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DISSERTAÇÃO de Mestrado. Construir Sítios: a Casa da Cultura da Juventude de Beja de Raúl Hestnes Ferreira e as técnica tradicionais descritas em a Arquitectura Popular em Portugal. Trabalho Final de Curso, vertente teórica.
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1
ISCTE-IUL. Mestrado Integrado em Arquitectura. 2010/2011
Laboratório de História e Teoria da Arquitectura
Orientadora: Prof.ª Arq.ª Ana Vaz Milheiro
À PROCURA DO INQUÉRITO – 50 anos sobre a publicação da Arquitectura Popular em Portugal.
NOME: Celine dos Reis Vicente
TÍTULO: CONSTRUIR SÍTIOS: a Casa da Cultura da Juventude de Beja de Raúl Hestnes Ferreira e as
técnicas tradicionais descritas em Arquitectura Popular em Portugal.
RESUMO: Ao longo dos anos, as técnicas construtivas e as soluções arquitectónicas foram-se
desenvolvendo e aperfeiçoando por meio de processos de tentativa e erro, com os recursos naturais que o
meio permitia e transmitidos de geração em geração. Deste modo as soluções tentavam responder ao meio e
ao clima onde se inseriam quando não existiam ainda, sistemas mecânicos de climatização e iluminação.
Em Arquitectura Popular em Portugal encontramos uma imensa variedade de soluções e técnicas
construtivas, na maioria dos casos em desuso.
Neste trabalho, começa-se por efectuar um levantamento dos materiais, sistemas e técnicas de construção
tradicional descritos no inquérito à Arquitectura Popular em Portugal e esclarecer quais destes ainda são
utilizados nos dias de hoje. É Escolhida a zona 5, referente à zona do Alentejo, para desenvolver mais
aprofundadamente, uma vez que retém, ainda bastante do saber tradicional quando comparado com as
outras Zonas. Pretende-se finalmente, através de leituras bibliográficas e entrevistas, compreender qual o
sentido de introduzir estas técnicas em projectos contemporâneos sem comprometer a sua autenticidade,
utilizando como caso de estudo A Casa da Cultura da Juventude de Beja do arquitecto Raúl Hestnes Ferreira
e explorando a sua ligação com o arquitecto Louis Kahn.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitectura Popular, Arquitectura do Alentejo, Arquitecto Hestnes Ferreira.
3
Se com o inquérito morreu a casa portuguesa, com ele nasceu também a
Arquitectura Portuguesa.
COSTA, Alexandre Alves [1995] In: João Leal, Arquitectos, Engenheiros,
Antropólogos: Estudo sobre Arquitectura Popular no Século XX Português.
Conferência Arquitecto Marques da Silva. 2008. P.50
5
ÍNDICE
1. Introdução ...................................................................................................................................... 9
2. Descrição sumária dos materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional referenciados
no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal. ............................................................................. 12
2.1. Zona 1 – Minho, Douro Litoral e Beira Litoral .......................................................................... 12
2.2. Zona 2 – Trás-os-Montes e Alto Douro ................................................................................... 14
2.3. Zona 3 – Beiras ...................................................................................................................... 16
2.4. Zona 4 – Estremadura, Ribatejo e Beira Litoral ....................................................................... 17
2.5. Zona 5 – Alentejo ................................................................................................................... 19
2.6. Zona 6 – Algarve, Baixo Alentejo e Alentejo Litoral ................................................................. 21
2.7. Quadro síntese dos materiais, técnicas e sistemas construtivos referidos no Arquitectura
Popular em Portugal por zona ....................................................................................................... 24
3. Alentejo ....................................................................................................................................... 28
3.1. “O monte alentejano” .............................................................................................................. 29
3.2. Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicionais no Alentejo .................................... 31
3.2.1. A pedra ........................................................................................................................... 32
3.2.2. A terra ............................................................................................................................. 33
3.2.3. Os ligantes .................................................................................................................... 34
3.2.4. A madeira ....................................................................................................................... 36
3.2.5. Os elementos vegetais................................................................................................... 37
3.2.6. Os elementos cerâmicos ................................................................................................ 37
3.2.7. Os sistemas construtivos ................................................................................................ 38
3.2.8. Revestimentos ................................................................................................................ 45
4. Construir Sítios ............................................................................................................................ 80
4.1 O Arquitecto Hestnes Ferreira e a Casa da Cultura da Juventude de Beja ............................... 83
6
5. Conclusão .................................................................................................................................... 93
6. Bibliografia ................................................................................................................................... 95
7. Anexos ........................................................................................................................................ 99
7.1. Entrevista ao arquitecto Victor Mestre .................................................................................... 99
7.2. Entrevista ao arquitecto Nuno Malato ................................................................................... 107
7.3. Entrevista ao arquitecto Hestnes Ferreira ............................................................................. 109
9
1. INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como objectivo avaliar a motivação em introduzir técnicas de construção tradicionais
nos projectos contemporâneos de arquitectura. Pretende-se justificar que é possível ampliar as possibilidades
construtivas criando um diálogo mais enriquecedor dentro da cultura arquitectónica portuguesa e sem
comprometer a sua autenticidade.
O texto estabelece uma relação entre as técnicas tradicionais descritas no livro Arquitectura Popular em
Portugal, as técnicas tradicionais actualmente utilizadas no Alentejo e a forma como as mesmas são
aplicadas na arquitectura contemporânea.
Para atingir o objectivo a que se propõe, esta dissertação está estruturada em três níveis de leitura. O primeiro nível de leitura consiste na descrição das várias técnicas, materiais e sistemas tradicionais de
construção detalhados no livro Arquitectura Popular em Portugal, que terá sido elaborado na sequência do Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa. No âmbito do trabalho de grupo e para melhor entendimento deste livro foram ainda efectuadas entrevistas entre as quais o arquitecto Francisco da Silva Dias
1 comprova
a diversidade construtiva encontrada na sequência do Inquérito. Com base nesta informação será perceptível a vasta extensão de soluções construtivas desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo dos tempos pelos habitantes locais. Estas soluções diferem em cada localidade consoante os materiais e as imposições do meio.
Com o decorrer do tempo os sistemas e técnicas tradicionais de construção foram sendo gradualmente abandonadas. No segundo nível de leitura é efectuado um levantamento dos sistemas e técnicas tradicionais da Zona 5 – Alentejo, com o objectivo de verificar a sua utilização actual. Para tal, foram efectuadas visitas a localidades, estabelecidos contactos com artesãos e construtores locais e um levantamento fotográfico
O terceiro nível de leitura consiste na análise do edifício da Casa da Cultura da Juventude de Beja, inserida na Zona 5 – Alentejo, do arquitecto Hestnes Ferreira. Este edifício, construído entre 1975 e1985, em Beja, concilia uma estrutura construída com materiais e técnicas contemporâneas com coberturas de abóbadas e arcos construídos por artesãos alentejanos. Através da análise do edifício e do percurso do arquitecto Hestnes Ferreira pretende-se avaliar o benefício da conciliação das várias técnicas construtivas tradicionais e contemporâneas nos edifícios contemporâneos. Para apoio na análise foram efectuadas entrevistas aos arquitectos Victor Mestre, Nuno Malato e Hestnes Ferreira.
1Entrevista efectuada no âmbito do trabalho de grupo do Laboratório de História e Teoria da Arquitectura ao arquitecto Francisco
da Silva Dias por Celine Vicente, João Cardim, Tatiana Cheong e Vanessa Ribeiro. Realizada em Fev.11, Atelier Silva Dias-Arquitectos Lda, Lisboa.
10
A paisagem é cenário duma luta continuada e sem heróis vistosos. (…) Imagem parcial da capa do 1º e 2º
Vol. do Arquitectura Popular em
Portugal [AA. VV. (2004)]
11
O campo aparece-nos hoje como o resultado de uma transformação procurada. É o homem
que o faz, mas não como desejaria – cultiva aquilo que o solo, a chuva, os ventos ou a geada
consentem, vive em casas que são assim ou estão ali, mais por via dos materiais de ao pé da
porta e das exigências da lavoura ou dos animais, que por sua vontade ou necessidade dos
seus.
(…) A herança comum vem de longe. Séculos de vida moldada pelas muitas adversidades e
pelos poucos favores que a natureza coloca ao seu dispor, são o substracto da feição do
habitat do povo português.
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P 131
Cândido Portinari. O Operário. 1947 http://www.portinari.org.br
12
2. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE
CONSTRUÇÃO TRADICIONAL REFERENCIADOS NO INQUÉRITO À
ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL.
O que o governo queria, ou pelo menos o ministro das obras públicas, era que nós lhe disséssemos o que
era a arquitectura Nacional, à semelhança do que houvera em Espanha, Alemanha, Itália, União Soviética…saber
o que era o estilo Nacionalista e nós dissemos-lhe precisamente o contrário. Não há um estilo nacionalista! As
construções variam por vezes em 100 metros. Se aqui é granito é de uma maneira, se ali é xisto é outra. Se são
assalariados ou pequenos proprietários...2
Francisco Silva Dias, entrevista, Fevereiro 2011
No levantamento efectuado pelas seis equipas que trabalharam no Inquérito à Arquitectura Regional
Portuguesa(IARP), observa-se uma enorme diversidade de materiais, resultante sobretudo de rica geo-
morfologia que caracteriza o solo português e que difere do norte ao sul do país.
Esta diversidade de materiais tem como consequência uma grande variedade de soluções, como
comprovado pelo arquitecto Silva Dias. Que reforça a relação entre o Sul de Portugal e a cultura do
Mediterrâneo em detrimento da relação do Sul com o Norte de Portugal: “há mais relações entre uma casa do
sul de Portugal e da Grécia do que do sul de Portugal para o Minho e do Minho para a Galiza.”3
Segundo os arquitectos participantes no IARP, os construtores tradicionais utilizavam os materiais
disponíveis nas suas localidades. A manipulação desses materiais era efectuada frequentemente no seio
familiar e o conhecimento transmitido entre gerações.
Também foi verificado um conhecimento alargado no manuseamento e aplicação dos materiais
restringidos às características do meio envolvente e às necessidades específicas a que o edifício se destina.
A construção tradicional responde a estas necessidades e atinge muitas vezes a originalidade e valor estético
pretendidos na arquitectura.
2.1. ZONA 1 – MINHO, DOURO LITORAL E BEIRA LITORAL
Pela análise rápida da carta que nos mostra a constituição geológica da zona [Minho, Douro Litoral e
Beira Litoral], verifica-se a predominância do granito na maior parte do seu solo, mas intercaladas afloram estreitas
manchas quase contínuas de duas espécies de rochas xistosas.
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.84
2 Citação do Arq. Francisco da Silva Dias em entrevista efectuada no âmbito do trabalho de grupo do Laboratório de História e
Teoria da Arquitectura ao arquitecto Francisco da Silva Dias por Celine Vicente, João Cardim, Tatiana Cheong e Vanessa Ribeiro.
Realizada em Fev.2011, Atelier Silva Dias-Arquitectos Lda, Lisboa. 3 Ibidem. O Arq. Francisco da Silva Dias refere-se nesta citação a uma ideia transmitida pelo Arq. Francisco Keil do Amaral.
13
Nesta zona os materiais utilizados eram a pedra de granito, xisto e rochas sedimentares, a madeira de
pinho e castanho, o colmo, e a telha de canudo.
Os arquitectos do IARP privilegiaram a descrição
das estruturas produtivas como os sequeiros e espigueiros
(também referidos como canastros) em detrimento da
habitação.
À casa tradicional era, muitas vezes, adicionada o
sequeiro levantado sobre pilares ou em alternativa era
aproveitada a varanda para esse mesmo efeito.
A cobertura dos sequeiros era de telha e
assentava numa armação de madeira. De madeira eram
também, o travejamento interno, soalhos, tabiques,
portadas e prumos. Os muros, pilares e lintéis eram
construídos em pedra.
Os espigueiros ou canastros eram erguidos sobre
colunas e construídos em granito ou em madeira
aparelhada em delgadas secções. Eram leves,
permeáveis ao vento e sustentados transversalmente com
travamentos cruzados. Outra forma descrita como mais
sólida e durável de os construir, era a execução dos dois
topos do espigueiro em granito, tornando-os mais rígidos e
com espessas traves na base a que se iam juntar os
prumos e a armação do telhado. As coberturas dos
espigueiros ou canastros eram de duas águas, em telha
ou lousa, e nas paredes, era usual o emprego de grandes
pedras aparelhadas, com as juntas quadradas.
Nas habitações, os arquitectos distinguem
algumas localidades. No Lindoso é predominante a
tipologia da cabana, construída em pedra solta e colmo.
Excepcionalmente, podia encontrar-se uma habitação
mais cuidada, chamada a “moradia do emigrante”4 onde
são destacados alguns detalhes construtivos como o uso
de alvenaria seca, em blocos esquadrados.
4 AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.77
1. Ferreiros. Póvoa de Varezim.Sequeiro. [APP]
3. Soajo. Casa num Largo. [AAP]
2. Lindoso. Espigueiros. [APP]
14
Na altura do Inquérito, a cobertura em colmo estava a ser
gradualmente substituído por telha (tornando o beirado
retraído), conservando as duas abas entre empenas,
apoiadas por cornijas de pedra.
Em Odela, os arquitectos encontraram um sistema
de emprego misto de granito e xisto na construção de
paredes que é descrito como “deveras notável, criando um
efeito exótico e a primorosa construção do pedreiro de
alvenaria”.5É também registado o emprego misto de adobo
e xisto no aparelho de muros.
Nos arredores de Monção, Amares, Braga, Póvoa
de Lanhoso, Guimarães e Fafe e nas terras de Basto
estava bastante difundido o uso da madeira. Construíam-
se habitações totalmente neste material, geralmente, em
pinho e castanho. Por serem madeiras pouco resistentes,
foram construídas apoiadas em pilares, afastando-as do
solo, com beirados salientes e sempre que possível eram
pintadas ou revestidas com argamassa.
As habitações continham varandas de dimensões
superiores às outras construções analisadas.
2.2. ZONA 2 – TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO
Textura e nobreza dos materiais...
A pedra que, penosamente, foi cortada sob o Sol escaldante; a madeira, contando toda a sua história
centenária, no emaranhado dos seus veios; a telha humilde que formas toscas e mãos calejadas ofereceram em
holocausto ao Sol, nos terreiros da cozedura... Portanto, nobreza na humildade e majestade, na presença que
cada um de tais elementos acusa fortemente para si. E sabedoria, na maneira como os homens souberam deixá-
los falar por si mesmos, e os sujeitaram às vicissitudes das necessidades e às contingências da sua utilização.
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.167.
Segundo o levantamento dos arquitectos do IARP, os materiais utilizados na zona 2 eram: a pedra de
granito e xisto (vulgar e lousa), a madeira, a palha, a telha e a cal.
5 Idem. P.87
4. Olela. Stª. Senhorinha de Basto. Habitação. [AAP]
5. Celourico de Basto. Habitações. [AAP]
15
Os arquitectos indicaram aldeias onde muros,
socalcos e paredes de casas eram compostos por
“amontoados de xisto de arestas cortantes”.6
A lousa era usada como revestimento de paredes e
colocada num sistema de justaposição de pedaços
irregulares em cascata, ou numa progressiva ordenação de
tamanhos e formas em cujas juntas eram realçadas com a
aplicação de cal.
Nesta zona destaca-se um sistema de construção
considerado como “um sintoma de progresso apesar da
utilização de materiais e princípios rudimentares”7 que
consistia nos tabiques de entrançados de palha ou de varas,
construídos à semelhança da técnica usada em cestos ou
carros de bois.
As coberturas das habitações eram executadas com
placas de lousa. As chaminés eram diferenciadas da
cobertura e o remate dos cumes era feito como dedos
entrecruzados.
Na montanha de granito, as paredes das habitações
eram feitas com este material e as coberturas em colmo.
Em algumas destas construções, os arquitectos,
encontraram varandas de madeira.
6 Idem, P.136.
7 Idem. P.151
6. Montes. O «Lugar». [AAP]
7. Rioo de Onor. Entrançado de palha. [AAP]
8. Duas Igrejas. O granito. [AAP]
16
2.3. ZONA 3 – BEIRAS
As casas, irregulares, são de granito, onde há granito, ou de xisto, onde o solo é xistoso, ou ainda de xisto
e granito, nas zonas de transição; e com o tempo, tomam a cor geral da região em que assentam. Os materiais
mais usados nas coberturas – telha de canudo, lajes de xisto e colmo – também adquirem uma «patine» terrosa. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.15
Na zona 3, segundo os arquitectos do IARP, os materiais correntes eram: a pedra de granito, xisto, a
madeira de pinho e castanho, o barro e o colmo.
Os arquitectos do IARP referem o granito como o
material mais abundante e por consequência mais utilizado
nesta zona. Nas habitações, era utilizado nas paredes, nas
escadas exteriores, nas escadas interiores de solares e
casas abastadas, pavimentação de ruas, pátios e
dependências de muitas habitações humildes, e até nos
muros que delimitavam as propriedades.
Quanto ao emprego de xisto, os arquitectos,
constataram que era utilizado, exclusivamente, nas suas
formas naturais de extracção, em paredes de alvenaria;
coberturas simples dos edifícios humildes – “dispostas as
lascas maiores sobre um varedo tosco de madeira”8 – em
pavimentos de lareiras e de casas e finalmente nas
prateleiras embutidas nas paredes.
As vergas dos varões de portas e janelas eram
geralmente construídas em madeira de castanho à
excepção das zonas de transição de terrenos xistosos e
graníticos onde eram construídas em granito. Também os
cunhais eram de granito endentados na alvenaria corrente.
Outro material referido é o calhau rolado
caracterizado pela sua forma esférica ou ovóide e de grande
dureza. Era utilizado em paredes, com os espaços
preenchidos com lascas de xisto e por sua vez este
conjunto era consolidado com terra barrenta vermelha.
8 Idem. P.65
10. Outeiro da Vinha. [AAP]
9. Bigorne. [AAP]
17
Nestas construções, eram utilizadas lajes de xisto ou
granito, para formar os panos de peito das janelas.
Em paredes, muros, coberturas de anexos e
pavimentos, os arquitectos do Inquérito encontraram, ainda,
um outro tipo de granito chamado granito “de duas micas”
caracterizado por lajes pouco espessas e de grandes
dimensões que eram aplicadas sem serem partidas.
A madeira era utilizada em pavimentos das
habitações, no revestimento de tectos de casas abastadas,
nas varandas, e em portas e janelas.
As coberturas das construções eram em telha de
canudo e de «Marselha», ou ainda em colmo.
2.4. ZONA 4 – ESTREMADURA, RIBATEJO E BEIRA LITORAL9
A nenhuns condicionamentos a Arquitectura regional está mais vincadamente sujeita que à penúria do
povo e aos materiais de construção.10
Arquitectura Popular em Portugal. 1961
Nesta zona, os arquitectos verificaram a utilização de pedra calcária, granito, xisto, basalto, a taipa, o
adobe, a madeira e o colmo.
9 Este resumo aproveita parte do trabalho desenvolvido em grupo que sintetiza parte do meu contributo para a análise realizada
em equipa da zona 4. 10
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.171
11. Paúl. [AAP]
12. Nave de Haver. [AAP]
18
Em Pernes, Rio maior, Torres novas os arquitectos
encontraram um tipo de calcário brando e compacto. As
paredes construídas com este material designavam-se por
paredes de “tufo” e consistiam na disposição de fiadas de
blocos de pedra assentes com argamassa e em que os
espaços dos blocos eram preenchidos com pequenas
pedras.
No Ribatejo e na Estremadura, era bastante usual a
utilização do tijolo. Nas construções onde era utilizado este
material, os arquitectos do IARP destacaram as
composições onde a sua disposição era efectuada de forma
criativa através de um jogo de “cheios e vazios”.
Em Rio Maior, apesar de haver uma
comercialização e distribuição eficaz do adobe, este
continuava a ser produzido no seio familiar. Outro exemplo
de um material produzido sem recurso à compra era a taipa.
Os edifícios construídos com estes dois materiais
obrigavam ao fortalecimento das paredes por «gigantes»11
.
Os arquitectos constataram que estas construções
de terra começavam, já na época do inquérito, a ser
substituídas por paredes de cimento.
Na parte setentrional da Estremadura, ao longo da
costa baixa, as construções eram parcial ou totalmente
construídas em madeira e apresentavam-se levantadas do
solo, sobre estacas deste material, pilares de adobe ou
blocos de betão com objectivo final de evitar a acumulação
das areias.
