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A MORTE DE MATUSALÉM E OUTROS CONTOS ISAAC BASHEVIS SINGER

Contos de Isaac Singer

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Contos

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  • a morTe de maTusalme ouTros conTos

    isaac basHevis singer

  • 9 NOtA DO AUtOr

    11 O JUDEU DA BABILNIA

    22 O AMIGO DA cASA

    33 ENtErrO NO MAr

    44 O rEcLUSO

    55 DISfArADO

    67 O DENUNcIANtE E O DENUNcIADO

    74 A cILADA

    91 O cONtrABANDIStA

    99 UMA vIGIA NO POrtO

    126 A AMArGA vErDADE

    136 O PrODUtOr cULtUrAL

    151 LOGArItMOS

    161 PrESENtES

    170 fUGINDO PArA LUGAr NENhUM

    182 A LINhA ExtrAvIADA

    191 O hOtEL

    206 DESLUMBrADO

    218 ShABAt NA GEENA

    226 O LtIMO OLhAr

    239 A MOrtE DE MAtUSALM

    251 GLOSSrIO

    259 SOBrE O AUtOr E O trADUtOr

  • O JUDEU DA BABILNIAO judeu da Babilnia, como era chamado o milagreiro, via-jou a noite inteira na carruagem que o levava de Lublin ao vilarejo de Tarnigrod. O cocheiro, um sujeito baixinho e de ombros largos, permaneceu em silncio durante toda a jornada. Cabeceava de sono e chicoteava o matungo, que andava devagar, passo a passo. A velha gua aprumava as orelhas e olhava para trs com seus olhos grandes, que ex-primiam curiosidade humana e refletiam o brilho da lua

  • cheia. Parecia indagar-se sobre aquele passageiro estranho, que trajava um casaco de veludo com forro de pele e ti-nha um chapu tambm de pele na cabea. Chegou mesmo a franzir o beio escuro, forjando uma espcie de sorriso equino. O milagreiro estremeceu e murmurou uma frmu-la mgica, levando o cocheiro a se dar conta de como seu passageiro era perigoso.

    Anda, gua preguiosa!A carruagem passou por campos arados, montes de feno

    e um moinho de vento, o qual, girando lentamente, surgia, desaparecia e ressurgia. Seus braos abertos davam a im-presso de apontar-lhes o caminho. Uma coruja piou e uma estrela cadente se desprendeu do cu, deixando um rastro gneo atrs de si. O milagreiro se enrolou em seu xale de l.

    Ai de mim!, gemeu. J no sou preo para eles. Referia-se aos seres infernais, os demnios aos quais dera combate a vida inteira. Agora que estava velho e fraco, co-meavam a vingar-se dele.

    Chegara Polnia cerca de quarenta anos antes um homem alto, magro como um palito, envergando uma t-nica comprida, listrada de amarelo e branco, e calando as sandlias e as meias brancas usadas pelos judeus do Imen e de outros pases rabes. Dizia chamar-se Kaddish ben Mazliach um nome estranho e ter aprendido a arte da clarividncia e da cura na Babilnia. Curava a insnia e a demncia, exorcizava dibukim e sabia como ajudar os ho-mens recm-casados que sofriam de impotncia ou que eram alvos de feitios lanados pelo Mau-Olhado. Possua tambm um espelho negro, no qual podiam ser vistos os desaparecidos e os mortos. Vivia como judeu devoto nem nas noites frias de inverno se esquivava de frequentar as glidas casas de banhos rituais e jejuava s segundas e

  • quintas-feiras , porm os rabinos e demais lderes comu-nitrios o evitavam, acusando-o de ser um feiticeiro, um mensageiro do Exrcito Impuro. Corriam rumores de que tinha uma esposa mal-afamada em Roma, exatamente co-mo tivera em seus dias o Falso Messias, o amaldioado Sa-batai Tzvi. Em toda e qualquer cidade a que chegava, es-condiam-se as mulheres grvidas, a fim de que seus olhos no pousassem nelas; e s moas se prescrevia o uso de aventais duplos, um na frente e outro atrs, como forma de proteo. Os pais no deixavam que seus filhos olhassem para ele. Em Lublin, onde aps muitos anos de errncia Kaddish se instalou na velhice, no o aceitaram no bairro judeu e vetaram sua entrada nas sinagogas e nas casas de estudos, obrigando-o a ir morar na periferia da cidade, num casebre caindo aos pedaos. Sua aparncia era deplo-rvel. Tinha um rosto comprido, muito vermelho, e a pele escamosa. A barba desgrenhada voltava-se para todos os lados, como se sob o efeito de um vento incessante. No abria o olho direito; dizia-se que tinha sido cegado pelo medo. Suas mos tremiam e, tal qual um beb recm-nas-cido, ele no conseguia sustentar a cabea com firmeza. Eruditos e cabalistas havia muito o advertiam de que esta-va brincando com fogo e que os poderes do mal no o dei-xariam escapar facilmente.

