durante a Grande Exibio de1851. Cerca de oitocentos e vinte e sete mil pessoas utilizaram as instalaes. Os visitantes,sem dvida, se maravilharam com a espetacular exibio de cultura global e modernaengenharia, mas, para muitos, a experincia mais surpreendente foi simplesmente sentar-se

  • pela primeira vez em uma privada com descarga dgua.Embora representassem um notvel avano no que diz respeito qualidade de vida, os

    vasos sanitrios tiveram um efeito desastroso sobre a rede de esgotos da cidade. Na ausnciade um sistema de encanamentos ao qual pudesse se conectar, a maioria das privadassimplesmente despejava seus contedos nas fossas existentes, aumentando significativamentesua tendncia ao transbordamento. De acordo com uma estimativa, em 1850, uma casa usavaem mdia cento e sessenta gales de gua por dia. Em 1856, graas ao crescente sucesso dasprivadas, o uso aumentou para duzentos e vinte e quatro gales no mesmo perodo.

    Isoladamente, no entanto, o fator mais relevante para desencadear a crise de remoo dedejetos era uma mera questo demogrfica: a quantidade de pessoas que geravam lixopraticamente triplicara no intervalo de cinqenta anos. Na virada para o sculo XIX, Londrestinha cerca de um milho de habitantes; no entanto, no censo de 1851, esse nmero saltou paradois milhes e quatrocentos mil. Mesmo com uma moderna infraestrutura urbana, aadministrao desse tipo de exploso demogrfica difcil. Porm, sem qualquer infra-estrutura, dois milhes de pessoas subitamente foradas a dividir uma rea de cento e quarentaquilmetros quadrados no representavam apenas um iminente desastre era um permanente eretumbante desastre, um vasto organismo que destrua a si mesmo ao depositar despojos emseu prprio meio ambiente. Quinhentos anos depois, Londres recriava, lentamente, a trgicamorte de Richard, o Catador: a cidade afundava em sua prpria imundcie.

    ASSIM AMONTOADAS, todas aquelas vidas humanas levavam a uma inevitvel conseqncia:uma onda de cadveres. No incio da dcada de 1840, um jovem prussiano de vinte e trs anoschamado Friedrich Engels desembarcava a mando de seu pai, um industrial, na cidade parauma empreitada comercial, que inspiraria um clssico da sociologia urbana e um modernomovimento socialista. Sobre suas vivncias em Londres, Engels escreveu:

    Os cadveres [dos pobres] no tm melhor destino do que as carcaas dos animais. O cemitrio dos indigentes em St.Bride um verdadeiro pntano a cu aberto, utilizado desde os tempos de Charles II e coberto com pilhas de ossos. squartas-feiras, os despojos dos desvalidos so arremessados em uma cova de quatro metros de profundidade. Com palavrasbreves, um proco celebra o funeral e, em seguida, a cova coberta de terra. Na quarta-feira seguinte, abre-se novamenteo buraco e isso se repete at que esteja completamente tomado. Toda a vizinhana encontra-se impregnada por esseterrvel fedor.

    Um cemitrio particular em Islington amontoou oitenta mil cadveres em uma readestinada a abrigar no mximo trs mil. Um coveiro do local relatou ao Times de Londres queestava afundado em carne humana at os joelhos, saltando sobre os corpos, a fim de esprem-los no menor espao possvel no fundo das covas, para que os corpos recm-chegados fossemposteriormente colocados.

    Dickens enterrou o misterioso escritor viciado em pio, morto por overdose no incio de Acasa soturna, em um local igualmente repugnante, inspirando uma das mais famosas, ecomoventes, passagens do livro:

    Um cemitrio cercado, pestilento e obsceno, de onde doenas perniciosas se alastram pelos corpos de nossos irmos eirms que ainda no partiram. De ambos os lados, as casas observam, exceto onde no ptio um tnel, ftido e diminuto,d acesso ao porto de ferro com cada vilania da vida em ao nas proximidades da morte e cada nocivo trao da morte

  • em ao nas proximidades da vida aqui, nosso querido irmo afunda alguns poucos centmetros; aqui, semeado pelacorrupo, para se elevar em corrupo; um fantasma vingador cabeceira de muitos leitos doentios; um infametestemunho para eras futuras de como civilizao e barbrie atravessam esta presunosa ilha de mos dadas.

    A leitura dessas ltimas sentenas nos permite vivenciar o nascimento do que se tornaria omodelo retrico dominante do pensamento do sculo XIX, um modo de atribuir sentido aomassacre tecnolgico da Grande Guerra ou eficincia taylorista dos campos deconcentrao. O terico social Walter Benjamin retomou o lema original de Dickens em suaenigmtica obra-prima Teses sobre a filosofia da histria, escrita enquanto o flagelo dofascismo encobria a Europa: No h qualquer documento de civilizao que no sejaigualmente um documento de barbrie.

    A oposio entre civilizao e barbrie era praticamente to antiga quanto a prpria cidadecercada por muros. (Assim que se construram portes, surgiram brbaros dispostos aderrub-los.) Mas Engels e Dickens sugeriam uma nova perspectiva: que o avano dacivilizao produziu a barbrie como seu inevitvel resduo, to essencial a seu metabolismoquanto os pra-raios e as idias refinadas da sociedade urbana. Os brbaros no estavamatacando os portes. Eles eram alimentados de dentro. Marx pegou essa idia, envolveu-a coma dialtica de Hegel e transformou o sculo XX. Porm, a prpria idia originou-se de certotipo de experincia de vida do cho, como alguns ativistas gostam de dizer. Veio, em parte,da viso dos seres humanos que eram enterrados em condies que ultrajavam tanto os mortoscomo os vivos.

    Em um aspecto crucial, no entanto, Dickens e Engels se equivocaram. Por mais repulsivaque fosse a viso das sepulturas, muito provavelmente os cadveres no estavamdisseminando doenas perniciosas. O fedor era suficientemente opressivo, mas noinfectava ningum. Uma cova rasa coberta de corpos em decomposio era uma afronta aossentidos e dignidade humana, mas o odor exalado no representava um risco sadepblica. Ningum morreu por causa do fedor da Londres vitoriana. Dezenas de milharesmorreram, entretanto, pois o medo da pestilncia os cegou para os verdadeiros perigos dacidade e os levou implementao de uma srie de reformas mal direcionadas que apenasagravaram a crise. Dickens e Engels no foram os nicos: praticamente todo o meio mdico eo poltico cometeram o mesmo erro fatal: todos, de Florence Nightingale ao pioneiroreformador Edwin Chadwick, dos editores de The Lancet prpria rainha Vitria. Em geral, ahistria do conhecimento concentra suas atenes nas idias de ruptura e nos saltos cognitivos.No entanto, os pontos cegos no mapa, os sombrios continentes de erros e preconceitos,carregam tambm seu prprio mistrio. Como tantas pessoas inteligentes puderam seequivocar to completamente por um perodo to extenso? Como puderam ignorar tantasevidncias esmagadoras que contradiziam suas teorias mais bsicas? Essas questes merecemigualmente sua prpria disciplina a sociologia do erro.

    O medo da contaminao da morte pode s vezes durar sculos. Em meio Grande Pestede 1665, o conde de Craven adquiriu uma extenso de terra em uma rea semi-rural chamadaSoho Field, a oeste do centro de Londres. Construiu ali trinta e seis pequenas casas parareceber indivduos pobres e miserveis acometidos pela doena. O restante da terra erausado como sepultura comum. Toda noite, as funestas carroas despejavam dezenas de corposno terreno. Segundo algumas estimativas, mais de quatro mil corpos infectados pela pesteforam ali enterrados em uma questo de meses. Moradores das redondezas deram-lhe o nome

  • apropriadamente macabro e sonoro de campo da peste do conde de Craven ou,simplesmente, campo de Craven. Por duas geraes, ningum ousou erigir qualquerfundao naquelas terras por medo de infeco. Com o tempo, o inexorvel apelo da cidadepor mais moradias venceu o medo da doena e o terreno das doenas contagiosas tornou-se oelegante distrito de Golden Square, habitado basicamente por aristocratas e imigranteshuguenotes. Ao longo de outros cem anos, os esqueletos repousaram tranqilos sob a agitaodo comrcio da cidade, at o fim do vero de 1854, quando a deflagrao de um novo surtoacometeu sobre Golden Square e invocou as almas repugnantes que regressaram paraassombrar, mais uma vez, as extenses de seu ltimo descanso.

