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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
1
Observação:
Este material foi produzido para fins exclusivamente didáticos, sem fins lucrativos (com
recurso governamental), com tiragem limitada para utilização nos cursos de
capacitação vinculados ao Projeto Integrando Ações em Educação em Direitos
Humanos, desenvolvidos no ano de 2009. Os textos são uma coletânea de referências
na área de Direitos Humanos. Sua reprodução ou cópia pode ser realizada, desde que
sejam resguardados os autores e as respectivas fontes e referências, e também não
possua fins comerciais.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
2
Sumário
Apresentação....................................................................................... 3
Cultura da Paz na sala de aula e nos espaços educativos..................................... 4
O “Magistério” do gênero: Impactos da vida de discentes e docentes................... 17
Educação em direitos humanos: desafios atuais............................................. 31
O que é educar para a cidadania?.............................................................. 44
Educação em Direitos Humanos de que se trata?........................................... 48
Educação em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa
perspectiva interdisciplinar ................................................................... 59
Cultura da Paz.................................................................................... 74
Direitos Fundamentais:.......................................................................... 78
Cidadania e politização da educação ........................................................ 99
Situações conflitivas: alguns casos.......................................................... 102
Educação e violência: qual o papel da escola ............................................ 110
Educação Moral e Política de Crianças e Direitos Humanos............................ 116
Cartilha "Consciência e Cidadania"........................................................ 124
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
3
Apresentação
Há muito tempo fazia-se necessário um documento que contemplasse as políticas e
ações a serem desenvolvidas pelos diversos órgãos públicos e entidades da sociedade civil no
que se refere à Educação em Direitos Humanos. Com este objetivo, no ano de 2003 formou-se
um comitê composto pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação e
Ministério da Justiça, UNESCO e representantes da Sociedade Civil, desenvolvendo-se o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH.
Este plano representou (e representa!) uma importante conquista no campo dos direitos
humanos no Brasil, na medida em que declarou o compromisso do Estado brasileiro com a
promoção de uma cultura de Direitos Humanos nos diferentes espaços de formação dos
indivíduos (educação básica, educação superior, educação não formal, educação dos
profissionais do sistema de justiça e segurança e educação e mídia).
A partir do PNEDH tornou-se mais fácil visualizar como a sociedade civil, organizações
governamentais e não-governamentais, organismos internacionais, universidades, escolas de
educação infantil, do ensino fundamental e médio, mídia e instituições do sistema de segurança
e justiça poderiam contribuir na construção de uma cultura voltada para o respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana.
Assim, o crescimento da educação infantil, a universalização e a melhoria da qualidade
do ensino fundamental e médio, a ampliação e o aperfeiçoamento do ensino superior, a inclusão
de pessoas com necessidades educacionais especiais, a profissionalização de jovens e adultos, a
erradicação do analfabetismo e a valorização e melhoria da qualidade da formação inicial e
continuada dos professores e demais educadores têm sido os eixos estruturantes das políticas
desse plano, que possibilitam o conhecimento e a consolidação dos direitos humanos.
Diante disso, a capacitação em Educação em Direitos Humanos enquadra-se no PNDH
como uma etapa fundamental do projeto, uma vez que também tem como escopo o
enfrentamento das reais dificuldades que envolvem a educação no Brasil.
Cabe ressaltar que o termo Capacitação não é usado no sentido estrito, apesar do que
sugere o nome. O objetivo é formar uma consciência humanista por meio das trocas de
experiências no aspecto relação aluno-professor e promover melhores condições educacionais.
Deste modo, desejamos que todos tenham uma boa capacitação, e que esta possa levar a
vocês e, conseqüentemente à comunidade que os cerca, dicas preciosas de Direitos Humanos e
Cidadania!
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Eixo I
Módulo I
Cultura da Paz na sala de aula e nos espaços educativos Cleber Lizardo de Assis1
A Educação para a Paz é um tesouro2
Embora a educação ambiental já faça parte do cotidiano do educador, apenas
agora estamos despertando para a necessidade vital de incluir a Educação para a Paz, e
apoiar a UNESCO no movimento gerador de mudanças de uma cultura que prega
saberes, valores e ações voltados para a violência, para uma cultura comprometida com
a paz e a não-violência.
A Educação para a Paz é um “processo pelo qual se promovem conhecimentos,
habilidades, atitudes e valores necessários para induzir mudanças de comportamento
que possibilitam às crianças, aos jovens e aos adultos a prevenir a violência (tanto em
sua manifestação direta, como em sua forma estrutural); resolver conflitos de forma
pacífica e criar condições que conduzam à paz (na sua dimensão intrapessoal;
interpessoal; ambiental; intergrupal; nacional e/ou internacional)”.
Referenciais interessantes emergem desta definição. A Educação para a Paz é
um processo que dura toda nossa vida, permeia todas as idades, seu campo de atuação é
por essência complexo e multifacetado. Além de acontecer nas escolas, tem que estar
presente em nosso cotidiano: nos meios de comunicação, nas relações pessoais, na
organização das instituições, no meio da família.
A educação é um processo cultural no qual estamos totalmente imersos. Em
contato com os aprendizes, quer estejamos ou não dentro do espaço de uma escola, a
educação permeia tudo que nos cerca, os gestos, olhares e palavras. As posturas e
movimentos. Há um discurso silencioso em nossa presença, que movimenta ideais,
transmite valores e percepções. 1 Cleber Lizardo de Assis. Educador, Teólogo e Psicólogo. Mestrando em Psicologia/Processos de Subjetivação-PUC Minas; Integrante do Fórum Mineiro de Direitos Humanos/GT Educação em Direitos Humanos. Atua em educação e projetos sociais desde 1991. Email: [email protected] 2 Texto para leitura introdutória ao módulo “Cultura e Paz na sala de aula e nos espaços educativos” a ser ministrado junto ao curso de Educação em Direitos Humanos, por Cleber Lizardo de Assis ‘kebel’.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Educar para a Paz requer o “querer bem” dos aprendizes. Não há educação sem
transformação. Não há mudança sem encontro, acolhimento e espaço de partilha.
Envolve, enfim, uma mudança profunda em nossos sistemas de pensamento e de ensino,
pois não se preocupa apenas com a transmissão de saberes, mas com a formação de uma
nova maneira de ser.
Educar para a Paz envolve a geração de oportunidades para comunhão de
significados e afetos. Assim como o agricultor deve arar, afofar o terreno, deixá-lo rico
em nutrientes e irrigá-lo, devemos criar um ambiente propício e acolhedor para que as
sementes da paz possam germinar. Isto envolve criatividade, abertura para promover
uma qualidade nova nos espaços de ensino/aprendizagem a fim de transformá-los em
locais de humanização e sensibilidade.
E como descobrir o prazer de aprender nos espaços educativos? Sem prescindir
da lógica e da razão, devemos criar uma atmosfera de liberdade e alegria. O humor, por
exemplo, é um dos fatores importantes para abrir as portas do conhecimento e da
curiosidade.
Tal descoberta é um desafio, pois historicamente a educação, privilegiando o
pensamento e a inteligência, desprezou as experiências de afeto e desafeto, alegria e
tristeza, aceitação e desprezo que ficaram confinadas na memória corporal. Assim
provocou-se uma grande ruptura, tratando-se os educandos como simples recipientes de
conhecimento.
O primeiro passo está em permitir e incentivar a expansão do movimento
corporal dos aprendizes, geralmente aprisionados na rigidez dos bancos escolares, nas
cadeiras dos computadores, nos assentos dos ônibus, dos carros. Se a educação for uma
atividade prazerosa, propicia confiança e curiosidade, aceita novos desafios, constrói a
paz.
Para gerar atitudes inovadoras devemos ter a coragem de romper padrões e criar
novas formas de Ser, Conviver, Conhecer e Fazer. Ensinar a criatividade e fazê-lo
criativamente são caminhos fundamentais da Educação para a Paz.
Uma pessoa saudável e autoconfiante permite a expressão e incentiva a
investigação do novo, do possível e desejável, mantendo uma atitude aberta para o
encontro com a diversidade. Aprender a transitar pelo “universo das diferenças” e levar
os aprendizes conosco nessa viagem exige reconhecer a existência dos preconceitos e
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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abrir mão deles, pois persistem arraigados, provocando injustiças sociais, econômicas e
guerras, apesar da diversidade ser a raiz da vida e da cultura.
Aliás, quando lemos os jornais ou ouvimos o noticiário, temos a impressão que
um recurso natural espontâneo, “O Amor”, está à beira da extinção. Crianças de rua,
presídios abarrotados, filas intermináveis nos hospitais.
Dentro deste mundo carente, é uma pena que a educação muitas vezes se
esqueça que temos um desejo inato de contato e de nos tornar significativos para os
outros. Esta falta de afeto é ainda mais dolorosa nos setores vulneráveis da nossa
sociedade: entre as crianças, os jovens e os idosos.
A vida parece vazia quando nossos corações estão fechados. Educar para a Paz
pede o exercício da compaixão. Nosso meio ambiente tem sido muito agredido, da
mesma maneira estão adoecidas a interioridade humana e as relações entre as pessoas. A
Educação para a Paz preocupa-se em minimizar essas dores. Não dispensa o rigor do
pensamento acadêmico, mas sem dúvida, o transcende.
A Educação para a Paz é fundamental para resolver conflitos de forma madura e
saudável, visto que eles fazem parte do cotidiano de todas as pessoas, em todos os
tempos e lugares. É uma oportunidade de desenvolvermos conceitos positivos nas partes
envolvidas, através da compreensão do ponto de vista do outro.
É também uma oportunidade de darmos suporte emocional aos envolvidos,
demonstrando o valor da confiança nas pessoas e nos processos que levam à paz.
Em nossas escolas, grande parte das vezes, os estudantes acumulam saberes de
seus professores e realizam uma troca de informações. Quando a disciplina ou o curso
termina os participantes esquecem uns dos outros, e a vida continua como se nada
tivesse acontecido.
Na proposta da Educação para a Paz devemos seguir um outro caminho: não
importa a idade de seus educandos, o que vale é criar laços de afeto e confiança mútua.
Nós, seres humanos, somos totalmente dependentes do afeto. Desde o primeiro instante
de vida precisamos do calor e do cuidado que nos conforta e legitima.
Para nos desenvolver de maneira saudável, precisamos da estrutura e da
confiança dos adultos. Entretanto, a grande Mãe é o planeta Terra que, vista do espaço,
é uma pérola azul navegando na imensidão do cosmos, um útero de criação, que abriga
uma vastidão de maravilhas naturais. E todos os seres humanos alimentam-se,
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inteiramente dependentes, dos recursos do planeta: da água, da terra e de uma variedade
incontável de produtos provenientes dela.
Neste século, não podemos prescindir das questões relativas ao bem-estar da
sociedade e da natureza. O fato é que estamos indo longe demais, ao servir a interesses
imediatos de uma cultura que cultiva a violência e a acumulação em detrimento do bem-
estar social e ecológico.
Para concluir, não podemos nos esquecer que as palavras têm um poder muito
grande, talvez seja por isso que todas as religiões do mundo recitam preces, mantras,
cântigos sagrados. Os poetas e sábios de todos os tempos nos iluminaram com versos
que nos acompanham por toda a vida, no transcorrer de gerações.
Na educação, na família, na sociedade, as palavras amigas nada custam a quem
as profere e só enriquecem quem as recebe. Afinal, quem não gosta de ouvir expressões
como: “você fez um bom trabalho”; “você é capaz”, “sentimos falta de você”.
A Educação para a Paz está, em sua essência, comprometida com um futuro de
bem-estar para a humanidade, e com o meio ambiente.
Não se pode mudar os erros do passado, mas podemos construir um futuro
saudável, tão cheio de criatividade quanto a própria vida.
E, talvez, a descoberta mais valiosa a ser feita pelo ser humano neste
século seja que a palavra “NÓS” é a mais importante de todas.
Manifesto 2000anifesto 2000
O Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência foi esboçado por um
grupo de laureados do prêmio Nobel da Paz. Milhões de pessoas em todo o mundo
assinaram esse manifesto e se comprometeram a cumprir os seis pontos descritos
abaixo, agindo no espírito da Cultura de Paz dentro de suas famílias, em seu trabalho,
em suas cidades.
Tornaram-se, assim, mensageiros da tolerância, da solidariedade e do diálogo.
A Assembléia Geral das Nações Unidas declarou o período de 2001 a 2010 a
“Década Internacional da Cultura de Paz e Não-Violência para as Crianças do Mundo”.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Rejeitar a violência
Ser generoso
Ouvir para compreender
Preservar o planeta
Redescobrir a solidariedade
Girapaz3 – Oficinas que promovem a paz
Cleber Lizardo de Assis4
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Objetivo (s):
- Identificar os elementos promotores e dificultadores da paz;
- Organizar ações que promovam uma cultura da paz em diversos contextos grupais e
sociais.
- Facilitar uma prática de mediação de conflitos interpessoais e intergrupais;
- Introduzir a reflexão e vivência sobre cidadania e direitos humanos.
3 Girapaz: nome, oficina e metodologia ludo-pedagógica que criamos a partir de um mix de cata-vento e girassol e que em torno da qual se discute a promoção da paz nos mais diversos contextos; pode ser reproduzido desde que seja citada a autoria; 4 Educador, Teólogo e Psicólogo. Mestrando em Psicologia. Atua junto a projetos sociais desde 1991. Desenvolve oficinas e cursos em Educação, Psicologia e Projetos sociais. Integrante do Fórum Mineiro de Direitos Humanos/GT Educação em Direitos Humanos. Email: [email protected] 5 Ilustrações: João Marcos
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Públicos:
Sugerimos essa seqüência de 03 vivências para todas as idades e tipos de grupos
(crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos etc), respeitando as variações por faixa
etária e particularidades grupais.
Nesse sentido, os mais diversos grupos poderão interagir ao final e estarão
refletindo sobre a paz, através de um entrelaçamento de idéias, sentimentos e
experiências.
Tal metodologia pode mobilizar toda a consciência coletiva e tornar-se geradora
de paz em pequenos grupos, no projeto e na comunidade.
VIVÊNCIA I – A PAZ, ONDE ESTÁ?
Tamanho do grupo e tempo exigido: 50 a 60 min., até 20 pessoas Recursos necessários e ambientação: Sala com cadeiras e mesas, canetas, lápiz e giz de cera, folhas. Desenvolvimento (descrição de cada etapa, observações metodológicas etc):
1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em
roda. Segue as boas vindas etc;
2 – Objetivo: Deve-se adiantar o objetivo do encontro: "hoje vamos conversar e
aprender sobre a paz, e de uma maneira diferente...";
3 – “Provocação” do grupo:
- “O que é a paz”... "alguém pode nos dar exemplos de situação de paz" etc.
- Procure ouvir o que o grupo sabe, suas experiências e idéias, através dessa e de outras
perguntas simples. Esse é um momento de ouvir e nada de dar "lições de moral" ou
adiantar a conclusão;
4 – Registro:
- Se tiver quadro pode ir anotando as contribuições, mas se não tiver apenas registre
verbalmente;
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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5 – Organize quatro sub-grupos e distribua:
- se crianças distribua giz de cera, lápis de cor e uma folha para cada;
- se adolescentes e jovens, caneta e uma folha;
6 – As tarefas e desafios:
6.1 – Boas lembranças:
- lembra de situações e momentos que sentiram ou tiveram paz, que se sentiu bem, feliz,
tranqüilo... em a) casa, b) escola, c) em grupos de amigos, d) meninos e meninas e)
bairro, f) cidade, g) país (nessa seqüência, mas pode-se acrescentar outros).
- Dar um tempo e pedir que compartilhem no próprio grupo;
6.2 – Más lembranças (Alternativa, melhor para crianças maiores e adolescentes):
- Pode-se descrever uma cena real ou fictícia, um fato histórico ou contar uma história
mais lúdica cujo enredo fale de conflitos não resolvidos, seja em casa, escola ou cidade,
- o/a facilitador/a pode pedir a algum voluntário para se expressar ou pode pedir ao
grupo que monte uma pequena dramatização;
7 – Conclusão/Processamento
• Escute o grupo sobre seus sentimentos e idéias, facilidades e dificuldades encontradas
nas atividades;
• Procure coletar elementos que favoreceram situações de paz, sejam nos desenhos,
relatos e encenação;
• Estimule o grupo a identificar durante a semana, seja em casa, escola, grupo de
amigos, entre meninos e meninas ou no bairro elementos que promovem ou não a paz.
• Despedida, provocação que novas atividades/jogos os esperam e se possível, lanche.
VIVÊNCIA II - AMARELINHA (crianças) e MEDIAÇÃO DE CONFLITOS (adolescentes e jovens)
1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em
roda. Segue as boas vindas etc;
2 – Objetivo: avançar na reflexão e vivência sobre a paz.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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3 – “Provocação” do grupo:
3.1- Procure ouvir o que o grupo sobre a tarefa semanal, se notaram em casa, escola,
grupo de amigos, entre meninos e meninas ou no bairro elementos que promovem ou
não a paz.
3.2 – Rap dos diferentes iguais: distribui a letra da música e a toca num aparelho de cd,
seguindo de uma breve discussão sobre as diferenças de identidade de cada pessoa no
grupo
(letra: “eu não sou você, você não é eu, somos diferentes, porém somos iguais”)
4. Jogo amarelinha da paz (preferencialmente com crianças – veja atividade para
adolescentes e jovens no item 5)
4.1 – Organizar o grupo em dois sub-grupos que irão competir (separar de preferência
de forma aleatória);
4.2 – Desenhar no chão uma amarelinha (com 6 quadros ou mais, céu e inferno ou lua e
céu)
4.3 – As regras (valem as regras básicas do jogo, acrescido de):
- o/a facilitador/a é juiz do jogo;
- cada grupo deve recolher seu representante para jogar (podem revezar);
- O grupo adversário escolhe a situação: casa, escola, grupo de amigos, entre meninos e
meninas, bairro, cidade, país, mundo – para que o jogador elabore sua resposta com
ajuda de seu grupo;
- para avançar nos quadros, o jogador deve dizer um elemento ou forma de se promover
paz, sem sair da amarelinha e consultando seu grupo;
- Se o jogador e seu grupo demorar a responder (pode-se combinar um tempo de 10
segundos para a resposta) perde e passa a vez para o adversário;
- Ganha o grupo que chegar primeiro no céu/lua;
Obs.: o juiz poderá lidar com situações de conflito que o jogo e a competição
despertam, o que deve ser acolhido para a própria reflexão do grupo;
- Pode-se fazer as variações necessárias e de acordo com o grupo, contexto cultural e a
contribuição do/a facilitador/a.
5 Mediação de conflitos:
- Organizar o grupo em 4 sub-grupos
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- Distribuir caneta e uma folha com o quadro abaixo, por grupo
- Os grupos terão cerca de 20 minutos para completar o quadro e ao final devem
apresentar.
- Cada grupo deve discutir e elaborar pelo menos uma resposta por coluna.
Categorias Situação de conflito Possível mediação Raça Classe social Gênero Sexualidade Religião Diversidade cultural Time de futebol Pais e filhos Grupo de amigos Bairro Cidade País
Obs.: o quadro deve ser ampliado de forma a ocupar uma folha inteira e permitir
respostas detalhadas.
6 – Conclusão/Processamento
• Escute o grupo sobre seus sentimentos e idéias, facilidades e dificuldades encontradas
na atividade;
• Procure coletar elementos que favoreceram situações de paz nos diversos contextos;
• Articular os achados com noções de cidadania e direitos humanos (a reflexão sobre
diversidades pode ser decisiva aqui).
7 – Despedida: agradecimento, provocação de que falta um encontro com um desafio
final e, se possível, lanche.
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VIVÊNCIA III – CONSTRUINDO O GIRAPAZ (todas idades e públicos) Tamanho do grupo e tempo exigido: 50 a 60 min., até 20 pessoas
Recursos necessários6 e ambientação: Sala com cadeiras e mesas, canetas, lápis e giz
de cera, folhas, folhas de papel cartão ou cartolina, tesouras sem ponta, cola, palito de
picolé...
1 – Acolhida: O/a facilitador/a deve acolher o grupo, organizado preferivelmente em
roda. Segue as boas vindas etc;
2 – Objetivo: avançar na reflexão e vivência sobre a paz.
3 – “Aquecimento” do grupo:
- Recapitule elementos principais dos dois encontros anteriores (em geral, temos
elementos marcantes de cada encontro)
4 – Sobre a paz
- Destacamos esses elementos por julgá-los essenciais e que ajudam a ‘costurar’
fragmentos das atividades anteriores
- Procure adequar palavras de acordo com seu público;
Assim:
• Paz não é ausência de diferenças ou conflitos por idéias, crenças ou interesses;
• Paz é algo dinâmico, que se aprende e se pratica;
• Paz é deve ser alimentada e desenvolvida;
• Paz é algo que integra o interior (emoções, sentimentos, pensamentos) e exterior
(comportamentos e relacionamentos em todos os lugares);
• Paz não é algo apenas individual e para ser plena deve sempre incluir o outro, colegas,
o grupo, o bairro...;
• Paz pode estar tanto em pequenas e simples, como em grandes e complexas situações
• Paz não é algo apenas 'espiritual', apenas ‘de dentro’, mas também de fora, coletivo,
comunitário e social.
6 Os recursos para confecção do Girapaz poderão variar de acordo com o modelo que o/a facilitador/a propor, indo de algo ‘pré-fabricado’ para ajudar crianças de certa idade a algo mais engenhoso com grupo de adolescentes e jovens; em todos os casos pode-se pedir ajuda a alguém com habilidades plásticas.
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• Paz está relacionada a relações justas e respeitosas;
5 – Confecção do girapaz (diversas variações, conforme o público):
5.1 – Distribuir o girapaz pronto, individualmente, com tempo e material para colorir e
pintar; restando apenas o preenchimento de cada pétala com palavras ou pequenas frases
de 'coisas' que promovem a paz; no centro escreve-se "PAZ";
5.2 – Distribuir o girapaz de forma pré-fabricada, de forma que suas partes sejam
montadas, individualmente: em cada pétala deve se escrever palavras ou pequenas
frases de 'coisas' que promovem a paz; no centro escreve-se "PAZ";
5.3 – Passar o projeto geral do girapaz e deixar que cada grupo construa o seu e
apresente ao final;
Importante:
- Variações: fazer um girapaz pequeno e individual e um outro gigante e grupal;
- Deve-se criar situação para que ao final se apresente ao próprio grupo e a outros
públicos, seu girapaz individual ou grupal, pequeno ou grande.
- Pode-se estimular as crianças menores a presentear seus familiares com o girapaz.
6 – Conclusão/Processamento (das três vivências):
• Estimule ao grupo expor seus sentimentos e idéias sobre os elementos que favorecem
situações de paz nos diversos contextos;
• Articular os achados com noções de cidadania e direitos humanos.
• Procure levar os integrantes do grupo a visualizarem situações do dia-dia em que
poderão aplicar o que se aprendeu.
7 – Despedida: agradecimento e se possível uma festa de confraternização.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Alguns modelos que podem servir para confecção do girapaz:
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Referências e sugestões de fontes
ASSIS, Kebel. Rap dos diferentes iguais. In. Farroupilha Grupo de Teatro, Histórias de
Bichos, Ipatinga/MG: 2001 (solicitar música em mp3 pelo email:
DIACONIA, Renascer na Esperança, cartilha do Projeto Paz Familiar/Núcleo Cristão
para a superação da Violência Familiar, Recife: 2002.
DIREITOS HUMANOS (materiais em diversos formatos e para diversos públicos): www.dhnet.org.br DISKIN, Lia e Roizman, LAURA Gorresio. Paz, como se faz?: semeando cultura de
paz nas escolas. Brasília: Governo do Estado de Sergipe, UNESCO, Associação Palas
Athena, 2002. (um rico acervo de sugestões de atividades em diversas linguagens e
técnicas) disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001467/146767POR.pdf
Prezado/a educador/a,
Após a leitura introdutória, o momento presencial de curso, segue ainda uma sugestão
para sua prática com crianças e adolescentes em escola ou em projetos sociais.
Leia a vivência do Girapaz, faça suas adaptações do material e procure aplicá-la.
Ao final da atividade com as crianças e adolescentes, elabore um breve relato de uma
página sobre essa experiência: como foi? os destaques e pontos positivos, as
dificuldades e sugestões, as conquistas do grupo – se possível, tire e encaminhe fotos
também. Esse relato deverá ser enviado para o email geral do curso:
Havendo dúvidas sobre essa atividade, faça-nos contato: [email protected]
Abraço,
Cleber Assis ‘kebel’
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Módulo II
O “Magistério” do gênero: Impactos da vida de discentes e docentes7
Adla Betsaida M. Teixeira
Ainda não há evidências históricas ou científicas que confirmem a existência de
um sistema de desigualdade nas relações sociais entre homens e mulheres como algo
que exista desde sempre. Pode-se, entretanto, numa história mais recente, encontrar
alusão a tal segregação num sentido metafísico e, posteriormente num sentido biológico.
Segundo Birman (in Negreiros, 2004 e Birman, 2002), até o século XVIII, o sexo
masculino era considerado como “dominante, regulador, perfeito”. Com a Revolução
Francesa, imbuída de ideais de igualdade para todos, surgiu um “masculino”
superiorizado atestado pela “razão” biológica, tratado como uma referência, como um
modelo de perfeição. Nessa visão, homens e mulheres são diferenciados, identificados
como complementares anatômico e fisiologicamente, alocados em espaços e papéis
sociais distintos, padronizados segundo suas maneiras de relacionarem entre si.
Os séculos XIX e XX trazem as idéias de “igualdade de direitos”, que perpassam
os discursos nas lutas sociais e políticas e até mesmo no discurso científico
(NEGREIROS, TAGS, 2004). Nesse contexto, ganha visibilidade a condição de
desigualdade das mulheres, assim como de outros grupos humanos.
Com esses movimentos, surge o conceito de gênero, que tratará as diferenças e
semelhanças entre homens e mulheres como produto de construções sociais. O conceito
de gênero nega a “razão” biológica e aponta os aspectos culturais como produtores das
diferenças entre os sexos (SCOTT, 1990). Portanto, muda-se, radicalmente, o
entendimento sobre comportamentos de homens e mulheres. Para além disso, tal visão
criou a distância necessária entre os conceitos de sexo e gênero, humanizando aqueles
que não se “encaixavam” propriamente ou “apropriadamente” nesses dois universos
(masculino e feminino) tão rígidos.
Com efeito, este texto busca refletir sobre as formas que as organizações
escolares arquitetam identidades, no caso, de gênero. Aqui, compreende-se a escola
7 Os dados aqui explorados são originados de projetos de pesquisa iniciados em 1996 até o período de 2007, projetos esses que contaram com o auxílio financeiro do CNPq; FAPEMIG e PRPq/UFMG.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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como uma comunidade viva que reproduz, mas também tem autonomia para gerar
padrões de comportamento. Dessa maneira, as situações escolares e a forma como os
indivíduos a experienciam serão resultados da interação e disputas entre os vários
grupos e indivíduos: docentes, discentes, corpo administrativo, pais e outros membros
de significância nesses espaços. A escola se autocontrola.
Procurar-se-á, portanto, compreender o “processo de des-intelectualização” do
trabalho docente ao associar “feminilidade” e magistério, fruto da micropolítica8
escolar. Num segundo momento, atentar-se-á para as ações de docentes (professores ou
professoras) como elementos poderosos de propagação de padrões de comportamento.
São os/as docentes que apresentam às crianças visões conservadoras e ultrapassadas
sobre masculinidade e feminilidade (definindo possibilidades para homens e mulheres
nos âmbitos público e privado). Por último, centrar-se-á nas questões de gênero geradas
pelas duas situações anteriores no comportamento de alunos e alunas.
Desde que previamente discutidos pela comunidade escolar, realmente não se
pode reprovar o uso da escola para confirmar certos comportamentos. Todavia, o fato é
que o reforço a certos padrões de comportamento pode gerar perdas a curto e longo
prazo àqueles que transitam nos espaços escolares. As questões de gênero na educação
escolar ainda são discutidas, mas ativamente presentes nas práticas pedagógicas.
Nas retóricas dos profissionais nas escolas, numa primeira escuta, encontra-se
um discurso moderno, de igualdade entre os sexos, mas logo se contradizem. A
segregação entre homens e mulheres nos espaços escolares é defendida e justificada por
um discurso pseudocientífico (em geral, com foco na função reprodutiva ou de
complementaridade entre homens e mulheres), às vezes, em nome da segurança e
inocência das crianças. Este discurso, que de fato não se trata de ciência, lida com a
conveniência, ou seja, faz uso de especulações científicas sobre o ser homem ou mulher.
Estas ainda são bastante instáveis do ponto de vista científico. Porém, se chamadas de
ciência ganham autoridade suficiente nos discursos, deixando muito pouco espaço para
contestação, para as diferenças. Trata-se aqui de uma inquisição da ciência, ou seja,
8 Por micropolítica escolar entenda-se o campo em que grupos ou indivíduos disputam poderes. Das lutas por poderes inicia-se um processo em que as representações e expectativas sobre a figura docente são usadas como instrumentos de sedução, de convencimento, enfim, uma moeda forte nas negociações e conquistas de territórios. Assim, estereótipos de gênero, relacionados à figura docente, tornam-se recursos estratégicos, úteis nestas lutas (TEIXEIRA, 1998).
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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quando há uma apropriação de hipóteses ou conceitos ainda instáveis na ciência pelo
senso comum. Aqui, a ciência vira dogma.
Encontra-se, ainda, um discurso de conotação religiosa, em que o divino
predetermina a segregação segundo os sexos. Em raros momentos, encontram-se
ensaios ingênuos em defesa da igualdade entre homens e mulheres. Nesses escritos, a
existência de homens-professores é aceita desde que detenham características
“femininas” identificadas nas professoras: “amabilidade”, o “afeto”, o “cuidado”.
