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DA IMPRESSIONANTE HISTÓRIA DO HOMEM QUE PRECISAVA PARIR UM MACACO E DE SEU ENCONTRO COM A MULHER QUE QUERIA VIRAR PLACA GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO 2008

Da impressionante história do homem que precisava

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DA IMPRESSIONANTE HISTÓRIA DO HOMEM QUE PRECISAVA PARIR UM MACACO E DE SEU ENCONTRO COM A MULHER QUE QUERIA VIRAR PLACA - GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO - 2008

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Page 1: Da impressionante história do homem que precisava

DA IMPRESSIONANTE HISTÓRIA DO HOMEM QUE

PRECISAVA PARIR UM MACACO E DE SEU ENCONTRO

COM A MULHER QUE QUERIA VIRAR PLACA

GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO

2008

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A Jocélia e Alexandre, pelo

sirigado encantado que

partilhamos juntos; um daqueles

pedaços, não sei se, no momento,

macho ou fêmea, inspirou-me

bastante a entender o destino do

homem do macaco e a verdade da

mulher da placa.

* A pintura que ilustra a capa é um auto-retrato de Vincent van Gogh.

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Numa de minhas viagens ao inaudito conheci um homem muito

interessante. Era diferente de todas as pessoas que tinha conhecido

na vida. Além de sua aparência carismática, possuía uma capacidade

extraordinária de falar de suas experiências, como se seu íntimo

tivesse sido forjado em algum mundo mitológico, daqueles de que só

temos notícia nos livros sobre os deuses e nos filmes acerca dos

homens.

De alguma forma, ele me chamou a atenção. Estava sozinho

dando comida aos insaciáveis pombos dos jardins de Rodin, quando

fui chegando perto e, subitamente, fitou-me e disse uma frase em

português familiar: “decifra-me ou devoro-te”.

- O senhor fala português? - Perguntei admirado com o possível

conterrâneo tantos oceanos distantes de casa.

- O homem fala bem mais do que pode pensar, meu filho. Os

sentimentos expressos em seu rosto dizem muito sobre os seus

desejos e a mim não é difícil interpretá-los, pois tenho vivido a procura

de solucionar enigmas e, nesse movimento, expando muito a minha

concepção sobre o mundo, as pessoas e o cosmos.

- Afinal, o senhor decifra enigmas ou os propõe?

- Na verdade, tenho um enigma para resolver e sempre proponho

algum para quem julgo interessante, na esperança de que essa

pessoa, quem sabe, possa ajudar a resolver o meu dilema. Ele

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somente pode ser compreendido por alguém que um dia tenha

encontrado a Caipora, o Saci-Pererê, o Minotauro, Édipo, Prometeu,

Hércules, Medusa, o barqueiro do Estige, D. Quixote, os quatro

mosqueteiros, o Conde de Monte Cristo, Eurípedes Waldick Soriano, a

perna cabeluda, a quintessência invisível das nuvens ou o próprio

espelho de Dorian Gray.

- Esse é mais um enigma? O senhor julga que posso ajudá-lo?

- A minha percepção não é deste mundo e peno bastante para

conformar o que vejo com o que sou capaz de perceber. Não foi a

idade que me fez assim, mas posso perceber na vida marcada em

suas expressões matizes invisíveis aos seus olhos. Isso lhe posso

revelar, se você puder ouvir um pouco sobre o enigma que busco

decifrar ainda durante esta vida, que cada dia se passa mais rápido e

me encanece os cabelos e a alma.

- É claro que posso escutá-lo! Estou mesmo com a impressão de

que esse local é muito diferente, onde a gente pode sentir a pulsação

dos quadros e a leveza dos movimentos das bailarinas das estátuas

de mármore. Não era de se estranhar que eu encontrasse um pedaço

de minha casa e de meus amigos por aqui. Estou no lugar mais longe

que já estive de casa até agora, mas parece que acabei de chegar ao

quintal de minha avó, aquele que já não existe mais. Resta guardado

apenas em minhas lembranças.

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- Obrigado, tenha um pouco de paciência e se prepare para ouvir

a história de minha vida, que acabará logo que eu encontrar a parte de

mim que você carrega consigo e não consegue expressar, exatamente

como aqueles nossos segredos mais guardados, que somente os

outros é que deles sabem dizer.

- Para que você possa entender o meu metamoforseamento

itinerante, vou lhe contar uma história, a impressionante história do

homem que precisava parir um macaco.

