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CRÔNICAS DO ENSINO BÁSICO

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Sumário

5 Agradecimentos

6 Editorial

9 Escreva também!

11 Ecce Homo Marcos Alexandre Capellari

13 Conselho de classe Fernando de Oliveira Souza

15 Cada nome exótico... Sandra H. S. Simone

17 O dia em que passei carão ensinando a escrever o próprio nome Marisa Teixeira

19 A gentileza do segredo Roberta Melo

21 A droga da educação José Carlos Antonio

25 Mímica no aquário predileto Lincoln Amaral

29 Caro amigo Mário Piedemonte

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Agradecimentos

Aos professores e às professoras que têm enviado seus textos à revista CdEB, àqueles e àquelas que aceitaram o pedido de publicação e adaptação, aos amigos e às amigas que leram e/ou compraram os números publicados e, especialmente, aos e às que discutiram as crônicas, propuseram mudanças, sugeriram melhoramentos, divulgaram...

Projeto Gráfico: Rafael Marcon

Foto: Tobi Oluremi1

Editor: Renato Pugliese

Contato e outras informações: www.cdeb.pro.br

/revistacdeb

1 Disponível sob licença Creative Commons no endereçohttps://unsplash.com/photos/QEg2e_d6YE4 5

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Editorial.9.CdEB

A nona edição da Revista Crônicas do Ensino Básico novamente traz textos que buscam fortalecer o diálogo entre professores que procuram entender o que acontece nas vivências em salas de aula nos nossos cotidianos.

O professor Marcos Alexandre Capellari (Ecce Homo) abre a edição discutindo a covardia de quem atua como professor apresentando um papel por vezes ficcional e pouco sincero, enquanto o professor Mário Piedemonte (Caro amigo) reflete sobre o momento derradeiro da profissão, quando se pede o cálculo da aposentadoria e se abstrai sobre a experiência em sala de aula ao longo de décadas de docência.

O professor Fernando de Oliveira Souza (Conselho de classe) apresenta um triste relato de um momento em que professores deliberam sobre a aprovação ou a reprovação de estudantes frente às explícitas menções preconceituosas sobre as posturas estudantis, num misto de realidade e literatura fantástica.

As cômicas crônicas das professoras Sandra H. S. Simone (Cada nome exótico…) e Marisa Teixeira (O dia em que passei carão ensinando a escrever o próprio nome) discutem situações corriqueiras no trato com os mais pequenos e seus nomes que, de geração em geração, vão se tranformando e incomodando quem lida dia a dia com as novidades.

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A professora Roberta Melo (A gentileza do segredo) nos apresenta uma delicada história em que a relação professor-aluno é explorada aos limites, ao mesmo tempo em que o professor José Carlos Antonio (A droga da educação) expõe às claras o desejo de transformar a realidade como professor e as amarras do sistema enforcado pelo grande capital.

Por fim, o professor Lincoln Amaral (Mímica no aquário predileto) apresenta uma crônica em que a personagem principal pode ser um futuro professor ingressante na universidade ou qualquer outro profissional que busca sua apropriação por meio do conhecimento elaborado.

Vale notar o caráter performático do ator-professor presente no texto de Marcos Alexandre Capellari e no ator-engenheiro do Lincoln Amaral: quais serão nossos papéis no mundo do trabalho?

Quem somos nós?

Renato PuglieseJunho de 2018

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Escreva também!

A previsão de publicação do próximo número da revista CdEB é para o mês de Dezembro de 2018.

Caso você seja ou já tenha sido professor e queira narrar, de forma livre e poética, alguma situação vivida ou conhecida, visite nossa página na web (www.cdeb.pro.br), veja as condições para escrita dos textos e os envie para [email protected] que entraremos em contato.

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Eu sabia ou, pelo menos, imaginava o que me esperava. Na verdade não sabia nem imaginava direito, o medo costuma brotar dos interstícios, dessa lacuna entre o sabido e o imaginado; entre o desejo, nem tão grande assim, e a aversão em me revelar na fala, nos gestos, na postura, nos olhos.

Diante do olhar, o portão da escola; sobre a cabeça, a noite escura, os arranha-céus e o medo, tão puro quanto o frio de outono no Butantã. A mão gelada, o suor pegajoso entre os dedos, a boca seca, o coração daquele jeito.