    NAS DCADAS QUE SE SEGUIRAM peste, exceo do campo de Craven, Soho se tornourapidamente um dos bairros mais elegantes de Londres. Quase uma centena de famlias comttulos de nobreza ali morava na dcada de 1690. Em 1717, o prncipe e a princesa de Galesfixaram residncia em Leicester House, no Soho. A prpria Golden Square, ocupada porelegantes casas georgianas, tornara-se um refgio distante do tumulto de Piccadilly Circus,vrios quarteires ao sul. No entanto, em meados do sculo XVIII, as elites continuaram suainexorvel marcha para o oeste, construindo casas ainda mais grandiosas no novo bairroburgus de Mayfair. Em 1740, restavam somente vinte moradores com ttulos de nobreza.Surgia um outro tipo de morador do Soho, muito bem representado pelo filho de um negociantede malhas que nasceu no nmero 28 da Broad Street em 1757, uma criana talentosa eproblemtica chamada William Blake, que se tornaria um dos maiores poetas e artistas daInglaterra. Prximo dos trinta anos, Blake retornou ao Soho e abriu uma grfica ao lado daloja de seu falecido pai, agora administrada por seu irmo. Pouco depois, outro irmo deBlake abriu uma padaria do outro lado da rua, no nmero 29, e, assim, em poucos anos, afamlia Blake constitura um pequeno e crescente imprio na Broad Street, com trs negciosdistintos no mesmo quarteiro.

    A combinao de viso artstica e esprito empreendedor definiria a regio por vriasgeraes. medida que a cidade se industrializava e medida que o antigo dinheiro seesvaa, o bairro tornava-se mais e mais efervescente; os senhorios compartimentavam asvelhas casas em apartamentos distintos, enquanto os ptios entre as construes eramocupados por depsitos e estbulos improvisados. Dickens descreveu com maestria essecenrio em Nicholas Nickleby:

    Na regio de Londres na qual se localiza a Golden Square h uma rua antiquada, sem graa e decadente, com duas fileirasde casas altas e esguias, que parecem h anos encarar umas s outras com um ar desaprovador. As prprias chaminsparecem mais sinistras e melanclicas por nada terem para olhar seno as chamins do outro lado da rua. A julgar pelotamanho, essas casas foram ocupadas por pessoas em melhores condies do que seus atuais moradores; agora, porm,foram desmembradas, semana a semana, em pavimentos e cmodos, e cada porta tem tantas placas e campainhas quanto onmero de apartamentos que h ali. As janelas so, pela mesma razo, suficientemente diversificadas em aparncia,decoradas com todas as variedades ordinrias de anteparos e cortinas que se pode facilmente imaginar; de modo que o vode cada porta encontra-se bloqueado, o que o torna praticamente intransitvel, por uma mistura heterognea de crianas evasos de todos os tamanhos, dos bebs de colo e vasos de meio litro s moas feitas e vasilhas de meio galo.

    Em 1851, Berwick Street, no lado oeste do Soho, era o mais densamente povoado de todosos cento e trinta e cinco subdistritos que compunham a Grande Londres, com cento e oito

  • habitantes por quilmetro quadrado. (Mesmo com seus arranha-cus, Manhattan abriga hojealgo em torno de vinte e cinco habitantes por quilmetro quadrado.) A parquia de St. Luke noSoho abrigava um pouco mais de sete casas por quilmetro quadrado. Em Kensington, por suavez, esse nmero era de apenas meia casa por quilmetro quadrado.

    Apesar das crescentes condies de superpopulao e insalubridade, no entanto, ou atmesmo por isso, o bairro tornou-se um celeiro de criatividade. A lista de poetas, msicos,escultores e filsofos que viviam no Soho durante esse perodo se assemelha ao ndice de ummanual sobre a era iluminista da cultura britnica. Edmund Burke, Fanny Burney, PercyShelley, William Hogarth todos foram moradores do Soho em diversas fases de suas vidas.Em 1764, Leopold Mozart arrendou um apartamento na Frith Street durante sua visita cidadeao lado de seu filho, um prodgio de oito anos de idade chamado Wolfgang Mozart. Franz Liszte Richard Wagner tambm se hospedaram no bairro quando estiveram em Londres em 1839-40.

    Novas idias requerem prdios antigos, escreveu certa vez Jane Jacobs, e a mxima seaplica perfeitamente ao Soho no alvorecer da era industrial: uma classe de visionrios,excntricos e radicais vivia sob tetos decadentes que, um sculo antes, foram abandonadospelas classes mais abastadas. Embora hoje nos seja familiar artistas e marginais seapropriarem de uma vizinhana decadente e at mesmo apreciarem tal decadncia , naquelemomento, quando Blake, Hogarth e Shelley fixaram pela primeira vez suas residncias aolongo das apinhadas ruas do Soho, esse cenrio constitua um novo padro de ocupaourbana. Em vez de se sentirem intimidados, eles pareciam inspirados pela misria circundante.Eis a descrio de uma tpica residncia da Dean Sreet, feita nos primeiros anos da dcada de1850:

    [O apartamento] tem dois cmodos, o que d de frente para a rua a sala de visitas; o dos fundos, o quarto de dormir. Noh sequer uma nica pea de moblia em bom estado em todo o apartamento. Tudo est quebrado, despedaado e rasgado;h uma grossa camada de poeira por toda parte; e tudo est em uma grande desordem. Quando se entra no apartamento, tem-se a viso ofuscada pela fumaa de tabaco e carvo, de modo que se tateia volta tal qual se estivesseem uma caverna, at que os olhos se acostumem com a fumaa e, como em um nevoeiro, gradualmente notem algunsobjetos. Tudo sujo, tudo est coberto de p; perigoso sentar-se.

    Morando nesse sto de dois cmodos encontravam-se sete indiv duos: um casal deimigrantes prussianos, seus quatro filhos e uma empregada (aparentemente avessa espanao). No entanto, de algum modo, esses aposentos apertados e esfarrapados noatrapalhavam significativamente a produtividade do marido, embora se possa entender comfacilidade por que ele desenvolveu tamanho apreo pela Sala de Leitura do Museu Britnico.Esse homem, como se v, era um radical de pouco mais de trinta anos chamado Karl Marx.

    Quando Marx chegou ao Soho, a regio se transformara no clssico bairro de tipomultifuncional e economicamente diversificado que os novos urbanistas de hoje celebramcomo o fundamento para o sucesso de uma cidade: prdios residenciais de dois ou quatropavimentos com lojas no trreo em praticamente todas as unidades, entremeadas comeventuais espaos comerciais mais amplos. (No entanto, ao contrrio do novo tpico ambienteurbanstico, o Soho possua tambm seu lado industrial: matadouros, fbricas, salsicharias.)Pelos atuais padres das naes industrializadas, os moradores do bairro eram pobres, quasemiserveis, mas, pelos padres vitorianos, constituam uma mescla de trabalhadores pobres e

  • uma classe mdia empreendedora. ( claro que pelos padres dos lameiros estavam muitobem providos.) O Soho, porm, era uma espcie de anomalia encravada no prspero West Endda cidade: uma ilha de pobreza proletria e indstria malcheirosa rodeada pelas opulentascasas de Mayfair e Kensington.

    A descontinuidade econmica ainda est codificada na aparncia fsica das ruas ao redordo Soho. O limite ocidental do bairro definido pela larga avenida de Regent Street, com olmpido brilho de suas fachadas comerciais. A oeste de Regent Street, encontra-se o enclavearistocrtico de Mayfair, distinto at os dias de hoje. De algum modo, porm, o incansveltrfego e o alvoroo de Regent Street praticamente imperceptvel a partir das travessas e dosbecos estreitos do Soho ocidental, em grande medida em virtude do fato de haver poucoscanais que se abrem diretamente para Regent Street. Ao vagar pelo bairro, tem-se a impressode que uma barricada foi ali erguida a fim de impedir que se alcance a proeminente avenidaque se sabe estar a poucos metros de distncia. E, de fato, o traado das ruas foiexplicitamente projetado para servir como uma barricada. Quando concebeu a Regent Streetcomo uma conexo entre o Marylebone Park e a nova casa do prncipe regente em CarltonHouse, John Nash planejou que essa via pblica funcionasse como um cordo sanitrio queseparasse as classes abastadas de Mayfair da crescente classe trabalhadora do Soho. Ainteno explcita de Nash era criar uma completa separao entre as ruas ocupadas pela altae pequena nobreza e as ruas mais estreitas e as casas desprezveis habitadas pelos operrios ecomerciantes da cidade. Meu propsito era que a nova rua, ao cruzar com todas as ruasocupadas pelas classes mais altas, funcionasse como seu limite ocidental, deixando de foratodas as ruas ruins.

