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Da Anatomia Medieval à Anatomia Moderna
Um pequeno ensaio a partir de Rembrandt
Gustavot Diaz
A retração da atitude científica medieval diante da Anatomia do corpo
humano corresponde a uma disposição de pensamento tutelada antes
pela letra que pelo espírito. O transcurso histórico do estudo da Anatomia
na Europa renascentista nos conduz à própria superação das tradições
clássicas, apresentando-se, contudo, como um panorama, não apenas de
rupturas, mas de contiguidades e repetições. Os avanços nessa área, até
então mal estruturada, demandaram a desconstrução e a reinvenção de
muitos processos, mecânicos e filosóficos – da concepção filosófica grega
à mediação mística entre o homem e o mundo pressuposta pela
escolástica – que até então ofereciam os pressupostos da relação do
homem com a morte e, portanto, com o próprio corpo morto. Da
Anatomia galênica cultuada na Idade Média até a metodologia de
Andreas Vesalius em seu monumental De humani corporis fabrica (1453)
vemos uma transformação qualitativamente dialética, contraditória e
complexa, que gerou consequências, tanto progressistas, quanto
retroativas às próprias origens, e cujo processo durou pelo menos
duzentos anos.
Quanto a um histórico do estudo da Anatomia, temos que no período
grego, embora as dissecações já fossem realizadas, grande parte delas teria se limitado à abertura de corpos de
animais; o próprio Aristóteles o teria feito. Embora os registros mencionem em geral o contrário, é de se imaginar que
a Grécia houvesse aglutinado um vasto repertório de Anatomia Humana, dada a monumentalidade e sofisticação não
apenas estética, como também técnica de suas produções, sobretudo no período helenístico, e alcançado um raro
nível de elegância formal. Mas esses conhecimentos não teriam, em sua maioria, chegado até nós. O primeiro grande
momento da história da Anatomia parece ter se dado na Escola Médica do Museu de Alexandria, fundada em 290 a.C.
durante a dinastia Tolemaica, no período helenístico, quando Tolomeo Sóter (o “Salvador”) – um dos principais
generais de Alexandre, o Grande, assume o reinado do Egito entre 305 e 284 a.C., e funda o Museion (“Templo das
Musas”), junto da Biblioteca de Alexandria. A Escola Médica empreendera diversas dissecações, dando um
importante passo ao estudo da Anatomia Humana.
Por volta de 300 a.C. aparece na Grécia a figura de Herófilo (região onde se situa atualmente a Turquia, 335 a.C. ? 280
a.C.), um dos maiores anatomistas gregos, pioneiro na dissecação de corpos humanos. Conferiu uma base concreta à
Anatomia e deixou contribuições aos estudos do cérebro, identificando-o como centro do sistema nervoso e sede da
inteligência, e compreendeu a distinção entre nervos motores e sensitivos. Também deste período data Erasístrato de
Chio (310 a.C. 250 a.C.), o primeiro a afirmar que as veias, à semelhança das artérias, tinham o coração como destino, e
a descrever as válvulas cardíacas. Após um período de relativa estagnação, aparecem Marino, vivendo em Roma no
tempo de Nero, e Rufo, oriundo da colônia grega de Éfeso. Marino não deixou escritos, mas seus ensinamentos foram
preservados pelo discípulo Claudius Galeno (Pérgamo, 129 d.C. Roma, 199). Galeno, além de haver traduzido as obras
de Herófilo (boa parte delas destruídas no incêndio da biblioteca de Alexandria), fora um importante médico grego,
cirurgião oficial dos gladiadores de Marco Aurélio e destacado seguidor da medicina de Hipócrates (Cós, Grécia, 460
a.C. Larissa, Tessália, 377). Um dos precursores da fisiologia experimental, Galeno legou investigações bastante
completas de Anatomia, como a organização dos nervos, veias e artérias, tendo realizado inclusive a vivissecção. A
maioria das suas dissecações, contudo, limitava-se a corpos de animais, em especial do macaco africano, uma vez que
a abertura de cadáveres humanos era considerada uma profanação religiosa rigorosamente proibida por lei. Mesmo
incorrendo em inúmeros equívocos, seja pela profusão de seus apontamentos, seja pela importância associada à sua
figura na corte de Marco Aurélio, seus escritos transformaram-se em paradigma durante o período histórico
posterior, constituindo-se efetivamente em dogma para a medicina medieval, juntamente ao Corpus hippocraticum
(tratado que a tradição atribui a Hipócrates), e aos Tópicos de Aristóteles.
