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D E S A R M A D A Ano 1 . Volume 6 . Novembro . 2019

D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

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Page 1: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

D E S A R M A D A A n o 1 V o l u m e 6 N o v e m b r o 2 0 1 9

O Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea que tiacutenhamos iniciado em 2018 ganhou uma nova forma a partir de Outubro de 2019 Em lugar de cada sessatildeo das quartas-feiras ter a forma de uma conversa em torno de um documentaacuterio ou de uma entrevista gravada com alguns dos mais importantes pensadores contemporacircneos passaacutemos a convidar pessoas inspiradoras da nossa vontade de pensar Comeccedilaacutemos com Roberto Machado Antoacutenio Bracinha Vieira Francisco Louccedilatilde e Antoacutenio Guerreiro em Outubro Em Novembro teremos ainda a participaccedilatildeo de Rui Tavares (dia 20) e de Helena Roseta (dia 27) Para nos ajudar a preparar o debate sobre as suas teses Helena Roseta enviou jaacute uma versatildeo condensada da sua exposiccedilatildeo que eacute publicada neste nuacutemero com o tiacutetulo ldquoOs tempos do tempordquo

Publicamos tambeacutem uma visatildeo panoracircmica da Primeira Bienal de Arte Contemporacircnea que se realizou na Faacutebrica entre os dias 7 e 14 de Novembro E um ensaio criacutetico sobre a peccedila ldquoAmor em Rodapeacuterdquo que tem estado em cena durante este mecircs E claro pode aqui ler-se agenda completa da Faacutebrica depois da Festa de los Muertos com que encerraacutemos o mecircs de Outubro

EDITORIAL por nuno nabais

Haacute vaacuterios tempos na vida de uma pessoa No meu caso pessoa-mulher sou particularmen-te sensiacutevel agrave policronia E gosto de me pensar em muacuteltiplas escalas de espaccedilo- tempo Comecemos com a escala macro do tempo coacutesmico Eacute do seacuteculo XX a fabulosa descoberta de estarmos num universo em expansatildeo contada de modo acessiacutevel por Stephen Hawking na sua popular ldquoBreve Histoacuteria do Tempordquo O momento original do Big Bang com o qual comeccedila o tempo tem sido calculado em 138 mil milhotildees de anos Prigogine por sua vez veio alertar-nos para o facto dramaacutetico de a seta do tempo ter um soacute sentido mesmo na escala coacutesmica Ou seja natildeo podemos inverter a ordem dos acontecimentos ainda que eles tenham ocorrido haacute muitos milhotildees de anos Claro que emfiacutesica teoacuterica e em filmes de ficccedilatildeo satildeo concebiacuteveis maacutequinas do tempo os estranhiacutessimos ldquoburacos de vermerdquo que permitem criar ldquoatalhosrdquo no espaccedilo-tempo em direcccedilatildeo ao futuro ou ao passado Mas esta escala e estas visotildees natildeo nos afectam no dia-a-dia Pelo sim pelo natildeo haacute no entanto muita gente que natildeo dispensa ler o seu horoacutescopo por curiosidade ou supersticcedilatildeo ou saber com detalhe o posicionamento dos astros no dia e hora em que nasceu Resquiacutecios de um tempo preacute-cientiacutefico sem duacutevida

Mas quem nunca sentiu a vertigem de contemplar agrave

noite um vasto ceacuteu estrelado

Quem nunca sonhou ver-se transportado a outro tempo e a outras eras Sonhar eacute proacuteprio da nossa espeacutecie e o tempo coacutesmico eacute talvez o uacutenico capaz de conter em si mesmo todas as nossas fantasias

Os tempos do Tempo Por Helena Roseta | FOTOS FELIPE RAIZER

O tempo geoloacutegico jaacute estaacute mais perto de noacutes Este planeta que nos alberga por enquanto ainda azul teraacute nascido haacute mais de 4 mil milhotildees de anos bastante mais ldquojovemrdquo por isso que o universo de que faz parte Mas a histoacuteria da geologia conta-nos que haacute rochas muito antigas dos tempos preacute-cacircmbricos coevos do nascimento do planeta com os seus oceanos primitivos e a sua intensa actividade vulcacircnica e rochas mais recentes dos tempos paleozoacuteicos que assistiram agrave

explosatildeo diversificada dos grupos principais do reino animal ateacute se chegar haacute apenas 200 milhotildees de anos agrave extinccedilatildeo dos dinossauros Soacute muito mais tarde surgiram os primeiros hominiacutedeos ndash haacute uns escassos 6 ou 7 milhotildees de anos Toda esta histoacuteria fascinante gravada como num livro nas vaacuterias camadas de rochas e terrenos que pisamos eacute anterior agrave nossa apariccedilatildeo como seres humanos porventura os maiores predadores da natureza que nos deu berccediloGosto de olhar para a carta geoloacutegica de Portugal e tentar perceber as vaacuterias idades do nosso territoacuterio desde o seu interior mais antigo com seus planaltos e montanhas agraves cadeias enrugadas mais recentes do litoral ocidental e algarvio passando pelas extensas bacias mioceacutenicas do Tejo e Sado arenosas e planas Agraves vezes ponho-me a cismar no ponto de encontro destas diferentes idades que corresponde no mapa agrave zona de Tomar e Faacutetima Conjunccedilatildeo teluacuterica que para Nataacutelia Correia explicaria a proliferaccedilatildeo de santas e de bruxas Acredite-se ou natildeo eacute para mim reconfortante pensar que os campos que percorremos ou as montanhas a que subimos satildeo tatildeo mais velhos do que todos noacutes

De quantas camadas de vento e sol e chuva e frio eacute feito o chatildeo

que pisamos

Aprendemos na escola que a histoacuteria comeccedila com a escrita essa espantosa descoberta dos sumeacuterios antigo povo que haacute 3000 anos vivia entre o Tigre e o Eufrates onde hoje fica o martirizado Iraque Na realidade a histoacuteria da humanidade comeccedila muito antes mas natildeo havendo registos escritos essa etapa a preacute-histoacuteria eacute-nos de mais difiacutecil acesso Eacute com a escrita que se inicia o tempo histoacuterico com o florescimento e decliacutenio de vaacuterias civilizaccedilotildees ateacute chegar aos nossos dias em que o tempo histoacuterico parece ter acelerado e em que se quer tudo ldquoon timerdquo no momento agrave disposiccedilatildeo imediata O tempo de globalizaccedilatildeo que vivemos eacute aliaacutes de novo um tempo de grandes mutaccedilotildees como no seacuteculo XVI quando Portugal se aventurava nas descobertas e Camotildees cantava ldquocontinuamente vemos novidadesrdquo Quando perguntamos que tempo estaacute natildeo estamos a pensar no tempo histoacuterico mas no tempo meteoroloacutegico realidade instaacutevel da qual depende e muito a nossa vida e ateacute a nossa disposiccedilatildeo Sempre que desejamos ldquobom tempordquo eacute deste que falamos embora se o dissermos no plural ldquobons temposrdquo o significado seja outro jaacute mais perto da saudade O que nos deve preocupar quanto ao tempo meteoroloacutegico natildeo eacute tanto a dificuldade da sua previsatildeo exacta mas sobretudo a fatalidade de estarmos a assistir a alteraccedilotildees climaacuteticas provocadas pelos nossos modos de vida e circulaccedilatildeo actuais Passar da escala global para a escala das escolhas de cada um que acabam por ter influecircncia no todo como nos ensinou o pensamento ecoloacutegico eacute um dos grandes

desafios do nosso tempo entendido este como o tempo actual aquele que estamos a viver colectivamente

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 2: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

O Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea que tiacutenhamos iniciado em 2018 ganhou uma nova forma a partir de Outubro de 2019 Em lugar de cada sessatildeo das quartas-feiras ter a forma de uma conversa em torno de um documentaacuterio ou de uma entrevista gravada com alguns dos mais importantes pensadores contemporacircneos passaacutemos a convidar pessoas inspiradoras da nossa vontade de pensar Comeccedilaacutemos com Roberto Machado Antoacutenio Bracinha Vieira Francisco Louccedilatilde e Antoacutenio Guerreiro em Outubro Em Novembro teremos ainda a participaccedilatildeo de Rui Tavares (dia 20) e de Helena Roseta (dia 27) Para nos ajudar a preparar o debate sobre as suas teses Helena Roseta enviou jaacute uma versatildeo condensada da sua exposiccedilatildeo que eacute publicada neste nuacutemero com o tiacutetulo ldquoOs tempos do tempordquo

Publicamos tambeacutem uma visatildeo panoracircmica da Primeira Bienal de Arte Contemporacircnea que se realizou na Faacutebrica entre os dias 7 e 14 de Novembro E um ensaio criacutetico sobre a peccedila ldquoAmor em Rodapeacuterdquo que tem estado em cena durante este mecircs E claro pode aqui ler-se agenda completa da Faacutebrica depois da Festa de los Muertos com que encerraacutemos o mecircs de Outubro

EDITORIAL por nuno nabais

Haacute vaacuterios tempos na vida de uma pessoa No meu caso pessoa-mulher sou particularmen-te sensiacutevel agrave policronia E gosto de me pensar em muacuteltiplas escalas de espaccedilo- tempo Comecemos com a escala macro do tempo coacutesmico Eacute do seacuteculo XX a fabulosa descoberta de estarmos num universo em expansatildeo contada de modo acessiacutevel por Stephen Hawking na sua popular ldquoBreve Histoacuteria do Tempordquo O momento original do Big Bang com o qual comeccedila o tempo tem sido calculado em 138 mil milhotildees de anos Prigogine por sua vez veio alertar-nos para o facto dramaacutetico de a seta do tempo ter um soacute sentido mesmo na escala coacutesmica Ou seja natildeo podemos inverter a ordem dos acontecimentos ainda que eles tenham ocorrido haacute muitos milhotildees de anos Claro que emfiacutesica teoacuterica e em filmes de ficccedilatildeo satildeo concebiacuteveis maacutequinas do tempo os estranhiacutessimos ldquoburacos de vermerdquo que permitem criar ldquoatalhosrdquo no espaccedilo-tempo em direcccedilatildeo ao futuro ou ao passado Mas esta escala e estas visotildees natildeo nos afectam no dia-a-dia Pelo sim pelo natildeo haacute no entanto muita gente que natildeo dispensa ler o seu horoacutescopo por curiosidade ou supersticcedilatildeo ou saber com detalhe o posicionamento dos astros no dia e hora em que nasceu Resquiacutecios de um tempo preacute-cientiacutefico sem duacutevida