    A topografia social desempenharia um papel essencial nos acontecimentos que sedesencadearam no fim do vero de 1854, quando um terrvel flagelo se abateu sobre o Soho,mas deixou os bairros vizinhos totalmente intactos. Esse ataque seletivo parecia confirmartodos os clichs elitistas: a praga atacava os depravados e os destitudos, enquanto passava aolargo das classes mais altas que viviam a apenas algumas quadras de distncia. verdade quea praga devastou as casas desprezveis e as ruas ruins; qualquer um que visitasse aquelesesqulidos quarteires teria pressentido a sua chegada. Pobreza, depravao e ignornciacriaram um ambiente no qual a doena prosperou, como qualquer pessoa de bom nvel socialteria declarado. Justamente por isso eles ergueram aquelas barricadas. Mas do lado errado daRegent Street, atrs da barricada, os comerciantes e os artfices se arranjavam nasdesprezveis casas do Soho. O bairro era uma verdadeira locomotiva de comrcio local, empraticamente cada casa havia algum tipo de pequeno negcio. A grande variedade de lojastrreas soa em geral de modo estranho aos ouvidos modernos. Havia mercearias e padariasque no destoariam em um centro urbano dos dias de hoje, mas ali tambm se encontravam,trabalhando a seu lado, artfices e protticos. Em agosto de 1854, ao descer a Broad Street,uma quadra ao norte da Golden Square, seria possvel encontrar, respectivamente, ummerceeiro, um fabricante de gorros, um padeiro, outro merceeiro, um seleiro, um gravador, umferrageiro, um vendedor de adornos, um fabricante de cpsulas fulminantes, um comerciantede guarda-roupas, um fabricante de alargadores de botas e um pub, chamado The Newcastle-on-Tyne. No que diz respeito aos profissionais, os alfaiates superavam em nmero os demaispor uma margem relativamente grande. Em seguida, apareciam, em nmero aproximadamentesemelhante, os sapateiros, os empregados domsticos, os pedreiros, os lojistas e as

  • costureiras.A certa altura, no fim da dcada de 1840, o policial londrino Thomas Lewis e sua esposa

    se mudaram para o nmero 40 da Broad Street, uma casa acima do pub. Era uma casa de onzecmodos que originalmente fora concebida para receber uma nica famlia e um punhado deserviais. Agora abrigava vinte moradores. Para essa regio da cidade onde a maioria dascasas tinha, em mdia, cinco pessoas por cmodo, essas acomodaes eram amplas. Thomas eSarah Lewis viviam na sala de estar no nmero 40 da Broad Street, de incio ao lado do filho,uma criana doente que morreu com apenas dez meses de vida. Em maro de 1854, SarahLewis deu luz uma menina, que, desde o princpio, demonstrou uma constituio maispromissora do que a de seu falecido irmo. Sarah Lewis no conseguiu amamentar o beb emrazo de seus prprios problemas de sade e, por isso, o alimentou com papa de arroz e leiteengarrafado. A menininha foi acometida por algumas doenas em seu segundo ms de vida,mas atravessara quase todo o vero com relativa sade.

    Alguns mistrios permanecem acerca do segundo beb Lewis, detalhes que os ventos dahistria varreram para longe. No sabemos seu nome, por exemplo, mas conhecemos umasrie de eventos que a levaram a contrair o clera com menos de seis meses de vida, no fim deagosto de 1854. Por quase vinte meses, a doena estivera rondando certos bairros de Londres,tendo aparecido pela ltima vez durante os anos revolucionrios de 1848-49. (Pestes eagitaes polticas tm uma longa tradio de seguirem os mesmos ciclos.) No entanto, amaior parte dos casos de clera que irrompeu em 1854 ficou confinada ao sul do Tmisa. Area da Golden Square fora amplamente poupada.

    Em 28 de agosto, tudo mudou. Por volta das seis horas da manh, enquanto o resto dacidade lutava por mais alguns minutos de sono ao fim de uma noite de vero opressivamenteabafada, o beb Lewis comeou a vomitar e expelir fezes esverdeadas e aquosas queapresentavam um cheiro sufocante. Sarah mandou chamar William Rogers, um mdico dosarredores, que mantinha uma clnica a apenas algumas quadras de distncia, em BernersStreet. Enquanto aguardava a chegada do mdico, Sarah embebeu as fraldas emporcalhadasem um balde de gua morna. Em um dos raros momentos em que sua filha conseguiu dormir umpouco, Sarah Lewis arrastou-se at o poro de sua casa, no nmero 40 da Broad Street, elanou a gua pestilenta na fossa que havia em frente casa.

    Foi assim que tudo comeou.

  • HENRY WHITEHEAD

  • N

    Olhos fundos, lbios lvidos SBADO, 2 DE SETEMBRO

    OS DOIS DIAS QUE SE SEGUIRAM ao adoecimento do beb Lewis, a vida em Golden Squarepreservou seu habitual alarido. Na vizinha Soho Square, Henry Whitehead, um

    benevolente padre de apenas vinte e oito anos, deixou a penso em que dividia um quarto comseu irmo e seguiu para seu passeio matinal em direo igreja de St. Luke, na BerwickStreet, onde fora nomeado proco auxiliar. Whitehead nascera na cidade litornea deRamsgate e freqentara a prestigiosa escola pblica de Chatham House, cujo diretor era seupai. Estudante extraordinrio, Whitehead deixou Chatham com o ttulo de melhor aluno emredao e seguiu para cursar o Lincoln College, em Oxford, onde angariou a reputao desociabilidade e gentileza que o acompanharia pelo resto de seus dias. Tornou-se um grandeentusiasta da vida intelectual das tavernas: durante o jantar, sentado com um grupo de amigos,saboreava um cachimbo, contava histrias, debatia poltica ou discutia filosofia moral ataltas horas da noite. Quando lhe perguntavam a respeito dos anos passados na faculdade,Whitehead costumava dizer que se beneficiara mais dos homens do que dos livros.

    Ao deixar Oxford, Whitehead estava decidido a ingressar na Igreja anglicana e ordenou-seem Londres alguns anos depois. Sua vocao religiosa em nada diminuiu seu apreo pelastavernas londrinas e continuou a freqentar os velhos estabelecimentos ao longo da FleetStreet The Cock, The Cheschire Cheese, The Rainbow. Quanto s suas posies polticas,era um liberal, mas, no que dizia respeito moral, com freqncia os amigos assinalavam queele era um conservador. Alm de sua formao religiosa, tinha uma mente penetrante eemprica e uma boa memria para detalhes. Tinha tambm o raro costume de tolerar idiasdivergentes e parecia imune s obviedades do senso comum. Muitas vezes o ouviam dizer aamigos: Prestem ateno, o homem que se encontra em minoria quase sempre est do ladocerto.

    Em 1851, o proco da igreja de St. Luke ofereceu-lhe um cargo, dizendo a Whitehead que aparquia era um timo lugar para aqueles que se preocupam mais com a aprovao do quecom o aplauso dos homens. Na St. Luke, trabalhava como uma espcie de missionrio entreos moradores dos cortios da Berwick Street, tendo uma presena constante e bemconsiderada na tumultuosa vizinhana. Um dos contemporneos de Whitehead capturou oambiente e a algazarra das ruas em torno da St. Luke naquele perodo:

    No se percebe, ao passar pela Regent Street, quo pequena a distncia que separa os pequenos dos grandesannimos. Mas para quem ingressa no territrio desconhecido dos cortios do Soho atravs do acesso que a Beak Streetou a Berwick Street proporcionam, ali h muito motivo para espanto e interesse, caso algum resolva se dedicar ao estudodo modo de vida dos desvalidos de Londres. Subitamente, o cabriol tem seu caminho cortado pelo carrinho de umvendedor ambulante, que lhe pergunta se voc seguir em direo St. Luke. Berwick Street: caso voc insinue que esseo seu destino, eles lhe dizem de modo educado, mas com a tpica nfase do Soho, que levar uma semana at que vocchegue ao destino e logo acredita-se que h alguma dose de verdade em tal vaticnio. Intimamente enfileiradas lado a ladoem uma rua estreita esto as barracas e os carrinhos dos vendedores. O vendedor ambulante de carnes, o peixeiro, oaougueiro, o vendedor de frutas e o de brinquedos se acotovelam e anunciam aos brados seus produtos: Carne deprimeira! Carne! Carne! Compre! Compre! Compre! Aqui! Aqui! Aqui! Vitela! Vitela! Vitela fresquinha, hoje! Bem ao

  • gosto do fregus! Vendido, vendido outra vez! Peixe por uma ninharia! Cerejas maduras! Seu destino a igreja de St.Luke, na Berwick Street: logo se v a diminuta fileira de janelas desbotadas e semigticas. Um homem encontra-se do ladooposto do porto gradeado, esfolando enguias; ouve-se um grito e logo se sabe que uma daquelas pobres criaturas se recusaa aceitar seu destino e escorrega-lhe das mos, para abrir caminho em meio multido.