Na zona do Pedrógão, os arquitectos verificaram
que pelo facto de o solo estar consolidado, a necessidade
de elevar a habitação não era necessária permitindo a
construção de habitações com dois andares. Neste caso, o
rés-do-chão destas construções era construído em alvenaria
(sem recurso às estacas), continuando a existir o primeiro
andar em madeira.
11
Gigantes são contrafortes utilizados para reforço das paredes de taipa.
13. Arneiro. Santarém. [AAP]
14. Costa de Lavos. [AAP]
15. Palheiros da Tocha. [AAP]
19
Segundo os arquitectos do Inquérito, a utilização de
madeira para as construções, ou mesmo para os reparos,
terá sido proibida em algumas povoações envolventes ao
pinhal de Leiria. Esta indisponibilidade, terá levado os
habitantes a substituir a aplicação da madeira por blocos de
adobe ou cimento, embora em muitos casos as construções
primitivas se mantivessem por trás das novas fachadas.
Na Lezíria Ribatejana e na península de Setúbal,
segundo os levantamentos do IARP, alguma construção
esporádica de paredes e coberturas inclui a palha.
Em alguns dos edifícios onde as coberturas se
faziam neste material, os arquitectos verificaram paredes
onde se empregava o ”tijolo travado“ que consistia na
”sobreposição de molhos de plantas calcados entre paus
postos ao alto”12
Por toda a Estremadura e Ribatejo se poderia
encontrar o emprego da cal nas construções.
Os arquitectos encontraram, a utilização do betão,
de forma a substituir os antigos métodos de vencer vãos. No
entanto, constataram que este material - por ser recente -
estava ainda num período experimental, não se verificando
a sua correcta aplicação.
2.5. ZONA 5 – ALENTEJO
A importância da cal, na construção alentejana, é intensa, como revestimento e como elemento activo
na construção das argamassas. O «pote da cal» e o «pencel», que mais parece uma vassoura, são objectos que
fazem parte integrante da casa alentejana, no seu reduzido apetrechamento, e por mais modesta que seja.
O tijolo, material tradicional, tem o seu papel, não menos importante na região, o seu fabrico em regime
artesanal varia bastante de qualidade, sendo de modo geral bastante poroso.
A taipa é material comum em todo o Alentejo, predominando, porém, na sua zona meridional.
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.33
12
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.188
16. Praia de Pedrogão. [AAP]
17. Ar. Torres Vedras.
20
18. Elevação de paredes com taipal. [AAP]
Segundo os arquitectos do IARP, os materiais dominantes nesta zona eram: a cal, o tijolo e a taipa.
Outros materiais menos relevantes eram o adobe, a pedra de calcário, granito, xisto, mármore e a madeira
com menor evidência.
No que caracteriza a habitação tradicional
alentejana, os arquitectos, elegem a taipa como o material
dominante nesta região. As habitações construídas com
este material requeriam a construção de uma fundação em
pedra de xisto, argamassa de cal e areia, barro e pedra
seca. Estes evitavam a humidade ascendente. Devido à
insuficiente resistência da taipa aos impulsos laterais, os
construtores tradicionais, adoçavam, às paredes deste
material, massas de alvenaria, a que chamavam gigantes.
Na construção com paredes de tijolo designadas por
«lambaz», destaca-se uma solução, em que os construtores
tradicionais colocavam o tijolo, alternando a sua posição,
para que, por vezes, ficassem visíveis os furos deste
material. Este tipo de construção não era rebocada e a
caiação aplicada directamente, passando a repetição dos
furos do tijolo a funcionar como ornamento nas superfícies.
Os arquitectos constataram que a pedra foi pouco
utilizada na construção de habitações no entanto, quando
aplicada realçaram a utilização do xisto e do granito.
Foi destacado no IARP, as coberturas feitas por
abóbadas e abobadilhas, construídas com tijolo maciço e
levantadas sem o auxílio de cimbres.
A abobadilha consiste em abóbadas de muito
pequena flecha, onde o tijolo era colocado deitado. Os
arquitectos destacaram um tipo de abobadilhas,
denominadas de «caixotões», onde se aplicava um sistema
misto de tijolo e ferro.
Este sistema era colocado aproximadamente por
metro e vencia o vão principal e os pequenos vãos entre
eles eram preenchidos por abóbadas de tijolo.
Nas coberturas em abóbada, os arquitectos
verificaram que as mais comuns eram a abobada de berço e
19. Paramentos de tijolo nao rebocados. [AAP]
20. Fecho de abobadilha. [AAP]
21
a abobada de engra. Destacaram as intersecções das
abóbadas cruzadas denominadas de “Aranhas”, que eram
construídas não só por motivos estéticos, mas sobretudo
como resposta técnica.
Os pavimentos eram feitos geralmente de «ladrilho»
ou tijoleiro e por vezes de pedra.
Para o guarnecimento de vãos, os construtores
tradicionais, usavam ocasionalmente pedra, valorizada pela
proximidade do reboco caiado.
No travejamentos de telhados, guarnições de vãos,
guarnições de pavimentos, e em sítios de maior humidade,
era utilizada a madeira. Por vezes este material também
utilizado em vergas de vãos, substituindo o arco de ressalva
em tijolo e na construção de varandas.
Nas cabanas rústicas, instalações de apoio a
pastores e gados, os arquitectos observaram a aplicação de
piorno e outros matos para a resolução das coberturas.
A cal foi o símbolo eleito para esta zona. As suas
aplicações sucessivas nas superfícies criavam texturas
inesperadas, definindo volumes e acentuando o recorte dos
vãos.
2.6. ZONA 6 – ALGARVE, BAIXO ALENTEJO E ALENTEJO LITORAL
Do ponto de vista geológico, factor importante para a análise dos materiais de construção, o
conjunto da zona apresenta alguma variedade na sua constituição geológica, variedade que parece mais rica
na própria província algarvia.
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.173
Na zona 6, segundo os arquitectos do Inquérito, os materiais correntes eram: a taipa, os materiais
cerâmicos, a cal, o adobe, a pedra calcária, xisto, «Grés de Silves», Calhaus Rolados e «Foiaíte», os
materiais cerâmicos, e a cana.
Foi constatado que o material mais vezes empregue em paredes das edificações era a taipa. Na
execução eram colocados padieiras de madeira que seriam posteriormente retiradas para criarem vãos
21. Oriola. [AAP]
22
característicos da zona do Algarve eram os elementos
cerâmicos, usuais em pavimentos interiores ou exteriores
das habitações, paredes e coberturas, fossem estas de
águas, em abóbadas ou «dormentes».
Nas zonas onde o solo era arenoso, os construtores
tradicionais utilizavam o adobe para a construção das
paredes das suas habitações.
Na zona de Silves podia-se encontrar uma rocha
formada de grânulos de quartzo aglutinados por um cimento
ferruginoso, com o nome de «grés de Silves». Esta rocha,
de cor avermelhada escura, poderia ser trabalhada com
relativa facilidade e era usada em alvenarias irregulares,
muros de vedações e soleiras.
No Alto Algarve, as habitações eram construídas
com paredes de alvenaria de xistos argilosos. Estas
construções eram por vezes rebocadas, sendo vulgar o
emprego directo de cal sobre a pedra. A pedra era também
encontrada no calcetamento dos caminhos que se
prolongavam até junto das entradas das habitações e eram
aplicados de forma a criar motivos geométricos
Na zona do Algarve calcário, as habitações eram
construídas com esta pedra. Para estas alvenarias, os
construtores, utilizavam as pedras mais pequenas,
guardando as maiores para o travamento dos cunhais.
Ainda na zona do Algarve calcário, junto dos vales
planos da rede de ribeiras que a atravessam, os arquitectos
encontraram habitações construídas com alvenaria de
calhau rolado. Esta quando não rebocada, os arquitectos
consideraram que tomava “um certo relevo e textura”13
Em Monchique, era utilizada uma pedra local que se
denominava de «Foiaíte». Este material era utilizado em
vergas e obreiras (com a peça inteira) e em paredes (feitas
com as pedras pequenas e de forma irregular).
13
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.180
22. Carrego da Casa. Odemira. [AAP]
23. Corte Velha. Mértola. [AAP]
24. Estoi. Faro. [AAP]
23
Para a resolução das coberturas, encontraram o
telhado de águas, a abóbada e os dormentes. As coberturas
mais frequentes eras as de telha - argamassada ou não,
com uma ou duas águas.
No apoio das coberturas os construtores aplicavam
o encaniçado de cana, em substituição do vulgar ripado de
madeira. Este encaniçado era também aplicado para
resolver o apoio de tectos falsos.
Quando construídas em dormentes, as coberturas
consistiam na aplicação do ladrilho sobre estrutura de
madeira, que resultavam em terraços, mirantes ou
pavimentos elevados. As abóbadas, mais frequentes, na
região do Algarve, eram executadas com ladrilho ou tijolo
maciço. A sua particularidade consistia na colocação do
material “sempre a cutelo e a topo, na parte central da
abóbada, e nos arranques são já colocados ao baixo em
fiadas horizontais”.14
O IARP destaca as abóbodas de canhão, com um fecho
central sempre executado de forma distinta.
As coberturas eram revestidas a ladrilho no exterior
e, muitas vezes caiadas, dando origem a açoteias
utilizáveis.
14
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.184
25. Morgado do Reguengo. Portimão. [AAP]
25. Olhão. [AAP]
24
2.7. QUADRO SÍNTESE DOS MATERIAIS, TÉCNICAS E SISTEMAS CONSTRUTIVOS
REFERIDOS NO ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL POR ZONA.
MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE
CONSTRUÇÃO TRADICIONAL ZONA 1 ZONA 2 ZONA 3 ZONA 4 ZONA 5 ZONA 6
PAREDES E MUROS
Alvenaria de pedra solta de granito X X X
Alvenaria seca de xisto X X X
Alvenaria seca de granito em blocos
esquadrados X
Sistema de emprego misto de granito e
xisto na construção de paredes X
Emprego misto de adobe e xisto no
aparelho de muros X
Construções totalmente em madeira,
apoiadas em pilares, pintadas ou revestidas
a argamassa
X
Tabique de madeira X
Tabique de entrançado de palha ou de
varas X
Emprego de vergas e de cunhais de
granito, endentados na alvenaria corrente X
Calhaus rolados, de forma esférica ou
ovóide, partidos na superfície X
Lajes de granito de duas micas, de grandes
dimensões, aplicadas em muros e paredes X
Alvenaria ordinária de pedra calcária X X
Paredes de adobe X X X X
Tijolo aplicado em cheios e vazios X
Tufo X
Taipa X X X
Paredes de palha/colmo X
Construções em madeira sobre
estacas/palafitas X
25
MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE
CONSTRUÇÃO TRADICIONAL ZONA 1 ZONA 2 ZONA 3 ZONA 4 ZONA 5 ZONA 6
Paredes de tijolo cozido X X X
Paredes de taipa X X X
Paredes de tijolo cozido alternando a sua
posição X
Alvenaria ordinária de xisto X X
Alvenaria de pedra «grés de Silves» X
Alvenaria ordinária de xisto argiloso X
Alvenaria de calhau rolado X X
Alvenaria de pedra Foiaíte X
COBERTURAS
Colmo X X X X X X
Telha de canudo X X X X X X
Granito X
Telha de Marselha X X X X X
Placas de lousa X X
Laje de granito de duas micas X
Abobadilhas de tijolo X
Abobadas de tijolo X X
Encaniçado de cana X X
Dormentes X
PAVIMENTOS
Madeira X X X
Granito X
Xisto X X X
Laje de granito de duas micas X
Ladrilho ou Tijoleiro X X
REVESTIMENTOS
Lousa em cascata X
Lousa numa progressiva ordenação de
tamanhos e formas X
Cal X X X X
27
Da Portela de Alpedrinha, no dorso da Gardunha, o contraste é
impressionante entre as serranias que, pelo norte, barram o horizonte próximo e o planalto a
que se não vê o fim: sobre ele, as manchas de verdura vão-se tornando cada vez mais
desbotadas, indecisas e distantes. Na verdade, é o Alentejo que se anuncia.
RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da
Costa Editora, 1998, p. 151
António Guimarães. Alentejo. 2009 http://davincigallery.net
29
Segundo a equipa de arquitectos responsável pela zona do Alentejo, pode-se dividir a habitação
típica do Alentejo em dois grupos/categorias: a que se implanta no aglomerado e a que se apresenta isolada
na paisagem. A este último dá-se o nome de “monte alentejano”, o primeiro domina a instalação habitacional,
no segundo prepondera a função agrícola.15
3.1. “O MONTE ALENTEJANO”16
(…) a quase totalidade das mais evidentes e arrojadas inovações arquitectónicas introduzidas nos
edifícios civis ou religiosos do Ocidente mediterrânico, nas artes decorativas, nas técnicas construtivas,
mergulham as suas raízes nos saberes ancestrais criados e veiculados pelas velhas civilizações
mediterrânicas.17
TORRES, Cláudio. Técnicas e formas de construção no sul Islâmico. in: As idades da construção: técnicas de construção
tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Pág.87
Como anteriormente referido, o monte alentejano está associado à prática agrícola. É constituído por
uma edificação ou conjunto de edificações associadas à mesma exploração agrícola. O monte alentejano é
resultado de uma sucessão de intervenções que marcaram a ocupação do mesmo Lugar ao longo de várias
gerações.18
O processo de humanização da paisagem alentejana está marcado por milénios de ocupação e
consecutiva transformação deste território. Este processo é visível nas marcas pré-históricas que se vieram a
encontrar, como pode ser comprovado no campo arqueológico de Mértola. Dirigido pelo Dr.Claúdio Torres, as
actividades desenvolvidas neste campo arqueológico, são pioneiras na área de investigação da “Arquitectura
de Terra” e também, no estudo e divulgação das tecnologias da construção tradicional.19
Apesar de existirem povoamentos anteriores, a romanização terá sido implacável impondo uma nova
organização social. Durante este período, formam-se pequenas e grandes urbes, com grandes unidades
15
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.58 16
A partir do texto: O monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais. Contributo para o seu conhecimento e
permanência. Tendo sido objecto de um artigo monográfico realizado pelo arquitecto Victor Mestre, disponível virtualmente em:
http://www.vmsaarquitectos.com MESTRE, Victor. O monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais. Contributo para o seu conhecimento e permanência.
In: Olhar o Monte Alentejano a pretexto de Alqueva. P.85 a 101. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com 17
TORRES, Cláudio. Técnicas e formas de construção no sul Islâmico. in: As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Pág.87
18 CCDRAlg; Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura vernácula da
região oriental da serra do Caldeirão, CCDRAlg e edições afrontamento, 2010 19
MESTRE, Victor. Campo Arqueológico de Mértola - A Investigação Arqueológica como sustentáculo do conhecimento e
preservação da Arquitectura de Terra. Texto de apresentação de comunicação. 2001. Disponível virtualmente em:
http://www.vmsaarquitectos.com
30
produtivas - um pouco por todo o país e em particular no
Alentejo - que mantêm vestígios até aos dias de hoje.
Após séculos, o império romano desfez-se, perdendo as
suas matrizes físicas e dando lugar a uma nova era de
ocupação deste território misturando conhecimentos e
reaproveitando estruturas.
Com a chegada dos muçulmanos as cidades e as
habitações ganham novos requisitos e especificidades na
sua funcionalidade, tecnologia e expressão. É introduzida a
cobertura plana conjugada com as águas inclinadas, o
recurso à telha cerâmica sobre esteira de cana, apoiada em
espessas paredes de taipa. Contudo, nesta época
muçulmana, as alterações estruturais são pouco
expressivas. A reocupação cristã, no entanto, terá sido
muito profunda, pois introduz uma diferente organização
político-social e económica, baseada nas explorações
agrícolas em extensão.
A grande "revolução" terá sido desencadeada a partir da
inovação das abóbadas e abobadilhas. Apesar de serem
técnicas de origem longínqua, a sua reafirmação enquanto
estrutura deveu-se aos grandes estaleiros que se formaram
com D. João II, D. Manuel l e posteriormente com D. João
III, que introduz uma renovada linguagem arquitectónica. A
formação de novas linhagens de artesãos-construtores
como os mestres canteiros, taipeiros, abobadeiros e
carpinteiros surgiu a partir iniciativas criadas pela Casa Real
no âmbito de programas de renovações ou edificações de
estruturas Exemplos são os paços, prisões, celeiros reais,
alfândegas, ou por via das ordens religiosas que edificaram
capelas, igrejas e conventos.
Devido à grande quantidade de obras a decorrer, as povoações de grandes e médias dimensões
tinham muitas vezes estaleiros que trabalhavam em permanência, o que seria importante na massificação do
conhecimento destas técnicas e dos materiais utilizados. Assim, com o decorrer do tempo esta informação foi
vulgarizada reaproveitando-se estruturas e entrando definitivamente numa nova cadeia de conhecimentos da
arquitectura vernacular, sempre adaptada às realidades regionais.
1. Arredores de Évora. [CV, 2011]
3. Arredores de Beja. [CV, 2011]
2. Arredores de Reguengos de Monsaraz. [CV, 2011]
31
Aliada à popularização dos conhecimentos adquiridos, a inexistência de madeiras apropriadas para
construção na paisagem Alentejana, e a elevada existência de Barreiros e mato arbustivo para a queima em
fornos, contribuíram em conjunto para a proliferação das abóbadas de tijoleira. Estas situações tiveram uma
especial incidência nos programas habitacionais, de que a construção de diversos Paços constituiu um
referencial incontornável na área da arquitectura doméstica.
Depois das invasões francesas, o país atravessa novamente uma profunda crise devido ao confronto
entre os liberais e os absolutistas. Com a vitória do liberalismo e consequente extinção das ordens religiosas
dá-se uma significativa mudança no campo político e económico. Até à implantação da Republica,
“reorganiza-se” em parte a propriedade que subsiste até hoje.
Assiste-se a grandes transformações tais como a mecanização dos sistemas produtivos e o
surgimento de novos equipamentos, novas técnicas e novas culturas.
Na década de 30 do século XX inicia-se o Estado Novo e as politicas implementadas marcam
significativamente a vida rural alentejana. A desflorestação do Alentejo, associada à construção do caminho-
de-ferro, consumo de lenha e as campanhas do trigo, trazem arquitectos e engenheiros agrónomos que
traçam grande parte dos novos montes.
Uma nova crise económica instala-se nos anos 60 e 70. Com o 25 de Abril existe um sentimento de
mudança e esperança que reabre feridas nunca saradas e culmina com o clima de confronto de ocupações
das herdades e a formação das Unidades Colectivas de Produção(UCP’s) que com algumas excepções,
torna-se irreversível. No entanto, é também nestes tempos difíceis que nasce uma nova consciência pública
nacional pela preservação do património. Este movimento é impulsionado pelas primeiras abordagens ao
património rural, por associações de defesa do património, investigadores académicos, pessoas em nome
individual que debatem a preservação da identidade histórica regional com o propósito de alertar as
autarquias e os organismos do governo central.
3.2. MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO TRADICIONAIS NO
ALENTEJO20
(…) «civilização do barro», que encontra no Sul do país as formas mais correntes e mais características.
A única área extensa e contínua que ela cobre é o Alentejo (…).
O Alentejo mostra outra riqueza e variedade, que podem chegar à expressão artística superior (…). RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992. Pág.32
20
A elaboração deste capítulo tem por base o artigo da arquitecta Maria Fernandes, Materiais e técnicas construtivas no Alentejo
sendo complementado por outros artigos e livros, bem como pela observação directa feita na região do Alentejo. FERNANDES, Maria. Materiais e técnicas construtivas no Alentejo. P.73-85. In: IEFP; CRAT. As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Lisboa: IEFP, 2010.
32
Como indica a frase em epígrafe, Orlando Ribeiro distingue o Norte de Portugal do Sul pelo contraste
dos materiais dominantes na construção e na paisagem, designando o Norte de «civilização do granito» e o
Sul de «civilização do barro».
O Norte é caracterizado pela cultura construtiva em pedra, predominando os blocos regulares de
granito em alvenaria aparelhada seca. O Sul pela cultura de terra, onde predomina a taipa, a alvenaria
ordinária de pedra irregular e a alvenaria seca de xisto. Esta caracterização é fundamental para o presente
trabalho, pois a região do Alentejo é entendida por um território onde predominam as técnicas construtivas
características da zona Sul.
Das 23 unidades de paisagem que Orlando Ribeiro definiu21
, o Alentejo abrange quatro,
nomeadamente Alto Alentejo, Alentejo de Planície (com raras elevações isoladas), Alentejo Litoral (com
elevações) e Depressão do Sado. As condições físicas, geográficas e os contextos histórico-culturais
diversos, que caracterizaram a sua humanização, ditam a riqueza de tradição construtiva em pedra e terra
que distinguem estas unidades de paisagem.