Noutros, a presença de homens é identificada como importante para substituir a
presença paterna ou contribuir com um modelo pelo qual o menino deve se pautar,
afinal a escola tem “muitas mulheres”. Mesmo assim, a aceitação desse modelo
masculino é imediatamente frustrada como mostram os relatos de homens
“afeminados”, suspeitos para o convívio com crianças, ou pelo receio quanto à
“natureza masculina” (violentos, impacientes para o trato com crianças menores). Essas
características consideradas inatas nos homens são apontadas como responsáveis pelo
afastamento dos homens do magistério.
Curiosamente, ao falar de trabalho, o discurso muda: as mulheres passam a
serem consideradas inadequadas, infantis, impróprias para o mundo “sério" do trabalho,
“fofoqueiras”, “não-profissionais”, “sentimentais”, “faladeiras”, “dispersas”, entre
outros (TEIXEIRA, 1998). Elege-se um modelo de profissionalismo tradicional, uma
versão masculina. Assim, os professores são vistos, pelos/as docentes como “mais
sérios”, “objetivos”, “focados”.
Apesar de criticadas por suas posturas não convencionais como profissionais,
contraditoriamente, as professoras são estimuladas a interpretar o papel de “cuidadoras
universais”. Tal papel alivia o corpo administrativo das escolas, os pais e também o
governo das responsabilidades sociais para com as crianças. A indução vem em várias
formas. O texto abaixo, por exemplo, foi distribuído por uma supervisora escolar às
professoras na data de comemoração do Dia dos Professores. Ele revela as imagens que
são valorizadas num docente exemplar:
Oração da Mestra (Gabriela Mistral) ... Dá que eu seja mais mãe que as mães, para amar e defender, tanto quanto elas, aquilo que não é carne da minha carne... Põe, na minha escola democrática, a luz que caia em resplendores tamisados sobre os meninos
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
20
descalços, que uma vez te cercaram... Faz-me forte, ainda em minha desvalia de mulher, e de mulher pobre; faze-me desprezar todo poder que não seja puro, toda pressão que não seja a de tua vontade ardente sobre a minha vida... Que a minha mão seja leve no castigo e ainda mais suave na carícia. Que repreenda com dor para saber que corrigi amando! Que eu transforme a escola de espírito a minha escola de tijolos. Que a flama de seu entusiasmo lhe envolva o átrio pobre e a sala desnuda... Que eu lembre, por fim, contemplando a palidez da tela de Velásquez, que ensinar e amar intensamente sobre a Terra é chegar ao último dia com a lança de Longuinho a transpassar-me o lado! (Dia 15 de outubro é o "Dia do Professor. Com esta página de Gabriela Mistral, procuramos homenagear àqueles a quem o País tanto deve. Obrigado professores mineiros, por nos terem ensinado a manejar a maior arma do universo. A arma do saber (In Teixeira, 1998 p.159 ).
De forma similar, o corpo administrativo escolar também tem suas rotinas
profissionais influenciadas pelas questões de gênero. Mulheres-diretoras relatam
experimentar demandas ambíguas ao desempenhar o papel de diretoras. Assim, sentem-
se compelidas a assumir um modelo “masculino’ de liderança significando:
“racionalidade”, “autoritarismo”, “objetividade”, “maior controle. Tais atributos são
vistos como “prova” de competência para liderar tal qual o homem. Mas, ao mesmo
tempo são compelidas a interpretar a “gerência de uma grande família”, ou seja, sua
rotina de trabalho inclui várias tarefas que ultrapassam o pedagógico e o administrativo,
pois a elas cabe o cuidado de terceiros. Isso implica um envolvimento afetivo-
emocional com a comunidade. Esse modelo, que tem sido apontado como importante
demanda da escola agrada, principalmente, os pais, pois os libera das responsabilidades
para com seus filhos.
Decorre dessas confusas demandas um “processo de des-intelectualização” dos
docentes e dos outros profissionais da escola. Nesse processo, o caráter humano ocupa
centralidade nas preocupações da escola, negligenciando suas funções pedagógicas e de
educação formal (TEIXEIRA, 1998).
Sabe-se, no entanto, que os esforços para corresponder às expectativas ao
assumir um cargo, neste caso, das mulheres principalmente, nas comunidades escolares
estão também relacionados à sobrevivência profissional. Nesse sentido, podem ser
citadas as eleições para o cargo de direção como exemplos interessantes quando as
questões de gênero são usadas como instrumentos de sedução da comunidade.
A patrulha escolar sob aqueles que ousam desafiar os “padrões de
comportamento” da escola culminará na exclusão ou na difamação do profissional. Em
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
21
alguns casos, colegas fazem uso da “fofoca” junto aos pais para pressionar a professora
a “saber o lugar dela”. Essas atitudes demonstram formas genuínas de poder. A
propósito, eis o relato desta diretora:
“[...] as professoras... são mais atenciosas. Elas têm esta habilidade exatamente por causa
do lado feminino... são como mães. A maioria é assim... paciente. Na sociedade brasileira...
as mulheres são responsáveis por isto, cuidar de crianças. Mesmo agora que muitos homens
ajudam, não é a mesma coisa. Quando as coisas ficam difíceis são as mulheres que estão lá
(risos)... Mesmo que eu pense que a presença dos homens nas escolas... é interessante porque
teríamos uma relação masculina... Isto seria interessante porque os meninos teriam os dois
lados... Mas as mulheres são mais sensíveis. Os homens são mais pragmáticos... Eles não se
preocupam se as crianças estão chorando...”
.
Assim como os profissionais nas escolas, a vida das crianças é afetada pelas
questões de gênero. Nas rotinas escolares, meninos e meninas são expostos à mensagens
sobre como devem se comportar, sobre o que se espera deles e delas, ou o que lhes é
permitido ou proibido e, mesmo do que é “normal” a cada um gostar.
Com efeito, nas microorganizações escolares, os/as docentes têm um papel
importante realizando o que se denomina, aqui, de o “magistério” do gênero. Assim,
expressando-se oralmente ou por escrito, ou mesmo por gestos, atitudes, os/as docentes
legitimam “modelos” de ser (homens ou mulheres) e agem estranhando e coibindo
padrões de comportamento considerados adequados de acordo com o sexo.
De fato, a escola tem se pautado por valores bastante conservadores,
principalmente quanto às questões de gênero. O conservadorismo se expressa nas
dinâmicas escolares, desde a vigilância com a aparência dos alunos (vestimentas,
posturas ditas apropriadas para meninos e meninas), passando pelo controle do que se
pode ou não falar e pensar, até à divisão dos espaços escolares (filas, banheiros, listas de
presença, brincadeiras). Lembram às crianças, rotineiramente, suas diferenças. A
“polícia” dos comportamentos se estende das imagens e mensagens que estampam as
paredes das escolas, até as imagens e textos dos livros didáticos. Tudo conspira para
uma padronização de comportamentos diversificados para “eles” e “elas”. O mesmo
ocorre nos currículos aos quais meninos e meninas são expostos, mas, necessariamente,
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
22
não têm igual acesso. Essa desigualdade ocorre de maneira silenciosa, disfarçada por
vezes nas “amáveis” interações entre professor/a-aluno/a que enfatizam diferentes
“virtudes” e aptidões em meninos e meninas (TEIXEIRA et al, 2008).
Após várias exposições e sanções quanto ao que podem ou não fazer, as crianças
passam a se autocontrolar e mesmo a exercer controle dos colegas quanto aos
comportamentos possíveis de acordo com o sexo.
A cultura da escola faz com que respostas estáveis sejam esperadas e
que o ensino de fatos seja mais importante do que a compreensão de
questões íntimas. Além disso, nessa cultura, modos autoritários de
interação social impedem a possibilidade de novas questões e não
estimulam o desenvolvimento de uma curiosidade que possa levar
professores e estudantes a direções que poderiam se mostrar
surpreendents. Tudo isso faz com que as questões de sexualidade
sejam relegadas ao espaço das respostas certas e erradas (Britzman,
2003, p.85-86)
Através do “bulling” assiste-se à “inquisição dos gêneros”. Assim, orientados
por seus mestres, aprendem, com o tempo, a exercer controle de seus colegas, definindo,
estimulando e criticando desvios quanto às normas de “ser menino” e “ser menina”.
O caso abaixo ilustra uma situação de rejeição desse modelo. Trata-se de
meninos em aula no laboratório de Física (Coltec-UFMG). Esses alunos resistiram a
desenvolver as atividades propostas pela professora, passando vários momentos do
curso fingindo fazê-las e ela não deu conta do fato. Já os quadros a seguir mostram
como esses adolescentes têm já cristalizados certos padrões de masculinidade e
feminilidade.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
23
Episódio-
Subturma Turnos de Fala
3 - A
28 - NEY: Quem vai fazer o relatório? /
29 - ALEX: Eu? / você já viu a minha letra né? ///
30 - NEY: A minha letra é horrorosa /// ***
31 - ADÃO: Não contem com a minha /
32 - ALEX: Ò gente / vão ó /
33 - ADÃO: Vocês é que vão fazer aí ó! /
34 - ALEX: Vai você mesmo /
35 - ELI: Ai que saco /
36 - ADÂO: Quem tem caderno? /// [os alunos anotam os resultados
do quadro]
Figura 1 –
Grupo de
meninos:
relação com a
escritaEpisódio
Turnos de Fala
24
167- ANA: Deixa eu medir você LUMA [BIA e ANA começam a medir
o braço da aluna LUMA]
168- BIA Ahh não / o braço da LUMA é muito grande! [risos] ///
169- ANA: Não, mas tem que medir até o centro que é com a mão
fechada *** [ANA indica como deve ser feita a medida].
170- LUMA: cinqüenta até aqui ó
171- BIA: Nossa / mas que bração LUMA! [risos]
172- ANA: Cinqüenta / mais vinte e cinco
173- LUMA: Não, mas tem que medir até aqui ó.
174- BIA: Ahh é
175- LUMA: Aqui não é o centro não [risos] / que é isso LUMA?
176- BIA: É aqui ó / olha aqui ó
177- ANA: Ahh tá / é prá medir aqui depois aqui / cinqüenta / mais
vinte e cinco
178- BIA: Mais quinze
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
24
179- ANA: Setenta e cinco mais quinze?
180- BIA: É ó... noventa
181- LUMA: Até aqui ó
182- ANA: Mais vinte e cinco de novo / mais ou menos / mais vinte e
cinco
183- LUMA: Quanto que deu?
184- ANA: Noventa mais vinte e cinco | um metro e quinze | cento e
quinze né
185- LUMA: Noventa mais vinte e cinco / cento e quinze / só? / cento e
quinze só! / gente que isso! / então / cento e quinze centímetros / só que
tem que transformar em metros
186- BIA: Um metro e quinze centímetros
187- ANA: Só que eu acho que ela tem um braço muito grande pra
gente tirar uma média / Olha aqui!
188- BIA: Olha o cinqüenta já tá quase no final do meu braço! [as
alunas ANA e LUMA estão medindo o braço da aluna BIA]
189- ANA: A LUMA / não dá pra tirar uma média pela LUMA não! |
é!|
190- LUMA: Vão *** o braço *** bem medido ***
191- ANA: É bem medido ***
192- BIA: Até aqui mais ou menos né? / até o topo da cabeça
|Cinqüenta trinta vinte e cinco ***| diferença de dez centímetros
***|tira uma média né| ///
Figura 2 - Grupo de Meninas e Relação com o corpo
Aqui, a escola desempenhou, com sucesso, sua função de “educadora” de corpos
e mentes. Apesar das perdas em termos de envolvimento acadêmico que se estabelece
para meninos e meninas, há ganhos indiretos. Os meninos escapam dos trabalhos
escolares sem que professores percebam, na verdade, talvez até acreditem que “meninos
são assim” – indomáveis. Quanto às meninas, conseguem negociar melhor com a
escola, pois adotam comportamentos de docilidade, submissão tão valorizados pelas
escolas.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
25
Com efeito, ao invés de desafiar seus estudantes quanto aos estereótipos sobre os
sexos ou quaisquer outros preconceitos, a escola insiste em aplicar velhas retóricas.
Perante do novo ou da “resposta incorreta”, a escola não desafia, ela se sente desafiada.
Afinal, o que fazer diante de tantas novidades, de tantas organizações familiares, de
tantas condições de gênero? A escola se equivoca ao entender o descompasso de idéias
como desrespeito. Tal situação gera crises internas, desencadeando, entre docentes e
estudantes, sentimentos de mal-estar, confusos quanto ao que fazer. Afinal, qual o papel
da escola e dos/as docentes?
Não há uma resposta singular para essa questão. A escola certamente influencia
as identidades de seus alunos e alunas e certamente de seus profissionais. Mas, as
identidades se constroem na interação com os outros, apesar da possibilidade de se
construírem de maneira autônoma. Se não houvesse essa possibilidade não haveria
casos de resistências de alunos apesar de educados dentro de normas restritas, mesmo
sem conhecer outras versões de “ser”.
O caso abaixo exemplifica este desvio. Temos, aqui, crianças e professoras que
contradizem as percepções sobre a infância-inocência:
Professor:...Acontece de algumas alunas ou alunos chegarem e você sente que o
rendimento não esta... muito legal... Já é uma abertura para ela desabafar... Que o pai
fez isto que, sabe? ... Uma aluna chegou perto de mim e perguntou... Como é que um
homem sabe que uma mulher teve orgasmo... Com alunas adolescentes... eu não tenho
envolvimento extra sala sabe. Eu não posso dar atenção exclusiva (!) eu tenho que dar
atenção no todo. E ai... parece que sofre uma insatisfação, toma raiva... Passa a ser
agressiva... Eu já tive problemas demais com isto |(!)... Não é presunção não, mas
parece que eu tenho um certo carisma... que vai envolvendo, mas não é uma coisa que
eu faço... A menina já tentou me agarrar, me beijar... É constrangedor. Este ano eu já
recebi vários bilhetes, às vezes colocava assim anônimos... dentro da caixinha... dentro
do livro... Eu tenho a consciência que eu não provoco isto, porque neste momento eu
entro dentro da sala de aula... eu não estou pensando em mim, eu penso no trabalho
que eu tenho que desenvolver”... Eu já fui assediado sim no corredor.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
26
Que tipo de assedio?
A menina já tentou me agarrar me beijar, sabe eu tenho um... é engraçado e
constrangedor. Este ano eu já recebi vários bilhetes às vezes colocava assim anônimos
né, dentro da caixinha às vezes esperava eu distrair e punha dentro do livro, eu tenho
estes problemas, sabe. Que eu tenho a consciência que eu não provoco isto, porque
neste momento eu entro dentro da sala de aula eu não estou pensando em mim eu penso
no trabalho que eu tenho que desenvolver, inclusive eu fui muito claro com a
orientadora, mais aí é realmente uma coisa que... que eu até entendo são adolescentes.
Segundo relato de um dos professores entrevistados, a professora dizia “gostar
de ensinar aos mais novos” revelando que saía com seus alunos menores (adolescentes)
para iniciação sexual. Esse relato contraria as percepções da professora como mãe,
como um ser assexuado, devotada ao “cuidado” das crianças e acima de qualquer
suspeita.
Entende-se, aqui, que identidade não é um produto inalterável, ao contrário, é
precisamente sua instabilidade que permite a mudança. Não há, portanto, uma
identidade cristalizada, mas várias que se fundem ou desaparecem ao longo da vida.
Portanto, há esperança para intervenção. A construção das identidades se faz pelo
aprendizado sem “pontos finais”. Tal construção não se restringe a apenas salas de aulas
ou à transmissão de conhecimentos sistematizados.
Apesar de seu primeiro compromisso ser com a transmissão de uma educação
sistematizada, a escola não se reduz a isso. Nem tão pouco cabe a ela realizar
julgamentos de valor, mas analisar todas as informações, dar acesso a outras maneiras
de estar no mundo. Para tanto, ao lidar com conhecimentos sistematizados, a escola
precisa dialogar com o senso comum, cujas referências confortam e dão significado ao
mundo dos indivíduos quando desafiados por informações estranhas. Ignorá-lo seria
como zerar as experiências do indivíduo, o que é impossível no processo de
aprendizagem. Assim, apropriar-se do senso comum, das crenças é o passo inicial para
que “certezas” sejam desconstruídas e, assim, outras identidades sejam reconstruídas. O
senso comum, quando devidamente tratado se transforma em enfrentamentos de
“fantasmas sociais”. Sentimentos, valores, estereótipos se não discutidos, ouvidos, são
apenas fantasmas, portanto, não existem, de fato, mas são apenas pressentidos e
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
27
temidos. E, se pressentidos não são tocáveis, mas assumem um poder intenso sob os
indivíduos.
Portanto, para que a escola ocupe um lugar significativo para aqueles que a
freqüentam e para que tenhamos uma educação que vise à mudança social será preciso
enfrentar discussões, conversas desconfortáveis e, algumas vezes, assustar/desafiar com
outras visões de mundo.
No entanto, o que ocorre nas comunidades escolares é um gerenciamento dos
comportamentos segundo os sexos, seja das crianças, dos/das próprias docentes e até
mesmo das famílias. Esse controle não se dá apenas segundo um modelo de direção
escolar, que privilegia a segregação entre os sexos, mas entre os próprios pares:
professores e funcionários, enfim por toda a comunidade escolar. Assim, professores e
professoras, apesar de mesmos cargos e salários, têm suas vidas profissionais e privadas
policiadas segundo parâmetros de ordem sexual. Constata-se um tratamento distinto
dirigido às mulheres e aos homens na docência do ensino fundamental e médio
(TEIXEIRA, 200?). Dessa maneira, professoras e professores são submetidos e se
submetem a micropolítica das organizações escolares, conduzindo-os/as a uma re-
significação equivocada de docência. Tal equívoco conduz à evidente descaracterização
das funções docentes, um processo denominado “desintelectualização” docente. Em
conseqüência, práticas pedagógicas contrárias à eqüidade social aflaram. Tais práticas
reproduzem concepções equivocadas sobre “identidades de gêneros” que são
transmitidas aos(as) alunos(as) podendo gerar, principalmente nas crianças, barreiras
psicológicas e materiais.
A segregação sexual não decorre, entretanto, do mero credo na natureza
“masculina” ou “feminina”. Ela gera poderes, ajudando certos grupos ou indivíduos a
maximizarem seus interesses.
Não se pode ignorar, porém, que da mesma forma que em outras organizações
de trabalho, as escolas também se constroem pelas disputas de poderes legitimados ou
não, poderes esses, talvez, que fogem da concepção tradicional de poder. Essas disputas
por poderes influenciam fortemente as identidades e trajetórias profissionais das(os)
docentes e, conseqüentemente, dos/das alunos/alunas. Não obstante as perdas, nessas
situações, de alguma forma, todos se beneficiam ao ratificar percepções tradicionais
relativas ao sexo. Alguns ganham eleições, outros conseguem “escapar da sala de aula”,
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
28
outros evitam o trabalho. E, por vezes, os pais também usufruem dessa manipulação
sentimental das escolas e delegam às escolas as funções da família.
Afinal, a escola prefere o silêncio, a negligência ou o conservadorismo a lutar
contra conceitos de educação de meninos e meninas baseado na forte concepção da
biologia do comportamento para cada sexo. Entretanto, nessa percepção, o sexo torna-se
“objeto inquestionável” (dado como fato pré-cultural), que informa uma série de
atributos morais que não têm relação direta com a Biologia (HARAWAY, in
AGUIAR, 1997).
Em adição, diz Louro:
Da arquitetura aos arranjos físicos; dos símbolos às disposições sobre comportamentos
e práticas; das técnicas de ensino às estratégias de avaliação; tudo opera na
constituição de meninos e meninas, de homens e mulheres – dentro e também fora da
escola (uma vez que a instituição ‘diz’ alguma coisa não apenas para quem está no seu
interior, mas também para aqueles/as que dela não participam (LOURO, 1997, p. 91).
Conclusão
A escola arquiteta, de acordo com sua micropolítica, ações que “magistram” o
gênero marcando profundamente as vidas escolar e profissional de discentes e docentes.
Retarda-se, assim, a implementação de eqüidade na educação justa e possível para
ambos os sexos.
Assim sendo, talvez o maior desafio da escola ainda seja romper com um
discurso pseudo-científico, noutras palavras, romper com o senso comum que enquadra
a nós todos como homens ou mulheres, meninos ou meninas, validando apenas uma
identidade masculina ou outra feminina. Para isso, supõe-se que o primeiro passo seja
chamar a sensibilização dos docentes para a questão do gênero levando-os a questionar
como a distinção sexual influenciou e influencia suas trajetórias de vida.
Acredita-se que este processo de autoconhecimento possibilitará ao docente
(des)normatizar, desnaturalizar, e, sobretudo, desenvolver certo estranhamento com
relação aos papéis, espaços e talentos específicos estabelecidos para homens e mulheres.
Tal estranhamento é construído pelo diálogo com o senso comum, com os preconceitos
dos/das docentes. Eles, uma vez cientes dos prejuízos da segregação sexual, passarão a
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
29
ser os/as multiplicadores para a mudança junto às crianças e à comunidade, objetivando
uma educação anti-sexista e igualitária.
Referências bibliográficas
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BRIZTMAN, Débora Curiosidade, Sexualidade e Currículo. In: O Corpo Educado. Pedagogias
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NEGREIROS, Tereza CGM Sexualidade, gênero no envelhecimento. Alceu, 5:9-77-86. 2004.
LOURO, Guacira L Gênero, Sexualidade e Educação. Uma perspectiva Pós-estruturalista. Editora Vozes.
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PEREIRA, Sissi AM & MOURÃO, Ludmila: Identificações de gênero: jogando e brincando em
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SCOTT, Joan Gênero: Uma categoria útil de Análise Histórica In: Educação e Realidade, 1(2):5-22. 1990
TEIXEIRA, Adla BM The domestication of the primary school teaching: a brazilian case study (PhD
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______________ Identidades Docentes e Relações de Gênero. Revista Fundação Helena Antipoff, Ibirité
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______________ et al. Exploring Modes of Communication among Pupils in Brazil: Gender Issues in
Academic Performance. Gender and Education. Vol X, noX. P.000-000. 2008 (no prelo).
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
30
Atividades As questões abaixo objetivam avaliar o grau de entendimento que você (docente) desenvolveu com o curso sobre as questões de Diversidade na Escola.
1. Nas escolas, crianças/estudantes fazem uso de apelidos heterossexistas do tipo “bicha”, “veado”, “sapatão”. Mesmo que a criança pequena não saiba exatamente o que estas palavras implicam, elas sabem que tais palavras podem magoar outras pessoas. Qual o procedimento esperado a um/a docente nestas situações?
2. Na sua escola há uma política clara (ou já se discutiu) quanto a situações de
violências verbal ou física heterosexista? O que poderia ser feito?
3. De que maneira as ações heterossexistas podem afetar o desempenho acadêmico
(aprendizagem) de crianças na escola (meninos ou meninas)? 4. Heterossexismo não se refere apenas as ações homofóbicas. Não há apenas um
tipo de masculinidade ou feminilidade. Observe isto em sua própria família ou entre suas amigas ou amigos. Heterossexismo impede expressões de carinho e afeto entre meninos, entre pais e filhos, impedem o pleno acesso ao conhecimento por meninos e meninas (acesso negado a mulheres e homens em cursos ou áreas de conhecimento). Discutir sobre diversidades na escola, em especial de gênero, é uma questão de justiça social. Transformar a escola em um ambiente onde indivíduos se sentem respeitados e seguros é uma questão de respeito aos direitos humanos, contribuindo para uma educação verdadeiramente inclusiva. Quais medidas poderiam ser tomadas para o enfrentamento destas violências na sua sala de aula?
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Eixo II
Módulo I e II
Educação em direitos humanos: desafios atuais Vera Maria Candau
O atual contexto internacional, certamente, não constitui um cenário propício à
afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos. O documento final da Conferência
Regional sobre Educação em Direitos Humanos na América Latina e Caribe, promovida
pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU e pela UNESCO, realizada
no México, de 28 de novembro a primeiro de dezembro de 2001, afirma:
Esta Conferência expressa sua preocupação porque no momento presente o exercício dos Direitos Humanos pode ser subordinado a políticas de segurança nacional, assim como pelo fato de se ter produzido uma imobilidade em relação a apoiar agendas para avançar nos direitos humanos, concretamente as relativas às recomendações da Conferência de Durban.
Globalização, políticas neoliberais, segurança global, essas são realidades que
estão acentuando a exclusão, em suas diferentes formas e manifestações. No entanto,
não afetam, igualmente, a todos os grupos sociais e culturais, nem a todos os países e,
dentro de cada país, às diferentes regiões e pessoas. São os considerados “diferentes”,
aqueles que, por suas características sociais e/ou étnicas, por serem pessoas com
“necessidades especiais”, por não se adequarem a uma sociedade cada vez mais
marcada pela competitividade e pela lógica do mercado, os “perdedores”, os
“descartáveis”, que vêm, a cada dia, negado o seu “direito a ter direitos”. (ARENDT,
1997).
Este é o nosso momento. Nele temos de buscar, no meio de tensões, contradições
e conflitos, caminhos de afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos, que penetre
todas as práticas sociais e seja capaz de favorecer processos de democratização, de
articular a afirmação dos direitos fundamentais de cada pessoa e grupo sócio-cultural,
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
32
de modo especial os direitos sociais e econômicos, com o reconhecimento dos direitos à
diferença.
Articular igualdade e diferença: uma exigência do momento
Esta é uma questão fundamental no momento atual. Para alguns, a construção da
democracia tem que colocar a ênfase nas questões relativas á igualdade e, portanto,
eliminar ou relativizar as diferenças. Existem, também, posições que defendem um
multiculturalismo radical, com tal ênfase na diferença, que a igualdade fica em um
segundo plano.
No entanto, o problema não é afirmar um pólo e negar o outro, mas sim, termos
uma visão dialética da relação entre igualdade e diferença. Hoje em dia, não se pode
falar em igualdade sem incluir a questão da diversidade, nem se pode abordar a questão
da diferença dissociada da afirmação da igualdade.
Uma frase do sociólogo português Santos (1997) sintetiza, de maneira
especialmente oportuna, esta tensão: “temos direito a reivindicar a igualdade sempre
que a diferença nos inferioriza e temos direito de reivindicar a diferença sempre que a
igualdade nos descaracteriza.”
Neste sentido, não se deve opor igualdade à diferença. De fato, a igualdade não
está oposta à diferença e sim, à desigualdade. Diferença não se opõe à igualdade e sim à
padronização, à produção em série, a tudo o “mesmo”, à “mesmice”.
O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, negar a padronização e
lutar contra todas as formas de desigualdade presentes na nossa sociedade. Nem
padronização nem desigualdade. E sim, lutar pela igualdade e pelo reconhecimento das
diferenças. A igualdade que queremos construir, assume a promoção dos direitos
básicos de todas as pessoas. No entanto, esses todos não são padronizados, não são os
“mesmos”. Têm que ter as suas diferenças reconhecidas como elementos de construção
da igualdade.
Consideramos que essa temática, nos próximos anos, vai suscitar uma grande
discussão, um debate difícil, que desperta muitas paixões, mas que é fundamental para
se avançar na afirmação da democracia. Hoje não se pode mais pensar na afirmação dos
Direitos Humanos a partir de numa concepção de igualdade que não incorpore o tema
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
33
do reconhecimento das diferenças, o que supõe lutar contra todas as formas de
preconceito e discriminação.
A gênese da educação em Direitos Humanos na América Latina
Certamente, a luta pelos Direitos Humanos no nosso país, e em toda a América
Latina, tem sido árdua nas últimas décadas. As violações se multiplicaram com especial
dramaticidade. Muitas foram as vítimas e, em muitos casos, o resgate da memória, o
reconhecimento dos crimes cometidos em nome do Estado e a superação da impunidade
são ainda temas que não foram enfrentados com valentia e vontade política de fazer
justiça.
No entanto, a partir dos anos de 1980, as organizações e movimentos de Direitos
Humanos, sem deixarem de se dedicar à denúncia das violações realizadas e de
promoverem ações orientadas à proteção e defesa dos direitos, ampliam seu horizonte
de preocupações e seus espaços sociais de atuação. Junto aos problemas que podemos
considerar tradicionais e básicos, relativos aos direitos civis e políticos, passam a ser
enfatizadas questões relacionadas com os direitos sociais, econômicos e culturais, no
nível pessoal e coletivo. A partir deste momento, adquirem especial relevância as
atividades de promoção e educação em Direitos Humanos.
Basombrio (1992, p. 33), pesquisador que realizou um trabalho abrangente de
registro e análise do que foi a luta por uma educação em Direitos Humanos nos últimos
anos em diferentes países latino-americanos, assim sintetiza o processo vivido:
A educação em Direitos Humanos na América Latina constitui uma prática recente. Espaço de encontro entre educadores populares e militantes de direitos humanos, começa a se desenvolver simultaneamente com o final dos piores momentos da repressão política na América Latina e alcança um certo nível de sistematização na segunda metade da década de 80.
As experiências de educação em Direitos Humanos têm-se multiplicado ao longo
de todo o continente latino-americano. A partir das informações disponíveis,
constatamos que a maior parte delas tem sido realizada em âmbitos de educação não
formal, aspecto tradicionalmente privilegiado pela educação popular. No entanto, a
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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preocupação pelos processos escolares, pouco a pouco, tem-se afirmado e
algumas instituições de países como o Peru, Chile, México, Uruguai e Brasil, têm
desenvolvido trabalhos especialmente interessantes nesta perspectiva.
Para Sime (1994, p. 88)
A educação em direitos humanos nasce herdando da educação popular uma vocação explícita para construir um projeto histórico, uma vontade mobilizadora definida por uma opção orientada à mudança estrutural e ao compromisso com os setores populares. Isto marcará discrepâncias com visões educativas neutras e com outras que não compartem as mesmas opções. Nisto residia grande parte da energia ética e política de então que era partilhada por diferentes setores: propor uma sociedade alternativa e uma maneira de construí-la. No entanto, esta imagem do projeto que se assumiu nos anos 70 e 80 hoje está profundamente questionada. Aconteceram mudanças muito importantes no país e no mundo, assim como no terreno propriamente pedagógico, que exigem uma revisão do projeto histórico.
