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Poesia de Sonia Leal Feitas: aspectos gerais Cunha e Silva Filho Mestre e Doutor em Literatura Universidade Federal do Rio de Janeiro 1. INTRODUÇÃO Por circunstâncias várias, nunca pude acompanhar de perto a produção literária do Piauí nos seus diversos gêneros literários. Daí se explicar o meu quase completo desconhecimento de novos nomes de escritores daquele estado surgidos nos últimos anos e, por conseguinte, do nome de Sonia Leal Freitas. Desconhecimento que, agora, confesso deplorar, sobretudo porque a poetisa, nascida em Teresina, nunca me havia chegado ao conhecimento, seja através de amigos intelectuais, seja por estudos críticos de sua poesia. Para qualquer estudioso da literatura brasileira é sempre lamentável que essa grande lacuna permaneça inalterável nesse imenso mar de escritores pouco ou nada conhecidos do público brasileiro, muitos dos quais de nível bom e mesmo excelente. Escritores que, isolados nas suas regiões de origem, sofrem uma espécie de avaliação redutora por parte da crítica de estados brasileiros que detêm maior peso hegemônico na avaliação da produção cultural do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul. O exemplo de Sonia Leal Freitas, neste sentido, se me afigura paradigmático. A leitura do único livro de poesia por ela deixado, O cedro do Éden que belo título! , me surpreende e até me comove pela alegria de o haver lido. A obra foi publicada em 2002, numa edição feita em Fortaleza, cidade na qual a autora fixara residência desde 1974. Sonia Leal Freitas teve formação primária, secundária e superior em Teresina. Cursou Letras. Ainda em Teresina exercera também o magistério superior de Letras Em 2008, infelizmente, veio a falecer prematuramente. Consultando as conhecidas historias literárias piauienses disponíveis, nada encontrei sobre a autora quanto a informações biobibliográficas. Apenas encontrei um breve registro sobre ela no verbete do Dicionário biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto 1 que informava sobre o estado natal da escritora, bem como referia ser ela uma contista premiada em 1985, pela participação no Concurso de Contos “João Pinheiro”, além de ter sido seu conto “O menino do Horto das Oliveiras” incluído na coletânea Outros contos piauienses. 2 Pesquisando na minha biblioteca, encontrei aquela coletânea e constatei que Sonia Leal Freitas se classificara em segundo lugar no mencionado concurso. Até então, não sabia que era também poetisa. Vim a sabêlo porque seu esposo, Francisco Rodrigues de Freitas, que conheci em Teresina, me enviara recentemente um exemplar de O cedro do Éden, juntamente com dados biográficos desta escritora. Verificando, depois, a útil mas incompleta “Divisão Periódica da Literatura Piauiense”, um encarte preparado por Herculano Moraes, vejo que o historiador situa a autora entre os poetas do período literário por ele denominado “Milenismo.” Em parte, se fez justiça à autora.

Crítica

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Crítica feita por Franisdo Rodigues de Freitas

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Poesia de Sonia Leal Feitas: aspectos gerais  

Cunha e Silva Filho Mestre e Doutor em Literatura 

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

1. INTRODUÇÃO         Por circunstâncias várias, nunca pude acompanhar de perto a produção  literária do Piauí nos  seus diversos gêneros  literários. Daí  se explicar o meu quase  completo desconhecimento de novos nomes de escritores daquele estado surgidos nos últimos anos e, por conseguinte, do nome de Sonia Leal Freitas. Desconhecimento que, agora, confesso deplorar, sobretudo porque a poetisa, nascida em Teresina, nunca me havia chegado  ao  conhecimento,  seja  através  de  amigos  intelectuais,  seja  por  estudos críticos de sua poesia. 

Para  qualquer  estudioso  da  literatura  brasileira  é  sempre  lamentável que essa grande  lacuna permaneça  inalterável nesse  imenso mar de escritores pouco ou nada  conhecidos do público brasileiro, muitos dos quais de nível bom  e mesmo excelente. Escritores que, isolados nas suas regiões de origem, sofrem uma espécie de avaliação  redutora por parte da crítica de estados brasileiros que detêm maior peso hegemônico  na  avaliação  da  produção  cultural  do  país:  Rio  de  Janeiro,  São  Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul. 