Sempre fui interessado em saber como nasciam os mitos, parece

que realmente trazemos gotas de espíritos antepassados em nossos

pedaços pequenos (alguns querem colocar tudo isso só em genes),

que nos asseguram desde sempre alguma experiência e sabedoria de

uma inconsciência com existência em dimensões não aparentes.

De outro modo, parece que, se não temos um destino traçado em

definitivo, recebemos muitas outras influências passadas, além das

meramente culturais, mas somos livres para viver ou morrer.

Na verdade, ao homem, na busca de si mesmo, é passagem

obrigatória a investigação sobre as próprias origens, o que

necessariamente implica saber sobre a origem de Deus, do mito, do

cosmo.

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Sempre me fascinou a origem do mito, e eu, então, procurei saber

como havia sido o meu nascimento, para ter alguma indicação do que

poderia ser no futuro.

Nasci em um dia ensolarado de um grande inverno, que inundou

as ruas da vila e provocou o alagamento de muitas casas, fazendo

com que as pessoas saíssem nadando para tentar sobreviver ao que

parecia o próprio aguaceiro de Noé.

A situação era periclitante e eu fiquei isolado em casa com minha

mãe à espera de socorro, que, entretanto, estava demorando a vir.

Ela, que entendia bastante de ter esperança, rogou ao príncipe Moisés

do Egito, aquele que foi retirado das águas e depois abriu o Mar

Vermelho, para que tirasse o filho dela dali. E realmente foi atendida.

Fui retirado das águas do rio pelas mãos de um tratorista,

chamado Andrezinho Menescal, que, antes de voar pela última vez na

Amazônia de seus sonhos, nos resgatou num imensa Caterpillar

amarelo e nos embarcou de volta às terras de meu pai, onde um

pequeno varão sempre representava o desejo de continuação dos

feitos dos antepassados.

Se você perceber, amigo, tive um nascimento até que mais ou

menos mitológico, mas depois fui percebendo que os mitos, os

mártires ou os heróis somente o podem ser à custa de muita pancada,

pois parece mesmo que somente os grandes sofrimentos são capazes

de guindar alguém a uma quintessência diferenciada. Veja, por

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exemplo, a vida daquele bom homem que todos ainda hoje querem

massacrar, chamando-o de Deus.

O fato era que eu de certa forma também tinha sido tirado das

águas, o que era um bom começo para virar herói, sendo certo que os

deuses já haviam me dado alguma tradição familiar e uma vontade

inigualável de conhecer o mundo e a humanidade, o que talvez desse

para começar a brilhar.

Foi então que ouvir falar de umas pessoas da cidade que ficaram

ricas e famosas porque fizeram um contrato com o Diabo, que, em

troca de alguma coisa que eu não sabia o que, fazia que tais pessoas

conhecessem de forma definitiva o sucesso.

Evidentemente, para quem é muito pequeno e quer virar mito

parece razoável um colóquio com o Capeta, figura simbólica de

extensa carreira junto à humanidade e que parece integrar uma parte

inexpugnável do humano.

Pois, muito bem. Cacei o cachorrão em toda cidade, procurando

um tal carro vermelho em algum forrozinho existente na comuna.

Confesso que me intrigou um pouco saber que era possível encontrar

o tinhoso andando de carro por aí e nunca ter tido nenhuma

informação semelhante sobre Deus, sempre parado, pregado naquela

cruz. Se tivessem me dito que Deus estava vivo e podia se mexer,

tudo teria sido diferente para mim.

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Numa noite escura finalmente encontrei o encardido. O bicho

estava fantasiado de Flávio Galvão, tinha realmente um carro

vermelho e assustava o pessoal na novela Corpo a Corpo da Rede

Globo.

De fato, eu descobri a morada do diacho e ela estava na sala e

nos quartos de quase todo mundo do País. Se eu soubesse que era

fácil assim falar com o Demo, tinha pedido um exorcismo bem feito lá

em casa, para evitar tanta intimidade.

Na caixinha do diabo, porém, conheci o mundo, que insistia em

dizer que eu só poderia ser alguém se tivesse dinheiro, sucesso e

outros artifícios do Coisa-Ruim para mandar a gente para o inferno.

