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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia 14º SNHCT Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 Corpo escravizado: diferentes olhares e discursos médicos. Iamara da Silva Viana O corpo escravizado fora objeto de diferentes usos por agentes sociais e políticos diversos, evidenciando os múltiplos olhares acerca do mesmo. Neste trabalho, apresentamos uma reflexão sobre a questão tendo por base as proposições do médico francês Jean-Baptiste Alban Imbert e do médico brasileiro David Gomes Jardim, na primeira metade do século XIX. Objetivamos discorrer sobre suas proposições relativas ao corpo e doença, repensar o termo raça e o modo como o mesmo era aplicado a partir das visões médicas, estrangeira e brasileira. Para tanto, utilizaremos o Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades dos Negros escrito em 1839 por Imbert, e a tese defendida por Jardim na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1847, intitulada Algumas Considerações sobre a Hygiene dos escravos. Nesse sentido, cabe-nos mencionar que na primeira metade dos oitocentos, os corpos escravizados foram utilizados no espaço urbano como escravo ao ganho, carregadores, marceneiros, pedreiros, vendedores. No rural, trabalhadores domésticos, como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, rendeiras, amas de leite e, principalmente, como agricultores. A demanda pelo café, principalmente pelos Estados Unidos a partir de 1830, alavancou a produção no Vale do Paraíba Fluminense possibilitando aumento considerável do número de escravizados nas fazendas. Contudo, a partir de 7 de novembro de 1831 a entrada destes trabalhadores passou a ser considerada ilegal se realizada entre continentes, como mencionado no artigo 1º. da lei: “todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fora, ficam livres” (BRASIL, 1831). A crescente necessidade por mão de obra escravizada nas fazendas que aumentavam sua produção para atender a demanda externa, criou diferentes formas de burlar a lei. Afinal, nas duas décadas que seguiram a sua promulgação, aproximadamente mais de 750 mil negros “foram introduzidos no território nacional por contrabando, permanecendo ilegalmente escravizados, assim como seus descentes Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ.

Corpo escravizado: diferentes olhares e discursos médicos

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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

Corpo escravizado: diferentes olhares e discursos médicos.

Iamara da Silva Viana

O corpo escravizado fora objeto de diferentes usos por agentes sociais e políticos

diversos, evidenciando os múltiplos olhares acerca do mesmo. Neste trabalho,

apresentamos uma reflexão sobre a questão tendo por base as proposições do médico

francês Jean-Baptiste Alban Imbert e do médico brasileiro David Gomes Jardim, na

primeira metade do século XIX. Objetivamos discorrer sobre suas proposições relativas

ao corpo e doença, repensar o termo raça e o modo como o mesmo era aplicado a partir

das visões médicas, estrangeira e brasileira. Para tanto, utilizaremos o Manual do

Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades dos Negros escrito em 1839

por Imbert, e a tese defendida por Jardim na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

em 1847, intitulada Algumas Considerações sobre a Hygiene dos escravos.

Nesse sentido, cabe-nos mencionar que na primeira metade dos oitocentos, os

corpos escravizados foram utilizados no espaço urbano como escravo ao ganho,

carregadores, marceneiros, pedreiros, vendedores. No rural, trabalhadores domésticos,

como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, rendeiras, amas de leite e, principalmente,

como agricultores. A demanda pelo café, principalmente pelos Estados Unidos a partir

de 1830, alavancou a produção no Vale do Paraíba Fluminense possibilitando aumento

considerável do número de escravizados nas fazendas. Contudo, a partir de 7 de

novembro de 1831 a entrada destes trabalhadores passou a ser considerada ilegal se

realizada entre continentes, como mencionado no artigo 1º. da lei: “todos os escravos,

que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fora, ficam livres” (BRASIL,

1831).

A crescente necessidade por mão de obra escravizada nas fazendas que

aumentavam sua produção para atender a demanda externa, criou diferentes formas de

burlar a lei. Afinal, nas duas décadas que seguiram a sua promulgação,

aproximadamente mais de 750 mil negros “foram introduzidos no território nacional por

contrabando, permanecendo ilegalmente escravizados, assim como seus descentes

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro / UERJ.

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(CHALHOUB, 2012: 30). Ainda que inicialmente a questão pudesse ser satisfatória, um

problema pretérito ainda se fazia presente, qual fosse, o alto índice de mortalidade

escrava. Fatores diversos causavam o óbito precoce desses trabalhadores tais como,

alimentação inadequada, vestuários, higiene, trabalho à exaustão. Segundo Jacques Le

Goff o corpo tem uma história, diferentes histórias, posto que um mesmo corpo interage

e transita em diferentes espaços. E qual seria a história destes corpos escravizados na

primeira metade do século XIX?