    Na soturna noite de outono, Kaddish se encolheu no as-sento da carruagem, ao lado da sombra comprida que viaja-va com ele, e balbuciou: Uma seta h de furar seus olhos, Sat, Kuzu, Bemuchzas, Kuzu.

    Nascido na Terra Santa, filho de um judeu sefardita polgamo e de sua jovem esposa surda-muda, uma trtara convertida ao judasmo, Kaddish ben Mazliach errara pelo mundo com seus camafeus e frmulas mgicas. Estivera na

  • Prsia, na Sria, no Egito e no Marrocos. Vivera em Bagd e em Bukhara. Curava no somente judeus, mas tambm rabes e turcos, e, ainda que em Lublin os rabis poloneses o houvessem excomungado e ele fosse tratado como um le-proso, continuava a ter poderes de cura e magia. Amealha-ra ao longo da vida um punhado de diamantes e prolas, os quais levava num saquinho preso ao pescoo, por baixo da roupa. Nunca perdera a esperana de, ao chegar ve-lhice, penitenciar-se e regressar terra de Israel. Porm a sorte nem sempre lhe era favorvel. Fora vtima, com algu-ma frequncia, de salteadores que o surravam e levavam seu dinheiro. Casara-se algumas vezes, mas as mulheres tinham medo dele e o foravam a procurar os rabinos para pedir o divrcio e ele as deixava.

    Justo agora que sua sade fraquejava, os maus espritos haviam comeado a atorment-lo, vingando-se de todas as vezes em que ele os sobrepujara com sua magia. Fazia alguns anos que ele no conseguia dormir uma noite inteira em paz. To logo cochilava, ouvia risadas femininas e sons de melodias nupciais, entoadas burlescamente por demnios-f-meas, com um acompanhamento de violinos. No raro duen-des vinham puxar-lhe a barba e os cachos laterais ou bater na vidraa de suas janelas. Em outras ocasies, faziam troa dele, mudando suas coisas de lugar. Desfiavam seu xale de oraes e suas roupas guarnecidas com franjas. Moas nuas e descalas, com tranas que chegavam cintura, sentavam-se em sua cama e riam, exibindo os dentes brancos no escuro. Roubavam suas moedas de ouro ele sentia os dedos delas no bolso interno do palet. Passavam mechas de cabelos em volta de seu pescoo, como se pretendessem estrangul-lo, choramingando e pedindo to insistentemente que ele se en-tregasse a elas que Kaddish chegava a desmaiar.

  • Kaddish, diziam, o Outro Mundo de qualquer forma voc j perdeu. Renda-se, venha juntar-se a ns.

    Kaddish sabia que havia hordas de lapiutes esperando que ele morresse para se apoderar de sua alma pecadora e faz-la em pedacinhos. Mais de uma vez, ao examinar a inscrio de sua mezuz, verificou que as palavras sacras ha-viam sido apagadas do pergaminho. Seus livros cabalistas eram rodos por ratos e traas. O couro de seus filactrios rachava e estes se partiam. Conquanto seu casebre na peri-feria de Lublin fosse aquecido, havia um frio perptuo no ar, e os cmodos eram escuros como um poro. Para no ser roubado, Kaddish escondia seus pertences em arcas cobertas com peles e reforadas com cintas de cobre, porm isso de nada adiantava. Nenhuma criada judia se dispunha a traba-lhar para ele. A velha faxineira gentia que fazia a limpeza da casa pendurava crucifixos nas paredes e trazia consigo um gato indcil e um co traioeiro. Para no comer nada que no fosse kosher, Kaddish preparava ele mesmo as re-feies, porm os duendes e diabretes jogavam punhados de sal nos pratos, impedindo-o de levar a comida boca.

    Nos dias santos as coisas ficavam ainda piores. Ao entar-decer de sexta-feira, vspera de Shabat, ele cobria a mesa com uma toalha manchada e acendia duas velas espetadas em castiais foscos, mas elas invariavelmente se apagavam. Sonhava usar o poder da cabala para criar pombos e extrair vinho das paredes, porm nos ltimos tempos seus mila-gres eram cada vez mais raros. Sua memria se deteriorara tanto que ele se esquecia de que no era permitido fazer fogo no Shabat, e punha-se a fumar seu cachimbo. O ca-chorro rosnava para ele e tentava mord-lo. At os coelhi-nhos que a mulher criava tinham ficado insolentes e su-biam em sua cama. No era de admirar que aceitasse todo

  • e qualquer pedido para realizar magias, curas ou adivinha-es, por demorada ou difcil que fosse a viagem.

    Perdido eu j estou. Oxal possa ao menos salvar uma alma, conclua.