O  exemplo  de  Sonia  Leal  Freitas,  neste  sentido,  se  me  afigura paradigmático. A  leitura do único  livro de poesia por ela deixado, O cedro do Éden  ‐ que belo título! ‐, me surpreende e até me comove pela alegria de o haver lido. 

  A obra foi publicada em 2002, numa edição feita em Fortaleza, cidade na  qual  a  autora  fixara  residência  desde  1974.  Sonia  Leal  Freitas  teve  formação primária,  secundária  e  superior  em  Teresina.  Cursou  Letras.  Ainda  em  Teresina exercera também o magistério superior de Letras Em 2008, infelizmente, veio a falecer prematuramente. 

Consultando  as  conhecidas  historias  literárias  piauienses  disponíveis, nada  encontrei  sobre  a  autora  quanto  a  informações  biobibliográficas.  Apenas encontrei um breve registro sobre ela no verbete do Dicionário biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto1 que informava sobre o estado natal da escritora, bem como referia ser ela uma contista premiada em 1985, pela participação no  Concurso  de  Contos  “João  Pinheiro”,  além  de  ter  sido  seu  conto  “O menino  do Horto das Oliveiras” incluído na coletânea Outros contos piauienses.2  

Pesquisando  na  minha  biblioteca,  encontrei  aquela  coletânea  e constatei  que  Sonia  Leal  Freitas  se  classificara  em  segundo  lugar  no  mencionado concurso. Até então, não  sabia que era  também poetisa. Vim  a  sabê‐lo porque  seu esposo,  Francisco  Rodrigues  de  Freitas,  que  conheci  em  Teresina,  me  enviara recentemente um exemplar de O  cedro do Éden,  juntamente  com dados biográficos desta  escritora.  Verificando,  depois,  a  útil mas  incompleta      “Divisão  Periódica  da Literatura  Piauiense”,  um  encarte    preparado  por  Herculano   Moraes,  vejo  que  o historiador   situa a autora   entre os poetas do período  literário por ele denominado “Milenismo.”  Em parte, se fez justiça à autora. 

Além  de  O  cedro  do  Éden,  os  dados  me  informam  que  a  poetisa escreveu as seguintes obras, a serem brevemente publicadas: Antologia de contos, O conto infantil e Amana 

  2.  ASPECTOS GERAIS DA POESIA DE SONIA LEAL FREITAS. 

 Antes  de  tudo,  devo,  por  obrigação  da  função  crítica,  antecipar  um 

julgamento que não posso silenciar diante da leitura de O cedro do Éden: é uma obra magnífica  por  todos  os  prismas  pelos  quais  possa  aquilatá‐la.  Nas  linhas  adiante procurarei justificar esta premissa. 

Poucos  livros  de  poesia,  pelo  menos  da  produção  poética  que  tive oportunidade de ler, me deixaram tão forte emoção estética quanto esse conjunto de poemas reunidos em livro. Não se pense que esteja sendo muito condescendente com a profunda estesia que seus versos me provocaram. 

Na  lírica  brasileira,  há  grandes  vozes  poéticas  que  admiro  pela qualidade e elevado nível da expressão poética. Cecília Meireles seria uma delas. 

Contudo, é  fato que algumas obras, em qualquer gênero da  literatura ou  das  artes  em  geral,  parecem  nos  convocar  à  aventura  do  prazer  da  leitura,  e sobretudo de uma (re)leitura que imprime em nós uma vontade de levar adiante o ato de ler com uma velocidade que nos causa espanto.  

Ou  seja, o ato da  leitura desta autora provoca encantamento, não  só pela  absoluta  perfeição  da  linguagem  que  lhe  infunde  uma  forma  artística  original, fluente, mas também pelos artifícios retóricos com que plasma seus temas em peças artísticas avessas aos artificialismos  forçados diante dos quais a obra  literária não se sustenta nem nos convence.    