Em se tratando dos escravizados, a preocupação com seus corpos iniciava-se

ainda na África continuando na chegada ao porto até o cotidiano das fazendas. Muitos

morriam ainda em alto mar, outros tantos adoeciam. Para o fim a que se destinavam

deveriam apresentar-se sadios e propícios para o trabalho. A apreensão com as inúmeras

perdas tinha por fundamento o alto índice de mortalidade e moléstias desenvolvidas.

Somente no Rio de Janeiro morreram quase dois mil e oitocentos escravizados entre os

anos de 1840 e 1849 (KARASCH, 2000: 144). Jean-Baptiste Alban Imbert defendia tão

alto número posto que o negro destinado a viver nos trópicos e a suportar seu clima

quente “vê seu corpo submettido a toda sua influencia, e he por isso mais exposto ás

enfermidades (...)” (IMBERT, 1839: 18-19). Na concepção de Imbert a origem do negro

e do clima do antigo território favorecia o desenvolvimento de moléstias, definia assim,

uma das diferenças entre estes e os nascidos no Continente Europeu de clima mais

temperado.

Em pesquisa realizada no município de Vassouras entre os anos 1840 e 1880

contabilizamos 6.722 mortos no livro de Óbitos desta Freguesia. Destes, 3.562 eram

livres, sendo 3.412 nascidos livres (95,78%) e 150 libertos e forros (4,22%). O livro

paroquial de óbitos de escravos teve como registro o quantitativo de 3.1601. Vulneráveis

as condições do clima como indica Imbert, a pouca vestimenta, alimentação inadequada,

pouca higiene, facilmente eram levados ao óbito prematuro. As doenças que acometiam

os escravizados eram variadas, entretanto, as que correspondiam ao grupo das infecto-

parasitárias respondiam pelo maior quantitativo de falecimentos como aponta a tabela 1.

Tabela 1 - Doenças de escravos listadas nos Registros Religiosos e nos Inventários de proprietários.

1 Dados obtidos na pesquisa de Mestrado realizada em Vassouras no Centro de Documentação

Histórica. Foram analisados os livros de óbito de livres/libertos e de escravos.

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Grupo de Moléstias Livros de Óbitos %* Inventários %*

Infecto-parasitárias 60 21.51 50 2.44

Sistema Circulatório 31 11.11 12 0.58

Sistema Digestivo 12 4.30 9 0.44

Sistema Nervoso 22 7.89 2 0.10

Sistema Respiratório 24 8.60 43 2.10

Osteomuscular 4 1.44 51 2.48

Causas Violentas / Defeitos diversos 14 5.01 963 46.97

Fonte: Registros de Óbitos de escravos e Inventários post mortem, 1840-1880. CDH.

*Percentuais calculados com base nos totais de cada fonte para cada grupo de doenças.

A tabela acima demonstra questão relevante posto que, nos Registros de Óbito

paroquiais, as doenças infecto-parasitárias foram as mais significativas, todavia, nos

Inventários de proprietários são as Causas Violentas que apresentam número elevado:

quase metade do total dos escravizados arrolados. Provavelmente, muitos cativos

morriam destas, mas nem sempre ocorria o devido registro. Contudo, no caso dos bens

inventariados, tais causas correspondiam à diminuição do patrimônio, tendo em vista a

diminuição do valor da propriedade escrava. Da mesma forma, incidia na redução da

mão de obra na produção do café.

Sendo mais propício à enfermidades e com a sua possível extinção, o corpo

escravizado parece receber maior atenção após 1831. Mais do que burlar a lei era

necessário garantir maior sobrevida aos mesmos. E aqui, os discursos médicos ganham

espaço, bem como a tentativa de fazendeiros em proporcionar atendimento aos doentes.

De forma que, nos foi possível localizar nos inventários post mortem de proprietários

em Vassouras referência a 5 barbeiros escravos na década de 1840. Nenhuma escrava

teve ofício referente a tratamento de doenças ou cura relacionado a seus nomes. Para os

anos entre 1850 e 1880 verificamos a existência de 11 barbeiros, 8 enfermeiros e 1

servente de enfermaria. Entre as escravas para o mesmo período, identificamos 3

enfermeiras e 2 parteiras (VIANA, 2009: 44-46). Provavelmente as fontes indiquem que

o discurso médico científico postulado a partir de 1830 sobre imperativa urgência de

melhores cuidados com os escravizados, tenha de fato sido interiorizado pelos

proprietários rurais nas décadas seguintes.