Diziam nessa época que havia gente querendo até sociedade com

o Capeta, que costumava enganar os sócios com máquinas e

engenhocas sofisticadas, capazes de fabricar dinheiro e violência para

sempre, até o dia que algum descendente da família nascesse puro de

coração, o que livrava toda a família do pacto com o Demo, mas

produzia um aleijão num dos membros no herói libertador, que teria de

sofrer exemplarmente na vida até o nascimento de seu primeiro filho,

que só sendo menina o libertaria para sempre de seu estigma. Eu

conheci esse homem, e sua filha também.

Foi mesmo na invenção do Maldito, entretanto, que eu aprendi a

ser ambicioso e a cobiçar o mundo, não demorando muito para ela me

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sugerir que eu tinha talento e vocação para comandar, que o mundo

podia ser meu, que eu era um líder nato.

Então, finalmente eu fiz um pacto com o Rabudo, o qual garantiu

que eu ia entrar para o que de melhor poderia existir na terra em

termos de ganância e poder: a política. Em troca, eu apenas precisaria

ser político de verdade, pois o ”destroço” vinha naturalmente da

carreira.

O Cachorrão prometeu e me fez sonhar ser prefeito, deputado,

governador, senador, presidente...tudo em virtude de meu desejo de

virar mito, de entrar para a história, sonho que qualquer televisãozinha

de catorze polegadas pode simplesmente desvirtuar e violentar numa

criança.

O preço pelo pacto depois se evidenciou, pois como nos casos

típicos de diabrice, o Bode-Preto queria a minha alma em troca da

Prefeitura, da Assembléia, do Senado e da Presidência.

Em matéria de acordo com o Cramulhano tudo estava como

sempre foi, a alma do inocente era desejada para o sacrifício, mas o

processo de entrega da alma é que agora era diferente.

Pois é, o diabo está se sofisticando. Organizou a entrega da alma

como um processo, dividido em eleições, durante a trajetória política

de sucesso. A cada nova etapa, mais e mais a pessoa vai perdendo a

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alma para o espírito de Maquiavel, para a insensibilidade e a maior

característica do político de sucesso: o narcisismo exarcebado.

Então, a pessoa vai progredindo e se sentido cada vez mais útil à

humanidade, que já não poderá viver sem ela, exercendo o poder

diuturnamente para favorecer os seus e destruir os demais, mas

sempre posando de estadista para toda a Nação.

Esse processo diabólico de troca política da alma acaba sempre

acontecendo, com menor ou maior intensidade, com todas as pessoas

que enveredam pelos caminhos da política-partidária, mas o Maligno

previa um futuro brilhante para mim, que parecia querer tanto entrar

para a história.

Até tentei começar a rezar na cartilha do cão, mas tinha feito um

catecismo muito bom acerca dos verdadeiros valores da humanidade,

e logo percebi que o meu sonho inocente de querer virar mito tinha

sido vilmente manipulado e me transformaria numa górgona

assustadora, jamais em Prometeu ou Hércules. Entendi, por

conseguinte, que dessa forma não seria um herói mitológico.

Então, decidi romper o contrato com o diabo. Não sabia como isso

era possível. Então, me formei em Direito para tentar encontrar uma

forma de distrato. Mas, o Excomungado, no entanto, se recusou

terminantemente a me liberar da avença.

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Foi mesmo na faculdade que eu aprendi o sentido da palavra

recorrer, pois, na estrutura da jurisdição, há sempre um órgão superior

para a quem a gente pode apelar, já que dizem que o erro e maldade

estão em todo o lugar, principalmente no juízo das pessoas.

Lembrei-me de que na vida sempre a gente também pode apelar

para um ser superior: Deus. Assim o fiz.

Meu primeiro problema foi encontrar Deus para entregar o meu

recurso. Nem procurei na televisão porque já tava ocupada. Saí por aí

perguntando, estudando, procurando...e nada.

Até que um dia um homem surgiu repentinamente em minha

garagem e me surpreendeu na janela do carro.

- Dê me uma ajuda!

Apesar de cabreiro, pois o tal homem desconhecido estava

estranho e tinha aparecido do nada, baixei o vidro e lhei um óbolo de

cinqüenta centavos.

Agradeceu e pediu uma carona. Olhei de novo aquele estranho

gigante negro musculoso e mal-encarado. Pensei, sinceramente, que

estava sendo vítima de um assalto ou seqüestro.