Mas quem nunca sentiu a vertigem de contemplar agrave

noite um vasto ceacuteu estrelado

Quem nunca sonhou ver-se transportado a outro tempo e a outras eras Sonhar eacute proacuteprio da nossa espeacutecie e o tempo coacutesmico eacute talvez o uacutenico capaz de conter em si mesmo todas as nossas fantasias

Os tempos do Tempo Por Helena Roseta | FOTOS FELIPE RAIZER

O tempo geoloacutegico jaacute estaacute mais perto de noacutes Este planeta que nos alberga por enquanto ainda azul teraacute nascido haacute mais de 4 mil milhotildees de anos bastante mais ldquojovemrdquo por isso que o universo de que faz parte Mas a histoacuteria da geologia conta-nos que haacute rochas muito antigas dos tempos preacute-cacircmbricos coevos do nascimento do planeta com os seus oceanos primitivos e a sua intensa actividade vulcacircnica e rochas mais recentes dos tempos paleozoacuteicos que assistiram agrave

explosatildeo diversificada dos grupos principais do reino animal ateacute se chegar haacute apenas 200 milhotildees de anos agrave extinccedilatildeo dos dinossauros Soacute muito mais tarde surgiram os primeiros hominiacutedeos ndash haacute uns escassos 6 ou 7 milhotildees de anos Toda esta histoacuteria fascinante gravada como num livro nas vaacuterias camadas de rochas e terrenos que pisamos eacute anterior agrave nossa apariccedilatildeo como seres humanos porventura os maiores predadores da natureza que nos deu berccediloGosto de olhar para a carta geoloacutegica de Portugal e tentar perceber as vaacuterias idades do nosso territoacuterio desde o seu interior mais antigo com seus planaltos e montanhas agraves cadeias enrugadas mais recentes do litoral ocidental e algarvio passando pelas extensas bacias mioceacutenicas do Tejo e Sado arenosas e planas Agraves vezes ponho-me a cismar no ponto de encontro destas diferentes idades que corresponde no mapa agrave zona de Tomar e Faacutetima Conjunccedilatildeo teluacuterica que para Nataacutelia Correia explicaria a proliferaccedilatildeo de santas e de bruxas Acredite-se ou natildeo eacute para mim reconfortante pensar que os campos que percorremos ou as montanhas a que subimos satildeo tatildeo mais velhos do que todos noacutes

De quantas camadas de vento e sol e chuva e frio eacute feito o chatildeo

que pisamos

Aprendemos na escola que a histoacuteria comeccedila com a escrita essa espantosa descoberta dos sumeacuterios antigo povo que haacute 3000 anos vivia entre o Tigre e o Eufrates onde hoje fica o martirizado Iraque Na realidade a histoacuteria da humanidade comeccedila muito antes mas natildeo havendo registos escritos essa etapa a preacute-histoacuteria eacute-nos de mais difiacutecil acesso Eacute com a escrita que se inicia o tempo histoacuterico com o florescimento e decliacutenio de vaacuterias civilizaccedilotildees ateacute chegar aos nossos dias em que o tempo histoacuterico parece ter acelerado e em que se quer tudo ldquoon timerdquo no momento agrave disposiccedilatildeo imediata O tempo de globalizaccedilatildeo que vivemos eacute aliaacutes de novo um tempo de grandes mutaccedilotildees como no seacuteculo XVI quando Portugal se aventurava nas descobertas e Camotildees cantava ldquocontinuamente vemos novidadesrdquo Quando perguntamos que tempo estaacute natildeo estamos a pensar no tempo histoacuterico mas no tempo meteoroloacutegico realidade instaacutevel da qual depende e muito a nossa vida e ateacute a nossa disposiccedilatildeo Sempre que desejamos ldquobom tempordquo eacute deste que falamos embora se o dissermos no plural ldquobons temposrdquo o significado seja outro jaacute mais perto da saudade O que nos deve preocupar quanto ao tempo meteoroloacutegico natildeo eacute tanto a dificuldade da sua previsatildeo exacta mas sobretudo a fatalidade de estarmos a assistir a alteraccedilotildees climaacuteticas provocadas pelos nossos modos de vida e circulaccedilatildeo actuais Passar da escala global para a escala das escolhas de cada um que acabam por ter influecircncia no todo como nos ensinou o pensamento ecoloacutegico eacute um dos grandes

desafios do nosso tempo entendido este como o tempo actual aquele que estamos a viver colectivamente

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 3: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Haacute vaacuterios tempos na vida de uma pessoa No meu caso pessoa-mulher sou particularmen-te sensiacutevel agrave policronia E gosto de me pensar em muacuteltiplas escalas de espaccedilo- tempo Comecemos com a escala macro do tempo coacutesmico Eacute do seacuteculo XX a fabulosa descoberta de estarmos num universo em expansatildeo contada de modo acessiacutevel por Stephen Hawking na sua popular ldquoBreve Histoacuteria do Tempordquo O momento original do Big Bang com o qual comeccedila o tempo tem sido calculado em 138 mil milhotildees de anos Prigogine por sua vez veio alertar-nos para o facto dramaacutetico de a seta do tempo ter um soacute sentido mesmo na escala coacutesmica Ou seja natildeo podemos inverter a ordem dos acontecimentos ainda que eles tenham ocorrido haacute muitos milhotildees de anos Claro que emfiacutesica teoacuterica e em filmes de ficccedilatildeo satildeo concebiacuteveis maacutequinas do tempo os estranhiacutessimos ldquoburacos de vermerdquo que permitem criar ldquoatalhosrdquo no espaccedilo-tempo em direcccedilatildeo ao futuro ou ao passado Mas esta escala e estas visotildees natildeo nos afectam no dia-a-dia Pelo sim pelo natildeo haacute no entanto muita gente que natildeo dispensa ler o seu horoacutescopo por curiosidade ou supersticcedilatildeo ou saber com detalhe o posicionamento dos astros no dia e hora em que nasceu Resquiacutecios de um tempo preacute-cientiacutefico sem duacutevida

Mas quem nunca sentiu a vertigem de contemplar agrave

noite um vasto ceacuteu estrelado

Quem nunca sonhou ver-se transportado a outro tempo e a outras eras Sonhar eacute proacuteprio da nossa espeacutecie e o tempo coacutesmico eacute talvez o uacutenico capaz de conter em si mesmo todas as nossas fantasias

Os tempos do Tempo Por Helena Roseta | FOTOS FELIPE RAIZER

O tempo geoloacutegico jaacute estaacute mais perto de noacutes Este planeta que nos alberga por enquanto ainda azul teraacute nascido haacute mais de 4 mil milhotildees de anos bastante mais ldquojovemrdquo por isso que o universo de que faz parte Mas a histoacuteria da geologia conta-nos que haacute rochas muito antigas dos tempos preacute-cacircmbricos coevos do nascimento do planeta com os seus oceanos primitivos e a sua intensa actividade vulcacircnica e rochas mais recentes dos tempos paleozoacuteicos que assistiram agrave

explosatildeo diversificada dos grupos principais do reino animal ateacute se chegar haacute apenas 200 milhotildees de anos agrave extinccedilatildeo dos dinossauros Soacute muito mais tarde surgiram os primeiros hominiacutedeos ndash haacute uns escassos 6 ou 7 milhotildees de anos Toda esta histoacuteria fascinante gravada como num livro nas vaacuterias camadas de rochas e terrenos que pisamos eacute anterior agrave nossa apariccedilatildeo como seres humanos porventura os maiores predadores da natureza que nos deu berccediloGosto de olhar para a carta geoloacutegica de Portugal e tentar perceber as vaacuterias idades do nosso territoacuterio desde o seu interior mais antigo com seus planaltos e montanhas agraves cadeias enrugadas mais recentes do litoral ocidental e algarvio passando pelas extensas bacias mioceacutenicas do Tejo e Sado arenosas e planas Agraves vezes ponho-me a cismar no ponto de encontro destas diferentes idades que corresponde no mapa agrave zona de Tomar e Faacutetima Conjunccedilatildeo teluacuterica que para Nataacutelia Correia explicaria a proliferaccedilatildeo de santas e de bruxas Acredite-se ou natildeo eacute para mim reconfortante pensar que os campos que percorremos ou as montanhas a que subimos satildeo tatildeo mais velhos do que todos noacutes

De quantas camadas de vento e sol e chuva e frio eacute feito o chatildeo

que pisamos

Aprendemos na escola que a histoacuteria comeccedila com a escrita essa espantosa descoberta dos sumeacuterios antigo povo que haacute 3000 anos vivia entre o Tigre e o Eufrates onde hoje fica o martirizado Iraque Na realidade a histoacuteria da humanidade comeccedila muito antes mas natildeo havendo registos escritos essa etapa a preacute-histoacuteria eacute-nos de mais difiacutecil acesso Eacute com a escrita que se inicia o tempo histoacuterico com o florescimento e decliacutenio de vaacuterias civilizaccedilotildees ateacute chegar aos nossos dias em que o tempo histoacuterico parece ter acelerado e em que se quer tudo ldquoon timerdquo no momento agrave disposiccedilatildeo imediata O tempo de globalizaccedilatildeo que vivemos eacute aliaacutes de novo um tempo de grandes mutaccedilotildees como no seacuteculo XVI quando Portugal se aventurava nas descobertas e Camotildees cantava ldquocontinuamente vemos novidadesrdquo Quando perguntamos que tempo estaacute natildeo estamos a pensar no tempo histoacuterico mas no tempo meteoroloacutegico realidade instaacutevel da qual depende e muito a nossa vida e ateacute a nossa disposiccedilatildeo Sempre que desejamos ldquobom tempordquo eacute deste que falamos embora se o dissermos no plural ldquobons temposrdquo o significado seja outro jaacute mais perto da saudade O que nos deve preocupar quanto ao tempo meteoroloacutegico natildeo eacute tanto a dificuldade da sua previsatildeo exacta mas sobretudo a fatalidade de estarmos a assistir a alteraccedilotildees climaacuteticas provocadas pelos nossos modos de vida e circulaccedilatildeo actuais Passar da escala global para a escala das escolhas de cada um que acabam por ter influecircncia no todo como nos ensinou o pensamento ecoloacutegico eacute um dos grandes

desafios do nosso tempo entendido este como o tempo actual aquele que estamos a viver colectivamente

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 4: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