Essa cristalização paradigmática paralisou
todo e qualquer avanço no estudo da
Anatomia. A ditatorial tutela da igreja sobre o
conhecimento no período escolástico
fomentou explicações divinas à origem das
doenças, sendo uma das maiores causas
adversas ao desenvolvimento consciente e
sistemático dos estudos médicos. Depois de
sumariamente proibidas durante toda a Idade
Média, as dissecações voltam a ser realizadas
no início do século XV, tendo alguns
importantes eventos atuado sobremaneira
neste processo: o crescente fortalecimento
das corporações de ofício/grêmios/guildas
medievais dos cirugiões-barbeiros; as grandes navegações que entraram em contato com novos métodos de
tratamento de doenças; a disponibilidade de investimentos nas técnicas de cura; a descoberta de terapêuticas
originadas a partir da apreensão da organização interna do corpo, o que estimulou estudos mais completos e o início
da especialização da medicina como disciplina autônoma do conhecimento. Todos esses fatores tiveram como moto
propulsor a ascensão da burguesia.
O desenvolvimento econômico desta classe associado à medicina criou imediatamente uma enorme demanda por
cadáveres, cuja obtenção foi facilitada com a dissecação pública de condenados à morte – único meio de
disponibilização legal de corpos na época. Este recurso não supria, porém, a exigência das escolas de Medicina, o que
encetou um mercado negro de cadáveres. A proibição que o catolicismo
impingiu à abertura de corpos gerou efeitos verdadeiramente
desastrosos. Um exemplo prototípico da violência suscitada foi quando
da fusão entre os grêmios dos barbeiros e dos cirurgiões em 1540 sob o
reinado de Henrique VIII. Embora tenha gerado um enorme
desenvolvimento no estudo da Anatomia na Inglaterra devido à
abundância de corpos (oriundos de enforcamentos), consta que no
primeiro ano da fusão referida a escola recebeu 4 corpos; nos últimos
anos do reinado, após a fusão, a média anual de condenados à morte
subiu para 560 por ano. Comentários registrados na época afirmam que a
dissecação pública como penalidade, destinada apenas a crimes como
assassinato e traição, estendera-se também a criminosos comuns. Outra
célebre barbárie envolvendo as dissecações foi a chacina registrada ainda
em 1828, quando 16 pessoas foram mortas para tráfico de seus corpos a
uma escola privada em Edinburgh, Inglaterra.
O espírito empirista reinante na Renascença advindo de uma atitude mais
objetiva diante da natureza e dos fenômenos, sem dúvida associada à
iminente motivação pelo lucro e à necessidade de criação de novos
mercados e técnicas, derrubou muitos dogmas eclesiásticos. No âmbito
da Anatomia médica, tanto quanto artística, esta nova atitude
metodológica percebeu e retificou muitas incoerências nos escritos de Galeno. Um fator importantíssimo que
possibilitou a prática efetiva desse progresso foram as investigações realizadas por artistas como Leonardo da Vinci
(Florença, 1452. Amboise, França, 1519), Michelangelo Buonarroti (Florença, 1475. Roma, 1564), Raffaello Sanzio
(Urbino, 1483. Roma, 1520) e Albrecht Dürer (Nuremberg, Alemanha, 1471. Nuremberg, 1528). O corolário desse
interesse emergente foi a publicação do tratado De Humani Corporis Fabrica de Andreas Vesalius (Bruxelas, 1514.
Zante, Grécia, 1559), no ano de 1543, em Basiléia, na Suíça. Com inúmeras ilustrações desenvolvidas por artistas da
época e apresentando um estudo sistemático da Anatomia Humana, essa publicação superou definitivamente o
dogma galênico, estabelecendo as bases da Anatomia moderna.
