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Conselho Consultivo
Berthold Ölze – Universität Passau
Cássio Fernandes – UFJF
Durval Muniz – UFRN
Estevão Martins – UnB
Jörn Rüsen – Kulturwissenschaftliches Institut - Essen
José Carlos Reis – UFMG
Oliver Kozlarek – Universidade de Morelia
Pedro Caldas – UFU
René Gertz – UFRGS
Valdei Araújo – UFOP
Sérgio da Mata – UFOP
Prof. Dr. Jurandir Malerba – PUC-RS
Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbet Júnior
Prof. Dr. Cristiano de Alencar Arraes
Prof. Dr. Luíz Sérgio Duarte da Silva
Diretoria
Daniele Maia Tiago
Flávio Silva de Oliveira
Frederick Gomes Alves
Kaio Bruno Alves Rabelo
Makchwell Narcizo
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Apresentação
Preocupada com as questões próprias da teoria da história, isto é, com os
fundamentos e os princípios da ciência da história, a Revista de Teoria da História
alcança agora o seu terceiro número. Inseridas no vasto campo da reflexão sobre
os fatores constituintes da história como ciência; encontram-se neste último
número, especificamente, reflexões sobre os métodos, os interesses e as funções da
ciência histórica.
Tratando dos métodos, Pedro Spinola Pereira Caldas, em Teoria e Prática da
Metodologia da Pesquisa Histórica: reflexões sobre uma experiência didática, e Sírley
Cristina Oliveira, no artigo A experiência estética de Hans-Georg Gadamer e a
vivência de Wilhelm Dilthey: contribuições da hermenêutica aos estudos da história,
apresentam reflexões sobre uma das operações substanciais da pesquisa histórica:
a hermenêutica.
Pedro Caldas trata da aplicabilidade do método hermenêutico na prática de
pesquisa e do modo como este método pode ser ensinado a alunos da disciplina
Teoria e Metodologia da História. Para tanto, aproveita as contribuições de
Droysen para apresentar e demonstrar a viabilidade das quatro etapas da
interpretação histórica: a pragmática; a interpretação das condições; a psicológica
e a interpretação das idéias.
Sírley Cristina Oliveira busca as relações entre a Hermenêutica e a História a
partir das obras de Dilthey e Gadamer. Fundamentando a importância da operação
hermenêutica para a História, a autora chega à percepção da inevitabilidade de se
obter variadas interpretações sobre o passado humano.
Além destas análises sobre uma das operações substanciais da Ciência
Histórica, encontram-se neste número, alguns artigos que tratam sobre o uso das
fontes na pesquisa histórica.
No artigo História e literatura: algumas considerações, Valdeci Rezende
Borges, por exemplo, analisa as relações entre História e Literatura, apresentando,
a partir de um diálogo especial com a historiografia francesa, elementos
metodológicos para a utilização da literatura como documento na pesquisa
histórica.
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Kleverson Teodoro de Lima, no artigo Cartas, história e linguagem,
problematiza a utilização das fontes epistolares na pesquisa histórica,
identificando dois conceitos importantes para o trabalho com a prática epistolar
privada: o conceito de “performatividade”, identificado nos estudos de Roger
Chartier, e o de “expectativa de significado”, presente nos escritos de Patrick
Charaudeau.
Em As gravuras mexicanas do Museu de Arte de Santa Catarina: entre
aparição e nostalgia, Lucésia Pereira analisa um conjunto de gravuras doadas pelo
presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos ao acervo do então Museu de Arte
Moderna de Florianópolis em 1961, através do qual desenvolve um debate sobre
as relações entre história, arte e imagem.
As contribuições do método histórico-filosófico de Foucault e do método
histórico-sociológico de Weber também são apresentadas em dois artigos
distintos. No artigo Foucault, o método histórico-filosófico de pesquisa e sua
contribuição para a Metodologia Científica das Ciências Humanas, Fernando
Gaudereto Lamas e Ramon Mapa da Silva discutem as contribuições metodológicas
do filósofo francês para as ciências humanas, entendendo que o método histórico
utilizado por este autor possibilita a emancipação do saber de suas amarras
positivistas. Em Max weber historiador, a indologia weberiana frente ao historicismo
alemão, Arilson Silva de Oliveira apresenta o modo como Weber utiliza seu método
teórico particular para analisar a sociedade indiana. O texto analisa o rompimento
de Weber com o evolucionismo e com o pensamento hegeliano, sua retomada de
Kant e sua leitura particular do historicismo, rebatendo, sobretudo, as críticas ao
suposto eurocentrismo weberiano em sua análise sobre a Índia, e reforçando a
atualidade do método weberiano para a ciência histórica.
Para além dos métodos da pesquisa histórica, as reflexões sobre a história
elaboradas por Leon Tolstoi são analisadas no artigo Interpretação do Processo
Histórico em Leon Tolstoi, de Gustavo Morais Barros. Com o mérito de, primeiro,
analisar o pensamento histórico de um autor que teve suas reflexões sobre a
história ignoradas ou subestimadas, e, segundo, de se opor àquelas interpretações
que enxergam somente um “fatalismo histórico” nas percepções do escritor russo,
Gustavo Barros apresenta uma visão instigante sobre a aproximação entre Lei e
contigência no pensamento histórico tolstoiano.
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Nas reflexões a respeito dos interesses e das funções da História,
encontramos neste número, alguns artigos que trazem contribuições para
pensarmos a orientação da história na vida prática.
O artigo de Julio Bentivoglio, por exemplo, Cultura política e historiografia
alemã no século XIX: a Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift,
apresenta-nos uma contextualização da historiografia germânica do século XIX,
enfocando os vínculos entre os historiadores, no processo de especialização e
cientificização da história, e a ação política no contexto de formação do Estado
nacional alemão. O artigo contribui, desta forma, para a percepção do modo como a
história é produzida a partir de um debate vivo com a sociedade alemã. Ao mesmo
tempo, nos ajuda a superar a imagem comum, reduzida, esquemática e caricatural
de que esta historiografia se reduzia a um só personagem, Franz Leopold von
Ranke, e a uma grande máxima, a de “narrar os fatos como aconteceram”.
O artigo, A História como Sagesse, de Joana Duarte Bernardes, analisa as
mudanças sofridas no axioma “História Magistra Vitae” a partir da transformação
da perspectiva temporal. Contextualiza o axioma em sua perspectiva clássica,
judaico-cristã e moderna, e propõe a superação dos excessos de anacronismos e
presentismos para se alcançar uma historiografia que tenha, de forma assumida e
responsável, uma função pragmática.
Ainda em uma análise sobre as funções da História, o artigo A utilização da
História no decorrer da Conquista da América, de Adailson José Rui, analisa o uso
político da História nos discursos sobre a Conquista da América do século XVI e
XVII. O autor identifica o modo como cronistas/historiadores utilizavam a história
como forma de legitimar tanto suas posições pessoais quanto determinadas
posições de grupo.
Já no artigo A temporalidade na condição pós-moderna, Dagmar Manieri
retoma o tema da crise da razão moderna ao analisar as transformações da noção
de tempo motivadas pela pós-modernidade. Traçando uma longa trajetória da
razão moderna, que o autor inicia com uma análise da filosofia da História de
Hegel, identifica a renúncia pós-moderna da concepção de transcendência como
um dos elementos centrais da crise da razão.
Além destes artigos, este número da Revista de Teoria da História apresenta
na seção NOTAS DE PESQUISA, o texto Que vença o melhor argumento: as notas de
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rodapé como artifício argumentativo em Casa Grande & Senzala, de Eliézer Cardoso
de Oliveira e Vanessa Carnielo Ramos. Os autores traçam uma trajetória da
utilização das notas de rodapé no texto histórico, apontando o modo como, para
além das funções metodológicas, elas possuem uma função retórica importante. As
notas de rodapé devem ser entendidas como estratégias argumentativas utilizadas
pelos historiadores para reforçar seus argumentos, seja aproximando-os dos
argumentos de outras obras, seja distanciando-os de posições contrárias. É a partir
desta percepção que analisam as notas de rodapé do clássico livro de Gilberto
Freire, entendendo-as como mais do que um mero apêndice ao texto.
Por último, neste número encontra-se uma entrevista com o historiador
Sérgio Ricardo da Mata, professor de Teoria da História da UFPO (Universidade
Federal de Ouro Preto), realizada por Daniele Maia, Flávio Silva e Frederick Gomes.
Rafael Saddi
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Sumário
02 Apresentação. ARTIGOS. 08 Teoria e prática da Metodologia da pesquisa histórica: reflexões sobre
uma experiência didática. Profº Pedro Spinola Pereira Caldas.
20 Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift. Profº Júlio Bentivoglio.
59 A História como Sagesse. Joana Duarte Bernardes. 75 A experiência estética de hans-georg gadamer e a vivência de wilhelm
dilthey: contribuições da hermenêutica aos estudos da história. Sírley Cristina Oliveira. 94 História e literatura: algumas considerações.
Profº. Valdeci Rezende Borges.
110 Foucault, o método histórico-filosófico de pesquisa e sua contribuição para a Metodologia Científica das Ciências Humanas. Fernando Gaudereto Lamas e Ramon Mapa da Silva.
123 Interpretação do Processo Histórico em Leon Tolstói. Gustavo Morais Barros.
144 Max weber historiador, a indologia weberiana frente ao historicismo alemão.
Arilson Silva de Oliveira. 169 A Utilização da História no Decorrer da Conquista da América Profº. Adaílson José Rui. 190 As gravuras mexicanas do Museu de Arte de Santa Catarina: entre
aparição e nostalgia. Lucésia Pereira. 210 Cartas, história e linguagem. Kleverson Teodoro de Lima.
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226 A temporalidade na condição pós-moderna. Profº. Dagmar Manieri. NOTA DE PESQUISA
249 Que vença o melhor argumento: as notas de rodapé como artifício argumentativo em Casa Grande & Senzala. Eliézer Cardoso de Oliveira e Vanessa Carnielo Ramos.
ENTREVISTA 267 Entrevista com o Profº Sérgio Ricardo da Mata. Daniele M. Tiago; Flávio S. de Oliveira; Frederick G. Alves.
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Teoria e Prática da Metodologia da Pesquisa Histórica: Reflexões sobre uma Experiência Didática1.
Professor Adjunto da UNIRIO/ Pesquisador CNPq. Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas.
E-mail: [email protected]
RESUMO
O objetivo deste artigo consiste em discutir a relevância da metodologia na história. Por meio do conceito da concepção de Jörn Rüsen de unidade metodológica (como demonstrado em seu trabalho Reconstrução do Passado), é possível elaborar todo um curso de metodologia. Com o fito de provar tanto a legitimidade teórica quanto o uso prático da metodologia, este artigo dá o exemplo da hermenêutica – não só como elaboração de dados, mas também como caminho para a descoberta das profundas implicações do pesquisadores com o próprio processo de conhecimento.
Palavras-Chave: Metodologia – Jörn Rüsen – Hermenêutica.
ABSTRACT
This paper’s purpose is to discuss the relevance of methodology in history. Through Jörn Rüsen’s conception of methodological unity (as it is shown in his work Rekonstruktion der Vergangenheit) one may elaborate an entire course of methodology. In order to prove both the theoretical legimitacy and practical usefulness of methodology, this paper gives the example of hermeneutics not only as a data elaboration, but also as a path of discovery of the researcher’s deep implications in the process of knowledge itself.
Keywords: Methodology – Jörn Rüsen - Hermeneutics
1 No dia 12 de maio de 2010, participei, no campus de Seropédica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), juntamente com Fernando Nicolazzi (UFOP) e Temístocles Cezar (UFRGS), de uma mesa redonda dedicada ao ensino de teoria da história e da história da historiografia. O presente texto é resultado de minha fala naquela noite. Aproveito para agradecer novamente às professoras Rebeca Gontijo e Maria da Glória de Oliveira (ambas da Rural) pelo convite feito. A palestra, por sua vez, foi baseada na (gratificante) experiência em sala de aula durante o segundo semestre de 2009, quando ministrei, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), a disciplina “Metodologia da História”.
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Dificilmente um estudante decide estudar história para se dedicar à reflexão
teórica. Por ter ministrado por cinco vezes cursos para “calouros”, me permito
afirmar que o fascínio pela história costuma ser o fascínio pelo particular: Egito
antigo, a mitologia clássica, o Brasil contemporâneo, a Idade Média, a Segunda
Guerra Mundial etc. O jovem dado a abstrações invariavelmente está, naquele
exato instante, matriculado em uma graduação de filosofia. E o gosto pelo
particular, acompanhado pela indiferença em relação à teoria, costuma
acompanhar o estudante pela sua vida profissional, mesmo quando ele se torna um
respeitado docente e laureado pesquisador.
Daí ser previsível o estranhamento de disciplinas como “teoria da história”,
“introdução aos estudos históricos” ou coisa semelhante. O estranhamento
cotidiano, dado na sala de aula, por exemplo, é um fato incontornável, e que todos
gostariam de mitigar. Afinal, um professor gosta de ser compreendido e um aluno
gosta para aprender. E ambos têm uma notável e humana resistência ao
inconclusivo, ao misterioso, ao que permanece incompreendido mesmo após um
esforço moderado de leitura e audição.
Porém, sou da opinião de que o estranhamento da teoria da história, a meu
ver, deve ser mantido – em doses moderadas – mas jamais encoberto. Se bem
canalizado, o estranhamento adquire um enorme potencial crítico e reflexivo. Mas
como?
Pelas peripécias da vida e da carreira, me vi levado (felizmente) a estudar
um pouco de outra teoria, além da história: a teoria do teatro. E, além de sentir,
fora do âmbito de minha formação profissional, como uma teoria é capaz de
aumentar o prazer (no caso, de assistir a uma boa peça de teatro), de fornecer
instrumentos capazes de elaborar, alargar e refinar uma experiência estética. E
uma teoria do teatro, em específico, me serviu de inspiração para pensar a própria
teoria da história. Refiro-me às teorias sobre o teatro engajado, pensadas
primordialmente por Bertolt Brecht, mais precisamente o seu conceito de efeito de
estranhamento (Verfremdungseffekt).
O efeito de estranhamento pode ser exemplificado da seguinte maneira:
habitualmente, as peças são encenadas em “palcos italianos”, isto é, em palcos em
que palco e platéia estão divididos por uma parede imaginária (a “quarta parede”),
e os espectadores só vêem a ação. Há, porém, a possibilidade de se encenar uma
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peça no teatro de arena, no qual a ação transcorre no centro, rodeada pelo público.
Neste caso, ao ver uma peça, vemos também os outros espectadores, localizados na
nossa frente. Enquanto vemos a ação, vemos o ato de ver. E é isto a teoria.
Qualquer teoria.
Sem sair do teatro engajado, recordo-me também que, certa vez, li uma bela
dissertação1, na qual havia a pergunta: por que, nos dias de hoje, marcados pelo
individualismo e pela comunicação audiovisual de massa, alguém iria ao teatro?
