CORREA DUTRA. Três Camadas Da Relação Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    1/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    Trs camadas da relao entre quadrinhos e jornal 1

    Antnio Aristides Corra DutraMestrando em Comunicao pela ECO/UFRJ

    RESUMO :

    Joe Sacco um autor de histrias em quadrinhos que so verdadeiras reportagens. Elaslevaram a mdia a cunhar o termo jornalismo em quadrinhos. Mas Sacco forma apenas acamada mais visvel das relaes entre os quadrinhos e o jornalismo, que so bastante anti-gas e profundas. Numa segunda camada, aprofundando o universo temtico, encontrare-mos diversos outros autores, em diversas pocas, se dedicando a produzir reportagens gr-fico-seqenciais, sejam breves ou longas. E na terceira camada, abordada do ponto de vistaestrutural, veremos como a presena dos quadrinhos nos jornais foi determinante para a

    evoluo grfica de das duas linguagens. Conclumos ento que a discusso propiciada pelo trabalho de autores como Sacco podem no s ajudar a difundir a atual maturidadedos quadrinhos, como tambm nos ajudar a entend-la melhor.

    PALAVRAS-CHAVE:

    Quadrinhos; jornal; Joe Sacco.

    1 Trabalho apresentado no NP16 Ncleo de Pesquisa Histria em Quadrinhos, XXV Congresso Anual emCincia da Comunicao, Salvador/BA, 04 e 05. setembro.2002.

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    2/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    2

    Quando se pensa na relao entre quadrinhos e jornalismo, o primeiro nome a ser lem- brado o de Joe Sacco, destaque internacional do chamado jornalismo em quadrinhos.Mas Sacco apenas a pequena ponta desse iceberg, sua camada superior. Em outras cama-das abaixo da linha dgua, temos tanto o universo temtico das relaes entre quadrinhose jornalismo como a interseo grfica entre a pgina de quadrinhos e a do prprio jornal,

    mostrando que essas relaes so extremamente profundas e duradouras.

    1 camada: De repente, Joe SaccoJoe Sacco um jornalista especializado em conflitos internacionais. Seus livros-

    reportagem sobre a guerra entre palestinos e israelenses na Faixa de Gaza e sobre o massa-cre aos mulumanos na Bsnia lhe renderam prestgio, visibilidade, vrios prmios (comoo American Book Award ) e elogios de revistas e jornais como TIME , The New York Times,

    Washington City Paper , The Los Angeles Times Book Review, The Utne Reader , Details,alm de Folha de So Paulo, O Estado de So Paulo, Carta Capital .

    Suas reportagens, contudo, no ganham a forma de um texto jornalstico comum, masso plasmadas em imagens seqenciadas ajuntadas em pginas (como nesses gibis repletosde ratinhos falantes e moos testosteronizados metidos em fantasias colantes que tanto se-duzem crianas e adolescentes). E ao contrrio das revistas de super-heris americanas(que costumam ter 22 pginas), os livros de Sacco apresentam histrias longas.Gorazde tem 227 pginas e os dois volumes de Palestina tm, juntos, 282 pginas.

    Os livros de Joe Sacco resultam da unio eficiente de duas linguagens aparentementeto dspares: os quadrinhos e o jornalismo. E funcionam de forma extraordinria. As velhascategorias no podiam mais cont-lo e um novo nome teve que ser cunhado para definirseu trabalho: jornalismo em quadrinhos (comics journalism). Sacco pertence hoje ao res-trito grupo dos autores de histrias em quadrinhos reconhecidos e respeitados dentro e forade seu meio.

    E imaginar que um dos primeiros livros a fazer sentido nessa baguna seriauma histria em quadrinhos. ( Entertainment Weekly, sobre o livro Palestina )

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    3/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    3

    Um estiloO jornalismo vive de notcias. E poucas coisas rendem mais notcias que guerras e con-

    flitos nesse mundo belicoso em que vivemos. Das fotos de Robert Capa na Guerra CivilEspanhola cobertura da CNN na Guerra do Golfo, a imagem da guerra sempre esteve presente no imaginrio mundial do Sculo XX. Nosso novo milnio tambm recebeu seu batismo de fogo com os atentados ao World Trade Center e ao Pentgono e a conseqenteinvaso do Afeganisto sendo assistidos ao vivo em cadeia mundial.

    Muitos jornalistas se especializaram na cobertura de conflitos internacionais. E diver-sas so as formas utilizadas para fazer essas coberturas, entre as quais podemos citar: mat-rias de jornal, de revistas, programas de rdio e televiso, filmes, documentrios, livros,sites na Internet, CD-Roms, exposies de fotografias e histrias em quadrinhos. Nesteltimo tpico (um tanto inusitado para uma cobertura de guerra), o grande destaque inter-nacional so os livros em quadrinhos de Joe Sacco, Palestina uma nao ocupada, Pa-lestine in the gaza strip(indito em portugus) e rea de segurana Gorazde.