A medicina no início do século XIX utilizava esse mesmo corpo para ampliar

conhecimentos por meio do estudo de enfermidades e principalmente por meio das

necropsias, mencionadas nos Anais do Semanário de Medicina do Rio de Janeiro e nas

teses médicas defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na visão dos

médicos do Semanário, “O saber he pois essencial, e indispensavel no bom Medico, e

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melhor Medico se reputa aquelle que he mais instruído, quer pelo estudo, quer pela

experiência” (SEMANÁRIO, 1831). Experiência construída com a prática garantida a

partir do estudo do corpo doente e do cadáver como no caso de “Felippa Maria do

Nascimento, preta forra de idade de cincoenta annos pouco mais ou menos, de huma

constituição assaz deteriorada a bebidas alcoholisadas”, que estando doente há oito dias

foi levada a presença do Senhor José Antonio de Carvalho cirurgião assistente. Felipa

diagnosticada com “Febre Intermitente Perniciosa Cerebral” falece e o estudo de seu

corpo foi descrito em ricos detalhes pelo médico em questão, registrado em 15 de junho

de 1829 e publicado em 21 de outubro de 1830 (SEMANÁRIO, 1830: 10).

Dessemelhante do corpo branco e europeu, o corpo escravizado e africano ou

crioulo fazia jus a cuidados especiais. Conhecê-lo tornar-se fundamental para boa

compra, esta entendida como vida útil dilatada e, principalmente, sem o

desenvolvimento de doenças. Reconhecer traços físicos e defeitos possibilitava não

errar, adquirir escravos que garantiriam mão de obra e lucros.

As grandes fazendas do Vale do Paraíba Fluminense utilizavam em ampla escala

tal força de trabalho exaurindo ao máximo o lucro esperado. E a partir da lei que punha

fim ao tráfico transatlântico, o aumento do preço do cativo incidiu diretamente na forma

do tratamento dado aqueles trabalhadores. No caso da medicina, alguns médicos

tentavam “instruir” fazendeiros a cuidar de seu plantel, de sua propriedade, pois dela

dependia para permanecer no seu status quo. Instruir significava demonstrar aspectos do

corpo humano e de como intervir em casos de fraturas, sangramentos, febres, dentre

outros males. Nesse sentido, apresentamos uma reflexão sobre tais questões a partir da

visão de dois médicos: um estrangeiro, outro brasileiro.

Os médicos: Jean-Baptiste Alban Imbert e David Gomes Jardim.

Jean-Baptiste Alban Imbert, já mencionado acima, chegou ao Império do Brasil

no ano de 1831, o mesmo em que a Lei de sete de novembro pôs fim ao Tráfico

Transatlântico. Doutor em Medicina pela Faculdade de Montpellier na França teve seu

diploma reconhecido e confirmado pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro, por

meio da lei de 03 de outubro de 1832. Fora aceito como membro titular pela Academia

Brasileira de Medicina em 15 de outubro de 1835, com o nome abrasileirado de João

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Baptista Albano Imbert. Da mesma forma, foi membro honorário da Sociedade Real de

Medicina de Marseille e membro efetivo das Sociedades Auxiliadoras da Indústria

Nacional, e literatura do Rio de Janeiro e Cirurgião Ajudante Maior da Marinha

Imperial Francesa (IMBERT, 1839: 16).

Teve publicadas as obras: Ensaio higiênico sobre o clima do Rio de Janeiro

(1837); O Charlatanismo: uma palavra sobre o charlatanismo e os charlatães (1837) e

o Guia médico das mães de família ou A infância considerada na sua hygiene, suas

moléstias e tratamentos (1843). Para esta reflexão utilizamos a segunda edição do

Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades dos Negros,

generalizado às necessidades médicas de todas as classes. Edição aumentada em um

volume, publicada em 1839 pela Tipografia Nacional do Rio de Janeiro. Este, composto

por uma introdução, dez títulos e quarenta capítulos, todos organizados por seções ou

classes, totalizando 688 páginas. Para Imbert, o escravizado era vítima de alto número

de doenças por que:

Pelo que temos dito he facil conceber-se, que homens sem vínculos sociaes

na terra, mal nutridos, mal vestidos, expostos a todas as injurias do ar,

sujeitos a hum trabalho quasi continuo, entregues demasiadamente á

inclinação de prazeres grosseiros, e de licores fortes, não podem conservar

sua saúde. Por isso nota-se que elles não resistem longo tempo; molestias os

assaltão, e hum tratamento, quasi sempre mal entendido, dão cabo de seus

dias (IMBERT, 1839: XXI).