A  obra  literária  só  é  durável  e  eterna  quando  nela  existe  o  sopro  da vida, quando nos impele a pensar e a refletir sobre a visão do mundo nela espelhada, quando problematiza questões cruciais sobre a Natureza, os problemas da existência, os de ordem moral e filosófica. Só é perdurável a obra que, em alto nível de perfeição artística, põe em discussão outros temas fundamentais: o sentimento amoroso, a vida e  suas  limitações  temporais, a morte em  suas  variadas  formas de  interpretação por parte  do  artista  da  palavra,  a  dimensão  espiritual  e  as  contradições  inerentes  à condição  do  homem  na  Terra,  o  ser  do  escritor  e  o  seu  principal  instrumento  de comunicação, a linguagem. 

Minha  convicção  é  que  esse  julgamento  preliminar  não  foi  ditado simplesmente pelo entusiasmo e fruição do  leitor com a palavra poética da escritora. Foi, sim, pela qualidade da obra. Até parece que a obra procura o crítico por afinidades e sobressaltos com a novidade do texto. 

Estou pensando, agora, num  livro estudado e admirado por  leitores e críticos.  Refiro‐me  ao  Eu  (1912)  de  Augusto  dos  Anjos  (1884‐1914).  Obra  única  do poeta paraibano que nem por  isso o  impediu da consagração em definitivo devido às suas altas qualidades literárias e à sua inegável originalidade. 

Sonia  Leal  Freitas  é  poetisa,  ao  que  me  consta,  conhecida  apenas regionalmente, e mesmo assim creio que em círculos bem restritos. Entretanto, esse único volume de poemas, pelas virtualidades de que se reveste seu discurso lírico, tem uma grande possibilidade de  conquistar maior espaço de  reconhecimento  crescente de  leitores  de  poesia  e  da  crítica  em  particular  Nele me  surpreendem  a  soma,  a 

combinação de elementos estéticos e técnicas de composição que o tornam um  livro singular, de estranha e misteriosa beleza, à altura da grande poesia lírica brasileira. 

Mário Faustino (1930‐1962) 3, uma vez, reprovava o excesso do sujeito lírico encontrado em muitos poetas brasileiros. Quer dizer, o poema autocentrado na subjetividade  como  se  toda matéria  poética  só  pudesse  ser  poetizada  por  aquela entidade literária. 

Em  O  cedro  do  Éden,  do  primeiro  poema,  “A  ave  da  noite”  até  o derradeiro  do  volume,  “A  voz  sonante”,  é  aquele  sujeito  lírico  que  se  faz  voz dominante,  reforçado  ainda  pela  voz  feminina  plenamente  identificada  pelas desinências correspondentes, não obstante em alguns poemas possamos encontrar o diálogo entre um “eu” e um “tu”. 

Numa  primeira  tentativa  de  comentar  o  livro  de  Sonia  Leal  Freitas, penso que a hipertrofia do sujeito lírico não prejudica em nada o nível da mensagem. Nem  tampouco sua dimensão estética. Vejo essa opção apenas como aquilo que, na ficção, se chama ponto de vista do narrador. Faço um parêntese no que concerne ao lirismo tout court predominante na autora. Há um poema nesta obra que se distancia do  lirismo puro, porquanto  seu  recorte possui  algo de epicizante, que nos perturba pela sua força de heroicidade. Falo do poema “Saga” (p. 259), de  inquietante beleza. Longo poema de quase quatro páginas sem contarmos o verso de cada página. 

A opção da autora pela subjetividade na exploração de sua temática se prende antes a uma lógica interna dos seus poemas: a de falar de si como construção de uma voz pessoal que procura atingir tanto a sua individualidade, os fundamentos da sua  essência,  de  sua  ontologia,  diante  do  desafio  do mistério  do  Cosmos,  quanto permitir a travessia, a transitividade, para uma voz universal, dentro do espaço  lírico da objetividade do ser para uma voz universal de corte religioso, da lição aprendida no convívio  íntimo  com  os  textos  da  Sagrada  Escritura.  A  salvação  existencial  da  sua subjetividade tem como eixo central a abertura para a fé cristã, num ritual composto de  anjos,  Nossa  Senhora  e  Deus,  enfim,  de  um  ritual  litúrgico,  de  unção  cristã. Ressonâncias de Alphonsus de Guimaraens (1870‐1921)? Talvez. Daí o tom por vezes bíblico do seu estro. A salvação, porém não vem com facilidade. Atrás de dela se veem alguns percalços, com a consciência  lúcida da passagem efêmera pelo nosso planeta, que a  faz afirmar profeticamente:  (...)  “Meu ato de viver, portanto,/não  será breve, nem será longo”.4  