    Para criar suas histrias em quadrinhos, Joe Sacco fez opes muito acertadas, tantograficamente quanto narrativamente. Como principais caractersticas de seu trabalho, po-demos citar:a) Narrativa principal em primeira pessoa Os quadrinhos-reportagem de Sacco come-am e so conduzidos atravs do relato de sua prpria presena nos locais, conversandocom as pessoas. Ele tambm se desenha como um dos personagens em cena: um reprter-narrador. b) Tom confessional (de raiz autobiogrfica) Sacco segue a trilha dos quadrinhos alter-nativos dos anos sessenta e setenta, passando pelas confisses autobiogrficas indiscretasde Robert Crumb e pela crnica do cotidiano pessoal de Harvey Pekar. Nessas histrias, osautores costumam confessar suas fraquezas e limitaes, estabelecendo uma espcie de pacto de sinceridade com o leitor.c) Trao propositalmente descuidado O estilo de desenho de Joe Sacco, com seu traoesquemtico e suas hachuras desenhadas a mo, tambm remonta diretamente aos quadri-nhos underground, sobretudo ao trabalho de Robert Crumb, reconhecido como o papa do

    gnero. Este estilo se imps historicamente como uma espcie de grito de liberdade em

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    4/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    4

    relao aos quadrinhos bem-acabados da produo mais comercial, alm de se aproxima-rem tambm das charges de jornal, automaticamente associadas a um comentrio maiscrtico do cotidiano.

    d) Uso do preto e branco em detrimento da cor Quadrinhos em preto e branco somais baratos e rpidos de serem produzidos, permitindo afastar-se bastante da linha demontagem dos quadrinhos das grandes editoras. Mas o mais importante, no caso de Sacco, o impacto psicolgico do preto e branco. E aqui estamos no mesmo terreno da fotografia

    e do cinema, quando optam pelo preto e branco. Algum j disse que a realidade colori-da, mas o preto e branco mais realista.e) Personagens ligeiramente caricaturais em um cenrio realista Scott McCloud, emseu livro Desvendando os quadrinhos, prope que os desenhos realistas correspondem auma viso externa, fsica do mundo, enquanto um trao caricatural est a servio de umaviso interior, subjetiva, psicolgica. O trao de Sacco mais realista nos cenrios e ligei-ramente caricatural no tratamento das personagens. Seguindo o mesmo pensamento, o tra-o das personagens mais realista nas cenas dramticas e um pouco mais caricatural nascenas de intimidade ou de descontrao.f) Auto-representao mais caricatural que as outras personagens Uma espcie dederivao do item anterior. Como conseqncia, os leitores se identificam instintivamentecom a subjetividade da personagem do reprter-narrador. A caracterstica grfica maismarcante de sua auto-representao o fato de ele estar sempre de culos, com as lentesformando um vazio sem detalhes: seus olhos nunca so desenhados. Quando Sacco mos-trado de perfil, a regio dos olhos simplesmente sombreada com hachuras. Seu rosto como uma mscara de olhos vazados que ns, leitores, vestimos.

    Todos os itens acima convergem para a criao dessa aura de realismo humanista quetem se mostrado extremamente eficiente no jornalismo em quadrinhos de Joe Sacco. Essesitens no constituem uma frmula padro, mas to somente uma ente tantas combinaes possveis dentre as imensas possibilidades dos quadrinhos. E as alternativas so muitas:uso de cor ou PB; arte pintada; colorao a mo; colorao por computador; arte em linhassem hachuras; diferentes estilos de trao, seja mais caricatural, mais realista ou at mesmo

    expressionista; narrativa em primeira ou em terceira pessoa; texto com ou sem recordat-

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    5/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    5

    rios, com narrativa mais centrada na ao ou nos dilogos; narrativa mais verbal. Muitas emuitas e muitas possibilidades. A especificidade do trabalho de Sacco uma conseqnciadas pequenas decises que ele foi tomando pelo caminho.

    O falco malts

    Desde sempre, a humanidade se ocupa em fazer guerra, em discutir a guerra, em glori-ficar ou execrar a guerra. Ela permeia todas as nossas formas de produo cultural, dasufanistas esculturas de soldados gregos aos estarrecidos e estarrecedores olhos da me que

    perde o filho pequeno naGuernica, de Picasso. Os quadrinhos no fogem regra. Se deum lado o Capito Amrica, de Simon e Kirby, se alistou na Segunda Guerra para colabo-rar com o esforo contra o nazismo, de outro, Corto Maltese, de Pratt, atravessa os confli-tos em busca simplesmente de seu quinho de aventura. Enquanto soldados gregos se eter-nizam heroicamente emOs 300 de Esparta, de Miller, judeus so reduzidos a ratos sub-humanos em Maus, de Spiegelman. Em nosso artigoGuerra de papel publicado na revistaVoc/UFES (1998), defendamos a idia de que a capacidade de produzir obras de altaqualidade com um tema to espinhoso e delicado quanto a guerra uma prova de maturi-dade da linguagem dos quadrinhos. O trabalho de Sacco mais um argumento nessa luta.