Você conhece o coração daquele jeito, não é verdade? Ele não está nem dentro, nem fora – dá a impressão, ao tocá-lo com os dedos invisíveis que tateiam as costelas, que pertence a outro corpo, um corpo que se perdeu no emaranhado das ideias fora de lugar.

Não deu!

Dei meia-volta e, do orelhão, liguei avisando a diretora da repentina enfermidade de minha mãe; ela não tinha ninguém, até hoje vive só, a solidão é traço genético.

Foi há vinte anos e depois da desculpa esfarrapada me enfiei no primeiro bar e tomei dois chopes, acendi e fumei alguns cigarros e decidi, novamente corajoso, que na noite seguinte venceria o medo e enfrentaria minha primeira sala de aula como professor.

Dito e feito. 11

Ecce homo Marcos Alexandre Capellari

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Hoje penso nessa noite, da fuga, não como vitória, mas como derrota. Eu, que vivo entre o desejo e a aversão, entre o sabido e o imaginado, fui batido entre dois chopes e alguns cigarros. Literalmente morri, cedi à mefistofélica tentação de ensinar.

Na verdade, morro todo dia um pouquinho, quando não pela manhã, à tarde e à noite; e sempre ao fechar a porta da sala de aula atrás de mim. Em seu interior habita o medo que teima em brotar do intervalo incomensurável entre o sabido e o imaginado, entre o desejo e a aversão, entre o que diz a boca e o que fala o coração, entre a lousa e cada uma das carteiras enfileiradas.

Mas amanhã tudo será diferente.

Assim que girar a maçaneta, acender as luzes e dar bom-dia aos alunos, direi toda a verdade. Eles terão o homem por inteiro, sem os trajes do ator. Não sei e nem imagino como reagirão. Haverá, afinal, reação?

Mas isso não importará mais.

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A nova escola em que iria trabalhar: uma enorme conquista profissional. Exigia bastante dedicação, com salário e benefícios muito incomuns para a área. As expectativas eram altas em relação a tudo. Seus colegas formados nas melhores universidades brasileiras e com experiência no exterior. Estudantes selecionados em processo seletivo concorrido. E estrutura física invejável.

Começa o trabalho e não há como não pensar que ali poderia ser o início do tão almejado salto de qualidade da educação brasileira. Começam as apresentações. O auge do conhecimento de seus colegas se dá em um momento tradicional, conhecido de todos que já atuaram como professor no ensino básico: o Conselho de Classe. Acontece o primeiro, o segundo, o terceiro e finalmente o ápice vem com o emblemático Conselho Final.

Nos anteriores, o professor de português havia ficado boquiaberto com as distorções próximas dos delírios mais criativos da ficção literária para justificar o rendimento dos estudantes. Machado de Assis ficaria inspirado a escrever outra narrativa ao estilo de O Alienista. Tudo fomentado pela presença da equipe de orientação que fazia um acompanhamento confidencial dos alunos durante o período letivo.

Assim, no Conselho Final, aquele em que se decide se o aluno vai para a série seguinte ou não, o espetáculo da literatura fantástica começa, com o aval de Murilo Rubião. O primeiro caso é de um estudante que está abaixo da média em metade das disciplinas. Não aprendeu o mínimo necessário em metade delas, independente de qualquer circunstância. Nesse momento, entram em ação as divagações cósmicas para justificar que ele não alcançou o rendimento mínimo, mas que tem condições

Conselho de Classe

Fernando de Oliveira Souza

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de seguir para a próxima série, ainda que não consiga acompanhar o curso. Afinal, quem é este ser chamado professor para ensinar, fazer um aluno aprender e chegar à petulância de se sentir apto a avaliá-lo? Nenhuma entidade maior do que a vida para ensinar qualquer pessoa. Resultado: a maioria dos professores vota a favor da aprovação.

A sequência dos fatos é ainda transcendental. Um aluno com rendimento muito parecido com o anterior, mas com comportamento pessoal provocador, é reprovado por unanimidade. Assistimos a uma espécie de inconsciente manifestação de preconceitos, que só Freud explica. Enquanto isso, o professor de português e uma minoria se restringiam a argumentar com aspectos cognitivos de suas disciplinas o baixo rendimento desse e daquele aluno, provando não ser possível a aprovação de ambos. Nem quando o professor apelou para o fato de os dois ainda não serem capazes de escrever um único parágrafo de texto com o mínimo de coesão e coerência, ou de compreender um texto que não fosse de mera instrução objetiva de exercício no livro didático, os colegas ouviram. Ele não estava falando que os alunos não conseguiam elaborar um texto descritivo, narrativo ou dissertativo, só citou um parágrafo. Também não citou a dificuldade em interpretar Camões, mas sim qualquer texto subjetivo. Mas o que significa na vida escolar de um aluno prestes a começar o 3º ano de ensino médio conseguir escrever um único parágrafo ou compreender um texto subjetivo?