(cf. DESGRANGES, 2003:21-22, 24) Ou seja: por que ir ao teatro? Como fazer
teatro? Para quem fazer teatro? Transponho sem receio algum o mesmo feixe de
perguntas: por que estudar e ensinar história? Como fazer história? A quem se
dirigir, quando escrevemos e ensinamos história?
Junto os fios: a teoria, portanto, é a área na qual estas perguntas aparecem.
Ela chama a atenção para forma como o sentido histórico é considerado
(pessoalmente) necessário, (metodologicamente) viável e (socialmente)
comunicável. E é por esta razão que a teoria da história é, necessariamente, uma
área estranha, desagradável. Ela escapa da rotina, dos debates historiográficos a
respeito da pertinência empírica de teses e hipóteses, do cotidiano da sala de aula
e dos congressos. É por esta razão que, ao iniciar um curso de caráter teórico,
pergunto aos alunos (e o faço com mais ênfase quando se trata de alunos de
primeiro período): o que vocês estão fazendo aqui? O tom desafiador, arriscado em
se tratando de um público que apenas começa a se acostumar com a idéia do fim da
adolescência, pretende apenas introduzir uma pergunta: por que precisamos da
história?
Um curso, porém, tem aproximadamente 60 horas de aula, donde a
provocação precisa ser desenvolvida. E, até onde vão minhas leituras sobre teoria
da história, poucos sistemas me parecem tão completos quanto os desenvolvidos
por Jörn Rüsen. Sua trilogia, formada por Razão histórica, Reconstrução do passado
e História viva, de alguma maneira, apresenta, desenvolve e elabora justamente as
três perguntas acima, pois tratam da consciência histórica, da metodologia da
história e da narrativa histórica: isto é, da necessidade, viabilidade e
comunicabilidade da pesquisa e do conhecimento na área de história. Aqui,
1 FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Por entre as coxias: A arte do efêmero perpetuada por mais de “Sete minutos”. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Uberlândia, 2010.
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evidentemente não terei como abordar as três obras. Mal terei como tratar de uma
delas. Aproveitarei o espaço, portanto, para partilhar minha experiência como
professor de metodologia da história. Logo, trato da segunda pergunta, sobre o
como fazer história, presente em Reconstrução do passado.
Sejamos sinceros: a metodologia é, para os alunos, uma das disciplinas mais
enfadonhas da grade curricular da graduação. Para os pesquisadores, algo de que
muitas vezes é lembrado somente para redigir um projeto. A metodologia é uma
ferramenta, mas a ferramenta não é uma mera extensão do braço. Por que
precisamos dela? Assim como não pregamos um prego com os dedos, por
sentirmos uma carência na nossa força física para fazê-lo, quais as carências
sentidas no ato de conhecer historicamente que exigem, portanto, uma
metodologia? Está implícito no próprio título do livro de Rüsen: por que o passado
precisa ser reconstruído (e não meramente construído)?
Doravante, farei uma breve apresentação de Reconstrução do passado, para,
no momento seguinte, demonstrar como um dos métodos abordados por Rüsen – o
hermenêutico – pode ser utilizado na prática de pesquisa, com ganhos
consideráveis. Não quero, com isso, comprovar a supremacia da hermenêutica,
mas, apenas, relatar como o uso de um método (que aplico freqüentemente) é
imprescindível para que a segunda pergunta da teoria da história – como fazer? –
ajuda já a desenvolver a primeira – por que fazer?
Reconstrução do Passado: a unidade do método histórico
A obra de Jörn Rüsen1 me serve, ultimamente, como um mapa altamente
preciso de questões e problemas. As discordâncias e reparos a serem feitos são
possíveis porque, justamente, as coordenadas parecem muito claras e bem
determinadas. De alguma maneira, Rüsen estabelece regras de um jogo no qual ele
mesmo, em alguns lances, pode ser impreciso, sem que, com isso, as regras sejam
desfeitas. Reconstrução do passado, por ser um texto abstrato (um desafio a mais
para professores e alunos) e conciso, acaba sendo mais útil do que obras de
grandes dimensões, que acabam confundindo metodologia e história da
1 O historiador sueco Martin Wiklund tem um excelente estudo introdutório da obra de Rüsen. Cf. WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen. In: História da Historiografia, n.1, 2008. www.ichs.ufop.br/rhh
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historiografia. Se, de fato, uma obra é construída com método, por outro, a história
da historiografia, o aspecto formal e comunicável da pesquisa histórica, responde a
outras perguntas.
Deixarei de lado, neste espaço, as considerações de Rüsen sobre as
operações processuais da pesquisa histórica (heurística, crítica e interpretação)
por não ter nada a acrescentar ao assunto.
Interesso-me, na verdade, pelas operações substanciais: analítica,
hermenêutica e dialética. E é neste sentido que meu argumento seguirá, sem, em
momento algum deixar de lembrar como a construção feita por Rüsen é ideal-
típica
A função terapêutica atende a uma necessidade humana: a de reconstruir
sua identidade no tempo. Esta identidade se desfaz mediante três formas de
experiência temporal: a do tempo humano, do tempo natural e do tempo histórico.
Segundo Rüsen, “o tempo humano é experimentado sempre que as mudanças do
homem e do seu mundo podem ser tornadas inteligíveis por meio de intenções”
(RÜSEN, 2007: 155). Podemos entender que o assassinato de John Kennedy, tendo
sido ele cometido por Lee Harvey Oswald (na versão da Comissão Warren) ou por
alguma outra sinistra conspiração, ocorreu devido a intenções humanas
planejadas, desejadas e bem sucedidas na realidade. E é a dúvida sobre as razões
da intenção do assassinato de JFK que levam os historiadores a pesquisar
historicamente. A necessidade de um método histórico como elaboração de
intenções e da experiência do tempo humano dá-se sempre quando enfrentamos
situações imprevisíveis, isto é, nenhuma condição objetiva poderia prever que tal
ou qual coisa poderia acontecer. Já o tempo da natureza “é experimentado sempre
que mudanças temporais do homem e de seu mundo dependem de circunstâncias
e condições externas ao agir humano, não explicáveis como decorrências de
intenções” (idem). É o que ocorre, por exemplo, com a atual crise ambiental. Não
era intenção dos industriais de Manchester, no final do século XVIII, tornar
insuportáveis os meses de verão nas cidades tropicais, muito menos alegrar os
fabricantes e vendedores de aparelhos de ar-condicionado. O processo ocorreu por
outros caminhos além dos intencionais. Não se pode, neste caso, usar o método
apropriado para elaboração de intenções geradora de fatos imprevisíveis, pois a
experiência é a de se sentir determinado pela circunstância histórica, de se sentir
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impotente, uma marionete nas mãos dos fatores históricos existentes para além de
nós. E o tempo se torna histórico quando há a determinação mutua entre
condições objetivas e intenções subjetivas. Ou seja: quando percebemos que
algumas coisas são possíveis, e, dentro de sua possibilidade, retroativamente
explicáveis e compreensíveis mediante a coordenação de condições objetivas e
intenções subjetivas. Sentimos que, embora sejamos limitados por uns tantos
fatores históricos, isto não nos faz inteiramente previsíveis em nossas ações.
Pois bem. Para cada uma destas experiências, um método. Para a
experiência do tempo humano, vivido pela consciência da imprevisibilidade do
processo histórico, deverá ser aplicado, segundo Rüsen, o método hermenêutico.
Para a experiência do tempo natural, patente sempre quando nos sentimos tão
determinados e previsíveis quanto os movimentos de rotação e translação da
Terra, é cabível o que Rüsen chama de método analítico. Já para a experiência do
tempo histórico, no qual intenções subjetivas e condições objetivas se articulam,
formando o tempo histórico, deve ser empregado o método dialético. Cada método
é uma terapia para uma crise de orientação específica (por exemplo: transtorno
perante a imprevisibilidade, apatia perante a imprevisibilidade, espanto perante a
possibilidade)1.
1 Gostaria de fazer duas observações pontuais acerca da unidade metodológica da história. A primeira diz respeito ao lugar do marxismo dentro da unidade metodológica. Ao utilizar trechos de Marx e Engels para definir e ilustrar o método analítico, acabou por sugerir a redução do marxismo a uma possibilidade metódica. É bem verdade que o marxismo – ou certo tipo de marxismo – busca leis e utiliza procedimentos quantitativos. Um bom exemplo do marxismo “nomológico” e interessado em perceber regularidades e leis de transformação da história se encontra em Caio Prado Jr. Mas há algo mais a tirar do marxismo. Para ficar em um exemplo: o polonês Jerzy Topolski, renomado filósofo da ciência, em um excelente texto sobre metodologia materialista (cf. TOPOLSKI, 1989), demonstrou que o marxismo é, antes, dialético, justamente por articular as intenções dos sujeitos históricos sociais com as condições objetivas de sua vida. Uma análise materialista histórica haverá de considerar as duas formas de entendimento do processo histórico. Penso que a autêntica contenda deveria ser com a pretensão do materialismo histórico em ser uma unidade metodológica, uma “totalidade concreta”, para usar os termos de Georg Lukács (cf. SOCHOR, 1987). A segunda observação diz respeito a uma tipo de experiência de tempo não considerado por Rüsen, a saber, a da ruptura, tal como podemos aprender com Nietzsche e ver aplicada em Michel Foucault. Pode ser provado, é claro, que a escrita de inspiração foucauldiana da história pode ser inserida na unidade metodológica, mas aqui é o caso de se esticar a corda. De um lado, Foucault era, além de filósofo, erudito pesquisador de arquivos. E escrevia livros aproveitados ricamente pelos historiadores, como Vigiar e Punir, História da Loucura etc. Como ver o método por detrás destes livros? Parto da premissa de que há, sim, um método, desde que entendamos método aqui como passo fundamental para elaboração de uma crise de orientação. E qual crise seria esta, senão a diagnosticada por Friedrich Nietzsche na Segunda consideração intempestiva? Segundo o filósofo, o excesso de história soterra a possibilidade de ação humana, na medida em que a história antiquaria nos prende excessivamente às “raízes” do passado, a história monumental nos prende a um modelo a ser imitado, e a história crítica simplesmente nos tira toda e qualquer referência ao negar todo o
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Aplicação do método hermenêutico
Novamente, afirmo que estou ciente de que Rüsen trata de tipos ideais, mas
confesso que gostaria de acrescentar algumas considerações às páginas de
Reconstrução do Passado dedicadas à hermenêutica, e, assim, mostrar sua
aplicabilidade no dia a dia, na prática de pesquisa a ser ensinada mesmo para
alunos de iniciação científica – contato, claro, que os mesmos partilhem dos
pressupostos de uma concepção hermenêutica.
Para Rüsen, a heurística hermenêutica “(...) traz para o horizonte do
interesse de pesquisa as fontes que podem valer como intencionalidade
objetivada” (RÜSEN, 2007:140). Por exemplo: programas políticos, manifestos,
cartas, diários etc. Já a crítica hermenêutica “retira das fontes fatos que são
compreensíveis sobretudo por causa das ações intencionais e de suas complexas
conexões sincrônicas e diacrônicas” (RÜSEN, 2007:141). Para ilustrar: se quero me
assegurar (e a crítica é a operação que garante credibilidade às informações que
nos interessam) se um determinado texto de autoria desconhecida foi escrito por
um determinado artista, posso verificar, sincronicamente, o uso do vocabulário em
outros textos da mesma época, e, diacronicamente, se tal texto trata de temas
insinuados e já em desenvolvimento. Já interpretação hermenêutica “(...)
historiciza a compreensão ao interpretar mudanças temporais como
transformações das intenções e interpretações do agir que causa a mudança”
(RÜSEN, 2007:143). Não me parece claro o que Rüsen entende por historicizar,
mas creio que seja a interpretação de uma “(...) subjetividade dos processos
históricos que caracteriza o sujeito de referência de uma história, e não o sujeito
agente de um determinado ato” (idem). Parece-me que Rüsen indica que não se
trata de um resgate da biografia, mas, sobretudo, de uma formação, ou até mesmo
de uma idéia. Penso que o argumento ficaria ainda mais interessante se Rüsen se
baseasse diretamente na teoria compreensiva de Droysen, que considera
passado. A história, então, é erudição (acúmulo de dados do passado), moralista (se embebe de clássicos para lustrar a própria imagem) e ressentida (nego o próprio processo histórico). Vamos e venhamos: são três maneiras nada edificantes de se vivenciar o passado. O passado, então, segundo Nietzsche, precisa ser plástico, adquirir nova forma no presente. A pergunta a ser formulada: será o método arqueológico (ou genealógico) capaz de elaborar essa crise de orientação?
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igualmente a interpretação “do sujeito de um ato” uma etapa parcial da
compreensão histórica.
Johann Gustav Droysen foi tema de tese de doutorado de Rüsen. E seu
método compreensivo é dos mais úteis e aplicáveis, além de bastante sagaz.
Droysen dizia que a interpretação histórica se divide em quatro etapas (cf.
DROYSEN, 2009, pp.54-59): (a) pragmática; (b) interpretação das condições; (c)
psicológica; (d) interpretação das idéias.
A interpretação pragmática remete ao sentido original da palavra grega
“pragma”, ou seja, objeto. Trata-se da interpretação dos vestígios, de resíduos
históricos que restaram no presente, que resultará no conhecimento de um
sentido empírico. Por exemplo: ao tentar reconstruir da maneira mais fiel
possível uma estátua antiga quebrada, o historiador poderá, evidentemente, na
falta de um desenho original ou da peça irreversivelmente ausente, procurar
outras estátuas do mesmo escultor, ou ainda outras estátuas de escultores da
mesma época no lugar de origem da estátua partida e em outros lugares onde o
escultor tenha estado etc. Sua pretensão é a mais objetiva possível, mas o
procedimento de comparação já é, em si, um ato subjetivo, porquanto não está
dada na fonte (a estátua quebrada) a remissão a outras fontes. Portanto, é
necessária a criação de um campo mais abrangente de fontes (podemos chamá-lo
de contexto) para que seja elucidado um aspecto altamente objetivo, factual e
pontual. Passa-se daí à segunda etapa, qual seja, a interpretação das condições, ou
seja, dos fatores históricos existentes para que tal aspecto objetivo e factual
adquira sentido. Tal interpretação chega a um sentido lógico, ou seja, aquela que
busca identificar as determinações causais necessárias (mas muitas vezes
insuficientes) para o entendimento de uma situação histórica. Droysen os percebe
no tempo e no espaço. Mas a história, por ser feita de ações humanas, não é uma
coleção de reações a condições dadas. A ação do homem não é condicionada
naturalmente e pode se dar de maneira distinta mesmo em situações semelhantes.