    Nascido na Ilha de Malta, Joe Sacco passou a infncia na Austrlia e se formou em jornalismo nos Estados Unidos. Desde a universidade, j se interessava por quadrinhos.Comeou profissionalmente com HQs mais tradicionais, migrando depois para temas auto- biogrficos. Sua breve experincia como jornalista foi em uma revista de crtica de quadri-nhos, The comics journal . Aps sair da revista, Sacco vagou pela Europa durante quatroanos, enquanto publicava uma revista prpria,Yahoo, que durou seis nmeros. Nesta revis-ta, suas histrias autobiogrficas foram se impregnando de sua experincia de cronistaviajante, ganhando aos poucos um tom mais jornalstico. Sacco , por definio, um cida-do do mundo. Mas poderamos dizer que ele um malts com olhos de falco que conse-gue fazer emergir o humano, mesmo em situaes limite como a guerra. Sacco desenhahistrias em quadrinhos com temas jornalsticos ou autobiogrficos. Ou ambos. Gosta dese desenhar com os lbios de Mick Jagger, seu dolo.

    T quente ou t frio?

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    6/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    6

    Marshall McLuhan classificou como quentes os meios de comunicao de alta resolu-o ou densidade de informao e como frios os meios de baixa resoluo. Assim, o cine-ma quente, a televiso fria. A literatura quente, os quadrinhos so frios. Devido a sua baixa resoluo ou incompletude, os meios frios demandam uma maior participao e en-volvimento do pblico. Quando Joe Sacco molda suas reportagens em forma de histriasem quadrinhos, ele est agindo de acordo com essa premissa. E mais ainda, ao optar porum desenho com contornos duros, sem cor e com hachuras. Baixa densidade de informa-

    o solicitando uma participao mais intensa do leitor. Nas ltimas duas dcadas, temos presenciado uma verdadeira revoluo na rea dos

    quadrinhos, com uma ampliao tanto dos recursos tcnicos e grficos como dos temasabordados e das faixas de pblico atingidas. Grandes criadores esto atentos (e ativos) di-ante das enormes possibilidades grfico-narrativas dos quadrinhos como uma linguagemsofisticada, envolvente e sinttica. Essa revoluo um reflexo da maturidade dos quadri-nhos contemporneos.

    2 camada: No princpio era o jornalismoO que um texto jornalstico? No incio do Sculo XIX, essa pergunta seria respondi-

    da de forma simples e inequvoca: Texto jornalstico o texto que podemos ver estampadonos jornais, aqueles cadernos peridicos e descartveis impressos papel barato que divul-gam as notcias de nosso mundo. Simples assim.

    Mas as coisas mudaram bastante nesse meio tempo, sobretudo quando as tecnologiaseletro-eletrnicas entraram em campo, como o telgrafo, o telefone, o gravador de som, ordio, o cinema, a televiso, o computador e at mesmo um simples celular. E, se paraMcLuhan, a imprensa de tipos mveis inventada por Guttenberg descortinou para ns umagalxia, diante da Internet no podemos imaginar menos que incontveis universos parale-los, tanto em termos de alcance quanto de velocidade. Estamos apenas no limiar dessemultiverso.

    O pensamento jornalstico no se expandiu somente sobre essas novas tecnologias. Ve-lhos suportes tambm foram sendo apropriados, incorporados, modificados. Desde sempre,na verdade. No so poucos os jornalistas que optam hoje por publicar suas reportagens em

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    7/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    7

    forma de livro, mas se pensarmos no trabalho de Euclides da Cunha emOs sertes ou node Herdoto sobre as guerras greco-prsicas, veremos que esse princpio nem to inova-dor assim. Os cancioneiros medievais tambm iam de um reino a outro cantarolando novi-dades, como uma espcie detalk-show ambulante. J naquela poca, notcia era entreteni-mento. E o que eram os antigos cronistas viajantes da Amrica selvagem seno precursoresdos reprteres da National Geographic e do Discovery Channel ? O new journalism deTruman Capote e Tom Wolf, inclusive, fez tambm o caminho inverso e inundou o jorna-

    lismo tradicional de procedimentos tipicamente literrios.Hoje, todos os caminhos se cruzam e as fronteiras no so mais to claras. Gianfran-

    cesco Guarnieri levou para o palco a luta do movimento sindical brasileiro em Eles nousam brack-tie. peras antigas so relidas e transpostas para novos cenrios, comoO na-vio fantasma de Wagner, que, nas mos de Gerald Thomas, acontece imprensada conta oMuro de Berlim, entretecendo comentrios visuais sobre a histria do Sculo XX. E o que podemos dizer das canes de protesto perseguidas por nosso passado regime militar? Ouda Guernica de Picasso? Ou da fotografia de Sebastio Salgado? Ou do Capibaribe sem plumas de Joo Cabral de Melo Neto? Ou de nossa literatura de cordel? Qual, ento, o es- panto em algum fazer jornalismo em quadrinhos?