    No calor e na umidade do fim de agosto, o mau cheiro do Soho inevitvel, vindo dasfossas e esgotos, das fbricas e fornalhas. Parte da fedentina deriva da onipresena dosanimais no centro da cidade. Um visitante dos dias de hoje que viajasse no tempo at aLondres vitoriana no se surpreenderia em ver cavalos (e, conseqentemente, seu esterco) emgrande quantidade pelas ruas da cidade, mas talvez se espantasse com os muitos animais defazenda que se viam nos bairros densamente povoados, como Golden Square. Verdadeirosrebanhos se estendiam pela cidade; o principal mercado de animais, em Smithfield, vendiaregularmente trinta mil carneiros em dois dias. Um matadouro do Soho, na Marshall Street,abatia em mdia cinco bois e sete carneiros por dia, enquanto o sangue e os despojos dosanimais escoavam para os bueiros da rua. Sem armazns apropriados, os moradoresconvertiam residncias tradicionais em estbulos agrupando de vinte e cinco a trintavacas em um nico cmodo. Em alguns casos, estas eram iadas at os stos com a ajuda deguindastes, onde ficavam trancafiadas no escuro at que seu leite minguasse.

    At mesmo os animais domsticos podiam tornar-se opressivos. Um sujeito que vivia nosegundo andar do nmero 38 da Silver Street mantinha vinte e sete cachorros em um nicocmodo. Ele certamente espalhava no telhado da casa, para secar sob o brutal sol de vero, oque devia ser uma fabulosa quantidade de excremento canino. Uma faxineira no fim da ruatinha dezessete cachorros, gatos e coelhos em seu apartamento de um s cmodo.

    O contingente humano era quase to opressivo quanto. Whitehead costumava contar ahistria de uma visita que fizera a uma abarrotada casa de famlia. Ao perguntar pobremulher que ali vivia como conseguia se adaptar a tamanho aperto, ela respondeu: Bem,estvamos bem acomodados at que o senhor chegou para se intrometer. Em seguida apontouum crculo de giz no centro do cmodo, que definia o espao que o cavalheiro tinhapermisso de ocupar.

    Naquela manh, a jornada de Henry Whitehead talvez tenha sido bastante animada. Eleparou em uma cafeteria freqentada por mecnicos, visitou as casas dos paroquianos, passoualguns minutos no fim da rua com os internos do asilo de St. James, onde se abrigavamquinhentos desvalidos de Londres em troca de rduos trabalhos ao longo do dia. Talvez tenhavisitado a fbrica Eley Brothers, que abrigava cento e cinqenta funcionrios que produziam atoque de caixa uma das mais importantes invenes militares do sculo: a cpsulafulminante, que permitia que as armas de fogo funcionassem sob quaisquer condiesmeteorolgicas. (Bastava uma leve chuva para que os sistemas mais antigos, com base empederneiras, ficassem inoperantes.) Com a ecloso da Guerra da Crimia alguns meses antes,o negcio dos irmos Eley funcionava a todo o vapor.

    Na Lion, uma cervejaria da Broad Street, os setenta homens ali empregados seguiam suajornada de trabalho, sorvendo goles da bebida que lhes era oferecida como parte dopagamento. Um alfaiate que vivia no segundo andar da casa da famlia Lewis no nmero 40 daBroad Street o conhecemos apenas como sr. G. entregava-se a seu ofcio, com o eventualauxlio da esposa. Nas caladas, aglomeravam-se os mais altos escales dos trabalhadores derua: artfices que fabricavam e reparavam os mais variados produtos e vendedores ambulantes

  • que vendiam de tudo, de bolos a almanaques, de caixas de rap a esquilos vivos. HenryWhitehead certamente conhecia muitas dessas pessoas por nome, e seu dia se estenderia emuma corrente constante e metdica de conversas nas caladas e salas de estar. No h dvidade que o calor devia ser o principal assunto das conversas: a temperatura chegara casa dostrinta graus por vrios dias seguidos e, desde meados de agosto, raras gotas de chuva caramsobre a cidade. Havia as notcias da Guerra da Crimia para se debater, bem como anomeao do novo diretor do Departamento de Sade, um certo Benjamin Hall, que prometeracontinuar a arrojada campanha sanitria de seu antecessor, Edwin Chadwick, sem, no entanto,alienar tantas pessoas. A cidade finalizava a leitura de Hard Times, o longo libelo de Dickenscontra as cidades metalrgicas do Norte do pas, cuja derradeira parte fora publicada pelarevista Household Words algumas semanas antes. E havia ainda os detalhes pessoais da vidacotidiana um futuro casamento, a perda de um emprego, um neto a caminho que Whiteheaddiscutia com a mesma prontido por conhecer to bem seus paroquianos. Mas de todas asconversas que teve ao longo dos trs primeiros dias daquela fatdica semana, Whitehead selembraria mais tarde de uma irnica omisso: nenhuma das conversas abordava o tema doclera.

    Imagine uma vista area da Broad Street naquela semana, apresentada de modo aceleradocomo em uma seqncia cinematogrfica. Grande parte da ao seria tomada pelo intensoalarido da cidade: O ruidoso e o impetuoso, o arrogante, o petulante e o presunoso [fazendo] seu usual rebulio, como narra Dickens, no fim de Little Dorrit. Porm, em meio atoda essa turbulncia, certos padres aparecem, como redemoinhos em uma torrente de outromodo catica. As ruas se dobravam diante do equivalente vitoriano da hora do rush,ascendendo ao romper do dia e, ento, cedendo com a chegada da noite; rios de gente pobreafluindo a cada celebrao diria da St. Luke; pequenas filas se formam ao redor deatarefados vendedores ambulantes. Em frente ao nmero 40 da Broad Street, enquanto o bebLewis agoniza a apenas poucos metros de distncia, um nico ponto na calada atrai umaconstante e sempre nova multido de visitantes ao longo do dia, como um turbilho demolculas escoando por um dreno.

    Ali esto por causa da gua.

    A BOMBA DGUA da Broad Street h muito desfrutava uma reputao como uma confivelfonte de gua lmpida. Estendia-se por quase oito metros abaixo da superfcie da rua,passando por baixo da camada de trs metros de lixo e entulho sobre a qual artificialmente seelevava grande parte de Londres, atravs de um leito pedregoso que percorria todo o caminhoat o Hyde Park e os veios arenosos e lamacentos embebidos com gua da superfcie. Muitosmoradores do Soho, embora vivessem mais prximo de outras bombas uma na Rupert Street,outra na Little Marlborough , optavam por andar alguns quarteires a mais a fim de provar orefrescante sabor da gua da Broad Street. Com um agradvel toque de gs carbnico, eramais fresca que a gua encontrada nas bombas com que rivalizava. Por essas razes, a gua daBroad Street se inseria numa complicada rede de hbitos da populao. A cafeteria do fim darua preparava o caf com a gua dali extrada; muitas lojinhas na vizinhana vendiam umabebida denominada sherbet, uma refrescante mistura de p efervescente e gua da BroadStreet. Os pubs da Golden Square diluam seus destilados com a mesma gua.