O tempo geoloacutegico jaacute estaacute mais perto de noacutes Este planeta que nos alberga por enquanto ainda azul teraacute nascido haacute mais de 4 mil milhotildees de anos bastante mais ldquojovemrdquo por isso que o universo de que faz parte Mas a histoacuteria da geologia conta-nos que haacute rochas muito antigas dos tempos preacute-cacircmbricos coevos do nascimento do planeta com os seus oceanos primitivos e a sua intensa actividade vulcacircnica e rochas mais recentes dos tempos paleozoacuteicos que assistiram agrave

explosatildeo diversificada dos grupos principais do reino animal ateacute se chegar haacute apenas 200 milhotildees de anos agrave extinccedilatildeo dos dinossauros Soacute muito mais tarde surgiram os primeiros hominiacutedeos ndash haacute uns escassos 6 ou 7 milhotildees de anos Toda esta histoacuteria fascinante gravada como num livro nas vaacuterias camadas de rochas e terrenos que pisamos eacute anterior agrave nossa apariccedilatildeo como seres humanos porventura os maiores predadores da natureza que nos deu berccediloGosto de olhar para a carta geoloacutegica de Portugal e tentar perceber as vaacuterias idades do nosso territoacuterio desde o seu interior mais antigo com seus planaltos e montanhas agraves cadeias enrugadas mais recentes do litoral ocidental e algarvio passando pelas extensas bacias mioceacutenicas do Tejo e Sado arenosas e planas Agraves vezes ponho-me a cismar no ponto de encontro destas diferentes idades que corresponde no mapa agrave zona de Tomar e Faacutetima Conjunccedilatildeo teluacuterica que para Nataacutelia Correia explicaria a proliferaccedilatildeo de santas e de bruxas Acredite-se ou natildeo eacute para mim reconfortante pensar que os campos que percorremos ou as montanhas a que subimos satildeo tatildeo mais velhos do que todos noacutes

De quantas camadas de vento e sol e chuva e frio eacute feito o chatildeo

que pisamos

Aprendemos na escola que a histoacuteria comeccedila com a escrita essa espantosa descoberta dos sumeacuterios antigo povo que haacute 3000 anos vivia entre o Tigre e o Eufrates onde hoje fica o martirizado Iraque Na realidade a histoacuteria da humanidade comeccedila muito antes mas natildeo havendo registos escritos essa etapa a preacute-histoacuteria eacute-nos de mais difiacutecil acesso Eacute com a escrita que se inicia o tempo histoacuterico com o florescimento e decliacutenio de vaacuterias civilizaccedilotildees ateacute chegar aos nossos dias em que o tempo histoacuterico parece ter acelerado e em que se quer tudo ldquoon timerdquo no momento agrave disposiccedilatildeo imediata O tempo de globalizaccedilatildeo que vivemos eacute aliaacutes de novo um tempo de grandes mutaccedilotildees como no seacuteculo XVI quando Portugal se aventurava nas descobertas e Camotildees cantava ldquocontinuamente vemos novidadesrdquo Quando perguntamos que tempo estaacute natildeo estamos a pensar no tempo histoacuterico mas no tempo meteoroloacutegico realidade instaacutevel da qual depende e muito a nossa vida e ateacute a nossa disposiccedilatildeo Sempre que desejamos ldquobom tempordquo eacute deste que falamos embora se o dissermos no plural ldquobons temposrdquo o significado seja outro jaacute mais perto da saudade O que nos deve preocupar quanto ao tempo meteoroloacutegico natildeo eacute tanto a dificuldade da sua previsatildeo exacta mas sobretudo a fatalidade de estarmos a assistir a alteraccedilotildees climaacuteticas provocadas pelos nossos modos de vida e circulaccedilatildeo actuais Passar da escala global para a escala das escolhas de cada um que acabam por ter influecircncia no todo como nos ensinou o pensamento ecoloacutegico eacute um dos grandes

desafios do nosso tempo entendido este como o tempo actual aquele que estamos a viver colectivamente

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 5: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Aprendemos na escola que a histoacuteria comeccedila com a escrita essa espantosa descoberta dos sumeacuterios antigo povo que haacute 3000 anos vivia entre o Tigre e o Eufrates onde hoje fica o martirizado Iraque Na realidade a histoacuteria da humanidade comeccedila muito antes mas natildeo havendo registos escritos essa etapa a preacute-histoacuteria eacute-nos de mais difiacutecil acesso Eacute com a escrita que se inicia o tempo histoacuterico com o florescimento e decliacutenio de vaacuterias civilizaccedilotildees ateacute chegar aos nossos dias em que o tempo histoacuterico parece ter acelerado e em que se quer tudo ldquoon timerdquo no momento agrave disposiccedilatildeo imediata O tempo de globalizaccedilatildeo que vivemos eacute aliaacutes de novo um tempo de grandes mutaccedilotildees como no seacuteculo XVI quando Portugal se aventurava nas descobertas e Camotildees cantava ldquocontinuamente vemos novidadesrdquo Quando perguntamos que tempo estaacute natildeo estamos a pensar no tempo histoacuterico mas no tempo meteoroloacutegico realidade instaacutevel da qual depende e muito a nossa vida e ateacute a nossa disposiccedilatildeo Sempre que desejamos ldquobom tempordquo eacute deste que falamos embora se o dissermos no plural ldquobons temposrdquo o significado seja outro jaacute mais perto da saudade O que nos deve preocupar quanto ao tempo meteoroloacutegico natildeo eacute tanto a dificuldade da sua previsatildeo exacta mas sobretudo a fatalidade de estarmos a assistir a alteraccedilotildees climaacuteticas provocadas pelos nossos modos de vida e circulaccedilatildeo actuais Passar da escala global para a escala das escolhas de cada um que acabam por ter influecircncia no todo como nos ensinou o pensamento ecoloacutegico eacute um dos grandes

desafios do nosso tempo entendido este como o tempo actual aquele que estamos a viver colectivamente

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 6: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Chega enfim a vez de falarmos do tempo individual o tempo de cada uma das nossas vidas Tempo tambeacutem ele em expansatildeo com o alargamento generalizado da esperanccedila de vida Para as mulheres o tempo de vida antes da piacutelula e dos novos meacutetodos de reproduccedilatildeo surgidos no seacuteculo XX era dividido em trecircs grandes etapas a infacircncia a idade feacutertil e a velhice Infacircncia e velhice natildeo distinguiam o geacutenero a idade feacutertil eacute que definia o papel das mulheres e o seu destino social Hoje felizmente e apoacutes muita luta as idades da vida de uma mulher satildeo mais diversas plurais podendo seguir perfis diferentes Seja como for a sociedade continua a arrumar-nos em categorias ou idades que variam com o criteacuterio seguido

Activos e inactivos se for o criteacuterio profissional embora

grande parte das mulheres ditas ldquoinactivasrdquo nunca tenham feito mais nada na vida senatildeo trabalhar Os inactivos adultos muitas vezes tambeacutem chamados ldquodependentesrdquo satildeo vistos como um fardo social Carregam as culpas de receberem reformas que os mais jovens receiam nunca vir a ter e sofrem no dia-a-dia humilhaccedilotildees constantes por estarem como que ldquoa maisrdquo em plena ditadura dos chamados ldquoactivosrdquo Eacute um dos grandes pecados dos tempos que vivemos

Se o criteacuterio for o familiar arrumam-nos por geraccedilotildees avoacutes pais filhos netos Aiacute no que toca agraves mulheres o lugar mais difiacutecil eacute o da geraccedilatildeo do meio entalada entre pais jaacute muito idosos com problemas de sauacutede e filhos e netos que ainda precisam de apoio ou porque satildeo muito pequenos ou porque jaacute cresceram mas estatildeo sem emprego e sem perspectivas A mutaccedilatildeo dos modelos de famiacutelia que se tem vindo a processar desde meados do seacuteculo XX e que ateacute o Papa Francisco jaacute reconheceu alarga o espectro e mistura geraccedilotildees o que considero socialmente enriquecedor

Mas a sociedade tem de se adaptar a estas mudanccedilas e olhar de outro modo para as sobreposiccedilotildees de geraccedilotildees e papeis que podem ocorrer

numa soacute pessoa com tudo o que isso implica de

sobrecarga de responsabilidades

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 7: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Finalmente se o criteacuterio for o ciacutevico dividem-nos entre eleitores e natildeo eleitores incluindo nestes os menores de idade Divisatildeo redutora porque nem as crianccedilas e jovens satildeo desprovidas de direitos e capacidades de participaccedilatildeo nem os adultos eleitores estatildeo dispostos a ser vistos como agentes intermitentes da democracia apenas chamados de tantos em tantos anos e imediatamente ignorados a seguir aos actos eleitorais Curiosamente o exerciacutecio do poder parece trazer consigo uma consequecircncia inevitaacutevel ndash envelhece-se mais depressa Natildeo eacute certamente por isso que ainda haacute tatildeo poucas mulheres em cargos de relevo Mas natildeo deixa de ser curioso que os partidos poliacuteticos quando se dispotildeem a incorporar mulheres como candidatas tendam a procurar mulheres jovens mesmo sabendo que essa eacute uma idade em que as mulheres menos tempo tecircm para a vida ciacutevica Por que natildeo procuram entre gente mais velha entre as mais de 900000 mulheres portuguesas com idades entre os 60 e os 75 Eacute que o poder prende-se com a imagem e a imagem das mulheres idosas natildeo eacute simeacutetrica da dos homens com a mesma idade Por isso se acha normal e ateacute aconselhaacutevel em poliacutetica um homem grisalho mas natildeo se toleram as rugas das mulheres Algumas excepccedilotildees como a farta cabeleira branca de Christine Lagarde apenas confirmam a regra

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 8: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Eacute com muita alegria que realizamos a primeira Bienal da Faacutebrica do Braccedilo de Prata A ideia surge da vontade de 3 estudantes de Artes de utilizar este grande espaccedilo multidisciplinar para um evento que possibilitasse interaccedilatildeo e uma maior troca entre os novos artistas e seus mais diferentes suportes criando um diaacutelogo conceitual em torno da cena actual em que estatildeo inseridos e uma troca das diferentes linguagens que surgem da observaccedilatildeo dessas vivecircncias

O nome da Bienal jaacute sugere a vontade de ir para todo o lado mas aqui natildeo se abandona completamente o ponto de partida A busca de outros referenciais do ponto de vista cognitivo eacute um dos principais objectivos O desejo de se estar em outro tempoespaccedilomeio eacute actualmente objecto de extensa reflexatildeo visto que estamos cada dia mais conectados com o mundo exterior E como nos relacionamos com esse imenso universo de informaccedilotildees sobrepostas a todo instante como direcionar o olhar e o que sentimos Da anaacutelise dessa necessidade e do seu processo de acompanhamento eacute que surgem as obras que veremos dos 44 artistas escolhidos pelo Comitecirc Cientiacutefico de Professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