Esse corpo africano ou crioulo, preto ou pardo, escravo ou liberto não era visto

como igual. A sociedade escravista imperial criava, na medida em que a miscigenação

se desenvolvia, diferentes formas de hierarquização. Existiam duas raças: a branca e a

negra segundo Imbert (1839: XVIV), e o olhar da medicina utiliza tal fator para

entender as diferentes moléstias que causavam mortes prematuras. Como apontado na

citação acima, as causas para uma vida tão curta era o “estado da atmosfera”; a má

alimentação, causa de “indigestões, saburras, languidez na assimilação, e todas as

enfermidades da pobreza”; o uso da cachaça que “produz gastro-interites, ou irritações

do tubo digestivo, scirros no estomago” e privação das “poucas faculdades intellectuaes

que possue”; a libertinagem e a preguiça, determinante nas “enfermidades

condemnando os orgãos á inacção” (IMBERT, 1839: XX-XXI). E condição precípua

para este médico no tratamento de qualquer doença era conhecer o corpo.

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Observar o corpo escravizado no momento da compra ofereceria garantias de

cativos saudáveis, que não desenvolvessem doenças futuras. Imbert ensinava que,

tendo o cativo tumores, “mormente sob a queixada”, era sinal de “afecção escrofulosa”,

fatores que poderiam indicar o desenvolvimento de tísica, ou tuberculose, como era

mais conhecida. No caso das hérnias, atentar “que o baixo ventre não seja saliente, nem

o embigo mui volumoso (...)”. Se a preocupação fosse adquirir bons trabalhadores

instruía: “os negros da Costa do Ouro são reputados os melhores escravos, e são, á

excepção dos Minas, estatura regular, fortes, bons trabalhadores, sobrios, e orgulhosos:

o Mina he alto, bem conformado, e de aspecto altivo” (IMBERT: 1839: 2). Preocupou-

se o médico em descrever minuciosamente a anatomia humana, embora soubesse da

dificuldade da tarefa a qual se dispunha. Escrevera assim, de forma didática

viabilizando um conhecimento básico sobre o corpo, o moral, principais doenças e

tratamentos viáveis para cuidar dos escravizados. Segundo ele:

(...) por huma instrucção propria a dirigir os Proprietarios distantes de todo

o soccorro, no tratamento das enfermidades dos negros, de seus

estabelecimentos. Havemos percebido, que para alcançar o fim a que nos

propomos, era preciso clareza nos princípios, simplicidade nos meios, e

pormo-nos ao alcance das pessoas, para quem mais particularmente

escrevemos. A nossa linguagem será por tanto, o mais que nos fôr possivel ,

clara e precisa; limitar-nos-hemos a percorrer a classe das enfermidades, a

que os negros são mais especialmente expostos. Se conseguirmos

desempenhar convenientemente a nossa tarefa, cuja difficuldade assas

conhecemos, ser-nos-ha permittido entregar-nos á satisfação de nosso

coração, como primeira recompensa de hum util trabalho (IMBERT, 1839:

3-4).

Indicou tratamentos com plantas locais, ensinou como limpar uma ferida

adequadamente, estancar o sangue em caso de cortes profundos e até mesmo como

produzir corretamente um cataplasma, muito utilizado à época. Tudo isso utilizando

“clareza nos princípios” e “simplicidade nos meios”, afinal não escrevia para seus pares,

mas para homens que cotidianamente cuidavam de fazendas e de um significativo

número de escravizados.

Seu discurso disputava naquelas primeiras décadas do século XIX espaço com

outros atores da arte de curar: curandeiros, boticários, feiticeiros e barbeiros. Diferentes

poderes pleiteavam garantir para si lugar de destaque. Afinal, o poder pode ser

entendido “como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.

Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado

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como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (FOUCAULT,

1979: 183). Nesse sentido, o discurso de Jean-Baptiste Alban Imbert buscava sustar

práticas de cura e de controle de corpos, tendo entrado em conflito com muitas outras.

Ele e seu manual materializaram estratégias desse discurso médico que se quer mais

atuante e presente na sociedade escravista brasileira do oitocentos.