Não pude impedi-lo. Ele então me contou de sua libertação do

presídio, naquele dia mesmo, de todos aqueles que matou para roubar

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e dos sete filhos que tinha. Pedro Ventura apreciou minha gentileza e

se ofereceu para “qualquer coisa”. Tive tanto medo que inventei

precisar ir à farmácia e deixá-lo no caminho. Ao se despedir,

agradeceu, deu-me o aperto de mão mais forte de todos os tempos, e

disse-me circunspecto: “nós estamos dentro de Deus, você está no

meio de Deus; e eu também estou no centro de dEUs”.

Dizem os estudiosos do inconsciente que o homem perdeu a sua

capacidade de se comunicar diretamente com Deus, que agora só se

manifestaria nos sonhos. A certeza da existência daquele homem está

perpetuada no arrepio freqüente da minha espinha e o encontro com

Deus eu finalmente o tive, dormindo, logo em seguida.

Deus me explicou em sonho que o pacto com o Sarnento é um ato

de gravíssima implicação e que somente seria permitida uma solução

acaso eu aceitasse voluntariamente me submeter a uma técnica de

convencimento muito utilizada por Moisés: a submissão às pragas.

- Claro, Abba, eu aceito!

Pois bem. Essa técnica muito eficiente, capaz até de regenerar

todos os meus sonhos de menino desvirtuados pelo mundo, consiste

realmente numa praga, com a qual se tem que conviver pelo resto da

vida.

Por essa praga, a pessoa pode experimentar muito sofrimento e

sensações estranhas, que permitem a percepção profunda sobre o

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homem e o mundo, levando o ser ao ápice da compreensão, mas que

desestrutura o corpo, fazendo-o convulsionar e enlouquecer com tudo

aquilo que por um instante lhe foi dado enxergar, colocando-o perante

a desafios reais somente possíveis aos vocacionados à perpetuação

mitológica, ao encontro com figuras excepcionais em suas diferenças,

muitas delas, como Caronte, mensageiras da morte.

Esse, em verdade, é um processo de cura da alma vendida e

exige que a pessoa se supere a cada dia. Ao contrário do que pode

parecer, é um maravilhoso remédio divino, que regenera e pode

proporcionar o desejado nascimento da própria lenda.

Para chegar-se à cura completa e ao êxtase anímico, com a

realização de todos os sonhos, inclusive o de entrar para história

virando herói, é preciso ainda realizar uma tarefa inaudita.

- E foi nessa hora que Deus me anunciou o maior enigma da

minha vida. O Pai olhou para mim e disse:

- Filho, eu te quero em Mim realizado, por isso para que tenhas

paz e possas cumprir a tua missão, terás que lutar diária e

silenciosamente pelo teu próximo, que não estará mais sob o teu

palanque; o teu aleijão não será tocado pelos demais, o teu nome não

aparecerá no trabalho que faças, e.... tu terás que parir um macaco.

Essas foram as últimas palavras de Deus para mim. Desde então

tenho me visto livre do Coisa-Ruim, carregando a minha sina de viver

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discretamente, somente nos bastidores, sem estar nunca no palco,

sem exercitar a minha verve de líder, escapando com meu trabalho

anônimo e minha praga benfazeja, que me permite conhecer a

humanidade pelo ângulo do amor, do sofrimento e da diferença, me

proporcionando uma existência muitíssimo rica, como jamais bens da

fortuna poderiam proporcionar.

Não tenho patrimônio; também não me foi dado permanecer com

essa parte do pacto, e vivo com aquilo que me é suficiente para bem

viver. Ainda hoje, no entanto, busco de todas as maneiras parir um

macaco para poder chegar onde sempre quis.

Compreendo que, na linguagem simbólica de Deus, eu não estaria

realmente obrigado a gestar e parir um símio para me libertar, mas,

até hoje, não compreendi o que o Criador quis dizer com esse enigma

que jamais consegui decifrar.

- Você teria alguma idéia, meu amigo?

- Meu bom velho: é claro que um jovem ruão como eu jamais

poderia entender tão mística intenção. Parece que o propósito de

Deus em sua vida é um mistério, daqueles que nossas almas

precisam de muitas vidas para solucionar.

Posso lhe contar, entretanto, a história de uma mulher que, assim

como o senhor, queria adentrar a glória, ela queria virar placa; dessas

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placas de rua que carregam os nomes de pessoas que o tempo não

permite lembrar por muito tempo, nem quando é o endereço da gente.

Um encontro com ela talvez o ajude a esclarecer o enigma.