A problemática da educação em Direitos Humanos hoje na América Latina
No primeiro semestre de 1999, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos
(IIDH) da Costa Rica começou a desenvolver, com a coordenação do professor
Abraham Magendzo, do Chile, educador com uma ampla experiência de educação em
Direitos Humanos no âmbito latino-americano, um processo orientado a fazer um
balanço crítico da educação em Direitos Humanos nos anos de 1990, na América
Latina. O início das experiências nesta perspectiva, na maior parte dos países do
continente, se deu nos anos de 1980 e, nesse momento, o Instituto Interamericano teve
um protagonismo muito grande, inclusive entre nós, como estimulador e financiador de
muitas realizações.
No processo de construção do balanço crítico, foi indicado um pesquisador de
cada país para realizar um estudo de caso no seu respectivo contexto. Os países
participantes foram os seguintes: Argentina, Chile, Peru, Brasil, Colômbia, Guatemala e
México. Uma vez realizados os estudos de caso de caráter nacional, estes foram
enviados a todos os pesquisadores e foi convocado um seminário pelo IIDH em Lima,
Peru, 403 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos no mês
de novembro de 1999, para discussão e elaboração da síntese final do processo e o
levantamento de questões consideradas importantes para o desenvolvimento da
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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educação em Direitos Humanos a partir de 2000. Apresentaremos, brevemente, os
principais temas discutidos.
Um primeiro bloco se relacionava ao sentido da educação em Direitos Humanos
no novo marco político, social, econômico e cultural, isto é, na transição
modernidade/pós-modernidade, no contexto de democracias débeis ou de “baixa
intensidade” e de hegemonia neoliberal. A temática de educação para direitos humanos
nos anos 80, principalmente nos países que passaram por processos de transição
democrática, depois de traumáticas experiências de ditadura, como é o nosso caso, foi
introduzida como um componente orientado ao fortalecimento dos regimes
democráticos. No entanto, hoje a realidade é outra. O clima político-social, cultural e
ideológico é diferente. Vivemos um contexto de políticas neoliberais, de debilitameno
da sociedade civil, de crescente exclusão social e falta de horizonte utópico para a
construção social. Por outro lado, em contraste com os anos 80, em que a maior parte
das experiências de Educação em Direitos Humanos foram promovidas por ONG’s e
administrações públicas de “esquerda”, nesta última década, houve uma grande entrada
dos Estados, em geral de caráter neoliberal, na questão da educação em Direitos
Humanos. Quase todos os países latino-americanos, atualmente, têm legislações
orientadas a promover e instituir a educação em Direitos Humanos nos sistemas de
ensino. Neste novo cenário, é importante analisar e debater as questões relativas ao
sentido da educação em Direitos Humanos e os objetivos que pretende alcançar.
Uma problemática especialmente significativa nesta perspectiva diz respeito à
polissemia das expressões utilizadas neste âmbito. É importante não deixar que a
expressão Direitos Humanos seja substituída por outras mais ambíguas ou que
restrinjam a educação em Direitos Humanos a uma educação em valores, inibindo seu
caráter político. Por outro lado, hoje a educação em Direitos Humanos admite muitas
leituras e esta expressão foi se “alargando” tanto que o seu sentido passou a englobar
desde a educação para o transito, os direitos do consumidor, questões de gênero, étnicas,
do meio-ambiente, etc.. até temas relativos à ordem internacional e à sobrevivência do
planeta, de tal modo que pode correr o risco de englobar tantas dimensões que perca
especificidade e uma visão mais articulada, terminando por se reduzir a um grande
“chapéu” sob o qual podem ser colocadas coisas muito variadas, com os mais diversos
enfoques.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Um tema que suscitou acalorada discussão, foi o da cultura escolar e as
possibilidades da educação em Direitos Humanos. A cultura escolar se encontra, muitas
vezes, tão “engessada”, pensada de uma maneira tão rígida e monolítica, que,
dificilmente, deixa espaço para que a cultura dos Direitos Humanos possa penetrá-la. Na
maior parte das vezes, o máximo que se consegue, é introduzir no currículo formal
alguns conteúdos. Outra coisa se torna muito difícil, pois a maneira de se conceber a
cultura escolar já, de alguma forma, entra em choque com a cultura dos Direitos
Humanos.
Qual o horizonte de sentido da educação em Direitos Humanos?
Este tema permeou toda a discussão realizada durante o seminário, ao final do
qual se chegou ao consenso de que hoje era importante reforçar três dimensões da
educação dos Direitos Humanos.
A primeira diz respeito à formação de sujeitos de direito. A maior parte dos
cidadãos latino-americanos tem pouca consciência de que são sujeitos de direito. Esta
consciência é muito débil, as pessoas – inclusive por ter a cultura brasileira uma
impronta paternalista e autoritária – acham que os direitos são dádivas. Por exemplo,
expressões como “o patrão é bom porque me deu férias”, expressam esta posição; as
férias viram uma questão de “generosidade” e não de direito. Os processos de educação
em Direitos Humanos devem começar por favorecer processos de formação de sujeitos
de direito, a nível pessoal e coletivo, que articulem as dimensões ética, político-social e
as práticas concretas.
Outro elemento fundamental na educação de Direitos Humanos é favorecer o
processo de “empoderamento” (“empowerment”), principalmente orientado aos atores
sociais que, historicamente, tiveram menos poder na sociedade, ou seja, menos
capacidade de influírem nas decisões e nos processos coletivos. O “empoderamento”
começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela
possa ser sujeito de sua vida e ator social. O “empoderamento” tem, também, uma
dimensão coletiva, trabalha com grupos sociais minoritários, discriminados,
marginalizados, etc, favorecendo sua organização e participação ativa na sociedade
civil.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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O terceiro elemento diz respeito aos processos de mudança, de transformação,
necessários para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas e humanas.
Um dos componentes fundamentais destes processos se relaciona a “educar para o
nunca mais”, para resgatar a memória histórica, romper a cultura do silêncio e da
impunidade que ainda está muito presente em nossos países. Somente assim, é possível
construir a identidade de um povo, na pluralidade de suas etnias e culturas.
Estes três componentes: formar sujeitos de direito, favorecer processos de
empoderamento e educar para o “nunca mais”, constituem hoje o horizonte de sentido
da educação em Direitos Humanos.
Quanto às estratégias metodológicas a serem utilizadas na educação em Direitos
Humanos, estas têm de estar em coerência com as finalidades acima assinaladas o que
supõe a utilização de metodologias ativas, participativas, de diferentes linguagens.
Exigem, no caso da educação formal, a construção de uma cultura escolar diferente, que
supere as estratégias puramente frontais e expositivas, assim como a produção de
materiais adequados, que promovam interação entre o saber sistematizado sobre
Direitos Humanos e o saber socialmente produzido. Devem ter como referência
fundamental a realidade e trabalhar diferentes dimensões dos processos educativos e do
cotidiano escolar, favorecendo que a cultura dos Direitos Humanos penetre em todo o
processo educativo.
Trata-se, portanto, de transformar mentalidades, atitudes, comportamentos,
dinâmicas organizacionais e práticas cotidianos dos diferentes atores sociais e das
institucionais educativas. É importante, também, assinalar que contextos específicos
necessitam também de abordagens específicas. Isto é, não se trabalha da mesma maneira
na universidade, numa sala de Ensino Fundamental ou Médio, com o movimento de
mulheres, com promotores populares etc. No entanto, o enfoque metodológico deve
sempre privilegiar estratégias ativas que estimulem processos que articulem teoria e
prática, elementos cognitivos, afetivos e envolvimento em práticas sociais concretas.
Não é difícil promover eventos, situações esporádicas, introduzir alguns temas
relacionados com os Direitos Humanos. O difícil é promover processos de formação
que trabalhem em profundidade e favoreçam a constituição de sujeitos e atores sociais,
no nível pessoal e coletivo.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Quando pode ser considerada uma experiência como promotora dos Direitos
Humanos na escola ou fora dela? Quais seriam os indicadores que a especificam? Que
estratégias metodológicas devem ser privilegiadas? Estas são questões importantes
sobre as quais devemos continuamente refletir.
Facilmente falamos de metodologias quando elas têm muitos pressupostos,
supõem uma concepção de aprendizagem, de educação, de educar em Direitos
Humanos. O importante é não dissociar a abordagem metodológica das finalidades que
se persegue nos processos de educação em Direitos Humanos.
Desafios e Perspectivas
A primeira afirmação a sublinhar, para que possamos identificar, pelo menos,
alguns dos principais desafios que a educação em Direitos Humanos está chamada a
enfrentar no continente, é a mudança de cenário.
A educação em direitos humanos é introduzida nos anos de 1980, num período
de (re)democratização do país, onde é forte o clima de mobilização cidadã e a crença na
possibilidade de transformação social e construção de uma sociedade democrática, não
somente do ponto de vista político mas também socioeconômico e cultural. São anos
marcados pela luta, pela pluralidade de iniciativas e pela esperança. As primeiras
experiências de educação em Direitos Humanos se situam neste clima e seus principais
protagonistas são grupos e pessoas ligadas a este esforço de mudança, em linha político-
ideológica de esquerda. Os sistemas públicos que assumem projetos nesta perspectiva,
estão governados por partidos deste linha e presididos, no caso brasileiro, por
personagens como Miguel Arraes e Paulo Freire.
A década de 1990 significou uma consolidação do projeto neoliberal nas
diferentes dimensões da vida social, não podendo seu impacto ser reduzido à
reestruturação produtiva. A década terminou com uma forte recessão econômica,
elevado índice de desemprego e exclusão, anomia social, multiplicação das formas de
violência, desencanto e hegemonia da perspectiva do “pensamento único”. A frase “o
futuro já não é futuro”, pichada por um grupo de jovens nos muros da cidade do Rio de
Janeiro, expressa dramaticamente o clima do momento.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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O início do novo milênio está marcado pela contradição. Por um lado, a
hegemonia neoliberal continua se afirmando no plano interacional e os diferentes
governos, mesmo aqueles que se situam em uma perspectiva alternativa, não logram se
desprender de sua lógica, particularmente no que se refere às políticas econômicas.
Neste contexto, o discurso sobre os Direitos Humanos, parte da agenda internacional, é
assumido e ressituado dentro deste novo cenário.
Convém, também, ter presente que este novo cenário não é monolítico mas, está
atravessado por tensões dialéticas, numa correlação de forças marcada pela assimetria.
Por outro lado, numa república federativa como a brasileira, convivem diferenças e
conflitos entre diferentes níveis de governo – federal, estadual e municipal –, assim
como nas relações poder público- movimentos organizados da sociedade civil.
Tendo presente o atual cenário, vamos assinalar alguns desafios que
consideramos especialmente significativos para o desenvolvimento da educação em
Direitos Humanos:
A opção entre diferentes marcos político-ideológicos que servem de referencial
para a educação em Direitos Humanos
O discurso dos Direitos Humanos está marcado hoje por uma forte polissemia e,
conseqüentemente, as maneiras de se entender a educação em Direitos Humanos,
também. É possível distinguir pelo menos dois grandes enfoques.
O primeiro, marcado pela ideologia neoliberal, tende a ver a preocupação com os
Direitos Humanos como uma estratégia de melhorar a sociedade dentro do modelo
vigente, sem questioná-lo. Enfatiza os direitos individuais, as questões éticas e os
direitos civis e políticos, estes, centrados na participação nas eleições. Também estão
presentes temas como discriminação racial e de gênero, preconceito, violência,
segurança, drogas, sexualidade, tolerância, infância e adolescência, meio ambiente. O
horizonte de cidadania passa pela formação de sujeitos produtores e empreendedores,
assim como consumidores. Do ponto de vista pedagógico, propõe a incorporação de
temas relativos aos Direitos Humanos no currículo escolar a partir de um enfoque
construtivista e da perspectiva da transversalidade, privilegiando as dimensões psico-
afetiva, interacionista e experiencial.
O segundo enfoque parte de uma visão dialética e contra-hegemônica, em que os
Direitos Humanos são vistos como mediações para a construção de um projeto
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
40
alternativo de sociedade: inclusiva, sustentável e plural. Enfatiza uma cidadania
coletiva, que favorece a organização da sociedade civil, privilegia os atores sociais
comprometidos com a transformação social e promove o empoderamento dos grupos
sociais e culturais marginalizados. Afirma que os direitos políticos não podem ser
reduzidos aos rituais eleitorais, muitas vezes, fortemente mediatizados pela grande
mídia e pelas estratégias de marketing. Coloca no centro de suas preocupações a
interrelação entre os direitos de primeira, segunda e terceira geração e se coloca na
perspectiva da construção de uma quarta geração de direitos que incorpora questões
derivadas do avanço tecnológico, da globalização e do multiculturalismo. Acentua a
importância dos direitos sociais e econômicos para a própria viabilização dos direitos
civis e políticos. Privilegia temas como: desemprego, violência estrutural, saúde,
educação, distribuição da terra, concentração de renda, dívida externa e dívida social,
pluralidade cultural, segurança social, ecologia. Do ponto de vista pedagógico, admite a
transversalidade mas privilegia a interdisciplinaridade e enfatiza “temas geradores”.
Trabalha as dimensões sociocultural, afetiva, experiencial e estrutural do processo
educativo na perspectiva da pedagogia crítica e assume, do ponto de vista psico-
pedagógico, um construtivismo sociocultural.
Essas duas perspectivas, em muitos casos, se combinam, praticamente, não
existindo em estado puro. No entanto, é importante identificar a matriz predominante
em cada proposta e, principalmente, fazer opções claras sobre em que horizonte se
pretende caminhar. Consideramos este o principal desafio a enfrentar nos próximos
anos.
A necessidade de critérios que caracterizem a especificidade das experiências
As experiências que se apresentam como de educação em Direitos Humanos, se
situam numa ampla gama de projetos e ações. Podem incluir aquelas que se apresentam
com uma clara e explícita referência aos Direitos Humanos e trabalham, teórica e
praticamente, temas que têm a ver com sua problemática no nosso contexto numa
perspectiva educacional, como também incluem projetos que assumem, no plano do
discurso, os Direitos Humanos, sem que seja trabalhada a relação teoria-prática, assim
como aquelas ações orientadas para a formação de sujeitos sociais críticos e ativos, no
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
41
nível individual e coletivo, que promovem uma cidadania participativa mas onde a
temática dos Direitos Humanos fica implícita, não sendo trabalhada de uma maneira
sistemática. Consideramos importante clarificar os critérios básicos que permitem
delimitar, com maior precisão, o âmbito da educação em Direitos Humanos e as
condições para que determinadas experiências educativos possam nele ser situadas.
O risco da fragmentação
Nos últimos anos, houve uma enorme diversificação de trabalhos na área. De
alguma maneira, as ações se especializaram. Diferentes grupos enfatizam e assumem
componentes educativos referidos a determinada problemática: direitos das crianças, das
mulheres, dos grupos indígenas, dos negros, dos aidéticos, dos deficientes, dos idosos,
relativas ao consumidor, ao meio ambiente, etc. Esta diversificação se, por um lado,
representa uma riqueza, pode também levar a uma excessiva fragmentação.
Consideramos importante favorecer a articulação entre estes diferentes grupos, assim
como promover uma fundamentação geral que dê suporte teórico-metodológico às lutas
específicas.
A tensão entre parceria e cooptação
Outra questão de especial importância, no momento atual, diz respeito às
freqüentes parcerias entre os órgãos públicos e as organizações sociais, especialmente as
ONGs. Por um lado, as políticas públicas devem incorporar os diferentes agentes sociais
em função de sua função pública. No entanto, esta incorporação deve acontecer não
somente na etapa de execução dos programas e planos. Ela deve estar presente desde a
sua concepção, de maneira ampla, onde atores de diferentes tendências possam intervir,
não de forma reduzida aos ritos formais, mas, efetivamente, como co-autores, o que
raramente acontece. As parcerias ficam, em muitos casos, reduzidas a transformar as
organizações sociais no “braço” operacional do Estado, que transfere para elas os
aspectos de gestão das políticas públicas. Nestes casos, as ONGs, que se caracterizaram
pela autonomia em relação ao Estado - o que lhes permitiu ser uma instância crítica e
propositiva- , passam a ficar fortemente condicionadas em seus trabalhos e a inibir seu
potencial crítico em relação aos rumos da sociedade. Distinguir entre parceria e
cooptação e refletir coletivamente sobre as condições de uma e de outra, constitui um
desafio de especial importância neste momento.
Temas transversais versus temas geradores
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Do ponto de vista pedagógico, consideramos fundamental analisar as bases
teóricas e as implicações práticas dessas duas estratégias propostas para a incorporação
da educação em Direitos Humanos na Escola Básica, Fundamental e Média. Existe um
amplo consenso de que, nestes níveis de ensino, não se trata de introduzir uma
disciplina específica sobre Direitos Humanos. No entanto, uns colocam a base
conceitual, do modo de conceber a introdução no currículo escolar desta preocupação,
na interdisciplinaridade e outros, na transversalidade. As conseqüências práticas de uma
ou outra opção são diferentes. Podem ser estas duas abordagens consideradas
complementares? Em contraposição? Quais as bases teóricas que as sustentam? E suas
implicações práticas no currículo em ação?
Educação em direitos humanos e formação de educadores
O que foi possível constatar, é que ainda é tímida a introdução da temática dos
Direitos Humanos na formação de professores e educadores em geral, na formação
inicial e continuada. Poucas são as organizações que trabalham sistematicamente nesta
perspectiva. No entanto, trata-se de uma questão urgente, se queremos colaborar para a
construção de uma cultura dos direitos humanos, que penetre as diferentes práticas
sociais. Buscar estratégias, nesta perspectiva, é fundamental.
Nesta perspectiva, não se pode conceber o papel dos educadores como meros
técnicos, instrutores, responsáveis unicamente pelo ensino das diferentes áreas
curriculares e por funções de normalização e disciplinamento. Os professores e
professoras são profissionais e cidadãos, mobilizadores de processos pessoais e grupais
de natureza cultural e social. Somente nesta ótica poderão ser promotores de uma
educação em direitos humanos.
A educação em Direitos Humanos já tem caminho construído no Brasil e em
todo o continente latino-americano. No momento atual, o desafio fundamental é avançar
em sintonia com sua paixão fundante: seu compromisso histórico com uma mudança
estrutural que viabilize uma sociedade inclusiva e a centralidade dos setores populares
nesta busca. Estas opções constituíram - e acreditamos que continuam sendo - a fonte de
sua energia ética e política.
Concluímos esta reflexão que, como afirmamos no início, pretende ter um
caráter meramente introdutório e suscitar questões para o debate pedagógico no
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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momento atual, com as seguintes palavras de Salvat: (Apud MAGENDZO, 1994,
p.164).
Os direitos humanos aparecem para nós como uma utopia a promover e plasmar nos diferentes níveis e espaços da sociedade. Como tais, apresentam-se como um marco ético-político que serve de crítica e orientação (real e simbólica) em relação às diferentes práticas sociais (jurídica, econômica, educativa, etc) na luta nunca acabada por uma ordem social mais justa e livre. Neste sentido, são vistos como paradigmáticos, isto é, como modelo e/ou critério exemplar a partir do qual podemos ler nossa história e nosso futuro como povos.
Referências
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SIME, L. Educacion, Persona y proyecto Histórico. In: MAGENDZO, A. (Org.) Educación en Derechos
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Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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O que é educar para a cidadania?
Ricardo Brisolla Barestreti9
Ao abordarmos aqui o tema da educação para a cidadania fique claro que o fazemos na perspectiva da educação escolar, uma vez que nas comunidades, nas igrejas, nas organizações da sociedade civil, nas famílias, nas associações, enfim, nos mais diversos tipos, também se pode e deve estimular a consciência cidadã.
A pergunta inicial deve ser esta: educar para que? Se para a cidadania, é necessário defini-la. O que entendemos hoje por cidadania? Muito brevemente é preciso lembrar o significado dinâmico das palavras. Cidadania, no passado, era sinônimo de membro respeitável (leia-se “com poderes”, “com prerrogativas especiais”) da comunidade, com direito à participação política, à influência, à vez e voz.
Contemporaneamente, o termo “cidadania” expandiu-se e espalhou-se a compreender todo o membro da comunidade humana, com direitos e deveres pessoais, universais, indisponíveis, inalienáveis, naturais, transculturais, trans-históricos e transgeográficos. Alguns desses direitos e deveres estão magnificamente sintetizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Cidadão” é o sujeito da história, de sua própria história e, com outros cidadãos, da história de sua comunidade, de sua cidade, de sua nação, de seu mundo. Cidadania é o que se eleva em dignidade e direitos por sobre as Instituições e estruturas, por sobre o próprio Estado que, sob licença, o governa. Cidadania é todo o homem e toda mulher, sem discriminação etária, igualado pela condição humana, de onde emana todo o poder político, que somente no seu interesse se justifica.
Os dias que seguem têm resgatado como nunca o homem – e cada homem na sua individualidade socialmente mediatizada – como o centro e o sujeito da história. A relativização do papel do Estado, a “débâcle” dos absolutismos teóricos e práticos, a insubmissão crescente ao poder das elites e das massas, reconduzem, aos poucos, o homem ao papel que sempre se lhe deveria ter reservado, ao qual, hoje, para evocar dignidade, chamamos “cidadania”.
É forçoso no entanto, reconhecer que a educação passa pela percepção de sua negação, da dura realidade ainda persistente em quase todos os cantos do planeta. Paradoxalmente, a cidadania proclamada nas Cartas das Nações e nas Constituições não é mais que uma promissora declaração de intenções. Urge, assim, uma luta sem tréguas pela superação do paradoxo. Temos, então, uma resposta à indagação: “O que é educar para a cidadania?”
9 Educador no Colégio Farroupilha em Porto Alegre, Diretor Nacional e ex-Presidente da Anistia Internacional no Brasil. Coordena o Programa Nacional de Educação para a Cidadania - PRONEC
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1º - É educar para o reconhecimento dessa condição de direitos e deveres inerentes, que carregamos dentro de nós pelo simples fato de sermos gente, de qualquer raça, de qualquer credo, de qualquer nação, de qualquer extrato social;
2º - É educar para reconhecer e respeitar as diferenças no plano individual e para combater os preconceitos, as discriminações, as ofensivas disparidades e privilégios no plano social;
3º - É educar cada um para a fé no próprio potencial, como agente da transformação qualitativa da própria vida e do mundo onde está inserido;
4º - É educar para a fraternidade, para o sentido social da vida, sem jamais roubar, com isso, a singularidade de cada projeto, de cada contribuição;
5º - É educar para a luta pacífica, mas encarniçada, contra todo o sistema, contra toda a estrutura que negue a quem quer que seja o direito de ser cidadão. Enquanto houver na terra um só sem posse plena desse “status”, os demais só se justificam pela luta.
Evidentemente, este é um programa que não se cumpre a nível discursivo. A dicotomia entre discurso e prática é a negação de qualquer possibilidade educativa.
Isso quer dizer que não se pode educar para o respeito aqueles a quem não respeitamos. Não devemos falar da fraternidade aos que oprimimos. É hipocrisia pregar a participação àqueles a quem calamos.
Então, educar para a cidadania tem muito a ver com o tipo metodológico, com as relações interpessoais que estabelecemos com nossos alunos.
“Ensinar” conteúdos crítico-sociais – porque o ensino constitui-se necessariamente em um processo vertical – é um contra-senso. Aprendemos, a duras penas, que é tão possível ser conservador – e mesmo reacionário – à esquerda quanto à direita. Há aqui, pelo menos, duas vertentes dessa pedagogia, de esquerda, do absurdo: o panfletarismo proselitista, simplista e óbvio (que visa gerar consciências políticas “a forceps”), e o discurso mais articulado, aparentemente sério, intelectualizado, das vanguardas “da pedagogia cívico-social dos conteúdos”, que fazem essa bizarra proposta de alcançar o novo através do velho. A última via é, evidentemente, por mais sofisticada, mais perigosa. Avança, nas escolas, com requintes de discurso oposicionista e anti-sistema, a partir do surpreendente congraçamento dos conservadores autoritários de todos os matizes. Uma velha pedagogia que se mal traveste com andrajos do surrado discurso do prestígio e da competência. E que, como sempre, só vê competência nos modelos autoritários. Não há pejo pela forma. Concede-se uma mudança no conteúdo ideológico somente porque a forma sabe-se mais importante. É ela, a forma, que, pelo exemplo, finca as suas raízes. O resto são palavras...
dizendo de outra maneira: não se educa para a cidadania derramando retórica academicista – ainda que com pretensões a crítico-científica – sobre alunos objetos, passivos, despersonalizados, sem espaços para a liberdade (que continua sendo sempre a
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liberdade de discordar), coletores de informações, repetidores de elaborações e análises alheias, alienados de qualquer auto-conceito. Se a retórica é unilateral, se os textos são direcionados e inquestionáveis, se o aprendizado foi reduzido a testes e provas, se a avaliação tornou-se apenas uma pobre medição da memória, não há “educação para a cidadania”. Não há sequer educação! Mesmo que isso tudo venha perfumado com o discurso crítico-social da competência. O adestramento (perdoem a demasia em repetir esse já batido, mas não conscientizado, lugar comum de todas as pedagogias emancipatórias) não é privilégio de qualquer ideologia...
A cidadania precisa ser vivenciada na sala de aula por todo educador que se pretenda cidadão e que não queira estabelecer sua prática sobre bases esquizofrênicas. Isto não se confunde com “liberalismo”, nem desconhecimento do próprio papel, nem com desorganização, nem com desordem, nem com incompetência acadêmica, nem com inconsistência ao nível das propostas, nem com qualquer das coisas com que nos querem assustar os mistificadores, amantes da velha ordem. Isto confunde-se com... democracia! Tem nome, tem proposta, tem honestidade intelectual, não nega nem superestima as diferenças nos papéis professor/aluno e até hoje não teve qualquer problema com a questão da incompetência. Aliás, na história das relações políticas, firmou-se com competência por sobre todas as demais propostas absolutizantes, hoje francamente desmoralizadas.
Evidentemente, tanto quanto uma boa metodologia, é fundamental um bom conteúdo, em relação harmônica. E bons conteúdos/metodologias devem municiar os que se nutrem para alguma forma de prática qualitativa diferenciada. Caso contrário, não seriam bons conteúdos e metodologias...
Isso significa que o micro cosmo da sala de aula não pode deslocar-se, em suas relações, do resto. Não há paraíso metodológico e nem conhecimento crítico-acadêmico que se justifiquem em si mesmos. As ferramentas não foram feitas para ficar guardadas. É preciso usá-las para aprender a usá-las... para usá-las! Assim, toda a educação deve orientar-se no sentido do todo. O conhecimento existe para melhorar a vida. A sala de aula precisa ser uma caixa de ressonância das aspirações do social. A escola precisa derrubar os muros invisíveis que a separam da comunidade imediata e do mundo. Em termos muitos práticos, não devemos falar da miséria sem assumirmos algum tipo de compromisso prático pela sua erradicação. Temos o dever de orientar os nossos jovens nesse sentido se não os quisermos, em pouco tempo, amargurados, desesperançados, céticos e, subseqüentemente, cooptados.
Se trabalhamos contra o preconceito, precisamos aproximar de nossos educandos os setores organizados da sociedade que lutam pelo fim desses preconceitos (contra a mulher, contra o negro, contra o índio, etc.). precisamos dar-lhes uma chance de ouvir direto das fontes, de sensibilizar-se com elas, de poder optar com elas, somando-se a seus esforços ordenados por uma vida de pleno significado fraterno.
Não temos o direito de falar da opressão política, da tortura, de execuções e desaparecimentos, se não possibilitamos ao nosso aluno que escreve a sua carta (quem sabe nas aulas de português, ou de espanhol, ou de inglês, ou de geografia, ou de história) protestando contra os regimes nos quais impera a barbárie. É possível fazer
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isso. Há tantos organizações que se dedicam a esse trabalho e que gostariam desse apoio ( a Anistia Internacional tem tido, muitas vezes, essa gratificante oportunidade).
Os debates sobre pena de morte podem consubstanciar-se, por exemplo, em abaixo-assinados daqueles alunos e professores que a ela se opões, enviados aos parlamentares no Congresso Nacional (onde há sempre um risco de ser aprovada). Caso contrário, serão apenas debates, formadores de opinião, mas de opinião condenada à morte por inatividade.
Se a consciência ecológica é realmente importante para uma escola, os alunos precisam estabelecer, a partir de possibilidades que essa mesma escola apresente, qualquer vínculo amoroso e direto com a natureza (não é possível amar sem interagir). Na escola onde trabalho, em Porto Alegre, há uma relação da criança e do jovem adulto com o plantio e a preservação de bosques e isso, em sala de aula, torna-se reflexão sobre o concreto e dá concretude e credibilidade à reflexão. É possível ir além. São tantas organizações ecológicas que acolheriam de bom grado jovens militantes, que poderiam ter nelas uma vida menos vazia...
Todas as disciplinas têm algo a ver com pelo menos algumas dessas dimensões. É pequeno, é medíocre, causa dó o pretexto de “ter que dar a matéria...”. que mundo é esse, aos pedaços, onde os que se dizem educadores estão tão somente preocupados em “dar” o que chamam de “matéria”? para que serve mesmo a matéria?
Se nós, os professores, fôssemos menos pretensiosos, se percebêssemos que poderíamos desempenhar nosso mais importante papel, oportunizando aos educandos uma imersão crítica mais intensa na vida real, então, à vida real se lhe devolveria o “status” de melhor escola que a escola, de fonte mais densa e significativa de conhecimentos, de única experienciação segura para habilitar à competência. E talvez a escola pudesse, no mundo, após séculos de opressão, de injustiça e destruição, dar a sua primeira efetiva contribuição para uma sociedade melhor.