O universo poético de  Sonia  Leal  Freitas depreendido em O  cedro do Éden se compõe de 49 poemas num  livro de 284 páginas. À primeira vista, o que nos prende  o  interesse  é  a  extensão  de  cada  poema.  Ao  contrário  do  que  fazem  João Cabral de Melo Neto (1920‐1999), ou outros poetas mais contidos, as linhas dos versos na poetisa piauiense se distribuem, em geral, pela  largura do espaço da página. São, portanto,  versos  livres,  longos,  sem  economia  do  espaço  branco  da  página.  Esta disposição visual, generosa, de cada verso exala certo gosto pela solenidade do tom da mensagem lírica, e ao mesmo tempo nos dá uma leve impressão de que a poetisa está narrando e não cantando em versos. Veja‐se como abre seu primeiro poema, “A ave da noite”: 

  A ave da noite rasga a tenda do meu abrigo e  despeja um grito estreito, longo, a língua do punhal. 

Caminho dentro dele num corredor comprido sem fins e sem saídas. Invento a minha fuga e salto dentro do vulcão medonho que me vomita em  postas.5                                         (...)  Praticamente quase  todos os poemas do  volume  iniciam‐se  com uma 

idéia  primeira  que,  no  seu  desenvolvimento,  se  vai  irradiando,  ampliando  seu  foco inicial,  através  de  uma  sequência  de  conceitos  e  situações,  geralmente  em  tom filosófico,  sentencioso,  de  andamento  solene.  Quer  dizer,  o  poema  multiplica conceitos, como se almejasse congregar um amplo espectro de aforismos. 

Dessa  maneira,  poder‐se‐ia  constatar  que  a  sua  poesia  pretende alcançar  um  objetivo:  sondar,  aprofundar  a  compreensão  dos  seres,  individual  ou socialmente  tomados,  numa  dimensão,  enfim,  englobando  a  Natureza,  o  Universo. Vejam‐se esses versos do poema “Alento”:  

 E vieste pedir‐me o alento de palavras novas? Não existem palavras novas para denominar a tua perda. No teu exemplo, todas as palavras são antigas. Já nasceram com os sentimentos dos homens: gêmeos univitelinos  em    parto de dor e desespero. Este novo que procuras está esperando no ângulo de onde o teu desejo comanda a tua vida.  Qual é a tenda dos anjos operários de Deus? Os anjos não estão aí para tanger as nuvens. Nem para deitar pontes sobre precipícios. A vida se arruma no trato dos seus próprios cuidados. O que compete aos anjos é o dom da perspectiva. Da tua perspectiva, inclusive. Ou julgas que permaneces mergulhado na mesma manhã de ontem? Ou de há vinte séculos?                                                          (...)   Aprende a sentir, nos cheiros que se soltam                     e  nos sons sobrepostos desta hora matutina,                     o   trabalho que a vida faz por ti, em  ti.6                             (...)  A esta altura de meus comentários, duas perguntas se me  impõem no 

deslinde de alguns aspectos da poética de  Sonia  Leal  Freitas: a) Onde  se  coloca, no panorama  da  poesia  brasileira  contemporânea,  o  estro  desta  artista?  B)  Como  se comporta  esta  poetisa  diante  dos  vários  movimentos  e  manifestos  poéticos  do Modernismo de 22 até nossos dias? Pelo  tempo de vida da poetisa,  falecida no ano passado,  aos  sessenta  e  um  anos,  obviamente  ela  pôde  acompanhar  ou  tomar 

conhecimento da poesia dos anos 70 e dos novos rumos da produção poética brasileira enquanto viveu. Não tenho dados concretos para saber qual foi a sua participação em Teresina  no  circuito  da  poesia  local  na  década  de  70. Mas,  com  certeza,  todos  os movimentos de  vanguarda  foram do  seu  conhecimento, pelo menos  através de  sua formação literária e em especial de seu aprendizado no campo poético: o Concretismo de 56, o Neoconcretismo, o poema processo, a poesia práxis, a poesia marginal, bem como as múltiplas tendências por que passou a poesia brasileira contemporânea7. 