Nestas paisagens, encontramos como materiais disponíveis para a construção a pedra de xisto,
mármore e granito; e a terra, com forte predominância de solos argilosos. Outros materiais disponíveis
em menor quantidade são o calcário, elementos vegetais e a madeira
3.2.1. A PEDRA
Com tradição construtiva de influência mediterrânica, a construção em pedra, no Alentejo,
caracteriza-se pelo recurso à alvenaria ordinária, alvenaria seca e mais raramente, à alvenaria aparelhada.
Na pedreira ou jazida, depois de extraída a pedra cortava-se, desbastava-se e talhava-se, ficando
apenas o acabamento, ou o talhe fino para se realizar em estaleiro. Podemos encontrar: a pedra de xisto em
Nisa (Portalegre), Mourão (Évora), Barrancos (Beja; a pedra de mármore em Estremoz (Évora), Vila Viçosa
(Évora), Borba (Évora), Trigaches (Beja), Ficalho (Serpa);a pedra de granito em Évora, Arronches
(Portalegre), Monforte (Portalegre), Santa Euiália (Portalegre), Reguengos (Évora) e Torrão (Setúbal).
21
1-Entre Douro e Minho; 2-Montanha do Minho; 3- Montanhas do Norte da Beira e do Douro; 4-Terras de média altitude da
Beira litoral; 5-Planaltos da Beira Alta; 6-Beira litoral; 7-Cordilheira Central; 8-Planaltos e montanhas de Trás-os-Montes; 9-Planaltos e montanhas da Beira transmontana; 10-Alto Douro e depressões anexas; 11-Baixo Alentejo; 12-Estremadura setentrional, geralmente baixa; 13-Maciços calcários da Estremadura e Arrábida; 14-Depressões e colinas entre 7 e 13; 15-Estremadura meridional, geralmente
acidentada; 16-Beira Baixa; 17- Ribatejo; 18-Alentejo de planície com raras elevações isoladas; 19-Alto Alentejo; 20-Alentejo litoral com elevações; 21-Depressão do Sado; 22-Serra Algarvia; 23-Algarve litoral ou Baixo Algarve.
33
3.2.1.1. O XISTO
O xisto foi a pedra mais utilizada na construção
tradicional alentejana.
A composição laminar desta rocha permite destacar
placas e blocos irregulares de reduzida espessura. A sua
extracção é não só efectuada em pedreiras ou jazidas
como também pode ser facilmente extraído à superfície,
sendo utilizado mesmo onde não existem estes locais
específicos para a exploração extractiva. Exemplos da
utilização deste material são os concelhos de Mértola,
Serpa e Odemira (Beja).
Actualmente a (reduzida) utilização do xisto
consiste em peças mais ou menos normalizadas para
pavimentação, em muros, na recuperação de alguns
edifícios antigos e em arranjos urbanísticos de zonas
tradicionais como podemos observar em Monsaraz.
3.2.1.2. O MÁRMORE E O GRANITO
O mármore e o granito foram utilizados onde era
possível a sua extracção em pedreiras. São pedras de
resistência e dureza assinaláveis que permitem peças
normalizadas. Estas características levaram a que fosse
um material de eleição para edifícios de carácter
excepcional, mesmo em zonas onde o material não existia.
A exploração do mármore e do granito nos dias de
hoje destina-se principalmente à indústria de rochas
ornamentais.
3.2.2. A TERRA
A terra é o único material que tem sido estudado na sua antiguidade e contemporaneidade, quer na
investigação quer no ensino, sobre o lema: se soubermos construir com terra, conseguimos mais facilmente
conservar em terra.
(…) A continuidade construtiva em terra, quer em moldes tradicionais quer em moldes tecnológicos
contemporâneos e industriais, é o contributo e o enorme valor que a «terra» simultaneamente material e
4. Arredores de Monsaraz [CV, 2011]
5. Arredores de Borba [CV, 2011]
34
sistema construtivo, tem legado à construção mundial.
FERNANDES, Maria. Apresentação do livro de CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa.
ARGUMENTUM. 2007
A terra foi no Alentejo o elemento construtivo
predominante.
Na construção, a qualidade da terra tem influência
na durabilidade do edifício. Os solos utilizados devem ser:
isentos ou pobres em matéria orgânica; retirados de
camada específica do subsolo; quando a sua extracção é
feita à superfície são removidas as pedras, as raízes e
outros materiais orgânicos.
Depois de extraída, a terra tem que ser preparada,
seca e crivada. É então misturada com água e por fim seca
ou transformada por temperatura. Estes dois processos
originam respectivamente os materiais em terra e os
cerâmicos.
A partir da terra são extraídos elementos que serão
aplicados como pigmentos ou seja as terras corantes.
3.2.3. OS LIGANTES
Encontramos no Alentejo a utilização de cal aérea, terra e excepcionalmente gesso para
assentamento e rebocagem.
3.2.3.1. A CAL
Tendo sido aperfeiçoada e usada intensivamente
pelos Romanos, a cal foi o ligante por excelência.
A sua produção envolve um conjunto de tarefas,
nomeadamente, escolha da pedra; cozedura; desmontar
cuidadosamente as pedras cozidas; após arrefecimento
guardar devidamente a cal viva para que não hidrate antes do
tempo; apagar ou “abrir” a cal de obra.
A cal branca, também designada por cal aérea
cálcica, é efectuada a partir de pedras calcárias e mármores
mais puros. Esta cal dá origem a uma argamassa clara e
6. São Pedro do corval [CV, 2011]
7. Barro Branco [CV, 2011]
35
plástica, que pode ser guardada húmida e que devido à cor e
facilidade de moldagem é usada principalmente nas camadas
finais dos revestimentos.
A sua extinção é lenta, aconselhando-se o mais
rapidamente possível após a produção.
Os processos utilizados para a extinção da cal branca
consistem em regar a cal ou imergi-la em água. Após a
finalização dos processos enunciados a cal viva passa a “cal
morta” também denominada como “cal apagada”.
No primeiro caso, e após a rega, a cal transforma-se
em pó alterando-se rapidamente. Carbonata quando em
contacto com o ar, sendo posteriormente misturada com areia
e água. Este processo é desaconselhado.
Quando imersa em água, a cal transforma-se numa
pasta e mantém-se sem alterações ganhando qualidade.
Quando preparada para aplicação, a cal é simplesmente
misturada com areia tendo previamente a quantidade
necessária de água.
A argamassa resultante destes dois casos nomeia-se de
massa fina e é ainda hoje aplicada em rebocos de
regularização, acabamento, superfícies decorativas e
caiações, esta última com juntando maior quantidade de
água.
A cal parda ou cal de obra é efectuada a partir de
calcários dolomíticos, menos puros, que se apresentam como
rochas mais escuras – esta cal dá origem a cais fracamente
hidráulicas que não podem ser guardadas húmidas e têm que
ser aplicadas pouco depois da extinção.
Estas argamassas são mais escuras e menos
plásticas, mas em geral mais resistentes, usadas nas
camadas de enchimento dos revestimentos e no
assentamento da alvenaria. O processo de extinção desta cal
é feito no momento em que é retirada do forno, misturando-a
com cal e areia, sendo o próprio processo de extinção a
produção de argamassa para a construção.
8. Barro Branco [CV, 2011]
9. Forno tradicional de cal de montes claros. [GM, Livro As Idades da Construção]
10. Fase final de cozedura da cal num forno tradicional. [GM, Livro As Idades da
Construção]
36
Conforme confirmado pelo Mestre Caleiro Festas22
- proprietário de forno tradicional em barro
branco, que pertence à família à várias gerações – o processo de cozedura é feita dentro de fornos
locais, onde se arma uma construção de forma engenhosa. De planta tradicional abobadada as pedras são
colocadas de forma a permanecerem estáveis durante a cozedura com as próprias pedras a serem
cozidas. As pedras escolhidas são – conforme indicado pelo Mestre Festas – as consideradas desperdício
pelos vendedores locais. Nos bordos interiores do forno, onde a temperatura é mais baixa forma-se a cal
parda, enquanto a cal branca é formada onde as temperaturas são mais elevadas.
3.2.3.2. A TERRA (COMO LIGANTE)
Nas zonas onde a cal era escassa, encontrava-se rebocos feitos a partir de argilas.
A sua preparação consistia em crivar a terra e posteriormente misturava-se com água e areia.
Com a crescente produção de cal e consequente facildade de compra, estes ligantes em terra
foram sucessivamente abandonados em todas as regiões do Alentejo.
3.2.4. A MADEIRA
Não se encontram na paisagem alentejana madeiras
adequadas para a construção
Encontramos frequentemente: o sobro e o azinho,
madeiras com grandes retracções e dimensões limitadas;
castanheiros e carvalhos na serra de S.Mamede (Portalegre).
Infelizmente, estas madeiras não existem em quantidade
suficiente para impulsionar a utilização deste material em
sistemas construtivos de grande impacto como aconteceu
noutras zonas, principalmente arenosas, como se verificou por
exemplo com o denso pinhal de Leiria. Para colmatar esta
situação verificou-se a importação do pinho e mais
recentemente a do eucalipto.
Entre os vários tipos de madeira disponível o azinho é
utilizado nos caixilhos; os caibros para estrutura das
coberturas são em pinho, eucalipto e excepcionalmente em
freixo ou choupo.
22
Conversa com o Mestre Caleiro Festas no seu local de trabalho. Barro Branco, Borba. Junho de 2010.
12. Mercado Público da Comenda. arquitectos Maximina Almeira e Telmo Cruz. Comeada. [CV, 2011]
11. Serpa [CV, 2011]
37
A utilização do ripado e do caniço para apoiar o assentamento de coberturas em telha ainda hoje se
verifica.23
A facilidade de aquisição de madeira nos dias de hoje possibilita o surgimento de edifícios neste
material.
3.2.5. OS ELEMENTOS VEGETAIS
O emprego destes materiais era apenas pontualmente verificado em coberturas agrícolas no
interior do Alentejo ou em paredes e coberturas de abrigos de pescadores no litoral.
3.2.6. OS ELEMENTOS CERÂMICOS
Os telheiros, de trabalho sazonal, encontravam-
se um pouco por todo o Alentejo. Neles se adquiriam
peças essenciais nos sistemas construtivos tradicionais:
tijolo "lambaz", tijoleira "baldoza" e telhas de diferentes
formatos e dimensões.
Estabeleciam-se junto de barreiras, que
forneciam a matéria-prima e localizavam-se perto de
fontes ou poços.
O processo consiste em trabalhar previamente a
terra à enxada misturando-a com água. Seguidamente,
é amassado o barro e a moldagem é efectuada da
forma desejada. Por fim é feita a secagem, as peças de
barro são empilhadas de forma desencontrada e
colocados no forno em camadas.
Actualmente poucos fornos de produção artesanal
resistem – somente alguns dos de S. Pedro do Corval
(Évora), Galveias (Portalegre), Montemor-o-Novo e
Évora.
Destes poucos é raro encontrar os que ainda
produzem "baldozas" e tijolo "lambaz" de espessura
reduzida. Todavia ainda existem casos onde todo o tipo de
elementos cerâmicos cozidos são efectuados tal como
23
Informação verificada pelo autor nas visitas efectuadas no âmbito da pesquisa de material necessário para a construção deste documento.
14. São Pedro do corval [CV, 2011]
13. São Pedro do corval [CV, 2011]
38
pode ser verificado pelo proprietário de dois fornos – o Sr.
Luís Fernando Ramalho Dias - que efectua peças
personalizadas e que afirma que as peças que mais fabrica
são as de o tijolo maciço.24
3.2.7. OS SISTEMAS CONSTRUTIVOS
Apesar de caracterizada como “a mais vasta e monótona unidade natural do território”25
A fraca diversidade de materiais disponíveis como a madeira e pedra - adequada à construção de
alvenarias aparelhadas e regulares -, estimulou a aplicação criativa de materiais cerâmicos e terras
promovendo a criação de sistemas singulares. Exemplos de aplicações são os sistemas em arco,
técnicas para execução de pisos e coberturas e aplicações da terra em alvenarias.
3.2.7.1. ALVENARIAS
É verificada a utilização da terra, pedra e materiais cerâmicos na construção de paredes e muros
tradicionais.
A terra é predominantemente utilizada nas paredes monolíticas em taipa e alvenarias de
adobe.Com a pedra constroem-se paredes em alvenaria ordinária de granito, xisto e mármore e em
alvenaria seca de xisto apenas travado. O tijolo maciço ou «lambaz» é também utilizado nas alvenarias
tradicionais.
Actualmente estas técnicas são conhecidas e pontualmente aplicadas em habitações e muros
recentes.
3.2.7.1.1. ALVENARIA DE TAIPA
O processo consiste em bater a malho, dentro de uma espécie de caixa de madeira, sem fundo
(taipal), uma mistura de barro com pedriça, apanhada muita vez ao lado dos muros que se estão levantando.
Deslocando lateralmente o taipal, obtém-se uma faixa a todo o comprimento do muro que se deseja;
levantada ela, deixa-se endurecer a ponto de servir de apoio ao taipal e vai-se assim erguendo
sucessivamente o muro, desencontrando-se as juntas verticais, para obter travação. Às vês usam-se alicerces
24
Conversa com o Sr. Luís Fernando Ramalho Dias. No seu local de trabalho. São Pedro do Corval. Junho de 2010. O Sr. Luís Fernando Ramalho Dias, proprietário de dois fornos deste tipo – um para pequenas quantidades e outro para as
grandes, Constatou que a procura tem vindo a diminuir e como tal a utilização do forno maior é diminuída. Alguns dos seus c lientes mais
ilustres são os arquitectos Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura. 25
RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1998, Pág.151
15. São Pedro do corval [CV, 2011]
39
de pedra, no geral salientes, e fiadas de pedra ou de tijolo entre as diferentes faixas de taipa.
RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992. Pág.32
Esta foi a técnica de construção mais utilizada na
habitação tradicional alentejana até aproximadamente os
anos 50 do século XX.
As paredes deste material podem variar entre os
0,45m a 0,60m nos edifícios de um piso e atingindo os
0,90m no piso térreo nas construções de dois pisos.
Como descrito pela investigação efectuada pela
arquitecta Mariana Correia26
, a taipa utilizada na construção
tradicional alentejana apresenta bastantes variações,
dependendo do tipo de terra utilizado e sujeitando-se ainda à
tradição de construção da região ou do taipeiro.
Onde o é solo xistoso (Outeiro, Reguengos de Monsaraz e Vales Mortos, Serpa) encontra-se uma
taipa forte, de tipologia simples e com juntas difíceis de distinguir.
Pode encontrar-se, entre as fiadas horizontais da taipa, uma argamassa fina de barro.
Nas Aldeias de Montoito, a terra apresenta grãos mais finos. A presença de quartzo dificulta a boa
agregação na consistência da taipa. Por conseguinte é normal encontrar uma fiada de tijolo maciço, envolvida
por argamassa de cal, a consolidar cada camada de taipa. É adicionado à composição da taipa, pedaços de
tijolo ou telha, pedra irregular e "escumalha de ferro" (pequenas pedras castanhas naturais da zona) de forma
a compensar a falta de esqueleto do solo local. Nas zonas onde aterra se apresenta mais argilosa, era por
vezes utilizada uma fiada de adobes ou de xisto, entre cada camada de taipa.
Em Saraiva e Colos encontra-se uma terra fina que permite uma boa compactação. A tipologia é
simples com argamassa nas juntas verticais e horizontais. Contudo, existem problemas de ordem estrutural
devido à existência de grande quantidade de lodo. É por este motivo, frequente encontrar no topo de muitas
das juntas, de modo a evitar possíveis fissuras verticais, pedras deitadas, por vezes de dimensão elevada.
Na costa alentejana, onde a terra tem características
arenosas, existem construções de duas camadas de taipa por
taipal. A travar as estreitas camadas desta taipa arenosa, foi
construído uma fiada de pedra de elevadas dimensões.
26
Dentro do seu vasto trabalho de investigação sobre arquitectura de terra serviram de base para o presente trabalho: o livro Taipa no Alentejo; o seu contributo no livro Arquitectura de Terra em Portugal; e o artigo A taipa alentejana: sistemas tradicionais de
protecção, escrito com a colaboração de Jacob Merten.
16. Mértola. [CV. 2011]
40
Em Alcácer do Sal, quando se produzia a taipa com
uma terra com forte presença de húmus, chamada de “taipa
negra” e devido è grande retracção do solo, era usual
realizarem-se duas camadas por taipal e, entre as fiadas de
taipa, utilizava-se tijolo maciço e argamassa de cal.
Nos casos descritos existem outras variantes, que
dependem de elementos que se encontrassem na terra e de
quem as produzia.27
Em 2007, a arquitecta Mariana Correia, indicava o
ressurgimento desta técnica construtiva no Alentejo, apesar de
a sua difusão ainda ser limitada.28
Actualmente, o interesse e
divulgação desta técnica está em crescimento com várias
iniciativas de investigação e actividades a serem desenvolvidas
na sociedade. A Associação Centro da Terra29
tem sido de
extrema importância na sua divulgação e na promoção da
discussão de ideias e de actividades como workshops.
A aplicação desta técnica associada a materiais e
linguagem contemporânea pode ser observada num projecto
do arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral, a “Casa de Taipa”.
Esta moradia, implantada na paisagem alentejana (arredores
de Beja), é constituída por paredes de taipa - com terra das
próprias escavações -, com a sua espessura e densidade
próprias, acabadas com um reboco de cal com pigmentos ocre-
terra, com coberturas ora de Betão, ora de estrutura de
madeira aparente.30
27
CORREIA, Mariana; MERTEN, Jacob. A taipa alentejana: sistemas tradicionais de protecção. 2003. CICRA, ESG. 28
CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007. P.29 29
Fundada em 2003, a Associação Centro da Terra constitui-se como um espaço de contacto entre interessados na temática da arquitectura e construção com terra crua e disponibiliza o site virtual em www.centrodaterra.org.
30 PEREIRA, Alexandre Marques. Uma casa algures no Alentejo. Entre Viana, a Califórnia e o México. P.26 In: Arquitectura e
Vida.Nº94. Jun, 2008
18. Casa de Taipa. Arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral. Arredores de Beja. [CCC. http://jgarq.blogs.sapo.pt]
17. Casa de Taipa. Arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral. Arredores de Beja. [JG. http://jgarq.blogs.sapo.pt]
41
3.2.7.1.2. ALVENARIA DE ADOBE
O adobe é o barro amassado juntamente com areia ou palha cortada, moldado em forma de tijolo e
seco ao sol. Usa-se na construção (de muros e paredes) sobreposto em fiadas com as juntas verticais
desencontradas. RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros
Horizonte. 1992. Pág.33
Em zonas onde a água é um recurso abundante
encontram-se as alvenarias de adobe nas paredes exteriores
e interiores. Exemplos são encontrados no Sorraia, vale do
Guadiana e na margem Sul do rio Tejo.
Devido à ocorrência recente de movimentos
migratórios de populações, oriundas de zonas onde
predominava o adobe e também devido às alterações na
agricultura associadas a construção de barragens e
subdivisão de propriedades agrícolas, é visível a substituição
da alvenaria de taipa pela de adobe. Por vezes, são
encontradas paredes de taipa e adobe na mesma construção,
sendo as de taipa as portantes exteriores e de adobe as
interiores. Isto acontece com frequência nas zonas de transição
para o Algarve.
Entre 1960 e 1970, a técnica do adobe foi
desaparecendo, ressurgindo recentemente, tal como indicado
em 2007 pela arquitecta Mariana Coreia, na construção de
algumas habitações na Costa Alentejana.31
A divulgação e interesse sobre este material são
semelhantes aos aplicados à taipa. E também aqui a
contribuição da Associação Centro da Terra32
é relevante e
significativa.
3.2.7.1.3. ALVENARIA DE PEDRA
Dentro das alvenarias de pedra, a alvenaria ordinária
31
CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007. P29 32
Ver nota 37
19. Serpa. [CV 2011]
20. Monsaraz. [CV 2011]
42
ou argamassada em aparelho irregular predomina na
construção alentejana.
Estas alvenarias eram normalmente rebocadas,
acontecendo porém, nas zonas urbanas, as fachadas
públicas serem muito decoradas enquanto as restantes eram
frequentemente deixadas em tosco, ou por rebocar.
As regras para a execução da alvenaria ordinária são
semelhantes às utilizadas na construção de alvenarias secas,
observando-se porém, que nestas o trabalho não exige o
mesmo rigor de execução, tornando-se mais fácil e rápido.33
Esta alvenaria é constituída por pedras irregulares escolhidas
com tamanhos e formas adequadas. Eram posteriormente
molhadas evitando a retracção quando assentes em
argamassa. Eram colocadas em perpianho34
e assentavam de
forma a ficarem estáveis evitando os espaços vazios.