  • Mesmo aqueles que abandonaram a Golden Square mantinham-se fiis bomba da BroadStreet. Depois de perder o marido, que fundara a fbrica de cpsulas fulminantes na BroadStreet, Susannah Eley se mudara para Hampstead. Seus filhos, porm, iam regularmente Broad Street para encher um pote dgua, que levavam para a me em um carrinho de mo. Osirmos Eley tambm mantinham dois grandes barris para que seus funcionrios pudessembeber a gua da fonte durante a jornada de trabalho. Com temperaturas que alcanavam ostrinta graus sombra naqueles derradeiros dias de agosto e nenhuma brisa para refrescar oambiente, a sede coletiva pela gua fresca da fonte deve ter sido intensa.

    Temos uma notvel quantidade de informaes sobre os hbitos cotidianos de consumo degua no bairro de Golden Square naqueles dias opressivos de 1854. Sabemos que, nasegunda-feira, os irmos Eley despacharam uma garrafa para sua me, que a dividiria comuma sobrinha que a visitava naquela mesma semana. Sabemos que o filho de um boticrio, emvisita ao pai, saboreou um copo dgua da fonte depois de comer um pudim em um restauranteda Wardour Street. Sabemos que um oficial do Exrcito, que visitava um amigo na WardourStreet, tomou um copo de gua da Broad Street durante o jantar. Sabemos que o alfaiate sr. G.enviou a esposa inmeras vezes para apanhar um jarro dgua na bomba em frente a seu ateli.

    Tambm sabemos daqueles que naquela semana no beberam a gua da fonte por inmerosmotivos: os trabalhadores da cervejaria Lion, em cuja cerveja era adicionada a gua fornecidapela popular New River Company; uma famlia que normalmente dependia da filha de dezanos para buscar a gua na fonte ficou alguns dias sem sua proviso, pois a menina estava decama, recuperando-se de uma gripe. No sbado, John Gould, um contumaz consumidor damesma gua e notvel ornitologista, recusou um copo, alegando que continha um cheirorepulsivo. A despeito de morar a alguns passos da bomba, Thomas Lewis jamais provou dessagua.

    H algo de notvel a respeito dos pormenores de todas essas vidas em uma semanaaparentemente comum que permanece nos anais da histria h quase dois sculos. Quando ofilho do boticrio provou uma colher de seu pudim, jamais imaginaria que sua refeio seriaobjeto de interesse para todos os demais moradores da Londres vitoriana, ainda menos para apopulao do sculo XXI. Essa uma das maneiras por meio das quais as doenas, emparticular as doenas epidmicas, arrasam as histrias tradicionais. Muitos protagonistas deeventos histricos mundiais grandes batalhas militares, revolues polticas tmconscincia da importncia do momento que vivem. Agem com a certeza de que suas aessero narradas e analisadas ao longo das dcadas e dos sculos vindouros. As epidemias, noentanto, criam um tipo de histria a partir de baixo: embora possam mudar o mundo, seusprotagonistas so quase invariavelmente pessoas comuns, que seguem suas rotinasestabelecidas, sem pensar por um segundo sequer como suas aes sero registradas para aposteridade. E, claro, caso reconheam que estejam vivenciando uma crise histrica, emgeral ser tarde demais pois, seja como for, a forma primordial pela qual pessoas comunsparticipam desse distinto gnero da histria com sua prpria morte.

    Algo, entretanto, se perdeu nesses registros, algo mais ntimo e particular que histrias arespeito de pudins e cervejas a saber, como se sentiam aqueles que contraam o cleranaquela efervescente e populosa cidade, em uma poca em que to pouco se sabia sobre adoena. Temos relatos extraordinrios e detalhados sobre os movimentos de dezenas depessoas naquele fim de vero; temos grficos e tabelas sobre a quantidade de vivos e mortos.

  • Se quisermos, no entanto, recriar a experincia ntima da deflagrao da doena o suplciofsico e emocional que ela envolve , os registros histricos nos deixam na mo. Para isso, preciso usar nossa imaginao.

    A certa altura daquela quarta-feira, provvel que o sr. G., o alfaiate do nmero 40 daBroad Street, tenha comeado a sentir uma estranha agitao, acompanhada por um ligeirodesarranjo intestinal. Na verdade, no seria possvel distinguir os sintomas iniciais dos deuma intoxicao alimentar. Mas, assentados naqueles sintomas fsicos, haveria um sentimentomais profundo de mau agouro. Imagine se, cada vez que experimentasse um leve desarranjointestinal, o indivduo soubesse que corria um grande risco de estar morto em menos dequarenta e oito horas. Lembre-se, tambm, de que as condies alimentares e sanitrias dapoca ausncia de geladeiras; contaminao das fontes de gua; consumo excessivo decerveja, destilados e caf propiciavam um solo frtil para indisposies digestivas, atmesmo quando estas no levavam ao clera. Imagine viver sob a ameaa constante dessaespada de Dmocles sendo cada dor estomacal ou diarria um possvel pressgio de morteiminente.

    Os moradores da cidade j haviam vivido sob o domnio do medo, e Londres, verdade,no esquecera a Grande Praga e o Grande Incndio que a abateram. No entanto, para oslondrinos, a ameaa do clera era um produto especfico da Era Industrial e suas redes denavegao global: no se conhece sequer um caso de clera em solo britnico antes de 1831.A doena, porm, era bastante antiga. Escritos snscritos datados de 500 a.C. descrevem umadoena fulminante que levava as vtimas morte ao drenar-lhes todo o lquido do corpo.Hipcrates prescreveu, como tratamento, as flores brancas do helboro. A doena, no entanto,permaneceu em grande medida confinada ndia e ao subcontinente asitico por ao menosdois mil anos. Os londrinos tiveram o primeiro contato com o clera quando um surto entresoldados britnicos aquartelados em Ganjan, na ndia, acometeu mais de quinhentos homensem 1781. Dois anos depois, documentos britnicos fazem meno a uma terrvel epidemia quematou vinte mil romeiros em Haridwar. Em 1817, o clera irrompeu com extraordinriaimpetuosidade, como relatou o Times, percorrendo, atravs da Turquia e da Prsia, todo ocaminho at Cingapura e Japo, e at mesmo alcanando as Amricas antes de dissipar-se em1820. A Inglaterra foi poupada, o que levou as autoridades da poca a desfilar uma srie declichs racistas sobre a superioridade do modo de vida britnico.

    Mas isso no passava de um sinal de alerta. Em 1829, a doena comeou realmente a seespalhar, varrendo a sia, a Rssia e at mesmo os Estados Unidos. No vero de 1831, umaepidemia se espalhou por um punhado de navios ancorados no rio Medway, a cerca decinqenta quilmetros de Londres. Casos no interior do continente s apareceriam em outubrodaquele ano, na cidade de Sunderland, no Nordeste do pas, comeando com um sujeitochamado William Sproat, o primeiro ingls a perecer de clera em sua terra natal. Em 8 defevereiro do ano seguinte, John James tornou-se a primeira vtima fatal na cidade de Londres.Quando o surto teve fim, em 1833, a quantidade de mortes na Inglaterra e no Pas de Gales eraacima de vinte mil. Depois da primeira epidemia, a doena passou a irromper com intervalosde poucos anos, despachando prematuramente algumas centenas de almas para a sepultura e,em seguida, recolhendo-se novamente ao subsolo. Mas a longo prazo essa tendncia no eraencorajadora. A epidemia de 1848-49 consumiria cinqenta mil vidas na Inglaterra e no Pasde Gales.

  • Toda essa histria se abateria como um pesadelo sobre o sr. G. e, na quinta-feira, seuestado possivelmente se agravava. Talvez tenha comeado a vomitar durante a noite e muitoprovavelmente experimentou espasmos musculares e intensas dores abdominais. A certaaltura, deve ter sido tomado por uma sede avassaladora. O sintoma, no entanto, vinhaacompanhado de algo mais terrvel: seu intestino evacuaria enormes quantidades de gua,estranhamente sem cheiro ou cor, contendo apenas diminutas partculas brancas. Os clnicosda poca denominavam isso evacuao de gua de arroz. Uma vez que se comeava aexpelir gua de arroz, havia uma grande possibilidade de que, em poucas horas, se estivessemorto.