    Agora estava a caminho do vilarejo de Tarnigrod, aten-dendo a uma solicitao do rico reb Falik Chaifetz, cuja residncia, uma casa construda recentemente, de sbito comeara a apodrecer com fungos e tinha cogumelos sel-vagens brotando nas paredes. Apesar de estar sentado, Ka-ddish dormitava na carruagem. A cabea pendia por causa do cansao, e ele ressonava com um assobio surdo. Quando amanheceu, o cu se incendiou inteiro, e sobre a estrada caiu uma neblina densa, como se eles estivessem se apro-ximando do mar aberto. O cocheiro agora andava cautelo-samente ao lado da carruagem, passo a passo, pois lhe ha-viam recomendado que no sentasse muito perto do mago. Apenas quando a gua se alvoroava empinando e relin-chando era que a chicoteava e repreendia: Calma, gua velha! No se meta no que no chamada!.

    Kaddish passou o dia inteiro na casa parcialmente desocu-pada de reb Falik Chaifetz, preparando as simpatias e os amuletos necessrios purificao da molstia que se apos-sara daquele lar. A umidade nos aposentos era tamanha que as paredes estavam recobertas de manchas amarelas. Kaddish tinha certeza de que havia um mau esprito es-condido em algum lugar, quem sabe num leno com ns de feiticeira ou num camafeu com nomes mpios ou nos cabelos de um doido. To logo entrara na casa, sentira um bafo pestilento. Era evidente que o esprito de um inimi-go se alojara ali dissimulado, obsceno e extremamente

  • perverso. Com uma vela na mo, Kaddish procurara em todos os cantos da casa. Inspecionou a chamin, o fogo, e cutucou rachaduras e reentrncias fuliginosas. Subiu a escada em espiral que levava ao sto e depois desceu at o poro. Reb Falik o acompanhou pela casa inteira. Kaddish ateou fogo a todas as teias de aranha, e tarntulas de ventre branco se dispersavam quando seus lbios azulados se pu-nham a murmurar frmulas mgicas. Ele cuspia em todos os lugares onde o invisvel pudesse estar espreita.

    Era, talvez, sua ltima e mais decisiva batalha contra os maus espritos. Se no capitulassem dessa vez, como have-riam de ser expulsos para o deserto, atrs das montanhas negras, para todo o sempre?

    Kaddish chegara clandestinamente a Tarnigrod. Assim ficara ajustado entre ele e reb Falik Chaifetz. No entanto, os habitantes do vilarejo tomaram conhecimento de sua vinda. Mesmo antes da chegada do milagreiro, muitos de-les se aglomeravam em frente residncia de reb Falik. As mulheres, em pequenas rodas, apontavam para Kaddish e cochichavam. Os jovens mais atrevidos subiam nos ombros uns dos outros e tentavam espiar por entre as lminas das venezianas cerradas. Alguns camponeses traziam seus alei-jados, seus epilpticos, seus loucos e seus coxos. Uma me carregava no colo o filho convulsionado, seus olhos reviran-do nas rbitas. Um pai arrastava atrs de si o filho maluco, preso qual um animal a uma carroa. Uma mulher trazia uma rapariga em cujo rosto despontavam fios de barba.

    Reb Falik Chaifetz saiu e alertou as pessoas que ali no se procederia a nenhuma cura. Implorou que fossem em-bora, porm a aglomerao se tornou ainda maior. Kaddish abriu uma janela no andar de cima, ps para fora a cabea despenteada e pediu: Minha gente! Estou fraco. No me

  • atormentem. Todavia recebeu os enfermos e aleijados du-rante todo o dia.

    Ele queria partir o quanto antes. Mas quando j caa a noite o sacristo apareceu de supeto e anunciou que o ra-bino desejava v-lo. Kaddish foi com ele at a casa do rabi, onde as persianas j tinham sido fechadas. Trajando um rou-po preto, o velho rabi tinha o chapu inclinado na cabea e uma cinta grossa na cintura. Olhou para o mago com uma expresso feroz, medindo-o dos ps cabea, e inquiriu: o infame Kaddish ben Mazliach que est diante de mim?.

    Sim, rabi.Seu nome, Kaddish, significa sagrado, mas voc im-

    puro e corrupto, bramiu o rabino. No pense que o mun-do dorme. Voc um feiticeiro que anda com os mortos.

    No, rabi.No negue. O rabino bateu o p no cho. Sei que in-

    voca demnios. No toleraremos isso em silncio.Eu sei, rabi.Lembre-se, ainda vai se arrepender!, esbravejou o ra-

    bino, e pegou seu cachimbo comprido como se pretendesse atingir a cabea de Kaddish. Vagar por centenas de anos entre demnios e nem no Inferno poder entrar. O mundo no s caos!