Enfim, ainda não demos o almejado salto de qualidade, mas creio que não estejamos tão longe. Entretanto, no Brasil, dentro dos melhores e piores contextos, além dos problemas conhecidos e frequentemente negligenciados, há uma perigosa mistura de valores que atropela o trabalho diário de professores sérios e dispostos a melhorar nossa sociedade por meio da educação escolar.

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No início da minha carreira, a falta de experiência me fazia passar por situações bastante constrangedoras.

Eu recebia a lista de nomes e me atrevia a fazer a chamada imediatamente, coisa que eu não faço mais. Hoje eu recebo a lista, leio os nomes e, se eu tiver dúvidas, pergunto a alguém sobre a pronúncia; aí sim, eu faço a chamada.

Alguns nomes muito exóticos encontrei pelo caminho, como Bruce Waine, Leidedaiana, John Lennon, Elton John, Greiciskely, Santo (que de santo não tinha nada) e Mardison (vulgo Mardição, de tão bagunceiro que era). Um muito curioso era Buci Tildes, que poderia ser uma homenagem à atriz Brooke Shields, não sei.

Há, também, alguns casos de verdadeiras obras de arte na grafia, como Nathielly, Johnnattan, Kahmilly, entre outros, que devem ter dado um trabalhão para a professora alfabetizadora ensinar os pobrezinhos a escreverem. Além desses, surgem as junções para homenagear avós, como Valdicleison, mistura de Valdete com Cleison, Ermicídio, de Ermínia com Delcídio, entre outros. Por outro lado, há o acúmulo de variações, tais qual Michel, Michael, Maicon, Máicou, Maicow, Mikael, que a gente nunca sabe a pronúncia ao certo. Fazer o quê? Nome não vem com pronúncia.

Um episódio que eu não esqueço relacionado a nomes foi quando entraram duas alunas novas na sala e eu acabei perguntando da minha mesa quais eram seus nomes, para poder anotá-los em minha caderneta.

Cada nome exótico... Sandra H. S. Simone

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Uma delas falou o nome e sobrenome direitinho e eu anotei, a outra falava o primeiro nome, seu nome do meio e quando chegava o sobrenome eu não conseguia entender, pois ela o pronunciava muito baixo.

Sem me tocar do que estava acontecendo, eu pedi que falasse seu nome mais alto e ela continuava fazendo a mesma coisa, falava seu primeiro nome, seu nome do meio e quase sussurrava seu sobrenome. Eu fiz uma cara de quem não entendeu novamente.

Percebendo que eu iria perguntar mais uma vez, a garotinha da frente me alertou, sussurrando:

- É “Pinto”, professora.

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O dia em que passei carão ensinando a

escrever o próprio nomeMarisa Teixeira

Eu me auto designei como responsável pelas duas fileiras de carteiras onde sentava a meninada de 5 para 6 anos. Umas doze crianças, acho. Na divisão informal, a professora ficou com as duas outras fileiras, aquelas que estavam com os meninos que eu tinha ido observar. Já estava tonta de informar que orelha começava com /ó/ e que havia duas palavras que começavam com /ó/. Então, qual era a palavra orelha?

De quebra, eu ia avisando pra um não copiar do outro e que pensar dava trabalho. Em nome da extravagância democrática, eu avisava que se podia escolher circular ou riscar a palavra que eles achassem que era a correta. Alguns usurpavam do poder de escolha e deixavam a palavra intacta, o que causava confusão naquelas cabeças avessas à disciplina e ao silêncio.

O menino linguarudo me avisou que o seu colega tinha me chamado de “moça”. E não é que o outro fulaninho tinha perspicácia? Ao distinguir entre a professora e aquela animadora de auditório: eu? Avisei ao informante que tinha gostado de ser chamada de moça, porque fazia com que me sentisse mais jovem. Parece que ele não gostou da resposta. Ou não entendeu, porque a conversa morreu ali.