    O sr. G. estava assustadoramente consciente de seu destino, at mesmo quando enfrentava aagonia fsica da doena. Um dos malefcios distintivos do clera que aqueles que o padecempermanecem mentalmente alertas at os ltimos estgios da doena, com total conscincia dador e da chocante reduo de sua expectativa de vida. O Times descreveu essa terrvelcondio muitos anos antes em uma longa explanao sobre a doena: Enquanto o mecanismoda vida subitamente aprisionado, o corpo esvaziado por alguns rpidos jatos de soro ereduzido a uma massa prostrada e inerte, em seu interior a mente permanece intocada elcida estranhamente luzindo atravs dos olhos esgazeados, com um brilho inextinguvel evvido , um esprito a olhar aterrorizado de dentro de um cadver.

    Na sexta-feira, mal se perceberia o pulso do sr. G e uma desagradvel e ressecada mscarade pele azul recobriria seu rosto. Seu estado se assemelharia descrio de William Sproatfeita em 1831: Fisionomia bastante contrada, olhos fundos, lbios lvidos, tal qual a pele nasextremidades mais baixas; as unhas arroxeadas.

    Tudo isso no passa, em sua maior parte, de conjecturas. Mas h algo que sabemos comcerteza: uma hora da tarde da sexta-feira, enquanto o beb Lewis sofria em silncio noquarto contguo, o corao do sr. G. parava de bater, apenas vinte e quatro horas depois de eleter demonstrado os primeiros sintomas do clera. Dentro de poucas horas, outros dozemoradores do Soho estariam mortos.

    EMBORA NO HAJA UM RELATO MDICO especfico a esse respeito, com o conhecimentoadquirido ao longo de um sculo e meio de pesquisas cientficas, podemos descrever compreciso os eventos celulares que transformaram, em poucos dias, o saudvel e ativo sr. G. emum cadver lvido e enrugado. O clera uma espcie de bactria, um organismomicroscpico unicelular, que abriga filamentos de DNA. Ainda que no possuam as organelase os ncleos das clulas eucariticas presentes nas plantas e nos animais, as bactrias somais complexas do que os vrus, que so essencialmente nada mais que filamentos expostos decdigo gentico, incapazes de sobreviver e se reproduzir sem a contaminao de umorganismo hospedeiro. Em termos absolutos, as bactrias so, de longe, os mais bem-sucedidos organismos do planeta. Um centmetro quadrado de pele contm, muitoprovavelmente, cem mil clulas distintas de bactrias; um barril cheio de terra conteriabilhes e bilhes. Alguns especialistas acreditam que, apesar de seu tamanho diminuto (grossomodo, seu comprimento corresponde a um milionsimo de metro), o reino das bactrias talvezseja a maior forma de vida em termos de biomassa.

    Mais impressionante do que os nmeros absolutos, porm, a diversidade de estilos de

  • vida das bactrias. Todos os organismos que se originam da complexa clula eucaritica(plantas, animais, fungos) sobrevivem graas a uma de duas estratgias metablicas bsicas:fotossntese ou respirao aerbica. Pode haver uma surpreendente diversidade no universoda vida multicelular baleias, vivas-negras e sequias-gigantes , mas por trs de toda essadiversidade encontram-se duas opes fundamentais para a manuteno da vida: respirar o are capturar a luz do Sol. As bactrias, por sua vez, mantm-se vivas graas a uma fascinantevariedade de formas: consomem nitrognio diretamente do ar, extraem energia do enxofre,vicejam nas guas profundas e ferventes dos vulces marinhos, vivem aos milhes em ummero clon humano (como o faz a Escherichia coli). Sem as inovaes metablicasexploradas pelas bactrias, no teramos literalmente mais ar para respirar. Com exceo dealguns poucos compostos incomuns (entre os quais o veneno de cobra), as bactrias podemprocessar todas as molculas da vida, o que as torna tanto um fornecedor essencial de energiapara o planeta como seu principal reciclador. Como Stephen Jay Gould argumentou em seulivro Full House, embora a Era dos Dinossauros ou a Era do Homem encham os sales dosmuseus, na verdade, desde os dias da sopa primordial, houve uma longa Era das Bactrias emnosso planeta. O restante de ns mero adendo ao plano original.

    O NOME CIENTFICO DA BACTRIA do clera Vibrio cholerae. Vista atravs de um microscpioeletrnico, a bactria assemelha-se a um amendoim flutuante um bastonete encurvado comuma cauda fina e giratria, denominada flagelo, que impulsiona o organismo de modosemelhante ao motor de popa de uma lancha. Isoladamente, uma nica bactria Vibriocholerae inofensiva ao homem. necessrio algo em torno de um milho e cem milhes deorganismos, dependendo da acidez do estmago, para contrair a doena. Como nossas mentesenfrentam certa dificuldade para compreender a escala da vida no microcosmo da existnciabacteriana, cem bilhes de micrbios soam, a um primeiro momento, como uma quantidadedescabida para uma ingesto acidental. No entanto, apenas para que sejam perceptveis a olhonu, so necessrios cerca de dez bilhes de bactrias em um mililitro de gua. (Um mililitrocorresponde, grosso modo, a 0,4% quatro milsimos de uma xcara.) Um copo de guacontm facilmente duzentos milhes de Vibrio cholerae sem o menor indcio de sujeira.

    Para que essas bactrias representem algum perigo, preciso ingerir essas pequenascriaturas: o mero contato fsico no provoca a doena. O Vibrio cholerae precisa encontrarum caminho at o intestino delgado do homem. Nesse momento, lana um duplo ataque.Primeiro, uma protena chamada Pilis TCP auxilia a bactria a reproduzir-se em umavelocidade impressionante, firmando o organismo em uma densa superfcie, feita de centenasde camadas, que recobrem a parede do intestino. Nessa rpida exploso populacional, asbactrias injetam uma toxina nas clulas intestinais. A toxina do clera, por fim, rompe um dosprincipais papis metablicos do intestino delgado: o de manter um nvel balanceado de guano corpo. nas paredes do intestino delgado que esto as clulas que absorvem a gua e adistribuem para o restante do corpo, bem como as clulas que secretam a gua que acabasendo eliminada pelo organismo. Em um corpo saudvel e hidratado, o intestino delgadoabsorve mais gua do que expele, mas uma invaso de Vibrio cholerae inverte esse equilbrio:a toxina do clera ludibria as clulas, que passam a expelir gua em nveis prodigiosos, tantoque, em casos extremos, h registro de pessoas que perderam at 30% de seu peso em poucas

  • horas. (Alguns dizem que o prprio nome cholera deriva da palavra grega para calha,evocando as torrentes de gua que fluem aps uma tempestade.) Os fluidos expelidos contmlascas das clulas epiteliais do intestino delgado (as partculas brancas que inspiraram adescrio de gua de arroz). Contm igualmente uma macia quantidade de Vibrio cholerae.Um ataque de clera pode resultar em uma emisso de at vinte litros de lquido, com umaconcentrao de Vibrio cholerae de cerca de cem milhes por mililitro.

    Em outras palavras, a ingesto acidental de um milho de Vibrio cholerae pode produzirum trilho de novas bactrias no decorrer de trs ou quatro dias. De fato, o organismoconverte o corpo humano em uma fbrica para se multiplicar na ordem de milhes. E, caso afbrica no sobreviva mais que alguns dias, que assim seja. Em geral, h outra nasproximidades para colonizar.

    DIFCIL DETERMINAR A VERDADEIRA causa da morte por clera; a dependncia do corpohumano em relao gua to profunda que praticamente todos os principais sistemascomeam a falhar quando tamanha quantidade de lquido evacuada em um perodo de tempoto curto. A morte por desidratao , em certo sentido, uma negao prpria origem da vidasobre a Terra. Nossos antepassados se desenvolveram primeiro nos oceanos do jovem planetae, quando alguns organismos conseguiram se adaptar vida terrestre, nossos corposmantiveram a memria gentica de nossa origem aqutica. Para todos os animais, afecundao se desenrola em algum ambiente lquido; o embrio flutua no tero; o sanguehumano tem praticamente a mesma concentrao de sais da gua do mar. Algumas espciesde animais que se adaptaram totalmente terra o fizeram por meio do ardil de levar consigoseu antigo ambiente, escreve a biloga evolucionista Lynn Margulis. Nenhum animalconseguiu abandonar por completo o microcosmo aqutico. No importa quo alto e secoseja o topo da montanha, no importa quo isolado e moderno o abrigo, suamos e choramos oque basicamente gua do mar.