    Para alm de Joe Sacco

    Joe Sacco forou os suportes tradicionais dos quadrinhos e do jornalismo a tal ponto ede forma to bem sucedida e marcante que fez com que um novo nome fosse atribudo aoque ele faz: jornalismo em quadrinhos. Mas no podemos dizer que ele tenha inventado oconceito. Um pouco de histria talvez seja esclarecedor.

    Para lembrar os feitos do normando Guilherme, o Conquistador, foi bordado um longotecido (70 m) conhecido como aTapearia de Bayeux(Sculo XI). So imagens seqenci-ais associadas a textos breves estabelecendo uma narrativa. Em sntese, uma histria emquadrinhos reportando um fato. Em 1969, Gerard Blanchard j chamava aTapearia de Bayeux de reportagem bordada (reportage brod). No poderamos cham-la hoje dereportagem em quadrinhos? Outros exemplos bastante conhecidos de narrativas grfico-seqenciais de fatos histricos so aColuna de Trajano (Sculo II), onde uma faixa heli-

    coidal sobe pela coluna contando os feitos militares do imperador romano Trajano, e aCo-

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    8/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    8

    luna Vendme (1810), inspirada na coluna de Trajano, com a narrao em imagens dacampanha e da vitria dos franceses na batalha de Austerlitz.

    Os quadrinhos, do modo como os conhecemos hoje, explodiram como linguagem e sedisseminaram pelo mundo a partir do final do Sculo XIX, mas durante a primeira metadedo Sculo XX, seu campo temtico ainda se restringia quase exclusivamente ao humor e aventura. Os movimentos de contracultura dos anos sessenta e setenta alteraram radical-mente esse quadro. bem sabido como os bares da Califrnia foram inundados de autores

    de livros e quadrinhos vendendo seu prprio trabalho underground, fugindo das estruturasde produo e distribuio industriais em busca de uma maior liberdade de expresso. Essa prtica se alastrou pela juventude mundial como rastilho de plvora naqueles anos contes-tadores e incendirios. No Brasil da revolta contra a ditadura militar, a aclimatao gerouat uma verso tupiniquim do nome, udigrudi, corruptela de underground.

    A apropriao dos quadrinhos como parte desse processo contracultural no foi gratui-ta nem inofensiva. Ao contrrio, se revelou bastante estratgica. A literatura, o teatro, a pintura e as outras artes tradicionais sempre foram arena de debates e revolues, tantoestticas quanto ideolgicas. Enquanto isso, os quadrinhos se mantinham numa quase ab-soluta ingenuidade. Obviamente, como qualquer produto cultural, os quadrinhos tambmrefletem a ideologia de quem os produz, mas at os anos cinqenta essa ideologia aconte-cia mais no mbito do subliminar. Os quadrinhos underground desempenharam, ento, umduplo papel: de um lado, permitiram ampliar o leque de ferramentas a servio dos proces-sos revolucionrios; de outro, operaram uma inverso maliciosa de valores ao trazer hist-rias sujas, cruis e realistas para uma linguagem onde antes reinavam alegres bichinhosfalantes e exemplares e corajosos heris. No final das contas, esse fenmeno no se res-tringiu somente aos quadrinhos underground, projetando seus reflexos at mesmo sobre oconservador mercado de super-heris, como o Arqueiro Verde, que nas mos da duplaDenny ONeil (roteiro) e Neal Adams (desenhos) passou por alguns apuros mais sintoniza-dos com a realidade, como quando descobriu que o adolescente Ricardito, seu companhei-ro de aventuras, era viciado em herona (saga publicada no incio dos anos setenta).

    J nos anos oitenta, podemos citar Brought to Light e Maus como bons exemplos de

    jornalismo em quadrinhos. O livro Brought to light (1989), com duas histrias apresenta-

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    9/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    9

    das comoa graphic docudrama, uma das primeiras reportagens em quadrinhos nos mes-mos moldes das posteriores Palestina e Gorazde. A primeira histria, Flahspoint the La Penca bombing , com texto de Joyce Brabner e desenhos de Tomas Yeates, fala do envol-vimento da CIA no atentado para matar Eden Pastora, lder dos Contra, em 1984 na Nica-rgua e em outras aes na Amrica Latina. O texto e os desenhos seguem uma linha bemtradicional de docudrama e se baseiam em investigaes/testemunho dos jornalistas MarthaHoney e Tony Avirgan. Por outro lado, a segunda histria,Shadowplay the secret team,

    com texto de Allan Moore e desenhos de Bill Sienkiewicz, uma fantasia em tom de fbu-la que complementa a primeira. Em um bar decadente, uma guia americana antropomorfi-sada oferece seus servios patriticos de extrema direita enquanto relata alguns casos desucesso de suas aes na Amrica Latina. Os dados foram extrados da Declarao deEvidncia elaborada pelo Christic Institute. O desenho expressionista e cheio de ousadiasgrficas, um belo exemplo do trabalho de um artista ento no auge da fama. Aqui, o gra-fismo exacerbado fez com que a denncia investigativa soasse um pouco fantasiosa, masisso no significa que esse tipo de desenho seja inadequado ao jornalismo em quadrinhos, pois o jornalismo comporta abordagens completamente diversas entre si. Alguns anos maistarde, Sienkiewicz lanou Voodoo child , uma belssima biografia de Jimy Hendrix onde oaspecto lisrgico de seu desenho uma soluo extraordinariamente adequada para a hist-ria de um astro da gerao sexo, drogas e rock and roll.