Seguramente, temos parte importante no despontar dessa nova era, ajudando na geração de uma juventude mais sadia, mais plena, portadora de ideais, de um significado para a sua existência. Seria um crime – contra ela e contra nós mesmos – perdermos tamanha oportunidade. Não é tarefa tão difícil. Basta um pouco de ousadia, alguma criatividade, fé em nosso próprio potencial, vocação real para educar e muita consciência de cidadania.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
48
Educação em Direitos Humanos de que se trata?*
Maria Victoria Benevides**
A Educação em Direitos Humanos parte de três pontos essenciais: primeiro, é
uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação
necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação de valores, para
atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de
conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante, que ou esta educação é
compartilhada por aqueles que estão envolvidos no processo educacional – os
educadores e os educandos - ou ela não será educação e muito menos educação em
direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a educação para a
mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada e de atingir tanto
a razão quanto a emoção.
O que significa dizer que queremos trabalhar com Educação em Direitos
Humanos? A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma
cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores
da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e
da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e
consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem,
todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.
Quando falamos em cultura, é importante deixar claro que não estamos nos
limitando a uma visão tradicional de cultura como conservação: dos costumes, das
tradições, das crenças e dos valores. Pelo contrário, quando falamos em formação de
uma cultura de respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, estamos
enfatizando, sobretudo no caso brasileiro, uma necessidade radical de mudança. Assim,
falamos em cultura nos termos da mudança cultural, uma mudança que possa realmente
mexer com o que está mais enraizado nas mentalidades, muitas vezes marcadas por
preconceitos, por discriminação, pela não aceitação dos direitos de todos, pela não
aceitação da diferença. Trata-se, portanto, de uma mudança cultural especialmente
importante no Brasil, pois implica a derrocada de valores e costumes arraigados entre
nós, decorrentes de vários fatores historicamente definidos: nosso longo período de
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
49
escravidão, que significou exatamente a violação de todos os princípios de respeito à
dignidade da pessoa humana, a começar pelo direito à vida; nossa política oligárquica e
patrimonial; nosso sistema de ensino autoritário, elitista, e com uma preocupação muito
mais voltada para a moral privada do que para a ética pública; nossa complacência com
a corrupção, dos governantes e das elites, assim como em relação aos privilégios
concedidos aos cidadãos ditos de primeira classe ou acima de qualquer suspeita; nosso
descaso com a violência, quando ela é exercida exclusivamente contra os pobres e os
socialmente discriminados; nossas práticas religiosas essencialmente ligadas ao valor da
caridade em detrimento do valor da justiça; nosso sistema familiar patriarcal e machista;
nossa sociedade racista e preconceituosa contra todos os considerados diferentes; nosso
desinteresse pela participação cidadã e pelo associativismo solidário; nosso
individualismo consumista, decorrente de uma falsa idéia de “modernidade”.
A mudança cultural necessária deve levar ao enfrentamento de tal herança e
ainda ser instrumento de reação a duas grandes deturpações que fermentam em nosso
meio social - como parte de uma certa “cultura política”- em relação ao entendimento
do que sejam direitos humanos. A primeira delas, muito comentada atualmente e
bastante difundida na sociedade, inclusive entre as classes populares, refere-se à
identificação entre direitos humanos e direitos da marginalidade, ou seja, são vistos
como “direitos dos bandidos contra os direitos das pessoas de bem”. Essa deturpação
decorre certamente da ignorância e da desinformação, mas também de uma perversa e
eficiente manipulação, sobretudo nos meios de comunicação de massa, como ocorre
com certos programas de rádio e televisão, voltados para a exploração sensacionalista
da violência e da miséria humana. A segunda deturpação, evidente nos meios de maior
nível de instrução (meio acadêmico, mas também de políticos e empresários), refere-se
à crença de que direitos humanos se reduzem essencialmente às liberdades individuais
do liberalismo clássico e, portanto, não se consideram como direitos fundamentais os
direitos sociais, os direitos de solidariedade universal. Nesse sentido, os liberais adeptos
dessa crença aceitam a defesa dos direitos humanos como direitos civis e políticos,
direitos individuais à segurança e à propriedade; mas não aceitam a legitimidade da
reivindicação, em nome dos direitos humanos, dos direitos econômicos e sociais, a
serem usufruídos individual ou coletivamente, ou seja, aqueles vinculados ao mundo do
trabalho, à educação, à saúde, à previdência e seguridade social etc.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
50
Com tal quadro histórico e com tais deturpações - muitas vezes conscientes e
deliberadas, de grupos ou pessoas interessadas em desmoralizar a luta pelos direitos
humanos, porque querem manter seus privilégios ou porque querem controlar e usar a
violência, sobretudo a institucional, apenas contra os pobres, contra aqueles
considerados “classes perigosas”- reafirmamos que uma educação em direitos humanos
só pode ser uma educação para a mudança, e não para a conservação. Embora
insistamos na idéia de cultura, trata-se da criação de uma nova cultura de respeito à
dignidade humana; portanto, o termo cultura só tem sentido como mudança cultural.
Esse quadro bastante negativo sobre a realidade histórica e contemporânea do
Brasil não deve ser um empecilho para o nosso trabalho; pelo contrário, deve ser
incentivo para procurar mudar. Podemos ser razoavelmente otimistas, pois já existem
várias iniciativas de grupos de defesa de direitos humanos, no sistema de ensino público
e privado, nos movimentos sociais e nas ONGs em geral – inclusive a Rede Brasileira
de Educação em Direitos Humanos que patrocina este encontro – além dos órgãos
oficiais, como no caso da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania no Estado de São
Paulo. Portanto, ser a favor de uma educação que significa a formação de uma cultura
de respeito à dignidade da pessoa humana, significa querer uma mudança cultural, que
se dará através de um processo educativo. Significa essencialmente que queremos outra
sociedade, que não estamos satisfeitos com os valores que embasam esta sociedade e
queremos outros.
Como a minha fala é introdutória a este Seminário, cumpre lembrar o que são
direitos humanos. São aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres
humanos, sem quaisquer distinções de sexo, nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa
etária, classe social, profissão, condição de saúde física e mental, opinião política,
religião, nível de instrução e julgamento moral.
Uma compreensão histórica de direitos humanos traz como eixo principal e
óbvio o reconhecimento do direito à vida, sem o qual todos os demais direitos perdem o
sentido. Costuma-se falar, apenas por uma questão didática, em gerações de direitos
humanos; não se trata de gerações no sentido biológico, do que nasce, cresce e morre,
mas no sentido histórico, de uma superação com complementaridade, e que pode
também ser entendida como uma dimensão. A primeira geração, contemporânea das
revoluções burguesas do final do século 18 e de todo o século 19, é a dos direitos civis e
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
51
das liberdades individuais, liberdades consagradas pelo liberalismo, quando o direito do
cidadão dirige-se contra a opressão do Estado ou de poderes arbitrários, contra as
perseguições políticas e religiosas, a liberdade de viver sem medo. Dessa
importantíssima primeira geração, ou dimensão, são os direitos de locomoção, de
propriedade, de segurança e integridade física, de justiça, expressão e opinião. Tais
liberdades surgem oficialmente nas Declarações de Direitos, documentos das revoluções
burguesas do final do século 18 ( na França e nos Estados Unidos) e foram acolhidas em
diversas Constituições do século 19. A segunda geração, que não abrange apenas os
indivíduos, mas os grupos sociais, surge no início do século 20 na esteira das lutas
operárias e do pensamento socialista na Europa Ocidental, explicitando-se, na prática,
nas experiências da social-democracia, para consolidar-se, ao longo do século, nas
formas do Estado do Bem Estar Social. Refere-se ao conjunto dos direitos sociais,
econômicos e culturais: os de caráter trabalhista, como salário justo, férias, previdência
e seguridade social e os de caráter social mais geral, independentemente de vínculo
empregatício, como saúde, educação, habitação, acesso aos bens culturais etc. Em
complemento às duas gerações, a terceira dimensão inclui os direitos coletivos da
humanidade, como direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, ao
patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao meio ambiente
ecologicamente preservado; são os direitos ditos de solidariedade planetária. Tais
gerações mostram como continua viva a bandeira da revolução francesa: a liberdade, a
igualdade e a solidariedade. A liberdade nos primeiros direitos civis e individuais, a
igualdade nos direitos sociais, a solidariedade como responsabilidade social pelos mais
fracos e em relação aos direitos da humanidade.
Direitos humanos são fundamentais porque são indispensáveis para a vida com
dignidade. Quando insistimos nessa questão da dignidade, muitas vezes esbarramos
numa certa incompreensão, como se o termo fosse indefinível e tratasse de algo
extremamente abstrato em relação à concretude do ser humano. Portanto, é importante
tentar esclarecer o que entendemos por dignidade da pessoa humana. Sabemos, sem
dúvida, identificar um comportamento indigno; por exemplo, omissão de socorro nos
hospitais, abandono dos idosos na fila do INPS, desprezo pelos direitos dos mendigos,
das crianças de rua, dos desempregados, dos excluídos de toda sorte, são indignidades.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
52
Mas de onde vem esta idéia de dignidade? Porque ela é central no nosso
processo educativo?
Durante muito tempo o fundamento da concepção de dignidade podia ser
buscado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, da criação divina – o ser humano
criado à imagem e semelhança do Criador. Ou, então, numa abstração metafísica sobre
aquilo que seria próprio da natureza humana, o que sempre levou a discussões
filosóficas sobre a essência da natureza humana. Independentemente dessas polêmicas,
aqueles que são religiosos ou espiritualistas têm um motivo a mais para se preocupar
com a dignidade da pessoa humana, se acreditam na criação divina, na afirmação de que
todos somos irmãos, nessa fraternidade que vem da religião, como no caso, dentre
outros, do cristianismo. Hoje, numa visão mais contemporânea, percebemos como todos
os textos nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos explicam a
dignidade pela própria transcendência do ser humano, ou seja, foi o homem que criou
ele mesmo o Direito. Ele mesmo criou as formas da idéia de dignidade em grandes
textos normativos que podem ser sintetizados no artigo 1º da Declaração Internacional
de Direitos Humanos de 1948: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos”. Esta formulação decorre da própria reflexão do ser humano
que à ela chegou de uma maneira que é historicamente dada.
Foi uma grande revolução no pensamento e na história da humanidade chegar à
reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a mesma dignidade. É
evidente que nos regimes que praticam a escravidão, ou qualquer tipo de discriminação
por motivos sociais, políticos, religiosos e étnicos não vigora tal compreensão da
dignidade universal, pois neles a dignidade é entendida como um atributo de apenas
alguns, aqueles que pertençam a um determinado grupo.
A dignidade do ser humano não repousa apenas na racionalidade; no processo
educativo procuramos atingir a razão, mas também a emoção, isto é, corações e mentes
– pois o homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e que ri, que
é capaz de amar e de odiar, que é capaz de sentir indignação e enternecimento, que é
capaz da criação estética. Unamuno dizia que o que mais nos diferencia dos outros
animais é o sentimento, e não a racionalidade. O homem é um ser essencialmente moral,
ou seja, o seu comportamento racional estará sempre sujeito a juízos sobre o bem e o
mal. Nenhum outro ser no mundo pode ser assim apreciado em termos de dever ser, da
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
53
sua bondade ou da sua maldade. Portanto, o ser humano tem a sua dignidade explicitada
através de características que são únicas e exclusivas da pessoa humana; além da
liberdade como fonte da vida ética, só o ser humano é dotado de vontade, de
preferências valorativas, de autonomia, de auto-consciência como o oposto da
alienação. Só o ser humano tem a memória e a consciência de sua própria subjetividade,
de sua própria história no tempo e no espaço e se enxerga como um sujeito no mundo,
vivente e mortal. Só o ser humano tem sociabilidade, somente ele pode desenvolver
suas virtualidades no sentido da cultura e do auto-aperfeiçoamento vivendo em
sociedade e expressando-se através daquelas qualidades eminentes do ser humano como
o amor, a razão e a criação estética, que são essencialmente comunicativas. É o único
ser histórico, pois é o único que vive em perpétua transformação pela memória do
passado e pelo projeto do futuro. Sua unidade existencial significa que o ser humano é
único e insubstituível. Como dizia Kant, é o único ser cuja existência é um valor
absoluto, é um fim em si e não um meio para outras coisas.
Os direitos humanos são naturais e universais, pois estão profundamente
ligados à essência do ser humano, independentemente de qualquer ato normativo, e
valem para todos ; são interdependentes e indivisíveis, pois não podemos separá-los,
aceitando apenas os direitos individuais, ou só os sociais, ou só os de defesa ambiental.
Essa indivisibilidade é importante porque temos exemplos históricos, também
no século XX, de regimes políticos que valorizaram exclusivamente os direitos sociais,
como o regime soviético, em detrimento da liberdade; assim como temos vários regimes
liberais que pregam a liberdade mas descartam a obrigatoriedade dos direitos sociais.
Direitos humanos são históricos, pois foram sendo reconhecidos e consagrados
em determinados momentos históricos, e é possível pensarmos que novos direitos ainda
podem ser identificados e consolidados. A história da humanidade comprova a evolução
da consciência dos direitos; na Bíblia, por exemplo, lemos casos de aceitação de
sacrifícios humanos e de escravidão. Os liberais da América, do Norte e dos Sul,
conviviam com a posse de escravos, embora defendessem a liberdade e a igualdade de
todos diante da lei. Direitos humanos são históricos na medida em que vão crescendo
em abrangência e em profundidade, até que se consolidem na consciência universal.
Hoje, por exemplo, reconhecemos que existe consciência universal de que a escravidão,
seja por que motivo for, é uma violação radical dos direitos humanos, assim como a
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
54
exploração do trabalho infantil, a dominação sobre as mulheres, as formas variadas de
racismo e de discriminação por motivos religiosos, políticos, étnicos, sexuais etc. Os
casos ainda existentes de escravidão, racismo e discriminação são veementemente
condenados pelas entidades mundiais de defesa dos direitos humanos.
Quando falamos em educação em direitos humanos falamos também em
educação para a cidadania. É preciso entender aqui que as duas propostas andam muito
juntas, mas não são sinônimos. Basta lembrar, por exemplo, que todos os projetos
oficiais, do Ministério da Educação às Secretarias Municipais e Estaduais afirmam que
seu objetivo principal é a educação para a cidadania. No entanto, a concepção e as
experiências são tão diferentes, em função de prefeituras e de governos, que o conceito
de cidadania foi se esgarçando, não se tem certeza de que se fala sobre o mesmo tema. É
bastante comum a idéia de educação para cidadania ser entendida como se fosse
meramente uma educação moral e cívica. Ou seja, como se fosse necessário e suficiente
pregar o culto à pátria, seus símbolos, heróis e datas históricas, assim como fomentar
um nacionalismo ora ingênuo ora agressivo, sem a percepção de que a nação não é um
todo homogêneo, mas um todo heterogêneo, com conflitos, classes sociais, grupos e
interesses diferenciados.
Portanto, a idéia de educação para a cidadania não pode partir de uma visão da
sociedade homogênea, como uma grande comunidade, nem permanecer no nível do
civismo nacionalista. Torna-se necessário entender educação para a cidadania como
formação do cidadão participativo e solidário, consciente de seus deveres e direitos – e,
então, associá-la à educação em direitos humanos. Só assim teremos uma base para uma
visão mais global do que seja uma educação democrática, que é, afinal, o que desejamos
com a educação em direitos humanos, entendendo “democracia” no sentido mais radical
– radical no sentido de raízes – ou seja, como o regime da soberania popular com pleno
respeito aos direitos humanos. Não existe democracia sem direitos humanos, assim
como não existe direitos humanos sem a prática da democracia. Em decorrência,
podemos afirmar o que já vem sendo discutido em certos meios jurídicos como a quarta
geração, ou dimensão, dos direitos humanos: o direito da humanidade à democracia.
É nesse sentido que nos referimos sempre à cidadania democrática. Existem
casos de regimes políticos que levaram ao extremo a educação para a cidadania, em
termos de mobilização cívica, mas não em termos de cidadania democrática. Regimes
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
55
totalitários levaram ao extremo a formação do cidadão ligado à pátria, à nação, ao seu
passado histórico, ao projeto do futuro. Aliás, regimes totalitários são aqueles que mais
mobilizam os cidadãos para um tipo de educação cívica que não tem nada a ver com
educação em direitos humanos, com educação democrática. Em meados do século XX
regimes totalitários formaram cidadãos participantes, conscientes de uma missão cívica,
porém cidadãos fascistas, nazistas, ou seja, cidadãos de um determinado regime que não
era democrático. Portanto, nossa idéia de cidadania insere-se exclusivamente no quadro
da democracia.
Em relação especificamente à educação em direitos humanos, o que
desejamos? Que efeitos queremos com esse processo educativo? Queremos uma
formação que leve em conta algumas premissas. Em primeiro lugar, o aprendizado deve
estar ligado à vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos e deve
propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e solidariedade.
Ao mesmo tempo, a educação para a tolerância se impõe como um valor ativo
vinculado à solidariedade e não apenas como tolerância passiva da mera aceitação do
outro, com o qual pode-se não estar solidário. Em seguida, o aprendizado deve levar ao
desenvolvimento da capacidade de se perceber as conseqüências pessoais e sociais de
cada escolha. Ou seja, deve levar ao senso de responsabilidade. Esse processo educativo
deve, ainda, visar à formação do cidadão participante, crítico, responsável e
comprometido com a mudança daquelas práticas e condições da sociedade que violam
ou negam os direitos humanos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades
autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de
julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não
apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos.
Uma questão que surge com muita freqüência quando debatemos o tema da
educação em direitos humanos é : será realisticamente possível educar em direitos
humanos? A questão tem pertinência, pois se trata, sem dúvida, de um processo
extremamente complexo, difícil e a longo prazo. O educador em direitos humanos na
escola, por exemplo, sabe que não terá resultados no final do ano, como ao ensinar uma
matéria que será completada a medida que o conjunto daquele programa for bem
entendido e avaliado pelos alunos. Trata-se de uma educação permanente e global,
complexa e difícil, mas não impossível. É certamente uma utopia, mas que se realiza na
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
56
própria tentativa de realizá-la, como afirma o educador Perez Aguirre, enfatizando que
os direitos humanos terão sempre, nas sociedades contemporâneas, a dupla função de
ser, ao mesmo tempo, crítica e utopia frente à realidade social.
O que será indispensável para este processo educativo, partindo-se da
constatação de que, apesar das dificuldades, é possível desenvolver um processo
educativo em direitos humanos?
Em primeiro lugar, o conhecimento dos direitos humanos, das suas garantias,
das suas instituições de defesa e promoção, das declarações oficiais, de âmbito nacional
e internacional, com a consciência de que os direitos humanos não são neutros, não são
meramente declamações retóricas. Eles exigem certas atitudes e repelem outras.
Portanto, exigem também uma vivência compartilhada. A palavra deverá sempre estar
ligada a práticas, embasadas nos valores dos direitos humanos e na realidade social. Na
escola, por exemplo, deverá estar vinculada à realidade concreta dos alunos, dos
professores, dos diretores, dos funcionários, da comunidade que a cerca.
Onde podemos educar em direitos humanos? Temos várias opções, com
diferentes veículos e estruturas educacionais. Podemos fazer uma escolha, dependendo
dos recursos e das condições objetivas, sociais, locais e institucionais, de cada grupo, de
cada entidade. Há que distinguir entre as possibilidades da educação formal e da
educação informal. Na educação formal, a formação em direitos humanos será feita no
sistema de ensino, desde a escola primária até a universidade. Na educação informal,
será feita através dos movimentos sociais e populares, das diversas organizações não-
governamentais – ONGs –, dos sindicatos, dos partidos, das associações, das igrejas,
dos meios artísticos, e, muito especialmente, através dos meios de comunicação de
massa, sobretudo a televisão.
Cumpre lembrar que esta educação formal na escola, desde a primária até a
universidade e principalmente no sistema público do ensino, resultará mais viável se
contar com o apoio dos órgãos oficiais, tanto ligados diretamente à educação como
ligados à cultura, à justiça e defesa da cidadania. É por isso que valorizamos os planos
oficiais, de educação em direitos humanos na escola, tanto no nível federal como nos
níveis estadual e municipal – embora nem sempre vejamos seus resultados ou mesmo
sua aplicação no quotidiano escolar. Se escolhemos a educação formal, constatamos
como a escola pública é um locus privilegiado pois, por sua própria natureza, tende a
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
57
promover um espírito mais igualitário, na medida em que os alunos, normalmente
separados por barreiras de origem social, aí convivem. Na escola pública o diferente
tende a ser mais visível e a vivência da igualdade, da tolerância e da solidariedade
impõe-se com maior vigor. O objetivo maior desta educação na escola é fundamentar o
espaço escolar como uma verdadeira esfera pública democrática.
Finalmente, quais seriam os pontos principais do conteúdo da educação em
direitos humanos? Há um conteúdo óbvio, que decorre da própria definição de direitos
humanos e do conhecimento sobre as gerações ou dimensões históricas, sobre as
possibilidades de reivindicação e de garantias etc. Este conteúdo deve estar
efetivamente vinculado a uma noção de direitos mas também de deveres, estes
decorrentes das obrigações do cidadão e de seu compromisso com a solidariedade. É
importante, ainda, que sejam mostradas as razões e as conseqüências da obediência a
normas e regras de convivência. Em seguida, este conteúdo deve conter a discussão –
para a vivência – dos grandes valores da ética republicana e da ética democrática. Os
valores da ética republicana incluem o respeito às leis legitimamente elaboradas, a
prioridade do bem público acima dos interesses pessoais ou grupais, e a noção da
responsabilidade, ou seja, de prestação de contas de nossos atos como cidadãos. Por sua
vez, os valores democráticos estão profundamente vinculados ao conjunto dos direitos
humanos, os quais se resumem no valor da igualdade, no valor da liberdade e no valor
da solidariedade.
Nas palestras seguintes está previsto um detalhamento sobre o
encaminhamento metodológico desses fundamentos; mas é preciso deixar claro que o
componente essencial ao escolhermos trabalhar na escola com um programa de direitos
humanos é que ele será impossível se não estiver associado a práticas democráticas. Um
grande educador como o Prof. José Mario Pires Azanha enfatiza, com o rigor de
sempre, que de nada adiantará levar programas de direitos humanos para a escola, se a
própria escola não é democrática na sua relação de respeito com os alunos, com os pais,
com os professores, com os funcionários e com a comunidade que a cerca.
É nesse sentido que um programa de direitos humanos introduzido na escola
serve, também, para questionar e enfrentar as suas próprias contradições e os conflitos
no seu cotidiano.
Muito obrigada.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
58
* Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo,
18/02/2000. A autora agradece a importante contribuição do Prof. Fábio Konder
Comparato.
** Professora de Sociologia da Faculdade de Educação da USP e vice-coordenadora da
Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos.
http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm - acesso em 11-08-2009
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa perspectiva interdisciplinar
Celma Tavares
Só se educa em direitos humanos quem se humaniza e só é possível investir completamente na humanização a partir de uma conduta humanizada.
Ricardo Ballestreri
Introdução
A Educação em Direitos Humanos (EDH) é, na atualidade, um dos mais
importantes instrumentos dentro das formas de combate às violações de direitos
humanos, já que educa na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios
democráticos.
Mas a sua inserção nos vários âmbitos do saber requer a compreensão do seu
significado e da sua práxis. No campo da educação formal, é igualmente necessário
estar atento às metodologias que lhe são compatíveis e às possibilidades de que ela
possa permear os conteúdos de todas as disciplinas, dentro de uma visão
interdisciplinar.
Neste sentido, a formação de educadores que estejam aptos a trabalhar a EDH, é
o primeiro passo para sua implementação. Ela deve passar pelo aprendizado dos
conteúdos específicos de direitos humanos, mas deve especialmente estar relacionada à
coerência das ações e atitudes tomadas no dia-a-dia. Sem esta coerência, o discurso fica
desarticulado da prática e deslegitima o elemento central da EDH: a ética.
Por outro lado, também é preciso ter a consciência de que a formação é o estágio
inicial, mas que o processo educativo em direitos humanos é contínuo. Sua finalidade
maior é a constituição de uma cultura de direitos humanos e, nesta perspectiva, está
sempre em renovação.
É a educação em direitos humanos que permite a afirmação de tais direitos e que
prepara cidadãos e cidadãs conscientes de seu papel social na luta contra as
desigualdades e injustiças. Abordar as questões relacionadas a este processo de
conscientização e à construção do saber nesta área é o principal objetivo deste trabalho,
que centra seu foco formação dos educadores em direitos humanos a partir de uma
perspectiva interdisciplinar.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
60
O processo educativo em direitos humanos
A educação em direitos humanos é um campo recente tanto no contexto
brasileiro como no latino-americano, apesar de vários documentos internacionais já
tratarem sobre a necessidade de sua implementação. Relatório do Instituto
Interamericano de Direitos Humanos, sobre o tema, aponta que, desde a Declaração
Universal e, mais especificamente, no Protocolo Adicional à Convenção Interamericana
sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, o
direito à educação em direitos humanos faz parte do direito à educação. (INSTITUTO
INTERAMERICANO..., 2000, p. 6).
Nesta perspectiva, identifica-se uma relação intrínseca entre ambas. A educação
é o caminho para qualquer mudança social que se deseje realizar dentro de um processo
democrático. A educação em direitos humanos, por sua vez, é o que possibilita
sensibilizar e conscientizar as pessoas para a importância do respeito ao ser humano,
apresentando-se na atualidade, como uma ferramenta fundamental na construção da
formação cidadã, assim como na afirmação de tais direitos.
Magendzo (2006, p. 23) a define como a prática educativa que se funda no
reconhecimento, na defesa e no respeito e promoção dos direitos humanos e que tem por
objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos suas máximas capacidades como sujeito
de direitos e proporcionar as ferramentas e elementos para fazê-los efetivos.
A finalidade maior da EDH, portanto, é a de atuar na formação da pessoa em
todas as suas dimensões a fim de contribuir ao desenvolvimento de sua condição de
cidadão e cidadã, ativos na luta por seus direitos, no cumprimento de seus deveres e na
fomentação de sua humanidade. Dessa forma, uma pessoa que goza de uma educação
neste âmbito, é capaz de atuar frente às injustiças e desigualdades, reconhecendo-se
como sujeito autônomo e, ademais, reconhecendo o outro com iguais direitos, dentro da
Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos dos preceitos de
diversidade e tolerância, valorizando assim a convivência harmoniosa, o respeito mútuo
e a solidariedade.
Através da EDH, é possível contribuir para reverter as injustificadas
diferenciações sociais do país e criar uma nova cultura a partir do entendimento de que
toda e qualquer pessoa deve ser respeitada em razão da dignidade que lhe é inerente.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
61
Pois a dignidade é um valor absoluto que o ser humano possui por constituir-se em um
fim em si mesmo e não em um meio. (KANT, 1989).
É igualmente por meio dessa educação que se pode começar a mudar as
percepções sociais radicais, discriminatórias e violentas, na maioria das vezes,
legitimadoras das violações de direitos humanos. E reconstruir as crenças e valores
sociais fundamentados no respeito ao ser humano e em conformidade com os preceitos
democráticos e as regras do Estado de Direito. (TAVARES, 2006).
A relevância da educação em direitos humanos pode ser mensurada através dos
documentos da ONU sobre o tema como, por exemplo, o Decênio das Nações Unidas
para a Educação na Esfera dos Direitos Humanos (1995-2004) ou o Programa Mundial
para a Educação em Direitos Humanos, aprovado no final de 2004. Este Programa está
estruturado em fases sucessivas, com sua primeira etapa guiada por um plano de ação
para 2005-2007.
O Programa estabelece que a EDH deve fortalecer o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais; desenvolver plenamente a personalidade
humana e o sentido da dignidade do ser humano; promover a compreensão, a tolerância
e a igualdade; facilitar a participação efetiva de todos numa sociedade livre e
democrática, na qual impere o Estado de Direito; fomentar e manter a paz e promover o
desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social. (NACIONES
UNIDAS, 2007, p. 4-5).
Ainda de acordo com o referido Programa, este tipo de educação deve contribuir
para:
a) criar uma cultura universal dos direitos humanos;
b) exercitar o respeito, tolerância, promoção e valorização da diversidade religiosa, de
gênero, de orientação sexual e cultural, e a amizade entre as nações, povos indígenas e
grupos étnico-raciais;
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
62
c) possibilitar a todas as pessoas terem acesso à participação efetiva em uma sociedade
livre. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 5).
Anteriormente, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, por meio da
Declaração de Viena, de 1993, já tinha indicado sua importância, ao considerar que “a
educação, a capacitação e a informação pública em direitos humanos são indispensáveis
para estabelecer e promover relações estáveis e harmoniosas entre as comunidades e
para fomentar a compreensão mútua, a tolerância e a paz”. (NACIONES UNIDAS,
1993).
No Brasil, o campo normativo relacionado aos direitos humanos e a educação
nesta área se incorporam nos seguintes documentos: a Constituição Federal (1988), a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), os Parâmetros Curriculares da Educação
(a partir de 1997), o Programa Nacional de Direitos Humanos (na sua primeira versão,
em 1996 e segunda versão, em 2002) e o Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (também com duas versões, 2003 e 2006). Estes documentos estabelecem as
diretrizes e ações direcionadas à formação cidadã.
Entretanto, para a construção dessa formação através da EDH, é preciso
desenvolver uma prática pedagógica coerente e articulada com seus valores. Esta
prática, segundo Nascimento (2000, p.121), oferece “a possibilidade de aprofundar a
consciência de sua própria dignidade, a capacidade de reconhecer o outro, de vivenciar
a solidariedade, a partilha, a igualdade na diferença e a liberdade”, criando canais de
participação e organização que fomentem o exercício efetivo da cidadania e a tomada de
decisões coletivas.