Ora,  a  tudo  isso  provavelmente  esteve  atenta  e  nem  pôde  sair  ilesa dessas mudanças de rumos de dicção poética. De sua época e de sua geração. Quer‐me parecer que dessa modernidade se beneficiou a sua poesia, mas ressalto logo que o seu discurso lírico foi buscar seu ponto de apoio, sua logística, na grande tradição do verso brasileiro e da tradição poética ocidental. 

Indiscutivelmente, Sonia Leal Freitas domina um discurso lírico plantado na modernidade, sem, no entanto, fazer concessões mais ousadas ou radicais assentes na experiência a partir do Concretismo. 

Seu  percurso  é  de  outra  natureza.  Prefere  o  caminho  poético historicizado,  de  que  a  sua  dicção  está  permeada.    Em  outras  palavras,  sua discursividade  no  campo  da  poesia  está  atravessada  pelas  sucessivas  poéticas  da tradição literária, não só na atmosfera de seus poemas de versos longos e majestosos, fortemente servidos de elevadas vozes do passado  remoto ou mais próximo de nós. Estilisticamente, sua poesia é polifônica, não dispensando as raízes gregas mitológicas e poéticas (Homero) e ressonâncias que passam inegavelmente por Camões, Casimiro de Abreu, Castro Alves,  Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, os nossos  simbolistas, sobretudo Da Costa e Silva, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, entre outras vozes líricas, sem se falar nas contaminações, pela via da prosa de ficção (Miguel Cervantes), da Bíblia, para ficar só nestes exemplos de seu repertório de intertextualidades. 

Da mesma sorte, o substrato poético das vanguardas brasileiras deixou marcas significativas em Sonia Leal Freitas. Da tradição e das vanguardas soube extrair com  equilíbrio  e  lucidez  aquilo  que  lhe  será  decisivo  para  dar  forma,  sentido  e dimensão à modernidade do seu verso. Modernidade entendida como uma forma de inserir‐se no mundo dos nossos dias, com  todas as  suas enervações e perplexidades ante as forças da vida social que arrasam os resquícios dos valores da pessoa humana em estilhaços de individualismo mórbido, excesso tecnológico e tentativa de anulação das  subjetividades.  O  repto  da  artista  da  poesia  só  poderia  reduzir‐se  à  agonia existencial, à solidão e à arte como lenitivo. 

Um dado expressivo no seu verso é o peso qualitativo do seu domínio da  linguagem  e  mais  ainda  da  linguagem  literário‐poética.  Poucas  vezes,  me surpreendi  com poetas  cuja perfeição  e maestria no uso  da  arquitetura de poemas mantém uma regularidade de excelência tão constante quanto percebo nesta poetisa: 

        (...)           Mais tarde – quando já não despertar comigo  o redemoinho de ser humana. e    de não entender minhas razões e ansiedades, e  de por isso sofrer quando trago tanta beleza jorrada dos poros da terra - que  eu seja um ninho quente, numa árvore do caminho, 

para  onde voltar, à noite, os passarinhos, cheia de amor, cantando   de saudade. (“Amanheço”)8   Ora  buscando  a  tradição  nos  temas  e  na  própria  linguagem,  ora  se 

voltando para o experimentalismo de seus processos e técnicas de composição, Sonia Leal  Freitas  reitera  sua  atualidade  em  alguns  poemas  de magistral  elaboração,  nos quais  o  eixo  do  poema  se  concentra  nas  funções  poética  e  metalinguística  da formulação  jakobsoniana,  num  exemplo  de  maestria  formal‐semântico‐lúdica conseguida graças às lições bem assimiladas dos movimentos de vanguarda a partir do Concretismo de 56, segundo  já salientamos, sem contudo,      radicalismos estéreis ou pouco    eficazes.  São  exemplos  disso  os  poemas  “Mor‐  fologias”  (p.  157),  “Desvela‐mente”  (p.  79),  “Línguas‐agem”  (p.117).  São  poemas  de  grande  inventividade,  que merecem análise mais profunda. 