Nessa deixa, ela teve coragem de me chamar com o braço meio levantado. Na última carteira, uma catatau de olhar sério e feições frágeis. Ela queria a minha ajuda para terminar o exercício. Olhei sobre seus ombros. 17

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Tudo bem, tá tudo certo. Falta só você escrever seu nome. Como você se chama? Gabriele. Vamos lá, Ga/bri/e/le. Tudo direitinho, menos aquele sinal incompreensível ao final do nome. Ô, Gabriele, tá faltando dois pauzinhos no último /e/, você só colocou o pauzinho do meio. Ela me olhou com cara de ué.

Foi então que seu colega de carteira se dirigiu até a parede e retirou uma placa, que ele colocou bem diante dos meus olhos. Eu li: Gabriely. Ah, sim! Seu nome é com ípsilon (eu falo “ípsulon”)! Morri de vergonha. Dá para ser feliz, tentando alfabetizar criança com esses nomes estrambólicos?

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A gentileza do segredo1

Roberta Melo

1 Publicado originalmente na página Sopro de Atena (@SoprodeAtena) no Facebook e adaptado para a Revista Crônicas do Ensino Básico. 19

Era meu primeiro ano naquela série e com aqueles colegas de trabalho. Estávamos no mês de março e eu, particularmente, nunca havia tratado da questão do dia da mulher em sala, mas fui estimulada por um colega professor a fazê-lo. Ele havia discutido com as turmas do 2°ano sobre feminicídio e, em meio às suas colocações e justificativas, concluiu que esse “formato” de assas-sinato não existia. Mulheres morriam, assim como homens, brancos ou negros. Todos morrem, o problema é a violência - ela é que precisa ser pensada e tratada. O colega em questão me pediu para que eu desse meu ponto de vista sobre a questão com as turmas. Achei digna e indispensável a proposta e a coloquei em prática.

Entrei na sala e escrevi no quadro: Cultura do estupro. Expliquei que o conceito havia surgido por volta da década de 70, nos Estados Unidos. Falei que se tratava de comportamentos que estimulam agressões sexuais contra as mulheres. Citei as cantadas ofensivas, os casos em que mulheres são seguradas violentamente em baladas, comentei sobre piadas, gírias em filmes, séries e propagandas. Disse que essas expressões são interpretadas como comportamentos normais ou naturais e que, por isso, muitas vezes não são reprovadas pela sociedade. Afirmei que deveriam ser, já que estimulam a violência contra as mulheres.

Acho que me empolguei com aquele silêncio de quem tá concentrado e me peguei apresentando exemplos pessoais. Falei da época da faculdade, quando colegas disseram que eu havia tirado nota máxima em seminários (ouvi mais de uma vez) porque eu era “bonitinha”. Não sabia se o problema estava em meus colegas ou em meus professores…

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Falei do meu local de trabalho e das piadinhas sobre as capacidades de uma mulher; de como era importante, segundo as conversas nada discretas dos meus colegas homens, que uma secretária fosse gostosa. Contei também que uma vez me enchi e discuti com um desses colegas, dizendo a ele que não gostava daqueles tipos de piadas e brincadeiras, que pra mim eram ofensivas. Ele disse que era uma grande palhaçada minha e que preocupação de fato tinha o vizinho dele que estava com câncer.

Por último, cheguei à minha primeira história sobre esses dramas como mulher. Contei a eles sobre um abuso e disse pra que cuidassem de si, de seus irmãos mais novos ou de qualquer criança que lhes fosse próxima, pois são as maiores vítimas. Encerrei minha fala pedindo segredo sobre aquela conversa - era a primeira vez que falava de coisas tão íntimas e eu mesma precisava digerir aquilo tudo.

No dia seguinte eu daria aula na sala bem ao lado daquela e confesso que não sabia se chegaria a tão profunda reflexão como havia feito na outra turma.

Material sobre a mesa e sou chamada à porta pelos alunos da sala ao lado. Tinham um buquê de flores pra mim. Fizeram uma vaquinha e um porta-voz me entregou as flores dizendo que aquele era um pedido de desculpas por tudo que eu havia passado.

Na turma em que eu daria aula ninguém entendeu nada - nem as flores, nem as desculpas, nem meu choro. A turma ao lado havia realmente guardado segredo e eu também. Na época, queria ter agradecido em público àquela gentileza, mas há certas coisas na vida que só o tempo nos ajuda a fazer.