O ensino da Anatomia anteriormente desenvolvido nas cátedras e teatros anatômicos (que teve como símbolo
máximo o Teatro anatômico de Pádua), encontrou no distanciamento entre trabalho manual e intelectual uma
alternativa para fugir aos desafios históricos que ora se apresentavam – especificamente a insuficiência cada vez mais
flagrante dos métodos de Galeno, e a exigência em novas descobertas terapêuticas que demandavam um
aprimoramenteo dos conhecimentos anatômicos. Esse distanciamento era uma maneira contraditória de manter a
letra (e o espírito) clássicos indeléveis e intactos, perpetuar uma escala rígida e tradicional de poder e ao mesmo
tempo condescender com a exigência do interesse emergente pela Anatomia. As gravuras realizadas neste período
representam claramente o distanciamento entre o orador (ou professor catadrático) e o cadáver (ilustrações I, II, III).
Enquanto o primeiro lia em voz alta o tratado de Galeno no púlpito, um cirurgião-barbeiro dissecava o corpo,
enquanto um assistente apontava com um bastão as supostas estruturas orgânicas recitadas. As incoerências eram,
tanto mais evidentes, quanto caladas e voluntariamente ignoradas, uma vez que o mistério do dogma determinava a
verdade do livro em relação à realidade da dissecação. A revolução impetrada por Andreas Vesalius foi a de eliminar a
distância entre o orador e o corpo, realizando ele mesmo a dissecação e registrando suas observações.
Uma tela de Michiel Janszen
Mierevelt de 1617 (Aula de Anatomia
do Dr. Deer Neer) é particularmente
sintomática da contradição enunciada
(ilustração IV). Embora ilustre
manifestamente as novas diretrizes
vesalianas indicadas pelo fórceps (ou
pinça) na mão do próprio orador
catedrático, mais do que isso, ela
apresenta uma noção profunda da
incomunicabilidade ainda presente
entre o mundo antigo e uma nova era
emergente – a realidade moderna. Na
tela, todas as figuras (à exceção de
uma, aperentemente distraída) olham
diretamente para o espectador, ou
para o pintor, como se posassem para um retrato – o que de resto fazem – ao passo que o cadáver, aberto e exposto
em primeiro plano, tem os olhos vendados com um pano. Estão ali, o cadáver – que se entrega ao cutelo e à ciência
do orador, os estudantes e doutores que um segundo antes deviam estar entretidos na dissecação. Mas eles
interrompem sua atividade; em verdade não estão ali presentes; nada se comunica na tela. Esses personagens,
incluindo o cadáver, não se comunicam de forma alguma, como se não quisessem, diante do olhar de um terceiro,
demonstrar que estiveram envolvidos numa atividade ainda carregada da “ignomínia do trabalho manual”. Fôssemos
dar crédito aos olhares de todos (em especial daquele que se distrai), diríamos que há um “constrangimento” geral
com a situação diante de um espectador intruso. Só não sabemos quem se mostra mais constrangido – se os viventes,
ou o cadáver, com a venda nos olhos.
Outra tela de ordem semelhante, pintada poucos anos depois, manifesta claramente uma atitude já amadurecida em
relação a esse “constrangimento” – que é o contrangimento da inadequação entre o passado e o presente, entre
uma tradição de distanciamento da morte, de relações prefixadas no exercício do poder; um desconforto em relação
a um novo que não se pode compreender totalmente, tampouco aceitar. Esta tela é a famosa Lição de Anatomia do Dr.