Portanto, o historiador não pode entender nomologicamente, como se fosse mero
verificador de leis naturais, mas como alguém que precisa compreender o sentido
da ação em uma determinada condição necessária ainda que não suficiente. Daí o
terceiro nível: a interpretação psicológica, a tentativa de reconstruir as intenções
dos agentes históricos em dadas circunstâncias que dariam, portanto, um sentido
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empático, baseado nas ações dos homens. Geralmente, considera-se esta a etapa
final da interpretação hermenêutica, ou seja, a reconstrução de intenções dos
agentes, possibilitada pela empatia intersubjetiva. Afinal, se fosse o caso de
meramente se transpor para o passado, tentando entrar na pele do objeto, o
intérprete se anula. Droysen percebe tal contradição. E mais: não somente se
anula, mas parte do pressuposto de que (a) o objeto tinha perfeita lucidez do que
estava fazendo, e não tinha a menor possibilidade de se iludir; (b) o objeto
manteve-se o mesmo durante grande parte de sua vida historicamente
significativa, de modo que posso tomar uma biografia como base segura, estável e
essencial para interpretar. Daí a necessidade da etapa final de interpretação, na
qual ela se perfaz: a interpretação das idéias, ou seja, o sentido mais profundo que
está em curso a partir das ações dos agentes históricos: o sentido ideal ou
espiritual. O exemplo preferido de Droysen é Alexandre Magno: ao unir ocidente e
oriente, de modo algum ele poderia imaginar que estava preparando o terreno
para o cristianismo, religião originalmente oriental que se tornou ocidental
E como aplicar na pesquisa as quatro etapas do processo interpretativo? E,
sobretudo: o que se ganha com ele?
Um primeiro ganho se dá na forma de organização das leituras. Banal, mas
algo que efetivamente desconcerta alunos e até mesmo pesquisadores experientes.
Dou o exemplo de minha própria pesquisa sobre Droysen. Ao tentar compreender
o conceito de Bildung na teoria da história de Droysen, evidentemente, tive que
analisar, em primeiro lugar, a própria Historik (1857). Nessa primeira etapa, é
necessário fazer uma leitura detalhada do texto, conhecer cada passo, item,
argumento. É o momento do famigerado fichamento. Podem entrar, na primeira
fase, as leituras comentadas sobre a Historik (e não sobre todo o Droysen, por
exemplo).
Na segunda fase, da busca do sentido lógico, me perguntei: quais são as
condições sem as quais este texto seria impossível? Claro, há uma bem óbvia: a
língua alemã. Mas o caso é outro: ver, a partir de minha pergunta sobre a idéia de
Bildung, quais autores foram fundamentais para Droysen, ou seja, autores citados
por ele ao longo da obra. Três nomes se destacaram: Hegel, Wilhelm von Humboldt
e Ésquilo. Pus-me, então, a ler as obras referidas dos três. E, se o tempo permitisse,
obras comentadas sobre os autores escolhidos.
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Na terceira etapa, a da busca do sentido psicológico, fiz o levantamento das
obras escritas por Droysen antes de 1857, bem como se textos de cunho político,
que explicassem as lacunas deixadas na leitura direta da Historik e na análise de
textos influentes. A referência constante a um Ésquilo, por exemplo, me levaram a
estudar suas obras sobre helenismo e, sobretudo, reflexões sobre a cultura grega e,
claro, sobre a tragédia. Tentei encontrar, também, como sua visão política poderia
ter sido influenciada ou influenciado sua concepção de história. Aqui foram
obrigatórias as leituras de livros gerais sobre a obra e a vida de Droysen, isto é,
textos que não se dedicavam exclusivamente à teoria da história, mas também
sobre helenismo etc.
Por fim, o exame da idéia de Bildung, tema importante para Droysen, mas
que jamais foi tema central e explícito de algum livro ou curso durante toda sua
vida. Neste momento, os temas se juntam. Foi importante ver como Hegel e
Humboldt o trataram, ou se ele aparecia nas obras de Droysen sobre Grécia antiga.
E, claro, as leituras sobre o tema da Bildung, mesmo aquelas sem qualquer menção
a Droysen, foram fundamentais (Georg Bollenbeck, Franco Moretti, W.H. Bruford,
Aleida Assmann, Koselleck, entre outros).
A organização da leitura permite, além de traçar com mais racionalidade o
programa de trabalho (sempre em relação ao tempo), torna viável também
organizar o debate sobre o assunto, viabilizando a identificação de níveis de
argumentação. Este seria o segundo ganho. Na medida em que um autor pretende
argumentar no nível do sentido empírico, farei o debate entre ele e com ele neste
nível. Se um outro pretende argumentar no sentido ideal ou espiritual, não poderei
argumentar contra ele no plano meramente empírico ou mesmo lógico. Veja o caso
da imensa literatura sobre o Holocausto (permitam-me sair um pouco de
Droysen): não creio que seja muito produtivo comparar as biografias de Hitler
escritas por Ian Kershaw e Joachim Fest com a visão filosófica mais ousada de
Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. As primeiras podem ser comparadas
com outro estudo, fortemente baseado na idéia da reconstrução da
intencionalidade (como a obra Ordinary Men, de Christopher Browning), ao passo
que a segunda se mede melhor se lida em paralelo ao famoso Dialética do
Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer.
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Há ainda um terceiro ganho, este, a meu ver, inestimável. O método
hermenêutico, como qualquer outro, exige rigor no exame das fontes (a
interpretação pragmática), mas durante o exercício do rigor, o pesquisador já se vê
na necessidade de interpretar: desde a comparação entre ruínas e artefatos, como
no exemplo de Droysen, seja no mais simples fichamento, no qual o leitor precisa
escolher, selecionar, posto que nenhum autor dirá qual passagem mais ou menos
importante do texto. Portanto, o estudioso já se vê obrigado a discernir, mesmo
que no plano mais objetivo possível, o essencial do secundário. Tudo isto até
chegar ao nível da interpretação das idéias, impossível sem que se insira um
sentido ausente nas fontes, mas capaz de articulá-las de maneira verossímil. E é aí
que o pesquisador se vê implicado no processo do conhecimento. Subjetividade
não é arbitrariedade ou capricho, mas lenta e laboriosa construção. E só é atingida
após as etapas da pesquisa, percorridas de maneira mais ou menos consciente. O
resultado, quando atingido (e não é fácil), é a experiência de pensar o próprio
pensamento enquanto pensamos o objeto. E aí a metodologia passa a ser algo bem
mais importante do que uma disciplina monótona ou um item de projeto a ser
eventualmente financiado por uma instituição de fomento. É processo de re-
conhecimento.
Conclusão
Jamais negaria que adoto a hermenêutica como metodologia, mas,
sobretudo em sala de aula, é importante mostrar como cada um dos
procedimentos metodológicos – os de matriz analítica e os de matriz dialética – são
ferramentas igualmente úteis. O fundamental é que o aluno perceba qual a mais
adequada, em primeiro lugar, ao seu conceito de processo histórico. É isto o mais
complicado, pois incentivar o aluno a uma escolha específica é inútil; o
fundamental, penso, é fornecer critérios e instrumentos que permitam um
embasamento teórico e uma elaboração metodológica coerentes. E, assim como no
teatro, o estranhamento não deve tirar o prazer pela cena, isto é, pela empiria, mas,
antes, potencializá-lo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Cultura Política e Historiografia Alemã No Século XIX: A Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift.
Professor Adjunto de Teoria da História
Julio Bentivoglio PPGHIS-UFES
E-mail: [email protected]
RESUMO A constituição da ciência histórica alemã no século XIX coincidiu com um momento ímpar da própria história da Alemanha – o processo de unificação política e de formação do Império – no qual a investigação histórica esteve direta ou indiretamente relacionada à emergência do nacionalismo e à política prussiana. Naquele período, duas escolas históricas se tornaram referências aos jovens historiadores: a escola rankeana e a escola histórica prussiana. Este artigo pretende caracterizá-las e discutir a formação da cultura historiográfica germânica oitocentista tomando como referência a Historische Zeitschrift. Palavras-Chave: teoria da história; história intelectual; historiografia alemã; século XIX.
ABSTRACT The constitution of the German historical science in the nineteenth century coincided with an unprecedented moment of the history of Germany – the process of political unification and formation of the Empire – in which historical research was directly or indirectly related to the emergence of nationalism and Prussian policy. At that time, two schools have become historical references to young historians: the Rankean school and the Prussian Historical Pchool. This article aims to characterize them and discuss the formation of the 19th century Germanic cultural historiography taking the Historische Zeitschrift like reference. Keywords: theory of history; intellectual history; german historiography; nineteenth century.
Tarefa difícil definir escolas históricas, delimitando-as num certo tempo e
espaço, localizando suas idéias de força e os elementos que conferem identidade
aos historiadores que as compõem. Um recurso que permite um primeiro passo
nesta direção é analisar seus expoentes, bem como sua produção o que,
invariavelmente, nos leva a um determinado periódico. Tal como podemos
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vislumbrar uma escola dos Annales nas páginas da revista homônima ou uma Nova
Esquerda Inglesa nos artigos da New Left seria possível identificar uma Escola
Histórica Prussiana nas páginas da Historische Zeitschrift?
Lamentavelmente a historiografia alemã durante o século XIX foi reduzida a
uma imagem distorcida e caricata de um historiador só: Franz Leopold von Ranke.
Como se toda a produção historiográfica germânica adotasse a escrita rankeana da
história. Essa imagem duradoura que surge ainda hoje em certas interpretações
(FUNARI & SILVA, 2008) oblitera a existência de diferentes escolas – ou
movimentos – em solo alemão durante o oitocentos, das quais se destacaram de
um lado Ranke e seus seguidores e de outro a Escola Histórica Prussiana, tal como
localizam os intérpretes (Iggers, 1983) (SOUTHARD, 1995). É este o objeto das
linhas que se seguem, discutir a historiografia germânica em suas linhas mais
gerais e analisar o contexto histórico em que foi produzida, tomando como
referência a Historische Zeitschrift (Revista Histórica), criada por Heinrich von
Sybel em 1859, periódico que existe até hoje e oferece um panorama bastante
sensível da produção historiográfica alemã.
Em Michel de Certeau (2002) encontramos uma chave analítica acurada
para se pensar a operação historiográfica e, por conseguinte, a produção individual
e coletiva dos historiadores, visto ser resultante da relação entre determinados
processos de institucionalização – os lugares –, a conformação de determinadas
regras ou métodos – as práticas – e, por fim, a expressão e materialização de um
saber consubstanciado em regimes de escrita. Em outras palavras, nesta operação
observa-se a reprodução de algumas estratégias funcionais: a institucionalização e
reunião em torno de centros universitários privilegiados, a adoção de
procedimentos metodológicos semelhantes e o exercício de uma forma de escrita,
que, a seu modo, privilegia um periódico particular; responsável por integrar os
sujeitos do saber, as práticas e os circuitos de circulação do conhecimento
histórico, produzindo um vínculo entre as universidades, os historiadores, as
associações científicas e os arquivos, garantindo a gênese e a divulgação das idéias
do grupo. Longe de querer propor um esquema, tenho me convencido de que as
escolas históricas dos séculos XIX e XX parecem seguir um certo desenho: sua
duração – constituição e influência – não costuma exceder um século; orientam-se
a partir de um grande centro, uma universidade que se destaca e projeta suas
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obras históricas que são reconhecidas e traduzidas em outros países1 e, por fim,
cujo programa e identidade do grupo é cristalizado por meio de um instrumento
de difusão fundamental, uma revista, uma coleção, uma série. Seria possível
localizar ainda outras iniciativas que consubstanciam as escolas, relacionadas ao
acesso e controle privilegiado de certas fontes. Senão vejamos, a Escola Histórica
Prussiana sediada na Universidade de Berlim tornou-se pujante já em meados de
1840, notabilizou-se pela publicação da Monumenta Germanicae Historica e uma
das referências centrais do grupo foi a Historische Zeitschrift , tendo seu ocaso
ocorrido em meados da virada do século após a querela de Karl Lamprecht.2
O interesse por este tem surgiu-me em meados de 2003, quando me
convenci de que os historiadores alemães oitocentistas tinham sido reduzidos a
um lugar-comum. A emergência da história produzida na Alemanha atualmente,
que é bastante conhecida pelos leitores brasileiros, a partir, sobretudo, do contato
com Gumbrecht (2003), Rüsen 2001) e Koselleck (2006), conduziu-me ao
pensamento histórico germânico do século XIX. E revelou que ele não passava
exclusivamente pela obra de Ranke, que ainda hoje é muito mal-conhecida3, mas
também por Niebuhr, Droysen e Gervinus, estes dois últimos expoentes da
chamada Escola Histórica Prussiana. Da leitura destes historiadores estampou-se a
urgência para que sua obra fosse estudada. Assim surgiram as traduções do
Manual de Droysen (2009) e dos Fundamentos de teoria da história (2010) de
Gervinus. O despertar epistemológico da História, vivido na Alemanha do século
XIX referenda um momento singular em que o pensamento histórico, ou suas
idéias-força parecem tomar consciência de si, historicizando-se, situando seus
lugares e sua pertença, confrontando sua própria história e projetando-se no
1 E é curioso que quase todos estes historiadores iniciam sua carreira em alguma universidade periférica e depois migram para um pólo maior e mais importante na área. Deste centro passam a peregrinar e conferenciar em outros centros importantes, em outras universidades dentro e fora de seu país. 2 A escola metódica francesa, composta por Monod, Fagniez, Langlois e Seignobos dentre outros, de modo semelhante, aglutinou-se em torno da Revue Historique de 1876 – nome idêntico à revista alemã – e da Sorbonne irradiando um tipo de escrita da história que depois seria combatida por uma nova escola, os Annales, que inicia suas atividades a partir de 1929 na revista homônima, Bloch e Febvre também se deslocam de Estrasburgo para a Sorbonne e até o final do século XX foram uma influente corrente historiográfica. A micro-história segue padrão similar, nas páginas dos Quaderni Storici. 3 Basta lembrar que, a rigor, existem apenas dois ensaios sobre o pensamento deste autor, o primeiro redigido por Sérgio Buarque de Holanda (1981) e o último, publicado em 2010, por sinal uma análise que nada deixa dever ao célebre historiador, de autoria de Sérgio da Mata (2010).
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futuro. Nascia a ciência histórica. Outro detalhe importante era a convergência
particular de ciência e política, visto existir um diálogo intenso entre pensamento
histórico e ação política, haja vista a história subsidiar e ser subsidiada pelo debate
político em torno da unificação alemã, dos conflitos territoriais e do nacionalismo
emergente de tal maneira que nem mesmo Ranke escapou a isso; o que por si
desmistifica a interpretação ingênua e os ataques desferidos contra seu pretenso
apartidarismo. Ao contrário de Karl Marx, cujas obras históricas procuravam
produzir ação junto ao povo, em particular os trabalhadores, aqueles historiadores
prussianos escreviam para os príncipes e para a burguesia, embora não
desprezassem o diálogo junto à opinião pública, mas para isso se serviam da
imprensa.