    O primeiro efeito significativo provocado por uma grave desidratao a reduo dovolume de sangue em circulao no corpo; medida que perde gua, o sangue fica cada vezmais denso. Com a diminuio do volume, o corao passa a bombear mais rpido a fim demanter a presso sangnea estvel e os rgos vitais o crebro e os rins emfuncionamento. Nessa triagem interna, rgos no-vitais, como a vescula biliar e o bao,comeam a entrar em colapso. Os vasos sangneos das extremidades contraem, criando umasensao de formigamento persistente. Como o crebro continua a receber um fornecimentosuficiente de sangue nesse estgio inicial, a vtima do clera mantm uma conscincia agudado ataque que o Vibrio cholerae lanou contra seu corpo.

    Por fim, o corao torna-se incapaz de manter a presso sangnea adequada e instala-se ahipotenso. O corao bombeia em um ritmo frentico, enquanto os rins lutam para conservara maior quantidade de lquido possvel. A mente torna-se enevoada; algumas vtimas ficamatordoadas ou, at mesmo, desmaiam. As terrveis evacuaes de gua de arroz continuam.At a, a vtima do clera pode ter perdido mais de 10% de seu peso corporal em menos devinte e quatro horas. Quando os rins finalmente comeam a falhar, a corrente sangnea recria,em menor escala, a crise de manejo de resduos que contribuiu para a propagao do cleraem tantas grandes cidades: excrementos acumulam-se no sangue, fomentando um estado a que

  • se denomina uremia. A vtima fica inconsciente ou mesmo em coma; os rgos vitais comeama entrar em colapso. Em poucas horas, a vtima est morta.

    Mas, a seu redor, em seus lenis encharcados, nas tinas de gua de arroz ao lado da cama,nas fossas e nos esgotos, h novas formas de vida trilhes delas , aguardandopacientemente para infectar outro hospedeiro.

    S VEZES FALAMOS QUE OS ORGANISMOS desejam certos ambientes, ainda que, em si, notenham de fato qualquer conscincia, qualquer senso de desejo, no sentido humano da palavra.O desejo nesse caso uma questo de fins, e no de meios: o organismo deseja certo ambientequando este lhe permite reproduzir-se com mais eficincia do que em outros: um camaromarinho deseja gua salgada, um cupim deseja madeira podre. Colocando-o no ambientedesejado, o organismo aparecer em abundncia no mundo; retirando-o dali, ele escassear.

    Nesse sentido, o que a bactria Vibrio cholerae deseja, mais do que tudo, um ambienteno qual seres humanos possuam o hbito regular de comer o excremento de outras pessoas. OVibrio cholerae no pode ser transmitido atravs do ar ou at mesmo atravs da troca damaioria dos fluidos corporais. O principal meio de transmisso quase invariavelmente omesmo: uma pessoa infectada expele a bactria durante um dos violentos ataques de diarria,marca registrada da doena, e outra pessoa de algum modo engole algumas dessas bactrias,em geral atravs do consumo de gua contaminada. Acrescente-se a isso um contexto no qual aingesto de excrementos seja uma prtica comum, e o clera se propagar apossando-se deum intestino aps outro, com o intuito de produzir mais bactrias.

    Em grande parte da histria do Homo sapiens, essa dependncia da ingesto deexcrementos significava que a bactria do clera tinha um alcance limitado. Desde a aurora dacivilizao, a cultura humana tem demonstrado uma notvel aptido para a diversidade, noentanto o ato de comer dejetos humanos talvez esteja to prximo de ser um tabu universalquanto qualquer outro que se conhea. E, portanto, sem uma prtica difundida de consumo dedejetos alheios, o clera permanecia confinado a seu lar original, nas guas repugnantes dodelta do Ganges, sobrevivendo de uma dieta de plnctons.

    Na prtica, a transmisso da doena por meio do contato fsico com vtimas do clera no impossvel, mas o risco de que isso ocorra mnimo. Ao manipular roupas infectadas, porexemplo, uma colnia invisvel de Vibrio cholerae pode se instalar sob as unhas, que, casono sejam lavadas, podem chegar boca durante a refeio e, pouco depois, comear sua letalmultiplicao no intestino delgado. Do ponto de vista do clera, no entanto, isso em geraluma forma ineficiente de reproduo: somente um pequeno nmero de pessoas est sujeito atocar os dejetos imediatos de outro ser humano, particularmente de algum que esteja sofrendode uma doena to violenta e mortal. E, mesmo que algumas bactrias tivessem a sorte de sealojar em um dedo errante, no h qualquer garantia de que sobreviveriam tempo suficientepara chegar ao intestino delgado.

    Por milhares de anos, o clera manteve-se, em larga medida, sob controle em virtudedestes dois fatores: os seres humanos, em sua maioria, no eram propensos a consumirconscientemente os excrementos uns dos outros e, nas raras ocasies em que ingeriam

  • acidentalmente dejetos humanos, o ciclo dificilmente voltava a se repetir, impedindo, assim,que as bactrias encontrassem um ponto de inflexo a partir do qual pudessem se expandir emmeio populao em taxas crescentes, semelhante forma como doenas mais facilmentetransmissveis, como gripe e varola, sabidamente o fazem.

    Foi ento que, aps inmeros anos de luta pela sobrevivncia atravs das poucas rotas detransmisso sua disposio, o Vibrio cholerae tirou a sorte grande. Os seres humanoscomearam a se reunir em reas urbanas com densidades populacionais que excediam tudo oque jamais se registrara na histria: cinqenta pessoas amontoadas em uma casa de quatroandares, cem em um nico quilmetro quadrado. As cidades ficaram esmagadas pelaimundcie do homem. E essas mesmas cidades estavam cada vez mais interligadas pelas rotasde navegao dos grandes imprios e corporaes da poca. Quando o prncipe Albertanunciou pela primeira vez sua idia a respeito de uma Grande Exposio, seu discursoinclua as seguintes linhas utpicas: Vivemos um maravilhoso momento de transio, quetende rapidamente a atingir aquela grandiosa era para a qual, de fato, toda a histria aponta: arealizao da unificao da humanidade. A humanidade estava, sem dvida, unificando-se,mas os resultados estavam longe de ser maravilhosos. As condies sanitrias de Dlhipodiam afetar diretamente as de Londres e Paris. No era apenas a humanidade que seaproximava; mas tambm seus intestinos delgados.

    Inevitavelmente, nesses vastos novos espaos metropolitanos, com suas redes globais decomrcio, as linhas se cruzavam: a gua potvel foi contaminada pelos esgotos. A ingesto depequenas partculas de dejetos humanos deixou de ser uma anomalia para colocar-se no centroda vida cotidiana. Isso foi uma tima notcia para o Vibrio cholerae.

    A contaminao da gua potvel nos densos centros populacionais no afeta apenas onmero de Vibrio cholerae em circulao nos intestinos delgados da humanidade. Aumentatambm, em grande medida, a virulncia da bactria. esse um princpio evolucionrio hmuito observado em populaes de micrbios que disseminam doenas. Bactrias e vrus seexpandem em nveis muito mais elevados do que os humanos, por vrias razes. Em primeirolugar, os ciclos de vida das bactrias so incrivelmente rpidos: uma nica bactria podeproduzir um milho de descendentes em questo de horas. Cada nova gerao abre novaspossibilidades para uma inovao gentica, seja por novas combinaes dos genes existentes,seja por mutaes aleatrias. A mudana gentica humana infinitamente mais lenta;precisamos transmitir por todo um processo de maturao, ao longo de quinze anos, antes depensarmos em transmitir nossos genes para as geraes seguintes.

    As bactrias contam ainda com outra arma em seu arsenal. Ao transmitir seus genes, elasno esto limitadas ao modelo controlado e linear dos organismos multicelulares. Com osmicrbios, as possibilidades so muitas. Uma seqncia aleatria de DNA pode flutuar emdireo clula de uma bactria prxima e, de imediato, ser recrutada para desempenharnovas e cruciais funes. Estamos to acostumados com a transmisso vertical de DNA de paipara filho que a idia de emprestar pequenos pedaos de cdigo gentico nos parece absurda,mas isso um mero preconceito de nossa existncia eucaritica. No reino invisvel dos vruse das bactrias, os genes se movem de uma forma muito mais indiscriminada, criando muitascombinaes desastrosas, mas tambm, claro, disseminando estratgias inovadoras commais rapidez. Como Lynn Margulis escreveu: Fundamentalmente, todas as bactrias domundo tm acesso a um nico caldo gentico e, portanto, aos mecanismos adaptativos de todo

  • o reino bacteriano. A velocidade da recombinao superior da mutao: um organismoeucaritico poderia levar milhes de anos para se ajustar a uma mudana em escala mundial,ao passo que as bactrias o fazem em poucos anos.