Tulp (1632) de Rembrandt Van Rijn (Leyden, Holanda, 1606. Hendrickje, 1669). Nela, assim como na tela de Mierevelt,
nenhum dos oito personagens representados miram diretamente o cadáver; mas a atitude deles é a de cirurgiões à
vontade diante de um estudo que lhes parece sobremodo sério e coerente. Estão compenetrados no que fazem e não
se preocupam em olhar para o observador, ou pintor, que se imiscuiu em sua sessão de estudos (a não ser dois deles,
nos últimos planos, que de fato olham diretamente para o observador; um deles aparentemente interroga com o
cenho aquela entrada inoportuna, segurando um papel onde se pode ver um desenho esquemático da região do
cadáver naquele momento dissecada – sintomaticamente um braço, junto da nominata dos presentes). A sombra da
cabeça de um dos cavalheiros que assistem a sessão projeta-se sobre os olhos do cadáver – uma alternativa
sofisticada à “venda de pano” nos olhos do cadáver de Mierevelt. Mas os olhos fechados do cadáver na tela
Rembrandt, mesmo na sombra, permanecem visíveis: aparecem. O que se apresenta ali são homens à vontade em
seu ofício e em seu tempo, mas inconscientes ainda da vanidade das suas ações e da sua ciência (esta só se dará
alguns séculos depois, talvez no vigésimo século, quando os cientistas perceberem, como ainda o fazem, que a
ciência só pode estudar o que já é passado e morto, que necessita exterminar o presente momento da coisa para
torná-la um seu objeto de estudo – este é um conteúdo subjacente importantíssimo que se pode depreender da tela
de Rembrandt).
Se Rembrandt assimila esta nova postura dos médicos ante seu objeto de estudo, um sentido de retrocesso, porém,
pode ser avaliado na mesma tela. Durante séculos de fuligem antes da restauração da obra, num canto obscuro à
direita, algo permaneceu oculto: um livro aberto. Um livro que não está na mão de nenhum dos personagens, um livro
que indica e instrui o estudo em questão, mas que está abandonado para um canto, e não no centro da composição.
Esta inversão revolucionária em relação às gravuras e à concepção medieval (cuja tutela se devia aos livros, em
especial o Tratado de Galeno) não é, entretanto, total. O absolutismo da cultura livresca que perpetuou o dogma nos
estudos anatômicos na Idade Média é aqui indiretamente reafirmado por Rembrandt como o espectro de um período
anterior. Numa época em que Vesalius triunfava gloriosamente, estabelecendo sua hegemonia nas ciências naturais e
nas artes livres, período onde qualquer constrangimento, inclusive oriundo da esfera oficial, fora superado, a cultura
do livro e da teoria ainda prevalece. Três dos personagens que estudam o cadáver olham atentamente para aquele
livro no canto inferior da tela, mais preocupados com a teoria do que com o corpo que se desvenda e se abre a sua
frente. O impressionante é o fato de tratar-se justamente do tratado de Vesalius – este cientista revolucionário que
substituiu a cultura livresca e tutelar da Idade Média pelo empirismo e pela observação direta, in vivo, da Anatomia. O
professor que figura na tela (novo representante do orador catedrático), abandona o púlpito e o livro para se dedicar
ele próprio ao trabalho manual da dissecação; porém seu olhar é absorto, contempla aparentemente os próprios
pensamentos, não olha para o cadáver, como se reproduzisse um discurso previamente decorado.
Um parêntesis que devemos salientar é em relação a outra obra de Rembrandt, realizada vinte e quatro anos após a
tela supracitada, chamada Lição de Anatomia do Dr. Deyman (1656), onde o cadáver se apresenta em escorço direto
para o espectador, com a planta dos pés voltada para frente, estando o corpo propositalmente reclinado para quem o
observa (ilustração V). Desta maneira, Rembrandt nos põe diante dos olhos a cavidade abdominal do cadáver aberta,
o crânio recém dissecado que o anatomista Deyman investiga, e a face inteira do cadáver exposta. São sintomáticas a
exposição deste corpo e a maneira como Rembrandt compõe e organiza os elementos na tela. Ao lado do corpo há
um cavalheiro que assiste à dissecação segurando com displicência e visível abandono o que parece ser uma tigela de
instrumentos cirúrgicos, mas
que a um olhar mais atento
revela-se o osso parietal,
quer dizer, o tampo do
crânio do cadáver, que foi
serrado1. É um segundo
estágio do amadurecimento
da atitude científica em
relação à morte, onde não
existe medo, nem terror,
nem superstições – é o que
revela a postura sem-
cerimônia dos anatomistas e
a exposição quase gratuita
do cadáver que figura na
tela. Interessante notar que
Rembrandt recua,
entretanto, na exposição do
sexo do morto, recoberto
por panejamentos, tal como na primeira tela. O sexo é ainda um tabu quando o corpo se encontrava já desvendado e
devassado pela ciência. Mas trata-se ainda uma era de trevas. A luz imprecisa do racionalismo renascentista fora
espanada pela Contra-reforma católica e uma nova tensão (talvez um desdobramento farsesco da tensão anterior
entre a Idade Média e o Renascimento), fora instaurada, carregada das sombras do chiaroscuro característico do
período Barroco. Volta-se à imprecisão do desenho e da anatomia, recorre-se à cor e aos contrastes para criação de
cenas de largo alcance emocional imbuídas de subjetividade, e isolamento, à medida da catarse (cf. M. M.