Obrigada, querid@s.

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Foi há mais de uma década, numa noite seca de quarta-feira, como outra qualquer do mês de junho. Já estávamos no laboratório, arrumados em grupos de quatro alunos por bancada. Era mais uma noite fria começando com duas aulas de Física no segundo colegial D.

Laboratório é força de expressão, pois aquilo era uma sala até então usada como depósito de porcarias diversas e que tinha uma caixa de esgoto fedorenta na parte do fundo, a qual tapávamos com um bloco de concreto para não sermos incomodados pelas baratas.

Os grupos se juntavam em quatro porque uníamos quatro carteiras formando uma bancada improvisada. Em cima de cada uma, que limpávamos impecavelmente com produtos que nós mesmos comprávamos, fazíamos os experimentos planejados para a aula e que estavam minuciosamente descritos no roteiro que eu preparava e imprimia em casa, na minha própria impressora matricial.

O plano era implementar uma metodologia dinâmica de ensino que fosse atrativa para os alunos que, desde aqueles idos tempos, já não aguentavam mais as aulas expositivas. Eles financiavam a compra dos materiais e equipamentos.

Naquela noite íamos estudar o calor específico e medi-lo para alguns sólidos utilizando um calorímetro improvisado com potes de isopor, termômetros e uma fonte de calor adaptada em um botijão de gás “furtado” da cozinha e acoplado a bicos de Bunsen nunca usados nas aulas de química, numa das maiores gambiarras que já fiz na vida.

De repente um “toc-toc” no vidro da janela da parte

A droga da Educação

José Carlos Antonio

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traseira da sala. Era o aluno que estava faltando, Pedro. Sim, só faltava ele. Desde que passamos a fazer aulas no laboratório, e a estudarmos a teoria associada a prática, a quantidade de faltas havia reduzido a quase zero.

Aquela semana, especialmente, era crítica, pois na cidade vizinha ocorria a Festa do Peão, que sempre atraía muitos alunos e esvaziava as salas de aula.

- O que você está fazendo aí fora, Pedro?

- A diretora não me deixou entrar. Pulei o muro. Posso assistir a aula aqui da janela?

- De jeito nenhum! Pule o outro portão e venha para a sala já!

Um espanto conjunto tomou a nós todos.

Os alunos estavam espantados com um professor que desrespeitava as regras de horário de entrada, rigidamente aplicadas pela direção para “moralizar” a escola, e que, afrontando a direção, “autorizava” o aluno a pular um segundo portão para vir para a sala. Do outro, um professor que, cansado de ver os alunos do noturno pulando o muro da escola para fugir dela, agora via um aluno pulando o muro para entrar nela. E isso em plena semana de Festa do Peão!

Pedro entrou feliz. Aprendeu o conceito de calor específico, descobriu o que era um calorímetro, como usar um termômetro de coluna de mercúrio sem incorrer no erro de paralaxe, fez contas, gráficos e agradeceu por eu ter deixado ele participar da aula.

Eu, por outro lado, vivia desde então um misto de alegria pelo sucesso da metodologia e da aprendizagem dos alunos, mas, por outro lado, também de tristeza, pois no fundo tudo aquilo não significava quase nada.

Aquelas aulas eram muito pouco para dar conta do que os alunos precisavam. Com apenas duas aulas por semana e uma metodologia que exigia todo um projeto de financiamento de equipamentos e materiais, a preparação de conteúdos, roteiros e equipamentos, e um acompanhamento quase individual, apesar dos quarenta alunos em cada sala, obviamente jamais conseguiria dar conta de todo um programa de Física elaborado para

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escolas com, no mínimo, quatro aulas semanais e, além disso, com alunos que tivessem tempo e disposição para estudarem parte dos conteúdos em suas casas.

Todo aquele esforço, meu e deles, no fundo não representava muita coisa. E, além disso, ambos tínhamos que burlar o sistema, quebrar regras e transgredir a ordem para podermos ser um pouquinho mais felizes.

Por fim, quando os alunos saíam da minha aula e iam para outra, onde o professor já cansado de burlar o sistema se deixava vencer por ele e dava aulas tradicionais na lousa, e depois desse vinha outro, e outro, o que restava daquele pouco que eu tentava fazer? Eu era só uma ovelha negra vista com desconfiança até por alguns colegas. No fundo, aquilo também era bastante broxante.