    Kaddish estremeceu, tentou responder, perdeu a lngua. Queria falar da enorme quantidade de pessoas que salvara da morte. Levou a mo ao bolso onde guardava as cartas que recebia de pacientes agradecidos, cartas escritas em he-braico, ladino, rabe e mesmo idiche, porm no conseguia mover os dedos. Saiu correndo, as pernas bambas, ouvindo vozes e risadas. No via para onde estava indo.

    Decidiu retornar imediatamente a Lublin, porm agora o cocheiro se recusava a lev-lo de volta. Kaddish no teve al-

  • ternativa seno passar a noite ali, na casa vazia em que per-manecera o dia inteiro. A empregada de reb Falik Chaifetz levou-lhe lenis, um castial com uma vela grossa, uma chaleira com gua quente, po e uma tigela de borshtch.

    O judeu da Babilnia tentou comer, mas no conseguia engolir. Parecia-lhe ter a cabea cheia de areia. Apesar de as janelas estarem fechadas, um vento gelado varria o apo-sento. A chama da vela bruxuleava e sombras tremulavam nos cantos, rastejando qual serpentes. Escaravelhos grandes e lustrosos se arrastavam pelo cho e sentia-se um chei-ro podre no ar. Kaddish deitou-se ainda vestido na cama. Dormitou um pouco e viu-se na cidade cabalista de Sfat. Sua mulher iemenita se ajoelhava diante dele, tirava-lhe as sandlias e lavava-lhe os ps, bebendo a gua da bacia em seguida. De sbito ele foi arrancado da cama, como se um terremoto houvesse eclodido. Todas as luzes se apagaram. No escuro, as paredes pareceram expandir-se, e os cmodos comearam a balanar e a se mover de um lado para o ou-tro, como um navio em mar revolto. Figuras barbadas, com chifres e focinhos, empurravam-no, rodando como lobos sua volta. Morcegos voavam acima de sua cabea. Tudo rangia e estalava, como se a casa estivesse prestes a vir abaixo. Como sempre fazia quando as criaturas noturnas se apoderavam dele, Kaddish abriu a boca para exorciz-las, mas pela primeira vez na vida se esquecera de todos os no-mes e imprecaes. Seu corao parecia ter parado, sentia os ps ficando frios. O saquinho que sempre trazia pendura-do ao pescoo foi arrancado, e ele ouviu as moedas de ouro, as prolas e os diamantes se esparramando pelo cho.

    Quando finalmente conseguiu sair para a rua, Tarnigrod parecia adormecida. Uma lua sangrenta cintilava sob a tez das nuvens. Bandos de ces, que dormiam durante o dia e

  • rondavam os aougues noite, latiam para ele de todos os lados. Kaddish ouvia atrs de si os passos de uma multido desgovernada. Um vento forte o colheu por baixo do casaco e ele comeou a voar. Luzes pareciam acender-se, e ele ouvia msicas, tambores, gargalhadas. Compreendeu que se trata-va de um casamento e que ele, Kaddish, era o noivo. Vinham em sua direo, danando sobre pernas de pau, gritando: Mazel tov, Kaddish!. Era evidente que os maus espritos o estavam dando em casamento a um demnio-fmea. Aterro-rizado, e reunindo o que restava de suas foras, ele conseguiu exclamar: Shadai, destrua Sat, Shadai!.

    Tentou fugir, porm seus joelhos fraquejaram. Foi cin-gido por braos compridos, que o beliscavam, puxavam, faziam-lhe ccegas, apertavam-no e o socavam como se ele fosse massa de padeiro. Era o convidado da festa, a razo daquela alegria impura. Agarravam-se a seu pescoo, bei-javam-no, acariciavam-no, violentavam-no. Espetavam-no com seus chifres, lambiam-no, afogavam-no em baba e saliva. Uma mulher gigante o estreitou contra seus seios nus, depositou todo o peso de seu corpo sobre ele e suplicou: No me envergonhe, Kaddish. Diga: Com este anel negro, caso-me contigo, segundo a blasfmia de Sat e Asmodeu.

    Com os ouvidos ensurdecidos, Kaddish escutava um es-tardalhao de vidros se quebrando, ps que batiam no cho, gargalhadas licenciosas e gritinhos estridentes. O esqueleto de uma av, com ps de ganso, danava com uma chal tranada nas mos e dava cambalhotas, pronunciando os nomes de Chavriri, Briri, Ketev-Mriri. Kaddish fechou os olhos e, pela primeira e ltima vez, soube que era um deles, um consorte de Lilith, a rainha do Abismo.

  • Pela manh, encontraram-no morto, deitado de bruos no meio de um descampado, no muito longe do povoado. Ti-nha a cabea enterrada na areia, os braos e as pernas es-tendidos, como se houvesse despencado de grande altura.