    Maus a histria de um sobrevivente(1986-1992), com texto e desenhos de Art Spie-gelman, no uma reportagem investigativa tradicional como Palestina ou Brought tolight , mas a classificao como jornalismo plenamente cabvel. Sua narrativa, de teorautobiogrfico, se d em dois tempos. No atual, Spiegelman nos conta a difcil convivnciacom seu pai Vladek, um judeu mesquinho e pouco emotivo. No tempo passado, a narrativamostra a dura luta de Vladek para sobreviver em um campo de concentrao nazista. Odesenho segue a linha despojada dos quadrinhos underground, em sintonia com o textoautobiogrfico, recurso que seria depois seguido por Sacco. Maus rendeu a Spiegelman umPullitzer especial em 1992 (o prmio no prev a categoria quadrinhos), alm de se tornaro argumento-chave na demonstrao da maturidade atual da linguagem dos quadrinhos.

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    10/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    10

    Nos anos noventa, Sacco no foi o nico a misturar jornalismo e quadrinhos. Ao con-trrio dos cult/alternativos Sacco e Spiegelman, o roteirista e desenhista Joe Kubert umrespeitvel membro da grande indstria americana de quadrinhos comerciais. Desenhoudesde heris tradicionais como The Flash, Tarzan ou Homem-Gavio at histrias aventu-rescas de guerra como Sargento Rock e s inimigo. Sua escola, a Joe Kubert School ofCartooning and Graphics (aberta em 1976) formou e forma geraes de astros da indstriaquadrinstica americana. Kubert um standard da tradicional indstria americana de qua-

    drinhos, mas a dura realidade da Guerra na Bsnia invadiu seu trabalho atravs dos faxesenviados por seu amigo Erwin Rustemagic.

    Ervin um empresrio internacional e agente de arte de Sarajevo. Quando os tanquesinvadiram e isolaram a cidade, seu nico meio de contato com os clientes e amigos erauma mquina de fax, que usou para enviar centenas pequenas notas sobre o conflito e sualuta para manter a famlia viva. Kubert era um dos destinatrios dessas mensagens. Nassuas mos, elas viraram um livro de quadrinhos chamado Fax from Sarajevo a story of survival (1996), ganhador de diversos prmios americanos e internacionais. O que impres-siona especialmente em Fax from Sarajevo ver um grande domnio da tcnica narrativatradicional sendo usado para documentar um fato real.

    A palavra jornalismo ampla o suficiente para abarcar tanto os reprteres da CNNem campo de batalha quanto as revistas sensacionalistas que perseguem astros de Holly-wood cata de fofocas. Assim, no podemos restringir a idia de jornalismo em quadri-nhos a trabalhos nos moldes estritos de Joe Sacco. Ser que uma cartilha em quadrinhosfeita por uma associao de moradores denunciando um problema local da comunidadeno preenche os requisitos de jornalismo em quadrinhos? Para responder, s imaginar a pergunta de modo diferente: se esse mesmssimo contedo de denncia tivesse ganho aforma de um texto escrito apresentado no jornalzinho do bairro, ele seria jornalismo? Se aresposta da segunda pergunta for sim, a da primeira tambm dever ser.

    Assim como no jornalismo tradicional, as reportagens em quadrinhos podem ser pro-duzidas tanto para peridicos como para no-peridicos. A revista Details enviava quadri-nistas para fazer coberturas jornalsticas, dentre os quais o prprio Joe Sacco. Sua QH de

    seis pginas sobre os julgamentos dos crimes da Guerra da Bsnia em Hague, Holanda, ,

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    11/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    11

    portanto, uma reportagem em quadrinhos para um peridico. No caso especfico de Pales-tina, Gorazde, Maus, Brought to light e Voodoo child , o que temos no so reportagenscurtas como as de jornais e revistas, mas verdadeiros livros-reportagem. Edvaldo PereiraLima, em seu livro Pginas ampliadas o livro-reportagem como extenso do jornalismoe da literatura, diz que o livro-reportagem avana para o aprofundamento doconhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efmero damensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos de informao jornalstica.

    Esse aprofundamento dos temas apresentado pelo livro-reportagem o mesmo presente no jornalismo em quadrinhos quando desenvolvido em forma de livro, o que nos permiteclassificar as obras acima citadas como um tipo de livro-reportagem.