Como se trata de uma pesquisa em desenvolvimento, talvez existam mais
perguntas e indícios que respostas categóricas neste artigo. A meta, bastante
modesta, será pensar a Escola Histórica Prussiana a partir da Revista Histórica,
uma das primeiras do gênero em todo o mundo. Ela foi anterior às congêneres:
Revue Historique (1876) dos metódicos Monod e Fagniez, English Historical Review
(1886) fundada na Univesidade de Oxford ou os Annales (1929) de Marc Bloch e
Lucien Febvre. E também relacioná-la com um perfil e uma análise sobre a
trajetória dos historiadores que a compunham. Este texto expressa, portanto, tanto
a necessidade da desfiguração de lugares-comuns da historiografia alemã durante
o século XIX, quanto as dificuldades inerentes àqueles que se enveredam pelo
estudo da história da historiografia. E vai enfatizar a convergência entre o
desenvolvimento da ciência histórica alemã e o processo de unificação política.
Vínculo, por sinal, percebido por um dos historiadores alemães mais conhecidos do
período, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1904, Theodor Mommsen: Eis o horizonte do futuro: organizar o Estado institucionalizado de forma que o comércio alemão, a manufatura alemã, a arte alemã, a ciência alemã, a sociedade alemã e a vida alemã continuem equiparadas ou se equiparem ao poder da nação. (THEODOR MOMMSEN, 1871, Apud MARTINS, 2010)
Em muitas alusões à historiografia alemã do século XIX é comum referirem-
se a ela como sendo positivista, factual e conservadora (FUNARI & SILVA, 2008).
Pesa sobre aqueles historiadores e, em especial, sobre o pai desta história alemã o
anátema de uma condenação categórica, afinal Ranke parece ser a síntese de tudo
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aquilo que não se deve fazer em História, algo que poderia ser resumido numa
fórmula: “narrar os fatos como aconteceram, ser objetivo e imparcial (Cf.
CARDOSO, 1988). Como se fosse fácil resolver estas questões em um autor cuja
obra é tão vasta quanto complexa1. Creio que sob esta censura ataviaram
exatamente aquilo que todo historiador deveria evitar: reproduzir acriticamente
uma máxima, incorrer em anacronismo e não tomar toda uma historiografia a
partir de apenas um representante. Esta é a primeira imagem a ser desfigurada,
que elimina esta leitura reducionista, superficial e equivocada.
A complexidade da definição para o que recentemente surge sob a rubrica
de história da historiografia exige que algumas advertências sejam levantadas. A
primeira remete à própria historicidade do conceito de historiador, um léxico
antigo que sofreu mutações no pensamento ocidental em meados do século XIX,
quando se passou a distinguir historiadores de cronistas ou de memorialistas. A
segunda ao problema da relação autor(es) e obra(s), ou ainda, num sentido mais
amplo, da construção de identidades em um grupo específico de historiadores. De
certo modo, esta questão é a mesma que ocorre nos estudos consagrados à história
intelectual, embora em outro registro. Nos estudos franceses consagrados ao tema,
destacam-se os trabalhos de Jean-François Sirinelli e de Michel Winock com uma
ênfase sociológica sobre as cartografias de intelectuais, suas redes de solidariedade
e de oposição, seus modos de integração e em torno da formação de gerações
(SILVA In: LOPES, 2006:15s). A referência maior é o pensamento de Pierre
Bordieu, sobretudo em suas noções de campo e de habitus (SILVA In: LOPES,
2006:16). A esta influência francesa existe uma outra da New Intellectual History
anglo-saxã, que entende o texto como uma relação de forças, um nexo entre
perspectivas e níveis diversos que se configuram em determinadas obras e autores
(KIRSCHNER in: LOPES, 2006:33). Nesta tendência temos a influência sedutora da
hermenêutica filosófica e do desconstrucionismo derridadiano e seu maior
expoente é, sem dúvida Dominick La Capra (KIRSCHNER in: LOPES, 2006:34-5).
Hayden White, a meu ver, apresenta um diagnóstico bastante elucidativo acerca do
campo. Ele se divide entre os analistas
1 Concordo com Sérgio da Mata (2010) acerca da existência de um verdadeiro mito historiográfico a respeito de Ranke.
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que 1) assumem uma posição de acordo com uma ou mais das hermenêuticas clássicas do século XIX (Hegel, Dilhey, Marx, Freud) ou seus herdeiros do século XX; 2) advogam uma teoria filológica neohumboldtiana da linguagem ultimamente reelaborada e refinada por Gadamer e Ricoeur, ou então 3) subscrevem abertamente a teoria pós-saussuriana do signo lingüístico, dos quais são expoentes, ainda que de forma diferenciada Foucault e Derrida (WHITE, 1990:187-8).
Neste registro, pode-se ponderar que, a seu modo, Pocock e Skinner quando
subsumem as criações individuais a um contexto maior, não deixam de ter sua
utilidade para a história intelectual e para a própria história da historiografia (Cf.
JASMIN & FERES JÚNIOR, 2007). Evidentemente, é preciso considerar as críticas de
David Harlan ao chamado contextualismo, sobretudo em Skinner, com sua
hermenêutica de fundo romântico ancorada na proposta teórica de resgate das
intenções originais do autor (HARLAN, 1989:585). Ponto alto das contribuições
recentes, sem dúvida devem ser localizados tanto em Koselleck, quanto em Jörn
Rüsen, visto ambos terem dedicado estudos ao problema da historiografia e de
como deve ser subsumido à análise da consciência histórica (KOSELLECK, 2003,
RÜSEN, 2008). Como se vê, o exercício de crítica historiográfica a respeito da
história da historiografia não é algo fácil. Embora existam trabalhos clássicos1 a
tarefa apresenta algumas dificuldades, sobretudo acerca da melhor maneira de
avaliar o sentido e o efeito produzido pelas obras. Acrescente-se aí os problemas
inerentes de crítica, ou análise. Ou, como nas palavras de Barthes: A crítica funciona ordinariamente (não é uma censura), quer ao microscópio (esclarecendo com paciência cada pormenor filológico, autobiográfico ou psicológico da obra), quer ao telescópio (perscrutando o grande espaço histórico que envolve o autor) (2004:27).
Numa tentativa de síntese eu diria que o debate a respeito da história da
historiografia está marcado ora pela ênfase na constituição do autor (e da autoria –
sua formação, mestres, conceitos-chave), ora pelo problema da publicação das
obras (e do que elas querem dizer), ora pelo do seu efeito (sua aplicação em outras
obras), ora pelo recurso à contextualização (pontos de inserção e de dispersão em
um determinado lugar e período, ou ainda face às disputas existentes). A
empreitada se torna ainda mais árdua quando, em meio às diferenças de formação
e de orientação epistemológica se procuram identidades que configurem a
existência de uma geração ou de um grupo suprimindo, muitas vezes, 1 A lista de autores é exaustiva, mas, dentre eles se destacam Croce (1953), Momigliano (1993), Gooch (1959), Collingwood (1972) e Iggers (1983) dentre outros.
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singularidades, quando não, elidindo a própria autoria, dissolvendo-a em práticas
ou em ideários coletivos. O desafio, portanto, é o de discutir a experiência daqueles
historiadores e sua trajetória política e historiográfica para compreender seu
percurso intelectual no contexto da unificação alemã, sem diluir trajetórias
individuais em uma imagem coletiva, a fim de restituir vida àqueles historiadores
embalsamados por clichês, trazendo ao primeiro plano da cena os que foram
eclipsados pela magnitude de Ranke. Retratá-los não como figuras ingênuas da
historiografia alemã oitocentista ou meros intelectuais conservadores e
monarquistas, mas como historiadores complexos vivendo em um período
dramático da história européia. Em se tratando da apresentação de alguns
resultados preliminares creio que talvez estes pressupostos não estejam
plenamente atingidos neste artigo, pois ele apresenta um momento de uma
pesquisa em andamento, não tendo a pretensão de ser conclusivo.
O espaço de tempo vivido entre 1806 e 1871 é crucial para se entender a
história alemã. Entre a derrota fragorosa em Iena para Napoleão Bonaparte e a
vitória sobre a França e anexação dos territórios de Alsácia e Lorena por Otto von
Bismarck, que marcaram a fundação do Império Germânico, ocorreram eventos
que distinguiram a emergência do nacionalismo alemão e o comportamento dos
estados germânicos em meio ao processo de unificação que seria capitaneado pelo
Reino da Prússia. A ocupação napoleônica marcou a emergência do nacionalismo e
o desejo de integração alemã. Os excessos da Revolução Francesa e de Napoleão atiçaram os incipientes sentimentos nacionais das pessoas e fizeram-nos irromper em impiedosas labaredas. A nacionalidade tomou o lugar da humanidade. Ao esforço para se realizar uma cultura humana de caráter universal, seguiu-se o que visava consolidar uma cultura nacional (...). e a própria ciência da história nada hoje com bela desenvoltura na torrente nacional (SCHÄFER, 1884:I).
Vale lembrar, contudo, que em 1815 não havia instituições representativas
na Prússia, mas já as havia na Bavária, em Baden e em Wüttemberg. De qualquer
modo, para a maioria dos historiadores alemães, a dominação napoleônica evocou
o nacionalismo germânico. Breuilly indica que entre 1815 e 1848 teria havido uma
dominação cooperativa entre austríacos e prussianos dos estados germânicos
(2002:27). Não creio. A exclusão da Áustria do Zolllverein deixa isso muito claro. Em termos bem simples, as elites alemãs – em especial, a velha classe agrofeudal em declínio material, inúmeros magnatas em ascensão na
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indústria e nos bancos, e os professores universitários – passaram a se ver como guardiães do caráter especial da nação: pensavam ou imaginavam que a Alemanha estava sendo assediada por um conluio de inimigos externos e, mais importante, de inimigos internos (STERN, 2004:13).
Os historiadores não poderiam fugir a estas demandas. Concomitante a
estes eventos formava-se a ciência histórica e se constituía uma esfera pública
onde começava a se destacar a figura do intelectual ocupando espaço privilegiado
no cenário político, na burocracia estatal e se projetando junto àquela sociedade
aristocrática. E muitos destes intelectuais foram, depois de Leopold von Ranke,
historiadores, tal como Georg Gervinus, Johann Gustav Droysen, Karl Wecker,
Friedrich Dahlmann, Georg Waitz, Heinrich von Sybel, Maximilian Duncker, Karl
Rotteck, Ludwig Häusser, Theodor Mommsen, Rudolf Haym, Heinrich Treitschke e
Hermann Baumgarten, que pareciam ter o estudo do passado e a atuação política
no presente como vocações. A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo
sentimento de agir integrando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras
de ordem usadas na imprensa e na luta política, mas também por um compromisso
com determinadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado, portanto,
parece ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história intelectual,
história e historiografia se articulam, numa constelação particular, que projetou
historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente, influenciando
gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores em toda Europa e
em várias partes do mundo. Só para se ter uma idéia do destaque dos historiadores
nesta esfera pública em formação, basta lembrar que muitos deles foram
conselheiros políticos, editores de jornais, deputados gerais ou ministros.
O próprio Ranke não escapou a este processo, pois editou o Politisch-
historiche Zeitschrift entre 1832 e 1836 a pedido da Casa de Brandemburgo, bem
como foi conselheiro do rei Frederico IV da Prússia e de Maximiliano I da Baviera
(BREISACH, 2007:262). O Historisch-Politische Zeitschrift foi criado a pedido do
conde de Bernstorff, o ministro dos Estrangeiros, que em 1833 tinha duas metas
claras: combater os radicais liberais de esquerda e afirmar a autoridade do
governo prussiano face às exigências do liberalismo político (IGGERS, 1983:70). O
von em seu sobrenome indica o título de nobreza (barão) por ele obtido em 1865.
E vale lembrar que suas aulas eram concorridas, freqüentadas não somente por
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estudantes, mas também por autoridades, militares, políticos, profissionais liberais
e até integrantes da burocracia prussiana. Nem ele pode fugir do reflexo que as
guerras napoleônicas e depois a Restauração tiveram sobre a formação do
nacionalismo (Cf. HOBSBAWM, 1991) que ia ao encontro do interesse crescente
pelo estudo das raízes históricas das diferentes nações européias, o que colocava a
história como tematizadora do pensamento social. Não por acaso este processo foi
acompanhado pela presença triunfante do historicismo como um verdadeiro
paradigma adotado em vários saberes em formação (MEINECKE, 1997). Ao mesmo
tempo, nesta ânsia pelo vivido, evidentemente que as técnicas e a natureza da
própria história também foram revistas1, explicitando a gênese de uma nova
consciência histórica na qual os historiadores redimensionavam suas experiências,
seus projetos e a historicidade do momento em que viviam. Assim, tanto o passado
quanto os saberes produzidos sobre ele viveram um despertar epistemológico que
pode ser detectado em vários momentos.
O primeiro destes momentos é a referência quase obrigatória ao
pensamento histórico de Chladenius, que em sua Algemeine Geschichtswissenchaft
de 1752 havia indicado o percurso metodológico mais adequado para se estudar o
passado. Sua obra balizou a crítica e a escrita da história germânicas ao destacar o
ponto de vista dos sujeitos históricos e dos historiadores-narradores, revelando
que o conhecimento histórico é marcado pela crítica, tanto da perspectiva do
historiador quanto dos testemunhos. O que não significa exatamente a aceitação de
que os estudos históricos estejam contaminados pela sua subjetividade, mas o
reconhecimento da existência da própria subjetividade, ferramenta imprescindível
para uma correta compreensão, outro conceito fundamental por ele empregado e
que seria fundamental na constituição do método histórico posteriormente. A
crítica dos testemunhos, a compreensão do passado e a busca pela objetividade
conheceram em Chladenius um crítico veemente do ceticismo ou do relativismo na
História.
O segundo momento reside na obra de Barthold Niebuhr, sobretudo sua
História romana, na qual desenvolveu inovadoras técnicas de crítica histórica
documental, buscando evitar tanto o anacronismo quanto a reprodução acrítica do
1 É curioso neste sentido ver a hesitação e o uso feito por Ranke do termo Historie em lugar de Geschichte (RANKE, 2010) em muitas passagens de sua obra.
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que diziam os documentos. Partindo dos avanços recentes tanto da filologia quanto
da hermenêutica, Niebuhr indicou para os historiadores duas operações
fundamentais da história: a heurística e a sistemática. Sua contribuição é enorme,
bem como a repercussão de suas pesquisas; basta ver seu reconhecimento por
Ranke e Droysen; ambos revelam sua dívida metodológica a Niebuhr, que
realmente constituiu um momento de inflexão nas técnicas de pesquisa histórica
na Alemanha. Essa tradição veio, sobretudo, da escola filológica de Göttingen, que
promoveu o exame crítico e rigoroso dos clássicos antigos e das fontes,
preconizada por Wolf e Böckh. Este último foi o orientador de Droysen em seu
doutorado. Junto com Wolf foram responsáveis pela disseminação da filologia e
também expressavam a valorização pelos Estudos Clássicos no interior do
pensamento germânico, ao lado de nomes como Schleiermacher, Schelling, Schiller
ou Humboldt.