Ao fim e ao cabo tivemos aulas maravilhosas. Foi bom e foi ruim. Escrevemos a nossa história, ainda que ninguém a leia um dia. Fizemos e acontecemos, embora isso pouco ou nada tenha mudado na vida daquelas meninas e meninos. Na verdade nem sei se mudou algo na minha própria vida.

Vai ver a Educação se resuma nisso mesmo: um pouco de tudo, um misto de muitas coisas que, depois de combinadas, resultam em nada.

Hoje olho criticamente para aqueles dias e concluo que tudo aquilo foi pura loucura. Me vejo como um roqueiro dos anos sessenta, experimentando algum tipo de droga alucinógena que nos dá a ilusão de que podemos mudar o mundo.

Mas, como bem dizia Elis Regina: Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito / tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais.

E nessas horas, quanto bate um misto de saudosismo, melancolia e depressão, me pergunto se faria a mesma coisa novamente… E sempre respondo para mim mesmo: Sim, faria!

A beleza de ser um professor reside exatamente na loucura, na alucinação de crer que se pode fazer a diferença, que se pode derrubar aqueles malditos muros

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que impedem o Pedro de entrar, de se transformar em pombo e cagar com gosto na cabeça do sistema.

Naqueles dias a escola foi para mim realmente uma droga. Tive muitos “baratos” realizando o impossível, ainda que de nada disso tenha importado. E, se hoje pouco ou nada resta de tudo o que pensei que estava construindo naqueles dias, dane-se! Pelo menos eu tive muitos orgasmos.

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Mímica no aquário predileto1

Lincoln Amaral

1 Crônica extraída e adaptada do romance Mímica no Aquário Predileto, escrito pelo autor. 25

Tony encarou o bife “detetive”: duro e com nervos de aço. Acompanhado de arroz “carnavalesco”, servido em blocos e do feijão “Lorenzetti”, cozido apenas com um banho de água quente. Ouviu a música:

...Gererê, gererê e LSD...Eu ontem tive um sonho esquisito.Sonhei que tava pondo na bunda de um mosquito...

Cartazes convocavam para reuniões políticas, rolês e festas no DCE da UFSCar. O jovem rapaz absorvia tudo como esponja, estudantes se revezavam em sua mesa. Rolavam resenhas e debates variados.

Um grupo hilário discutia rock e filosofia. Duas figuras saudaram Tony. Um deles também era bicho, surgiu entre ambos cumplicidade. Era tradição batizar calouros com apelidos engraçados, aquele bicho de fala mansa era o “Profeta”. Estava acompanhado de “Serafim”, figura antológica. Eles moravam na república “Conde Nabeau”.

Quando Tony começou a sacar a conversa, foi interrompido por Serafim:

- Lá vem a Convergência com o seu blá, blá, blá.

No meio do refeitório, um estudante gritou:

- Vamos na reunião de mobilização do “Pulo a roleta”. Os empresários exploram estudantes e operários...

Profeta cochichou com Tony o nome deste líder: “Canário”.

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- Tarifa zero, para o capitalismo aplicar valor justo às passagens.

Serafim comentou sobre o tom empostado do discurso de Canário.

- A polícia age com repressão, ameaça prender lideranças e enviá-las ao DOPS.

Tony interessou-se; contudo, percebeu que a tentativa de manipulação soava autoritária. O orador concluiu:

- Contamos com vocês. A Convergência Socialista quer o fim do regime militar! Até a vitória, companheiros!

Garfos e facas bateram ritmicamente nas badejas. Aprovação ou descontentamento? Aquele movimento favoreceria os interesses de Tony, a redução das tarifas proporcionaria importante economia a ele.

Canário reuniu-se aos militantes, tribo com camisetas repletas de palavras de ordem e imagens de Lênin e Trotsky, com flâmulas nas calças e bolsas a tira-colo. Distribuíram panfletos, Tony viveria longa história com essa tendência política.

Eis que surgiu um indivíduo que se deslocava à passos de bailarino pelo restaurante, com expressões mímicas. Da maquiagem caía-lhe grossa lágrima, desenhada com lápis preto, ressaltada pela touca com estrelas azuis na cabeça do artista. A túnica deixava à mostra o seu tênis conga, indício de que também era estudante.

O turbilhão foi interrompido por uma Afrodite:

- Sou a Anne, faço enfermagem. Você é bicho, né...