Natural da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, David Gomes Jardim

apresenta à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 13 de dezembro do ano de

1847, a tese Algumas Considerações sobre A Hygiene dos Escravos, uma das poucas

que trazem no título a designação escravo. Expõe seus motivos na introdução

mencionando a escolha do tema: “o homem, qualquer que seja sua posição na

sociedade, pobre ou rico, escravo ou senhor, tem direito a demandar os cuidados do

medico todas as vezes que as alterações de sua saude os exijam” (JARDIM, 1847:1).

Isso porque segundo Jardim, concordando com questões levantadas por Imbert,

a mudança de clima, a differença de tratamento, um trabalho continuo e

desmedido, e até a fome, raríssimas vezes interrompida, de envolta com a

triste consideração de seu penoso estado, são outras tantas causas de

singulares e gravissimas enfermidades: merecem pois serios e reflectidos

cuidados (JARDIM, 1847:1).

David Jardim aponta que a mortandade de escravizados independia do clima do

país. Segundo ele, “em todo o lugar em que a agricultura está entregue a mãos de

escravos, observam-se os mesmos effeitos, as mesmas affecções, que se tornam mais

graves em razão do numero e do concurso das outras causas morbificas communs á

generalidade dos homens” (JARDIM, 1847: 6). Buscando explicações para os

resultados pessimistas na insalubridade do clima nas relações escritas e na memória dos

habitantes, não conseguira grandes esclarecimentos. Então, com um olhar voltado para

as minúcias das causas de tantos efeitos, chegou à conclusão de que todas vinham “da

omissão das mais simples leis de hygiene, e da incerteza das bases do tratamento das

molestias desta classe de homens” (JARDIM, 1847: 6). Sublinha a diferença entre

brancos e negros, posto que formassem classes distintas.

Algumas causas se encontram como as proferidas por Imbert uma década antes,

sendo elas:

a alimentação, a qual não sendo variada, constando unicamente de

substancias feculentas, em pequena quantidade, e mal preparada, não póde

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subministrar a reparação necessaria: o uso tão excessivo que fazem os

negros das bebidas alcoholicas; a falta quasi completa de vestuario,

mórmente no Rio de Janeiro, onde a atmosphera está sujeita a variações tão

freqüentes e rapidas, que não se póde soffer sua influencia sem grande

detrimento de saude; um trabalho excessivo, muitas vezes além de suas

forças; a falta de repouso preciso ao corpo e os domicilios sem as condições

convenientes, e, mais que tudo, a incuria com que são pensados em suas

doenças (JARDIM, 1847: 6).

Outro ponto comum entre os médicos era o uso que os negros faziam das

bebidas alcoólicas, um vicio para o doutor Jardim. Para provar sua proposição narra o

seguinte fato:

um preto, que tinha de idade noventa e tantos annos, e que se achava já

acurvado sob o peso da velhice, sahia todas as noites, e ia a uma freguezia

que distava uma legua do lugar de sua residencia, com o fim de comprar

aguardente, para satisfazer a impetuosidade de seu desejo;” (JARDIM,

1847: 8-9).

Para Jardim,

as bebidas alcoholicas tomadas em quantidade tão excessiva devem

irremissivelmente produzir effeitos funestos. O definhamento geral da

sensibilidade, as inflammações chronicas de intestinos e fígado, são

resultados do abuso destas bebidas, o qual todos os auctores concordam em

dar como uma das causas das enfermidades que affligem a espécie humana

(JARDIM, 1847: 9).

No que tange ao uso inadequado de cachaça, ensinava: “as bebidas alcoholicas

tomadas em quantidade tão escessiva devem irremissivelmente produzir effeitos

funestos” (JARDIM, 1847: 9). Sendo estes, o definhamento geral da sensibilidade, as

inflamações crônicas do intestino e do fígado. Muitos autores apontavam de fato o uso

imoderado de bebidas alcóolicas como uma das causas das enfermidades que assolavam

os negros. Todavia, ensinava Jardim que as mesmas deveriam somente ser servidas

quando “as necessidades exigirem”, ou seja, “sempre que tiverem sido molhados, ou

então em dias festivos, para regozija-los” (JARDIM, 1847: 9).