O terceiro momento surgiu com Wilhelm von Humboldt e, para ser mais
preciso, com sua conferência inaugural proferida em 1821 na Universidade de
Berlim: A tarefa dos historiadores. Ali se encontra a agenda científica dos
historiadores prussianos, seu programa fundamental, adotado como referência por
toda aquela geração. Competiria ao historiador reunir os fatos, procurando seus
nexos, identificando suas forças motrizes e reproduzindo-os por meio de uma
exposição narrativa. Nada poderia ser mais claro. Caberia ao historiador seguir
procedimentos científicos e não abandonar a atividade criadora em seu ofício.
Propagador do historicismo, Humboldt foi, ao lado de Chladenius e de Niebuhr,
uma das maiores influências sobre o pensamento de Ranke e de sua geração. Seu
nome ficou associado à Universidade de Berlim, capitaneada a um dos centros
nevrálgicos do pensamento germânico, cujo programa e organização foram por ele
reformulados tornando-se referência para reformas universitárias posteriores.
Lecionar em Berlim era meta almejada por muitos professores de então. Aquela
universidade, sobretudo graças a Ranke e a Hegel, tinha seus postos cobiçados por
todo historiador ou filósofo que desejasse ter projeção em sua área, tornando-se
um pólo irradiador de novas doutrinas, e eles tiveram o mérito de serem
consagrados em vida não só na Alemanha, mas em toda Europa.
Um quarto momento corresponde ao desenvolvimento dos trabalhos de
Ranke e Droysen junto à Universidade de Berlim: definindo a relação entre teoria e
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prática do novo saber. O modo como Ranke escolhia seus objetos de estudo, a
forma como submetia as informações à crítica, bem como suas narrativas
profundamente articuladas e expressivas conferiram-lhe uma posição de destaque.
Mas ao seu lado havia outro gigante, Droysen, responsável por desenvolver uma
verdadeira teoria da história que consolidou o campo epistemologicamente,
dotando-o da autonomia necessária face aos demais saberes que o destacou
perante sua geração. Ao que tudo indica, embora cioso do método, interessava
mais a Ranke a prática, a pesquisa e a escrita da história, ao contrário de Droysen,
que embora tenha escrito obras históricas absolutamente rigorosas e fosse
excelente pesquisador, teve maior e notável êxito com suas reflexões de ordem
teórica. Junto-os aqui, não somente porque foram contemporâneos, ou porque
constituem a expressão maior do pensamento histórico germânico naquele
período, mas também porque, embora fossem rivais e não tivessem uma boa
convivência em Berlim, suas obras se complementam e referendam os
fundamentos da operação historiográfica de então.
Um dos debates permanentes em relação à história prosseguia, qual seja, o
de se vincular a narrativa histórica aos domínios dos estudos literários. E foi para
resolver esse conflito de fronteiras que Gervinus em seu Fundamentos de teoria da
história, redigido em 1837, analisou a poética da história, estipulando os elementos
constitutivos da narrativa histórica, distinguindo-a das narrativas ficcionais. Para
além disso, propôs um modelo sugestivo para se analisar a história da
historiografia ocidental bem como para se definir alguns gêneros existentes na
escrita da história. Este corresponde a um quinto momento, visto distinguir a
narrativa histórica da ficcional de uma vez por todas, e pensar a história como um
gênero híbrido, mas específico, conferindo assim, um modelo genético de análise
da historiografia. Pela primeira vez havia discutido com profundidade o problema
da escrita da história, bem como havia exposto um novo modo de pensar a própria
história da história.
O último momento, a meu ver, reside na criação da revista Historische
Zeitschrift (Estudos Históricos) em 1859 por Heinrich von Sybel, pupilo e discípulo
de Ranke na Universidade de Berlim e amigo de Droysen desde as jornadas de
maio de 1848 em Frankfurt. Ali se consubstanciou o que procurarei defender como
sendo a efetivação de uma nova escola histórica e a constituição de um regime de
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historicidade particular para a escrita da história na Prússia. Ela coroa todo o
processo de formação e maturação de um tipo de história e surge quando as
manifestações pró-unificação alemã se ampliaram, sobretudo na Prússia, contando
com a participação de muitos daqueles historiadores. Sem dúvida a Historische
Zeitschrift foi um ponto de encontro, propagador das idéias do grupo, projetando-o
na Alemanha e no exterior. Sua influência explícita na Inglaterra, Itália, Espanha e
nos Estados Unidos, foi, mais velada na França1. Ao lado da revista, forçoso é dizer
que a editora Duncker & Humblot, tornou-se também uma referência para o grupo,
uma das maiores na Alemanha, cujo nascimento se deu auspiciosamente com a
criação da revista Athenaeum, publicada pelos irmãos Schlegel e que depois se
projetou com a publicação das obras completas de Hegel e de Ranke. Nesta editora
figuraram grandes obras produzidas pelo grupo.
Ao tratar da Escola História Prussiana, Robert Southard (1995) revela que
para nascer ela teve que superar o interdito rankeano: o não-envolvimento direto
do historiador nos assuntos da política. Acredito, ao contrário, que a influência de
Ranke tinha indicado que o intelectual ou historiador não é somente aquele que
precisa se envolver diretamente nos acontecimentos políticos de seu tempo, mas
cujo pensamento pode ser uma força capaz de produzir ação política no presente.
Seja subsidiando ou sendo subsidiado por um determinado projeto político, seja
imprimindo seus postulados nos acontecimentos do presente, seja agindo para
refutar projetos ou postulados existentes. É preciso ainda lembrar que as
universidades alemãs eram instituições estatais e que os graduados começavam a
ocupar um lugar especial naquela sociedade. O Código Geral Prussiano havia
incluído na sua classificação dos grupos sociais, além das tradicionais nobreza,
burguesia e campesinato os servidores do Estado, incluindo nesta rubrica os
diplomados2. Escolas e as universidades, afirmava o Código, “eram instituições do
Estado e só podiam ser fundadas com autorização oficial” (RINGER, 1999, 37).
Aquelas universidades passavam por um período de grande renovação nos estudos
e nas disciplinas. Em Göttingen, o neohumanismo enfatizava o apreço pela cultura
clássica, pelas raízes culturais germânicas e pelos estudos filológicos. Em Halle
1 Embora seus livros sejam sempre lidos, alguns traduzidos e seus nomes sempre lembrados por Coulanges, por Monod, por Seignobos. 2 Allgemeines Landrecht für die preussischen Staaten, parte II, tít.VII-X, 1794.
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surgia uma nova universidade, voltada para cursos mais técnicos e para as ciências
aplicadas, como o Direito, a Administração e a Economia. Tratando daquelas
universidades dirá Ringer que na “corte de Weimar e na Universidade de Jena,
cidade vizinha, quinze anos brilhantes reuniram algumas das principais figuras do
renascimento cultural alemão” (RINGER, 1999, p.35), como Schiller, Fichte, Hegel.
A própria Universidade de Berlim, que se destacava agora como o centro
nevrálgico prussiano, superando Praga1, Frankfurt, Göttingen e Leipzig, expressava
o ideal de uma nova universidade, servindo de modelo para as futuras
universidades alemãs, que alterariam seus estatutos tendo-a como referência
(Ringer, 1999, 39). Mas estas novidades se adaptavam a uma sociedade
aristocrática, onde estes professores eram transformados em conselheiros,
Geheimräte, e vistos como leais e eminentes servidores do Estado (RINGER, 1999,
51). Penso que esta leitura desmistifica a possibilidade de uma atuação livre e
apartidária. Afinal a adesão dos docentes era obtida por meio de um instrumento:
o doloroso processo de habilitação dos candidatos a professores efetivos nas
universidades alemãs. Os professores tinham seu passado esquadrinhado pelos
Habilitationsschrift antes de serem admitidos, sobretudo depois de 1871. “Este
sistema de recrutamento permaneceu essencialmente intacto até 1945” (IGGERS,
1983:25). De qualquer modo, o interesse pelas questões do momento levaram à
criação de várias cadeiras de história contemporânea, que atraíam grande público,
desviando os historiadores da ciência para a atuação política, cadeiras estas
ocupadas por historiadores como Droysen, Sybel ou Gervinus, dentre outros. E o
estudo da história política conduzia cada vez mais à rejeição da possibilidade de
uma ética racional de direitos e valores universais, comum a todos os homens, pois
cada vez mais era vinculada a situações históricas específicas2. Vale lembrar que a
história disputava com a moral, a política e a filosofia o papel de norteadora da
ação política. De qualquer modo, diz Mommsen O intelectual alemão também se pode vangloriar do que a ciência trouxe de benefício do povo (...) o desempenho individual de cada um de nós, em comparação com o todo, é de tal forma ínfimo que aparece como um
1 Viena e Praga foram em alguns momentos, a capital do império germânico. A ascensão de Berlim foi recente e está relacionada com a ascensão dos Hohenzollern. “Graças às conquistas internas e externas e também à habilidade diplomática desta dinastia, Berlim se equiparou a Paris e a Londres, entre os séculos XVIII e XIX” (ELIAS, 1997: 22). 2 Exemplos disso seriam as justificativas dadas por Mommsen e Sybel sobre os direitos da Alemanha sobre a Alsácia e Lorena, em textos onde a ação política era justificada pela história.
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soldado no campo da batalha em que combateu (...) Muito antes de as armas alemãs ganharem nos campos de batalha, a pesquisa alemã, em seus campos, conquistou o conhecimento e forçou nossos vizinhos a aprender nossa língua. (MOMMSEN, Apud MARTINS, 2010, p.114-5).
E é precisamente esta relação entre história, filosofia e política que
distinguiriam as escolas históricas que se formaram na Alemanha oitocentista,
afinal elas não se limitaram à Ranke ou a sua obra como querem alguns
intérpretes, tampouco constituíam uma identidade absoluta entre todos aqueles
historiadores. Os próprios alemães chegam a reconhecer a existência de várias
escolas: a escola Rankeana e Humboldtiana, a escola de Niebuhr (que exerceu
enorme influência na França e veio a se reforçar com o manual de Ernst
Bernheim), a escola filológica de Böckh e de Grimm, a escola romântica de Goethe e
Novalis, a escola histórica do Direito de von Savigny e, finalmente, a Escola
Histórica prussiana (cf. MARTINS, 2008, p.; cf GOOCH, 1959). Em que se
distinguiam? Que peculiaridades existem, por exemplo, em relação aos herdeiros
de Ranke e ao grupo dos historiadores capitaneados por Gervinus e Droysen?
Penso que foi, sobretudo, a intrínseca relação que estabeleceram entre pesquisa e
postura intelectual, entre pensamento e ação, entre ciência e política. Até porque é
notável a herança teórica e metodológica comum bem como a atmosfera de
respeito e reverências mútuas entre os seguidores de Ranke e os integrantes da
Escola Histórica. Desafetos haviam, rivalidades também, como entre Ranke e
Droysen, entre Mommsen e Treitschke, ou entre Sybel e Waitz. Mas, o grupo
assentava-se sobre uma herança epistemológica comum; foi marcado pelo
historicismo de Humboldt e de Ranke, pela reação ao idealismo hegeliano e pela
absorção de procedimentos hermenêuticos e filológicos na composição do método
– a crítica documental buscada em Niebuhr. Defendiam a atualidade de Aristóteles
– cujo pensamento é visto com respeito –, muitos publicaram traduções, redigiram
obras voltadas para a política e a história do tempo presente, engajaram-se em
lutas na imprensa periódica, participaram diretamente na vida pública se
envolvendo no nacionalismo emergente – publicando textos de caráter político-
nacionalista –, propagando o ideal da Kleindeutsch durante e após as jornadas de
1848 além de preconizar um fundamento axiológico orientado pela defesa da
objetividade. Em sua maioria eram protestantes, defensores da monarquia
constitucional, integravam-se às fileiras dos liberais moderados
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constitucionalistas, não condenaram as guerras de unificação capitaneadas por
Bismarck (salvo Gervinus e Mommsen) e, por fim, escreveram obras de história do
tempo presente. Em resumo, mantinham atmosfera de respeito às escolas
germânicas de pensamento existentes – hermenêutica, filológica e filosófica –, que
eram vistas como coadjutoras na fundamentação da História, com um esforço
teórico semelhante e mediante o recurso a procedimentos metodológicos comuns.
Para Fritz Stern, Encontramos núcleos de excelência nas vidas de alguns de seus indivíduos representativos; eram imbuídos de uma fé na ciência que ainda era inocente, uma fé semelhante a uma religião. Eram protegidos por laços de amizade, tinham o apoio de uma sociedade disciplinada, moviam-se por ambição organizada e contavam com um sistema educacional sem igual. A ciência alemã e a sociedade alemã eram profundamente interligadas (STERN, 2004:12).
Comprova-se assim a existência de um processo de institucionalização da
disciplina histórica em curso, marcado por lugares e também por regras que
definiam a ciência histórica exercitada. Em relação à escrita da história, maiores
estudos são ainda necessários para aquilatar o nível de suas semelhanças e
diferenças no que concerne aos aspectos figurativos, estilísticos, retóricos e
narrativos das obras.
Fortes indícios subsumem seu surgimento em meio a uma crise da
consciência histórica européia, vivida desde a Restauração e marcando o
pensamento e a política oitocentistas. Não é ocioso, portanto, examinar a atuação
daqueles historiadores como atores históricos. Em primeiro lugar queriam
reformas, ademais, do início do século XIX até meados de 1848 buscavam algo
novo. Creio haver uma compreensão entre eles sobre a necessidade da formação
de novos homens para uma nova Alemanha, incutida no papel que muitas vezes
atribuíam à Bildung, embora isso não fosse algo homogêneo. Esses novos homens,
singularizados na figura do intelectual, contudo, precisavam conviver com uma
velha política. Na crise da experiência histórica vivida, construíram novos projetos
políticos – alguns já haviam sido potencializados na literatura –, reavaliaram suas
tradições culturais, mas encontraram muitos obstáculos em relação à ação política,
revelando uma sensível tensão em curso entre a sociedade, a burocracia
administrativa e os governos aristocráticos germânicos. Assim, embora algumas
experiências fossem questionadas, havia dificuldade em romper determinadas
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orientações político-monárquicas e também religiosas. Nem todas as tradições,
portanto, estavam permeáveis às mudanças em curso. Isto talvez explique o triunfo
da excessiva moderação, bem como, da persistência do conservadorismo.
Do ponto de vista político, de modo semelhante ao Brasil, os liberais
moderados desejavam reformas, pois viam com reservas a revolução ou o
princípio democrático. Igualmente não defendiam a igualdade absoluta entre os
homens. Lutavam, contudo, pela consolidação de uma esfera pública cujo debate
jornalístico é bastante expressivo, mas que enfrentava o poder estatal e as
retaliações políticas – que se valia de instrumentos como a censura, a demissão ou
a prisão1. Em uma atmosfera profundamente autoritária, pouco espaço era
conferido ao princípio democrático. Assim, liberais radicais, comunistas e
socialistas eram quase sempre resumidos à condição de anarquistas ou de
perturbadores da ordem vigente. Nesta condição sofriam ameaças de prisão ou
eram forçados ao exílio.