Caravaggio). Tudo isso, porém, agrega uma nova atitude em seu âmago, move-se com naturalidade na aproximação
com o cadáver e com o mistério, antes isolado numa esfera imponderável. (O tom que completa esta paleta é a opção
de Rembrandt, e de muitos ouros barrocos, de sempre utilizar em sua produção a indumentária e os ambientes de
seu próprio tempo nas obras em que figuram personagens e cenas do mundo bíblico – outro sinal de convergência e
informalidade diante do mistério).
A sensibilidade de Rembrandt em identificar (talvez não de todo conscientemente) o distanciamento incômodo, mas
liberal, na atitude dos anatomistas ante seu objeto de estudo na tela de 1632, expressa-se renovada na tela de 1656. Aí
Rembrandt manifesta a percepção de uma nova atitude: a superação do constrangimento da transição, onde o
1 Curiosamente, a palavra “tigela”, segundo o dicionário Houaiss, possui um significado correlato: lat. *tegèlla pelo dim. lat. tegíllum,i cobertura
para a cabeça, espécie de coifa ou covo de palha ou junco, do lat. tegùla,ae telha ou do lat.imp. tegùlum,i telhado; ver teg-; f.hist. 1509 tigellas, sXVI tigela.
establishment da revolução operada por Andreas Vesalius (mesmo que abafada pela Contra-reforma) era já quase de
todo completo. Isso se comprova à evidência quando se percebe que o personagem que Rembrandt coloca
impudentemente diante do cadáver é o próprio espectador – ou, de outra forma, o pintor Rembrandt Van Rijn, agora
acostumado a frequentar e participar de uma sessão de dissecação com desembaraço; desembaraço de uma nova
época que o artista sentiu no curso dos seus próprios estudos.
Mas no intercurso entre Vesalius e Rembrandt há duas obras de outros artistas da época que queremos observar
segundo essa perspectiva: os estudos anatômicos de Leonardo da Vinci realizados entre 1489 e 1510; e o teto da
Capela Sistina, de Michelangelo Buonarroti (1508-12). A obra e a disposição moral destes artistas puderam estabelecer
um elo de possibilidades entre Vesalius e Rembrandt, impulsionando a ciência do primeiro e possibilitando a arte do
segundo. Aventa-se que à Michelangelo teriam sido originalmente encomendadas as ilustrações do De Humani
Corporis Fabrica; chegou-se a sugerir também que as gravuras fossem um plágio de desenhos de da Vinci. Ambas as
afirmações, mesmo que desmentidas ou nunca provadas de fato, não são, contudo, completamente absurdas. Esses
dois artistas estavam por demais engajados no estudo da Anatomia, eram contemporâneos de Vesalius e foram,
talvez, tanto mais longe que ele neste assunto. Dois eventos barraram às gerações ulteriores essa consciência.
Michelangelo fez questão de destruir seus esboços e estudos preparatórios e ocultou cuidadosamente seus
conhecimentos num sistema codificado. Os estudos anatômicos de da Vinci permaneceram por quase dois séculos
retidos pela inquisição católica e só vieram à luz no século XVII, quando quase a totalidade das suas inovadoras
descobertas já havia sido realizada por outros anatomistas dessa época.