Cada canto da Faacutebrica estaacute tomado por obras e instalaccedilotildees Ao entrar no primeiro corredor da porta principal temos o site-specific de Lorenzo Bordonaro (IT) Satildeo dezenas de intersecccedilotildees de cordas vermelhas que se tramam como nos eixos cartesianos numa gigante

instalaccedilatildeo que parece o tempo todo se expandir pensada para interagir directamente com a anatomia do espaccedilo e seu puacuteblico

Na Sala Prado Coelho gostavamos de destacar a pintura sobre tela de Ana Malta (PT) que tem imensa referecircncia no Pop Art e estilo neo-expressionista digna de comparaccedilatildeo com os grandes mestres de tais movimentos Sem deixar a duacutevida de possuir a sua proacutepria assinatura facilmente identificada por signos contemporacircneos Malta impressiona pela teacutecnica habilidade de sobreposiccedilatildeo de imagens e escolha impecaacutevel da paleta de cores

No campo da fotografia fica difiacutecil sublinharmos algueacutem Na Sala Woolf temos Francisco Baccaro (BR) e Felipe Raizer (BR) que trabalham com aspectos geomeacutetricos Num estruturas espaciaisopostas que numa imagem se tornam possiacuteveis noutro a manipulaccedilatildeo de elementos em camadas que se convergem e trazem toda a elegacircncia e complexidade esteacutetica de espaccedilos da cidade

Pormenor da Instalaccedilatildeo de Lorenzo Bordonaro

Vou mais FicoP r i m e i r a B i e n a l d a F aacute b r i c a B r a ccedil o d e P r a t a D e s t a q u e s

Por Anita Pinto

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 9: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Grandes e pequenas esculturas ready-mades cadernetas desenhos performances viacutedeo-instalaccedilotildees e muitos outros suportes foram espalhados pela nossa casa nesta que foi uma das exposiccedilotildees recentes mais plurais que recebemos

Agradecemos imenso a todos os artistas com quem tivemos o prazer de estar no dia 7 de Novembro e que fizeram uma inauguraccedilatildeo tatildeo bela Lamentavelmente por motivo de seguranccedila das obras e decisatildeo unanime entre o coordenaccedilatildeo do evento e a nossa direccedilatildeo a Bienal permaneceu na Faacutebrica Braccedilo de Prata somente ateacute o dia 14 de novembro Por favor fiquem atentos para o Open Call de 2020 Traremos mais informaccedilotildees em breve

Pormenor da Pintua de Ana Malta

Pormenor da Fotografia de Francisco Baccaro Pormenor da Fotografia de Felipe Raizer

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 10: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

ARTISTAS PARTICIPANTES

Barbara Freire da Cruz

Ana Loureiro

Ana Malta

Acircnia Pais

Beatriz Neto

Carolina LinoAna Teixeira

Baacuterbara Jasmins

Catarina Rodrigues

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 11: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Catarina Silva

Clara Leitatildeo

Claacuteudia Cerqueira

Francisco Baccaro

Diogo Luz Pereirinha e Manuel Ferreira

Faacutebio Fabregas

Felipe Raizer

Guilherme Couto

Gabriela Pedro

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 12: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Inecircs Pascoal

Joatildeo Correia

Joatildeo Rosa

Joatildeo Viotti

Joaquim Marques

Joseacute Taborda

Lara Maia e Joana Franco

Lorenzo Bordonaro

Luis Monteiro

Manuel Ferreira

Marco Ferreira

Maria Barbosa e Filipa Alves

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 13: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Marie Bacelar

Marta Raimundo

Martim Dinis

Meii Socirch

Mikhaez

Pedro Escobar

Pedro Luis

Sofia Nabais

Rita Bourbon

Zizi RamiresTacircnia Tomaacutes

Carlota Jardim

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 14: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Poesias Movediccedilas de Vitoacuteria Regina Por anita pinto | FOTOs vito soares

O primeiro contacto com a esteacutetica de Vitoacuteria Regina foi por meio de um viacutedeo promocional editado para a Faacutebrica por Vito Soares indicado agora para o ldquoMusic Video Festival Awardrdquo um dos maiores precircmios de produccedilatildeo visual do Brasil Assisti esse pequeno recorte do seu olhar agrave meia luz de uma potecircncia expressiva e entrega que toma imediatamente a atenccedilatildeo Vitoacuteria eacute a tiacutepica mineira uma das regiotildees mais acolhedoras do Brasil anda sempre acompanhada de uma aura terna e um sorriso generoso Frequentadora da nossa Faacutebrica logo descobri de que se tratava de uma artista multi-disciplinar da nossa era contemporacircnea que utilizam como meio de expressatildeo variados meacutetodos e suportes

Apesar de ser formada pela Fundaccedilatildeo Cloacutevis Salgado em Belo Horizonte (BR) e poacutes-graduada na Faculdade Angel Viana no Rio de Janeiro (BR) ambas em danccedila

a artista eacute dona de um caminho profissional pouco usual O pontapeacute inicial foi muito natural Era aquela figura da cidade que se envolve sempre com o canto e a danccedila nas festas de cultura popular e da Igreja bem tiacutepicas no Brasil A muacutesica tambeacutem sempre esteve presente Sua matildee era a chamada Verocircnica nome designado para as inteacuterpretes da Igreja Catoacutelica Aprendia jaacute dentro de casa todas as letras para cantar nas novenas e romarias Conta que ficava na Raacutedio Guarani de muacutesica erudita a imitar as Aacutereas em casa enquanto estudava o que ajudou mais tarde quando fez canto liacuterico nos 6 anos que estudou na conhecida Escola Babaya Casa de Canto e nas bandas que cantou Hoje navega por um repertoacuterio de muacutesica popular brasileira e apresenta-se ao lado de seu companheiro e muacutesico Caxi Rajatildeo

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 15: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

ldquoQuando eu estou em cena cantando esses elementos da danccedila vatildeo aparecer na minha postura na forma como eu estou no palco e na hora que eu estou danccedilando a muacutesica tambeacutem eacute fundamental Eu natildeo consigo vecirc-las separadamenterdquo

Ainda pequena tomou a frente nas coreografias da escola de sua matildee ateacute a preacute-adolescecircncia o que fazia de forma muito intuitiva Foi depois que entrou no coleacutegio e que estudou com a bailarina e professora de jazz Maria Cristina Viana que teve propriamente contacto com teacutecnicas de danccedila e percebe aiacute uma maior vontade de aprofudar-se na aacuterea O que soacute foi viabilizado mais tarde com o fruto do proacuteprio trabalho No fim do ensino meacutedio comeccedila as aulas de baleacute claacutessico no renomado Centro Mineiro de Danccedilas Claacutessicas jaacute a entrar na vida adulta E foi assim mesmo fora da faixa etaacuteria das turmas entre crianccedilas e preacute-adolescentes que encarou as primeiras aulas Passou a seguir esse caminho por um tempo a participar de concursos espetaacuteculos e festivais Logo depois de experienciar o claacutessico sonho do baleacute acredito que claacutessico para qualquer bailarina que comeccedila a surgir a curiosidade de conhecer outras linguagens

ldquoNaquela eacutepoca se natildeo danccedilavas baleacute claacutessico natildeo eras uma boa danccedilarina e eu

fui desconstruindo isso sozinha O universo da danccedila eacute enorme cheio de possibilidades e quanto mais difiacutecil e complicado algo novo me

parecia mais me interessavardquo

Foi com bastante curiosidade e perseveranccedila que Regina comeccedila a buscar os escassos livros de danccedila e metodologias de educaccedilatildeo que quando haviam se misturavam com os de sauacutede e filosofia nas prateleiras das livrarias A trajetoacuteria incomum conta fez com que vaacuterias portas se fechassem muitos natildeorsquos foram dados a ponto de ouvir o disparate de que natildeo havia nascido para danccedilar

ldquoQuando comecei a dar aulas trabalhar em diferentes projectos sociais com diferentes classes sociais - aleacutem de ter ido aprender Cubaleacute em Cuba com crianccedilas e pessoas paupeacuterrimas - em todas essas experiecircncias havia sempre um mesmo elo O amor Entatildeo eu percebi que o dinheiro e o caminho natildeo faziam a diferenccedila Essa foi uma grande escolardquo

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 16: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Como uma boa curiosa Vitoacuteria conta que os livros ofereceram quase tudo do que sabe junto tambeacutem de grandes fontes como a danccedilarina Daniela Figueiredo que deu imensa e generosa contribuiccedilatildeo na sua formaccedilatildeo como professora Isabel Marques de Satildeo Paulo (BR) pesquisadora da linha que hoje segue do Sistema LabanBartenieff sobre educaccedilatildeo corporal e anaacutelise do movimento e finalmente a Dudude Hermann mineira de imensa importacircncia na histoacuteria da danccedila em Belo Horizonte que a introduziu no Contacto Improvisaccedilatildeo Nessa altura dentro do estuacutedio de Hermann se dedica totalmente agrave nova praacutetica e mergulha profundamente na pesquisa de setentistas como Steve Paxton Lisa Nelson Nita Little dentre outros

ldquoTodas as escolas pelas quais eu passei foram

importantiacutessimas pra mim todos os professores que eu tive foram essenciais na minha formaccedilatildeo mas tambeacutem a minha busca pessoal de investigar as coisas por mim mesma O meu corpo carrega todo esse histoacuterico e eu sou muito grata por elerdquo

Essa experiecircncia fez com que muitos bons encontros acontecessem Em festivais internacionais Vitoacuteria pocircde estar junto de grandes danccedilarinos da aacuterea incluindo Daniel Lepkoff que danccedilou com o proacuteprio Paxton e com quem pocircde interagir numa aula E dessa frutiacutefera aproximaccedilatildeo com a raiacutez e nuacutecleo do CI que Vitoacuteria comeccedila a querer materializar o encontro da praacutetica em Belo Horizonte Em 2015 surge em parceria com o amigo Messias Juacutenior o Primeiro Festival Nacional de Contacto e Improvisaccedilatildeo de Danccedila de BH que actualmente jaacute estaacute em sua 5ordf ediccedilatildeo

ldquoEu me apaixonei muito por aquela troca de peso entre os corpos que criavam uma infinidade de possibilidade de movimentos que ainda nem sabes quais satildeo Eles vatildeo surgindo a partir do encontro com uma com duas trecircs pessoas dez pessoasrdquo