A argamassa deve ser suficiente para ligar entre si as
peças, embora a solidez da parede esteja na pedra e não na
argamassa.
Os pontos críticos da parede eram tratados com maior
cuidado. Para o topo eram utilizadas pedras mais regulares.
Os cunhais, muitas vezes eram construídos em blocos
regulares colocados em sentidos diferentes, de forma a
consolidar a construção naquela zona. Para a execução
destes pontos críticos eram frequentemente utilizados blocos
em granito ou mármore, ainda que a parede fosse construída
por outra pedra. Isto acontece também nos vãos em ombreiras,
vergas, soleiras e peitoris.
Na ausência de pedras regulares, construíam-se
arcos em tijolo maciço em vergas e alvenarias no mesmo
material em cunhais, vãos e no topo da construção.
O recurso a alvenarias de pedra para as fundações
era frequente em todas as paredes, e também utilizada para o
capeamento do topo das paredes, nas ligações entre o
beirado e a alvenaria, e nos reforços de paredes em terra,
33
Biblioteca de Instrução Profissional. Alvenaria, cantaria e betão. Livraria BERTRAND. Lisboa. 34
Ocupando a largura da parede
22. Museu da Luz. arquitectos Pedro Pacheco e Marie Clément. Aldeia da Luz. [CV 2011]
21. Monsaraz. [CV, 2011]
43
como os "gigantes”35
.
A pedra mais utilizada na construção alentejana foi o xisto. Hoje, ainda são construídas casas e
principalmente muros com estas pedras. O Mestre abobadeiro José Mendes Massano, residente em
Reguengos de Monsaraz, e que trabalha como pedreiro, indicou que ainda realiza trabalhos com esta
pedra referindo trabalhos de habitação e trabalhos de restauro e construção de algumas paredes com
alvenaria de xisto na zona histórica de Monsaraz.36
3.2.7.2. PISOS E COBERTURAS
A já referenciada ausência de madeiras adequadas à construção limitou a utilização dos sistemas
de execução de pisos, pavimentos e coberturas.
As peças de madeira que consistiam em vigas para vencer os vãos dos pisos e das coberturas,
eram trabalhados artesanalmente e secos. A peça finalizada tinha secção circular e eram designados de
“toros” ou “barrotes”.
O uso do tijolo ficou principalmente limitado à execução de arcos e nas soluções de pisos e
coberturas, com sistemas de grande interesse.
Destacam-se os tectos e pisos resolvidos em arco, construídos em abóbadas e abobadilhas.
3.2.7.2.1. ABOBADAS E ABOBADILHAS
O Alentejo será sem dúvida uma das zonas mais significativas da arte de construir abóbadas em
tijolo como as de canhão de berço nervuradas de aresta, cúpulas e as características abobadilhas
alentejanas, algumas quase planas de tão abatidas. MESTRE, Victor e ALEIXO, Sofia. A arquitectura Popular Alentejana: “A civilização do Barro”. In: Arquitectura e construção, nº14, 2001.
Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com
A construção de abóbadas e abobadilhas era frequente no Alentejo. Estas eram executadas sem
recurso a cofragens ou qualquer apoio auxiliar.
A diferença entre elas tem a ver com a posição como se assenta o tijolo. Se o tijolo é colocado ao
cutelo e na vertical denomina-se abóbada, mas no caso de ser colocado deitado denominamos como
abobadilha.
Antes de se começar a construir, o mestre abobadeiro traça o arco com cordel e ponteiro, nas
paredes que apoiarão a futura abóbada ou abobadilha com dimensão adequada ao vão que se quer
vencer.
35
Contrafortes encontrados nas paredes de taipa e que se designam de “moirões” na fronteira para o Algarve. A colocação
destes indica a ausência de fundações nas construções de taipa. 36
Conversa com o Mestre Abobadeiro José Mendes Massano. Na sua habitação. Reguengos de Monsaraz. Junho de 2010
44
Quando são traçados dois arcos estes darão origem
à abobada/abobadilha de “berço” ou “canhão”, enquanto
sendo traçados quatro arcos, serão executadas as de
“engra” ou “barrete de clérigo”.
A dimensão da flecha no caso da abobadilha é
geralmente reduzida, ficando algumas quase planas de tão
abatidas.
A construção da abóbada ou da abobadilha começa-
se sempre dos cantos para o centro. Pode encontrar-se
diversas soluções para o fecho dependendo do mestre
abobadeiro.
Existem ainda outras variantes além das descritas
como as abobadilhas de “caixotão”. Trata-se de um sistema
misto em vigas paralelas de madeira ou ferro, entre as quais
são construídas abobadilhas de berço em vão reduzido. Este
sistema, associado aos primórdios da arquitectura industrial,
que permite vencer vãos de dimensões consideráveis, é
destacado no Inquérito à Arquitectura Regional em Portugal37
.
Os ligantes utilizados na execução de
abóbadas/abobadilhas eram a cal ou o gesso. O gesso
permitia uma solidificação mais rápida e consequentemente
uma execução mais rápida. Finalmente as superfícies eram
rebocadas e caiadas, por vezes estucadas, protegendo
assim o sistema construtivo.
O mestre abobadeiro João Mendes Massano confirma
esta técnica construtiva como dispendiosa e só em casos muito
particulares é executada actualmente. Este mestre abobadeiro,
residente na aldeia da Barrada (Reguengos de Mossaraz),
aprendeu esta técnica baseado na observação e explicação de
outro mestre abobadeiro. O seu percurso profissional reflecte a
passagem de conhecimento popular, a (tentativa de)
transmissão de conhecimento e o desinteresse colectivo na
aplicação das técnicas tradicionais, comprovado pelo insucesso
da procura dos seus serviços.38
37
AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.45 38
A última vez que construiu uma abobada já fez dois anos e os últimos cursos que deu 15. Actualmente trabalha como um vulgar
23. Igreja de Santiago. Monsaraz. [CV 2011]
24. Igreja de Santiago. Monsaraz. [CV 2011]
25. Casa da Cultura da Juventude de Beja.
Beja. [CV 2011]
45
3.2.7.2.2. COBERTURAS DE ÁGUAS
As restantes coberturas de uma ou duas águas, na
maioria são construídas com os já referidos “toros” ou
“barrotes”, sobre os quais se dispunham pregadas as ripas ou
o caniço, onde iriam assentar as telhas de canudo,
geralmente argamassadas.
Raramente se encontram coberturas em terraço e
asnas para o assentamento das telhas.
3.2.8. REVESTIMENTOS
A cal aérea era o acabamento mais frequentemente
utilizado no Alentejo.
A superfície da parede tinha que estar totalmente limpa e seca
para que se pudesse efectuar o acabamento de cal de forma
eficaz. Era executado em três camadas, sendo a última
afagada ou lisa. O acabamento final desta superfície era feito
com leite de cal branca39.
Por vezes a caiação era aplicada em detalhes
arquitectónicos, ou nas duas camadas a aplicar, colorida,
misturando a cal com pigmentos minerais. Assim se
personalizavam as habitações e se diminuía o reflexo
agressivo da luz, em superfícies totalmente brancas.
Poucas variações se encontravam nos acabamentos
alentejanos. Por vezes recorriam a trabalhos mais
elaborados e decorativos, de esgrafitos (em baixo relevo e
esgrafitado) e stucos (em alto relevo), sempre coloridos, com
influência de edifícios eruditos.
pedreiro, mas tem grande sabedoria nas técnicas tradicionais alentejanas. Foi responsável pela construção de várias abóbadas não só no
Alentejo, mas por todo o país, como: Coimbra, Sintra, Cabo Espichel, Palmela, entre outras localidades. Dos últimos trabalhos que
realizou nomeou a reconstrução das abóbadas da igreja de Santiago em Monsaraz, as imensas abóbadas do Hotel Província em
reguengos de Monsaraz e as abóbadas de algumas moradias de proprietários abastados. 39
Leite de cal branca é definido por cal em pasta diluída numa porção de um para quatro em volume de água
28. Montemor-o-Novo. [CV 2011]
26. Mértola. [CV 2011]
27. Mértola. [CV 2011]
46
A apresentação final da construção feita com os
rebocos de cal contribuía para a coesão das alvenarias e
escondiam as imperfeições e irregularidades das alvenarias,
criando superfícies uniformes.
Em visitas efectuadas ao Alentejo, é possível verificar
o uso da cal nos edifícios sendo notória a crescente
aderência aos rebocos contemporâneos.
29. Montemor-o-Novo. [CV 2011]
66
ARREDORES DE BEJA
Moradia em Taipa
Arquitecto: Bartolomeu da Costa Cabral [JG; CCC. http://jgarq.blogs.sapo.pt]
72
ELEMENTOS CERÂMICOS
Sr. Luís Fernando Ramalho Dias – Proprietário de fornos de produção tradicional
São Pedro do Corval [C.V. 2011]
74
ABÓBADAS, ABOBADILHAS E ALVENARIAS DE XISTO
Mestre abobadeiro João Mendes Massano
Aldeia da Barrada (Reguengos de Monsaraz) [C.V. 2011]
76
CAL LIGANTE
Mestre Caleiro Festas – Proprietário de forno tradicional activo de produção de cal
Barro Branco (Borba) [C.V. 2011]
79
Não basta ao indivíduo da cidade vestir umas calças de surrobeco, calçar tamancos
e ajeitar uma enxada ao ombro para se integrar num meio rural; envergar pelico e safões para pertencer ao Alentejo; ou vestir camisa vistosa de lã aos quadrados e descalçar-se para
não destoar entre pescadores da Nazaré. Integrar-se, pertencer, são coisas mais sérias e profundas. De modo algum são
apenas maneiras de vestir, tanto pessoas como edifícios. AAP. Introdução. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.12
Salvador Dalí. O rosto de Mae West. 1935.
http://www.dali-gallery.com
80
4. CONSTRUIR SÍTIOS
A leitura consciente do inquérito foi (…), ao contrário do que se temia, não uma aceitação das formas,
mas a compreensão da arquitectura regional e um subsequente aproveitamento «erudito» das suas constantes;
mas essa consciência só se cristaliza uns anos após a sua finalização.
ESTEVES, José; MESTRE, Victor. A partir de uma conversa com o arquitecto Silva Dias a propósito do inquérito à arquitectura
regional portuguesa. 1987. P. 97. In: AA. VV. Antologia 1981 – 2004. Jornal de Arquitectos. Lisboa. 2004.
O IARP foi fundamental para impulsionar a humanização da arquitectura. As gerações seguintes têm
beneficiado deste documento numa perspectiva histórica, e podem encontrar aqui descritas as raízes da
nossa arquitectura portuguesa. A compreensão do passado é imprescindível para a construção de um futuro
melhor. A sua importância nos dias de hoje é confirmada pelo arquitecto Victor Mestre: “Quanto mais o tempo
passa, mais o admiro [o inquérito] e mais capacidade crítica tenho de o avaliar, como todos os documentos
que passam a ter um desempenho histórico.”40
A realização do IARP foi especialmente relevante pela forma como os arquitectos verificaram que
existia um conhecimento tradicional alargado que fora adquirido ao longo de gerações. Este conhecimento foi
aperfeiçoado através da experimentação e restringido aos materiais disponíveis na paisagem ou seja, a
arquitectura está directamente dependente do meio envolvente. Esta informação provocou uma nova
abordagem crítica sobre a arquitectura que entretanto se distanciara do Lugar em prol das tendências da
época.
Com isto surgem vários “arquitectos que tiraram proveito desse conhecimento e o introduziram numa
vertente contemporânea da altura, numa alternativa ao modernismo, numa revisitação, digamos, ao
regionalismo português, mas numa perspectiva erudita, evoluída, elegante e séria.”41
Por outro lado, após a investigação realizada no âmbito deste trabalho, é de considerar a revisão de
dois aspectos importantes pelos arquitectos, críticos e historiadores de arquitectura: por um lado o surgimento
de tipologias tradicionalistas assentes em ideias alegóricas erradas do que terá sido a Arquitectura
Tradicional Portuguesa e por outro lado os projectos de arquitectos que reclamam uma identidade própria
ignorando as preocupações sobre a implantação e a sua função como resposta à vivencia de pessoas e das
suas necessidades.
No primeiro caso, a falta de uma cultura arquitectónica por parte dos clientes, revela vontade de
querer adquirir modelos pseudo tradicionalistas. “A classe média Portuguesa que nunca viveu na ruralidade,
que nunca soube o que era tradição, que sempre viveu ou dentro das cidades ou no subúrbio da cidade, vive
40
Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 41
Idem.
81
o mito da casa rústica”42
. Surgem então, modelos desenquadrados na paisagem, baseados em conceitos de
“casa portuguesa” inadequados e sem conhecimento das técnicas construtivas ou materiais tradicionais.
O segundo aspecto trata-se da ambição criativa e de afirmação que alguns arquitectos
contemporâneos reclamam. “No saco da arquitectura contemporânea cabe um pouco de tudo… mas em
geral penso que está algo sufocada em si própria, num exercício (quantas vezes de virtuosa concepção
intelectual) de mera construção duma imagem, dum estatuto, da afirmação gratuita do autor como fim e não
do viver aberto ás pessoas (colectivo e individual) na sua naturalidade e consequente identidade.”43
Concebendo, edifícios isolados, sem relação com o envolvente, clima e as preexistências, na tentativa
forçada de criar modelos diferentes que se sobrepõem ao conceito essencial da arquitectura e
consequentemente, “ para além do grande desastre delas próprias, porque daqui a um, dois, dez anos
estarão gastas e completamente descontextualizadas no olhar de toda a gente, mesmo no dos que a
admiraram, por outro lado criaram modelos repetitivos e cada vez menores, cada vez de menor qualidade”.44
Numa época em que a arquitectura teve um percurso complexo, ao longo do século passado, até se
impor em Portugal pela qualidade e diversidade expressiva (às vezes, infelizmente, como ilhas num mar de
vulgaridade...) diversos caminhos têm sido seguidos, em função de escolas ou de preferências individuais dos
arquitectos, havendo também quem se preocupe em associar a forma arquitectónica à construtiva, considerando
esse diálogo como extremamente rico e apto a valorizar a concepção da arquitectura.
Ferreira, Hestnes. Conhecer o tijolo para construir a arquitectura. Seminário sobre Paredes de Alvenaria. Porto. 2002
A preocupação em associar a forma arquitectónica à construtiva é visível no trabalho do arquitecto
Hestnes Ferreira descrito por Victor Mestre como “um grande arquitecto, um grande erudito. Um arquitecto
que tem uma formação sólida e que tem uma dimensão da arquitectura de um tempo antigo”.45
O arquitecto Hestnes Ferreira procurou na sua arquitectura responder ao desafio de associar a forma
arquitectónica à construtiva com autenticidade proporcionando esse diálogo entre a forma e a sua resposta
construtiva e fundamentando-se numa busca constante de apreensão do conhecimento das várias técnicas
construtivas desde a ancestralidade até às mais contemporâneas.
Podemos observar no seu trabalho a conjunção, por vezes, de técnicas tradicionais e
contemporâneas justificadas pelo entendimento das condicionantes do local e da sua cultura, culminando em
edifícios de carácter contemporâneo capazes de responder às necessidades impostas por uma sociedade em
constante mutação e que ao mesmo tempo detém a identidade do Lugar.
Expressando uma vontade e gosto por uma arquitectura assente nas raízes da sua cultura, Hestnes
Ferreira afirma aos arquitectos Alexandre Alves Costa e Adelino: “Eu acho que o nosso meio devia ter outra
42
Idem. 43
Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011 44
Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 45
Idem.
82
arquitectura. Para além de ter pessoas fantásticas como o Siza e outros, devia ter uma arquitectura mais
profunda, com uma preocupação de se fundar nas raízes, nas suas raízes. Embora pudesse ser
contemporânea, e seria com certeza, que se relacionasse, de alguma forma, com o que fizemos antes” 46
.
Confrontado com a questão: E como é que tu achas que se pode ler, na tua obra, essa procura?”, responde:
“Eu acho que nalgumas obras se pode ler. Não direi em todas. Por exemplo, nas coisas que fiz em Beja,
pode-se sentir essa procura.”47
Como caso de estudo para esta dissertação a Casa da Cultura da Juventude de Beja incorpora
técnicas contemporâneas e técnicas tradicionais mencionadas no IARP e desenvolvidas por artesão
Alentejanos. Sendo um projecto de 1975/85, ainda dentro do tempo considerado contemporâneo, mas tendo
d tempo suficiente para a sua avaliação, é um exemplo que se pode considerar hoje como um edifício que se
mantém actual e contextualizado, continuando a responder às necessidades desta nova sociedade.
46
Costa, Alexandre Alves; Gonçalves, Adelino; Correia, Nuno. Conversa com Raúl Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel;
Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.275 47
Idem
83
4.1. O ARQUITECTO HESTNES FERREIRA E A CASA DA CULTURA DA JUVENTUDE
DE BEJA
Na altura da realização do IARP, o arquitecto Hestnes
Ferreira era estudante de arquitectura no Porto. O arquitecto
Keil do Amaral, amigo da família, já tinha expressado várias
vezes a sua vontade em concretizar o Inquérito, e no Porto já
assistira a várias reuniões de arquitectos que vieram mais tarde
a participar neste. Estas situações foram relevantes para que
desde cedo tivesse conhecimento da vontade que existia na
sua elaboração e no acompanhamento do seu
desenvolvimento.
O IARP teve grande influência na sua ambição de
fazer prevalecer uma arquitectura assente nas precedências e
com a implantação dos edifícios. “Não ter a ideia de haver um
único modo de fazer arquitectura ao longo de todo o país
acabou por ser muito importante para a minha geração”.48
Sobre Fernando Távora, arquitecto responsável pela
zona 1 do IARP49
e que considera como seu inspirador,
Hestnes Ferreira afirma: “era um homem extremamente culto e
sempre pensou que, para além das teorias que vinham do
exterior, havia uma realidade nossa”.50
Acrescenta, “Eu
conheci vários arquitectos que tiveram no inquérito e que um
deles foi o Távora que era meu professor e outros foram meus
amigos. Quase todos os arquitectos jovens que tiveram nessas
equipas conhecia-os bastante bem, de maneira que segui de
alguma forma o inquérito, a produção do inquérito e as
conclusões do inquérito”.51
Outro arquitecto que influenciou Hestnes Ferreira foi
Alvar Aalto que conhece na Finlândia - onde trabalhou e
estudou. “O melhor, talvez, foi olhar as obras do Alvar Aalto,
não só as mais antigas, Paimio, Vila Mairea, etc., mas as
48
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 49
Minho, Douro Litoral e Beira Litoral 50
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 51
Idem.
1. Serpa. [CV 2011]
2. CCJB. Hestnes Ferreira. Beja. [CV
2011]
84
recentes, revestidas em tijolo no exterior, como Saynatso ou a
casa da Cultura de Helsínquia, ainda pouco conhecidas fora.”52
Após a sua estadia na Finlândia Hestnes Ferreira
decide ir para os Estados Unidos, onde veio a estudar e a
trabalhar com o arquitecto Louis Kahn que marcou
profundamente a sua forma de pensar e fazer arquitectura.
“não me sentia minimamente finlandês. (…) Depois meteu-se-
me na cabeça ir para os Estados Unidos. (…) Foi por acaso
que me aconteceu, que me aconteceu aquele encontro. Estive
em Yale. Iam fazer uma visita ao atelier do Kahn. Foi um feliz
acaso. Os acasos… muitas vezes, os acasos não são
acasos”.53
“uma pessoa só procura aquilo que deseja. Eu tinha
a possibilidade de trabalhar com outros arquitectos, mas de
facto, o facto de eu trabalhar com ele é porque eu já tinha
qualquer afinidade. Aprendi muito com ele, deu-me novas
perspectivas, mas de qualquer maneira teve uma certa
ressonância no meu modo de ser e na minha arquitectura,
porque, efectivamente, eu já estava predisposto para ela”.54
Numa altura em que o modernismo se encontrava em
crise e a arquitectura necessitava de uma profunda reflexão
sobre si própria, Louis Kahn, “foi um arquitecto que de alguma
forma tentou reestruturar a visão da arquitectura, quer dizer,
passado um período em que sobretudo se inovou muito do
ponto de vista da arquitectura, com novos espaços, novos
materiais, novas formar de construir, ele tentou apesar de tudo,
reintegrar a arquitectura num ciclo de uma maior profundidade
no tempo, quer dizer, não só na época do século XX, (…) mas
também fazendo-o numa perspectiva histórica”.55
Louis Kahn defendia uma a ideia de uma arquitectura
universal, baseada nos conhecimentos adquiridos pela
experimentação humana. Defendia que esse conhecimento e
reflexão eram necessários para existir uma lógica de
52
Costa, Alexandre Alves; Gonçalves, Adelino; Correia, Nuno. Conversa com Raúl Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P. 266
53 Idem. P.273
54 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011
55 Idem.
3. Ermida de Santo André. Beja. [AVM 2007]
4. Unidade Residencial na Estrada de Lisboa. Hestnes Ferreira. Beja. [AVM 2007]
85
continuidade e que a arquitectura deveria olhar para este
conhecimento adquirido podendo recorrer-se dele quando
surgisse a altura apropriada. “Amo os inícios. Os inícios
enchem-me de maravilha. Creio que o início é o que garante a
prossecução. Se esta não tem lugar, nada poderia nem
quereria existir”.56
Foram estes valores que atraíram Hestnes Ferreira.