Este tipo de prática pedagógica deve promover o empoderamento individual e
coletivo, com o objetivo de ampliar os espaços de poder e a participação de todos, em
especial, dos grupos sociais excluídos e vulneráveis. Para Sacavino (2000, p.46-47),
uma educação que promova esse empoderamento, pode fomentar as capacidades dos
atores e direcioná-las ao desencadeamento de processos de democratização e de
transformação.
Portanto, a EDH busca promover processos educativos que sejam críticos e
ativos e que despertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como
cidadão/cidadã e para a atuação em consonância com o respeito ao ser humano. Educar
dentro de um processo crítico-ativo significa modificar as atitudes, as condutas e as
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
63
convicções, mas não pela imposição dos valores e sim por meios democráticos de
construção e de participação que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses
direitos.
De acordo com Morgado, (2001) a prática pedagógica da EDH está pautada no
que ela chama de saber docente dos direitos humanos - um conjunto de saberes
específicos necessários à prática do educador em direitos humanos. Esse saber, por sua
vez, relaciona-se a outros três: o saber curricular, o saber pedagógico e o saber
experencial. O primeiro aponta a necessidade de que o currículo seja flexível para
adequar-se aos conteúdos de direitos humanos. O segundo corresponde às estratégias e
aos recursos utilizados para articular conteúdos curriculares à transversalidade dos
direitos humanos. E o último destaca que a vivência desses direitos e a coerência com
sua promoção e defesa são essenciais.
Dessa forma, é imperioso trabalhar com uma metodologia que articule os três
níveis de saberes. Esta metodologia deve incluir uma prática pedagógica que possibilite
a percepção da realidade, sua análise e uma postura crítica frente a ela, incluindo duas
dimensões essenciais: a emancipadora e a transformadora. Através delas, é possível
sensibilizar, indignar-se, atuar e comprometer-se.
A formação dos educadores em direitos humanos deve privilegiar as
metodologias ativas e participativas de forma a envolver e despertar o interesse, sem
esquecer que contextos específicos carecem de abordagens próprias para cada um deles.
É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o
compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização,
a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – a educativa e a social – que deve
pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de
uma cultura de direitos humanos. Esta é uma premissa para que o saber docente em
direitos humanos se articule com os demais saberes socialmente produzidos.
Em síntese, a EDH requer uma metodologia, com a seleção e organização dos
conteúdos e atividades, materiais e recursos didáticos, que sejam condizentes com a
finalidade de um processo educativo em direitos humanos. Estes requisitos são
essenciais para que a prática pedagógica facilite a formação de uma consciência crítica e
de um compromisso social com as questões relacionadas à problemática dos direitos
humanos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
64
A socialização em uma cultura de direitos humanos
A educação em direitos humanos, além de todo processo de formação em seus
conteúdos, pretende a socialização dos valores e princípios que lhe são intrínsecos, com
o fim de construir e consolidar uma cultura de direitos humanos. Neste caminho, a dita
socialização busca envolver todas as pessoas na vivência e no respeito a tais direitos.
Esse objetivo vem demarcado no último documento da ONU nesta área, onde a
EDH é sinônimo do “conjunto das atividades de capacitação e difusão orientadas a criar
uma cultura universal na esfera dos direitos humanos”. (NACIONES UNIDAS, 2007, p.
4).
A importância de estabelecer os direitos humanos como uma cultura na
sociedade brasileira decorre da estrutura social existente, em que os fortes traços do
colonialismo e da escravidão, presentes durante vários séculos, ainda encontram
ressonância e alimentam o autoritarismo, a discriminação, a exclusão e o preconceito
atuais. Somente quando os direitos humanos passarem a fazer parte do cotidiano de
todas as pessoas e se constituam de fato numa cultura, será possível a generalização e
perpetuação de crenças, valores, conhecimentos, práticas e atitudes que priorizem o ser
humano.
É por isso que a EDH deve estar orientada para a plena realização da pessoa, o
sentido da dignidade e o fortalecimento dos direitos e liberdades fundamentais, assim
como para a promoção da justiça e da paz. Com estes elementos, é possível orientar
uma vivência democrática e cidadã de respeito integral ao ser humano. Dentro deste
contexto, é fundamental definir o entendimento de democracia, cidadania e direitos
humanos que farão parte das estratégias de desenvolvimento de uma educação nessa
área.
A democracia está fundada nos princípios de liberdade e igualdade e nos ideais
de tolerância, de não violência e de irmandade. (BOBBIO, 1985). Por isso, é o regime
que dispõe das melhores condições para o exercício da cidadania e do respeito aos
direitos humanos. E é também onde o Estado de Direito e o funcionamento das
instituições do Estado podem chegar a encontrar seu equilíbrio.
A cidadania é entendida como a reivindicação de direitos e o exercício das
responsabilidades referentes a um poder específico, logicamente, dentro de uma
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
65
perspectiva de cidadania ativa e participativa e não meramente formal. (GARRETÓN,
1999)
Os direitos humanos, por sua vez, constituem prerrogativas básicas do ser
humano, construídas historicamente, que concretizam as exigências da dignidade, da
liberdade e da igualdade humanas e que devem fazer parte do direito positivo dos
Estados, apesar de não perderem a legitimação de sua exigibilidade pela ausência de sua
inserção no arcabouço jurídico.
É neste cenário que a formação cidadã encontra espaço para se ampliar e o
exercício da cidadania surge como ponto de apoio num possível ciclo de avanços
democráticos e de respeito aos direitos fundamentais.
Contudo, é necessário pensar nas estratégias educacionais que sejam eficazes
para impulsionar a socialização em uma cultura de direitos humanos. O primeiro passo
para isso é entender o processo da ação perceptiva e considerar as representações sociais
existentes sobre o tema.
A percepção social pode ser definida como a forma com a qual uma pessoa
infere as características e intenções de outra e do contexto onde está inserida. Na
maioria das vezes, temos mais coisas por perceber do que a capacidade para registrá-las.
Como dispomos de limitações de atenção e memória imediatas, realizamos três ações
durante o ato de perceber: primeiro, limitamos a seleção da atenção; segundo,
recodificamos os acontecimentos de forma a simplificá-los; terceiro, utilizamos ajudas
tecnológicas para ampliar o processo cognitivo. (BRUNNER, 1984, p. 144-145).
Ao perceber, também categorizamos. O ato de classificar responde à necessidade
de inferir de acordo com certas pautas que aprendemos a usar. Em outras palavras, os
critérios pelos quais classificamos uma situação, derivam do que aprendemos no
processo de socialização. Esta categorização está cheia de conceitos sociais, elaborados
na interação entre as pessoas, que simbolizam crenças, sentimentos e valores
socialmente apreendidos e aceitos.
É assim que, ao classificar e assimilar esta classificação, as idéias preconcebidas
sobre os indivíduos e grupos acabam abrindo espaço para que os estereótipos e os
preconceitos se consolidem e gerem condutas negativas. Por outro lado, é relevante
compreender que estas condutas não são automáticas nem lineares e dependem tanto de
fatores pessoais como de contextos sociais e legais para se efetivarem. O que significa
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
66
dizer que também é necessária a existência de um contexto propício para esta
efetivação.
No tocante às representações sociais, entendidas como a proposta de uma
determinada interpretação do que existe e do que acontece, em lugar de outras possíveis,
Martin Serrano (1993) considera que é importante não desconsiderar a persistência da
parte de um imaginário social com conotações negativas em relação aos direitos
humanos. Esse imaginário se alimenta da falta de uma real compreensão do significado
desses direitos e da correlação de responsabilidade que foi estabelecida entre sua defesa
e o aumento da criminalidade violenta. Apesar de que parece haver uma melhora quanto
a esta questão, este imaginário continua encontrando respaldo social, especialmente, nos
casos de violência delitiva de grande repercussão.
Por isso, para trabalhar a socialização na perspectiva de desenvolvimento de
uma nova cultura que tenha o ser humano e sua dignidade como foco e que prime pela
construção de uma sociedade inclusiva, é necessário abrir o campo perceptivo do
educador e reeducar essa percepção de forma a despertar o interesse e a crítica diante
dos acontecimentos. (HORTA, 2000, p.129-130).
Essas representações sociais negativas sobre os direitos humanos devem ser
igualmente discutidas e reformuladas a partir de uma formação que possibilite a
compreensão de que todas as pessoas devem ter assegurada a preservação de sua
dignidade e de sua humanidade, a fim de evitar que se confundam os sentimentos de
justiça com os de vingança pessoal. Esta formação deve corresponder aos preceitos e
valores plasmados pela comunidade internacional, nos diversos documentos de defesa e
promoção dos direitos humanos, sendo imprescindível que o educador conheça,
experimente e saiba socializar tais preceitos e valores.
Neste ponto, apresenta-se como condição primordial que a percepção e as
representações sociais, nesse âmbito, sejam consideradas durante a elaboração dos
currículos e dos conteúdos que insiram a perspectiva dos direitos humanos e a definição
da metodologia e da prática pedagógica condizentes com este tipo de educação. Esta
condição é significativa tanto para que se incluam as demandas existentes como para
que a cultura baseada nestes direitos seja interiorizada e vivenciada, pois o êxito na
formação do educador em direitos humanos depende, também, do olhar e das
representações que ele possui sobre o tema.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
67
O papel da escola e dos espaços de educação não-formal
No contexto brasileiro, a EDH vem tendo, historicamente, uma maior inserção
nos espaços de educação não-formal, dentro dos movimentos sociais, das associações
civis e das organizações não governamentais. Nesse campo, as atividades a ela
relacionadas se desenvolvem através da construção do conhecimento em educação
popular e do processo de participação em ações coletivas. Estas práticas educativas não
formais trabalham a reflexão, estimulam o conhecimento e a atuação para os problemas
e as condições de vida, articulando as dimensões dos direitos civis e políticos,
econômicos, sociais e culturais.
É preciso explorar todo o potencial existente nas ações das organizações não
governamentais, das associações de moradores, dos clubes de mães, entre outras, que
atuam na promoção dos direitos humanos no dia-a-dia, pois é inegável o papel que elas
possuem na formação em direitos humanos. Como também facilitar o intercambio dos
conhecimentos e iniciativas desenvolvidas com a finalidade de agregar este setor e
possibilitar a realização de um trabalho coeso.
As experiências nessa área são inúmeras e vêm acontecendo desde a década de
80, proporcionando a difusão da EDH frente à ausência, ainda existente, da
incorporação destes conteúdos no ensino formal. Portanto, a contribuição desses
espaços, na construção de uma cultura de direitos humanos, é de grande relevância e
tem que ser sempre considerada dentro das estratégias de ampliação nessa área da
educação no país.
Por outro lado, apesar da EDH não ser tarefa exclusiva da escola, ocorrendo nos
diversos campos de formação e convivência, no âmbito da educação formal identificam-
se um conjunto de oportunidades para a disseminação dos conteúdos relacionados aos
direitos humanos, assim como para a socialização dos valores.
O primeiro passo neste sentido é pensar na função da escola dentro dessa
missão. Assim sendo, é fundamental redefinir seu perfil e considerar o fato de que a
organização escolar não é neutra. De acordo com Silva (2000, p.16), “é necessária a
construção de um projeto pedagógico democrático e participativo, onde a formação do
sujeito possa ser assumida coletivamente”. A autora igualmente afirma que um projeto
de escola que tenha como compromisso a formação em direitos humanos, deve
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
68
considerar os seguintes elementos: a educação formal é condição essencial à formação
da cidadania e tem na escola seu lugar privilegiado; a escola tem que cumprir, de fato,
seu papel e função social, enquanto espaço de elaboração e socialização do
conhecimento; a educação em direitos humanos deve ser um projeto global da escola; o
desenvolvimento de um processo de conscientização dos direitos e deveres deve ser
contínuo e permanente. (SILVA, 1997, p.220-221).
Conforme análise de Candau (1996, p.14-15), uma proposta metodológica
inspirada nesta perspectiva entende que “a escola deveria exercer um papel de
humanização a partir da socialização e da construção de conhecimentos e de valores
necessários à conquista do exercício pleno da cidadania”.
Como a EDH se dá no dia-a-dia, nas diversas situações e relações cotidianas, é
preciso haver um compromisso com os direitos humanos e o desenvolvimento de uma
prática pedagógica democrática. Da mesma forma, é necessário que o educador não seja
um mero transmissor dos conteúdos formais e sim que: a) acredite no que faz, pois sem
a convicção de que o respeito aos direitos humanos é fundamental para todos, não é
possível despertar os mesmos sentimentos nos demais; b) eduque com o exemplo,
porque de nada adianta ter um discurso desconectado da prática ou ser incoerente
exigindo aos demais determinadas atitudes que a própria pessoa não cumpre; c)
desenvolva uma consciência crítica com relação à realidade e um compromisso como as
transformações sociais, já que os propósitos deste tipo de educação é a de formar
sujeitos ativos que lutam pelo respeito aos direitos de todos.
A EDH, em síntese, necessita estar em conformidade com os princípios e valores
que dignifiquem o ser humano e deve ter sua práxis e conteúdos pautados no respeito a
tais direitos, assim como na capacidade de se indignar frente às injustiças e atos
desumanos e de atuar para reverter estas situações.
Pensando na prática pedagógica em direitos humanos, Magendzo (2006, p.67-
70) lista alguns princípios relacionados com os aspectos conceituais de dita prática. O
primeiro deles é o princípio da integração, que defende que os temas e conteúdos de
direitos humanos fazem parte integral dos conteúdos e atividades do currículo e dos
programas de estudo.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
69
O segundo é o princípio da recorrência, onde o aprendizado em direitos humanos
é obtido na medida em que é praticado uma e outra vez em circunstâncias diferentes e
variadas.
O princípio seguinte é o da coerência, pois o êxito do aprendizado é reforçado
quando se cria um ambiente propício para seu desenvolvimento. A coerência entre o que
se diz e o que se faz, é parte importante neste ambiente.
O quarto princípio é o da vida cotidiana. Como a EDH está estreitamente
vinculada com a multiplicidade de situações da vida cotidiana, é importante que o
educador resgate essas situações e momentos em que os direitos humanos estão em
jogo.
O princípio da construção coletiva do conhecimento aparece como o quinto, e
vem enfatizar a importância de que as pessoas analisem, grupalmente, a informação
recebida sobre direitos humanos e deixem de ser meros receptores passivos e se tornem
produtores de conhecimento.
O último princípio é o da apropriação. Através dele, a pessoa se apropria do
discurso recebido e o recria, ou seja, reelabora as várias mensagens e as traduz num
discurso próprio, do qual toma plena consciência e que orienta as atuações da sua vida.
Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da EDH, o
principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e
que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a
proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experencial.
A formação dos educadores articulada com uma educação em direitos humanos
interdisciplinar e multidimensional
A formação do educador em direitos humanos depende tanto de uma prática
pedagógica condizente com o respeito ao ser humano como de uma educação que
privilegie a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade que envolve a temática.
Esses aspectos representam uma nova postura diante do conhecimento, possibilitando
uma ação educativa capaz de ampliar as capacidades, desenvolver a consciência crítica
diante da informação e priorizar a interação e participação de forma democrática. O
foco, portanto, valoriza o que é construído e não simplesmente transmitido.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
70
De acordo com Fazenda (1979, p.39), a interdisciplinaridade “é uma relação de
reciprocidade, de mutualidade”, além disso, é um processo que possibilita o diálogo.
Andrade (1989, p.10), por sua vez, a conceitua como “a busca teórica e epistemológica
de um avanço do conhecimento, a partir dessas conquistas fundamentais, que, de um
campo do saber a outro, podem circular com fecundação mútua”.
A interdisciplinaridade, que busca o equilíbrio entre a análise fragmentada e a
síntese simplificadora, é essencial nas atividades relacionadas aos direitos humanos,
porque a formação, nesse âmbito, necessita articular as várias esferas do conhecimento
de modo a perpassar todos os seus níveis e conteúdos com a finalidade de possibilitar o
olhar para o mesmo objeto sob perspectivas diferentes.
Para Gadotti (1999, p.2-3), a metodologia de trabalho interdisciplinar implica
em: integração de conteúdos; passar de uma concepção fragmentária para uma
concepção unitária do conhecimento; superar a dicotomia entre ensino e pesquisa,
considerando o estudo e a pesquisa a partir da contribuição das diversas ciências; e
realizar o ensino-aprendizagem centrado numa visão de que aprendemos ao longo da
vida. Estes elementos permitem compreender que um trabalho interdisciplinar demanda
a superação de que uma única visão, explicação ou conteúdo é suficiente. No campo dos
direitos humanos, como nos demais campos do saber, é a multiplicidade de temas, de
articulações, de conteúdos que possibilita um processo educativo plural e completo.
Da mesma maneira, a formação em direitos humanos demanda englobar
diferentes dimensões que devem complementar-se com o fim de abarcar o
conhecimento desde distintas percepções. Neste ponto, reside a importância de uma
formação que aborde a educação em direitos humanos como multidimensional, tentando
relacionar diferentes dimensões que devem ser trabalhadas em conjunto. (HORTA,
2000, p.129).
O que se busca com a ação pedagógica, através da interdisciplinaridade e de uma
abordagem multidimensional, é a tentativa de superação de uma postura isolada e
alienada e a formação do sujeito social a partir da vivência de uma realidade global e
participativa.
Pensar na interdisciplinaridade e nas múltiples dimensões da EDH significa
assegurar que os conteúdos relacionados aos direitos humanos estejam presentes tanto
no currículo manifesto – planos, programas e textos de estudos – como no currículo
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
71
oculto. (MAGENDZO, 2006, p.35). Isso significa que, além do interesse pelos objetivos
e conteúdos das distintas áreas do aprendizado, também existe a preocupação de que a
EDH esteja presente em todos os níveis da prática pedagógica.
Neste contexto, o que fica claro, é que uma área como a dos direitos humanos,
por sua relevância e pela amplitude de conteúdos teóricos e práticos que são de sua
competência, não é condizente com outra forma de abordagem que não seja a
interdisciplinar e a multidimensional. Como busca a formação cidadã, a EDH tem que
estar em interação com todas as áreas do conhecimento e a interdisciplinaridade e a
multidimensionalidade são recursos que se completam e que têm a finalidade de ampliar
as inúmeras possibilidades de interface do conhecimento, possibilitando, ao mesmo
tempo, a autonomia e a interação.
É através delas que um processo educativo em direitos humanos ultrapassa os limites da
simples descrição da realidade e passa a mobilizar as competências cognitivas para
auxiliar nas análises, deduções e inferências. Ao mesmo tempo que fomenta a
explicação, a compreensão e a intervenção.
A formação do educador em direitos humanos, para ser completa, tem que partir
dessas premissas. Não pode estar atrelada a uma estrutura fechada de produção do
conhecimento. Então, por que não privilegiar a interdisciplinaridade e a abordagem
multidimensional na EDH se elas proporcionam as melhores condições para a formação
nesta área? Qualquer dificuldade que possa existir nesse sentido, merece a pena ser
superada pelo resultado que será alcançado.
Claro que isso requer um aprendizado por parte dos educadores, o reaprender a
olhar, a articular, a construir junto. Mas as resistências e problemas que podem ocorrer
nesse caminho não devem servir de argumento para o desânimo ou a rejeição. O
educador em direitos humanos tem diante de si uma responsabilidade imensa. Primeiro,
de educar-se a si mesmo e depois, de educar aos demais na tolerância, no respeito, na
compreensão da diferença. Segundo, de atuar democraticamente e com persistência para
que o compromisso com as transformações sociais, necessárias para reverter às
injustiças e desigualdades, possa chegar a ser o horizonte de todos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
72
Conclusões
Educar em direitos humanos significa ter a vida cotidiana como referência
contínua. É um aprendizado que não ocorre de forma pontual ou isolada, mas que,
sistematicamente, faz parte da ação educacional. Por isso, é importante a elaboração de
abordagens condizentes com este tipo de educação, que possam contribuir para seu
exercício.
O ponto de partida deve ser o de uma pedagogia crítica, que articule os saberes
docentes em direitos humanos e que oportunize aos educadores uma ampla gama de
opções, de observações, de análises, de descobertas. É preciso consolidar o aprendizado
pela vivência, fazer do exercício cotidiano da cidadania uma prioridade.
Como uma das finalidades da EDH é despertar a responsabilidade com a defesa
do respeito ao ser humano, é fundamental sensibilizar e fomentar o compromisso. A
formação nesta perspectiva deve propiciar ao educador o conhecimento e a experiência
em direitos humanos, mas, sobretudo, oportunizar a socialização dos preceitos e valores
relacionados a essa área.
O enfoque deve passar pela abordagem interdisciplinar e multidimensional como
forma de estabelecer um diálogo com os demais conteúdos e níveis do conhecimento.
Uma formação em EDH que não dê preferência a esta questão, será incapaz de romper
com as representações e percepções prévias e proporcionar aos educadores um outro
olhar sobre o qual assentar sua prática.
É fundamental educar na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios
democráticos; construir uma nova cultura que tenha como centro o ser humano. Este é
um desafio no qual a contribuição dos educadores em direitos humanos é inestimável.
Por isso sua própria formação deve, desde o princípio, corresponder a estes valores que
se pretende socializar.
Igualmente, é preciso não perder a perspectiva da coerência entre o discurso e as
atitudes tomadas no dia-a-dia. O horizonte será sempre o mesmo: o respeito ao ser
humano e a sua dignidade. Mas a construção desse horizonte depende do grau de
envolvimento e disposição que pode haver em cada um.
Oportunizar, portanto, a formação do educador em direitos humanos, em
consonância com os valores que lhe são intrínsecos e desde uma abordagem
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
73
interdisciplinar e multidimensional, é, na atualidade, um passo a mais na construção de
uma cultura de direitos humanos.
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74
Cultura da Paz10 Leonardo Boff11
A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de
poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos
mercados. Essa é a lógica dos dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra.
Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de
guerra e de violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de
todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de Schwazenegger como o
“Exterminador do Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem
mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e
informal, ela não cria mediações para uma cutura da paz. E sempre de novo faz suscitar
a pergunta que, de forma dramática, Einstein colocou a Freud nos idos de 1932: é
possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É
impossível aos homens controlar totalmente o instinto de morte… Esfaimados
pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de
receber a farinha”.
Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam
poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo
cosmogênico. Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta
violência em todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em
massa, ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos,
pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A
expansão do universo possui também o significado de ordenar o caos através de ordens
cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos violentas.
10 Artigo disponível no site htpp://www.leonardoboff.com/. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, 8 de fevereiro de 2002, p.9. 11 Leonardo Boff (1938-) é teólogo e um dos principais formuladores da teologia da libertação, além de conferencista requisitado internacionalmente. É professor emérito de ética, de filosofia da religião e de ecologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Dedica-se atualmente ao tema da ecologia e espiritualidade com vistas à construção de uma ecodemocracia integradora e planetária. Escreveu mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, ecologia, filosofia, antropologia e mística, dentre eles: A oração de São Francisco. Uma mensagem de paz para o mundo atual; O destino do homem e do mundo; Ecologia – grito dos povos; São Francisco de Assis: ternura e vigor.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
75
Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos limites à violência e
conferir-lhe um sentido construtivo.
Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a
dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas
sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecno-ciência, os
processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação.
Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de
resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje
globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera guerras
econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e violências. Todas estas
forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos
desumaniza a todos.
A essa cultura da violência há que se opôr a cultura da paz. Hoje ela é
imperativa.
É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o
pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o
potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a
continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o
projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros.
Onde buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que imperativos
voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos fornecer indicações objetivas
e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas
superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e
cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade,
compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que desentranhemos tais forças
para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda protelação é insensata.
O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e co-
pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de re-
engenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso de
racionalidade. A competitividade continua a valer mas no sentido do melhor e não de
destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas um.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
76
Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger, resgatando uma antiga
tradição que remonta aos tempos de César Augusto, vêem no cuidado a essência do ser
humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para
continuar a existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde
vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda
violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e
o exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de
generosidade que nos habita, como Gandhi, Dom Helder Câmara e Luther King e
outros. Importa fazermos as revoluções moleculares (Gatarri), começando por nós
mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e
enquanto meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado, da compaixão e
da amorosidade, vividos cotidianamente.
a) A partir do que você leu sobre a cultura da paz e considerando as discussões em
sala de aula, apresente um conflito que tenha vivenciado ou presenciado em sua
comunidade ou movimento e que tenha sido difícil a sua superação. Caso tenha
superado, apresente como foi o processo de superação: positivo ou negativo.
b) É verdade que muito de vocês se indignam com alguns relatos de violação de
direitos humanos ou mesmo ficam se perguntando: e agora, o que posso fazer
com este conhecimento para ajudar minha comunidade ou mesmo contribuir
com o movimento que participo ou como utilizar na minha atividade
educacional? Assim, gostaria que vocês colocassem suas idéias em prática,
através de um plano de trabalho simples, mas que possa ser útil. Vamos dividir
este trabalho em duas etapas: primeiro, será elaborado um diagnóstico sobre os
problemas que a sua comunidade ou movimento enfrentam. Em segundo lugar,
vamos elaborar propostas de ações simples, que possam ser organizadas para
enfrentar esses problemas. Para tanto, elabore primeiro um diagnóstico com base
nas questões abaixo. Sinta-se à vontade para incluir outros dados que considerar
importantes para elaboração do projeto.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
77
1ª ETAPA: DIAGNÓSTICO 1. Na sua comunidade ou movimento ou local de
trabalho, quais direitos humanos estão sendo mais violados? 2. Quais os
principais problemas, dificuldades, desafios e conflitos que vocês enfrentam no
seu cotidiano de militância na sua comunidade ou movimento?
2ª ETAPA: PROPOSTA DE AÇÃO 3. Quais ações você vê como possíveis e
viáveis para enfrentar estes problemas, com base no que foi apresentado no
curso? Enumere aqui as atividades propostas e descreva como você pensa em
fazer as atividades. 4. Quais desses problemas você acha que são mediáveis, e
quais não são? 5. Quais entidades você procuraria para formar parcerias para
enfrentar o problema? 6. Por que você acredita que estas ações contribuiriam
para a efetivação dos Diretos Humanos? Como você pretende avaliar se sua
proposta deu certo ou não?
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
78
Eixo III
Módulo I e II
Direitos Fundamentais:
Direitos fundamentais são os que, como essenciais ao homem, foram se
firmando ao longo da história. Tratam de situações jurídicas, sem as quais a pessoa
humana não se realiza, não convive e por vezes nem sobrevive. Visam a ser efetivados a
todos igualmente e de forma concreta. A Constituição Federal reconhece esses direitos
declarando-os.
Assim, os direitos fundamentais são aqueles direitos de que a pessoa não pode
abrir mão nunca. Não podem ser passados de uma pessoa para a outra, pois cada pessoa
já nasce dona dos seus direitos fundamentais protegidos pela Constituição brasileira.
Esses direitos não perdem sua validade com o tempo, não importa se são colocados em
prática ou não, eles nunca deixam de existir. E ninguém pode abrir mão desses direitos,
eles estão garantidos para todos os brasileiros na Constituição, sem ninguém precisar
fazer nada. Basta nascer para ter direitos fundamentais.
A Constituição os agrupa em direitos individuais; coletivos; sociais; à
nacionalidade e direitos políticos. Buscam dar um conteúdo real e uma possibilidade de
exercício eficaz a todos os direitos e liberdades. A proclamação dos direitos
fundamentais supõe uma autêntica garantia para o efetivo desfrute das liberdades civis e
políticas.
Assim esses direitos nascem historicamente pela necessidade humana, são
feitos pelos humanos para os humanos, de forma que todos participam de sua feitura
como compartilham a possibilidade de sua exigência. Para que tais direitos sejam
exigíveis por todos, existem garantias. Desta forma, as garantias constitucionais dos
direitos fundamentais vêm para dar proteção prática e fazer efetivos esses direitos. As
garantias dão proteção social, proteção política e proteção jurídica.
O respeito e a exigência desses direitos dependem não só das garantias como
principalmente do efetivo exercício desses direitos pelos cidadãos. O cumprimento
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
79
desses direitos, assim como seu surgimento histórico, também depende de uma prática
reiterada do exercício destes mesmos direitos.
A Constituição do Brasil é um documento no qual consta positivados em lei (e
portanto exigíveis por todos os cidadãos) os valores mais caros à sociedade, tais como a
liberdade, a igualdade, o respeito para com o próximo e a autonomia. Esses valores, por
serem tão importantes para os brasileiros (e também para muitas pessoas no mundo),
devem ser seguidos por todos, daí falarmos que a Constituição é a Lei Maior de um
Estado.
Falaremos então sobre um desses valores tão importantes: a liberdade.
Comecemos com o estudo de uma das liberdades mais básicas que nós temos, a
chamada liberdade da pessoa física. José Afonso da Silva, grande estudioso do direito,
conceituou liberdade da pessoa física como “a possibilidade jurídica que se reconhece a
todas as pessoas de serem senhoras de sua própria vontade e de locomoverem-se
desembaraçadamente dentro do território nacional”.12 Dessa definição decorre o
chamado direito de locomoção, que está descrito no artigo 5º, XV da Constituição de
198813. O artigo remonta também a questão dos estrangeiros que moram ou que visitam
nosso país, mas esses detalhes são dispensados em vista do objetivo do nosso estudo,
qual seja, esboçar um panorama geral das liberdades garantidas pela nossa Constituição.
O que devemos lembrar disso tudo, portanto, é que nos é garantido pela Lei Maior de
nosso país, o direito de irmos aonde quisermos, sem descumprir, é claro, as leis que
impedem nossa presença por diversos motivos, quer sejam motivos de segurança, saúde
pública etc.