Olhos azuis resplandeceram. Almíscar fluiu dos cabelos dourados, os lábios da moça lhe sorriram apetitosos, beleza estonteante. O coração do rapaz disparou, gaguejou algo incompreensível. Ela, rápida e articulada, disse por ele:

- Sou da célula do partido para os bichos, fique com esse jornal. Vamos assistir ao show do Paco. Tchau.

Após um selinho mágico ela desapareceu. Tony fascinou-se com o espetáculo; apenas mais um dia

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comum, se é que eles existiram, naquele lugar que já era seu aquário predileto.

Não se tratava de apresentação banal do mímico, ela contava história consistente que simulava o ato divino que originou o homem e a mulher. Com detalhes gestuais magníficos. Deus surgiu com barro e formão para esculpir o corpo do homem. A criatura suplicou que Ele inventasse a mulher, abrindo mão da própria costela, Deus atendeu ao seu desejo.

O gran finale caracterizou-se pelo humor. O homem, excitado, iniciou gestos repetitivos com o formão, sugerindo vigorosa masturbação. Deus, aflito, tentou intervir. Na cena derradeira, o altíssimo limpou a face após a ejaculação do homem...

A galera vibrou de alegria, dispersando-se lentamente. A não ser Tony que, para aumento de seu assombro, foi ladeado pelo estudante ainda manchado pela maquiagem: tratava-se do mímico.

Tony era bicho em seu primeiro dia de Universidade, mas não se fez de rogado. Deram-se muito bem, aquela informalidade prazerosa entre os estudantes tornar-se-ia rotina. De família circense, ele chamava-se Paco e estudava engenharia. Aperfeiçoara técnicas mímicas em Paris.

Apesar do amor à arte, traumatizou-se com a insegurança doméstica, sem ancoragem em qualquer setor da vida. Daí a opção por se formar em engenharia. Todavia, as luzes da ribalta corriam fortes ainda em suas veias. Às vezes, precisava atuar. Permanecia submerso na rotina escolar, para surgir de surpresa na praça, nas festas, de madrugada no bar lotado. Cada apresentação sua era totalmente original, quando o artista emergia as tribos paravam, embevecidas.

O tempo da conversa acabou, eles seriam amigos-irmãos. Paco e Tony, histórias distintas, unidas no mesmo aquário predileto. O calouro refletiu, apesar de jovem aprendia profundas lições. Paco proporcionava lirismo às pessoas, que lhe retribuíam com carinho e reconhecimento. Dispensavam-se agradecimentos, água e o oxigênio eram comuns naquele aquário.

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Alô! Roberto Geraldo? E então, caro amigo, como vai aí na Itália? Sério? Puxa, acho que você fez um bom negócio quando largou tudo aqui e abriu sua cantina em Pádua. Estou tentando juntar um dinheirinho para visitá-lo, mas com meu salário de professor, acho que isso é uma utopia.

Sabe, Roberto, ficou muito difícil viver por aqui. Nosso país é hoje um dos mais violentos do mundo e a miséria é assustadora. Talvez não acredite, mas temos hoje um presidente que não teve um voto sequer nas últimas eleições. Ele controla o Congresso e o Senado comprando os parlamentares com dinheiro vivo, dá para acreditar? Por aqui a coisa caminha assim: a polícia prende e a lei absolve!

Como você sabe, passei dos sessenta e sobrevivi mais de trinta deles dentro de salas de aula. Meus colegas de trabalho nem acreditam: ainda não infartei e nem tive um AVC. Evidentemente, faço tratamento psiquiátrico e tomo remédios fortes para poder trabalhar e dormir. Já fui ameaçado de morte por vários alunos diferentes que, por sorte (ou azar?), não cumpriram suas promessas.

Como? Para ser professor? Agora é mais ou menos assim: a “universidade” te dá um carnê e você tem que pagar em dia as prestações. Daí você recebe fragmentos de textos ridículos para ler em casa. Um computador substitui o professor e, ao final, você faz uma provinha vergonhosa (lembra aquela de colocar o “x”?). Caso não consiga média, vai fazendo a mesma prova várias vezes, até conseguir. Pronto! Parabéns, você está formado.