Além disso, fascinava-o a coerência com que aplicava as suas
ideias e as transmitia “não se limitando a procurar uma prática
da arquitectura, mas também reflectindo sobre o seu
significado”.57
Na sua arquitectura sempre única e pessoal,
reconhecemos a herança “kahniana” em determinadas
características, tais como o recurso a valores universais da
arquitectura na base da criação de novos espaços e
arquitecturas que respondem a novos programas, o uso de
materiais tradicionais e o prazer artesanal do seu tratamento58
.
Também verificamos a lógica de concordância entre o espaço e
a técnica construtiva e essa influência não se traduz numa
cópia, mas numa forma de utilizar esses ensinamentos,
conciliando-os com as suas próprias ideias “Obviamente teve
uma enorme influência e eu aceito muita dessa influência, mas
a minha maneira de pensar será diferente da dele e por isso
tinha que ser diferente”.59
Além do mais, Hestnes Ferreira compara os pensamentos
dos arquitectos responsáveis pelo inquérito, às ideias do
arquitecto Louis Kahn que defendia “que não se podiam fazer
barreiras na arquitectura, que não podíamos esquecer o que é
que tinha sido feito antes da arquitectura moderna, do mesmo
modo eles [arquitectos responsáveis pelo inquérito] também
56
KAHN, Louis. Amo os inícios in: J.A.A Condição Pós - Moderna. Lisboa. 2002. P.100 57
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 58
DUARTE, Carlos Santos. Raul Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002;
edições ASA; 2002. P.12 59
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011
5. Monsaraz. [CV 2011]
6. Unidade Residêncial João Barbeiro. Hestnes Ferreira. Beja.
[CV 2011]
86
procuravam, inspiraram-se de alguma maneira na realidade que eles conheceram”.60
Na Casa da Cultura da Juventude de Beja (CCJB) é visível a influência do IARP e do arquitecto Louis
Kahn guardando no entanto a sua singularidade enquanto obra arquitectónica.
Se os arquitectos alimentam alguma esperança quanto ao domínio da sua arte, o factor mais
significativo é o de construir sítios, de lhes reconhecer a natureza, de lhes discernir as condições e as
pertinências. Sem traçar o processo dessa pesquisa, notar a existência de tais sítios, "momentos" marcados por
uma presença do espaço, é uma alegria que as obras de Raul Hestnes Ferreira me proporcionaram. A obra dos
mestres, como Louis l. Kahn, reputado, ou de alguns outros, famosos ou confidenciais, testemunha a natureza
poética da arquitectura e inspira essa realidade do "sítio", que, além disso, figura nas tradições. Essa realidade
emerge de novo aqui.
SERNEELS, Willy. Convite a uma descoberta. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições
ASA; 2002. P.26
O projecto da CCJB surge no seguimento do 25 da
Abril do século XX, quando o arquitecto Hestnes Ferreira é
convidado a projectar três edifícios com o mesmo programa,
em Braga, Beja e Viseu. O de Beja seria o único construído. O
de Viseu terá ficado num estado mais embrionário, no entanto
dos outros Hestnes Ferreira expressa: “é o mesmo programa e
eu acho muito interessante confrontar os dois edifícios, não tem
nada a haver um com o outro e simplesmente o programa é o
mesmo, o mesmo tipo de espaços e eu acho piada por ver o
mesmo arquitecto que está a gerir em dois sítios diferentes e
com o mesmo programa, faz propostas completamente
diferentes uma da outra”.61
Assim se pode constatar a forma
sensível com que o arquitecto aborda o lugar e as suas
premissas.
Essa vontade na relação com o local e as suas
tradições, surge desde o inicio do projecto, “quando comecei a
estudar o edifício de Beja, saltou logo esse conhecimento que
eu então já começava a ter do Alentejo. O ter um carácter mais
associado à Arquitectura que eu interpretava como sendo a
arquitectura do Alentejo”.62
60
Idem. 61
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011. 62
Idem
7. CCJBraga. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002.
8. CCJBeja. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002.
9. CCJViseu. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002.
87
Transparecendo essa relação com a arquitectura
alentejana, surgem umas abóbadas «barrete de clérigo»
executadas por pedreiros de Serpa63
, de acordo com os
conhecimentos ancestrais, que estão descritas no inquérito e
muito surpreenderam Hestnes Ferreira.
A implantação privilegiada, num dos principais espaços
urbanos envolventes do centro da cidade, foi também
determinante no carácter do edifício, “isto poderia ser uma
coisa interessante para este edifício, está aqui um bocado
centrado neste espaço, ter um ar festivo.”64
A norte do edifício localizar-se-ia uma área destinada a
um monumento, que acabou por não ser edificado. A sul
prolonga-se por um auditório ao ar livre, que está virado para
um palco exterior e que comunica com o interior do edifício.65
O edifício é constituído por um sistema modular de
planta central em cruz, onde cobrindo uma série de secções
quadradas, correspondem as abóbadas tradicionais. “A planta
central foi muito inspiradora da arquitectura do Kahn, (…) pela
centralidade do edifício, (...). A localização central que teve
convidava, a própria organização interna (...). Tudo isso
convidava muito a essa racionalidade e a essa modelação.
(…) obviamente que eu também tive a ver livros, com o
conhecimento de igrejas, igrejas ortodoxas (...). Tive a ver que
as abóbadas foram muito usadas em determinados contextos,
sobretudos religiosos”.66
Na zona central, ao invés de uma grande abóbada
única, quatro abóbadas cobrem a zona principal do edifício.
Esta área contém um átrio, o sistema de circulação e uma sala
polivalente, de pé direito duplo. Nos quatro cantos deste corpo
63
Localidade Alentejana, onde persistiu um conhecimento pela técnica construtiva de abóbadas e abobadilhas, mas que se encontra ameaçado pelo desuso desta técnica nos dias de hoje.
64 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.
65 NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.87
66 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.
11. CCJB. Beja. [CV 2011]
10. CCJB. Beja. [CV 2011]
12. CCJB. Beja. [CV 2011]
88
central, corpos também cobertos por quatro abóbadas de
menor dimensão criam os outros espaços necessários ao
programa67
.
Se a planta em "cruz" remete-nos para o Cardus e o
Decomanus, e a utilização das abóbadas podia reforçar essa
ligação, um desdobramento dos elementos construtivos dá-lhe
um carácter actual que aspira a uma intemporalidade espacial e
oferece uma possibilidade generosa da utilização das células.
A estrutura contemporânea do edifício em betão
armado concilia-se com a construção das abóbadas baseadas
nas técnicas construtivas tradicionais e arcos em tijolo que
aludem à tradição monumental da arquitectura romana, no
entanto, o desenho dos vãos é uma invenção geométrica
criada pelo arquitecto. Ou seja, concilia uma naturalidade
construtiva com um desenho geométrico que percorre todos os
elementos do edifício, acrescentando o "novo" à aspirada
ancestralidade.68
O sistema construtivo apresenta-se como uma
elaboração pormenorizada e coerente, baseado num profundo
conhecimentos das várias técnicas construtivas, “Todos os
espaços, as abóbadas, tudo isso tinha que ter certa regra, de
maneira, que essa modelação nasce muito disso. Por outro
lado é uma coexistência entre uma estrutura de Betão armado,
as abóbadas poderiam ter assentado sobre paredes, elas
assentavam sobre paredes, mas simplesmente as paredes
também eram formadas por uma estrutura em betão armado,
em certos pontos tinham que fechar sobre essa estrutura em
betão armado”.69
Sobre a inserção dos elementos tradicionais na CCJB,
67
NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.88 68
FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira. A Periferia Perfeita. Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anos 60-Anos 80.Dicertação de Doutoramento em Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Março, 2009.
P. 334-335 69
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.
13. Planta de localização. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002
.
14. Planta corpo central. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002
16 Cortes. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002
17. Cortes. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002
15. Cortes. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002
89
o arquitecto Victor Mestre confirmou: “Acho que o que ali se
impôs foi a tecnologia tradicional, muito bem executada e muito
bem projectada obviamente. Aquilo não é uma escala de
arquitectura tradicional e mesmo da arquitectura vernacular…
Por isso é que eu acho que aquilo é uma arquitectura muito
própria, muito Hestnes Ferreira”.70
Um conhecimento imenso e a assimilação dos
ensinamentos do arquitecto Louis Kahn e das informações do
IARP reflectem-se num domínio sobre todas as premissas do
projecto. A sensibilidade ao local onde é implantado, a visão do
que devia ser a forma que levasse a uma sociabilidade e que
se pudesse prolongar no tempo com uma certa
monumentalidade baseada numa arquitectura universal; para
além do tratamento sério que é dado a toda a estrutura,
englobando técnicas tradicionais e contemporâneas, resultando
num edifício que na altura em que foi construído era actual.
Não são simplesmente os materiais ou as técnicas
construtivas recentes que fazem um edifício contemporâneo, o
caso da CCJB mostra a possibilidade de ser possível a criação
de construções actuais, que perduram no tempo recorrendo ao
conhecimento assimilado de outras técnicas ancestrais e
conciliando-as de forma autêntica.
Sobre isto Hestnes Ferreira afirma: ”É uma questão
que acho que nunca se vai esgotar, porque às vezes voltamos
atrás e reflectimos. Continua a haver um acerto conhecimento
e pessoas que defendem e que continuam a fazer de uma
determinada maneira, vejo isso com a construção de tijolo, por
exemplo. A certa altura é assim, uma pessoa tem que
diversificar as técnicas”.71
70
Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 71
Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.
18. CCJB. Beja. [CV 2011]
19. CCJB. Beja. [CV 2011]
93
5. CONCLUSÃO
A casa da Cultura da Juventude de Beja concilia uma estrutura de betão armado, com abóbadas
construídas de forma tradicional, arcos em tijolo que aludem à tradição monumental romana e um desenho
muito próprio do arquitecto Hestnes Ferreira. Passados aproximadamente 30 anos da sua construção,
podemos constatar que se mantém contextualizado e actual. Assim, é verificado nesta obra a pertinência de
um vasto conhecimento das técnicas de construção tradicionais e contemporâneas permitindo a possibilidade
de adequar a forma arquitectónica à construtiva de forma enriquecedora do projecto, recriando obras
contemporâneas, criativas com um carácter individual sem recorrer somente à inovação, por vezes forçada,
onde as soluções se tornam muito mais limitadas.
É visível na zona do Alentejo a persistência de alguma cultura local, que permitiu a transferência do
conhecimento das técnicas tradicionais e consequentemente o seu uso actual. Com o passar do tempo estas
técnicas ainda perduram, resultado de um interesse em faze-las prevalecer e utiliza-las de forma a garantir
que a perda cultural não seja concretizada. Para tal, entidades e arquitectos têm vindo a promover o seu uso,
disseminando informação ou inserindo-as nas suas obras, respectivamente. Embora ainda diminuído, existe
um crescente interesse por parte de gerações recentes que resulta numa reutilização visível.
Neste âmbito o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa é particularmente importante devido ao
descrito detalhe das diferentes técnicas, permitindo constatar historicamente a arquitectura vernacular e a
forma autêntica do diálogo entre as suas construções e o Lugar. Ou seja, permitiu uma ideia de continuidade
na arquitectura portuguesa, tornando-se de extrema importância para a fixação destas formas e sistemas em
várias gerações de arquitectos. A sua reminiscência inicia-se com os intervenientes directos, como o
arquitecto Keil do Amaral, até aos arquitectos que beneficiaram da sua informação. O arquitecto Bartolomeu
da Costa Cabral que projectou a Casa de Taipa e procurou esta articulação resultando numa forma
assumidamente de carácter contemporâneo. Outros exemplos e arquitectos foram inspirados pelo Inquérito,
como Raúl Hestnes Ferreira, que consagrado pela experiência internacional e a sua ligação particular a Louis
Kahn estimularam a sua vontade de concretizar projectos em sintonia com a articulação pretendida.
Da vontade de Raúl Hestnes Ferreira e apesar da distância temporal entre os dias de hoje, o trabalho
do arquitecto na Casa da Cultura da Juventude de Beja, nomeadamente o modo como se apropria das
técnicas tradicionais e as contemporiza é tema recorrente no século XXI. Citando o arquitecto Nuno Malato,
sobre a Casa da Cultura da Juventude de Beja: “reconheço-lhe o mérito duma pesquisa com raízes locais,
também em elementos simbólicos, numa concepção espacial assumidamente moderna, coerente e
surpreendentemente livre como a arquitectura vernacular e a Natureza”72
72
Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011
95
6. BIBLIOGRAFIA
Livros:
AAP, 'Arquitectura Popular em Portugal'. 3.ª Edição. Lisboa. 1988
FATHY, Hassan. ARQUITECTURA PARA OS POBRES. Uma experiência no Egipto rural.1ª Edição. Lisboa.
ARGUMENTUM. 2009
INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL; Centro Regional de Artes Tradicionais (coord.) -
As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea.
Lisboa: IEFP, 2010
CCDRAlg; Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura
vernácula da região oriental da serra do Caldeirão, CCDRAlg e edições afrontamento, 2010
NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002
CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007
FERNANDES, Maria; CORREIA, Mariana (Coord.Cient.). Arquitectura de Terra em Portugal / Earth
Architecture in Portugal. 1ª Edição. Lisboa. Editora ARGUMENTUM. 2005
RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora,
1998
RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992
Biblioteca de Instrução Profissional. Alvenaria, cantaria e betão. Livraria BERTRAND. Lisboa.
Artigos:
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alvenaria, P.B. Lourenço & h. Sousa (eds.), porto, 2002
MESTRE, Victor; ALEIXO, Sofia; A arquitectura Popular Alentejana: “A Civilização do Barro”; Arquitectura e
construção, nº14, Jun 2001, pp. 80-86. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com
MESTRE, Victor; ALEIXO, Sofia; O Monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais – Contributos para
o seu conhecimento e permanência; Olhar o monte Alentejano a pretexto de Alqueva, Colecçao museu da
Luz, Nº 3, Maio 2007, pp. 85-101. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com
LEAL, João; Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre Arquitectura Popular no século XX
Português; Conferencia Arquitecto Marques da Silva 2008; Fundação Instituto Arquitecto José Marques da
Silva; 1ª edição 2009
CORREIA, Mariana; MERTEN, Jacob. A taipa alentejana: sistemas tradicionais de protecção. 2003. CICRA,
ESG.
Revistas:
AA.VV. A condição Pós-Moderna. Jornal de Arquitectos. Lisboa. Nº 208 (Nov.-Dez. 2002)
96
AA. VV. Antologia 1981 – 2004. Jornal de Arquitectos. Lisboa. 2004.
Arquitectura e Vida.Nº94. Jun, 2008
Dissertações:
SOBRAL, Luís Pedro Pires; Arquitectura com algum pedigree – O vernacular na arquitectura contemporânea;
Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura; Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de
Coimbra; Departamento de Arquitectura; Agosto de 2009
FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira. A Periferia Perfeita. Pós-Modernidade na Arquitectura
Portuguesa, Anos 60-Anos 80.Dicertação de Doutoramento em Arquitectura. Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade de Coimbra. Março, 2009.
Entrevistas:
Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto
2011.
Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011
Artesão/Construtores/Proprietários:
Mestre Caleiro Festas. No seu local de trabalho. Barro Branco, Borba. Junho de 2010.
Sr. Luís Fernando Ramalho Dias, proprietário de dois fornos de produção artesanal de elementos cerâmicos.
No seu local de trabalho. São Pedro do Corval. Junho de 2010.
Mestre Abobadeiro José Mendes Massano. Na sua habitação. Reguengos de Monsaraz. Junho de 2010
99
7. ANEXOS
7.1. ENTREVISTA AO ARQUITECTO VICTOR MESTRE por Celine Vicente. Atelier VMSA,
arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011
1. O seu vasto trabalho de investigação mostra um interesse particular na área das técnicas tradicionais, de
onde surgiu esse interesse?
Isso é sempre difícil descobrir o princípio das coisas, mas tem muito a ver com o facto, ainda como
estudante de arquitectura, me ter interessado pelas teorias tradicionais, com uma especial atenção a algumas
pessoas que influenciaram muito a minha vida profissional: dois portugueses e uma estrangeira. O arquitecto
Fernando Távora, com o qual eu vim a fazer o mestrado e, a seguir, o doutoramento. O arquitecto Nuno
Teotónio Pereira com quem tive a felicidade de trabalhar, tive com ele momentos muito importantes e que
influenciaram determinados aspectos das minhas opções. E enquanto estudante de arquitectura, o Hassan
Fathy foi a grande descoberta, por uma razão muito forte, que se prende com, para além da própria
arquitectura em si, o que está por de trás daquela atitude, da arquitectura, aquela escolha e que me interessa
porque me interessa profundamente a antropologia.
Eu sou arquitecto de formação, mas sempre associei a arquitectura à antropologia. Mesmo quando
parti para os levantamentos de arquitecturas populares, antes de ir para os açores, que foi digamos o grande
início de tudo isto, já no Alentejo – porque parte da minha família é Alentejana – me interessei pelas técnicas
tradicionais alentejanas e estudei em particular a taipa.
Quando acabei o curso fiz um grande esforço para aprender a ser pedreiro, antes de ir começar a
exercer, e fui ver como é que se fazia. Vivi um ano no Alentejo e nesse em que vivi no Alentejo aprendi a
Taipa, os rudimentos do adobe, o barro e a pedra.
Depois tive a felicidade de participar no primeiro e único curso de mestre de construtores em Noudar
em 1984, com o Cláudio Torres, uma pessoa que eu conheci nos anos 80, logo no princípio que Mértola
estava a começar e como eu estava no lugar Castro Verde no gabinete técnico local, dava assistência desde
Odemira a Mértola, Barrancos e portanto vivi intensamente esse período, um bocadinho também naquelas
euforias de revolução, aquelas ideias muito generosas e pouco consequentes, mas muito genuínas pelo
menos. E nessa altura interessei-me muito pelos levantamentos, em particular pelos engenhos.
Depois há uma quarta pessoa fundamental que é o antropólogo Benjamim Pereira, com quem vim a
conviver e ainda hoje convivo, que atendeu sempre muito bem às minhas preocupações e eu sempre fui
assíduo às coisas que ele escreveu e transmitiu oralmente e inclusivamente temos um trabalho em comum
neste momento que é o Museu sem espaço físico, o Museu dos Cotos de Alcobaça, constituído por várias
pessoas, mais outra antropóloga que é a Doutora Maria Olímpia Campanholo e o Doutor Alberto Carreiro,
100
enfim...E esse museu é um pouco o coroário disto tudo, porque é um trabalho de grande generosidade de
todos nós, que vamos ter com as pessoas que são proprietárias de fornos, de moinhos, de azenhas, de
arquitectura popular interessante e propomos oferecer um projecto, encontrar formas de financiamento,
acompanhar a obra, desenvolver o projecto e depois as pessoas têm a simpatia de abrir ao público
permanentemente os seus objectos.
Mas com a descoberta de Hassan Fathy principalmente, percebi que a Arquitectura popular era talvez
a arquitectura que procurasse, de uma forma mais eficaz, mais próxima das pessoas que realmente com
grandes necessidades encontraram ali um ponto em que os arquitectos poderiam ser os continuadores
naturais dos artesãos, uma vez que o artesanato estava a colapsar e em muitos casos já tinha colapsado.
Mas nos anos 80 finais dos anos 70, claro que ainda havia muitos mestres abobadeiros e até mestres
taipeiros, embora não exercessem praticamente já nada, mas eram pessoas que tinham 50, 60 anos e
portanto plenas na sua sabedoria e nas suas capacidades físicas e que se transformaram, ou a maior parte
deles, em pedreiros banais e correntes, porque as técnicas tradicionais foram sendo abandonadas.