No nosso dia-a-dia, no entanto, assistimos a cenas na televisão, por exemplo, de
pessoas que são presas injustamente, mediante a utilização exagerada e desnecessária da
força, principalmente pela polícia. Para combater essa situação, nossa Constituição
lança mão de um dispositivo chamado “Habeas Corpus”. Esse dispositivo está descrito
na nossa Lei Maior no artigo 5º, inciso LXVIII que diz: “conceder-se-á “Habeas
Corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
12 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed., rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 56, de 20.12.2007. São Paulo: Malheiros, 2008. 13 Art. 5º, XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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coação14 em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Portanto,
devemos sempre ter em mente que nossa liberdade de locomoção, de ir e vir, é
garantida pela nossa Constituição e que podemos recorrer à justiça sempre que
acharmos que estamos sendo vítimas de um abuso de poder contra essa nossa liberdade.
Daí a grande importância de conhecermos as leis de nosso país, para que possamos
exigir o cumprimento de nossos direitos, que por sua vez, são obrigações do
Estado. CONHECIMENTO SOBRE AS LEIS E EXIGIR SEU CUMPRIMENTO
SIGNIFICA LIBERDADE!
Agora vamos falar sobre a liberdade de expressão. Nossa Constituição dispõe
sobre a liberdade de expressão no artigo 5º, incisos IV, XIV e no artigo 220, parágrafos
1º e 2º. Essa liberdade é uma das principais conquistas que a Constituição de 1988 (a
atual Constituição do Brasil) obteve. No período que vai de 1964 a 1985, nosso país
viveu um período conhecido como ditadura militar. Nesse período, os brasileiros não
podiam se expressar de forma livre, falar o que pensavam ou tomar atitudes de maneira
autônoma, uma vez que todo tipo de manifestação era vigiado pelos militares (que então
estavam no poder), e as pessoas que não agissem segundo as idéias dos militares,
poderiam ser presas ou até mesmo expulsas do país.15 Com o fim do período militar, a
liberdade de expressão foi admitida pela Constituição e, a partir de então, as pessoas
puderam expressar livremente suas opiniões, seus valores, suas idéias, além de
possuírem mais acesso às informações e expressões não verbais (como músicas e
pinturas). Reconquistamos a Democracia, ou seja, o direito de todas as pessoas juntas
(representadas pelo Presidente, pelos deputados, senadores, governadores, vereadores,
prefeitos) decidirem o que seria melhor para o país, ao contrário do que acontecia na
época dos militares, quando apenas eles tomavam essas decisões. Foi o “fim da
censura”, que significa a intervenção do Estado no pensamento, na informação e nas
atitudes das pessoas. A liberdade de expressão contribuiu muito para o crescimento do
país, pois, como o homem é ser que necessita conviver com seus semelhantes, o seu
crescimento (tanto pessoal quanto em grupo) deve-se à troca de experiências e opiniões
com os membros de sua comunidade. Isso inspira o respeito e a consideração pelo
outro. 14 A palavra “coação” significa ato de forçar ou obrigar alguém a fazer alguém mediante o uso de violência física. 15 Vários artistas tiveram que se refugiar em outros países para não serem presos pelos militares, a exemplo de Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
81
No entanto, sabemos que não podemos sair por aí fazendo tudo que queremos,
uma vez que é imperiosa a regra de respeito à liberdade do outro. A própria
Constituição, símbolo de liberdade e democracia, prevê que existem certos limites à
liberdade de expressão.16 Esses limites existem justamente para garantir e preservar
valores tão importantes quanto a liberdade, como por exemplo, a vida, a honra e a
dignidade. Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, atual presidente do Supremo
Tribunal Federal: “Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado
como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar
de igualdade de direitos com seus semelhantes”.17 Portanto, se não usarmos nossa
liberdade de expressão (que é um direito nosso) com sabedoria e cuidado, poderemos
ferir os direitos de outras pessoas, o que pode levá-las a reivindicar seus direitos
ameaçados ou violados, perante a justiça. Estamos falando de outro direito também
garantido pela Constituição: o direito de privacidade. A privacidade de alguém
corresponde a todos os assuntos e atitudes que dizem respeito apenas à vida particular
de cada cidadão. A vida privada é de imensa importância para a formação emocional e
até mesmo cultural (no seio da família, por exemplo) dos indivíduos. Além disso,
mesmo os artistas de televisão ou os políticos que possuem uma vida pública, como
cidadãos, tem o direito de possuir determinada privacidade em seus lares ou em suas
famílias. Portanto, fica claro que ao abordarmos o tema da liberdade de expressão,.
devemos ficar atentos aos outros princípios que também regem a nossa Constituição, a
exemplo do direito de privacidade.
Ainda com relação à liberdade de expressão, nossa Constituição concede às
crianças e jovens “absoluta prioridade” na observância das liberdades.18 Portanto, é
preciso medir bem nossas atitudes com as crianças e jovens, de modo que determinadas
idéias e atitudes não atrapalhem seu desenvolvimento e seu aprendizado, bem como não
interfiram no direito à vida, à educação e à dignidade. O BEM ESTAR E A
EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS E JOVENS DEVE SER PRIORIDADE TANTO DO
ESTADO QUANTO DA SOCIEDADE, de modo a resguardá-los “de toda forma de
discriminação, violência, exploração, crueldade e opressão”, de acordo com o artigo 227
16 Esses limites podem ser encontrados no art. 5º, IV,V,X,XIII e XIV, e no art. 220, §3, I, II e §4º. 17 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. -. São Paulo: Saraiva; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2009. 18 Art. 227 da Constituição Federal de 1988.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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da nossa Constituição. Segundo Gilmar Ferreira Mendes: “A liberdade de expressão,
portanto, poderá sofrer recuo quando o seu conteúdo puser em risco uma educação
democrática, livre de ódios preconceituosos e fundada no superior valor intrínseco de
todo ser humano”19. Observamos esse recuo, por exemplo, nos limites da liberdade de
determinada programação de televisão em certos horários, dado que alguns conteúdos
televisivos não são apropriados para determinadas idades, em respeito aos valores da
família e da ética, como dispõe o artigo 221 da nossa Constituição.
Podemos concluir, portanto, que a Constituição do Brasil garante a todos os
brasileiros o direito de pensar e de se expressar de maneira autônoma, sem a
interferência do Estado, salvo nos casos em que essa expressão comece a ferir os
direitos de outros indivíduos.
Outra liberdade garantida pelo nossa Constituição é a liberdade religiosa. Essa
liberdade está descrita nos artigo 5º da Lei Maior, nos seus incisos VI, VII e VIII. O
direito à livre manifestação religiosa está intimamente ligado à liberdade de expressão
porque as religiões são em si, maneiras diferentes de enxergar o mundo a sua volta e
seus seguidores acabam por aderir a vários códigos de conduta pregados pelas religiões.
Logo, como somos todos “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”20,
devemos ser respeitados ao declararmos nossas convicções pessoais, e no caso em
questão, ao declararmos nossa identidade religiosa, na certeza de que existem certos
limites para essa expressão, que também são descritos em lei. Muçulmanos, católicos,
judeus, budistas... cada um tem sua forma de expressar a fé, e cabe a cada um de nós
respeitar a crença do outro, e esse respeito é garantido pela nossa Constituição.
Vamos falar agora sobre a liberdade de reunião. A Constituição do Brasil
garante a todos os brasileiros a possibilidade de seu reunirem em locais abertos, para
fins pacíficos, independente da autorização do poder público.21 Essa reunião muitas
vezes pode ter o objetivo de discussão de determinados assuntos, para exprimir uma
vontade coletiva, para a celebração de uma festa ou até mesmo para fazer uma
reivindicação ou protesto. Conectado a esse direito, declara nossa Lei Maior que todos
são livres para se associarem, visando os mais diversos fins, que não seja ilícitos nem
19 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. -. São Paulo: Saraiva; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2009. 20 Art. 5º da Constituição Federal de 1988. 21 Art. 5º, XVI da Constituição Federal de 1988.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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paramilitares.22 Esses direitos estão na base das chamadas “garantias coletivas”, ou seja,
das garantias que dizem respeito a um grupo de pessoas e algumas até à totalidade dos
cidadãos brasileiros.
Chegamos ao fim de nosso estudo sobre as principais liberdades garantidas pela
Constituição Brasileira a seus cidadãos. No entanto, não se pode esquecer que outras
liberdades são garantidas por outras leis e até mesmo pela própria Constituição.
Finalmente, aproveitamos para afirmar que, para que essas liberdades sejam garantidas
e efetivas, é necessário que todos os cidadãos conheçam nossa Constituição, e para isso,
é indispensável ensinar a todas as pessoas (educação) o que consta na Lei Maior de
nosso País.
Os direitos sociais são a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência
aos desamparados. Está escrito na Constituição que todos os brasileiros têm esses
direitos garantidos, sem distinção de qualquer natureza. Todos. Do mais novo ao mais
idoso, em Minas Gerais ou em qualquer outro Estado, a qualquer hora do dia ou da
noite. Todos os brasileiros têm os mesmos direitos.
Dizer que a Constituição garante o direito ao trabalho significa dizer que todos
os cidadãos brasileiros têm o direito de conseguir um emprego, de ter condições dignas
de trabalho, de ter um salário que sustente a sua família, e de lutar para ter melhores
condições de trabalho e melhores salários. E até de fazer greve, se for preciso.
A Constituição protege a saúde, a previdência social e a assistência social. Isso
quer dizer que ninguém pode ficar sem atendimento médico quando precisar, que todas
as pessoas têm direito aos medicamentos de que precisarem para terem uma boa saúde,
que o Brasil tem a obrigação de proteger a saúde de todos os brasileiros; quer dizer que
o trabalhador tem direito a se aposentar depois de trabalhar a vida toda, que a mulher
tem direito a tirar licença maternidade e continuar recebendo seu salário e voltar
normalmente ao seu trabalho quando terminar a licença.
Quando a Constituição fala que a sociedade tem direito à educação e à cultura,
significa que todos os brasileiros têm direito a freqüentar uma escola, ao
desenvolvimento intelectual e a ter uma formação profissional.
22 Art. 5º, XVII da Constituição Federal de 1988.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Também são protegidos pela Constituição os direitos relativos à moradia e ao
meio ambiente. Ou seja, temos o direito de ter um lugar digno para morar, numa
vizinhança limpa e segura, sem perturbações de nenhum tipo e livre de poluição do ar,
dos rios, visual ou sonora.
As crianças e adolescentes têm uma proteção especial, derivada da
Constituição, chamada Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, são reafirmados os
direitos fundamentais que estão na Constituição, com prioridade para as crianças e
adolescentes: a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.
De acordo com o Estatuto – o ECA –, os menores de 18 anos têm preferência
de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; preferência de atendimento
nos serviços públicos ou de relevância pública; na formulação e na execução das
políticas sociais públicas; e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
O ECA garante que nenhuma criança ou adolescente sofrerá qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e que qualquer
atentado aos seus direitos fundamentais será punido. O ECA protege a vida e a saúde
das crianças e adolescentes e garante o direito ao pré-natal, ao aleitamento materno,
proíbe qualquer tipo de maus-tratos e diz que é obrigatória a vacinação de todas as
crianças.
As crianças e adolescentes têm o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.
Isso quer dizer que elas têm direito de opinião e expressão; de crença e culto religioso;
de brincar, praticar esportes e divertir-se; de participar da vida familiar e comunitária,
sem discriminação; de participar da vida política; de buscar refúgio, auxílio e orientação
se precisarem.
A integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais são invioláveis. Significa dizer que ninguém pode invadir
esse espaço, que ninguém pode violar esses direitos. Eles estão garantidos na
Constituição e no ECA. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
85
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor.
Toda criança tem o direito a ser criada pela sua família, tem direito à educação,
à cultura, ao esporte e ao lazer. O ECA garante o direito a entrar para uma escola,
pública e gratuita, perto de sua residência; o direito de ser respeitado pelos educadores e
o direito a permanecer na escola. As crianças de zero a seis anos têm direito a
atendimento em creche e pré-escola; é obrigação dos pais ou responsável matricular
seus filhos na rede de ensino. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos
de idade, salvo na condição de aprendiz.
EDUCAÇÃO E AÇÃO PELOS DIREITOS HUMANOS
“(...) Somos plenamente conscientes de que não existe um verdaderio processo
educativo que não seja ativo. De fato, pais de famílias, professores, educadores,
animadores de grupos, militantes etc. convertem-se em agentes pedagógicos na própria
medida em que praticam os direitos do homem. Eles não são aprendidos “de cor”, mas
praticados. Caso contrário, morrem e desaparecem da consciência da humanidade.
No que diz respeito ao ensino dos Direitos Humanos, estamos persuadidos de
que não há, de um lado, “experts” e, de outro, ignorantes. Todos somos especialistas do
humano, ou indigentes, e a tarefa de humanizar deve brotar de nossas iniciativas
educativas. Neste campo, podemos afirmar com segurança: ninguém educada ninguém.
Aqui, os seres humanos educam-se em comunhão! Ninguém tem o monopólio dos
elementos humanizantes. Todos temos algo que dar e algo que receber.
Este trabalho que aqui apresentamos quer refletir também a preocupação por
uma informação mínima, que é a base de toda possível ação no campo dos Direitos
Humanos, e nosso desejo de evitar fica no plano do discurso teórico a respeito do
assunto. Esta dupla ambição marca, também, nossa limitação.
Pretendemos apenas ganhar um lugar junto a tanto outros esforços e convidar a
todos os seres de boa vontade a se converterem, onde quer que estejam, em entusiastas e
entusiasmantes educadores dos Direitos Humanos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
86
Sem este entusiasmo, sem este ensinamento, se os Direitos Humanos não
impregnam o processo educativo especialmente das novas gerações, não há progresso
possível em tal campo.
Podemos educar para os Direitos Humanos? Tal vez alguns respondam
rapidamente que sim. Nós – a partir da experiência história – achamos que não é
impossível, mas tão pouco é fácil. Inicialmente é necessário conhecer os direitos e
admitir também que seu conhecimento não se limita ao mero enunciado dos 30 artigos
da Declaração Universal, mas que implica no descobrimento e na prática de certas
atitudes complexas e exigentes. E isto é assim porque os Direitos Humanos não são
neutros, não toleram qualquer tipo de comportamento social, político ou cultural.
Exigem certas atitudes ao mesmo tempo que repelem outras.
Um dos maiores obstáculos para a difusão e educação dos Direitos Humanos é o
abismo existente ente o discurso, as palavras e os fatos, as atitudes. Se um educador, se
um sistema escolar, pretende educar para os Direitos Humanos deve sempre começar
por praticá-los. Não há educação para os Direitos Humanos, não há projeto educativo
válido neste campo sem profundo compromisso social por torná-los realidade. E isto
começa ao se descobrir que o próprio educando sobretudo ele, possui direitos
inalienáveis e não manipuláveis.
Neste terreno pedagógico não existe um ensino neutro. E, além disso
historicamente, todo ensino tem sido uma tarefa na qual o educador, consciente, ou
inconscientemente, tomou partido claramente por uns e outros valores, procurando
inculcá-los nos demais. Isto é assim porque educar não se restringe nunca a Mara
informação. Educar é também transmitir convicções, esperanças, afetos, desilusões e
compromissos... Em última análise, na origem de qualquer processo educativo existem
perguntas básicas que não podem ser eludidas: “ que tipo de sociedade e pessoa devo
defender e transmitir?” ou “Que sistema educacional se ajusta mais a esta opção?” E,
logicamente, estas perguntas não são exclusivamente teóricas, estão unidas a uma
prática e estão dirigidas tanto aos indivíduos como aos Estados. (...)
Superar o divórcio entre teoria e prática, no campo dos Direitos Humanos, é o
maior desafio atual. Muitas vezes, a teoria educativa não chega a se arriscar e se “sujar”
com a prática quotidiana. Há uma tendência em eludir esta responsabilidade por parte
dos educadores e dos centros com seus programas educativos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
87
Estabelecer a relação entre a teoria e prática implica a participação ativa dos
mesmos educandos no próprio centro da educação educativa, negando a outra relação,
alienante, que os considere como meros “depósitos” a se encher com determinadas
informações. E isto considerando que, como disse Bakunin: “A liberdade só se ensina
com a liberdade!”
Texto retirado de
MOSCA, Juan José AGUIRRE, Luís Perez.
Direitos Humanos – Pautas para
Uma Educação Libertadora.
Petrópolis, Vozes, 1999, p.19-20.
EDUCAR PARA OS DIREITOS HUMANOS
“O que é uma educação para Direitos Humanos?”
A dificuldade inicial é o caráter geral, abstrato dos dois termos aqui acoplados:
Educação e Direitos Humanos. Como tirar da expressão significado das palavras, vemos
que abstrato é uma palavra de origem latina que diz “retirado do contexto”; e concreto
da mesma origem – particípio passado do verbo concrescer – significa “aquele que
cresceu junto”. Falar abstratamente de direitos humanos com crianças e adolescentes é
inócuo. No entanto, é indispensável que eles vivenciem situações de defesa dos Direitos
e deveres em suas relações, desde muito cedo.
No processo de educação para Direitos Humanos, distinguimos três fases
- sensibilização
- percepção
- reflexão
Antes de abordar os direitos humanos a nível discursivo é preciso passar por
uma fase de sensibilização. A sensibilização se faz em todas as áreas do conhecimento
(em artes plásticas, por exemplo, sensibiliza-se o aluno para as formas, as cores). É uma
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
88
fase concreta que chega diretamente à vivencia do aluno: corporal, subjetiva e
intersubjetiva.
No caso dos Direitos Humanos, esta vivencia só pode ser captada nas relações
humanas primárias, isto é, nas relações fundamentais que trazemos de nossa primeira
infância: as relações Homem X Mulher, Pai X Mãe, Pai X Filho e outras instancias
familiares. Depois, isto se estende aos amigos da escola, à relação Professor X Aluno,
que constituem o universo de uma criança.
O período em que a criança está fortemente centrada na afirmação de seu ego é o
momento em que se inicia o progresso educacional. É uma luta que se enceta contra o
egocentrismo infantil: luta sinuosa, estratégica, que vai se transformar em uma
pedagogia que deve de algum modo relativizar este egocentrismo. No entanto, a
tendência natural da criança de excluir o outro sintoniza com o princípio básico da
sociedade burguesa na qual ela está psicológica e sociologicamente imersa, que é lutar
somente pelas próprias vantagens. O individualismo, a competição, a concorrência – na
qual impera o “vale tudo” – estão nos fundamentos da ideologia do capitalismo.
O capitalismo multiplica a tendência egocêntrica que é própria da criança,
estimulando-a a consumir, a diversificar seus desejos, a satisfazer seus caprichos. Os
adultos tornam-se escravos da criança voluntariosa que, através do consumo, sente
aumentar seu ego.
Isto acontece na sociedade burguesa e, segundo Marx, “o pensamento dominante
de uma classe acaba sendo o pensamento dominante da sociedade inteira”.
É preciso lutar para que a fase natural de centração da criança seja seguida pela
fase também natural de descentração, quando há o reconhecimento do outro.
Como é possível sensibilizar a criança para o outro? Como ela pode ver no outro
uma alternativa de seu próprio ego? Como pode ela criar desde cedo esta reciprocidade
fundamental que a ética chama tradicionalmente de dialética de direitos e de deveres?
Na verdade, direitos e deveres são as mesma coisa. Quando estou cumprindo um
dever, freqüentemente estou atendendo ao direito de outrem e vice-versa. Direitos e
deveres são efetivamente os dois lados da mesma moeda, que é a moeda da
responsabilidade social.
Esta ética dos deveres e direitos deve ser sentida pela criança, no momento em
que sentir a necessidade do outro.
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Cabe ao professor aproximar os alunos em torno de atividades comuns, de
objetivos comuns.
A maior dificuldade está no fato de nós mesmos, educadores não termos sido
educados para os direitos humanos. O primeiro passo, então, seria o da auto-educação,
para irmos desvendando e ultrapassando nosso egocentrismo, autoritarismo, rigidez, já
que fomos socializados num sistema de repressão e de concorrência e dele somos
vítimas. Na interação com o aluno, o professor atento também vai se educando.
Embora a sensibilização para os Direitos e Humanos possa ser levada a efeito
com qualquer faixa etária, há momentos da vida escolar em que ela é mais eficaz: na
pré-escola e nos primeiros anos do 1° grau. Até o empréstimo de um lápis ou de uma
borracha, de um brinquedo, está o passo inicial para a socialização. A solidariedade se
exprime por gestos, por palavras, por um “dar de si”. Os jogos e brincadeiras em que
não entrem em competição e a concorrência devem ser estimulados; através deles pode-
se conseguir a integração da classe, embora levando em consideração a existência de
conflitos. Tem que ser aberto espaço para a integração também de pais e mestres, da
escola com a comunidade são os locais onde a violência impera. Apesar de não se ter a
pretensão de atingir toda a sociedade, a Educação para Direitos Humanos tem que
começar com um elo, e o elo privilegiado é o que une a criança e a família. Se a escola
não estabelecer uma relação – por mínima que seja – com o núcleo onde a criança está
inserida, o programa de educação para os Direitos Humanos torna-se inviável. Não se
trata de a escola assumir o papel de psicanalista da família, mas de propiciar
oportunidade para que os pais se encontrem, troquem suas experiências de vida,
reconheçam a existência de problemas comuns que podem ser sanados. Estas relações
humanas são um pré-requisito para a sensibilização para os Direitos Humanos.
O segundo nível é o da percepção dos Direitos Humanos. Esta fase perceptual se
seguiria à da sensibilização e abrangeria as crianças pré-adolescentes e adolescentes,
através das diferentes disciplinas.
Como no entanto, chegar à percepção dos Direitos Humanos através de um
trabalho interdisciplinar? A resposta deve ser buscada no contexto de cada escola. Os
professores poderiam organizar, por exemplo, uma quinzena de debates sobre um tema
comum (a constituição, a reforma agrária, o uso do espaço urbano, o problema da
marginalização do menor, do negro), mas sempre levando os alunos a procurar conhecer
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
90
as situações precisas em que os Direitos Humanos são violados. Nesta fase, o trabalho
de campo é fundamental.
Seria interessante iniciar pelas violações aos Direitos da criança. Os temas vão
orientar as hierarquias e as disciplinas, quanto à coordenação dos trabalhos e à forma de
serem apresentados.
O terceiro nível é o da reflexão, no qual o educador se dirige a alunos do 2°
ciclo, do magistério, da universidade ou a adultos que, além da sensibilização e da
percepção, se dispõem a debater sobre as leis relativas aos Direitos Humanos que já
foram codificadas, assim como problemas emergentes, que exigiriam novas conquistas
legais.
Educar para os Direitos Humanos é, enfim, uma tarefa para a vida inteira.
O educador deve ainda alertar os educandos para a deterioração semântica da
expressão “Direitos Humanos” que vem sendo promovida pelos meios de comunicação
de massa, com a conotação pejorativa de “proteção a bandidos”. Ao professor cabe a
tarefa de apontar a atitude desses comunicadores, de tentar denegrir a imagem dos que
se empenham na defesa dos Direitos Humanos e recuperar a conceituação original
(BOSI, Alfredo. Educar para os Direitos Humanos. Curitiba, CODIC-SEJU, 1993, pág.
30-31)
- Leitura dialogada e comentada; confronto com a realidade vivida pelos
participantes da oficina;
- Distribuir os seguintes textos:
Declaração Universal de Direitos Humanos (1948);
Declaração Universal dos Direitos dos Povos (1976);
Declaração do Rio ou Carta da Terra (1992);
EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS: UMA PROPOSTA METODOLÓG ICA
A luta por estabelecer firmemente, na consciência dos indivíduos e dos povos, o
compromisso com a promoção dos Direitos Humanos passa obreigatoriamente pela
educação em suas diferentes formas, inclusive a escola.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
91
A escola, que deveria exercer um papel de humanização a partir da socialização
e da construção de conhecimentos e dos valores necessários à conquista do exercício
pleno da cidadania, tem muitas vezes favorecido a manutenção do status quo e refletido
as desigualdades da sociedade, reforçando as diferenças sociais e culturais.
É importante construir uma escola que seja um espaço onde se formam as
crianças e os jovens para serem construtores ativos da sociedade na qual vivem e
exercem sua cidadania. Isto exige uma prática educativa participativa e dialógica, que
trabalhe a relação prática-teoria-prática, na qual o cotidiano escolar esteja permeado
pela vivencia dos Direitos Humanos.
Nesta “Década dos Direitos Humanos” (1990-2000) é particularmente urgente
afirmar, no concreto da prática educativa, que as crianças, os jovens e os educadores
podem contribuir ativamente na construção de uma sociedade em que os Direitos
Humanos sejam efetivamente uma realidade para todos, de modo especial no Brasil e
em toda a América Latina.
Uma proposta metodológica de educação nessa perspectiva tem de ter alguns
eixos articuladores do trabalho a ser desenvolvido, decorrentes dos princípios
fundamentais que explicitam nossa concepção dos Direitos Humanos.
O primeiro deles é o cotidiano. Em nossa proposta, a vida cotidiana é
considerada como referência permanente da ação educativa. No cotidiano, construímos
nossas vidas a um nível pessoal e coletivo. Desenvolver uma contínua atenção ao
cotidiano supõe desenvolver a capacidade de interrogar-se sobre o sentido dos
acontecimentos que cada dia impactam, algumas vezes de modo dramático, nosso tecido
vital e nossas consciências. Trata-se de uma exigência de qualquer proposta de
educação em Direitos Humanos.
Para transformar a realidade é necessário trabalhar o cotidiano em toda a sua
complexidade. É no tecido diário de relações, emoções, perguntas, socialização e
produção de conhecimentos e construção de sentido que criamos e recriamos
continuamente nossa existência.
Segundo Sime (1991), uma proposta educativa que tenha como eixo central a
vida cotidiana e quer recuperar o valor da vida em sentido radical tem de desenvolver de
modo criativo três aspectos básicos.
O primeiro pode ser assim definido:
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
92
“(...) deve ser uma pedagogia da indignação e não da resignação. Não queremos formar seres insensíveis e sim seres capazes de se indignar, de se escandalizar diante de toda a forma de violência, de humilhação. A atividade educativa deve ser um espaço onde expressamos e partilhamos esta indignação através de sentimentos de rebeldia pelo que está acontecendo”(pág. 272).
Em nossa sociedade, a escola muitas vezes se faz impermeável à realidade do
contexto social em que está inserida. O cotidiano escolar se transforma num mundo
auto-referido que ignora o cotidiano social. Em muitas ocasiões, não existe sequer
espaço para que as crianças e jovens possam expressar e refletir sobre a estruturação de
seu dia-a-dia, de suas famílias e comunidades. Escola e vida parecem dois mundos que
se ignoram.
Romper com esta desarticulação é uma preocupação básica da educação em
Direitos Humanos.
Por outro lado, normalmente os sentimentos que a escola permite que sejam
expressados e cultivados estão mais em sintonia com a resignação e a tranqüilidade, do
que com a indignação e a rebeldia. Indignar-se e rebelar-se não quer dizer estimular a
confusão nem provocar baderna. Trata-se de superar toda indiferença diante das
violações dos Direitos humano, que se multiplicam em nossa sociedade e estão
presentes também na escola. Supões que sejamos conscientes de que estas violações não
são fenômenos naturais e sim realidades, historicamente construídas, e que tenhamos a
valentia de nos perguntar por suas causas e por nossa conivência, ativa ou passiva.
Exige superar a tendência a insensibilidade, passividade e impotência que a
multiplicação continua das formas de violação dos Direitos Humanos termina por
favorecer a nível pessoal e social.
“A educação em Direitos Humanos deve promover essa sensibilidade, essa capacidade de reagir pelo que acontece com os anônimos deste país, pelas vítimas sem nomes, nem sobrenomes famosos. Esta pedagogia da indignação deve estimular a uma denúncia enérgica e à solidariedade. Em outras palavras, queremos transformar nossa cólera em denúncia e não em silêncio. É necessário difundir, comunicar a outros o porquê de nossa raiva e dizer quem são os responsáveis das injustiças cometidas. Isto já é o início da solidariedade e deve continuar a se ampliar com outras ações criativas e reflexões críticas” (Sime, 1991, 272-273).
O segundo aspecto assinalado por Sime é a pedagogia da admiração diante de
toda expressão de afirmação da vida. Em nosso dia-a-dia, muitas vezes não percebemos
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
93
as inúmeras formas pessoais e coletivas de buscas de sobrevivência, preservação e
promoção da vida, por menores que sejam. Revelam capacidade de resistência, enorme
criatividade e firme vontade de viver e de buscar as formas de promover condições
dignas de vida.
A educação em Direitos Humanos favorece a capacidade de perceber, dentro e
fora do âmbito escolar, estas buscas concretas e cria espaços em que estas experiências
são partilhadas, assim como construídas e postas em prática.
“Esta pedagogia da admiração é um convite a criar espaços para partilhar a alegria de viver. Nos alegramos por que vamos descobrindo que existem pequenos germens de uma nova cotidianidade, por que nos admiramos de como mudamos e de como outros mudaram ou querem mudar. A admiração estimula a gozar de tudo aquilo que desde nossa realidade imediata contribua à vitória da vida” (Sime, 1991, 274).
Para Sime, o terceiro aspecto inerente a uma proposta educativa, que tenha como
eixo central a vida cotidiana, é afirmar uma pedagogia que promova convicções firmes e
se expressa num modo de trabalhar a dimensão ética da educação.
“A convicção do valor supremo da vida é a coluna vertebral de nosso projeto de sociedade, de homem e mulher novos. Nossa opção pela vida é o que unifica nossa personalidade individual e nossa identidade coletiva. Mas também há outros valores que propomos como convicções e que dão consistência ética a esta mística pela vida: solidariedade, a justiça, a esperança, a liberdade, a criticidade” (Sime, 1991, 274).
Assim, o cotidiano se transforma no lugar privilegiado de reconhecimento da
vida, de revelação das lutas e dos conflitos diários para liberar o potencial de vida
presente em cada pessoa, nos grupos sociais, na sociedade como um todo, na natureza.