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 17: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Nos uacuteltimos 10 anos Vitoacuteria passa esse seu conhecimento tatildeo plural direccionado para formaccedilatildeo de professores tanto de Baleacute claacutessico quanto para professores de danccedila contemporacircnea dedicada principalmente em aulas para crianccedilas entre 8 e 10 anos sua faixa etaacuteria favoritaSento-me a uma mesa da sala Platatildeo no horaacuterio do almoccedilo antes de vecirc-la performar a ouiccedilo planear com nosso colaborador Felipe as apresentaccedilotildees de seu novo projecto baptizado de ldquoPoesias Movediccedilasrdquo uma performance que tem como intenccedilatildeo tocar o puacuteblico da noite ao recitar poesias todas de poetizas modernas e contemporacircneas cuidadosamente seleccionadas numa apresentaccedilatildeo em que o falar se funde com os movimentos e a interpretaccedilatildeo daquilo que se ouve

ldquoOs corredores da faacutebrica e os espaccedilos entre entraram em consonacircncia com minhas inquietaccedilotildees sobre o tempo Penso que internamente essa tenha sido minha maior motivaccedilatildeo em propor a residecircncia E a performance certamente a melhor maneira nesse meu momento de propor a encorpacao poeacuteticardquo

Para quem ainda natildeo teve ainda o prazer de presenciar a performance natildeo tem exactamente um momento certo para comeccedilar ela surge no meio dos corredores salas de concertos ou mesmo nos restaurantes eacute onde o puacuteblico se

concentra e quer estar O factor surpresa eacute parte do que acontece onde natildeo haacute propositalmente nenhuma expectativa a actuaccedilatildeo se desenrola em meio a esses olhares curiosos que percebem aos poucos a apresentaccedilatildeo acontecer Nada como se estar num ambiente em que algo tatildeo rico inesperado e interessante acontece assim tatildeo naturalmente Mas com Vitoacuteria natildeo poderia ser diferente

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 18: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

O teatro sempre foi o grande laboratoacuterio das experiecircncias de verdade do ocidente Nietzsche disse que os Gregos inventaram o teatro traacutegico para natildeo morrerem com a verdade Mas tambeacutem tentou mostrar que no fundo mais arcaico da trageacutedia existia uma vivecircncia abissal da verdade Para Nietzsche apenas no registo do pathos traacutegico o do deliacuterio do coro das bacantes se acedia agrave essecircncia do mundo Atraveacutes da embriaguez e na vertigem da danccedila dionisiacuteaca o mundo revelava-se a si mesmo para aleacutem de todos os veacuteus ilusoacuterios da percepccedilatildeo As bacantes mergulhavam numa relaccedilatildeo fusional com o mundo Figura paradoxal da verdade Jaacute natildeo a de uma mimeacutesis adequada a de uma representaccedilatildeo justa do mundo mas a de uma dissoluccedilatildeo da proacutepria diferenccedila entre modelo e coacutepia entre facto e enunciaccedilatildeo entre objecto e sujeito

Ao mesmo tempo que o teatro pensado do ponto de vista do actor isto eacute pensado como produccedilatildeo colectiva de estados alterados de consciecircncia desenvolvia a descoberta de formas modernas de verdade fusional toda uma imensa tradiccedilatildeo especulativa explorava esse ponto de vista do actor mas nos paradoxos da falsa verdade de si Estamos habituados a considerar que foi Descartes quem levou pela primeira vez ateacute agraves uacuteltimas consequecircncias a suspeita de uma falsidade essencial da consciecircncia sobre si mesma Mas tal soacute foi possiacutevel no interior de uma tradiccedilatildeo teatral Descartes perguntava-se se toda a nossa experiecircncia natildeo poderia ser um teatro de marionetes ou um sonho Encontrava nessa suspeita o

fundamento para o seu meacutetodo da duacutevida sistemaacutetica Admitindo que tudo seria ilusoacuterio que a mais simples das experiecircncias de noacutes mesmos seria falsa Descartes exigia um novo tipo de verdade uma verdade que tivesse a clareza e distinccedilatildeo da captura da consciecircncia por si mesma mas sem os desvios da reflexao Essa evidecircncia dava-se na descoberta da auto-doaccedilatildeo do si a si mesmo na esfera do pensamento puro Ao mesmo tempo que essa evidecircncia do cogito do eu penso aparecia como o paradigma do conhecimento verdadeiro para as ciecircncias modernas Calderon de la Barca usava a mesma suspeita de que a vida eacute sonho Mas esse impeacuterio do oniacuterico em lugar de empurrar a consciecircncia para o solipsismo para o circuito fechado da reflexatildeo infinita tornou possiacutevel a equaccedilatildeo moderna da cena teatral A vida eacute sonho e o teatro eacute sonho de sonho E nesse estranha regressatildeo infinita de um sonho que se sonha a si mesmo a mateacuteria da cena revela-se por um inversatildeo brusca de papeacuteis a verdade fundamental do mundo

teatro e verdade

Por nuno nabais

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 19: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Apenas no teatro o sonho tem o peso do granito a gravidade das coisas absolutasDiderot deslocou essa mise-en-abime do sonho de um outro sonho para o interior da consciecircncia do actor Quanto menos verdadeiro eacute o mundo interior das emoccedilotildees do actor mais convincente ele eacute O actor mais subtil eacute aquele que eacute capaz de exprimir completamente uma emoccedilatildeo que ele natildeo sente Eacute esse o paradoxo quanto menos se sente mais se faz sentirPoreacutem muito antes de Diderot ter descoberto o paradoxo do comediante jaacute Aristoacuteteles tinha descoberto as virtudes de uma separaccedilatildeo radical entre o que se sente e o que se faz sentir quando se representa aquilo que natildeo se sente Claro que em Aristoacuteteles o jogo do comediante natildeo se produz no plano dos sentimentos A vida do comediante inventa-se no intervalo entre a verdade e a verosimilhanccedila A verdade eacute apreensatildeo narrativa dos factos na sua efectividade

O efeito de persuasatildeo que uma tal narrativa pode produzir junto de um auditoacuterio eacute a verosimilhanccedila Tanto na Retoacuterica como na Poeacutetica natildeo eacute suficiente que algo enunciado seja verdadeiro Com a simples verdade seriacuteamos todos Cassandras Profetizariacuteamos com o maacuteximo rigor cada acontecimento futuro mas ningueacutem que nos escutasse nos daria o seu assentimento A apresentaccedilatildeo da verdade tem que produzir uma crenccedila uma convicccedilatildeo acerca da realidade do que eacute enunciado ou representado naquele que escuta ou que contempla uma representaccedilatildeo E aquele que domina por excelecircncia a teacutecnica desse suplemento de crenccedila eacute o actor Ao contraacuterio de Diderot para quem a arte do comediante estaacute construiacuteda pelo dom de tornar sustentaacutevel a

aparecircncia de manter a ilusatildeo ceacutenica o actor aristoteacutelico produz uma verdade em excesso produz a verdade mais a verosimilhanccedila torna crediacutevel a verdade (mesmo que esta possa ser completamente falsa)Ibsen e depois Brecht trazem a verdade para o centro da cena como denuacutencia dos mecanismos de sujeiccedilatildeo e de miseacuteria da vida fora do palco Quanto mais semelhante ao mundo falso mais a representaccedilatildeo eacute verdadeira O teatro leva aqui ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircncias ceacutenicas a separaccedilatildeo entre realidade e verdade Tudo o que eacute real eacute ilusoacuterio eacute o resultado de mil e uma camadas de ludiacutebrios e de falsificaccedilotildees A verdade aqui jaacute natildeo eacute o sonho mas a ficccedilatildeo Eacute o irreal aquilo que eacute configurado em cena que nos faz descobrir com espanto os mecanismos humanos demasiado humanos por traacutes do real por traacutes do que estaacute para aleacutem da cena

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 20: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Teremos que esperar por Beckett para que a verdade se torne auto-referencial O teatro eacute mais verdadeiro do que qualquer experiecircncia porque o teatro eacute a experiecircncia da experiecircncia de si mesma da cena E Bob Wilson leva essa ideia de verdade a uma metafiacutesica das mateacuterias da cena O teatro eacute a uacutenica verdade porque eacute a uacutenica realidade Construiacuteda miliacutemetro a miliacutemetro na densidade da luz recortada sobre o espaccedilotempo do palco vazio soacute a cena existe soacute a cena tem a facticidade do real absoluto Joatildeo Brites eacute talvez aquele que em Portugal melhor persegue esta mesma ontologia das camadas materiais e imateriais de cada cena Ao contraacuterio de Bob Wilson Joatildeo Brites natildeo faz do espaccedilotempo a mateacuteria prima do trabalho ceacutenico O espaccedilo e o tempo satildeo transformados por O Bando em variaacuteveis do movimento E eacute este produzido por maacutequinas que funcionam em circuito fechado

contiacutenuo que vai engendrando acontecimentos ceacutenicos persona-gens desfechosDesde As Suplicantes de Eacutesquilo que todos os jogos de verdade foram experimentados em cena O testemunho a profecia a revelaccedilatildeo suacutebita a refutaccedilatildeo por argumentos a fragmentaccedilatildeo de perspectivas a mentira o desconhecimento ingeacutenuo a demonstraccedilatildeo ostensiva a deduccedilatildeo por enredo coerente dos factos a opiniatildeo volaacutetil Estaacute por fazer uma histoacuteria ilustrada da verdade no teatro a partir de colecccedilatildeo de cenas exemplares dos nossos claacutessicos Uma tal histoacuteria permitiria mostrar em que medida as diferentes perspectivas sobre o que seja o conhecimento verdadeiro foram primeiro pensadas no palco Antes de Galileu inventar o primeiro observatoacuterio artificial com a sua luneta que lugar permitia a convergecircncia de olhares sobre um mesmo objecto que natildeo o Theatron o Observatoacuterio Por isso ao mesmo tempo que o ocidente aprendeu a fazer ciecircncia pelo telescoacutepio ou pelo microscoacutepio procurando conhecer aquilo que estava para aleacutem e aqueacutem da escala humana reinventava a teatralizaccedilatildeo do conhecimento com o ldquoTeatro Anatoacutemicordquo quando se tratava de conhecer o homem agrave escala de 1 para 1

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 21: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Temos assim 5 planos na experimentaccedilatildeo das mil e uma formas de verdade no teatro ocidental

1 O plano da ambivalecircncia ontoloacutegica da representaccedilatildeo dramaacutetica Eacute a oscilaccedilatildeo entre a realidade do estar-aiacute do actor e do palco e a irrealidade que se quer dar a ver para evidenciar a condiccedilatildeo de obra de arte do acontecimento ceacutenico isto eacute a sua condiccedilatildeo de aparecircnciaaparecimento de outra coisa O teatro eacute na sua essecircncia essa verdade paradoxal o actor aparece em cena com todo o peso da sua fisicalidade mas para dizer ldquonatildeo sou verdadeirordquo Eacute na medida em que se mostra como a apariccedilatildeo de uma aparecircncia mas uma apariccedilatildeo verdadeira de uma natildeo verdade que o teatro eacute arte