Recursos  comuns  de  viés  vanguardista  são  os  exemplos  nos  quais  a poetisa desarticula vocábulos, que, por isso, sofrem alterações semânticas ou caem no espaço da ambiguidade. 

Outro  recurso  digno  de  registrar  no  estro  da  poetisa  é  o  tratamento dispensado largamente por ela na criação da sua imagética. De resto, a metáfora nesta autora  se  apresenta  como  uma  das  forças‐motrizes  de  sua  poesia.  Seu  campo metafórico merece estudos especiais que extrapolam os limites destes comentários.  

Sua sintaxe espaçosa, muitas vezes de corte aristocrático, a  leva a um uso peculiar  aos poetas parnasianos,  simbolista,  sendo  igualmente encontradiço em Da Costa e Silva, a saber, o emprego do infinitivo antecedido de preposição quando, no português do Brasil, usamos a forma do gerúndio, o campo semântico constelado de vocábulos  de  alta  frequência  no  Simbolismo,  como  “catedral”,  “sangue”,  palavras maiusculadas, vocabulário litúrgico, “astros”, “Nada”, “siderais”, etc., etc. 

Um último aspecto que desejo ora levantar diz respeito a alguns temas de  sua poesia, e deles mencionaria: a  vida, encarada do prisma pessoal, o amor,   a  amizade,  a  família,    a    solidão,  a morte.  Esta  última  se manifesta  como  um  tema recorrente  e  com  uma  dimensão  que  me  parece  um  vaticínio.  Outro  tema acrescentaria:  a  terra  natal,  a  Natureza,  o  rio  Parnaíba,  as  injustiças  sociais,  o sinfronismo, a “ânsia de imortalidade,” os dois últimos tão presentes em quase todos os grandes poetas. 

Um pormenor final, no que tange à tematização de seus poemas e que aqui  pretendo  salientar  mais  uma  vez.  Sonia  Leal  Freitas,  a  despeito  de  todas  as contradições  ou  aporias  do  seu  estro,  torna  evidente  um  ponto  de  apoio  aos  seus problemas,  dores  e  aflições:  a  religiosidade,  sobretudo  nos  exemplos  vinculados diretamente  a  referências  do  velho  e  do  novo  Testamento.  Isso  lhe  será  refúgio  e tábua de salvação. Entretanto, a solução das angústias da condição humana, no plano pessoal da artista, é poetizada em amplo espectro de argumentação, contraditória ou não. 

Cada  tema  ventilado  se  manifesta  poeticamente  de  maneira cuidadosamente contida.   Por exemplo, ao poetar sobre o rio Parnaíba, ou sobre sua terra natal, como o  fizeram outros autores de sua  terra, sobretudo Da Costa e Silva, nos  poemas  belíssimos  “Rompe  a  trovoada  numa  cavalgada  imensa...”  (p.  279) “Regressos”  (p.235) “Memórias”  (p. 143), praticamente as notações topográficas não se dão pela nomeação direta, explícita. Há, sem dúvida, uma emoção estética, porém o 