Em 1985, depois de vir dos Açores, (que foi uma experiência que posso dizer que foi também muito
interessante). Também vivi um ano na Madeira, para fazer o levantamento da Arquitectura Popular da
Madeira. Ainda fiz com o arquitecto Filipe Dorge o levantamento das chaminés do Algarve, que foi um
concurso que ganhámos, e a pretexto de desenhar as chaminés desenhávamos as casas, eu subia aos
telhados, desenhava as chaminés, desenhava as casas e praticamente do Barlavento ao Sotavento
desenhámos a arquitectura popular do Algarve e ele é um grande fotógrafo, fez brilhantes fotografias.
Na Madeira já vinha com a experiência dos Açores e foi um trabalho que teve a particularidade de
poder fazer uma coisa que eu sempre achei que só assim se fazem levantamentos, que é viver no sítio. O
mundo rural era um mundo muito intenso, só se compreende a arquitectura através de actividades e eu tinha
que participar nas actividades para conseguir interpretar a arquitectura. E daí quando eu lhe digo a minha
vertente mais antropóloga do que arquitectónica, de vez em quando perde-se muito com isso, eu não posso
estudar engenhos sem compreender como eles funcionam.
A arquitectura popular, o interesse, a paixão que se tem por isso, é uma coisa que muitas vezes nos divide,
porque sendo nós de formação erudita e tendencialmente numa perspectiva muito académica, a academia
esteve quase sempre de costas voltadas para essas áreas, mesmo havendo o Inquérito à Arquitectura
Popular. E eu julgo que nunca se fez uma verdadeira abordagem ao Inquérito, na sua verdadeira
potencialidade. Houve ali um momento importante político de dizer ao Salazar que não havia uma “Casa
Portuguesa”, haviam muitas tipologias, muita diversidade. E houve muitos arquitectos que tiraram proveito
desse conhecimento e o introduziram numa vertente contemporânea da altura, numa alternativa ao
modernismo, numa revisitação, digamos, ao regionalismo português, mas numa perspectiva erudita, evoluída,
elegante e séria, com arquitectos como o Távora, o Keil do Amaral e muitos outros até mais anónimos e que
até não deixaram de fazer peças notáveis de arquitectura. Eu acho que esse trabalho está por fazer.
Eu quando andei agora no inquérito da arquitectura contemporânea, calhou-me o Alentejo e o Algarve – com
101
outros colegas naturalmente – e foi um trabalho muito interessante porque me permitiu ver a arquitectura
contemporânea de 1 de Janeiro de 1900 a 31 de Dezembro de 2000, 100 anos de arquitectura
contemporânea, mas também com os olhos de quem há 30 anos faz levantamentos e investigação á
arquitectura popular, e é curioso, porque, e esse é também um trabalho que está por fazer e um texto que
está por escrever: onde é que estão esses pontos de contacto dessa arquitectura anónima, de arquitectos
anónimos e de não arquitectos que fazem arquitectura? E que me parece muitíssimo interessante mostrando
que há uma transparência muito grande das arquitecturas e na sua área do património, essa então cada vez
parece mais evidente na necessidade do domínio das técnicas, das tecnologias, dos materiais e sobretudo do
conhecimento histórico das décadas que atravessam o séc. XX e que não sendo a década de 70 ou a década
de 40, porque elas misturam-se também, mas há momentos em que se percebem que há aí actos históricos
em que nada se passa ou estão muito imperceptíveis ou apagados e há momentos cruciais e determinantes
para se perceber que alguém num determinado período antes do Inquérito e depois do Inquérito consolidou
uma série de ideias. E também não nos podemos esquecer que o Inquérito para nós arquitectos tem uma
visão muito egoísta, muito própria, muito corporativista, mas antes do Inquérito houve vários Inquéritos, feitos
por antropólogos, arqueólogos, historiadores, etnólogos… E que tinham também uma visão do que era
arquitectura popular e as suas componentes. E penso que o Inquérito bebeu muito disso, do Orlando Ribeiro,
do Ernesto Vega de Oliveira, do Fernando Galhano, enfim. Essa gente toda era muito importante e muito
sábia, mas a arquitectura vista pelos arquitectos tem uma outra visão, tem uma visão também muito
importante e muito interessante, que é a visão do surgimento, ou da constituição, ou da formação das
tipologias e que é particularmente grato aos arquitectos, é o entendimento do espaço, da articulação dos
espaços e não apenas o aspecto formal ou aspectos mais exteriores que a arquitectura transmite.
2. O livro da Arquitectura Popular em Portugal foi influente no seu percurso? Considera, pertinente a sua
consulta actualmente?
O livro da Arquitectura Popular é para todos uma bíblia, com o perigo de ser uma “bíblia”. A bíblia lê-
se todos os dias, vai-se lendo versículo a versículo. O livro da Arquitectura Popular em Portugal quanto mais
o tempo passa mais o admiro e mais capacidade de critica tenho de o avaliar, como todos os documentos
que passam a ter um desempenho histórico. Porque passaram décadas sobre eles e experiências, e também
quando conseguimos pegar nessa época e nos conceitos dessa época transversais à Europa e a outros
Países – que também se preocuparam com as suas arquitecturas populares, tradicionais – percebemos que o
inquérito é pioneiro, foi muito importante, por exemplo para os Espanhóis.
Eu acho que tem importância. A influência é que a história retira a influência do momento, quando se
está a quente. A geração que o fez, foi uma geração a quente, que tinha os motivos políticos, éticos e
profissionais de combate e o inquérito pode ter sido um instrumento de combate. Numa geração como a
minha, que é uma geração de transição – e, ainda por cima, aprendi a ser arquitecto com essa geração, com
102
o Chorão Ramalho, com o Nuno Teotónio Pereira, com o Rafael Botelho e conheci praticamente todos os
outros com quem tive o privilégio de conviver – é evidente que sou uma geração de transição, uma geração
que apanha tudo isto pelo entusiasmo, pelo acreditar genuíno desses arquitectos.
Nesse livro e à medida que o tempo me vai tornando mais velho e com outras experiências também
me permite ter um outro distanciamento das coisas e olhar para o documento como um documento histórico e
não como um documento de bíblia e de bitola e cânone a seguir e a usar. Até porque tem que haver um
tempo critico de afastamento sobre essas coisas para que ganhem a sua verdadeira importância, porque há a
importância imediata e a importância histórica da continuidade. Ele tem um lugar na história incontornável, é
um livro incontornável aqui e em qualquer lado do mundo. Eu tenho muitos livros de arquitectura popular
como este, do mundo inteiro e todos feitos depois deste. Para mim a importância que teve é afectiva. Uma
importância afectiva de olhar um País, que ao longo do tempo me fui desvinculando, porque é um livro tão
belo, que é traiçoeiramente belo. Uma má leitura desse livro é perigosa, porque este livro relata duas coisas:
um país belo e um país miserável. E a miséria não pode ser bela. E eu conheço muito bem a realidade antes
do 25 de Abril, tinha 17 anos quando veio o 25 de Abril e posso dizer que conheci o país até ao 25 de Abril, e
conheci todas a intensidade e as barbaridades que se fizeram no Pós 25 da Abril no sentido da
democratização apressada, e que se calhar não se conseguia fazer de outra maneira, mas foi muito
apressada e prolongou-se demasiado tempo na década de 70 e de 80, porque permitiu a continuidade de
erros primários que não se deviam ter continuado a fazer, deviam ter morrido ali, nos primeiros anos da
revolução. No entanto ninguém resistiu a fazer os mesmos disparates e a destruir coisas extraordinárias da
arquitectura vernacular, tradicional, erudita, a nossa relação com a paisagem, a nossa relação com as aldeias
e com as vilas, mas sobretudo destruiu-se o território, que já vinha sendo destruído desde os anos 60.
Eu penso que há uma leitura complementar a fazer ao Inquérito, que é todos os artigos que saíram
na revista Arquitectura, durante os anos 60, onde algumas das pessoas que escrevem são autoras do livro do
Inquérito, outras trabalham nas obras públicas, e que foram muito lúcidas no alertar dos problemas que o país
estava a ter com a emigração primeiro interna e depois para fora do país, e com a construção dos subúrbios
e abandono dos campos. Isso é que é a destruição da arquitectura popular. Porque é a destruição não de
uma estrutura construída mas de uma estrutura humana. E a esta distância todos nós somos capazes de
falar assim mas na altura, talvez os geógrafos e os sociólogos tivessem uma visão mais acertada sobre o que
estava a acontecer, nós tivemos uma visão, acho eu, bastante tardia sobre o que estava a acontecer, tirando
essas excepções de que acabei de falar, que eram pessoas muito lúcidas e que amavam profundamente o
seu país e perceberam, anteciparam, o que ia acontecer. Isto serve para dizer que o livro é sobretudo um
momento profundo na reflexão teórica do panorama nacional que era muito pobre. Que conseguiu pela
primeira vez levantar problemas de ordem social que estavam a ocorrer, e que vieram a dar naquilo que já
referi, todas as “Brandoas”, os subúrbio… uns piores que outros, mas que eram emergentes na altura. E que
depois foi a imigração em massa para fora do país. Portanto, o Inquérito para mim, neste momento e à
distância que tem hoje em dia, 50 anos, tem muito a ver com o panorama social que era proibido falar nessa
103
época, e o Inquérito teve esse mérito. É a partir do Inquérito que há a capacidade reflectiva sobre o território
português, onde está a arquitectura popular. Se eu tivesse que caracterizar esses arquitectos [intervenientes
do IARP], caracterizava-os provavelmente como a corrente mais humanista, mais forte que existia no País.
Que tiveram provavelmente o seu primeiro grande confronto da vida ao penetrar no interior do País e verem
como é que os seus concidadãos viviam. Que era um País rural e Cidades onde o campo tocava a
urbanidade.
3. O arquitecto Victor Mestre reflecte nos seus projectos uma preocupação muito grande com as
preexistências e o Lugar. Projectos em que utiliza materiais e técnicas tradicionais…
Tenho uma coisa em Goa, outra no Senegal e outra em Timor, mas também tenho cá com esses princípios.
Há uma série de projectos que eu tenho e desde sempre que eu acho que as arquitecturas quando surgem
em determinados lugares não podem esquecer esses Lugares. Não estão ausentes, não pode ser em
posição do ícone que é uma coisa que eu sou muito crítico hoje em dia, que é a capa da revista, o arquitecto
x.
Durante muitos anos nós comentámos que os imigrantes destruíram a nossa paisagem, mas eu hoje sinto-me
muito preocupado é com a arquitectura moderna nessas aldeias. As aldeias hoje em dia reflectem muito a
prepotência dos arquitectos, acho que os arquitectos se estão a tornar insuportáveis. Estão a ocupar um
espaço que nunca foi o deles. A arquitectura sempre teve uma condição social e uma condição humanista.
Sempre procurou de uma forma muito democrática e de uma forma muito generosa com o sítio ou com as
actividades que se propõem a fazer, ou a integrar, um equilíbrio muito grande.
Hoje em dia não há nenhum arquitecto seja ele jovem, menos jovem ou da minha geração – que tem
sido até a mais devastadora – que não queira construir em qualquer sítio uma capa de revista. Porque acha
que o tem que fazer pelo contraste, para se perceber bem que é arquitectura contemporânea e que não está
a imitar nada. E então levam-se determinados conceitos a extremos que matam o conceito essencial e
naturalmente definem o projecto e, consequentemente, acho que o que está a acontecer nessas
arquitecturas, para além do grande desastre delas próprias, porque daqui a um, dois, 10 anos estarão gastas
e completamente descontextualizadas no olhar de toda a gente, mesmo no dos que admiraram, por outro
lado criaram modelos repetitivos e cada vez menores, cada vez de menor qualidade, as pessoas imitam
aquele modelo, fazem as janelas daquela maneira, põem o material X, etc. É moderno.
Durante anos a fio o Siza foi copiado até á exaustão. Não é o problema do sentido da arquitectura do Siza,
porque nenhum de nós é imune ao Siza, nem eu sou. O problema é a cópia directa. O problema é não
sermos capaz, de uma forma inteligente, retirar o que é a essência que está ali e não a forma. O que é
importante é o acto de inteligência que está por trás daquela arquitectura, que tem determinados objectivos e
experiencias.
Tenho um programa para resolver, a arquitectura é para mim um acto de inteligência… Ou seja, estou
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ali para resolver um conjunto de problemas, ou um conjunto de necessidades, que têm um determinado
contexto cultural, geográfico, físico, material... cada vez mais sentimos que essas questões – que estão muito
na moda e que também são muito traiçoeiras – que é a questão do carbono zero, a questão da ecologia –
toda a gente agora só não sabe de património como toda a gente agora sabe de ecologia. Todos os bons
arquitectos deste país – e é uma crítica – todos, do Souto de Moura ao Carrilho da Graça, a todos, todos são
grandes experientes de arquitectura tradicional e todos sabem imenso de património, que é uma curiosidade.
O mercado agora é tão condicionado, portanto, o melhor é aquilo que sempre desprezámos. É melhor ter
cuidado, porque é a única coisa que existe neste momento. Acho que isso é de um cinismo absolutamente
desnecessário e que não me parece que seja um caminho correcto. Como qualquer outra pessoa são
arquitectos e como qualquer outra pessoa têm o direito e têm conhecimentos para mexer em tudo o que é
património e em tudo o que é arquitectura popular, a forma como se propõem hoje em dia, como transmitem é
que me incomoda, que é de uma falta de modéstia que é preocupante. Há um contexto cultural, há um
contexto social, há uma antropologia do sítio... Que me interessa saber e tenho que a perceber e, para a
perceber, tenho que conhecer toda aquela realidade, mesmo que ela esteja completamente estilhaçada, que
é o que acontece na maior parte das vezes onde eu vou, já toda aquela ilusão de que houve uma arquitectura
popular, que há uma arquitectura popular, que há uma tradição... Não há. Ela está desfeita, está adormecida,
ou desapareceu mesmo e, muitas vezes, é preciso ir mesmo apanhar todos os fragmentos que possa ali
encontrar, que há vinte, trinta, quarenta anos, era lixo e hoje é o que resta e que nos confunde muitas vezes.
Por isso é que é preciso ter muita humildade nessas coisas, que às vezes estamos a olhar para uma coisa e
ela não é aquilo que nós estamos a ver... porque tudo o que lhe estava subjacente desapareceu e desmontou
o contexto, e sobrou aquilo. E nós olhamos aquilo como uma forma, como um objecto, e não como um
contexto social. A arquitectura tem muito a ver com o contexto social, tem muito a ver com essas premissas.
Eu tenho feito alguns projectos ultimamente que têm procurado incorporar algum desse saber.
Nomeadamente em Moura, irei fazer uma intervenção que consiste na recuperação da taipa com cortiça
integrada, para conseguir ultrapassar as dificuldades da nova regulamentação, porque toda a gente pensa
que a taipa por ter 50 ou 60 cm cumpre a regulamentação, mas não cumpre. Pelo menos a que está agora
em vigor, e com a ajuda da universidade de Coimbra chegámos a valores muito satisfatórios da incorporação
de cortiça na taipa e se correr bem há-de ir um dia destes para construção.
4. Essa é outra parte do seu trabalho. Faz também muito desse trabalho de investigação no sentido de
melhorar os materiais tradicionais para os integrar no tempo actual.
Sim um bocadinho. Eu apresentei, até aqui na Universidade Nova, uma ideia que tenho para um protótipo
que gostaria de ver experimentado em Moçambique, ou noutro território Africano. Mas pensei em
Moçambique porque há ainda a tradição de construir em terra, porque há mão-de-obra que constrói em
terra... fiz o protótipo, fiz o desenho do protótipo, estudei, apresentei... Estavam praticamente todos os
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representantes dos PALOPs, enfim. Há aqui uma dificuldade que é preciso superar e não se consegue, os
locais acham que nós estamos a dizer que eles têm que continuar a ser pobres, acham que é um acto de
cinismo, espero que não seja um acto de neocolonialismo ainda... Mas agora à uma componente de evolução
científica, portanto não se trata de mandá-los viver em situações desumanas.
Na maior parte dos sites internacionais das universidades e das ONGs que se propõem a fazer
graciosamente experiências, nesses países, todos eles recorrem a tecnologias e materiais locais e fazem-no
de uma forma muito séria, com pesquisa.
Interessa-me profundamente fazer trabalhos com os materiais revisitados, com as tecnologias
revisitadas, no sentido da sua actualização, de forma a darem credibilidade numa aplicação contemporânea.
Interessa-me todas as memórias, todas as tradições como potenciais upgrades para a
contemporaneidade se forem válidas, se não forem estão descontinuadas, não têm continuidade possível,
não vale a pena insistir em coisas que são apenas uma nostalgia.
Há muita gente a fazer trabalho sério, muito mais do que nós pensamos. Porque nós vivemos numa
sociedade de tal maneira mediatizada que só existem meia dúzia de nomes, só existem meia dúzia de
ícones...
5. Em Portugal, onde se praticam ainda estas técnicas construtivas?
Eu acho que se faz por todo o lado um bocadinho, há mais visibilidade no Alentejo. No Alentejo há
muitos bons arquitectos, numa geração um bocadinho mais velha que a minha, portanto terão mais cinco
anos do que eu, entre os cinquenta e os sessenta anos, que durante muitos anos fizeram o seu caminho
silencioso no Alentejo, principalmente na zona de Odemira e são quatro ou cinco, o Henrique Schreck e a
arquitecta Graça Jalles por exemplo... E no Algarve outros dois arquitectos, para além do arquitecto Alegria.
Esses arquitectos têm uma tecnologia, têm esses mestres, pessoas com esses conhecimentos. Eles foram
realmente pioneiros nisto, essa gente quando resolveu abandonar Lisboa e ir para Odemira ou para a zona
de Vila Nova de Mil fontes, por aí... Saíram de Lisboa e continuaram a ser arquitectos nessa vertente.
Estudavam-na e procuraram viabilizá-la e passaram, com certeza, as passas do Algarve para credibilizar
essa arquitectura. Muitas vezes ela só foi credibilizada por estrangeiros e só depois dos estrangeiros, os
portugueses ganharam confiança nessas tecnologias, nessa arquitectura séria.
Pode não ser uma arquitectura com uma expressão moderna extraordinária, mas é arquitectura! E é a
arquitectura deles, merece o maior respeito.
Numa experiência muito recente há aquela moradia do arquitecto Costa Cabral, um homem da idade
do Nuno Teotónio Pereira, um bocadinho mais novo, e que num gesto de arquitectura moderna integrou a
taipa e tem ali um exemplo de arquitectura muito interessante.
Ou numa vertente muito tradicionalista e muito ligada à cultura islâmica o arquitecto José Alegria, no Algarve.
Ele divide-se entre Marrocos e Portugal. Tem uma equipa Portuguesa e uma equipa marroquina, e através da
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equipa marroquina reintroduziu em Portugal muitas das técnicas que se tinham perdido. Pode-se gostar ou
não da Arquitectura que é muito colada a uma imagem da uma arquitectura islamiza, marroquina, mas é uma
coisa muito séria, porque tecnologicamente é muito bem executada. É irrepreensível. Há um domínio das
técnicas, dos materiais, há um saber e é a sua arquitectura.
Neste momento, estou a fazer um hotel em Arquitectura de Terra, que consiste na recuperação de um
monte muito grande, e estou a ampliá-lo e a fazer uma espécie de continuidade histórica de uma aldeia, mas
numa vertente contemporânea, usando todos os materiais tradicionais.
Existem as pessoas que projectam, existem as pessoas que constroem, existem os materiais,
portanto existe o saber. Tem que existir é o cliente. Tem que existir o cliente que é para mudar o paradigma.
A classe média Portuguesa que nunca viveu na ruralidade, que nunca soube o que era tradição, que sempre
viveu ou dentro das cidades ou no subúrbio da cidade, vive o mito da casa rústica. O problema é que isso é
reflexo de uma classe média inculta.
6. Quais as técnicas tradicionais mais utilizadas actualmente? Sente muita dificuldade na implementação
destes materiais e tecnologias tradicionais?
As que se destacam mais hoje em dia e mais facilmente é o BTC, que é já uma evolução do tijolo
seco ao sol, o adobe. O BTC já está a ganhar terreno porque tem a componente ecológica, tem uma
componente do próprio solo local, com adição ou não de cal, com adição ou não de palha ou outros aditivos
como pigmentos, por exemplo, e tem naturalmente essa possibilidade de continuar a ser manuseado com
alguma facilidade, como um tijolo corrente.
De todas as técnicas a que evoluiu melhor para um sentido mais prático é o BTC.