O plano do paradoxo do comediante de uma consciecircncia que sabe que quanto menos acredita no conteuacutedo do que diz mais crediacutevel eacute Esse paradoxo analisado pela primeira vez por Diderot retoma o famoso paradoxo do pensador de Creta daquele que diz ldquosou mentirosordquo Diz verdade Nesse caso eacute verdade que ele eacute mentiroso excepto no momento em que se afirma como mentiroso Para garantir a consistecircncia da sua condiccedilatildeo de mentira mesmo a afirmaccedilatildeo de que eacute mentiroso tem que ser mentira Entatildeo se eacute mentira que ele eacute mentiroso isso significa que ele diz a verdadeMas como pode dizer a verdade se ele mente mesmo quando se confessa mentiroso Diderot deslocou assim para o interior do comediante aquele que eacute o grande paradoxo da verdade enquanto enunciado eacute que ela tem que ser suportada por um sujeito de enunciaccedilatildeo

O plano da suspensatildeo da descrenccedila no espectador Toda a refutaccedilatildeo que Brecht faz da catarsis aristoteacutelica esbarra nos mecanismos espontacircneos da crenccedila empaacutetica ou dispaacutetica O regresso ao teatro dramaacutetico que caracteriza uma parte significativa das criaccedilotildees contemporacircneas eacute tambeacutem um regresso a esse fundo de convicccedilotildees e de identificaccedilotildees com o mundo das personagens no momento em que satildeo apresentadas pela voz pelo corpo pela respiraccedilatildeo das mulheres e homens que sobem ao palcoQueremos acreditar estar na presenccedila de Hamlet ele mesmo alargando para todos os actores a condiccedilatildeo de espectros que regressam do mundo dos mortos Natildeo acreditamos estar a contemplar o mundo real quando o pano sobe Mas temos que acreditar estar na presenccedila de actores de mateacuterias ceacutenicas de enunciados Por um ligeiro deslizar da esfera da crenccedila Haacute momentos em que nos deixamos arrastar para a suspensatildeo da descrenccedila e mergulhamos por segundos na identificaccedilatildeo com o mundo interior das personagens e com elas sofremos com elas nos elevamos agrave mais intensa das alegrias

As incontaacuteveis encenaccedilotildees das experiecircncias da verdade Da ignoracircncia inocente de Eacutedipo agrave omnisciecircncia vazia e sem sujeito da uacuteltima gravaccedilatildeo de Krapp de Beckett dos enganos de Marivaux agrave recusa em saber pela Olga de Tchekov

Por uacuteltimo o plano do proacuteprio dispositivo originaacuterio do teatro o dispositivo da epifania da manifestaccedilatildeo de algo do fazer vir agrave presenccedila de algo

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A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Agenda de Novembro

Page 22: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

A verdade em grego significa ldquodes-velamentordquo des-ocultaccedilatildeordquo Ora a grande maacutequina da desocultaccedilatildeo eacute a proacutepria ideia de cena Os gregos perceberam que o aparecimento de algo a sua manifestaccedilatildeo tem que ser preparada por um dispositivo preacutevio de ocultaccedilatildeo Eacute nesse intermitecircncia entre os bastidores e o palco entre o invisiacutevel e o manifesto que se daacute a verdade Ao contraacuterio das tradiccedilotildees orientais que fazem da verdade uma experiecircncia do inefaacutevel do natildeo-dito do natildeo-revelado o Ocidente construiu-se sobre uma compreensatildeo teatral da verdade Soacute eacute verdade aquilo que para aleacutem de ser pensado pode ser ostentado posto em cena

Acreditaacutemos depressa demais que a verdade era assunto das ciecircncias dos tribunais das teorias filosoacuteficas do conhecimento Acreditaacutemos tambeacutem cedo demais que a verdade constituiria o nuacutecleo duro de uma certa forma de vida ndash do investigador profissional ndash e que esse nuacutecleo duro estaria cercado pelo impeacuterio da natildeo verdade ndash desde as deturpaccedilotildees dos media agraves deterioraccedilatildeo da circulaccedilatildeo dos rumores no facebook

Mas o teatro contemporacircneo estaacute atravessado ainda por outras experiecircncias de verdadeA verdade como autenticidade Toda a tradiccedilatildeo de Stanislavski e das teacutecnicas de preparaccedilatildeo da personagem que procuram no mundo interior do actor nas esferas do vivido inconsciente e do recalcado as linhas de forccedila tiacutemicas e os modelos dramaacuteticos do trabalho para a cenaE de Kierkegaard a Heidegger de

Leacutevinas a Agamben as filosofias da consciecircncia infeliz natildeo fazem mais do que retomar o jogo do actor e da sua maacutescara o jogo de espelhos infinito da reflexatildeo na busca de uma identidade que estaacute sempre jaacute dada mas que se adia a cada momento pela impossibilidade de coincidecircncia entre a maacutescara e aquele que a seguraHaacute ainda uma outra figura a verdade do mercado Foucault na sua anaacutelise do neoliberalismo mostra uma certa ideia no centro desta teoria econoacutemica que pretende conceder toda a autonomia agraves leis do mercado recusando qualquer interferecircncia do Estado para garantir mecanismos de equidade

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 23: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Do mesmo modo que a verdade do valor de um produto de consumo depende das relaccedilotildees de concorrecircncia entre produtores e das oscilaccedilotildees entre oferta e procura a verdade de qualquer acccedilatildeo administrativa a verdade de qualquer regime de governamentalidade deriva da maior ou menor autonomia que concedem aos mecanismos cegos dos mercados Este modelo de verdade neoliberal quando transposto para a gestatildeo das actividades culturais tem produzido o deserto Em tempos contei ao Miguel Seabra que suspeitava que a decisatildeo de levar agrave cena o monoacutelogo O Senhor Ibrahim e as Flores do Coratildeo era a resposta do Meridional aos cortes radicais no orccedilamento da Secretaria de Estado da Cultura impostos pela Troika O Miguel Seabra natildeo achou graccedila nenhuma a essa suspeita Mas tal natildeo impede que por todo o lado as Companhias de Teatro se

transformem num sismoacutegrafo das poliacuteticas econoacutemicas A sua programaccedilatildeo daacute um sinal rigoroso ndash totalmente verdadeiro ndash da ideia de verdade do mercado e pelo mercado que tem inspirado a gestatildeo do serviccedilo puacuteblico nos uacuteltimos anosHaacute ainda uma uacuteltima figura de verdade Esta tambeacutem formulada por Foucault A figura da ldquocoragem da verdaderdquo E tambeacutem aqui o teatro eacute um laboratoacuterio perfeito para pensar aquilo que os Gregos designavam como ldquoparreacutesiardquo Sabemos que todo o acto de enunciar algo como verdadeiro se daacute no interior de um jogo de enunciaccedilatildeo Algo eacute dito como verdade para responder ou para calar outro enunciado que se pretende verdadeiro O que Foucault vem sublinhar na ldquoparreacutesiardquo eacute um certo jogo de verdade que segundo ele teraacute estado na origem da Filosofia na Greacutecia claacutessica Trata-se de uma dramaturgia poliacutetica da verdade

Aquilo que eacute dito como verdadeiro natildeo procura tanto enunciar um juiacutezo que seja adequado a um estado de coisas mas resistir a um poder O enunciado eacute verdadeiro porque exprime uma coragem daquele que o enuncia e essa coragem deriva do facto de o acto de enunciaccedilatildeo ser em si mesmo um combate procura desobedecer a um constrangimento ilegiacutetimoDesde Antiacutegona que os enredos dramaacuteticos quiseram trazer para o palco esses gestos de parreacutesia Um Inimigo do Povo de Ibsen eacute apenas o iniacutecio do ciclo contemporacircneo do fasciacutenio que o puacuteblico sente por personagens insubmissas e onde a verdade do que eacute dito cresce com o perigo a que se expotildee aquele que o dizCom a era Trump tornou-se trivial dizer que toda essa longa histoacuteria da verdade teria chegado ao fim

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 24: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Desapareceram os lugares claacutessicos de enunciaccedilatildeo ndash como os meios de comunicaccedilatildeo as academias o circuito das editoras e livrarias ndash e apareceram as tecnologias das mensagens instantacircneas e globais Jogo infinito de maacutescaras onde qualquer utilizador das redes sociais pode ser anoacutenimo ou adoptar identidades forjadas acabou por destruir a proacutepria experiecircncia da maacutescara Porque o ciberespaccedilo eacute ilimitado as informaccedilotildees os comentaacuterios as refutaccedilotildees dos comentaacuterios as confirmaccedilotildees das informaccedilotildees sem fundamento tudo isso deixou de estar sujeito agraves regras da prova da fundamentaccedilatildeo do testemunho que definiram durante seacuteculos a encenaccedilatildeo (juriacutedica poliacutetica cientiacutefica) da verdadeTalvez o teatro outra vez e sempre ele volte a ser o laboratoacuterio daquilo que hoje se chama a ldquopoacutes-verdaderdquo Talvez a pluralidade de planos onde o teatro deu a pensar a verdade se torne no princiacutepio revelador dos mecanismos da ldquopoacutes-verdaderdquo

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 25: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

o amor eacute filme e deus o espectador

Por raquel lima | FOTOS VITO SOARES

Confessionaacuterio perfeito para destilar dores de amor um bar eacute o cenaacuterio de ldquoAmor em Rodapeacuterdquo espectaacuteculo da Companhia Sai de Cena com a criaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e encenaccedilatildeo de Marisa Manarte Em temporada na Faacutebrica durante todas as quintas-feiras do mecircs de Novembro os desabafos ganham contornos ainda mais orgacircnicos por serem proferidos no bar que funciona na Sala Visconti - certamente palco de uma boa dose de pelejas reais de amor

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Page 26: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Oito actores se revezam em testemunhos ciacutenicos atrapalhados sensuais malandros sofridos safados como o amor pode ser Nesta espeacutecie de templo eacutebrio o romance estaacute mesmo no rodapeacute mas a desilusatildeo estaacute nas entrelinhas E eacute o que daacute ata cola liga a estes diaacutelogos Seja pela unilateralidade pelo tempo ou porque ldquoo amor eacute algo que acabamos por idealizar como numa peliacuteculardquo explica Marisa Manarte ldquoA tristeza soacute haacute de passar entristecendordquo diz um dos oito desiludidos

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 27: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

ldquoAmor em Rodapeacuterdquo entretanto passa longe da trageacutedia mas tampouco eacute uma comeacutedia O texto estaacute mais para uma senha de acesso agraves memoacuterias de algueacutem que podem encontrar espelho em quem assiste Aliaacutes Marisa apela muito bem para a memoacuteria Nalguns actos como fez magistralmente o encenador Bob Wilson chega a congelar cenas para que as guardemos exactamente como pensou Para que resistamos ao insustentaacutevel desejo de esquecer uma dor de amor