    3 camada: No princpio eram os quadrinhosMoacy Cirne, em A exploso criativa dos quadrinhos (1970), afirma que as razes me-

    talingsticas, polticas, sociais e econmicas dos quadrinhos se formam e se projetam no

    espao-tempo grfico das revistas e jornais. Mais frente, ele reitera: os quadrinhos nas-ceramdentro do jornal que abalava (e abala) a mentalidade linear dos literatos. Na po-ca, Cirne, assim como a grande maioria dos tericos, situava a origem dos quadrinhos narivalidade dos grandes grupos jornalsticos do final do Sculo XIX ancorada pelo desen-volvimento tecnolgico da indstria editorial. Hoje, essa data aceita como um momentocrucial de transformaes na linguagem dos quadrinhos modernos, mas no mais como suareal origem. A premissa de Cirne, contudo, continua precisa e indispensvel, pois desdemuito antes os cartuns e os quadrinhos j evoluam quase sempre em uma verdadeira sim- biose com as pginas dos jornais. Desde o Sculo XVIII que os jornais tm charges, car-tuns e at mesmo quadrinhos. A charge inglesa desse perodo, inclusive, j tinha at balo.E desde ento, praticamente no h jornal no mundo sem seus cartunistas. Angelo Agosti-ni, o italiano que trouxe os quadrinhos para o Brasil, publicava suas HQs em jornais em plena metade do Sculo XIX. Desde o incio do Sculo XX, todo grande jornal tem suaseo de tirinhas de quadrinhos, suas charges e suas caricaturas. Muitas vezes, a chargevale por um editorial e vem em destaque na primeira pgina. Alm disso, os ilustradores

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    12/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    12

    das matrias jornalsticas freqentemente constroem pequenas narrativas em quadrinhos para fazer a reconstituio de crimes ou outros acontecimentos.

    A relao entre o design dos jornais e as charges, caricaturas e quadrinhos fica maisclara quando lembramos que muitas vezes os chargistas eram tambm os prprios diagra-madores dos jornais que ilustravam. Nos jornais menores, sobretudo os satricos, costumahaver uma verdadeira preponderncia da imagem sobre o texto, mas os grandes jornaistambm se valem da ilustrao e da diagramao para alavancar as vendas. Em Jornal,

    histria e tcnica, Juarez Bahia ressalta a importncia do peso informativo dos elementosvisuais no jornal. Segundo ele:

    A caricatura, que se define como reportagem grfica do trao de humor aodesenho que documenta um fato , lana os jornais e revistas numa espcie de passarela da fama. Quanto maior o espao, mais notoriedade, mais popularidade. ( Bahia, juarez. Jornal, histria e tcnica)

    Nossos grandes caricaturistas e cartunistas como Manuel de Arajo Porto Alegre, An-gelo Agostini, Vera Cruz, Rafael Bordalo Pinheiro, J. Carlos, Belmonte, Nssara, Pricles,

    Millr, Jaguar, Ziraldo, Henfil, Paulo Caruso e Chico Caruso (entre tantos outros) extrapo-lam completamente o status de simples ilustradores. Seus nomes so destaque na prpriahistria do jornalismo brasileiro.

    Pensamento grfico

    Os quadrinhos e o jornal tm uma relao muito mais profunda do que pode parecer primeira vista. Essa relao no unicamente histrica, ela chega tambm ao nvel estrutu-ral. Um autor de quadrinhos pega a sua histria, divide em partes e dispe cada uma dessas

    partes em um quadro com sua imagem e textos necessrios. Esses quadros so justapostos,so ajuntados lado a lado nas pginas. Algumas vezes, o autor colocar um nico ou uns poucos quadros por pgina, outras vezes, vrios quadros menores. O leitor, por sua vez, aoler esses quadros, vai reconstituindo, pouco a pouco, a histria narrada. Ora, no assimtambm que se faz um jornal? Os jornalistas dividem os acontecimentos em partes, que sotrabalhadas em matrias, com o texto e as imagens necessrias. Depois, juntam essas partesem pginas, compondo esse objeto que chamamos jornal.

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    13/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    13

    Em ambos os casos, a pgina constitui uma espcie de diagrama espao-temporal (oespao-tempo grfico de Cirne). Tanto a pgina dos quadrinhos quanto a do jornal umaconfigurao espacial (bidimensional) que se articula com o tempo do objeto dessa repre-sentao. No caso dos quadrinhos, se articula com a fluidez temporal da histria narrada(cada aqui na pgina um agora da linha cronolgica da narrao). No caso do jornal,se articula com a condensao temporal do agora do mundo, suas causas e conseqncias(cada aqui na pgina uma faceta ou aspecto do agora do mundo).

    O pensamento grfico do jornal e o da revista em quadrinhos fundamentalmente omesmo: o objeto do discurso retalhado em unidades menores dispostas em pginas. Masduas so as diferenas fundamentais. A primeira, quanto ao objeto do discurso, que na re-vista em quadrinhos quase sempre uma histria a ser narrada e no jornal essa coisa quechamamos vagamente de cotidiano ou realidade. A segunda diferena quanto ao pro-cesso de leitura. As matrias (mdulos grfico-estruturais do contedo do jornal) podemser lidas fundamentalmente em qualquer ordem ou quantidade. Os quadros de uma HQ, aocontrrio, devem ser todos lidos e, salvo rarssimas excees, lidos em uma ordem pr-determinada.