A educação em Direitos Humanos está referida radicalmente a esta vontade de
afirmação da VIDA.
O segundo eixo articulador da proposta é promover uma educação para a
cidadania.
Nas sociedades latino-americanas, tão dramaticamente marcadas por estruturas
injustas, a problemática da cidadania não pode ser reduzida à sua dimensão jurídico-
formal. O exercício da cidadania implica no reconhecimento e na denuncia das formas
pelas quais os direitos individuais e sociais são constantemente violados na sociedade.
Não pode ser reduzido à consciência e ao exercício individual dos direitos e deveres
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
94
civis e políticos. Supõe também criar condições para uma ação transformadora que
incida nos diferentes âmbitos sociais. Educar para a cidadania exige educar para a ação
político-social e esta, para ser eficaz, não pode ser reduzida ao âmbito individual.
Educar para a cidadania é educar para uma democracia que dê provas de sua
credibilidade de intervenção na questão social e cultural. E incorporar a preocupação
ética em todas dimensões da vida pessoal e social.
O antropólogo Rubem César Fernandes (1993) afirma:
“Estamos descobrindo que cidadania não implica apenas a obrigação de votar e o direito de reclamar dos políticos. Significa isto, com certeza, mas também é muito mais, o sentido de co-responsabilidade pela vida em sociedade. Cidadania é para todo dia. Não é só para a política. Ser cidadão não precisa ser uma coisa chata e ressentida. Ser cidadão pode ser bom. (...) Cidadania profunda. Os cientistas políticos enfatizam o lado formal. Agir segundo regras universais. Respeitar as leis. Aceitar as regras do jogo. É o cidadão dos modelos abstratos. Nesta campanha, ao contrário, estamos descobrindo que a cidadania implica generosidade. Preocupar-se com o outro. Diria mesmo que esta é uma outra novidade importante da campanha. Ela aproxima a linguagem política da linguagem moral: generosidade, compaixão, caridade, solidariedade, respeito. Até mesmo esta desgastada palavra “amor” reaparece, sem vergonha, na fala das pessoas” (Cidadania à brasileira, in jornal Primeira e Ultima n° 5,1/15, Agosto, 1993).
Está emergindo um modo novo de viver e exercer a cidadania no cotidiano, este
é um eixo articulador básico para a educação em Direitos Humanos. Formar sujeitos
sociais ativos, protagonistas, atores sociais capazes de viver no dia-a-dia, nos distintos
espaços sociais, incluída a escola, uma cidadania consciente, crítica e militante.
O terceiro eixo articulador de nossa proposta está intimamente ligado ao
segundo e pode ser assim formulado: construir uma prática educativa dialógica,
participativa e democrática.
Consolidar a democracia é um grande desafio no Brasil e em toda a América
Latina. Segundo Weffort (1992, 85),
“As novas democracias são aquelas cuja construção ocorre em meio às condições políticas de uma transição na qual foi impossível a completa eliminação do passado autoritário. Além disso, essa construção se dá em meio às circunstâncias criadas por uma crise social e econômica que acentua as situações de desigualdade social extrema, bem como de crescente desigualdade.”
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
95
O esforço por superar uma cultura profundamente autoritária, presente nas
relações humanas em todos os âmbitos em que se desenvolvem, assim como no tecido
social como um todo, tem de ser realizado em todas as mediações culturais e sociais.
Neste sentido, a escola tem uma função especifica ma afirmação de uma cultura
democrática. Oautoritarismo impregna com força a cultura escolar.Esta profundamente
arraigado no modo como a escola interage com a sociedade, a serviço de que interesses
e grupos sociais se coloca.
Para Paulo Freire( 1993, 100),
“A escola democratica não apenas deve estar permanentemente aberta á realidade contextual de seus alunos para melhor compreende-los, para melhor exercer sua atividade docente, mas também disposta a aprender de suas relações com o contexto concreto. Daí, a necessidade de, professando-se democrática, ser realmente humilde para poder reconhecer-se aprendendo muitas vezes com quem sequer se escolarizou.”
A partir da afirmação de uma relação democrática com o contexto, a escola que
quer promover uma educação em Direitos Humanos deve construir uma prática
pedagógica coerente com sua proposta. Neste sentido, desde a dinâmica da sala de aula
e de todas as atividades e espaços especificamente escolares, a escola deve ir
promovendo relações marcadas pela dialogicidade, pelo esforço de construção conjunta,
em que a apropriação pessoal e coletiva da palavra constituem elementos fundamentais.
Outros aspectos a serem especialmente trabalhados se relacionam com o
reconhecimento de ‘outro’, o direito á diferença e o modo de trabalhar os conflitos e
construir consensos a partir das diferenças. Criar canais de participação e organização
que permitam um exercício concreto de tomada de decisões grupais é outro elemento a
ser estimulado na prática pedagógica. Assim, a escola poderá colaborar na construção
de uma cultura democrática onde esteja presente efetivamente o exercício dos Direitos
Humanos.
O quarto eixo de nossa proposta de educação em Direitos Humanos é o
compromisso com a construção de uma sociedade que tenha por base a afirmação da
dignidade de toda pessoa humana.
Esta é a utopia radical a ser vivida como imperativo ético e político numa
sociedade em que as desigualdades e discriminações cada dia se multiplicam.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
96
“A luta contra a miséria é também e essencialmente uma questão ética e política. Ética porque a miséria não cai do céu como um fenômeno natural, como se fosse um vírus que ataca determinadas sociedades do Terceiro Mundo. Ela é produzida por uma sociedade num determinado tempo e por grupos dirigentes com nome e apelido que, até prova em contrário, têm consciência do que fazem.” (Hebert de Souza, Primeira e Última, n° 2, Abril, 1993).
.
O direito à vida, a uma vida digna e a ter razões para viver, deve ser defendido e
promovido para todas as pessoas, de qualquer raça, sexo, religião, condição social, em
qualquer etapa da vida, assim como para todos os grupos sociais e culturais. Em
qualquer parte do mundo. Esta é uma afirmação de dimensões planetárias, de raízes
antropológicas, ética, políticas e transcendentes, que aponta à construção de uma
alternativa de um futuro mais humano em escala mundial.
A nível de educação em Direitos Humanos, este eixo exige uma visão em que a
problemática local e a internacional se articulem e em que a afirmação da dignidade
humana não seja um princípio abstrato, e sim um compromisso de vida, assumido com
paixão e determinação em nosso dia-a-dia.
Junto aos eixos articuladores de nossa proposta metodológica, é importante
também explicitar as dimensões que devem ser levadas em consideração em todo
processo de educação em Direitos Humanos.
Concebemos estas dimensões de modo integrado e a serem trabalhadas
conjuntamente. São elas: ver, saber, celebrar e comprometer-se.
A educação em Direitos Humanos trabalha permanentemente o ver, a
sensibilização e a conscientização da realidade. Procura ir progressivamente ampliando
o olhar sobre a vida cotidiana e ir ajudando a descobrir os determinantes estruturais da
realidade. Articular o locar, o contexto latino-americano e a realidade mundial é outra
de suas exigências fundamentais.
Junto com o ver, e em profunda conexão com ele, está o saber socialmente
construído em torno da questão dos Direitos Humanos, assim como aquele que emerge
da prática cotidiana. Colocar em relação recíproca estes saberes deve ser uma
preocupação constante. Progressivamente se irá aprofundando e apliando os
conhecimentos e a reflexão sobre esta temática, no nível filosófico, político-social,
histórico e jurídico.
A educação em Direitos Humanos deve ser uma prática que provoca prazer,
alegria, emoção. Quando se vai descobrindo o valor da vida, sua enorme riqueza e seu
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
97
grande potencial de crescimento e criatividade, o coração se dilata. Em contextos em
que se convive cotidianamente com a morte, a celebração da vida adquire uma
densidade particularmente intensa. Acolher a vida, protgê-la de tantas ameaças,
denunciar suas violações, afirmar e multiplicar as experiências de promoção de
plenitude de vida, provoca felicidade e se torna uma paixão. A dimensão afetiva é um
componente imprescindível na educação em Direitos Humanos.
Sem compromissos concretos não há educação em Direitos Humanos.
Afirmamos que eles são uma conquista histórica e nascem da prática de grupos sociais
determinados. É a partir da ação, do envolvimento, da participação em ações, grupos,
campanhas, movimentos, iniciativas concretas, que ela se dá. O estímulo à prática é um
componente imprescindível desde as primeiras experiências de educação em Direitos
Humanos. Nesta perspectiva, um componente que deve ser cuidade de modo especial é
a construção de práticas coletivas e a participação em organizações e movimentos da
sociedade civil. Trata-se de educar a partir da prática para a construção comunitária e a
participação ativa no coletivo como aspectos fundamentais na luta pelos Direitos
Humanos.
Como já afirmamos, estas dimensões se interpenetram e têm de ser trabalhadas,
não de modo isolado, ou reduzindo-se a educação em Direitos Humanos somente a
algumas delas, e sim de maneira articulada.
Para Mosca e Aguirre (1990, 19):
“Um dos maiores obstáculos para a difusão da educação dos Direitos Humanos é o abismo existente entre o discurso, as palavras e os fatos, as atitudes. Se um educador, se um sistema escolar pretende educar para os Direitos Humanos, deve sempre começar por praticá-los. Não há educação para os Direitos Humanos, não há projeto educativo válido neste campo sem profundo compromisso social para torná-los realidade.”
Em nossa proposta metodológica de educação em Direitos Humanos, uma
estratégia formativa é privilegiada: as oficinas pedagógicas.
Para Reyes (77):
“A oficina se concebe como uma realidade integradora, complexa e reflexiva, em que a relação teoria-prática é a força motriz do processo pedagógico, orientado a uma comunicação constante com a realidade social e como um grupo de trabalho altamente participante, no qual cada um é um membro a mais do grupo e dá sua contribuição específica..” (in: Betancourt, A.M. “El taller Educativo”, 1991, 21).
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
98
É nesta perspectiva que trabalhamos. Assumimos também a afirmação de
Gonzáles (1987, 3):
Refiro-me à oficina como tempo-espaço para a vivência, a reflexão, a conceitualização; como síntese do pensar, sentir e agir. Como “o” lugar para a participação, a aprendizagem e a sistematização dos conhecimentos. (,,,) Gosto da expressão que explica a oficina como lugar de manufatura e mentefatura. Na oficina, através do jogo recíproco dos participantes com as tarefas, confluem o pensamento, o sentimento e a ação. Em síntese, a oficina pode converter-se no lugar do vínculo, da participação, da comunicação e, finalmente, da produção social de objetos, acontecimentos e conhecimentos.”
Com esta metodologia, os participantes são levados a confrontar sua prática
cotidiana com as questões que envolvem a problemática dos Direitos Humanos no
Brasil e na América Latina. Pretende-se que as oficinas colaborem a reforçar a
conscientização e a dimensão ética, assim como aprofundar no compromisso sócio-
político inerente à luta pelos Direitos Humanos, visando construir sociedades
verdadeiramente democráticas, justas, solidárias e fraternas.
Trata-se de um espaço de construção coletiva de um saber, de análise da
realidade, de um confronto e intercâmbio de experiências e de um exercício concreto
dos Direitos Humanos. A atividade, a participação, a socialização da palavra, a vivência
de situações concretas através de sociodramas, a análise de acontecimentos, a leitura e a
discussão de textos, a realização de vídeo-debates, o trabalho com distintas expressões
da cultura popular etc., são elementos presentes na dinâmica das oficinas.
A educação em Direitos Humanos supõe muitos desafios e exige repensar a
relação entre educação e sociedade, assim como o papel da escola, sua organização e
sua dinâmica pedagógica.
Mosca e Aguirre (1990, 19) chegam mesmo a perguntar-se se é possível educar
em Direitos Humanos e afirmam:
“Talvez alguns respondam rapidamente que sim. Nós – a partir da experiência histórica – achamos que não é impossível, mas tampouco fácil. Inicialmente é necessário conhecer os direitos e admitir sambem que seu conhecimento não se limita ao mero enunciados dos 30 artigos da Declaração Universal, mas que implica no descobrimento e na prática de certas atitudes complexas e exigente. E isto é assim porque os Direitos Humanos não são neutros, não toleram qualquer tipo de comportamento social, político e cultural exigem certas atitudes ao mesmo tempo que repelem outras.”
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
99
É nesta perspectiva que situamos nosso trabalho de Educação em Direitos
Humanos.
Cidadania e Politização da Educação
“A pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo.”
(Paulo Freire. Cartas à Cristina, 1994)
“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”
(Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido, 1968)
O conceito de cidadania já se transformou em diversas oportunidades ao longo
da história, significando algumas vezes a participação política do homem em sociedade,
através da escolha de seus representantes, outras vezes a afirmação dos direitos
individuais ou sociais de cada pessoa.
Contudo, foi somente após as duas grandes Guerras Mundiais que se observou
uma nova relação entre os direitos, principalmente sociais, e o poder público. Restou
evidente a necessidade da efetivação dos Direitos Humanos fundamentais para a
manutenção da paz social, os quais, por sua vez, são conquistados desde que haja o
exercício da cidadania.
Atualmente, o termo cidadania alcançou um significado mais abrangente, vindo,
segundo o educador Paulo Freire, a significar: “a condição de cidadão, quer dizer, com
o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão".
Isso significa que cada ser social, ou seja, cada pessoa inserida em uma
comunidade deve exercer os direitos outrora já conquistados, consistindo esse exercício
em exigir que as Leis se cumpram por parte de todos. Dessa maneira, estaremos
conquistando o direito de sermos vistos como membro da sociedade.
Cabe atentar para o fato de que o homem não pode participar ativamente na
história, na sociedade, na transformação da realidade se não for ajudado a tomar
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
100
consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformar. Pessoa alguma
pode empreender luta contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas
formas e contornos não discirna.. A realidade só pode ser modificada quando o homem
descobre que ela é modificável e que ele o pode fazer.
Conforme leciona o mestre Paulo Freire: “A cidadania é uma invenção coletiva.
Cidadania é uma forma de visão do mundo (...) por isso, as chamadas minorias, por
exemplo, precisam reconhecer que, no fundo, elas são a maioria.”
O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre
si e não só as diferenças e assim criar a unidade na diversidade. Para isso, os grupos de
cidadãos (pessoas que moram no mesmo bairro, estudam na mesma escola, utilizam os
mesmos meios de transporte, se interessam pelo fomento do mesmo tipo de atividade,
seja ela cultural, comercial ou educacional) devem se unir e se organizar, constituindo-
se em forma de associações ou ONG’s, o que possibilitará o reconhecimento entre si
enquanto comunidade ativa que defende os interesses da coletividade plural.
Indispensáveis, nesse percurso de conquista da cidadania, são a liberdade e a
autonomia do ser. O processo de conhecimento acontece quando o indivíduo se
reconhece humano (envolvendo aqui a conquista, também, da auto-estima) e atua na
realidade, modificando-a. Nesse diapasão, o homem entende que é sujeito, e é sujeito
ativo das suas relações com o mundo. Por fim, entende que o Estado é formado também
por ele, que é agente político.
Portanto, é aprendendo e se educando com liberdade e autonomia que se constrói
a cidadania.
Nessa etapa do nosso curso, compreendemos e reconhecemos nossa capacidade
de conquista. A partir de agora, devemos aprender a colocá-la em prática, conhecendo
os instrumentos e mecanismos de atuação de que dispomos através do Estado brasileiro.
Como visto, a cidadania é um termo associado à vida em sociedade. O conceito
de cidadania percorre a história vinculando-se cada vez mais às mudanças nas estruturas
sociais. Hoje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, o
cidadão deve atuar em benefício da sociedade, bem como esta última deve garantir-lhe
os direitos básicos à vida, moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre
outros. Como conseqüência, cidadania passa a significar o relacionamento entre uma
sociedade política e seus membros.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
101
O ambiente de vida social do Estado democrático, cujos pilares de sustentação
encontram-se na declaração, na garantia e na efetividade dos direitos fundamentais da
pessoa humana, é tornado real através da observação de vários postulados que lhe são
essenciais. São pressupostos do Estado democrático: 1) a dignidade do homem e o
reconhecimento de dar a todos tratamento igualitário; 2) o fomento ao desenvolvimento
dos talentos e possibilidades latentes dos homens; 3) a segurança; 4) credibilidade nos
valores institucionalizados pelas massas, como fundamentos para o progresso do bem
comum; 5) a aceitação da legitimidade das decisões tomadas por meio de processos
racionais e participativos de deliberação, com o consenso da maioria; 6) o respeito aos
grupos minoritários; 7) e, a compreensão de que todo o interesse geral é a síntese dos
diversos interesses e idéias dos indivíduos e dos grupos, que integram a sociedade
pluralista.
A participação cidadã também está na consulta do cidadão para as tomadas de
decisão que dizem respeito à direção da sociedade em que ele vive e que, dentre os
direitos de participação política, tais como a igualdade de sufrágio, o direito de voto e
de elegibilidade, o direito de petição, e o direito de iniciativa popular de leis, que cabe
aos cidadãos.
O exercício de todos os direitos inerentes ao Estado democrático e do direito de
participação, é acompanhado do respeito aos deveres de contribuir para o progresso
social e de acatar e respeitar o resultado final obtido em cada consulta coletiva.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
102
Situações conflitivas: alguns casos 23
Leia com atenção cada uma das 5 (cinco) seguintes situações de conflito. No
final do módulo, como proposta de atividade, a partir dos conceitos discutidos neste
módulo, vocês deverão responder se essas ações são violentas ou não-violentas, se é
possível mediar ou não.
I -Índia Tuíra - Em 1989, a Eletronorte convocou uma audiência pública para
discutir a construção da usina Kararaô que, segundo os índios da região e o
movimento ambientalista, causaria um grande impacto ambiental. Essa
construção recebia na época financiamento do Banco Mundial. Durante a
audiência, enquanto os guerreiros caiapós gritavam “Kararaô vai afogar nossos
filhos!”, a índia Tuíra tomou a iniciativa, avançou para cima do então presidente
da Eletronorte, José Muniz Lopes, e o advertiu encostando a lâmina do facão em
seu rosto. Essa ação contribuiu para interromper o projeto da usina durante dez
anos e também fez com que o Banco Mundial suspendesse o financiamento
dessa construção.
Fontes: http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp -
http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=10496
II. O caso da Ana - Ana, uma mulher negra, procura um pronto-socorro por
causa de uma queimadura leve, que aconteceu durante o trabalho. A sala de
espera estava cheia e bastante movimentada. Após algum tempo de espera, o
médico apareceu na porta e chamou: “Milton Araújo!”. Ninguém se levantou; o
médico chamou de novo “MILTON ARAÚJO!”, o que deixou as pessoas
curiosas. Ana, envergonhada, aproximou-se e disse ao médico em voz baixa:
“Sou eu! Eu havia pedido na recepção que me chamasse pelo nome social, Ana”.
O médico olhou-a indignado e disse: “eu sei, te chamei pelo nome de registro
23 O material foi retirado do Curso de Direitos Humanos e Mediação de Conflitos - Oferta Contínua, realizado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Instituto de Tecnologia Social. Disponível em http://cursos.educacaoadistancia.org.br/course/view.php?id=84, acesso em 15/08/2009. Todos que desejem realizar o curso deverão acessar a página http://cursos.educacaoadistancia.org.br/ e inscrever-se, é gratuito e realizado on line.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
103
propositadamente”. As pessoas perceberam que Ana era uma transexual, ficaram
atônitas, começaram a cochichar e dar risadinhas.
III. Numa festa junina - Laíla, uma criança negra, que sempre teve liderança na
escola, foi escolhida pelos colegas para ser a “rainha do milho” da festa. A
professora elogia Laíla, mas carinhosamente diz para a turma: “Minhas crianças,
vocês já viram algum milho pretinho?” As crianças responderam em coro:
“Nããããoooooo!”. Daí a professora diz “Pois é, eles são todos clarinhos. Por isso,
precisamos escolher uma criança bem bonitinha, loirinha, assim como um
milho”. As crianças ficam confusas, e Laíla sugere: “Se é assim, não deveria ter
rainha do milho, mas sim do amendoim! O amendoim é tão bonitinho como nós;
e a sua casca é da nossa cor. Assim pró, o amendoim também seguiria a cultura,
pois é uma colheita de São João”. A professora ouviu e respondeu: “Certo, mas
nós seguimos a tradição de que, durante o São João, a escola sempre tem uma
rainha do milho. Vou ver se acho alguma criança branquinha...”.
IV. Bancários em greve - um grupo de bancários preocupados em impedir o
acesso de seus colegas ao banco, coloca um tapete de flores na porta do banco,
bem na porta do banco, com o seguinte cartaz: “Não pise nas flores”. V. Gandhi
- Para acelerar o processo de independência da Índia, colonizada pela Inglaterra
– e diante da proibição britânica de que os indianos sequer fabricassem seus
tecidos – Gandhi organizou uma grande queima de tecidos britânicos.
Os exemplos de situações conflitivas números IV e V foram extraídos da obra de
SEIDEL, Daniel (Org.). Mediação de conflitos. Brasília: Vida e Juventude,
2007.
Violência, não-violência e agressividade. Uma área da psicologia diz que a
agressividade faz parte da energia humana e que, dependendo da circunstância, pode se
transformar em violência. A agressividade é como água, pode irrigar ou inundar,
depende de como focamos essa energia; podemos usá-la para coisas boas, colhendo
bons frutos, ou para coisas ruins, gerando a violência. A energia que faz um militante ir
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
104
à rua para uma passeata é, muitas vezes, a mesma que faz outra pessoa quebrar um
ônibus numa greve ou queimar pneus na rua, para impedir a passagem de carros. Como
dissemos, os conflitos fazem parte do ser humano, mas podem ser violentos ou não-
violentos, dependendo da atitude das pessoas. Para resolver problemas, devemos ser
agressivos, mas sem usar da agressão. Ser agressivo significa apresentar nosso ponto de
vista, nossas opiniões e lutar pelo que acreditamos e pelo que defendemos, respeitando
os princípios dos direitos humanos. “A violência não é uma fatalidade inexorável, mas
colocada pelos humanos, [portanto] pode ser retirada e trabalhada pelos mesmos
humanos que a constituíram.” (Se queres a paz, prepara-te para a paz, Marcelo
Guimarães) Nós somos muitas vezes educados para a violência, e precisamos
reconhecer isso se queremos mudar nossa realidade. Não basta reagir à violência ou à
cultura de violência, mas é preciso pensar como construir uma sociedade
verdadeiramente pacifista e uma cultura de paz. A pró-atividade – uma atividade que se
projeta para frente – incluiria, é claro, uma dimensão sanativa, de cuidar e atender às
vítimas da violência, como também uma dimensão preventiva, privilegiando,
especialmente, o caminho educativo. Para Gandhi, “A humanidade somente acabará
com a violência através da não-violência”. Uma das propostas quase sempre apontada
como solução da violência nas cidades é o aumento das polícias. Essa é uma
compreensão que a Roma Antiga tinha da paz – isto é, “Se queres a paz, prepara-te para
a guerra” (Si vis pacem, para bellum). Entretanto, sabemos que a humanidade não
avançará na prática dos direitos humanos apenas por decreto, ou por lei, muito menos
apenas fortalecendo a polícia. O fim da impunidade, por exemplo, é um passo mais
importante para diminuir a violência do que colocar mais polícia na rua.
Violência e conflito Geralmente, violência e conflito são entendidos como a mesma
coisa, mas existem diferenças importantes entre essas duas palavras. Como vimos antes,
a violência é o modo como respondemos a uma determinada situação, prejudicando e
anulando a outra pessoa, ou quando somos anulados e prejudicados por outra pessoa. A
violência não faz parte da natureza humana, mas é aprendida dentro de uma cultura
violenta. Quando pessoas, grupos ou nações apelam para a violência para acabar com
seus conflitos, elas não estão “resolvendo” nada. Muitas vezes, os conflitos apenas
pioram. Quando um dos lados é mais forte que o outro, uma das formas que esse lado se
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
105
utiliza é de não reconhecer a existência de conflitos; negar a existência do conflito
também é uma forma de violência. Quando o lado mais fraco se submete à imposição do
lado mais forte, ele também alimenta a violência por não reagir à imposição autoritária
do outro – isso é o que chamamos antes de passividade, que é diferente do pacifismo.
Negar os conflitos não contribui para uma cultura de paz. Construir uma cultura de paz
exige que reconheçamos a existência de conflitos. Esse é o primeiro passo para resolver
conflitos através do diálogo e de ações não-violentas. Quando você reconhece que o
conflito existe, é o primeiro passo para ouvir o outro lado e começar um diálogo com
respeito e igualdade.
Importante: A violência não faz parte da natureza humana. A violência surge de uma
cultura violenta, que só sabe anular as outras pessoas. Portanto, a violência não é
condição de humanidade.
A não-violência não é passividade A cultura da paz tem sido uma cultura escondida,
guardada viva nas rachaduras de uma sociedade violenta. (BOULDING, 2000, p. 28)
Ser não-violento não é sinônimo do ser passivo, mas sim pacífico. Ser passivo é fechar
os olhos diante de uma situação de injustiça, é aceitar a injustiça ao invés de assumir a
responsabilidade de lutar contra ela. A passividade é causada, em geral, por medo das
conseqüências do enfrentamento, ou por fraqueza de lutar pelas mudanças. A não-
violência nos direitos humanos é feita a partir da participação em um movimento
organizado, articulado e estruturado. Isso leva as pessoas a se incluírem em uma luta
mais ampla, da humanidade que busca a paz. A não-violência também se opõe à contra-
violência, que é uma forma de reagir à violência com outros meios violentos. Para usar
a não-violência como estratégia de enfretamento dos conflitos, podemos usar três
recursos: não-cooperação com as injustiças; intervenção não-violenta e divulgação dos
direitos humanos. No entanto, é preciso cuidados, pois uma determinada concepção da
paz pode esconder o que justifica a violação dos direitos humanos, da pobreza, da
miséria. A violência não se exerce apenas por meio da agressão física ou armamentos,
mas também através de outras formas simbólicas, mas não menos perversas. “Assim
como o broto é na brotação e a semente é na semeadura, a paz é na sua efetuação como
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
106
realidade de Justiça, democracia e direitos humanos”. (Marcelo Rezende Guimarães,
Paz: questão de ressignificação)
Violações dos direitos humanos. O princípio fundamental dos direitos humanos é o
direito à vida. Portanto, agir contra esse direito significa violar os princípios dos direitos
humanos. Para podermos avaliar quando acontece uma violação, precisamos conhecer e
entender os direitos humanos. Quando você se incomoda com algo que acontece em sua
volta, vale a pena refletir para dizer se é ou não uma violação dos direitos humanos.
Dissemos no módulo I que os direitos humanos estão em constante construção. Os
grupos de direitos humanos e os movimentos sociais colaboram nessa construção,
ajudando a sociedade a identificar as violações dos direitos humanos. Por isso, é
importante que todos os militantes conheçam um pouco sobre as lutas de 10
outros movimentos sociais, seus problemas e conquistas, porque assim saberão que os
direitos humanos estão interligados – assim como as violações. Por mais que algumas
violações dos direitos humanos não nos atinjam diretamente, o princípio de uma cultura
de paz passa pelo entendimento de que o sofrimento de alguém também é problema
“meu”. Violar os direitos de qualquer pessoa significa violar os direitos de todos. Por
exemplo, posso não ser negro ou não ser mulher, mas o racismo e o machismo também
são violências contra mim, mesmo não sendo negro ou não sendo mulher. É o que
chamamos consciência humanitária. A consciência humanitária é quando eu me
solidarizo com o problema e com a luta de alguém ou de outro movimento. Para que eu
me solidarize, é necessário que eu conheça a realidade dos outros, seus problemas e suas
lutas. Para isso, preciso ouvi-los e entender que qualquer violação que ele sofra é um
problema para toda a humanidade.
Pausa para reflexão: breve testemunho "Primeiro vieram buscar os judeus e eu não
me incomodei porque não era judeu. Depois levaram os comunistas e eu também não
me importei, pois não era comunista. Levaram os liberais e também encolhi os ombros.
Nunca fui liberal. Em seguida os católicos, mas eu era protestante. Quando me vieram
buscar já não havia ninguém para me defender...”. Martin Niemöller (1892-1984),
sobre sua vida na Alemanha Nazista.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
107
Conflitos entre os direitos humanos. Sabemos que não é possível fazer mediação entre
o violador dos direitos humanos e as pessoas que tiveram seus direitos violados.
Conforme vimos, os direitos humanos são direitos das vítimas, sejam elas vítimas do
poder econômico ou de outros poderes, muitos deles quase invisíveis. Ao mesmo
tempo, os direitos humanos não são neutros; eles ficam a favor das vítimas e dos grupos
e coletivos que são a parte mais fraca ou vulnerável, e que não pode enfrentar o poder
dos grupos privilegiados em pé de igualdade. Muita gente diz erroneamente que
“demarcar terras para os povos indígenas” ou mesmo reservar “cotas de empregos para
pessoas com deficiência” são formas de assistencialismo que impedem o mercado ser
mais eficiente etc. Ora, não podemos nos esquecer dos valores fundamentais que devem
guiar a nossa conduta. Devemos ter a clareza de que as pessoas devem vir em
primeiro lugar . Nesse caso, o diálogo ainda continua sendo a melhor opção para que
possamos enfrentar o problema da exclusão social e as violações dos direitos humanos.