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

Curso Livre de Filosofia Contemporacircnea da FBP

Agenda de Novembro

Page 28: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

A muacutesica eacute outra presenccedila linear em todo o espectaacuteculo ldquoSe acaso me quiseresSou dessas mulheres que soacute dizem simrdquo canta Ana Pinto ao entrar em cena ldquoEis o malandro na praccedila outra vezCaminhando na ponta dos peacutesrdquo cantarola Maacutercio Santrsquoanna logo agrave partida Alice Azevedo Hugo Escudeiro Hugo Santos Silva Ricardo Fernandes Tiago Pereira e Vasco Pereira Coutinho tambeacutem cantam agrave capela

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Agenda de Novembro

Page 29: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Os oito actores tambeacutem danccedilam ldquoNatildeo queria que fosse um musical mas a muacutesica estaacute em cena porque na alegria e na tristeza toda a gente canta E danccedila O corpo se comunica e depois de muito dar cansardquo conclui a encenadora O que traz agrave memoacuteria (traccedilo tatildeo festejado em ldquoRomance em Rodapeacuterdquo) o filme brasileiro ldquoLisbela e o Prisioneirordquo Uma canccedilatildeo dos Cordel do Fogo Encantado que estaacute na banda sonora atesta ldquoO amor eacute filmeEacute drama aventura mentira comeacutedia romacircnticaO amor eacute filme e Deus espectadorrdquo

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

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Agenda de Novembro

Page 30: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

POR VLADMIRO NUNES

A Ponto de Fuga nasceu em 2014 da vontade (e de uma boa parcela de inconsciecircncia) de Vladimiro Nunes e Faacutetima Fonseca ele jornalista ela professora Viciados em livros e com um desejo crescente de virarem uma paacutegina das suas vidas optaram pelo caminho espinhoso de fundarem uma editora Ficou assente desde o iniacutecio que a aventura natildeo ia ater-se ao trilho estreito ainda que meritoacuterio de um uacutenico nicho mas a um panorama mais geral de ediccedilatildeo Em resumo queriacuteamos fazer bons livros sem olhar a geacuteneros na esperanccedila de que o tempo e o empenho se encarregassem de demostrar a coerecircncia do foco principal a construccedilatildeo de um cataacutelogo que inspirasse nosleitores o mesmo tipo de confianccedila que fomos adquirindo nas editoras ndash passadas e presentes mdash que nos inspiram a noacutes

Como frequentemente acontece nesta coisa das paixotildees e da proacutepria natureza humana arriscaacutemos o paradoxo de abraccedilar tudo e o seu contraacuterio a irreverecircncia e um certo classicismo nas escolhas a seriedade e o espiacuterito luacutedico o adulto e o infantil a profundidade e a leveza o escape e o apelo agrave accedilatildeo No fundo um

()Ponto de Fuga enquanto local de convergecircncia de linhas de perspetiva no horizonte mas tambeacutem mais literalmente como marca de partida para uma fuga compensadora agrave espuma dos dias jaacute para natildeo falar da nossa proacutepria laquofuga para a frenteraquo

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Agenda de Novembro

Page 31: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

Mas porque tantas vezes tambeacutem haacute que fazer o caminho para traacutes mdash nem que seja por um espiacuterito nostaacutelgico que claramente assumimos mdash decidimos em 2016 fundar uma nova chancela a PIM Ediccedilotildees (numa alusatildeo ao geacutenio versaacutetil e disruptivo de Almada Negreiros) que recuperasse um imaginaacuterio a que agora as modas chamam vintage para noacutes momentos charneira dos lados B e Z da modernidade

Daiacute que entre as duas chancelas tenhamos abraccedilado a causa de recuperar para os nossos dias em ediccedilotildees aumentadas e cuidadosas tanto a obra de Nataacutelia Correia como a de Reinaldo Ferreira (o miacutetico Repoacuterter X) que tenhamos apostado num grande romancista contemporacircneo como Antonio Muntildeoz Molina surpreendentemente pouco editado em Portugal nos uacuteltimos anos mas tambeacutem na republicaccedilatildeo integral de um geacutenio portuguecircs ignorado Manuel de Lima que tenhamos divulgado pela primeira vez textos autobiograacuteficos de modernistas incontornaacuteveis como Virginia Woolf Gertrude Stein ou Amadeo de Souza Cardoso mas tambeacutem surpreendentes peacuterolas para a infacircncia deixadas por alguns dos nomes mais consagrados da literatura do seacuteculo XX Faulkner Cummings Hughes e outros que temos no prelo

Nestes cinco anos (jaacute) natildeo foram poucas as vezes que o nosso caminho mdash da cultura ao papel do conviacutevio agrave amizade mdash se cruzou com o da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Aqui nos acolheram sempre com o mais generoso sentimento de partilha e incentivo (muacutetuo de resto) mdash para lanccedilamentos sessotildees e o mais que nos lembraacutessemos de propor Eacute sintomaacutetico que essa cumplicidade se traduza agora numa coabitaccedilatildeo que permita mais comodamente unir forccedilas e potenciar o trabalho em conjunto no objetivo comum de promover o pensamento o saber e a cidadania num espaccedilo criativo de absoluta liberdade

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

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Page 32: D E S A R M A D A - Fábrica Braço de Prata · predadores da natureza que nos deu berço. Gosto de olhar para a carta geológica de Portugal e tentar perceber as várias idades do

entrevista joseacute salgueiro

Por nuno nabais

NN Como eacute que tudo isto comeccedilouJS Eu venho de uma famiacutelia da classe meacutedia Nasci e vivi na zona de Benfica A minha famiacutelia habitava uma daquelas vivendas salazaristas que soacute eram entregues a pessoas que tivessem dois ou mais filhos Mas antes de irmos viver para esse bairro de Benfica os meus pais viviam no Beato aqui mesmo ao lado da Faacutebrica do Braccedilo de Prata Frequentavam uma coletividade que havia aqui a colectividade Sol e Doacute Natildeo sei se existe ainda ou natildeo Nessa coletividade a minha matildee participava muito Ela queria cantar queria fazer Revista Natildeo nos podemos esquecer que na altura a Revista era a arte maior ao niacutevel popular E o meu pai que tinha frequentado as Belas Artes desenhava e pintava os cenaacuterios para os espectaacuteculos dessa colectividade Foi assim que os meus pais se conheceram E eacute curioso hoje dar-me conta de que eles se conheceram no Beato numa colectividade mesmo ao lado da Faacutebrica onde desde haacute alguns anos toco tantas vezes Ou seja alguma coisa de mim enquanto muacutesico jaacute vinha ali nesse cruzamento numa colectividade do Beato entre uma cantora de revista e um cenoacutegrafoAleacutem disso eu cresccedilo com dois irmatildeos mais velhos muito ligados agrave muacutesica Eles passavam o tempo a tocar Recordo-me que as primeiras posiccedilotildees na guitarra foi um dos meus irmatildeos que me ensinou em casa Posso portanto dizer que a minha relaccedilatildeo com a muacutesica se

faz com os meus pais (sobretudo a minha matildee) e com os meus irmatildeos

Na minha adolescecircncia comeccedilo a tocar guitarra Consigo entrar para um pequeno conjunto de baile que iam fazer uns bailaricos de santos populares Consegui entrar porque havia uma vaga para o baixista Mas a minha ideia era mais riacutetmica Comeccedilo a interessar-me por bateria Saio entatildeo do grupo e comeccedilo a tocar bateria num outro grupo Eram Timorenses refugiados em Lisboa Pertenciam a uma Associaccedilatildeo Luso-Timorense e viviam no Vale do Jamor Lembro-me perfeitamente de ir nessa altura muitas vezes ao Vale do Jamor e de ter feito muitos amigos ali Comprei para esse Associaccedilatildeo uma bateria Eles tocavam comigo horas e horas seguidas Aquilo ajudou-me muito a evoluir

Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Um belo dia fui ver um concerto numa cave em Campo de Ourique Descubro entatildeo um grupo de jazz onde estava o Tomaacutes Pimentel no saxofone e onde estava tambeacutem creio o Joseacute Eduardo no contrabaixo Eu natildeo gostava de jazz ateacute agravequele momento Mas ali percebi vaacuterias coisas de forma muito intensa Em primeiro lugar a forccedila do que estava a acontecer entre os vaacuterios muacutesicos daquela banda Ao mesmo tempo o rigor e a liberdade de cada instrumento Depois tomei consciecircncia de que depois de alguns anos a fazer experiecircncias com a bateria eu tambeacutem podia fazer parte daquela banda eu tambeacutem me poderia aproximar daquele niacutevel Decidi entatildeo entrar para a escola do Hot Club

Comeccedilou aiacute a minha ligaccedilatildeo com muacutesica no sentido da aprendizagem sistemaacutetica Foi aiacute que conheci a seacuterio o Joseacute Eduardo Uma pessoa muito importante na minha formaccedilatildeo Conheccedilo tambeacutem aiacute o Joseacute Martins outro professor que estava laacute a dar aulas Ele foi igualmente decisivo na minha formaccedilatildeo Nessa nossa classe do Hot Club estavam laacute uns membros dos ldquoTrovanterdquo Todos eles estavam a frequentar a escola

NN De forma separada ou os vaacuterios membros dos Trovante jaacute tinham uma experiecircncia de grupo

JS Eles jaacute existiam como Trovante Mas estavam laacute de forma independente simplesmente para terem aulas individuais O proacuteprio Joseacute Martins que foi meu professor como jaacute referi fazia jaacute parte do grupo dos Trovante Eu comecei a ir ver os concertos do grupo natildeo soacute por causa do professor mas porque tambeacutem gostava muito daquela forma musical daquela ldquofoacutermulardquo que os distinguia das outras bandas que foram aparecendo em Lisboa Eu sentava-me sempre na primeira fila Um dia acabei por me sentar na bateria Fui convidado a entrar para o grupo E de repente fui do zero a oitenta Passei de um mundo onde ningueacutem te conhece e fazes apenas aquilo que tu proacuteprio consegues para um palco e logo um palco enorme com muita gente agrave frente

E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

Clique aqui para aceder agrave apresentaccedilatildeo de Francisco Louccedilatilde no