Ela também foi uma menina interessante, bem criada e de uma

família muito nobre. Parece que, de alguma forma, estudou na mesma

escola que a sua e assistiu aos mesmos programas de televisão, sem,

no entanto, precisar fazer nenhum pacto com ninguém, pois ela

realmente acreditava em sua sorte, carisma e poder. Além do mais

tinha muito apego à cidade, de modo que não pensava muito em se

largar para Brasília.

A menina também queria entrar para política e esse sonho era,

em verdade, parte de seu plano de virar placa. Havia nela uma

obstinação jamais vista.

De toda forma, a menina cresceu e encontrou uma maneira de

virar placa sem demora: virou parteira.

Confesso que nunca ouvi falar que a parteira tenha algum dia

trazido ao mundo senão legítimos seres humanos( macacos não são

muito freqüentes naquela região), mas certamente essa mulher trouxe

à vida pessoas e figuras extraordinárias, que a fizeram muito famosa e

garantiram uma linda placa em uma das ruas centrais da cidade.

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Num desses partos, contam que um velho homem amaldiçoado

pelo Asmodeu gerou uma criança secretamente com uma mulher

numa noite em que o Capiroto estava embriagado de si mesmo e

deixou de prestar atenção ao seu serviço.

O descuido do Chavelhudo ajudou a propiciar ao velho homem a

quebra de uma maldição de muitas gerações, segundo a qual todos os

filhos de sua estirpe deveriam morrer, até que o sangue deles fosse

suficiente para limpar os pecados de seus antepassados e dos

antepassados de seus grandes amores.

Nem tudo foi fácil assim, porém, pois o diabo voltou ao seu posto

e passou a procurar a mulher para ceifar a vida que ela havia

concebido em alegria. Foi um grande deus-nos-acuda, o velho

homem, tentando despistar a maldição, se afastou da cidade e formou

a convicção que a sua proximidade seria um grande risco para a

criança, já que era seu sangue que a marcava.

Numa noite de 13 de abril, o velho homem voltou secretamente à

cidade e foi diretamente falar com a parteira. Queria que ela colocasse

seu filho no mundo de uma maneira que o diabo não tomasse

conhecimento do fato.

A parteira lhe disse que não se preocupasse, que ninguém ia

tocar seu filho, pois ela o encantaria ainda na barriga da mãe, sem que

ninguém jamais o pudesse reconhecer.

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E assim foi feito, no dia do parto, de pai e mãe pretos autênticos,

nasceu um lindo menino louro, dos olhos azuis, que o diabo, ao ouvir o

choro distante, não pode reconhecer, procurando até hoje a criança do

velho homem pelas ruas da cidade.

Ainda não se sabe direito acerca da medicina da parteira, mas é

certo que ela ficou famosa em toda a região por ter enganado o

Azucrim e por conseguir trazer ao mundo uma espécie de gente que

pode ficar de toda cor, provando com isso que o branco pode nascer

do preto e vice-versa.

Como o feito da parteira foi verdadeiramente mitológico,

conseqüência natural foi a linda placa azul com letras brancas que foi

colocada no nome dela nas esquinas da cidade para todo o sempre,

pois o mundo nunca mais foi o mesmo com aqueles meninos e

meninas que podiam virar pretos ou brancos dependendo da

necessidade de amor entre os homens.

- Então, pensei que essa parteira talvez pudesse a ajudar a parir

seu macaco.

- De fato, essa mulher parece ser muito especial e fiquei com

alguma esperança em sua ciência, mas receio não poder mais

encontrá-la, uma vez que ela já virou placa e não deixou nada escrito

sobre os seus poderes; somente as letras de seu nome em tinta

branca e azul nas ruas da cidade.

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- Creio que um encontro somente com as placas da parteira não

será suficiente para amenizar o meu sofrimento. Parece que os seres

mitológicos só encontram seus caminhos na intimidade dos

sentimentos das pessoas de bom coração, dessas que param para

ouvir um velho solitário e doente num canto de um jardim distante,

como se fosse possível existir alguém assim fora das fortes

impressões causadas pela presença de um auto-retrato de eloqüência

extraordinariamente incomum.

De súbito, o homem desapareceu, ou, talvez, como ele mesmo

quis dizer, voltei a mim mesmo depois de fitar a enigmática figura do

expressionista de Zundert por um longo período.

Não sei como pude me deixar encantar pelos traços do pintor sem

que percebesse o momento exato no qual o homem que precisava

parir um macaco se preparava para partir... e isso me provocou

profunda tristeza, pois não pude ajudar num parto que parecia tão

essencial ao futuro de minha própria humanidade.