No Artigo Segundo, David Jardim, reflete sobre a importância da roupa no

desenvolvimento de moléstias, posto que o homem é “sensível ao ultimo ponto á

influencia atmospherica” (JARDIM, 1847: 10), encontrando nas vestimentas uma forma

de preservar o corpo das mudanças do clima. A pele é o primeiro órgão a sofrer

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influencia da temperatura climática, reagindo “secundariamente sobre os pulmões e

outros órgãos”. Contudo, o “vestuario dos negros nas fazendas não offerece uma

garantia segura contra as intemperies; porquanto, cada um tem por anno um termo de

roupa, isto é, uma camisa e uma calça!” (JARDIM, 1847: 10). Estando constantemente

exposto as mudanças climáticas, chuva e calor, seria difícil para o escravizado manter

uma boa saúde. Sendo assim, o vestuário para o médico é tão importante quanto o

alimento na preservação do corpo saudável. A solução quanto ao vestuário seria,

aconselhamos que os escravos tenham a roupa necessaria, a qual seja

sempre lavada, para se não impregnar de materias nocivas; porquanto, si

houver vestidos de sobrecellente, não serão tão continuadas as repercussões,

que bem funestas são em suas conseqüências; aconselhamos mais que elles

sejam de linho ou de lãa, conforme a estação; e que se tenha a maior cautela

em preservar a cabeça dos raios do sol ou da humidade, o que se póde

realisar com o uso de Barretos (JARDIM, 1847: 11).

O Artigo Terceiro privilegia as tarefas cotidianas informando que “si a

ociosidade é perniciosa, o abuso do trabalho ainda é mais” (JARDIM, 1847: 11). Jardim

se diz convencido de que um terço dos escravizados que falecem no Brasil tem como

causa o trabalho excessivo. Criticando o modo como o serviço é distribuído entre

negros de “constituição débil” e os de “constituição robusta”, assinala ser este um fato

comum. Para este médico, a utilização da mão de obra escravizada de modo imoderado,

durante muitas horas de trabalho, sob forte sol ou chuva provocava o desenvolvimento

de febres de insolação, dores de cabeça, apoplexias. O trabalho noturno causava

“ophthalmias” que poderia levar a cegueira. Instruía pois, “regulai os trabalhos dos

vossos escravos segundo as forças de cada um; daí-lhes a conveniente folga; e sabereis

então que a observância de uma simples lei de hygiene torna-se muitas vezes um agente

poderoso para a conservação da saude” (JARDIM, 1847: 12).

Considerações Finais:

Ensinar fazendeiros tão distantes dos conhecimentos científicos não era tarefa

fácil. Mas, Jean-Baptiste Alban Imbert e David Gomes Jardim demonstraram grande

esforço utilizando uma pedagogia médica para atender as necessidades do momento.

Observadas as peculiaridades dos documentos analisados - Imbert escreve um manual

para fazendeiros, David Jardim uma tese para obter o grau de doutor em medicina - e a

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distância de uma década que os separava, percebemos a preocupação em poupar a mão

de obra escravizada a partir do fim do Tráfico Transatlântico.

A entrada clandestina desses indivíduos provocou um aumento significativo de

escravizados no Império do Brasil, especificamente para atender a demanda das

fazendas de café do Vale do Paraíba Fluminense. Modificações no modo de tratar ou

olhar o escravizado fora alterado devido à nova conjuntura, afinal até quando o

comércio clandestino se manteria? Nesse sentido, os médicos como membros

importantes da construção desse Império contribuíram por um lado com seus diferentes

saberes para minimizar as perdas de patrimônio e de mão de obra, e por outro,

garantindo a maximização da produção cafeeira para atender a demanda da economia

crescente.

Ambos concordavam que a atuação de indivíduos que não fossem capacitados

nas artes de curar era um dos grandes males que acometiam de morte os escravizados.

Enquanto David Jardim identifica a higiene como o maior problema das causas mortis

entre escravos, podendo ser identificada na manutenção de alimentos, no seu preparo ou

na conservação das roupas, Jean-Baptiste Alban Imbert tem no conhecimento do corpo

o seu principal argumento. Ambos apresentam ideias similares, mesmo escrevendo em

períodos diferentes. Tentavam assim demonstrar que, para além das ações de agentes

públicos, traficantes e senhores de escravos para burlar a lei que pusera fim ao tráfico

transatlântico, a medicina poderia contribuir para a preservação daquela mão de obra.

Fontes:

Anais do Semanário de saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro.

Biblioteca Nacional, 1831-1834.

BRASIL. Lei de sete de novembro de 1831. Disponível em:

http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-14/Legimp-

14_3.pdf. Acesso em 23 mai 2104.

IMBERT, J.B.A. Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as

enfermidades dos Negros. Typographia Nacional, 1839.

Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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