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E aiacute descobres que gostas muito do que estaacutes a fazer A minha vida mudou radicalmente De repente o teu destino passa a ser aquele Podia ter sido outro se natildeo tivesse entrado para aquele grupo Eu teria seguido eventualmente outro caminho na muacutesica Mas aquela oportunidade condicionou absolutamente tudo o resto As nossas escolhas marcam-nos Cada coisa que fazemos determina para sempre o que somos e aquilo que seremos para o futuro E foi assim que eu de repente apareccedilo como muacutesico profissional e a construir uma carreira naquele mundo freneacutetico dos anos 70 e 80Pouco depois o grupo desmancha-se Eu procuro outras soluccedilotildees Toquei um ano com o Rui Veloso por exemplo Toquei tambeacutem com o Vitorino Ou seja toquei com muitos grupos que hoje em dia satildeo verdadeiros iacutecones da muacutesica portuguesa Entre eles recordo muito bem o tempo que passei num grupo como os Gaiteiros de Lisboa Integrei aquela experiecircncia durante 8 anos Aiacute faccedilo uma outra coisa comeccedilo a trabalhar dentro do mercado da muacutesica no sentido tambeacutem de ser agente Passo a procurar trabalho para os Gaiteiros de Lisboa Formo uma empresa soacute de eventos empresa essa que ainda tenho mas que jaacute natildeo funciona a esse niacutevel Esse trabalho como agente daacute-me uma visatildeo mais completa do como eacute que tudo isto funciona No entanto depois de muitos anos com os Gaiteiros de Lisboa cheguei agrave conclusatildeo de que ser empresaacuterio e ser muacutesico ao mesmo tempo natildeo me dava os frutos que eu esperava Descubro que natildeo me sinto feliz como agente

Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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Aquilo de que gosto mesmo eacute de tocar E tudo o que eacute o outro lado da organizaccedilatildeo acaba por me retirar tempo a esse prazer que eacute o prazer de tocar e viver a bolha da muacutesica Agraves vezes tenho que fazer o trabalho do empresaacuterio mas apenas para ter mais condiccedilotildees como muacutesico Acabei por desistir de continuar a ser o agente dos Gaiteiros de Lisboa

NN Mas os Gaiteiros continuam natildeo eacuteJS Os Gaiteiros continuam sim Mas comecei a fazer os meus proacuteprios projectos Fiz o projecto do Adufe Foi uma encomenda da Expo 98 Eles atribuiacuteram vaacuterios instrumentos tradicionais a vaacuterios muacutesicos O Joatildeo Brites director da Companhia O Bando que era o programador geral ligou-me Explicou-me a ideia geral e disse-me ldquopara ti o instrumento ideal eacute o Aduferdquo E isso mudou a direcccedilatildeo do meu trabalho Eu nunca pensei fazer aquilo Como eacute obvio eu nunca me teria dedicado ao universo do adufe se natildeo tivesse tido aquele convite Acho que muitas vezes os artistas satildeo confrontados com determinados convites e desafios que os obrigam a recriar-se novamente Eles satildeo como que obrigados a partir outra vez do zero a tomar outras direcccedilotildees exactamente porque tecircm um desafio exigenteE a histoacuteria eacute muita curta Havia trecircs budgets diferentes para um palco pequenino um palco meacutedio ou para o grande palco da praccedila Sonny Claro que o budget para a praccedila Sonny era um budget que interessava tinha muito mais

dinheiro Comecei por transformar coisas pequenas em formatos gigantes Mando construir adufes gigantescos E laacute fiz um grande espectaacuteculo de adufes para a Expo em 98 Esse projecto ainda aguenta quatro anos de vida Consigo fazer alguns espectaacuteculos durante esse periacuteodo Mas depois deixo morrer o projecto Eacute verdade que mais tarde volto a retomaacute-lo Acho mesmo que jaacute retomei o projecto umas duas ou trecircs vezes Posso dizer que eacute um projecto com vinte e tal anos Mas natildeo eacute um projecto que ande sempre na estrada De vez em quando retomo o trabalho com os adufes meto-lhe outras componentes e continuo Neste momento por exemplo estaacute parado

N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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N Falemos do que fazes agora

JS Agora fiz um disco em nome proacuteprio com composiccedilotildees minhas e com muacutesicos que ateacute apresentei aqui na Faacutebrica Eacute o Disco ldquoTransporte Colectivordquo Recentemente fui actuar ao Festival de Jazz do Seixal com este projecto e laacute fiz uma gravaccedilatildeo ao vivo Depois perguntei agrave direcccedilatildeo do festival se eles natildeo estariam interessados em apoiar a ediccedilatildeo E eles disseram que sim Como este ano fazem 20 anos e nunca tinha sido editado nenhum disco gravado ao vivo laacute nem com os estrangeiros nem com nenhum dos portugueses acharam piada agrave ideia e deram-me algum dinheirinho Deu para pagar a faacutebrica pagar o fabrico da capa deste novo disco a dizer ldquoTransporte Colectivordquo ao vivo no Festival de Jazz do Seixal de 2018 Claro que ofereci uma parte significativa da ediccedilatildeo agrave proacutepria organizaccedilatildeo do Festival Para eles poderem tambeacutem oferecer Eacute uma forma de estar no activo e de passar a outras pessoas a realidade do trabalho que estamos a fazer

NN Entretanto tens vaacuterios outros projectos ligados ao jazz como aquele com vaacuterias baterias que apresentaste uma vez aqui na Faacutebrica

JS Sim tenho o ldquoTim-tim por tim-tumrdquo eacute um colectivo de bateristas

NN E que sucesso tem tido este projecto por esse mundo fora

JS O Sucesso eacute relativo Eacute um sucesso sobretudo para quem assiste agrave performance - isso se a performance correr bem Eacute uma coisa que tem muito a ver com o estado de espiacuterito ou pode sair bem ou pode sair melhor ainda Em princiacutepio natildeo sai muito mal Tenho ainda o projecto Locomotiv Jaacute existe haacute 20 anos Eacute o grupo que mais sinto como meu Eacute o Carlos Barreto no contrabaixo o Marco Delgado na guitarra e eu na bateria Tocamos juntos haacute 20 anos Criaacutemos uma linguagem muito proacutepria que se nos tornou depois muito familiar 20 anos de contacto entre estes 3 muacutesicos datildeo origem a uma espeacutecie de telepatia Haacute uma maneira de construir as coisas e de reagir ao que os outros muacutesicos fazem que torna o nosso trabalho em algo de muito uacutenico Natildeo eacute uma coisa esporaacutedica Eacute uma coisa que vai sendo alimentada e o que vai produzindo efeitos musicais que a noacutes mesmos surpreendem Eacute Jazz claro Mas hoje em dia o Jazz pode ser muita coisa

NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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NN Que diferenccedila haacute por exemplo entre a linguagem do Transporte Colectivo e o LocomotivJS Eacute bastante diferente O Locomotiv eacute um grupo liderado pelo Carlos Barreto Ele eacute um bocado o mentor ateacute da proacutepria forma de improvisar ou de natildeo usar harmonia Haacute ideias de base na nossa linguagem que satildeo criadas pelo Carlos Barreto e agraves quais depois noacutes nos adaptamos Eu aprendi imensas coisas com ele agrave conta disso Tocar sem harmonia deixar que as coisas acontecessem sem estarmos presos a estruturas Neste uacuteltimo CD de Locomotiv chamado ldquoGnosisrdquo consegui meter 2 temas meus Foram muacutesicas que fiz para Transporte Colectivo mas que por acaso coincidiram com o tipo de linguagem do Locomotiv Satildeo temas que fui fazendo ao longo de anos e que andavam na gaveta como toda a gente faz Os criativos vatildeo criando e vatildeo guardando porque muito dessas coisas natildeo estatildeo prontas ou natildeo estatildeo acabadas E ficam ali um bocadinho em stand by Agraves vezes satildeo revisitadas e recuperadas O processo que aprendi com o Locomotiv apliquei em Transporte Colectivo Tem uma melodia forte uma ideia concreta Mas a improvisaccedilatildeo eacute sobre a ideia do tema e natildeo sobre uma estrutura demasiado fechada Eacute assim que eu gosto de fazer muacutesica improvisada ouvir o que os outros tecircm a dizer

para responder Eacute uma conversa que acontece ao vivo que acontece com os instrumentos e com os sons

NN Se tivesses que pensar na diferenccedila de registros onde jaacute trabalhastes Trovante Gaiteiros de Lisboa Locomotiv Transporte Colectivo Tim-Tim por Tim-Tum etc Como eacute tu falavas desta tua heteronomia esta capacidade de ter tantos personagens a trabalhar em tantas linguagens diferentesJS Podem ser heteroacutenimos completamente independentes Mas haacute uma coisa transversal que eacute a tua proacutepria personalidade a tua proacutepria maneira de sentires a muacutesica a tua forma de intervir Porque eacutes aquela pessoa e aquela personalidade De alguma forma eu acho que consegui criar uma linguagem minha que estaacute presente em todos os registos Quando eu toco quem me ouvir pode dizer isto eacute o Salgueiro

NN Quanto te escutas em disco imediatamente percebes que eacutes tu que estaacutes a tocar

JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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JS Mais ou menos Eacute um bocado como quando te vecircs ao espelho Tu sabes que eacutes tu mas por alguma razatildeo tu estaacutes ao contraacuterio estaacutes invertido tambeacutem Ou como quando tu eacutes fotografado Podes gostar ou natildeo das fotografias E a muacutesica eacute um bocado isso tambeacutem E ouccedilo e agraves vezes natildeo gosto do que estou a ouvir - e sei que sou eu que estou a tocar E tenho que ir agrave procura do meu proacuteprio ego Umas vezes para o meu conforto digo que estaacute bem e que estou a ser auto-criacutetico em demasia a ser muito exigente Outras vezes sou mesmo terriacutevel comigo mesmo Percebo os lugares onde falhei se

bem que eu natildeo procure a perfeiccedilatildeo

NN Mas tu trabalhas imenso todos os dias Dizes que natildeo procuras a perfeiccedilatildeo mas estaacutes num processo permanente de aperfeiccediloamentoJS Sim sobretudo de manutenccedilatildeo Porque se natildeo estivermos sempre em constante manutenccedilatildeo rapidamente a maacutequina comeccedila a perder a velocidade e parar

NN Fazes esse trabalho de manutenccedilatildeo nas Jams a tocar com outros muacutesicos ou eacute mais um trabalho solitaacuterioJS Eu toco muito em casa muitas vezes a explorar coisas que nem eu proacuteprio sei Aliaacutes com muita frequecircncia fico sentado ao piano com as matildeos a tocar ao acaso Nesses momentos natildeo sabes muito bem o que estaacutes a fazer em termos teoacutericos Estaacutes a deixar sair os sentimentos e esses sentimentos essas dinacircmicas essas nuances satildeo as tuas vivecircncias musicais mais singulares E eacute bom saberes lidar com isso Porque eacute aiacute que estaacute o fundo a raiacutez a fonte de tudo o que fazes

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