Pode-se dizer que o nascimento do historiador na Alemanha coincidiu com
a constituição deste saber e destes intelectuais, ao lado da construção do estado
Alemão, cujo passo inicial pode ser localizado na criação do Zollverein em 1834, e
depois através de alianças político-militares que viabilizaram as guerras de
unificação sob a liderança da Prússia. Durante este processo, muitos historiadores
viram-se integrados no esforço de construção do novo Estado, integrando-se à
burocracia ou ao serviço público, realizando missões diplomáticas, exercendo a
docência e a pesquisa e atuando como funcionários ou como conselheiros. Ou seja,
foram intelectuais de projeção em sua sociedade, ao lado de juristas, economistas,
políticos e filósofos, mas que orbitavam em torno do Estado. Como foi exposto
anteriormente, nem o apartidário Ranke escapou a isso. De maneira mais explícita
os historiadores da Escola Histórica não viam problemas em integrar escritos
políticos de ocasião com estudos sobre o tempo presente ou história do passado.
Eles percebiam uma relação intrínseca entre as motivações do presente com a
investigação histórica, entre a compreensão teórica do estudo das sociedades no
passado e a motivação para a ação política no presente, subsumidas a uma marcha,
1 Foi o caso de Gervinus, por exemplo, que teve obra censurada e ameaça de prisão, de Dahlmann que também foi preso, da perseguição de Droysen na Dinamarca. Ou ainda Karl Wecker que perdeu sua cadeira na universidade por questionar o Parlamento de Baden.
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ilustrada pela História e pela própria trajetória nacional alemã, escamoteando
pretensões universais, pois a defesa das singularidades da história alemã não
obliterava a ambição que tinham de escrever uma história mundial, na qual a
Alemanha ocupava uma posição de destaque.
Curiosamente, os historiadores germânicos do século XIX pareciam inverter
a fórmula de Koselleck: alimentavam muitas expectativas do passado, cuja
experiência histórica redescobriam cada vez mais graças à consulta de fontes
nunca manuseadas e ao recurso à crítica documental que possibilitava uma nova
escrita da história; e recorriam a esta experiência do passado a fim de encontrar
uma conexão nos eventos verificados no presente e no futuro. Ou seja, projetavam
o passado no futuro. Afinal, a história não era mestra da vida, mas expressava
forças históricas permanentes que se configuravam de maneira singular em cada
época e em cada povo. Nos eventos políticos verificavam uma soma em curso, cuja
tendência e até mesmo cuja essência era universal. Tomavam os estudos do
passado como uma referência para pensar a atuação nos acontecimentos políticos
vivenciados no presente, vislumbravam a presença de forças históricas, de idéias
que se materializavam em diferentes sociedades, que possuíam um sentido que se
sentiam capazes de analisar. O que comprova a sedução do pensamento de Hegel, a
imprimir um forte teor teleológico na leitura que muitos faziam a despeito de
resistências. Forças históricas impeliam o agir humano e este possuía uma essência
a se realizar, materializada de maneira incompleta em diferentes experiências
históricas do passado e do presente. O século XIX, contudo, trazia novamente a
possibilidade de tentar concretizar esse ideal, embora soubessem, por sua própria
experiência, que isso poderia ou não ser realizado de imediato. A seu modo
colaboraram para repensar o mito leibziniano de que viviam no melhor dos
mundos possíveis, em uma época dourada para o pensamento e para a cultura
germânica. Após 1848 e, sobretudo, com o início das guerras de unificação essa
imagem ganhou força ainda maior, embora convivesse com vozes dissonantes.
Mais uma vez, revela Mommsen, Por certo temos também o orgulho de ser alemães, e disso não nos encabulamos. De todas as ostentações, nenhuma é mais vazia e falsa do que a da modéstia alemã. Nada temos de modestos, não o queremos ser e nem que se diga que o somos (...). No entanto, mesmo se nos declaramos nada modestos, não nos tornamos por isso cegos. (MOMMSEN Apud MARTINS, 2010: 113).
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As manifestações nacionalistas ganhavam ímpeto e exprimiam o desejo de
formação de um Império Germânico, uma monarquia constitucional sob o governo
dos Hohenzollern, ou seja, sob a liderança da Prússia e a exclusão da Áustria.
Aqueles historiadores viam a história como um processo complexo, não como uma
relação de causalidade, mas como constelações de eventos marcados pela ação de
forças históricas, tendo um sentido: a realização da liberdade ou ainda da
consumação da grande obra divina. Nisso fundiam convicções políticas e religiosas.
Este último aspecto não será destacado aqui. Mas, a liberdade era, para eles, um
conceito complexo. Sua idéia de liberdade estava fundada sobre velhas tradições
nacionais e entendia a autoridade real e o poder estatal como historicamente
associados e não como antítese à livre política. Mas essa percepção tinha matizes
nos diferentes Estados – 39 ao todo – que compunham a Confederação Germânica.
Com a Unificação Alemã liderada por Bismarck (1866-1871), novamente
potencializou-se o otimismo germânico, afinal, depois da Revolução Francesa e das
revoluções de 1820 e 1830, também a Alemanha parecia realizar os desígnios
históricos da humanidade. Essa impressão era sensível em muitos daqueles
historiadores. E imprimiu neles, por conseguinte, a ênfase e o engajamento nos
acontecimentos. Em 1848 era preciso agir, seja para impedir a anarquia e os
excessos, seja para dar a direção aos eventos. Mas, derrotadas em uma atmosfera
reformista a palavra de ordem para o momento foi, sem dúvida, moderação. Muitos
historiadores engajaram-se na crítica da realidade político-social alemã, tomando,
declaradamente, partido, em franca oposição ao mestre Ranke. Só não pareciam se
lembrar de que, em 1792, a Prússia havia lutado contra os revolucionários
franceses, tentando parar a revolução. Sobre aquela sociedade diz Norbert Elias: O Estado Hohenzollern tinha todas as características de um Estado militar que se erguera através de guerras vitoriosas. Seus dirigentes reconheciam a necessidade de crescente industrialização e, lato sensu, de crescente modernização. Mas os industriais burgueses e os donos do capital não formavam o estrato superior que governava o país. A posição da nobreza militar e burocrática, como o estrato mais elevado e poderoso da sociedade foi não só preservada, mas também fortalecida pela vitória de 1871. Uma boa parte da classe média, mas não toda ela, adaptou-se com relativa rapidez a estas condições. Seus membros encaixaram-se na ordem social do Kaiserreich como representantes de uma classe de segunda categoria, como subordinados (ELIAS, 1997:26).
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A seguir, vejamos um perfil geral daqueles historiadores integrantes da
Escola Histórica Prussiana e que tiveram ou exerceram alguma função política
destacada no período entre 1848-1871 apresentado no Quadro 1 e que
colaboraram na Historische Zeitschrift. Alguns deles integraram o Partido do
Cassino, nome do hotel e restaurante onde se encontravam, onde defendiam a
Kleindeutsch, a unificação, o Estado de direito, baseado na constituição; no qual
pediam órgãos representativos eleitos pelos distritos dos estados tradicionais e
advogavam a igualdade perante a lei e o fim das restrições, como por exemplo aos
judeus. Alguns deles integraram, nos anos 1860, o Partido Nacional Liberal
(IGGERS, 1983:93). De um modo geral rejeitavam a filosofia da história de Hegel, a
teoria da lei natural, a primazia do indivíduo – em seu lugar colocaram as forças
históricas – que produziam o Estado e os indivíduos. Acreditavam no progresso. E
entendiam que o poder não é somente força, mas também um princípio ético.
Entre os 830 deputados da Assembléia de Frankfurt em 1848-9, havia
apenas um trabalhador e um camponês, 49 professores universitários, 57
professores escolares, 157 magistrados, 66 advogados, 20 prefeitos, 118
funcionários públicos, 18 médicos, 43 escritores, 16 pastores e 16 padres. No total,
pelo menos 550 tinham diplomas de curso superior, perto de 20% eram
professores universitários, 35% funcionários públicos, 17% advogados (HUBER,
1960: v.2, 611). No total, 11 eram historiadores. A essência dos trabalhos revelou-
se como “a unidade pela persuasão” (TAYLOR, 1945:76). Soldados do rei
protegiam os trabalhos. O nacionalismo tcheco da Bohemia conturbou a paz da
assembléia. E também a guerra em Schleswig-Holstein. Em 1850 a Áustria
derrotou tropas bávaras e prussianas em Hesse (Olmutz), em retaliação foi
novamente recusada no Zollverein; posteriormente, a guerra com a França, em
1859, e a unificação italiana colocaram em xeque a hegemonia austríaca. Tem
início a expansão da supremacia prussiana, cuja hegemonia pode ser ilustrada pela
famosa frase proferida em 8 de outubro de 1862, pelo primeiro ministro
prussiano, Bismarck: “os problemas atuais não serão resolvidos por maioria de
votos – este foi o erro dos homens de 1848 e 1849 – mas por sangue e ferro” (Apud
TAYLOR, 1945:101).
O desejo de participação e de maiores liberdades políticas manifestou-se no
Parlamento de Frankfurt, mas as divisões internas entre os parlamentares facilitou
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a recomposição das forças aristocráticas, culminando na sua dissolução em junho
de 1849 e na recusa da coroa do Império por Frederico IV. Na Assembléia “valores
liberais predominaram, por exemplo, a separação entre igreja e Estado, a
independência do judiciário, a instituição do habeas corpus, a abolição da pena de
morte (BREUILLY, 2002:45). O grande dilema era entre autoridade nacional – de
base popular? – e autoridade estatal, afinal os príncipes germânicos indicavam os
ministros em seus Estados. Não obstante, as tendências revolucionárias foram
esmagadas, os ímpetos liberais refreados e a disputa pela hegemonia face aos
estados germânicos foi resolvida em 1866 na Guerra das Sete Semanas entre
Prússia e Áustria. Ali se formou a Confederação Alemã do Norte, por Otto von
Bismarck, o Reichstag foi inaugurado em fevereiro de 1867 e a Guerra Franco-
Prussiana de 1870-1 selou a criação do Império, a integração dos Estados do sul e,
consequentemente, a unificação.
No Quadro 1 estão relacionados alguns historiadores alemães do período
que, além de obras históricas, produziram textos políticos ou exerceram alguma
atividade política importante no período estudado. Ele apresenta alguns resultados
parciais da pesquisa que desenvolvo. Nele relaciono datas de nascimento e morte,
cidade natal, curso estudado, universidades freqüentadas, amigos ou mestres de
relação mais estreita, universidades onde atuaram, cargos legislativos, outros
cargos, publicações de caráter político e obras históricas. Encontram-se
relacionados apenas 31 historiadores; só para se ter uma idéia na Historische
Zeitschrift são 273 ao todo que colaboraram enviando 783 artigos entre 1859 e
1900; mas eles permitem fazer uma radiografia elucidativa dos historiadores e da
historiografia alemã oitocentista. Ao todo, 11 tinham títulos de nobreza.
Em primeiro lugar, nem todos eram prussianos, muitos nasceram em outros
Estados germânicos. Do mesmo modo embora os protestantes fossem a maioria, é
possível localizar judeus e católicos atuando dentro do grupo. Uma outra
característica é a presença de pelo menos três gerações de historiadores: a
primeira composta por membros como Ranke, Waitz, Gervinus e Droysen; uma
segunda composta por Sybel, Mommsen, Duncker e Häusser; e, a última, composta
pela geração de Treitschke, Oncken, Waschsmut e outros. Esta última geração
representa o arrefecimento da hegemonia historiográfica exercida pelas duas
primeiras gerações, com um afastamento bem maior do paradigma rankeano.
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Aspecto decisivo da formação revela que alguns universidades eram preferidas e
que era comum estudos desenvolvidos em mais de uma instituição. É como se
buscassem em cada universidade os melhores cursos desejados, ou ainda como se
deixassem os estudos iniciais em sua cidade natal e seguissem para outros centros
mais especializados. História é o curso mais freqüentado pelo grupo relacionado,
seguido por filologia, filosofia e direito. Berlim e Heidelberg são as universidades
mais apreciadas, seguidas por Freiburg, Göttingen, Leipzig e Bonn.
Os vínculos de amizade e afinidades pessoais dentro do grupo é bastante
heterogêneo, embora Ranke, Sybel, Gervinus, Droysen Häusser e Dahlmann fossem
figuras de destaque junto aos demais, surgindo em várias biografias na condição de
mestres, supervisores de estudos e projetos merecedores de crédito e gratidão.
Além de algumas biografias foram consultadas enciclopédias de autores alemães
para localizar os dados apresentados no quadro. Aqueles historiadores lecionaram
em diferentes universidades, embora seja possível verificar que os que se
destacaram no campo costumavam ocupar cadeiras em Berlim, Heidelberg, Bonn
ou Göttingen. Entre os relacionados, 11 foram deputados no Parlamento em
Frankfurt de 1849, 13 foram deputados em seus Estados e 10 foram deputados no
Parlamento Nacional após 1871, o que indica uma intensa atividade política por
parte dos historiadores. Não por acaso, muitos foram conselheiros de reis e
príncipes germânicos, seis foram reitores de universidades e sócios ou integrantes
de academias e sociedades científicas.
Em relação à imprensa, 15 foram editores de jornais, a metade do conjunto
recortado, bem como escreviam em jornais, ao lado de outros dois que apenas
escreviam na imprensa periódica sem chegar à direção. Já a produção
historiográfica do conjunto não está definidamente indicada, faltando relacionar
algumas obras, embora possa ser dito que sua principal marca são histórias
nacionais, estudos sobre a história do tempo presente e biografias. Idade Média e
Era Moderna eram dois períodos bastante apreciados ao lado de história recente.
Mas aqui ainda são necessários maiores levantamentos para afirmações mais
conclusivas.
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Quadro 1. Alguns Historiadores Alemães Do Século XIX Envolvidos Em Assuntos De Natureza Política. NOME VIDA CIDADE
NATAL FORMAÇÃO UNIVERSIDADE MESTRES/
AMIGOS LECIONOU CARGOS
LEGISLATIVOS OUTROS CARGOS OBRAS POLÍTICAS OU
JORNAIS OBRAS HISTÓRICAS
Karl von ROTTECK 1775-1840 Freiburg Direito Freiburg Johann Jacobi Freiburg Parlamento de Baden
Presidente da Câmara e Conselheiro em Freiburg, pró-reitor da Universidade de Freiburg
Editor do jornal O Liberal História Geral, Staatslexikon
Karl Theodor Georg P. WELCKER
1790-1869 Oberofleiden Holberg Ohm
Direito e Ciência Política
Giessen e Heidelberg
Dahlmann, Droysen e Gervinus
Giessen, Kiel, Bonn e Freiburg
Parlamento de Baden, Parlamento de Frankfurt
Editor do jornal O liberal independente,
Staatslexikon
Rudolf HAYM 1821-1901 Grünberg Teologia e filologia
Halle e Berlim
Duncker Halle Parlamento de Frankfurt
Discursos e palestrantes do primeiro prussiano Unidos Diet, A Assembleia Nacional Alemã, editor do Preußische Jahrbücher, Hallesche Algmeneine Literatur Zeitung, National Zeitung
Hegel e seu tempo, A escola romântica, Herder e sua vida.