O tempo passou e nunca me esqueci daqueles instantes nos

jardins de Rodin.

Voltei para as minhas terras, sempre tentando descobrir uma

forma de conseguir ajudar o velho homem a realizar por completo o

seu destino.

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Numa dessas tentativas, encontrei o menino, agora homem, que a

parteira salvou enganando o diabo. Ele estava negro, no momento, e

tinha virado presidente dos Estados Unidos.

Perguntei-lhe se não sabia de nenhum segredo da parteira que

pudesse ajudar meu amigo velho a parir um macaco. Ele, então, me

respondeu em bom português:

- Homem de bom coração, por que procuras uma parteira para

trazer ao mundo o fruto do teu amor, do teu pecado e da tua

existência? O macaco ao qual queres dar vida por meio de parto só

nasce de doação, Jamais de ciência ou da intelecção!.

- O meu pai também sofreu como esse velho homem e, é

verdade, a parteira e a sorte o livraram da maldição do diabo, mas foi

o grande amor dele pela vida que o fez arriscar tudo para que eu

pudesse nascer, a fim de que seus grandes amores pudessem

finalmente parir seus filhos independentemente da cor deles.

- Meu pai tinha todos os filhos mortos antecipadamente no tempo

ainda no ventre das mães, até mesmo daquelas que ele ainda não

havia conhecido, e, contra isso, ele não podia mais lutar, mas a sua

ligação com a divindade, enquanto homem, foi um dom que nem

mesmo as más companhias ou a má saúde puderam destruir,

derrotando invisível e definitivamente o mal, que, ainda assim, sempre

está querendo sempre se perpetuar de alguma maneira.

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- Se você perceber, eu que nasci com a inusitada capacidade de

virar preto e virar branco, sou um verdadeiro macaco em diferença, de

uma raça derivada diretamente de Macunaíma, e que agora vai

organizar o mundo de maneira encantada, amorosa e tipicamente

brasileira, no comando da política mundial.

- Então, há esperança no parto de seu amigo. Ele parece,

entretanto, não poder resolver o problema sem a política, que é arte

do diabo para uns e a arte de enganar o Cão para outros, embora,

como você pode constatar, o capeta esteja sempre muito próximo

dessa atividade profissional.

- Apesar dessa visão de mundo, confesso que nunca conheci

política mais eficiente do que a de um velho carpinteiro lá das bandas

da Miraíma, parte indivisível de uma enorme pedra que nunca se

lascou, pois, fingindo que jamais morreu, ele continua fazendo

campanha até hoje, dando esperança a gente de um dia escapar

desse mundo para viver em plenitude o amor que aqui nos é tão caro

e impossível.

- Procure aconselhar seu velho amigo a doar um pouco de sua

humanidade para os amigos e as gerações futuras, esquecendo-se de

vez das placas, pois elas não dizem nada sobre o encanto que uma

bela história verdadeira pode produzir na alma das pessoas, ficando

penduradas nas paredes, sem conteúdo algum.

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- Diga-lhe para tirar da solidão aquela pessoa mais parecida com

Caroline, a menina que de maneira invisível escreveu no juízo o

verdadeiro mundo de Alice no país inventado de suas vidas, e que

descobriu, sem ter ciência, a face cruel do equilíbrio distante da

nobreza dos que morrem sem abraçar o macaco que só

aparentemente não pôde nascer.

- É preciso que a história daquela pessoa emplacada seja

repassada entre as gerações, como no caso da parteira, mas para

isso as novas gerações precisam ler, sentir e encarar, sem fantasia ou

mentiras de adultos embriagados com a própria dor, a verdadeira

história de seus antepassados, pois o amor só pode ser perpetuado no

encontro existencial com o outro, quase sempre comprometido com a

impossibilidade e com o erro, jamais na dança e nos ritos do poder e

das placas coloridas.

Confesso que nunca entendi suficientemente o homem preto que

virava branco e vice-versa. Parecia que ele sabia um daqueles meus

segredos que só os outros sabem, mas, desde esse encontro

inusitado, passei a escrever livretos, como este que está em suas

mãos agora, sobre as verdadeiras e importantes histórias da vida, na

esperança de que algum dia um deles possa ser lido pelo velho

homem que precisava parir um macaco ou por outra parteira que saiba

trazer ao mundo esse amor pelo outro, que, de tão diferente, ainda

precisa se disfarçar para poder nascer.