Direitos humanos na ação do Estado. Quando falamos de Estado (com “E”
maiúsculo), estamos falando do governo em todos os níveis (municipal, estadual e
federal), da Justiça (juízes, promotores e procuradores) e do poder legislativo
(vereadores, deputados e senadores). Todos eles, juntos, formam o “Estado”, que tem
como função principal trabalhar pelo bem do povo e do Brasil. É por isso que os direitos
humanos fazem parte da principal lei brasileira, a Constituição – a lei que todas as
outras leis têm de respeitar e cumprir. A tarefa principal do Estado é a elaboração de
políticas públicas em benefício da promoção dos direitos humanos. Mas acontece que,
pela nossa história de exclusão e autoritarismo, muitas vezes, o Estado (e os governos
que fazem parte dele) também viola os direitos humanos: nos despejos violentos nas
cidades, nas ações de reintegração de posse que terminam com mortos e feridos, nas
polícias que torturam e discriminam partes da população... A mais nobre tarefa da
política consiste em que todas as ações do Estado sejam entendidas na perspectiva
colocada pelos direitos humanos. Não podemos esquecer dos serviços públicos, como
saúde e educação, que são direitos humanos, pois também estamos falando da política
macroeconômica ou da política industrial, que podem incluir grandes obras, como
estradas e usinas de energia hidrelétricas. Este tipo de obra é vista, em geral, como sinal
de progresso e desenvolvimento, mas elas também podem ter impacto muito ruim sobre
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
108
o meio-ambiente, para populações indígenas e quilombolas. Em uma democracia, o
Estado precisa levar todas essas questões em consideração antes de iniciar suas obras e
projetos, e precisa, antes de tudo, contar com participação popular nas suas ações. O
presidente americano Abraham Lincoln disse uma vez que “a democracia é o governo
do povo, pelo povo e para o povo”.
Modos de enfrentamento da violência Do que falamos até agora, podemos entender
que a violência é qualquer violação aos direitos humanos. Para construirmos uma
cultura de paz, é necessário que busquemos diversas formas de enfrentar a violência,
não por meio de violência, mas sim por ações não-violentas. Os exemplos mais
conhecidos são as manifestações e as campanhas. As manifestações sempre estão
ligadas a uma opinião forte, contra ou a favor de algo. Podem ser feitas por meio de
panfletos ou palestras, enquanto ações verbais – ainda que as mais conhecidas sejam as
manifestações de rua. Há também as caminhadas e vigílias, que são muito usadas por
movimentos sociais. Por exemplo, a vigília contra o racismo realizada em São Paulo, as
vigílias feitas em combate a AIDS, ou ainda as Paradas do Orgulho LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros), que são manifestações contra o
preconceito e as violações de direitos humanos que essas populações sofrem. Outra
forma de ação contra a violência são as campanhas, utilizadas inclusive pelo Estado,
constantemente. São ações que geralmente buscam aliados, promovem idéias e buscam
combater preconceitos. Por exemplo, a Campanha pela Reforma Agrária, lançada em
1991 por Betinho, a Campanha da Fraternidade, que a Igreja Católica organiza no Brasil
todos os anos, e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que atuou pela criação
do Fundef (Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental) e do Fundeb
(Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Básico). O abaixo-assinado também é uma
forma de campanha.
Atividades
1) Pensando no que foi apresentado acima e nas discussões feitas em sala de aula, para
realizar essa atividade, solicitamos que você escolha até duas situações conflitivas
expostas no início. Em relação às situações por você escolhidas, e levando em
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
109
consideração o que foi discutido em sala de aula, responda as questões formuladas
abaixo:
I. Sobre a Índia Tuíra. Reflita: A ação da Índia Tuíra é violenta ou não-violenta? Por
quê? Esse conflito pode ser mediado ou não? Justifique.
II. Sobre a Ana, uma mulher negra. Reflita: A ação do médico é violenta ou não-
violenta? Por quê? Esse conflito pode ser mediado ou não? Justifique.
III. Sobre a situação Numa festa junina - Laíla, uma criança negra. Reflita: A ação
da professora é violenta ou não-violenta? Por quê? Essa ação pode ser mediada ou não?
Justifique.
IV. Sobre a situação Um grupo de bancários em greve. Reflita: A ação desses
bancários é violenta ou não-violenta? Por quê? Esse conflito pode ser mediado ou não?
Justifique.
V. Sobre o gesto de Gandhi. Reflita: A ação do líder indiano é violenta ou não-
violenta? Por quê? Essa ação pode ser mediada ou não? Justifique.
2) A partir das situações da questão acima e de outras que você já tenha presenciado,
comente:
I. Você consegue perceber como os direitos humanos contribuem para a resolução de
situação (ou situações) de conflito?
II. Direitos humanos e cidadania estão interligados? Em que medida a solução
encontrada para determinada situação (ou situações) de conflito pode contribuir para a
formação para a cidadania e seu exercício?
3) Como você identifica o exercício dos direitos humanos nas prática educacionais (formal ou não formal)? Descreva em um pequeno texto a partir de sua experiência.
4) Faça um pequeno texto apresentando ou criando experiências no campo da educação (formal ou não formal) que tem como objetivo o combate a violência e a promoção dos direitos humanos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
110
Eixo IV
Módulo I
EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA: QUAL O PAPEL DA ESCOLA?
Aida Maria Monteiro Silva Nos últimos anos muito se tem falado de violência, até porque esta passou a fazer parte
do nosso cotidiano, o que explica o interesse em discuti-la. Esta motivação é
comprovada em pesquisa realizada recentemente pelos meios de comunicação, sobre os
problemas que mais inquietam a população. A violência, entre outros, foi destacada por
pessoas de diferentes camadas sociais, como um dos principais problemas,
principalmente aquela que atinge a vida e a integridade física dos indivíduos.
Para que possamos entender melhor os determinantes da violência e o papel da
educação, algumas questões nos parecem pertinentes para ajudar a nossa reflexão. De
que forma a violência é engendrada na nossa sociedade? Quais os valores que têm
norteado as diferentes práticas sociais e entre estas, a educacional? Qual o papel da
educação e da escola diante de uma sociedade com características violentas? Estas são
perguntas fundamentais.
Hoje, a violência está estampada nos grandes centros do nosso país e se apresenta de
diferentes formas. Por isso, para Vera Telles (1996) é mais fácil se falar de violências
no plural, ou seja, a violência urbana, a policial, a familiar e a escolar. Embora
considerando que todas essas manifestações de violência estão imbricadas, vamos dar
um maior destaque, neste texto, à violência escolar, sobretudo a que se manifesta de
forma subjetiva nas relações sociais no interior da escola.
Este problema tomou tamanhas proporções que está sendo visto como de âmbito
mundial e também como uma questão de utilidade pública, pois sua manifestação se
propaga em proporções semelhantes às das doenças infecciosas, uma vez que afeta as
grandes metrópoles (Gilberto Dimenstein 1996). Portanto, esta problemática não é uma
caraterística apenas da sociedade brasileira. Outras sociedades da América Latina e da
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
111
América Central também vivem experiências de taxas elevadas de violações dos direitos
humanos, inclusive a violação do direito à vida é muito freqüente, como é o caso do
Peru, Colômbia, Bolívia, El Salvador e Guatemala (Sérgio Adorno, 1994).
Em relação ao Brasil, não podemos desconsiderar a história da formação do nosso povo,
com a escravidão gerando comportamentos de servidão, de mando e de submissão, em
que o indivíduo é desrespeitado na sua condição fundamental de pessoa humana e
tratado como "objeto" de manipulação dos seus "proprietários".
Sérgio Adorno (1994) chama a atenção para o fato de que, durante o período
monárquico, a sociedade resolvia os seus conflitos relacionados à propriedade, ao
monopólio do poder, e à raça, utilizando, de um modo geral, o emprego da violência. E
este era considerado um comportamento normal, legítimo e por ser rotineiro passava a
ser institucionalizado. É como se fosse um processo natural, justificando até uma certa
aquiescência da sociedade.
Ao longo da história do nosso país, o que se tem observado é que mesmo com a
implantação do regime republicano, cujo fundamento básico é o bem comum e o bem
público a todos os cidadãos, esse quadro de violência pouco se modificou, até porque no
campo político temos convivido com várias alternâncias de regimes autoritários,
ditatoriais, que implodiram o direito de liberdade dos indivíduos. Estes foram períodos
que trouxeram elevados custos à convivência democrática do nosso povo, com
violações do direito à vida e inúmeras mutilações físicas.
Esta realidade do nosso país serve para desmascarar a imagem tradicional de que o
brasileiro "é um povo sentimental, ordeiro e pacífico", conforme coloca Maria Victória
Benevides (1996).
O fato de a sociedade brasileira ser organizada e determinada por um modelo
econômico capitalista extremamente excludente, caracterizado por uma grande
concentração de renda, aliás, uma das maiores do mundo, este se constitui em um dos
principais fatores da desigualdade e da violência. 50% da renda do país fica nas mãos de
10% da população, enquanto que os 20% da população mais pobres detém apenas 2,1%
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
112
dessa renda (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNUD,1994). As
relações são profundamente desiguais. Essas grandes diferenças geram privilégios para
alguns e, conseqüentemente, a ausência de direitos para muitos.
É a sociedade do mundo capitalista que valoriza, essencialmente, o consumo, as coisas
materiais, a aparência em detrimento da essência da pessoa humana. É um total
desvirtuamento do significado de ser gente, ser sujeito, ser pessoa. Valores como
solidariedade, humildade, companheirismo, respeito, tolerância são pouco estimulados
nas práticas de convivência social, quer seja na família, na escola, no trabalho ou em
locais de lazer. A inexistência dessas práticas dão lugar ao individualismo, à lei do mais
forte, à necessidade de se levar vantagem em tudo, e daí a brutalidade e a intolerância.
A violência perpassa as diferentes relações sociais e aparece de forma explícita nos
meios de comunicação de massa, principalmente na mídia televisiva. São vários os
programas que enfatizam e reproduzem, com veemência, atos de violência e até de
barbárie que acontecem freqüentemente nas sociedades em geral. Além disso, a
televisão comumente apresenta programas com "brincadeiras" desrespeitosas em que os
indivíduos são usados como objeto sarcástico. Até os programas infantis não fogem a
essa conotação violenta.
Esta questão da influência da mídia eletrônica é destacada por alunos de um conjunto de
escolas localizadas no Município de São Paulo, onde realizamos uma pesquisa sobre a
percepção que alunos, professores e direção da escola têm em relação à problemática da
violência urbana e escolar (Aida Silva-1995). Os alunos, de forma unânime, afirmaram
que há uma tendência das pessoas em "copiarem" os programas da televisão, a ponto de
determinadas atitudes virarem moda entre as crianças e os jovens. E eles vão mais além,
defendem a necessidade de um disciplinamento para o horário e a freqüência de
programas que têm conotação violenta.O alerta que esses jovens nos trazem, merece ser
apreciado com mais atenção, até porque a televisão é um dos meios de comunicação que
está presente em praticamente todos os lares da nossa população e boa parte do tempo
das crianças é ocupado com a televisão.
É neste contexto que entendemos a violência, enquanto ausência e desrespeito aos
direitos do outro. É como dizem os sujeitos dessa pesquisa: "violentar é romper a
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
113
liberdade e os direitos do cidadão. É alguém que passa dos limites e invade a
privacidade do outro. É a falta de solidariedade e o desrespeito aos direitos humanos".
Na verdade a escola também reflete o modelo violento de convivência social. E o mais
grave é que muitos educadores não se apercebem como violadores dos direitos dos
alunos. É o que podemos chamar de violência simbólica, que segundo Dulce Whitaker
(1994), "ajuda não só a obscurecer a violência que está no dia-a-dia, no cotidiano, como
também a esconder suas verdadeiras causas". É a violência sutil que, em geral, não
aparece de forma tão explícita e serve para escamotear e dissimular os conflitos.
E ainda essa mesma autora chama a atenção porque muitas vezes "os professores não se
dão conta de que o que torna as crianças apáticas, não são propriamente os conteúdos
ministrados, mas sim o ponto de partida da ação pedagógica que se apresenta carregado
de autoritarismo e, portanto, de violência simbólica".
Na pesquisa a que nos referimos anteriormente sobre a percepção dos alunos e
educadores em relação à violência urbana e escolar, esta visão da escola enquanto
espaço de violência é destacada pelos alunos, e estes exemplificam como esta se
manifesta: "quando o professor fala: este aluno está ferrado comigo" (isto porque o
aluno era indisciplinado), ou então, "este aluno não quer nada com a escola e por mim
está reprovado". E o mais interessante é que os professores não vêm estas formas de
relacionamento com os alunos como desrespeitosas ou violentas. Para estes, a violência
na escola aparece, basicamente, na relação entre os alunos e destes para com o
professor. Era como se o professor pudesse ficar isento de tais práticas, mas, na verdade,
todos nós somos produtos do conjunto das relações sociais de uma determinada
sociedade da qual fazemos parte. Daí a importância de termos conhecimento de como
essas relações são produzidas para podermos pensar alternativas de superação.
E qual é o papel da educação e da escola nesse contexto? Se entendemos que a educação
é um processo de construção coletiva, contínua e permanente de formação do indivíduo,
que se dá na relação entre os indivíduos e entre estes e a natureza, a escola é, portanto, o
local privilegiado dessa formação, porque trabalha com o conhecimento, com valores,
atitudes e a formação de hábitos.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
114
Dependendo da concepção e da direção que a escola venha assumir, esta poderá ser
local de violação de direitos ou de respeito e de busca pela materialização dos direitos
de todos os cidadãos, ou seja, de construção da cidadania.
Entendemos que um projeto de escola que busque a formação da cidadania, precisa ter
como objetivos: tratar todos os indivíduos com dignidade, com respeito à divergência,
valorizando o que cada um tem de bom; fazer com que a escola se torne mais atualizada
para que os alunos gostem dela; trabalhar a problemática da violência e dos direitos
humanos, a partir do processo de conscientização permanente, relacionanado esses
conteúdos ao currículo escolar; incentivar comportamentos de trocas, de solidariedade e
de diálogos, como bem coloca Renata Aguirre - aluna da 8ª série da Escola Municipal
de São Paulo -, "a violência é a força bruta contra alguém.
Quem prática a violência é burro, covarde, porque somos seres humanos e a única coisa
que nos diferencia dos animais é a capacidade de pensar e de falar. Se nós temos a
capacidade de usar palavras, para que usar a força bruta? É isso que as pessoas precisam
entender".
E para Vera Candau e outras (1995), é importante que "a escola seja um espaço onde se
formam as crianças e os jovens para serem construtores ativos da sociedade na qual
vivem e exercem sua cidadania" e essas autoras, referendando Sime (1991), chamam a
atenção no sentido de que esta proposta educativa deve ter como eixo central a vida
cotidiana, vivenciando "uma pedagogia da indignação e não da resignação. Não
queremos formar seres insensíveis e sim seres capazes de se indignar, de se escandalizar
diante de toda forma de violência, de humilhação. A atividade educativa deve ser
espaço onde expressamos e partilhamos esta indignação através de sentimentos de
rebeldia pelo que está acontecendo". Assim, acreditamos, que esta deva ser a nossa
utopia.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
115
Bibliografia
1-ADORNO, Sérgio-Violência: um retrato em branco e preto-In Revista Idéias-nº 21-
FDE-SP-1994.
2-BENEVIDES, Maria Victória - A Violência é Coisa Nossa - In A Violência no
Esporte - vários autores-Secretaria. da Justiça e da Defesa da Cidadania-SP-1996
3-CANDAU, Vera e outras-Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos-Vozes-RJ-
1995.
4-DIMENSTEIN, Gilberto - A Epidemia da Violência - Folha de São Paulo- 22/09/96.
5-SILVA, Aida Monteiro - A Violência na Escola: a percepção dos alunos e
professores-1995-mimeo.
6-TELLES, Vera-Violência e Cidadania-InViolência no Esporte-vários autores -
Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania-SP-1996
7-WHITAKER, Dulce-Violência na Escola-In Revista Idéias-nº 21-FDE-SP-1994
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
116
Módulo II
Educação Moral e Política de Crianças e Direitos Humanos
Maria Fernanda Salcedo Repolês
O homem moderno (...) não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara
para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado de coisas,
que a sua recusa a assumir, em relação às crianças a responsabilidade por tudo
isso. É como se os pais dissessem todos os dias: - Neste mundo, mesmo nós
não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber,
quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês
devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm
direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por
vocês. (ARENDT, 1992: 241-242)
A modernidade ocidental está permeada por duas tradições do pensamento de
filosofia política. Por um lado, a tradição liberal destaca a ruptura entre pré-modernidade e
modernidade e busca o ideal de fundação do mundo a partir de um ponto zero, tendo como
substrato ideológico os ideais revolucionários de igualdade, liberdade e fraternidade. Por
outro, a tradição republicana quer reencontrar e restabelecer o elo entre passado e futuro,
entre tradição e construção do novo, de maneira que a fundamentação do futuro a partir da
tradição signifique, ao mesmo tempo, o resgate crítico do passado que dá sentido ao
presente e ao futuro fundado.
O presente artigo parte desse pressuposto teórico para discutir o papel da
educação infantil na formação do ethos – ou seja, de um conjunto de valores
compartilhados – a partir do qual seja possível gerar uma cultura de direitos humanos que
se reproduza nas práticas sociais e políticas. Dessa perspectiva, a educação teria dois
papéis a cumprir: o primeiro, o de preservação e de rememoração do pacto fundador da
sociedade; o segundo, o de desenvolvimento de um projeto político de construção da
societas civilis, de uma sociedade, desde sempre política, de cidadãos que se auto-
determinam por mecanismos de formação de opinião e de vontade que os tornam capazes
não apenas de reproduzirem o ethos, como também de o questionarem e transformarem.
(HABERMAS, 1997)
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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No cumprimento desses papéis, a escola é um espaço intermediário entre a
esfera pública e a esfera privada, entre o lugar da política e o da família, e encarregada de
fazer a transição entre esta e aquela de maneira a inserir as crianças, paulatinamente, no
mundo. A escola é neste contexto um simulacro do mundo, lugar onde a criança pode ir
testando aos poucos a sua capacidade de adaptação.
O educador é, por sua vez, um representante do mundo coletivo, cuja função é
de guardião e de transmissor da tradição, de forma que uma vez que a criança compreenda
e conheça a tradição, enquanto cidadã adulta possa transformá-la e criticá-la. A base da
autoridade do professor está nessa tarefa, na medida em que ao cumpri-la ele assume frente
à criança a responsabilidade pelo mundo coletivo, ele diz: nós - a comunidade na qual você
encontrou ao nascer - fizemos este mundo, com base em certos valores. Construa a partir
disso quando for adulto e tiver capacidade de participar da vida política da comunidade.
Adicionalmente, o professor tem o desafio de utilizar a atividade educativa
como o exercício da atividade política (ROUSSEAU, 1995). Mas de maneira cautelosa,
pois lida com seres em formação que não tem ainda uma personalidade estruturada para
fazer frente aos conflitos da esfera pública. Supõe-se, inclusive, que as crianças estejam, de
certa maneira, ocultas a esses conflitos na proteção de seu lar. Então, a atitude do
educador diz respeito à manutenção de um compromisso político e moral do cidadão nas
duas esferas, sendo ele responsável pela construção e manutenção da comunidade política,
que, por sua vez, depende da proteção à esfera privada, dos direitos subjetivos e da
personalidade de seus alunos.
Assim, o papel da educação insere-se no equilíbrio entre as duas tradições de
filosofia política. A tradição liberal nos mostra a importância da educação para a
emancipação política do ser humano. A construção dessa emancipação política pressupõe
que a liberdade e os direitos privados são pontos de partida para o desenvolvimento de
direitos também na esfera pública. Ao mesmo tempo os direitos privados são garantidos
por meio da esfera pública mediante o seu reconhecimento como direitos fundamentais.
Portanto há uma interdependência e um círculo virtuoso entre direitos públicos e direitos
privados. Essa interdependência se revela até mesmo na educação no lar, pois mesmo
nela, exige-se que os pais reconheçam nos filhos, desde o nascimento, o status de seres
humanos livres e racionais. Graças a essa compreensão, o Iluminismo modificou a visão
sobre pátrio poder. Este foi estabelecido como um poder temporário e relativo,
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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compartilhado igualmente pelo pai e pela mãe e cuja função precípua é a de auxiliar a
criança a chegar à idade em que se tornará um adulto livre e igual aos pais, e, portanto,
plenamente capaz de exercer a cidadania e conhecer as leis pelas quais ele guiará a sua
conduta. (LOCKE, 1993: capítulo VI). A tradição liberal concretizou esse projeto com a
universalização do acesso à escola. Porém a preparação da escola para a cidadania
restringe-se, nessa tradição, à defesa dos direitos privados, o que leva a uma concepção
individualista e desgarrada das gerações passadas.
A respeito dessa crítica à tradição liberal, Hannah Arendt reflete que a
modernidade rompe o elo condutor que nos guiava e nos ligava com cada geração anterior,
rompendo, com isso, o fundamento da autoridade, justamente o fator de permanência e
segurança do mundo. (ARENDT, 1992-2) As revoluções modernas são uma tentativa
fracassada de reconstruir este elo, este fundamento novo, mantendo-se a política numa
crise de autoridade:
Pois, se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de
natureza política, e que o famoso "declínio do Ocidente" consiste
fundamentalmente no declínio da trindade romana de religião, tradição e
autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente
romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem
gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da
tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos,
aquilo que durante tantos séculos conferiu aos negócios humanos certa medida
de dignidade e grandeza. (ARENDT, 1992-2: 185)
A partir dessa crítica é possível perceber a contribuição da tradição
republicana. A educação adquire um caráter político quando trabalha o papel e a
importancia da autoridade como exemplo de grandeza para as gerações subsequentes. O
reestabelecimento do lugar da autoridade na educação está concatenado à proposta de ser
esta uma forma de construção da comunidade ética. Essa construção é, para a tradição
republicana, a única garantia que temos de que a educação se transforme num projeto
político comunitário e compartilhado e não num mero plano de dominação. (ARENDT,
1992-2: 161)
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Uma comunidade ética tem como principal questão “quem somos?”. Para a
proposta republicana, a esfera pública tem a tarefa fundamental de responder a essa
questão de identidade, mediante o resgate do elo perdido entre passado e futuro, por meio
da constante rememoração e solicitação do simbolismo do pacto fundador. Esse trabalho
de rememoração é árduo na medida em que a educação serve para nos ensinar a distinguir
entre o que deve ser conservado e o que deve ser rejeitado no processo histórico de
conformação de nossa identidade. Na medida em que ele é feito, torna-se evidente a
pluralidade de visões e de tradições que nos conformam. A resposta à pergunta “quem
somos?” é diversa e complexa, até mesmo contraditória, e inclui concepções distintas do
que deva ser e quem deva exercer o poder. E a educação deve ser capaz de mediar essa
pluralidade, problematiza-la e permitir a sua sustentação.
Como fazer com que a proposta de mediação das duas tradições filosóficas que
influenciam a educação seja implementada, principalmente entre alunos do ensino
fundamental? O exercício que descrevemos a seguir é inspirado nas incursões teóricas de
Lawrence Kohlberg sobre os estágios de desenvolvimento moral. O pressuposto de
Kohlberg é que desenvolvemos nossa inteligência moral quando discutimos uns com os
outros sobre os princípios e valores que impulsionam nossa ação. A atividade busca
provocar esse debate e a partir dele, desenvolver a habilidade dos alunos de discutirem
sobre seus valores e seus planos de vida. A discussão permitirá chegar a uma base de
valores comuns porque compartilhados entre os membros do grupo. E essa base será
utilizada para a elaboração de um código de conduta do grupo que mimetiza o processo
de elaboração de leis, dando a dimensão concreta de um ethos que pode ser vivenciado
no cotidiano da sala de aula. Supomos que práticas como esta, introduzidas nas
relações escolares são capazes de contribuir decisivamente para a formação de uma
cultura de democracia e de direitos humanos, não apenas no plano teórico e cognitivo,
mas fundamentalmente no plano da práxis, em um nível ético e político, como, aliás,
mostram diversas experiências efetivadas (KOHLBERG, 1981).
Você deverá tirar cópias de cada uma das quatro situações aqui apresentadas
e distribuir em sala de aula de maneira que cada aluno tenha oportunidade de ler e
responder às quatro. Sugerimos que tire algumas cópias de cada situação e os alunos
irão passando para frente a situação já respondida e pegando outra que ainda não
responderam até todas as quatro circularem por todos os alunos. Basta o aluno escrever
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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uma resposta rápida, porém fundamentada, que lhe ajude a sistematizar sua opinião no
segundo momento de debate. Essa primeira etapa não deve durar mais do que 40
minutos. É o debate que tem que ser priorizado. A etapa deverá sofrer uma adaptação
caso os alunos não sejam ainda alfabetizados. Nesse caso, você deverá ler cada situação
e promover um debate entre os alunos, seguindo para a seguinte etapa a cada situação.
Na medida em que os alunos forem discutindo, você deverá captar quais princípios e
valores são mencionados nas respostas e deverá escrevê-los no quadro. (por exemplo:
“temos que ser solidários com nossos colegas”; “não podemos mentir”; “é errado
delatar”; “temos que ajudar os amigos”; “mesmo que a pessoa não seja nossa amiga,
temos que prestar socorro”; “todos os colegas são iguais e tem os mesmos direitos”) No
final, essas respostas nos fornecerão uma lista de “princípios e valores” compartilhados
pela turma.
Se você, professor, quiser levar esse exercício além, sugerimos completá-lo
com a seguinte atividade. A turma rediscute a lista de princípios e valores
compartilhados e com base nela inicia um “processo legislativo”. Ou seja, se reúne para
elaborar um código de conduta em sala de aula. Esse código tem como limitadores as
leis vigentes no país e as regras instituídas pela escola. Por exemplo, não é possível
determinar que os alunos não tenham provas. As regras de como fazer o código, o
quorum de votações, quem fará o quê será determinado pela turma sob a sua regência.
Não se esqueça de elaborar sanções para o cumprimento e descumprimento do
estabelecido. No final, o código será lido e votado pela turma, conformando um sistema
de regras interno.
Espera-se com esses exercícios que os alunos amadureçam os seus conceitos
e idéias do que é Justiça e como ela pode ser aplicada. Que percebam também as
dificuldades inerentes ao processo de resolução de conflitos morais e seu reflexo sobre a
prática. Espera-se igualmente, que eles sejam capazes de concretizar princípios morais
em regras de ação específicas voltados para a prática cotidiana, no caso, para suas
relações entre colegas e entre alunos e professor. Acreditamos que práticas como essa
podem levar os alunos a desenvolver habilidades fundamentais para o exercício futuro
da cidadania, do respeito mútuo e da autodeterminação.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Situação 1
Numa escola X, alguns alunos de determinada turma não têm condições de comprar os
livros e o material solicitados para o trabalho escolar. Renata, uma das alunas, sugere
que os alunos que tem condições, coloquem à disposição o material deles para ser usado
por todos. Entretanto, metade dos alunos não concorda.
A professora deve aceitar ou não a sugestão de Renata, determinando que todos
disponibilizem seu material para uso? Por quê?
Situação 2
Na distribuição de tarefas entre os alunos da aula de ciências, a turma é dividida em
grupos de trabalho. As instruções para cada grupo são dadas em particular. Coube ao
grupo de Fernando, José e Larissa alimentar os animais do laboratório durante o
semestre. O grupo não providenciou o alimento e os animais começaram a morrer. Ao
ver que os animais morriam, o professor indagou à turma o que estava acontecendo.
Com medo do castigo, o grupo não confessou que o erro foi seu, e o professor, então,
resolveu castigar toda a turma se ninguém explicasse o que aconteceu. Somente João
sabe que o grupo de Fernando, José e Larissa se esqueceu de cumprir sua tarefa.
João deveria contar isto à professora? Por quê?
Situação 3
A escola X resolve promover um concurso entre as turmas e aquela que sair vencedora
ganhará um passeio a um belo hotel fazenda com todas as despesas pagas e com direito
a levar os pais. Um dos alunos não contribui para que a turma vença o concurso, e
mais, ainda acaba por provocar uma briga entre os colegas.
Ele deve participar do passeio? Por quê?
Situação 4
No dia da prova, Camilo esquece o lápis. O único colega que tem um lápis extra é
Pedro, que não gosta de Camilo. Pedro então esconde o lápis para não ter que
emprestar.
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Mariana toma o lápis de Pedro escondido e dá a Camilo. Ao ver Camilo com seu lápis,
Pedro fica furioso e exige que a professora puna Camilo por “roubado” o lápis.
Camilo deve contar que foi Mariana que pegou o lápis?
Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A Crise na Educação. In Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.
ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997.
HABERMAS, Jürgen. A esfera pública 30 anos depois. Tradução de Vera Lígia C. Westin e Lúcia
Lamounier. In: Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, ano VII, n. 12, p. 7-28, Belo Horizonte: Centro
Universitário Newton Paiva, abril 1999.
KOHLBERG, Lawrence. Approach to moral education. Nova Iorque: Columbia University Press, 1991.
KOHLBERG, Lawrence. The Philosophy of Moral Development: moral stages and the idea of justice. Nova
Iorque: Harper & Collins, 1981.
LOCKE, John. Segundo Tratado de Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1993.
REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos,
2003.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Curso de Capacitação em Educação em Direitos Humanos
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Para reflexão:
I. Por que o ser humano precisa ser educado?
II. Qual deve ser a relação entre educação e política?
Avaliação do módulo:
Escreva uma redação fazendo sua avaliação sobre as seguintes questões com base na
leitura do texto, nas questões para reflexão e nas discussões durante o módulo:
I. O texto parte do pressuposto de que a escola é um estágio intermediário entre
esfera pública e esfera privada e que a criança estaria ainda protegida no espaço
privado contra a complexidade do debate público. Quais as dificuldades na
relação entre esfera pública e esfera privada que você vislumbra tendo em vista
condições socioeconômicas pelas quais crianças não encontram o espaço de
proteção pressuposto?
II. Responda às situações do exercício e registre sua opinião nesta redação. Avalie
quais os principais valores que conduzem as suas respostas. Quais as
principais regras que você considera fundamentais para a convivência entre
professor e aluno em sua experiência escolar?