O centro da terra no Alentejo tem feito muitos workshops, eu já participei em alguns. Que desponta
para os interessados ter ali uma aprendizagem.
É sempre um problema de continuidade, o exemplo maior é a escola de Serpa. Onde se aprendia a
fazer abóbadas, taipa, adobe, e que foi extinta. E foi uma experiência única, com pessoas de uma grande
competência, alguns deles saíram para fora do país, como o arquitecto Miguel Rocha que era o grande
timoneiro dessa experiência e que os espanhóis o vieram buscar, obviamente.
O problema dessas coisas é que nunca ganham credibilidade junto dos políticos e depois têm
também como adversários os materiais correntes industriais, que ainda por cima têm essa dificuldade de se
imporem economicamente.
É muito difícil, tudo isto tinha que passar por algo mais forte, mais intenso com um objectivo político.
Se houvesse uma dimensão política nesses projectos, mesmo que fossem pilotos, em que envolvessem
instituições com credibilidade: fundações, câmaras, um organismo do governo, como exemplo o centro
profissional aqui de Lisboa que também tinha cursos desses ali em Stª Apolónia, que durante anos procurou
formar pessoas nessas áreas. O problema é que nós não funcionamos em rede, nós funcionamos em capela.
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Portugal é um país de capelas. As pessoas não partilham as suas experiências e desconfiam de toda a gente
e os organismos não estão para se envolver nessas guerras. Falta-nos algumas coisas que são naturais da
nossa condição própria, psicológica portuguesa e depois falta-nos algo agregador, falta-nos um motivo
agregador. Faltava-nos aqui um elemento, uma escola que pegasse nesse tema. Pensou-se muito tempo que
a Universidade de Évora poderia ter essa componente, porque teve um mestrado de Património, mas não
pegou. Pensou-se que essa escola profissional de Serpa poderia ser uma espécie de experiência "piloto" que
depois progrediria para uma formação mais politécnica se quiséssemos, infelizmente… Quem teve à frente
disso de certa maneira até foi a DGEM (direcção geral dos edifícios municipais), ajudou a fundar esse
programa, mas foi extinta. Portanto as coisas estão sempre permanentemente a começar do zero. E isso é
muito desgastante.
7. Qual a sua opinião sobre a inserção de elementos da arquitectura popular descritos no Arquitectura
Popular em Portugal, num edifício com uma estrutura contemporânea, como é o caso do edifício da Casa da
Cultura da Juventude de Beja, do arquitecto Hestnes Ferreira?
O Hestnes Ferreira é um grande arquitecto, um grande erudito. Um arquitecto que tem uma formação
sólida e que tem uma dimensão da arquitectura de um tempo antigo. Não só a realidade de ter estudado com
o arquitecto Louis Kahn, que lhe deu essa visão, essa proporção e escala, aquela dimensão da arquitectura,
que é um domínio muito especial e que ele ali naturalmente procurou através das técnicas tradicionais mais
do que da expressão, porque a técnica é de tal maneira determinante que ganhou a expressão.
Acho que o que ali se impôs foi a tecnologia tradicional, muito bem executada e muito bem projectada
obviamente. Aquilo não é uma escala de arquitectura tradicional e mesmo da arquitectura vernacular, ou seja
urbana… Por isso é que eu acho que aquilo é uma arquitectura muito própria, muito Hestnes Ferreira.
Não o vejo como uma colagem à arquitectura popular, mas sim como uma capacidade de utilizar as
tecnologias tradicionais.
7.2. ENTREVISTA AO ARQUITECTO NUNO MALATO por Celine Vicente. Por via de correio
electrónico. Agosto 2011
1. O que fez o arquitecto ao nível de arquitectura tradicional no Alentejo?
Iniciei um contacto mais próximo com esta arquitectura no desenvolvimento do Plano de Reabilitação da Zona Antiga de Castelo de Vide elaborado ao longo de dois anos e meio e coordenado por mim, onde, implícito à pesquisa dos sistemas construtivos tradicionais, apreendi o sentido das respectivas tipologias arquitectónicas e morfologias urbanas, evolutivas, como resposta a uma consistente ideia de habitar em estreita relação com a natureza / o lugar. A expressão de uma identidade sociocultural particular sedimentada ao longo de séculos duma era predominantemente artesanal.
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Dentro deste contexto também desenvolvemos pequenos projectos particulares e outras acções de (inter) sensibilização com a população e construtores locais. Participei em diversos projectos e reabilitações arquitectónicas com mestres e sistemas construtivos locais, como autor, co-autor e por vezes operário, onde se destacam neste âmbito: Pombal – casa / quinta rural onde vivi com a família cerca de oito anos; Rua do Lavador – antiga rua de saída da vila de Castelo de Vide para a serra composta por sete casas em banda; O castelo de Castelo de Vide – com os arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Alberto Cruz, integrados numa meritória equipa pluridisciplinar.
2. Em que zonas interveio?
Dentro do Alentejo, apenas na região do Alto Alentejo.
3. Qual o interesse do livro “Arquitectura Popular em Portugal” nos dias de hoje?
Considero-o um documento essencial à compreensão da vida humana portuguesa e consequente
Arquitectura em harmonia com as diversas zonas geográficas de Portugal e respectiva construção de
consistentes identidades próprias.
Uma síntese referencial ao desenvolvimento do conhecimento (não romântico!) destas várias
identidades, fundamental a qualquer intervenção arquitectónica moderna, num quadro presente de vida
socioeconómica diferente – onde o alcatrão com os veículos rápidos e os diversos frutos da tecnologia que
tanto nos aproximam e facilitam, também tanto nos podem afastar e dificultar.
Uma lição de autenticidade, de humildade mas não subjugação, de engenho, que considero
primordial à Vida e portanto à Arquitectura (intemporal).
4. Este livro teve alguma influência no seu percurso ou na sua forma de ver a arquitectura?
Pelo exposto anteriormente, é óbvio. Mas não substitui o contacto directo com o universo que ele
abarca – lugares geográficos, pessoas, construções.
5. Nos trabalhos que fez onde utilizou técnicas tradicionais, recorreu a mão-de-obra de artesãos, antigos
mestres ou a estudiosos especializados?
Sim. Procurei sempre cruzar o conhecimento tradicional e moderno, prático e teórico, desses vários
especialistas, como solução para as questões levantadas no confronto com as técnicas construtivas
tradicionais, não tão normalizáveis como as modernas.
109
6. O que pensa da arquitectura que se pratica hoje, arquitectura contemporânea?
No saco da arquitectura contemporânea cabe um pouco de tudo… mas em geral penso que está algo
sufocada em si própria, num exercício (quantas vezes de virtuosa concepção intelectual) de mera construção
duma imagem, dum estatuto, da afirmação gratuita do autor como fim e não do viver aberto ás pessoas
(colectivo e individual) na sua naturalidade e consequente identidade.
Penso que esta arquitectura reflecte os “valores” vigentes dum consumo “sem sumo” em que o
próprio arquitecto se afastou da prática do viver, concebendo em grande maioria espaços esterilizados onde
não cabe um “traque”…
Considero no entanto que a contemporaneidade desenvolveu condições para a concepção e
construção de valiosos edifícios com uma maior consciência crítica da Vida e do Homem, bem praticados por
uma minoria significativa de arquitectos.
7. Faz sentido o cruzamento entre as técnicas tradicionais e contemporâneas, de forma autêntica?
Claro que sim. Mas essa autenticidade implica o conhecimento do sentido maior (técnico e vivencial)
associado aos diversos processos tradicionais em causa, para que a intervenção não seja construtivamente
agressiva e o diálogo não resulte de surdos ou gratuito, nem transforme os elementos preexistentes em
“bibelot”.
8. A sua opinião sobre a arquitectura do arquitecto Hestnes Ferreira, em particular a Casa da Cultura de
Beja?
Não conhecendo de forma devidamente aprofundada o seu trabalho, nem conhecendo o edifício em
causa para além duma fotografia, não me sinto capaz de uma opinião satisfatoriamente consolidada. No
entanto reconheço-lhe o mérito duma pesquisa com raízes locais, também em elementos simbólicos, numa
concepção espacial assumidamente moderna, coerente e surpreendentemente livre como a arquitectura
vernacular e a Natureza.
7.3. ENTREVISTA AO ARQUITECTO HESTNES FERREIRA por Celine Vicente. Atelier Hestnes
Ferreira. Agosto 2011
1. O que representou para si estudar/trabalhar com o arquitecto Louis Kahn?
É um bocadinho difícil assim de um momento para o outro, era muita coisa. Nós temos que situar-nos
naquela época, uma época em que a arquitectura moderna estava um bocado em crise, e que as pessoas
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que se preocupavam com isso, queriam reflectir sobre essa crise e ver como é que se encarava a
arquitectura num âmbito muito geral, tendo em conta de facto a ultrapassagem daquele período, do
modernismo, digamos assim, ou da arquitectura moderna melhor dizendo e portanto, o Luis Kahn na altura foi
um arquitecto que de alguma forma tentou reestruturar a visão da arquitectura, quer dizer, passado um
período em que sobretudo se inovou muito do ponto de vista da arquitectura, com novos espaços, novos
materiais, novas formar de construir, ele tentou apesar de tudo, reintegrar a arquitectura num ciclo de uma
maior profundidade no tempo, quer dizer, não só na época do século XX, foi de facto o grande período inicial
da arquitectura moderna, mas também fazendo-o numa perspectiva histórica e ele tinha muito, por formação
e por suas próprias preocupações de estudo da arquitectura, inclusive o estudo da arquitectura Europeia,
arquitectura de outros países, ele tinha a noção que a arquitectura, não se podia cingir só a um período, mas
que havia uma sequência desde sempre, em que ele tentava integrar, portanto reflectir sobre essa
perspectiva mais ampla da arquitectura, para além do século XX. Além dele admirar muito a arquitectura
moderna, ter ele próprio praticado, e também os arquitectos modernos, todos eles. Ele achava que era um
período em que se tinha que renovar a arquitectura, ampliando uma visão histórica da arquitectura, indo
buscar uma visão histórica da arquitectura e isso foi o que mais me atraiu na sua projecção e no seu ensino.
Era essa visão que ele tinha, de que a arquitectura tinha que ser universal e que a nossa arquitectura em
qualquer período, tinha sempre que olhar para trás e saber aproveitar todos os impulsos que existiam desde
sempre na forma de construir, na forma de criar os espaços, isso é uma coisa, por outro lado, ele praticava
arquitectura coerentemente com aquilo que pensava, mas também tentava transmitir aos outros, através da
palavra, o porquê das suas opções, porque é que ele fazia uma determinada arquitectura, porque é que ele
propunha certos espaços, propunha uma forma de construir; tudo isso se reflectia no seu discurso, portanto o
discurso dele, por vezes hermético remetia sempre para um pensamento filosófico da arquitectura. Não se
limitando a procurar uma prática da arquitectura, mas também reflectindo sobre o seu significado. Portanto,
isso foi, a grosso modo e em poucas palavras, o que me atraiu mais na sua prática e no seu ensino. Aliás eu
comecei por estudar com ele e depois trabalhei com ele.
2. Isto influenciou a sua forma de ver e de projectar arquitectura?
Acho que sim. Mas há um ponto que eu acho que é importante, que é: uma pessoa só procura aquilo
que deseja. Eu tinha a possibilidade de trabalhar com outros arquitectos, mas de facto, o facto de eu trabalhar
com ele é porque eu já tinha qualquer afinidade com ele. E isso é importante, porque, digamos que aprendi
muito com ele, ele deu-me novas perspectivas, mas de qualquer maneira teve uma certa ressonância no meu
modo de ser e na minha arquitectura, porque, efectivamente, eu já estava predisposto para ela. Conheci
vários arquitectos, mesmo nos Estados Unidos e embora fossem grandes arquitectos, professores que eu
considerava bastante, mas nunca tive a mesma atracção que tive por este arquitecto. Porque aquilo que ele
dá às pessoas, dizia aos seus alunos, etc. tinha maior ressonância na minha formação e no meu modo de
111
ser. Por um lado, tenho a minha maneira própria de ser, que é diferente da dele, ele teve uma formação muito
diferente da minha, portanto, as bases culturais também são diferentes. Ele era um arquitecto Americano,
embora a família dele viesse do Norte da Europa, mas no entanto ele também teve uma formação em que a
Europa esteve muito presente, porque ele estudou numa escola de Beaux Arts, ainda sobre o ensino de
Beaux Arts, com professores académicos, em que a escola tinha ainda uma ressonância muito grande do
ensino da arquitectura académico de condição europeia. E também estagiou muito tempo na Europa,
portanto, viajou pela Europa, sobretudo pelo mediterrâneo e teve muita influência dessa arquitectura. No
entanto a minha maneira de ser é diferente. Eu procurei outras coisas e também por uma questão de
coerência, com o pensamento dele, achava muito incorrecto ir imitar, fazer coisas que ele já tinha feito.
Obviamente teve uma enorme influência e eu aceito muita dessa influência, mas a minha maneira de pensar
será diferente da dele e por isso tinha que ser diferente. O que não quer dizer que por vezes eu tenha
adoptado, em certos momentos, certas propostas que ele teve, por ver que sendo coerentes com as minhas
propostas havia algumas que se sobrepunham, ou que iam ser muito idênticas às dele, mas isso nunca me
importou, porque eu sabia que no fundo eu procurava sempre fazer obras diferentes de acordo comigo
próprio.
3. O inquérito à arquitectura Popular em Portugal foi importante para si?
Quando se iniciou o inquérito da Arquitectura popular eu ainda era estudante, estava a estudar no
Porto, e lembro até de ver reuniões com arquitectos lá do Porto, exactamente aquelas pessoas que depois
fizeram o inquérito à arquitectura, por outro lado eu conheci sempre muito bem o Francisco Keil do Amaral,
que foi o grande inspirador do inquérito. Muito tempo antes de se fazer o inquérito, ele já defendia a
realização desse inquérito, por várias razões, uma delas porque houve sempre uma preocupação em
Portugal, nas gerações anteriores à dele, mesmo desde o século XIX praticamente, em identificar o que era a
arquitectura Portuguesa e portanto criava-se um mito, muitas pessoas defendiam que a arquitectura
portuguesa era sui generis que não tinha tanto a ver com outras arquitecturas de outros países e, portanto,
queriam identificar o que é que distinguia a arquitectura Portuguesa, sei lá, os telhados, a natureza dos
espaços, as dimensões dos espaços, os motivos decorativos e outras coisas mais, e o Keil do Amaral pensou
que não existia uma arquitectura popular Portuguesa, efectivamente cada região do país tem a sua forma de
construir arquitectura, tem a sua forma de compor arquitectura, e ele sempre teve essa ideia, mas por outro
lado sempre achou que se investigasse muito se existia de facto essa dita forma arquitectónica de construir
em Portugal, de edificar e de fazer arquitectura em Portugal e portanto, eu sempre o conheci desde miúdo e o
pensamento dele também não me era desconhecido, antes pelo contrário. E eu dava-me muito bem com o
filho dele, era amigo do filho dele e dele próprio também, os meus pais eram muito amigos dele, etc, e eu
sempre soube, embora não conscientemente, porque eu era muito miúdo na altura e não podia articular
essas ideias, mas sempre tive a noção de que ele era um homem que se procurava em ser coerente com a
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nossa tradição arquitectónica, mas, por outro lado, não ter a ideia de haver um único modo de fazer
arquitectura ao longo de todo o país e isso acabou por ser muito importante para a minha geração, porque eu
conheci vários arquitectos que tiveram no inquérito e que um deles foi o Távora que era meu professor e
outros foram meus amigos, quase todos os arquitectos jovens que tiveram nessas equipas, conhecia-os
bastante bem, de maneira que segui de alguma forma o inquérito, a produção do inquérito e as conclusões do
inquérito.
Acho que foi um documento essencial para desmistificar a ideia de uma arquitectura Portuguesa que
algumas pessoas defendiam. E também, para ver como é que se compunha, porque muitas pessoas... por
exemplo, o Távora conhecia muito bem a arquitectura da região que ele estudou posteriormente o Minho, e
portanto não foi novidade, no entanto, ele era um homem extremamente culto e sempre pensou que, para
além das teorias que vinham do exterior, que havia uma realidade nossa e que também era preciso atender a
ela e, portanto, era de facto um inspirador da arquitectura. E na sua própria arquitectura, sempre teve
presente essa ligação. Quem diz o Távora diz o Keil do Amaral e outros que sempre tiveram presente essa
realidade, portanto, era um elemento enriquecedor. Tal como falei do Kahn, que achou que não se podiam
fazer barreiras na arquitectura, que não podíamos esquecer o que é que tinha sido feito antes da arquitectura
moderna, do mesmo modo eles também procuravam, inspiraram-se de alguma maneira na realidade que eles
conheceram. Por outro lado, também, no sentido de tentar preservar muita coisa que, entretanto, algumas
dessas coisas foram destruídas e, portanto, também tentar que se tivesse a noção da riqueza e do interesse
arquitectónico, do ponto de vista construtivo, do ponto de vista social e humano, de toda essa arquitectura e
tentar que ela de alguma forma pudesse ser preservada, o que nem sempre foi conseguido.
Cada região tinha os seus valores próprios, nós falamos de arquitectura de pedra e não há dúvida
nenhuma que ela tinha uma importância enorme no Norte, falamos da arquitectura já meridional do Alentejo
com outros valores. Digamos que havia uma grande diversidade, foi uma realidade com que toda a gente se
defrontou naquela época, tanto aqueles que fizeram o inquérito como outras pessoas. Havia divulgação que
foi importantíssima para todos nós, infelizmente há muita coisa que desapareceu, como o próprio país se
alterou, todos os fenómenos que ocorreram desde essa época. Eu tenho assistido, a algumas destruições,
vou a determinados locais e vejo que a realidade é muito difícil, de facto as condições de vida eram muito
más, as pessoas não podiam aceitar. São duas coisas que se contradizem. Por um lado, é a tentativa de
manter os valores da arquitectura, de uma arquitectura tradicional, uma arquitectura com determinadas
características, tentar manter esses valores. Por outro, as pessoas muitas vezes não... Eu lembro-me por
exemplo na Beira Alta, umas casas magnificas em Pedra, com paredes grossíssimas, mas os espaços
interiores não correspondiam àquilo que as pessoas necessitavam para viver, então, preferiam deitar as
paredes a baixo e fazer paredes de tijolo sem interesse nenhum, mas ficavam com mais espaço interior, do
que conservar as características dessas edificações. É uma contradição enorme, mas que também tem muito
a ver com a moda que há de viver, digamos que as pessoas acham que deviam ter uma casa muito grande
por exemplo e se calhar não é necessário ter uma sala tão grande. Mas é uma imagem que também começa
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a difundir-se, com a televisão e com outros meios de comunicação. São imagens que se criam e que as
pessoas adquirem com o contacto com a televisão e acabam por também querer ter, ora, também não é
necessário ter. Se calhar, não é necessário um casal ou um pessoa isolada ter espaços tão grandes.
Tradicionalmente não haviam meios, as pessoas faziam o mínimo porque não tinham dinheiro, faziam
casas pequenas... Entretanto começaram a ter noção de que aquelas casas já não respondiam aquilo que
era comum, há muito esse hábito de conviver com outras pessoas e dizerem, ah afinal aquele tipo tem uma
casa mínima, já não corresponde ao tempo actual, não sei quê... e na realidade também há um preconceito
do outro lado, são dois preconceitos que se defrontam. Um fenómeno muito difícil de apreciar na sua
globalidade, mas que tem de ser objecto de análise e de discussão, de critica, para permitir que se
estabeleça uma renovação mas com respeito por certos valores, e com conhecimento de certos valores e
usufruir desses mesmo valores. Verificou-se que havia um certo esgotamento dessa arquitectura moderna e
era necessário repensa-la e portanto, só se podia repensar com contribuições como seja o inquérito.
4. Como nasceu o projecto de Beja para a Casa da Cultura da Juventude de Beja?
O projecto de Beja, foi muito interessante porque, foi assim, eu conheci o Alentejo muito tarde. Tive
muito poucas ligações, o meu pai conheceu o Alentejo e falava muito do Alentejo, mas eu por várias razões
nunca tive um contacto muito directo com o Alentejo. E uma vez, quando eu regressei dos Estados unidos,
em 1965 mais ou menos, trabalhei com o José Rafael Botelho, que era um Urbanista, e ele desafiou-me para
fazer uma viagem ao Alentejo. E foi assim o primeiro contacto directo que tive com o Alentejo. Embora
conhecesse, obviamente, através de livros e tudo isso. Culturalmente estava ao corrente mas, simplesmente,
contacto directo não tinha e foi uma viagem muito engraçada, porque nós fomos a Beja e depois voltamos por
aquela zona perto da fronteira de Espanha… portanto fomos a várias outras terras e depois fomos a Évora.