Georg WAITZ 1813-1886 Flensburg Filosofia e direito
Kiel e Berlim Ranke e Schelling
Kiel e Göttingen
Assembléia de Schleswig-Holstein, Parlamento de Frankfurt
Monumenta Germaniae Histórica
Rotteck-Welcker- Staatslexikon, Grundzüge der Politik,
História constitucional alemã, Forschungen zur deutschen Geschichte, História de Schleswig-Holstein.
Friedrich von HERMANN
1795-1868 Dinkelsbühl Direito-economia
Erlangen Ranke Munique Parlamento de Frankfurt
Conselheiro dos reis Maximiliano I e II da Baviera, Conselho de Estado da Baviera, Academia Bávara de Ciências
Estudos dos ativos estatais econômicos, comerciais, renda e consumo.
Reinhold PAULI 1823-1882 Berlim Filologia e história
Bonn e Berlim Dahlmann e Ranke
Bonn, Marburg, Göttingen
Secretaria da embaixada em Londres
Württemberg e o desastre federal
História dos documentos hanseáticos, Ensaios sobre a história da Inglaterra
Georg VOIGT 1827-1891 Konigsberg História Konigsberg Drumman e Von Sybel
Rosttock, Leipzig
Membro da Associação Comercial de Leipzig, Academia de Ciências da Baviera, Sociedade de Leipzig, Academia de ciências de Viena
Jornal Cultural O Renascimento na Antiguidade Clássica
Wilhelm ONCKEN 1838-1905 Heidelberg Filologia, história e filosofia
Heidelberg, Göttingen e Berlin
Häusser Heidelberg Parlamento de Hesse e Nacional
Reitor da universidade de Giessen
História Geral 44v., a Era da Revolução – do império à guerra de libertação, A Era do Imperador Wilhelm I, Frederico o Grande.
Friedrich DAHLMANN 1785-1860 Wismar Filosofia Copenhagen e Halle Wolff, Von Kleist, Gervinus, Welcker
Kiel, Göttingen, Iena, Bonn
Parlamento de Frankfurt 1848, Parlamento de Erfurt
Secretário da cavalaria em Schleswig Holstein, Líder da revolta dos Sete
Política, reduzida ao grau e medida das condições existentes.
Fontes para o estudo da história alemã, História da Dinamarca, História da revolução inglesa, História da Revolução Francesa
Maximilian DUNCKER 1811-1886 Berlin História, filosofia e
Berlim e Bonn Droysen, Haym e
Halle, Tubingen,
Parlamento de Hesse, Parlamento
Diretor dos Arquivos Prussianos, Ministro
Preussische Staatsschriften, Hallesche
História do Parlamento de Frankfurt, A crise da reforma.
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filologia von Sybel de Frankfurt, Membro do Parlamento Nacional em 1867
dos Estrangeiros em 1860, conselheiro de Frederico III, 6 meses preso por participar de fraternidade, Academia Prussiana de Ciências, Academia de Göttingen
Algmeneine Literatur Zeitung.
Ludwig HÄUSSER 1818-1867 Kleeburg Historia Heidelberg Schlosser, Gervinus
Heidelberg Parlamento de Baden
Allgemeine Zeitung Deutschen Zeitung, Preußische Jahrbücher
Historia da Alemanha da morte de Frederico à Fundação da Confederação.
Theodor MOMMSEN 1817-1903 Garding Direito Kiel e Leipzig Moritz Haupt e Otto Jahn, Max Weber
Zurique, Breslau, Leipzig e Berlim
Deputado Nacional em 1881
Amigo do rei da Dinamarca, Academia de Berlim, Sociedade Real de Ciências da Saxônia, reitor da universidade de Berlim
Jornal de Rendsburg (1848), escritos sobre a revolta da Saxônia em 1848 levam-no à demissão, escritos de combate ao anti-semitismo
História Romana, Direito Romano, As províncias romanas.
Georg GERVINUS 1805-1871 Darmstadt Filologia Heidelberg Schlosser, Dahlmann
Heidelberg e Göttingen
Parlamento de Frankfurt
Academia de Ciências da Bavária
Deutsche Zeitung, projeto da Constituição em 1847
Fundamentos de Teoria da História, História da Literatura e da Poesia Nacional, História do século XIX.
Johann G. DROYSEN 1808-1884 Teptow Filologia Berlim Böckh, Gervinus, Duncker
Kiel, Iena e Berlim
Parlamento de Frankfurt
Academia Berlinense de Ciências, Historiógrafo da Casa de Brandemburgo
Preußische Jahrbücher,Politische Schriften. Guerras de Libertação, A posição política da Prússia
História do Helenismo, História das Guerras de Liberdade, História da Política Prussiana, Conde Yorck von Wartenburg
Leopold von RANKE 1795-1886 Wiehe (Unstrut)
Teologia e filologia
Leipzig Schleiermacher, Humboldt, Sybel, Savigny, Niebuhr
Berlin Historiógrafo da Casa de Brandemburgo, barão von Ranke, Membro do Conselho Real, American Historical Association, Memórias da Casa de Brandemburgo ,
Historisch-Politische Zeitschrift, Sobre as afinidades e diferenças entre história e política
História os povos latinos e germânicos, História dos Papas, História da Reforma, História francesa, História Inglesa, Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813, Sérvia e Turquia no século XIX.
Karl MAURENBRECHER
1838-1892 Bonn História Bonn e Berlim e Munique
Sybel, Ranke, Siegfried Hirsch
Konigsberg, Bonn e Leipzig
Guilherme II assistiu suas aulas, Real Sociedade de Ciências da Saxonia
História da Reforma, História do Império: História da fundação do Império Alemão
Heinrich von TREITSCHKE
1834-1896 Dresden História e Economia
Bonn, Leipzig, Tübingen, Freiburg.
Bismarck Kiel, Freiburg e Heidelberg
Deputado Nacional
Editor do Preußische Jahrbücher (depois foi expulso), A solução da questão de Schleswig-Holstein, O futuro dos estados do norte alemão, A guerra ea reforma federal, Dez anos de luta alemã 1865-1874. Escritos sobre assuntos
Ensaios histórico-políticos alemães, A história alemã do século XIX, Lutero e da nação alemã,
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atuais, Alguns comentários sobre a questão judaica, O projeto da lei da escola prussiana.
August von KLUCKHOHN
1832-1893 Bavenhausen
História Heidelberg e Göttingen
Häusser, Waitz e Sybel
Professor em Göttingen
Arquivos do Reichstag e correspondência de Wittelsbach, cartas de Frederico o Piedoso
Biografias de Gilherme II, duque da Baviera, de Ludwig, de Prederico o Piedoso, de Louise, rainha prussiana
Alfred BORETIUS 1836-1900 Meseritz Direito Berlim e Halle Mommsen Zurique e Berlim
Germaniae Monumenta Historica
National Zeitung Frederico o Grande e Carlos Magno
Carl Wolfgang Paul Mendelssohn BARTHOLDY
1838-1897 Leipzig Direito Heidelberg e Freiburg
Heidelberg e Freiburg
Democrata e opositor da Prússia
História da Grécia
Heinrich von SYBEL 1817-1895 Düsseldorf Historia e filosofia
Berlim Bonn Ranke, Voigt, Maurenbrecher
Bonn, Marburg, Munique
Deputado em Frankfurt e deputado na Assembléia de Kassel, Parlamento de Erfurt e Parlamento Nacional
Fundador com Ranke da Comissão Histórica da Academia de Ciências da Bavária, Diretor dos Arquivos Prussianos, membro do Instituto Histórico de Roma,
A nação alemã e o Império. Um tratado histórico-político, Kölnische Zeitung, Autonomen, Sobre a relação da nossa Universidade com a vida pública, Os partidos políticos do Reno
História da Primeira Cruzada, História da fundação do Império Alemão, Acta Borussica.
Wilhelm JUNKMANN 1811-1886 Munique Filologia e história
Munique e Bonn Ernst Arndt, Friedrich Dahlmann
Deputado Nacional, Parlamento de Erfurt
Liga católica, Partido do Cassino, Pariser Hof,
Katholischen Magazins für Wissenschaft und Leben,
Obs: não publicou na HZ Allgemeinen Kirchenlexikons, Allgemeinen Realenzyklopädie für das katholische Deutschland, Regesta Historiae Westfaliae, Westfalia Sacra.
Jacob VENEDEY 1805-1871 Köln Direito Heidelberg, Bonn Heinrich Heine, Georg Fein
Bonn e Zurique
Foi pro Pré-Parlamento, foi do parlamento de Rumpf e se elegeu para o parlamento de Frankfurt
Festival de Hambach, atividade política intensa, exilado
Deutschen Volksverein, vários jornais, Rotteck-Welcker Staatslexikons
Reise und Rasttage in der Normandie, Die Deutschen und Franzosen nach dem Geiste ihrer Sprachen und Sprüchwörter.
Kurt WACHSMUTH 1837-1905 Naumburg Filologia e historia
Iena e Bonn, Berlim Ludwig Lange, Karl Lamprecht
Marburg, Gottingen, Heidelberg, Leipzig
Pesquisa na Itália, reitor da universidade de Leipzig
Das alte Griechenland im neuen, Die Stadt Athen im Altertum, Studien zu den griechischen Florilegien, Ausgaben von "Lydus de ostentis" und den griechischen Kalendern
Paul HINSCHIUS 1835-1898 Berlim Heidelberg Halle, Kiel Parlamento Nacional
Parece que era do Partido Católico e do Partido Liberal
Zeitschrift für Gesetzgebung und Rechtspflege in Preußen
Die preußischen Kirchengesetze (4v), Die Orden und Kongregationen der katholischen Kirche in Preußen, Das landesherrliche Patronatrecht
Ludwig Karl James AEGIDI
1825-1901 Tilsit Direito Berlim, Göttingen Gervinus, Erlangen, Hamburg, Berlim
Parlamento da Liga Germânica do Norte, Parlamento Prussiano
Partido do Cassino, Deutschen nationalverein
Deutschen Zeitung Staatsarchiv
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Friedrich von WEECH 1837-1905 Munique História Munique e Heidelberg
Erhart Schürstab
Freiburg Bibliotecário dos Arquivos Gerais e diretor em 1885
Codex diplomaticus Salemitanus, Baden unter den Großherzögen Karl Friedrich, Karl, Ludwig 1738–1830, Geschichte der badischen Verfassung, Baden in den Jahren 1852 bis 1877, Die Deutschen seit der Reformation.
Hermann Eduard von HOLST
1841-1904 Fellin, Estland
História Dorpat e Heidelberg, Londres, Italia e Argélia
Karl J. Marquardt,
Strassburgo, Freiburg, Chicago
Academia Prussiana de Ciências
Kolnischen Zeitung, Deutsch-amerikanischen Konversations-Lexikons
Ludovico XIV, vários outros
Paul von BOJANOWSKI
1834-1915 Schwedt Direito Halle, Heidelberg e Berlim
Reinhold Kohler
Academia de Erfurt, Jornalista em Paris, bibliotecário e historiador
Weimarische Zeitung Tomada da Bastilha.
Alfred STERN 1846-1936 Göttingen História Heidelberg, Göttingen e Berlim
Albert Einstein Berna, Zurique Controvérsia Baumgarten-Treitschke contra os judeus
História da Europa desde 1815 até a Liga de Frankfurt em 1871.
Johann Friedrich Ritter von SCHULTE
1827-1914 Winterberg
Fredeburg Bonn Döllinger, Wasserschleben
Bonn e Praga Deputado pelo partido Nacional Liberal
Conselheiro do kaiser Francisco José, reitor da universidade de Bonn
Die Geschichte der Quellen und Literatur des Canonischen Rechts von Gratian bis auf die Gegenwart,
Arnold SCHAEFER 1819-1883 Seehausen
Filologia clássica
Leipzig Hermann, Wachsmuth, Asbach
Greiswald, Bonn, Konigsberg
Reitor da universidade de Bonn 1871-2, Instituto Arqueológico Alemão em Roma
Demóstenes e seu tempo, História da guerra dos Sete Anos,
Martin PHILIPPSON 1846-1916 Magdeburg História Bonn Bonn, Brüssel, Deutsch-Israelitische Gemeindebund, Jüdischen Friedhof Berlin-Weißensee, Verband deutscher Juden.
Der Grosse Kurfürst Friedrich Wilhelm von Brandenburg. 3, Neueste Geschichte des jüdischen Volkes
Julius Albert Georg von HARTTUNG
1848-1919 Wernikow História e filologia
Bonn, Berlim e Göttingen
Paul Kehr, Burckhardt
Tübingen, Basel
Soldado na guerra Franco-prussiana, Sociedade Histórica de Verona, Londres, Paris, Roma, Turim e Palermo, Geheimen Staatsarchiv in Berlin
Hamburger Zeitung Documentos do Papado 1046-1198
Friedrich Wilhelm Karl von HEGEL
1813-1901 Nürberg História Berlim e Heidelberg Filho de Hegel Rostock e Erlangen
Parlamento de Erfurt
Editor do Mecklenburgischen Zeitung
Crônicas dos Estados Germânicos
Richard ROEPELL 1808-1893 Danzig Halle e Berlim Heinrich Leo, Ranke
Breslau Parlamento de Erfurt
Academia de Ciências da Baviera
Anais Poloneses
Adolf BEER 1831-1902 Prossnitz História Berlim, Heidelberg, Praga e Viena
Sybel Grosswardein (Romênia)
Deputado Nacional Arquivos para a História austríaca, Historischer Zeitschrift
Geschichte des Welthandels, Die orientalische Politik Österreichs seit 1774, Der Staatshaushalt Österreich-Ungarns seit 1868, Die
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Finanzen Österreichs im 19. Jahrhundert, Leopold II., Franz II. und Katharina von Rußland. Ihre Korrespondenz
Ernst BERNHEIM 1850-1942 Hamburg História Berlim, Heidelberg Göttingen e Estrasburgo
Georg Waitz, Julius Weizsäcker
Greifswald Reitor da universidade de Greifswald
Judeu que se converteu ao protestantismo em 1886
Manual do Método Histórico e da filosofia da história.
Hans DELBRÜCK 1848-1929 Bergen auf Rügen
História Heidelberg e Bonn Sybel Berlim Deputado no Parlamento alemão
Lutou na guerra Franco-prussiana, membro da delegação alemã na Conferência de Paz de Versalhes em 1918
Preussischen Jahrbücher História da arte da guerra 4v.