Dos estudos de da Vinci o que prevalece, afora a sofisticada beleza artística de sua apresentação (cabe lembrar que se
trata de estudos de caráter científico), é a atitude do artista diante do conhecimento. Sua ousadia prática –
exemplificada pelas odisséias por que seguramente passou ao recolher cadáveres e estudá-los sob as condições
temerárias da proibição inquisitória e inseguras pela insalubridade; e sua ousadia teórica – manifestada pela quebra
total do protocolo clássico, que não referendava jamais a abertura de um corpo, sobretudo na realização de um
estudo dirigido autônoma e solitariamente para fins artísticos. Da Vinci, assim como Michelangelo, abriu certamente
sozinho os seus cadáveres, trocando os compêndios de Hipócrates, Marino e Rufo traduzidos por Galeno pelo cutelo
do cirurgião-barbeiro. Esta atitude nova, audaciosa, encorajou o pensamento empírico moderno e possibilitou que
dois séculos mais tarde Rembrandt pudesse retratar, sem cautela e sem nenhum receio, seu Dr. Tulp empunhando um
fórceps, que bem poderia ser um cutelo. Da Vinci é, desta forma, uma síntese entre o pensamento clássico e o
moderno; entre o distanciamento ideal e espiritual e o destrinçamento da matéria; entre a letra e o espírito e,
contraditoriamente, entre a arte que revela ao simbolizar e a ciência que oculta quando busca a interpretação do real.
Quanto a Michelangelo, basta a descoberta feita recentemente por dois médicos brasileiros (um cirurgião e um
patologista), na pintura do teto da Capela Sistina – descoberta espelhada em toda a obra do escultor onde abundam
“mensagens subliminares”, imagens ocultas sob a silhueta das indumentárias, das poses ou dos artefatos dos
personagens pintados ou esculpidos, onde se vêem ocultas estruturas anatômicas do corpo humano. A exemplo: a
estranha bolsa da sibila Cuméia é uma representação fiel do pericárdio, da veia aorta e do diafragma, ao passo que ao
redor dela inúmeros putti contorcem-se para evidenciar em seus próprios corpos a região peitoral; o manto invertido
da sibila Líbia é na verdade a cavidade glenóide da escápula de onde escapa a cabeça do úmero, tanto mais que ela se
cerca de anjinhos que apontam descaradamente para o próprio ombro enquanto ela mesma se retorce para mostrar
o seu; ou a musculatura da perna da escultura Moisés (1515-16), é na verdade a musculatura do braço para onde o
Patriarca aponta, além de outros sinais evidentes que o indicam, e assim por diante. Esses médicos brasileiros
descobriram enfim a decodificação, cifrada há 500 anos por Michelangelo para esconder o resultado de suas
investigações anatômicas (BARRETO & OLIVEIRA, 2004). As evidências levantadas são tantas que não é necessário
demonstrarmos novamente.
Cabe apenas observar que essa descoberta desautorizou análises de inúmeros teóricos que refletiram sobre a obra do
artista italiano, entre eles Sigmund Freud, acerca da composição e a da função das personagens da Sistina, que agora
possuem um sentido coerente. O que daí nos interessa assinalar são as mesmas características apontadas em relação
aos estudos de da Vinci: a mesma ousadia prática e teórica de ir ao fundo e encontrar-lhe a origem, a mesma intenção
de síntese entre um passado clássico (inclusive de resgate técnico e estético do ofício escultórico greco-romano) e a
nova ciência empírica da dissecação anatômica, possibilitada por uma atitude objetiva e revolucionária ante o
conhecimento.
Num dos inúmeros sonetos de Michelangelo encontramos o seguinte terceto:
Em nenhum lugar Deus se mostra mais a mim
em sua graça do que em alguma bela forma humana;
e só isso amo, pois nisso Ele se espelha.