tema  se  desdobra  de  forma  comedida,  sem  arroubos  nem  ostentações.  Em “Regressos”  (p.235),  o  verso  “escorre  entre  a  cantiga  de  dois  rios,”  o  poema  não nomeia o rio Parnaíba e o rio Poti, tanto quanto o Piauí não é claramente citado. Em “Memórias” acontece a mesma coisa.  Neste longo poema, retomam‐se referências da paisagem, do  telurismo, das pessoas queridas  (ambiente  familiar), da  terra natal da poetisa. Poema  rico de sugestões, aliando descrição à narração sobrepondo quadros distintos:  natureza,  vida  família,  novamente  natureza,  e  voz  autobiográfica,9 compondo memórias.  O  sujeito  lírico,  no  presente,  vai  ao  passado  da  infância  da autora que, por seu turno, torna‐se presente, mas um presente na memória de adulto, tal qual no poema de Manuel Bandeira, “Profundamente.” 10 A terra natal se vai pouco a pouco se configurando pelos nexos vocabulares  identificadores: “chapada”, o “rio”, as “reses,” o “pasto”, o “coqueiral,” os “cajueiros”, até culminar no sintagma “céus da minha  terra”.  Tudo  se  processa  no  poema  em  pequenos  quadros,  descritivos, narrativos ou na  retomada da  voz  subjetiva. Repete‐se  aí, em parte, o  tema do ubi sunt? bem presente no mencionado   poema bandeiriano. A poetisa, mais uma  vez, nesse  poema,  para  além  do  forte  lirismo, mantém  certa  discrição  no  extravasar  a saudade doída de seu torrão natal.  Não nomeia de imediato, prefere a emoção velada e silenciosa 

 3. CONCLUSÃO.  As  linhas  atrás  não  tiveram  a  pretensão  de  aprofundar  a  análise  da 

multiplicidade de ângulos que a poética de Sonia Leal Freitas está a merecer da parte da  crítica  especializada. Apenas  toquei  em  alguns  pontos  ou  tópicos  que  lograssem propiciar uma visão global da sua poética. Sua obra, pouco estudada ainda, se coloca, assim, como um desafio à argúcia dos estudiosos e pesquisadores da poesia brasileira.  Sua poesia, complexa em muitos planos, não só no domínio da linguagem, dos temas, da sua “retórica poética”, mas nos altiplanos da filosofia, da psicanálise, do estudo das influências nacionais ou estrangeiras sobre o seu verso, oportuniza um vasto território de sondagens e de arqueologias nos fundamentos da epistemé de seus processos de criação literária. 

O que não se pode omitir é a certeza de que sua voz poética acresce e dignifica, pelo seu elevado nível, a produção da poesia piauiense de todos os tempos e confortavelmente se posiciona no seleto grupo dos grandes líricos brasileiros. O cedro do Éden, pelo número grande de poemas nele reunidos, me dá a  impressão de estar diante  de  suas  “poesias  completas.”  Não  é  obra  de  estreia,  mas  de  consagração definitiva.   

  

       

NOTAS: 

                                                            1 NETO, Adrião. Escritores piauienses de todos os tempos: dicionário biográfico. Teresina: Halley, S. A., 1995, p.123. 2 FREITAS, Sonia. “O menino do Horto das Oliveiras”. In: Outros contos piauienses.Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1986, p. 49-52. 3 Ver FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 4 FREITAS, Sonia Leal. O cedro do Éden poesias. Fortaleza: S.M L.R., 2002, p. 153. 5 Idem, p. 11-12. 6 Idem, p. 21. 7 Consultar MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. 5º Modernismo. 3 ed. ver. e aumentada. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. Ver capítulos “Vanguardas”, p. 427=439., “Atualidade”, p. 513-517. Consultar também BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo; Cultrix, 2001. Ver a seção “Poesia ainda”, p. 485-488. 8 FREITAS, op. cit., p. 27-28. 9 Ao me referir à voz autobiográfica me apoiei em Alfredo Bosi, quando ele propõe, com muita lucidez , no estudo da poesia brasileira dos anos 70, três tendências dentre outras: “o discurso poético, a “fala autobiográfica” e o “caráter público e político da fala poética”, op. cit., p. 487. Creio que a poética de Sonia Leal Freitas engloba essas três tendências, sem querer aqui absolutizar esse enquadramento. 10 O tema do ubi sunt? é analisado com brilho por Davi Arrigucci Jr. na Terceira Parte, capítulo 7, seção 3, do seu estudo sobre Manuel Bandeira, Humildade, paixão e morte – a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo; Companhia de Letras, 1990, p. 217-225.