Foi uma viagem muito curta, durou pouco tempo, mas de qualquer maneira permitiu-me conhecer melhor o
Alentejo. E entretanto, veio depois, anos mais tarde, o 25 de Abril e contactavam-me para eu fazer uma, quer
dizer, um organismo que era da Juventude convidou-me a fazer, a estudar, esse tipo de programa de Casas
de Juventude, que era uma coisa que não existia, que de um modo geral, regional, queria incentivar muito
encontros de juventude, essa coisa toda, e então encomendaram-me fazer três projectos, um dos quais era
em Braga, outro em Viseu e o terceiro em Beja. A ordem não foi esta, era primeiro Braga, depois Beja e
depois Viseu. E entretanto eu informei-me sobre os programas desses edifícios, tomei conhecimento também
em França. Fui a França conhecer esse tipo de edifícios. É engraçado, porque, na altura já lhe chamavam “La
maison pour tour”, “casa para todos”, não queriam que aquilo fosse só de um nível etário, queriam alargar
para todos os outros níveis etários, tinha havido uma evolução a partir das próprias pessoas da administração
e então já tinham alargado a ideia de não ser só uma coisa de jovens, etc.
Eu conheci o programa, que programa é que devia ser e fiz o primeiro programa desse tipo de edifícios.
Comecei pelo de Braga, tem a ver com uma ligação também do ponto de vista da arquitectura de Braga, que
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é uma cidade magnifica, tem coisas fantásticas, e tentei interpretar também do meu modo de ser, da minha
visão da arquitectura, como é que seria o edifício de Braga. O edifício de Braga era numa rua, no centro
praticamente, depois tinha por detrás um grande talude, extremamente elevado e, portanto, estava ali
condicionado, entre a rua e esse talude. Simplesmente aconteceu uma coisa, eu fiz um projecto que eu gosto
muito, não chegou a ser edificado, em que de facto uma fachada... Quando falamos em Braga, falamos muito
do barroco e portanto eu tentei interpretar de um modo actual na época, já foi há uns anos, como é que era a
resposta a esse impulso, a essa forma de edificar naquela cidade. E portanto, prestei uma importância muito
grande à fachada, aliás ia ser uma fachada em betão, praticamente, e depois o edifício ficava entalado entre
essa fachada e por trás tinha o tal talude. E depois havia uma ligação do edifício ao talude, havia ali de facto
coisas que me apaixonavam muito nessa época. Simplesmente a situação... aquilo tinha uma certa
conotação política, porque era um edifício do governo, na época, tinha sido depois do 25 de Abril e ficava logo
em frente do Bispado, da casa do Bispo, e ao lado tinha um edifício que eu acho interessante, do Luís Cunha,
que era o Diário do Minho, que era um órgão da igreja, não sei se foi por isso, o edifício nunca se veio a
construir. Interpretou-se aquilo como sendo uma certa… não sei se foi interpretado assim, seria um desafio
estando em frente da igreja. E portanto, esse edifício não se construiu. Ah! Porque entretanto esse organismo
também central da edificação de edifícios para a juventude, aliás eu fiz mais que um estudo, era um bocado
conotado com a nova situação política, derivado do 25 de Abril, e entrava um bocado em confronto com uma
cidade mais tradicionalista. Da mesma forma também propus um edifício para Viseu, que até ficava num
parque, mas esse já num estado mais atrasado, não foi dos primeiros a avançar e depois, então, veio o de
Beja. Quer dizer, é o mesmo programa e eu acho muito interessante confrontar os dois edifícios, não tem
nada a haver um com o outro e simplesmente o programa é o mesmo, o mesmo tipo de espaços e eu acho
piada por ver o mesmo arquitecto que está a gerir em dois sítios diferentes e com o mesmo programa, faz
propostas completamente diferentes uma da outra. A situação local também era diferente, Beja tinha aquele
espaço aberto, obviamente não seria o mesmo edifício nas duas circunstâncias, mas de qualquer maneira a
verdade é que eles tinham condições muito diferentes de estar. E de facto, quando comecei a estudar o
edifício de Beja, saltou logo esse conhecimento que eu então já começava a ter do Alentejo. O ter um
carácter mais associado à Arquitectura que eu interpretava como sendo a arquitectura do Alentejo. E
procurando integrar também certas tecnologias locais, como seja as abóbadas, que foram concebidas e
depois executadas com pessoal de Serpa. As pessoas que as executavam foram duas equipas diferentes,
mas eram pessoas de Serpa, que ainda lá existia há pouco tempo e agora não sei, porque eu tinha uma
amiga minha que era de Serpa que me dizia que ainda havia lá as equipas que faziam, mas actualmente não
sei, porque já se passou bastante tempo. Eu não estava muito bem informado sobre isso, mas quando
comecei a conceber o edifício, comecei a fazer uns desenhos e surgiu-me isso, não foi uma ideia pré-
concebida. Quando pensava no edifício, pensei, “isto poderia ser uma coisa interessante para este edifício,
está aqui um bocado centrado neste espaço, ter um ar festivo.” E depois perguntei a um engenheiro, porque
eu nem sabia que existiam pessoas para executar aquilo, “Ouça lá, se não houver pessoas para executarem
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as abóbadas em tijolo, posso fazer em Betão?” e ele disse que sim, “podes fazer em betão”, e então
avançamos para a concepção. E depois fiquei muito satisfeito de ver que havia de facto mão-de-obra, havia
pessoas que sabiam executar as abóbadas. De qualquer maneira percebi que havia ali uma certa lógica na
concepção das abóbadas.
É bom ter conhecimentos, não só das técnicas actuais, antigas, da cultura actual, da antiga, etc., da
tradição. Isso fica incorporado nas nossas ideias, permitem fazer sínteses. Não é que a gente vá
deliberadamente fazer uma coisa de um determinado modo, mas são sínteses que ficam para nós e que nós
colhemos depois mais tarde, de repente aparecem sem sabermos porquê. Porque quando estamos a
conceber edifícios… como lhe disse, este de Braga por exemplo, não tinha nada a haver, não ia fazer as
abóbadas em braga, embora haja lá abóbadas, Tibães tem lá umas abóbadas com piada, não são “barrete de
clérigo”, mas tem abóbadas, na realidade não quer dizer que não se pudesse fazer, mas simplesmente não
era o sítio próprio para fazer e não surgiu sequer a ideia de fazê-las. O papel do arquitecto é muito esse de
reflectir sobre as obras. Eu, não conhecendo o Alentejo praticamente, na altura este organismo central
começou a reduzir a sua actividade e confiou à câmara de Beja a continuação do projecto. Foi a própria
câmara que depois continuou e fez o projecto. Acho que é fundamental essa reflexão.
5. O sistema modular, é influência do arquitecto Louis Kahn?
Acho… há uma coisa aí que é importante, que é a planta central. A planta central foi muito inspiradora
da arquitectura do Kahn, aliás, vários edifícios reflectem isso. E de alguma forma o interesse que ele
encontrou na arquitectura romana, por exemplo, na arquitectura do renascimento e depois o contacto que ele
teve também com a Índia e com o Paquistão Oriental, Bangladesh hoje, também estava no espírito dele, pela
sua formação académica, uma certa adesão à planta central e que tem uma lógica arquitectónica, tem uma
lógica construtiva e para certo tipo de edifícios isso era muito saliente, digamos, sobretudo em Beja, pela
centralidade do edifício, naquele espaço um bocado central, no meio de uma praça muito grande. A
localização central que teve convidava, a própria organização interna, uma sala polivalente que podia ser um
auditório, podia ser uma coisa que prestasse a várias realizações. Tudo isso convidava muito a essa
racionalidade e a essa modelação. Porque a própria estrutura, a própria adopção de abóbadas de “barrete de
clérigo” tudo isso convidava a fazer uma planta central e depois as abóbadas tinham que ter uma certa regra.
Todos os espaços, as abóbadas, tudo isso tinha que ter certa regra, de maneira, que essa modelação nasce
muito disso. Por outro lado é uma coexistência entre uma estrutura de Betão armado, as abóbadas poderiam
ter assentado sobre paredes, elas assentavam sobre paredes, mas simplesmente as paredes também eram
formadas por uma estrutura em betão armado, em certos pontos tinham que fechar sobre essa estrutura em
betão armado. Houve uma simbiose, digamos, das ideias arquitectónicas com as ideias construtivas e
estruturais para formar essa modelação e a relação entre os próprios espaços. Espaços que estavam na
envolvente do edifício, que eram as abóbadas mais pequenas, com as abóbadas centrais. Também, por razão
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de visibilidade, obviamente que as centrais tinha de ser maiores. Outra coisa que eu acho que é importante,
também, é os espaços de entrada. Os espaços fundamentais de entrada, terem sempre também uma divisão
em dois, digamos que há sempre um pilar que fica no eixo, e portanto a entrada está sempre dividida em
dois, não tem uma porta central. Isso é também uma preocupação que eu tinha, que era dizer assim: “Nós
vamos fazer aqui um edifício que poderá ter afinidades, obviamente que eu também tive a ver livros, com o
conhecimento de igrejas, igrejas ortodoxas, por exemplo Grécia, da própria Rússia, Ucrânia e noutros sítios
do Mundo. Tive a ver que as abóbadas foram muito usadas em determinados contextos, sobretudos
religiosos, mas que aí tinham um certo valor ênfase, num espaço central e numa entrada central, entrada
única, e portanto eu achei que para corresponder a uma maneira mais actual nossa, uma nossa cultura, tinha
que haver um desdobramento disso, todos aqueles elementos construtivos, arquitectónicos, tinha que ser
desdobrados e portanto não tinha a preocupação de ter uma entrada única e ter uma abóbada em número
ímpar, mas sim que ela se desfragmentasse, até para corresponder aos nossos conceitos, ao nosso ponto de
vista das nossas ideias actuais, da ciência, etc. Não criar, de facto, um grande ênfase nas zonas de entrada,
não lhe dar o carácter de uma igreja, que não é.
6. A influência das abóbadas advém do inquérito ou dos ensinamentos do arquitecto Louis Kanh?
Eu acho que vem muito do lado do inquérito, como disse, só conheci o Alentejo muito tardiamente,
conheci obviamente muito do Alentejo, a cultura Alentejana, etc., mas aquelas imagens do inquérito sobre as
abóbadas, acho que foi muito importante e deu para conhecer e como inspiradoras também. Por outro lado, o
Kahn, ele usou muito os arcos, mas nunca, que eu me lembre, usou abóbadas. Quando eu trabalhei com ele,
um dos projectos que eu trabalhei foi a capital de Aka, no Paquistão oriental, na altura, que hoje é
Bangladesh, e ele estava a fazer umas casas que era umas casas dos deputados, aquilo tem uma ordem
muito rigorosa, que eles têm uns lagos triangulares e depois têm uma série de casas ao longo dos lagos e
uma dessas casas que estava a trabalhar… nós que éramos colaboradores dele, tentávamos interpretar o
melhor possível aquilo que ele queria, mas ele obviamente vinha sempre reflectir e depois dizer “não, afinal
não é bem isso que eu quero…” e portanto, uma das coisas que ele estava a fazer eram umas aberturas, que
tinham uns arcos exteriores, portanto, havia uma relação entre o betão e o tijolo e eu, a acerta altura, sugeri:
“aqui podia ter uma abóbada” e ele disse “não, não! Isso sai fora desta disciplina.” Porque cada obra tem a
sua disciplina e é preciso reconhecer o que é que é o tónus, a parte principal de uma obra. Isso é em
qualquer caso. Uma pessoa privilegia certo tipo de questões que são essenciais no projecto e portanto arreda
os outros, e diz: Não, há milhares de coisas que eu podia fazer e agora estou aqui a escolher o que pretendo
fazer nesta obra e portanto vou definir aquilo que quero fazer aqui nesta obra”. E eu percebi perfeitamente.
Portanto, eu tenho a impressão que é mais por essa via e também por aquilo que eu pensei na altura, pela
documentação que tinha reunido, ver como é que havia de ser. Tenho a impressão que até o primeiro
desenho que fiz era até uma abóbada única e depois é que resolvi desdobrar. E também tem a ver com uma
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temática, tem a ver com a geometria e a matemática, como é que vamos desdobrar isto, e como é que vamos
conciliar depois o programa.
7. Como era a relação com os artesãos? O que significou trabalhar com essas pessoas?
Os artesãos, uma coisa que pesou muito mal era a relação entre eles e o construtor. Porque o construtor era um individuo... não era muito simpático e ele envenenou um bocadinho a obra nesse sentido das relações pessoais. Por isso eu praticamente não tive contacto com eles. Uma coisa muito interessante que eu via no Verão, quando estava a construir as abóbadas – eu vi e tenho algumas fotografias da construção das abóbadas – eles iam sempre almoçar para baixo das abóbadas, que era o sítio mais fresco. Disso lembro-me muito bem.
Os que fizeram as abóbadas pequenas foi uma equipa de Serpa, mas depois houve problemas com o empreiteiro, qualquer coisa que tinha a ver com dinheiro, e depois veio com outra equipa fazer as grandes abóbadas do meio. E eu assisti como é que eles faziam aquilo, aquilo não tem cofragem, uma coisa fantástica. Aliás, havia uma das equipas que eles diziam “ah, quando houver assim mais trabalhos de abóbadas diga”, simplesmente não se proporcionou. Eles faziam de facto trabalhos magníficos. Muito competentes. 8. Para além da casa da Juventude, também em Beja, a Unidade Residencial João Barbeiro, tem também esse trabalho de artesãos, elementos da arquitectura popular…
Sim. Esse foi muito interessante. Os construtores acho que eram irmão, os irmão Dias. Resolvemos que tirando umas certas zonas que eram em betão (que era sobretudo as escadas) tentaríamos ter o máximo de tijolo que era possível. E portanto, tínhamos tijolo no exterior, tinha umas lajes que tinham umas pranchas feitas em tijolo e depois tinha uma camada de betão por cima. Mas nós tentámos pôr o máximo de tijolo, aliás o engenheiro mais tarde disse que se fosse pouco depois daquela construção já não era permitido ter feito aquelas pranchas em tijolo. E para testemunhar isso também tinha aquelas grelhas em tijolo, que são grelhas mediterrânicas, há por todo o lado, mas simplesmente nós demos-lhe aquela escala para realçar que era mais importante ter o conjunto da fachada do que propriamente ter a divisão piso por piso. E então quisemos dar aquela dimensão, daquelas grelhas. E foi engraçado, porque eu tinha pensado inicialmente tê-las todas pintadas de branco, pintá-las de branco e depois quando disse isso ao construtor ele disse “Oh, mas não faça isso que eu mandei fazer os blocos de tijolo especiais para ali”, quer dizer ele mandou moldar aqueles blocos, com a dimensão que tinha cada um deles, “tive um cuidado enorme e não sei quê e agora quer pintar isso?”. E eu achei graça, e depois o presidente da câmara também disse “Ah, isso é uma pena” e estava tudo de tal maneira desgostoso que eu achei que era melhor ficar assim. E também acho que gostei de ver. Mas eu queria aquilo mais uniforme em cor, para depois se sentir mais o vazio dos tijolos, mas pronto, também não perdeu nada. Foi um edifício que eu gostei muito e mais uma vez foi um edifício encomendado pelo presidente da câmara, o Colaço, que era uma pessoa extraordinária, gostava imenso dele e ele compreendia muito bem o que me agradou também, é que eu propunha essas coisas e havia uma grande aceitação.
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9. Voltou a ter nas suas obras o contributo de artesão?
Eu tive alguns, por exemplo obras de tijolo que eu fiz, mas eu acho que a obra de Beja, de qualquer forma despontou muito esse gosto pelo trabalho do artesão. Nestas de tijolo era feito por pedreiros, mas pedreiros bons, com esse conhecimento. Aliás é engraçado, porque normalmente a construção corrente de facto toda a gente sabe fazer, mas não incita muito os trabalhadores quer os operários fazem as coisas um bocado indiferentemente, mas por outro lado cada vez que eles se encaram com um projecto difícil, geralmente eles interessam-se muito por ele, sentem-se mais realizados por fazer um projecto assim, por exemplo com o tijolo, que oferece mais dificuldades, de leitura, de execução, tudo. Eu tenho sentido uma grande adesão por parte dos operários, muito mais do que na construção corrente.
Em tijolo fiz a casa de Queijas, em Avias a Caixa Geral de Depósitos, com um encarregado excelente, uma pessoa que até está a ajudar-nos aqui numa obra, que é de facto um homem muito sério, é um alentejano por acaso, de Santiago do Cacém. E portanto, uma grande adesão não só dos encarregados, mas também dos operários, tentam o melhor possível, se as coisas não estão bem desfazem e voltam a fazer. E depois a Biblioteca da moeda. São assim as três obras em tijolo. Sempre que se proporcionou, sempre que há qualquer razão, qualquer coisa que incentivava a fazer esse tipo de obras. Muitas vezes não se percebe muito bem porquê. E na realidade tenho imenso, gosto disso. Continuo a ter muito interesse nisso. Nem sempre se proporcionou. 10. Faz sentido o cruzamento entre as técnicas tradicionais e as contemporâneas, de modo autêntico, nos dias de hoje?
No próprio atelier do Kahn, ele também me fazia conciliar as duas técnicas, portanto ele tinha obras quase todas em betão, mas também foi muito incentivado a ir para outro tipo de obras com as suas obras fora, no Paquistão e na Índia. Não quer dizer que também não tenha feito outras obras, mas foi muito no seu contacto. Eu felizmente estive lá no atelier dele quando se estavam a fazer essas obras, portanto, para mim foi muito bom, até por uma razão, é que eu percebi que a nossa construção, talvez por uma certa distância da Europa, ainda estava muito inspirada na arquitectura tradicional, a própria mão-de-obra, a organização dos estaleiros, das obras e tudo isso, era muito ainda inspirado por uma construção tradicional, quase diria mediterrânica. E isso para mim foi bom, porque apercebi-me que devia ir à procura de bases desse tipo, não bastar com a construção moderna da altura. É uma questão que acho que nunca se vai esgotar, porque às vezes voltamos atrás e reflectimos. Às vezes não reflectimos porque não temos conhecimento ou não pensamos nisso, mas de um modo geral contínua a haver um acerto conhecimento e pessoas que defendem e que continuam a fazer de uma determinada maneira, vejo isso com a construção de tijolo, por exemplo. A certa altura é assim, uma pessoa tem que diversificar as técnicas. Eu acho que a própria construção actual, e o actual é um bocado de acordo com o que se faz, porque há coisas que são actuais, mas não se fazem, podiam se fazer. Mas não só cada obra pede as uma forma construtiva, como também é aquilo que nós sentimos que é possível fazer, que se encontra pessoas para executar. Depois a mão-de-obra, por exemplo carpintarias, rebocos, está muito associado à capacidade de fazer. Se me disserem assim “este reboco é impossível de fazer”, eu não posso estar a pôr o reboco na obra. E depois há aqueles já pré-estudados que são muito mais fáceis de aplicar e de comprar. E como é que nós
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vamos resistir a essa facilidade? Nem sequer há uma regulamentação para a arquitectura em Pedra, que é uma coisa incrível. Em
França têm por exemplo, uma pessoa vai fazer um edifício em pedra e tem uma regulamentação própria, cá temos que ter vigas em betão, travamento em betão, um absurdo…
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O projectar exige que se compreenda a ordem. Quando temos que lidar com tijolos ou
projectamos com eles, devemos perguntar ao tijolo o que quer ou pode ser. E se perguntamos ao
tijolo o que quer, responderá: “Bom, queria um arco.” E então diremos: “Mas os arcos são difíceis de
fazer. Custam mais. Creio que o cimento ficaria igualmente bem por cima da tua abertura.” O tijolo
replica: “Já sei, já sei que tens razão, mas se me perguntas o que prefiro, quero um arco.” E uma
pessoa diz: “Porque és tão obstinado?” E o arco diz: “Posso fazer uma pequena observação? Não
se dão conta que estão a falar de um ser e que um ser de tijolo é um arco?”. Isto significa
compreender a ordem. Significa conhecer a sua natureza. Significa saber o que se pode fazer. E
respeitá-lo profundamente. Se trabalharmos com tijolo, não o usemos como uma opção de segunda
mão ou porque custa pouco. Não, devemos elevá-lo com toda a sua glória, e esta é a única
interpretação que merece.”
KAHN, Louis. Amo os inícios. 1972. In: J.A.A Condição Pós - Moderna. Lisboa. 2002. P.103