Deus se espelha na imagem do homem – e não o inverso, que pressupunha o homem segundo a “imagem e semelhança de Deus”. A inversão parece redundante; mas a redundância se cala quando entendemos o complexo sistema de referências no qual está codificada a obra do escultor. Os versos acima podem ser entendidos como um correlato da Criação do Homem, imagem que ocupa um dos nichos centrais da Capela Sistina (ilustração VII). Nele há um Adão recém criado e indolente que estende majestosamente a mão esquerda a que um Deus se esforça, espichando-se, retesado e pressuroso, para alcançar... O quê? Talvez seu filho, humano e real, para dele receber a vida; e não o contrário. O indício anatômico subliminar nesta imagem, levantado há alguns anos por um médico norte-americano, é o corte sagital do crânio, com minúcias como sulcus singuli (que separa os lobos parietal e temporal), e cuja silhueta é entrevista de forma extraordinariamente nítida na concha esvoaçante cercada de querubins onde a figura simbólica de Deus se encontra. Não se imagina à toa esta correlação onde Deus é associado ao cérebro humano: representação da inteligência, causa primeira de tudo, e que provém do intelecto – não divino, mas porém humano. Estará ele inferindo que Deus é produto da imaginação da criatura? As obras abordadas neste pretenso ensaio dizem respeito a artistas profundamente engajados numa revolução que
se operava em suas devidas épocas. Nenhum deles fora conivente com a atitude geral de seus contemporâneos,
tanto na arte quanto na ciência; não esqueceram, tampouco, o passado, compreendendo-o como fundamento de
toda atitude revolucionária presente e futura. Michelangelo e Leonardo da Vinci beberam das lições históricas da
Grécia e da Roma antigas, tendo de confrontar-se com a Idade Média – sua própria época – para desconstruir o que
nela havia de retrógrado e conservador. Tampouco Vesalius desprezou os tratados de Galeno, superando neles os
equívocos determinados pelas limitações históricas que lhes deram origem. A nova Anatomia era, por assim dizer, um
elo entre todos eles, resultante de uma nova atitude diante do conhecimento que revolucionou a forma como a
morte e as possibilidades da ciência eram compreendidas. Esses artistas não se eximiram diante dos obstáculos do
senso comum de sua época e os destruíram; não tiveram receio de buscar no passado as soluções que faltavam a seu
engenho presente, e assim deflagraram uma revolução no âmbito estético da cultura do seu tempo. Esses artistas
pareciam estar profundamente afinados com seu meio, atentos ao passado e ao progresso possível, mas longe das
modas, e dos dogmas, concentrados profundamente em suas pesquisas. Nem é preciso dizer que a revolução
operada simbolicamente na Arte desse período era o triunfo da burguesia moderna, cujos agentes haviam se
apropriado do manancial de cultura disponível. Indicam-nos, porém, hoje, um caminho para uma nova apropriação e
uma nova atitude revolucionária a serviço de uma cultura emancipatória que não se furte ao engajamento e à ruptura;
bem além dos limites do senso comum contemporâneo, mas corajosamente atenta às posturas revolucionárias, e
também aos seus limites.
Curitiba, Fevereiro/2010.
Referências
BARRETO, Gilson; OLIVEIRA, Marcelo de. A Arte Secreta de Michelangelo: uma Lição de Anatomia da Capela Sistina. São Paulo, ARX, 2004. CLARK, Kenneth. O Nu, um Estudo sobre o Ideal em Arte. Lisboa, Ulisseia, 1956. HALE, Robert. Great Lessons From the Great Artists. New York, Guptil Publications, 1989. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 1994. KICKÖFEL, Eduardo Henrique Peiruque. A lição de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiæ, Vol. 1, No. 3, 2003, p. 389-404 MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. Companhia das Letras, São Paulo, 2000. MUNZ, Ludwig & HAAK, Bob. Rembrandt. Harry N. Abrams, Inc. Publishers. New York, 1984. PANOFSKY, E. Significado nas Artes Visuais, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2002. PETRUCELLI, L. J. História da Medicina. Editora Manole, São Paulo – 1997. ROHEN, J. W.; YOKOCHI C.; LÜTJEN-DRECOLL, E. Anatomia Humana: Atlas Fotográfico de Anatomia Sistêmica e Regional, São Paulo, 6ª ed. Barueri Manole LTDA, 2007. SIMBLET, Sarah. Anatomia para el Artista. Barcelona, Naturart, S.A., 2002. <http://amamede28.spaces.live.com/blog/cns!E62103D0E3B34990!141.entry> Acessado em Agosto de 2009. <http://www.anatomiaonline.com/historia.htm> Acessado em Agosto de 2009. ©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda CD-ROM