    Essas diferenas so suficientemente claras e evidentes para que ningum pretenda a-firmar que uma revista em quadrinhos e um jornal so a mesma coisa. Contudo, o fato dese articularem sobre um mesmo pensamento grfico muito significativo. Se considerar-mos o fato de que tanto os quadrinhos quanto o jornal, do modo como os conhecemos, te-rem evoludo quase sempre juntos desde o Sculo XVIII, veremos que esse pensamentogrfico em comum no mera coincidncia. Ele foi sendo conquistado por essa parceriaentre quadrinhos e jornal.

    Quadrinhos e jornal

    No Sculo XVIII, os primitivos quadrinhos de ento estavam apenas iniciando sualonga jornada em direo sofisticao tcnica moderna. O aspecto grfico de uma pginade jornal tambm era um simples amontoado de textos. O Sculo XIX (palco de grandestransformaes sociais decorrentes da Revoluo Francesa e das revolues cientfico-industriais) testemunhou tanto a gestao dos quadrinhos modernos quanto o alastramento

    dos jornais pelo mundo e seu desenvolvimento tcnico e grfico. Na virada do Sculo XIX

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    14/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    14

    para o XX, muitos jornais eram j verdadeiros imprios comerciais enquanto as grandesestrelas dos quadrinhos eram disputadas a peso de ouro. Algumas personagens foram obje-to de processos judiciais milionrios, como o Yellow Kid ou os Sobrinhos do Capito. OSculo XX viu os quadrinhos se descolarem dos jornais com a criao das revistas especi-ficamente de quadrinhos (uma evoluo dos antigos suplementos dominicais dos jornais).Mas a relao entre quadrinhos e jornais sempre continuou e continua forte. Muitos jornaisficaram permanentemente marcados por seus cartunistas/quadrinistas. Algum consegue

    imaginar o antigo Pasquim sem o Sig, o ratinho do Jaguar?Hoje os quadrinhos se desenvolveram e esto se afirmando como uma linguagem

    completa e independente. Mas eles nunca abandonaram totalmente os jornais. Grandestrabalhos de quadrinhos continuam sendo criados especificamente para jornais, como ainesquecvel Mafalda, de Quino, os irreverentesCalvin e Haroldo, de Bill Watterson, ointeligente e divertido Non sequitur , de Wiley, ou a inesquecvel R Bordosa, de Angeli. Eem Avenida Brasil(Isto ), Paulo Caruso faz histrias em quadrinhos curtas (mas cheiasde atitude poltica) em cima de fatos marcantes do cotidiano poltico nacional. A surpresa, portanto, no que algum tenha resolvido fazer reportagens longas em quadrinhos. O queespanta : por que demorou tanto?

    Uma concluso (a quem interessar possa)A pergunta mais imediata sobre o jornalismo em quadrinhos : isso realmente um

    novo gnero que ter seguimento ou apenas um estilo pessoal que ficar restrito s obrasde Joe Sacco? A julgar pelo fato de que o trabalho de Sacco no ter surgido do nada, masser uma evoluo de vrias experincias anteriores de outros autores, d para supor queessa prtica continuar interessando a outros autores. Essa pergunta, contudo, s pode serrespondida com conjecturas, pois ainda no d para se garantir que reportagens longas emquadrinhos viro a ser realmente comuns ou freqentes.

    No no futuro do jornalismo em quadrinhos que esto as mais importantes questesde sua existncia, mas em seu presente. Por exemplo: essa categorizao, jornalismo emquadrinhos, deve ser entendida como uma subcategoria do jornalismo ou como uma sub-

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    15/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    15

    categoria dos quadrinhos? Ou de ambos? Ou de nenhum? E qual a importncia dessa clas-sificao?

    primeira vista, nos parece que essa nova nomenclatura serve fundamentalmente paraa crtica literria ou jornalstica ter parmetros para julgar ou comentar esses livros. A m-dia costuma ter dificuldade em analisar algo novo, que no se enquadre em categorias pr-existentes. Classificar a produo de Sacco (criando uma nova categoria) uma maneira dedom-la, de digeri-la, de se livrar dela, de abandon-la em um canto mais confortvel das

    coisas que tm um nome.H tambm o fator mercadolgico. O mercado americano de publicaes extrema-

    mente setorizado. Jornais e revistas de notcias so vendidos em bancas de jornais. Revis-tas em quadrinhos so vendidas em lojas de quadrinhos. Livros so vendidos em livrarias.Quem compra somente livros no freqenta uma loja de quadrinhos. As lojas de quadri-nhos so freqentadas fundamentalmente por crianas, adolescentes e jovens, quase nunca por adultos instrudos. Neste cenrio, produzir uma obra em quadrinhos para esse pblicoadulto requereu um certo redimensionamento mercadolgico. Essa mudana de parmetroscomeou sutilmente nos anos sessenta com os autores dos quadrinhos underground ven-dendo sua produo de mo em mo e tomou corpo em 1978, quando Will Eisner publicouUm contrato com Deus em forma de livro e o ps para vender em livrarias ao invs de lo- jas de quadrinhos.