Caro amigoMário Piedemonte

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É assim que funciona hoje meu amigo. A sociedade cobrava do Estado o aumento do número de vagas, mas para manter novas estruturas era necessário o investimento de muito dinheiro; então o Estado fez o mais fácil, jogando a responsabilidade da formação do professor para a iniciativa privada, razão pela qual os botecos viraram “universidades”. Daí jogam o infeliz no sistema com um salário ridículo, e ele precisa trabalhar 50 a 60 horas-aula por semana, para poder se manter. E passa a ser criminalizado pelos baixos índices conseguidos pelos alunos, num sistema onde o controle social da educação acaba se materializando em avaliações externas, que nada têm a ver com a realidade dos alunos das escolas onde esse infeliz trabalha. Com esse diploma, você pode até chegar a um bom cargo na administração escolar.

Como? Competência? Não, amigo, não é assim que funciona! Você apoia um candidato de um partido em troca de um cargo. Se ele for eleito, você assume o cargo, mesmo que seja um grande incompetente e nada entenda de educação. E é assim que a coisa tem sido feita hoje.

Aulas? Tá brincando? São raríssimos os momentos em que conseguimos dar pelo menos uma. Como disse? Autoridade? Você deve estar de brincadeira comigo. Por aqui hoje tudo se baseia no conceito do “politicamente correto”. É como aquela mensagem que vimos numa loja de departamentos em Nova Iorque, você se lembra?: “Artigo 1 - O cliente sempre tem razão. Artigo 2 - Em caso de dúvida, retorne ao artigo 1”. Na escola hoje, você só substitui o cliente pelo aluno. O que significa que tanto faz lá na frente da lousa ter um professor ou um daqueles bonecos que ficam nos postos de gasolina atrelados a um compressor, balançando os braços o tempo todo. Quase ninguém percebe a diferença.

O que você disse? Por favor fale mais alto porque a ligação está ruim e eu estou meio surdo por causa da idade. Ah, você disse “chamar os responsáveis”? Claro que não, brother! A maior parte dos pais julgam-se “jovens”, não aceitam a inevitabilidade da decadência

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física. Quando chamados, aparecem tentando imitar os adolescentes e tratando os filhos como se fossem irmãos. Às vezes chegam a ameaçar o professor até fisicamente, alegando que o filho foi injustiçado ou perseguido.

Acho que você se lembra bem que, quando saímos da universidade, nossa ideia era centrada na formação de sujeitos críticos para a estruturação futura de uma sociedade não autoritária, não é? O tempo foi passando, o sonho acabando, e foi ficando apenas a chance de formar mão-de-obra para o mercado de trabalho, que garantisse ao educando ao menos uma vida digna do ponto de vista material. Hoje os alunos perceberam que a escola nem para isso vai servir mais, dai o descrédito desses jovens com a educação formal.

Amigo, está ouvindo bem aí? Vou te contar uma novidade: parece que por aqui estão querendo substituir a merenda da garotada por uma tal de ração humana, feita a partir de restos de vegetais em estado de decomposição. Acho que é mais ou menos aquela que meu avô usava na alimentação daquela vaquinha do sítio, lembra? Ela era uma vaquinha tão saudável, né? Então talvez funcione por aqui, você não acha? E já faz muito tempo que o Millôr escreveu “nada do que é explicável me é compreensivo”. Sábias palavras.

Sabe amigo, nestes últimos dias pensei seriamente em me aposentar, estou velho e cansado. Mas estão dizendo por aqui que o Congresso vai votar uma proposta indecorosa, tirando vários direitos históricos adquiridos pelos trabalhadores. Dizem que vão tirar inclusive a aposentadoria especial que é concedida aos professores. Aliás, os professores não precisam disso, não é mesmo?

E para conseguir os votos necessários para a aprovação, o presidente tem oferecido jantares elegantes e caríssimos aos congressistas, para que eles digam o que querem ganhar do Papai Noel em troca do voto. E dizem as más línguas que o que se serve nesses jantares não é a tal da ração humana, mas é de caviar prá cima, como na cena final da Revolução dos bichos, do Orwell?: “já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.

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O descaso para com a educação aqui no nosso país por parte dos governantes na certa trará consequências ainda mais desastrosas nos planos econômico e social. A maior parte dos incompetentes cuida da educação como a criança ingênua que lambe o mel na lâmina de uma faca, sem perceber que, ao provar a doçura do mel, corre o risco de ter a língua ferida.

Caro amigo, vou me despedindo como nosso poeta Raulzito: “agora vou desligar, o telefone tá caro, já falei demais… brigado pela atenção!”. Grande abraço, me liga, tá?

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