    Desse modo, bactrias como a Vibrio cholerae so eminentemente capazes de desenvolverrpidas e novas caractersticas em resposta s mudanas ambientais em particular a umamudana que torne significativamente mais fcil sua reproduo. Em geral, um organismocomo o Vibrio cholerae se defronta com uma difcil anlise de custobenefcio: umavariedade particularmente letal pode fazer incalculveis bilhes de cpias de si mesma emuma questo de horas, mas, em geral, o sucesso reprodutivo extermina o corpo humano quetorna possvel essa reproduo. Se esses bilhes de cpias no tiverem um rpido acesso aoutro trato intestinal, todo o processo se d em vo; em razo de sua prpria virulncia, osgenes tornam-se incapazes de produzir novas cpias de si mesmos. Em ambientes em que orisco de transmisso baixo, a melhor estratgia promover um ataque de baixa intensidadecontra o hospedeiro humano: reproduzir em nveis controlados e manter o ser humano vivomais tempo, na esperana de que, de uma hora para outra, algumas molculas bacterianastenham acesso a outro intestino, no qual todo o processo possa recomear.

    Mas um denso aglomerado urbano, abastecido com gua contaminada, elimina o dilema doVibrio cholerae. No h qualquer incentivo para que no se reproduza do modo mais violentopossvel e, por conseqncia, eliminar o hospedeiro o mais breve possvel , pois hgrandes possibilidades de que as evacuaes do atual hospedeiro sejam rapidamentedirecionadas para outro trato intestinal. Dessa forma, as bactrias podem investir toda a suaenergia na reproduo e esquecer a longevidade.

    claro que as bactrias no tm a menor conscincia do desenvolvimento dessa estratgia,que progride por conta prpria medida que se altera o balano geral da populao de Vibriocholerae. Em ambientes com baixo nvel de transmisso, as variedades mais virulentasmorrem e as mais brandas apossam-se da populao. Em ambientes com alto nvel detransmisso, as variedades mais virulentas rapidamente superam em nmero as mais brandas.Nenhuma bactria isolada est consciente da anlise de custobenefcio, porm, graas suaincrvel capacidade de adaptao, so capazes de fazer a anlise de modo coletivo cadavida e morte isolada atua como uma espcie de voto em uma assemblia representativa demicrbios. No h qualquer tipo de conscincia na nfima bactria. No entanto, h umaespcie de inteligncia coletiva.

    Alm disso, at mesmo a conscincia humana tem seus limites. Ela tende a ser maisacurada na escala da existncia humana, mas to ignorante quanto uma bactria em outrasescalas. Quando os moradores de Londres e de outras grandes cidades passaram a seaglomerar em quantidade to extraordinria, quando comearam a construir sistemas maiselaborados para o acmulo e a remoo de lixo e a contaminar a gua potvel dos rios, assimo fizeram com uma verdadeira conscincia de seus atos, com uma clara estratgia em mente.No entanto, no tinham a menor conscincia do impacto que essas decises teriam sobre osmicrbios: no apenas por tornar as bactrias mais numerosas, mas tambm por modificar seuprprio cdigo gentico. O morador de Londres que usufrua a descarga de gua de suaprivada ou de cara proviso de gua fornecida pela South Water Company no s remodelavasua vida ntima a fim de torn-la mais cmoda e luxuosa, como tambm, involuntariamente,reformulava o DNA do Vibrio cholerae com suas aes. Ele o transformava em um assassino

  • mais eficiente.

    A TRGICA IRONIA DO CLERA que a doena possui uma cura surpreendentemente simples esensata: gua. As vtimas do clera que recebem gua e eletrlitos por via intravenosa eterapias orais seguramente sobrevivem doena, a ponto de numerosos estudosdeliberadamente infectarem voluntrios com a doena para analisar seus efeitos, sabendo queo programa de reidratao transforma o mal em um mero e desconfortvel ataque de diarria. plausvel imaginar que a cura pela gua pudesse ter ocorrido a alguns dos mdicos dapoca: afinal, os doentes estavam eliminando prodigiosas quantidades de gua. Em busca deuma cura, no seria lgico comear com a reposio dos lquidos perdidos? E, de fato,Thomas Latta, um mdico britnico, defrontou-se exatamente com essa cura em 1832, mesesdepois do primeiro surto da doena, injetando gua salgada nas veias das vtimas. A nicadiferena da abordagem de Latta em relao aos tratamentos modernos diz respeito quantidade de lquido a ser reposto: so necessrios vrios litros de gua para assegurar atotal recuperao.

    Tragicamente, a soluo proposta por Latta se perdeu em meio imensa variedade de curaspara o clera que emergiram nas dcadas subseqentes A despeito de todos os avanostecnolgicos da Era Industrial, a medicina vitoriana no primava pelo rigor cientfico. Lendojornais e revistas mdicas da poca, o que se destaca no apenas a quantidade de remdiospropostos, mas a quantidade de pessoas envolvidas nesse debate: cirurgies, enfermeiras,charlates, autoridades da sade pblica, boticrios diletantes, todos escrevendo para o Timese o Globe ou ali publicando anncios pagos sobre as curas infalveis que haviaminventado.

    Essas infindveis notcias refletem uma estranha superposio histrica, que em grandemedida j superamos o perodo que se segue ascenso dos meios de comunicao demassa, mas que antecede o surgimento de uma cincia mdica especializada. Pessoas comunsh muito cultivavam remdios populares e diagnsticos simplrios, mas at o surgimento dosjornais, no tinham um frum mais amplo para a difuso de suas descobertas. Ao mesmotempo, a diviso do trabalho mdico que hoje consideramos natural pela qual pesquisadoresanalisam doenas e possveis curas, e mdicos prescrevem essas curas baseando-se nasmelhores investigaes cientficas atingiu apenas um estgio embrionrio na Era Vitoriana.Havia um sistema mdico em formao mais bem representado pelo proeminente jornal TheLancet , mas sua autoridade estava longe de ser incontestvel. No se exigia um diplomaacadmico para que se pudesse compartilhar com o mundo a cura para o reumatismo ou ocncer da tireide. Na maioria dos casos, isso significava que, nos jornais da poca,abundavam as promessas s vezes cmicas, e quase sempre incuas, de curas fceis paradoenas que se provavam muito mais difceis de serem combatidas do que apregoavam oscharlates. Esse sistema anrquico, no entanto, tornou igualmente possvel que verdadeirosvisionrios se movimentassem ao redor do establishment, principalmente quando este nodava importncia aos critrios cientficos.

    O sucesso dos tratamentos charlatanescos tiveram um inesperado efeito colateral: ajudou acriar toda uma retrica de propaganda bem como um modelo de negcios para jornais e

  • revistas que perdurou por mais de um sculo. No fim do sculo XIX, fabricantes demedicamentos eram os principais anunciantes no meio jornalstico, e, como o historiador TomStandage observa, estavam entre os primeiros a reconhecer a importncia das marcas e dapublicidade, dos slogans e dos logotipos Uma vez que, em geral, a fabricao dosremdios era, em si, muito barata, era coerente gastar dinheiro com marketing. Hoje se tornouum verdadeiro lugar-comum afirmar que vivemos em uma sociedade na qual a imagem maisvalorizada do que a essncia, na qual nossos desejos so continuamente alimentados pelocombustvel ilusrio das mensagens publicitrias. Na verdade, essa condio remonta quelasestranhas notcias que se espalhavam pelas colunas dos jornais vitorianos, prometendo umainfindvel ladainha de curas engarrafadas em um elixir maravilhosamente barato.

    No surpreende que a indstria de medicamentos estivesse vida para prover a cura para amais ameaadora doena do sculo XIX. Em agosto de 1854, um incauto leitor dosclassificados do Times londrino poderia facilmente presumir que o clera estava prestes a sairde cena, em vista de todas as curas que pareciam disposio:

    FEBRE E CLERA. O ar de cada cmodo em que apareceu a doena deve ser purificado com o uso do FluidoPurificador de Ar Saunder. Esse poderoso desinfetante