    Mas ele no conseguiu fazer isso assim, sem mais nem menos. Para convencer uma e-ditora a public-lo, ele disse que havia inventado um novo tipo de linguagem, batizada deromance grfico ou graphic novel (no original em ingls). Desde ento, vrias HQs lon-gas e auto-contidas foram lanadas como livro no mercado americano, sob a reconfortantechancela de graphic novel . Essa terminologia foi, para eles, estrategicamente indispens-vel, pois em ingls, as histrias em quadrinhos so chamadas decomic stories. No d paraimaginar que uma histria dramtica e comovente como Maus, de Art Spiegelman, porexemplo, pudesse ser levada a srio pela imprensa sendo chamada de histria cmica.Como graphic novel , ela rendeu a Spiegelman um Prmio Pulitzer, abrindo as portas parauma maior visibilidade e aceitao dos quadrinhos como uma linguagem adulta.

    Abre-te, ssamo

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    16/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    16

    Uma mudana de nome permitiu a Eisner atingir o pblico adulto, vendendo seus qua-drinhos em livrarias. Essa mudana de nome tambm permitiu a Spiegelman ter sido lido pelas pessoas certas, que puderam reconhecer em seu trabalho qualidades suficientes paralhe conferir um prmio Pulitzer. Nomes so senhas, so passaportes ou, como se diz emingls, so passwords, passapalavras. Nomes so senhas que movem pedras e nos permi-tem trilhar novos caminhos, como aquele abre-te, ssamo das mil e uma noites.

    Como pudemos ver, o jornalismo em quadrinhos ajudou a ampliar um pouquinho mais

    as fronteiras das possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Joe Sacco um entre osmuitos autores que esto fazendo experincias em vrias direes diferentes, testando eexpandindo os limites da linguagem das HQs. No caso de Sacco, em direo ao jornalismo.

    A criao do termo jornalismo em quadrinhos, por outro lado, ajudou a ampliar o es- pao que as HQs tm na mdia, aumentando sua visibilidade junto ao pblico. Password , passaporte, passafronteiras. Pois a guerra que os quadrinhos tm travado nos ltimos vinteanos tem sido a de deixar de ser vistos como um gnero menor e se impor definitivamentecomo uma linguagem completa, autnoma e sofisticada. O cinema tambm era menospre-zado na primeira metade do sculo, mas venceu essa guerra. A dos quadrinhos ainda estem curso e muitas tm sido as pequenas, porm importantes vitrias.

    Tanto o jornalismo quanto os quadrinhos avanam sobre os terrenos vizinhos em buscade novos horizontes, mas a rea de contato estabelecida entre os dois no constitui umazona litigiosa. Ao contrrio, ambos saram ganhando: o jornalismo conseguiu ver maishumanizado um tema to espinhoso quanto os conflitos internacionais e os quadrinhosconseguiram ser vistos com mais respeito e reverncia pelo pblico e pela mdia. Isso nosleva a uma pergunta que talvez seja a mais estratgica nesse momento precioso onde auto-res como Eisner, Spiegelman e Sacco conquistam respeitabilidade em uma linguagem ain-da to subestimada. A quem interessar possa: Que outras vantagens em favor dos quadri-nhos podem ser obtidas de situaes como esta?

    Bibliografia

  • 7/25/2019 CORREA DUTRA. Trs Camadas Da Relao Entre Quadrinhos e Jornal (2002)

    17/17

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    XXV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Salvador/BA 1 a 5 Set 2002

    17

    BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica histria da imprensa brasileira. So Paulo:tica, 1990.

    BLANCHARD, Gerard. La bande dessine Histoire des histoires em images de la prhistoire nos jours. Verviers: Marabout Universit, 1969.

    CIRNE, Moacy. A exploso criativa dos quadrinhos. Petrpolis: Vozes, 1970.CLARK, Alan e CLARK, Laurel.Comics uma histria ilustrada da B.D. Sacavm: Dis-

    tri Cultural, 1991.

    DUTRA, Aristides.Guerra de papel in: Voc/UFES, n 53. Vitria: SDPC/UFES, 1998.McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. So Paulo: Makron, 1995.PERRY, George e ALDRIDGE, Alan.The Penguin book of Comics. Middlesex: Penguin

    Books, 1971.SACCO, Joe. rea de segurana Gorazde a guerra na Bsnia Oriental 1992-1995.

    So Paulo: Conrad, 2001.SACCO, Joe. Natal com Karadzic. In:Comic Book o novo quadrinho norte-americano.

    So Paulo: Conrad, 1999.SACCO, Joe. Palestina uma nao ocupada. So Paulo: Conrad, 2000.SACCO, Joe. Palestine in the Gaza Strip. Seattle: Phantagraphics Books, 1996.

    Sites

    Conrad Editora www.conradeditora.com.br Drawn & Quaterly www.drawnandquarterly.com El Archivo de Nessus www.archivodenessus.com Fantagraphics Books www.fantagraphics.comUniverso HQ www.universohq.com