Fonte: Deutsche National Bibliothek. Disponível em: http://www.d-nb.de/; Elektronische Allgemeine Deutsche Biographie. Disponível em: http://mdz10.bib-bvb.de/~ndb/adb_index.html, Deutsche Biographie. Disponível em: http://www.deutsche-biographie.de/blaettern.html. Biographie Portal. Disponível em: http://www.biographie-portal.eu/search. Österreichisches Biographisches Lexikon 1815–1950. disponível em:
http://www.biographien.ac.at/oebl?frames=yes.
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A participação dos historiadores nos assuntos políticos deixava claro que
eles disputavam com os filósofos e os políticos o papel de tematizarem a liberdade,
e de refletirem sobre a política ou a governança. Esse envolvimento político
expressa um período decisivo da história alemã, vivido entre a derrota para
Napoleão e a vitória na Guerra Franco-Prussiana. Segundo Norbert Elias, a “vitória
dos exércitos alemães sobre a França foi, ao mesmo tempo, uma vitória da nobreza
alemã sobre a classe média alemã” (1997: 26). Com isso, eles trocavam
“decisivamente, o idealismo burguês clássico pelo manifesto realismo do poder”
(ELIAS, 1997:27). De qualquer modo, a história foi uma matriz disciplinar – bem
como o pensamento historicista – e um instrumento capital para a política no
período em tela. Com efeito, a “história da Alemanha e do liberalismo alemão não
poderia ser escrita sem devotar considerável espaço ao papel central
desempenhado pelos historiadores” (IGGERS, 1983:91). Assim, os historiadores
foram importantes atores do momento, algo que também ocorreu em relação à
França, onde Thiers, Guizot e Michelet, por exemplo, não se furtaram de combater
na arena política e exercer cargos públicos.
Sobre as trajetórias individuais algumas análises podem ser feitas. Ranke,
por exemplo, era um conservador convicto, mas acompanhou a política de
Bismarck com pouco entusiasmo. Embora visse o chanceler com bons olhos, afinal
ele havia mantido a Prússia longe dos temores da revolução, não o defendia
abertamente. O von em seu sobrenome, inclusive, foi um título nobiliárquico de
barão obtido em 1865. Ranke conclamava os historiadores a contemplar o jogo das
forças históricas, não de maneira desapaixonada apregoam como seus críticos, mas
deixando as responsabilidades do governo para os homens de Estado, ou seja,
políticos (BENTIVOGLIO, 2010).
Theodor Mommsen editou um jornal político em Schleswig-Holstein,
Gervinus dirigiu a Gazeta Alemã. Em 1857 surgiu o periódico Preussische
Jahrbücher (Anais Prussianos), criado quando Guilherme assumiu o governo
devido aos problemas mentais de Frederico IV, para apoiar a causa da unificação
alemã e do governo constitucional sob a liderança da Prússia. A sua frente
estiveram Sybel, Treitschke, Baumgarten e Dilthey (IGGERS, 1983:91) – todos
historiadores.
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Da queda de Napoleão e da Restauração em 1815 até 1857 existiu a
Confederação Germânica formada por 39 Estados independentes e cujas decisões
eram compartilhadas por Prússia e Áustria, sob a hegemonia desta última. O clima
reacionário fez com ambas resistissem a formas mais amplas de representação
política, gerando movimentos em 1820 e 1830; sem contar as ingerências nas
constantes intromissões políticas da Santa Aliança. Áustria e Prússia se uniram na
repressão, os decretos de Karlsbad revelam isso, sobretudo para conter
conspirações estudantis, motivadas pelas sociedades de estudantes, as
Burschenschafts. Foram elas que organizaram os famosos festivais de Wartburg em
1817 e de Hambach em 1832, emblemáticos para se compreender o nacionalismo
germânico. Ambos foram gestados pelas Burschenschaften. O festival de Wartburg
celebrou o tricentenário de Lutero e o 4º aniversário da Batalha de Leipzig (HAHN,
2001:27). Já o festival de Hambach tinha como mote a censura da imprensa e a
defesa do princípio democrático (HAHN, 2001:29). Mais de 30 mil pessoas ligadas
a estes eventos foram perseguidas pela polícia secreta de Metternich. A
radicalização dos movimentos estudantis teve seu ponto alto no surgimento d´A
Gazeta Renana de Karl Marx, que começou a circular em 1842, e, em escala menor
com a Gazeta Alemã de Gervinus, surgida em 1845.
Embora depois da derrota em Iena as aspirações liberais tivessem sofrido
duro golpe, paradoxalmente o controle francês sob territórios germânicos animou
certos atores políticos em relação ao ideário liberal e teve importância decisiva na
emergência do nacionalismo. A atmosfera reacionária pós-Restauração também
contribuiu para a expansão das reivindicações de liberdade e de direitos
democráticos, além de motivar outros movimentos mais radicais, ilustrados pela
esquerda hegeliana e também pela liga dos comunistas. Os historiadores alemães
tendiam a acreditar que a monarquia Hohenzollern, com seus aspectos autoritários e aristocráticos e seu ethos burocrático único, garantiria melhor caminho para a defesa das liberdades individuais e segurança jurídica que uma democracia em que política pode ser mais reativa aos anseios da opinião pública que às considerações e razoes de Estado (IGGERS, 1983:15).
Nas fórmulas políticas de então nutriam admiração pelo federalismo norte-
americano, ainda que não vissem com bons olhos o princípio democrático que lhe
inspirava; pelo liberalismo inglês – sobretudo de Mill e de Bentham – cuja
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monarquia constitucional bicameral era admirada, ao lado do pensamento político
francês oriundo de Montesquieu e de Benjamin Constant. Mas esses ideários eram
assimilados criticamente e adaptados às práticas políticas vivenciadas em solo
germânico. Desse modo tradicionalismo, autoritarismo e protecionismo eram
forças que no universo das práticas políticas moldavam compreensões de
liberdade e de representação política. Historiadores liberais, como Dahlmann ou
Droysen, não defendiam uma monarquia parlamentarista, como a inglesa ou a
brasileira, mas uma monarquia constitucional em que rei e administradores da
burocracia deveriam respeitar as liberdades civis e serem coadjuvados por
instituições representativas eleitas para a Câmara Baixa – o Parlamento –, visto
justificarem a existência de uma Câmara Alta, formada pela aristocracia
tradicional.
Até o Vormärz (Pré-Março) em 1848, um otimismo reinava entre os círculos
políticos e intelectuais. Vislumbrava-se a possibilidade do surgimento de um
Estado alemão unificado, com instituições representativas e governo
constitucional. A despeito da repressão reinante, da censura e das restrições
políticas a intelligentsia germânica acreditava no triunfo do liberalismo. Afinal
viviam um momento de rápido desenvolvimento econômico, cultural e científico
que alimentava sentimentos patrióticos de integração, sedimentados no
pressuposto de uma identidade histórica e cultural comum acompanhada pelas
alianças econômica – o Zollverein – e política – a Deutschesbund. O dualismo foi
rompido apenas em 1849, quando, o impacto da revolução definiu melhor os
projetos políticos existentes e ampliou a rejeição à monarquia austríaca,
prenunciando a ascensão da Prússia. Se os episódios de 1848 em Frankfurt, Berlim,
Bohemia e Schleswig-Holstein haviam demonstrado àqueles políticos a
necessidade do uso de tropas, austríacas ou alemãs, para garantirem as reformas e
evitarem ações políticas de uma esquerda radical (IGGERS, 1983:22), nos conflitos
do norte ficou patente que a Áustria não desejava a expansão do poder prussiano.
A ação do exército prussiano contra a reivindicação da Dinamarca por Holstein
indicou para a Prússia que somente a força militar não seria suficiente para
conquistar a liderança frente aos territórios germânicos1. Seria preciso adotar o
1 Dahlmann publicou seu Política reduzida ao grau e medida das condições existentes para tratar desta questão e foi um orador ativo dos direitos dos Schleswig-Holsteiners germânicos contra a
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caminho constitucional a fim de manter sua liderança sobre a Confederação
Germânica e fazer alianças com os Estados germânicos mais fortes – excluindo-se a
Áustria – projeto que ganhou até mesmo a adesão homens como Welcker e
Gervinus. Agora não se tratava somente de evitar conflitos sociais internos, como a
atuação de Metternich havia priorizado ao lado da expansão e domínio sobre seus
territórios no leste, mas, sobretudo, conseguir alianças políticas externas. De início,
havia o desejo de integração de todos os estados germânicos, com o passar do
tempo viu-se que a Áustria não poderia integrar a confederação.
Assim, até 1848 os intelectuais alemães desejavam a liberalização e a
unificação nacionais, face ao temor diante dos conflitos que colocavam em risco a
ordem, em crescente radicalização política, que fizeram com que, salvo poucas
exceções, apoiassem o governo prussiano de Frederico IV; depois, durante a crise
constitucional de 1862 e 1866 não apoiassem a política de Bismarck, mas, enfim,
que se comprometessem com ela a partir de 1867. Quando Bismarck reformou o
exército violando a constituição em 1862, o Preussische Jahrbücher protestou, mas
depois das vitórias de 1866 todos reataram com Bismarck, com exceção de
Gervinus.
Para Taylor, até 1848 os escritores alemães escreviam para si e para os
príncipes, estavam longe da realidade. Não tinham público (TAYLOR, 1945: 54). E
seria inimaginável pensar o equilíbrio germânico sem Metternich, mas depois
daquele ano a posição da Áustria tornou-se um problema. A expansão dos jornais
mudou este panorama, indício de ampliação da esfera pública e da constituição de
forças disputando a arena política. O interesse crescente pelas questões do
momento levaram à criação de várias cadeiras de história contemporânea, que
atraíam grande público, e acabavam por deslocar muitos historiadores da ciência
para a atuação política, como foi o caso das aulas de Droysen em Kiel.
Quando em 1849 a contra-revolução destruiu os parlamentos eleitos
democraticamente e muitas das liberdades criadas pela revolução (BREUILLY,
2002:55) e em 1850 Saxônia, Hannover, Bavária e Wüttemberg decidiram criar
uma nova liga de reinos, em oposição à Confederação Germânica, sendo realizadas
eleições para o parlamento de Erfurt votar uma constituição para esta liga, que foi
monarquia dinamarquesa, ao lado de Droysen, que inclusive teria que deixar a Universidade de Kiel por conta disso.
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derrotada pelas tropas austríacos, preservando a Confederação (Bund), ficou
evidente a impossibilidade de transformações mais radicais ou democráticas para
o futuro da Alemanha. Este episódio, chamado também de humilhação de Olmütz,
contudo, apenas abreviou a franca ascensão da Prússia como liderança política.
Nas palavras de Von den Pfordten, primeiro ministro bávaro, “a luta pela
hegemonia germânica havia sido selada e a Áustria perdeu” (Apud, BREUILLY
2002:58).
Ao contrário de Georg Iggers que vê na chamada Escola Histórica Prussiana
a expressão de um otimismo político ingênuo face a estes acontecimentos, penso,
que poderiam ser otimistas, mas não eram ingênuos. Mommsen, Gervinus e
Droysen, por exemplo, não acreditavam na existência de um aperfeiçoamento
espontâneo realizado pela história que tornaria as instituições melhores ou mais
justas, como produtos necessários do desenvolvimento histórico. Igualmente, para
eles, o poder não poderia ser somente o uso da força, mas o exercício de princípios
éticos. Ou seja, ao contrário dos franceses que após a Revolução procuraram
aplicar a lei natural à política ou, ou de Hegel que colocava a supremacia da razão
sobre a história ou sobre os direitos individuais, revelam um entendimento
político diverso ancorado no princípio constitucional. Droysen, por exemplo,
escreveu as Guerras de Libertação entre 1842-3 e a História da Política Prussiana,
em 1855, obras que tiveram forte impacto naquele contexto. Para ele a lei é muito,
mas não é tudo e “o grande erro do liberalismo vulgar foi ter insistido no governo
baseado na soberania popular e por direitos individuais garantidos (...) e a
verdadeira essência do constitucionalismo consiste em o Estado remover de sua
competência tudo aquilo que não propriamente pertence a ele” (IGGERS,
1983:107). Nacionalidade, portanto, deveria ser mais importante do que liberdade.
A identidade entre os historiadores prussianos não pode ser pensada sem
reservas, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista epistemológico.
Embora surgissem em um contexto comum e de uma mesma base, não são poucas
as diferenças existentes. Na Comissão Constitucional durante o Parlamento de
Frankfurt em 1849, Dahlmann e Droysen se opuseram ao voto universal, algo que
Mommsen e Gervinus defendiam. Com o tempo, todos perceberam que a
Unificação não poderia ser feita a partir de Frankfurt, mas de Berlim. Outro
exemplo ocorreu durante a reforma do Exército por Bismarck em 1861, quando
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Duncker e Droysen não se manifestaram, mas Haym, editor do Preussische
Jahrbucher escreveu um duro artigo lamentado que o chanceler desejasse salvar a
velha ordem militar prussiana em uma nova Prússia. Treitschke, que apoiou
Bismarck, foi convidado a deixar a revista. Mas a vitória sobre a Áustria em 1866
fez com que todos reatassem com o governo e, até mesmo Baumgarten realizou
uma autocrítica de sua resistência à política do Reich. Somente Gervinus
permaneceu irreconciliável com a liderança dos Hohenzollern, de Bismarck e de
sua política militarista. Aos poucos, também Mommsen e Treitschke foram
percebendo que os princípios liberais eram inconciliáveis com um poder nacional
fundamentado na força. Note-se que este último era um liberal da Saxônia, filho de
junker, de raízes tchecas, que apoiou a Kulturkampf contra a Igreja católica bem
como defendia abertamente seu antisemitismo. Para Herman Baumgarten e
Theodor Mommsen o caráter liberal do governo de Bismarck era tênue, pois as
instituições e a própria sociedade estavam nas mãos de uma elite senhorial
militarista e burocrática de forte tradição autoritária (IGGERS, 1983:23). Segundo
Mommsen a estrutura autoritária do Estado alemão, sua parlamentarização incompleta, seu vínculo com valores de obediência militares e aristocráticos, impediram a emergência de um espírito de responsabilidade política entre o povo alemão no tempo em que a emergência dos movimentos políticos de massa junto ao padrão constitucional do governo bismarckiano tornou a cidadania absolutamente necessária (Apud IGGERS, 1983:23).
As forças políticas lentamente conduziram à formação de clubes, ligas e
partidos políticos, os radicais Clube Democrático foi criado em 23 de março de
1848 e o Partido Comunista em janeiro de 1848, os moderados Clube
Constitucional e o Partido do Cassino em 1849. A simpatia pelos americanos não
era velada. Rotteck e Welcker se inspiravam no federalismo de Thomas Jefferson,
Gervinus afirmava que a América era o Estado do futuro (HAHN, 1996:38) e Droysen advogava um novo tipo de governo representativo que poderia incrementar a unidade e coesão do Estado sem a eliminação completa da estratificação social existente ou, igualmente importante na Alemanha, a supressão das peculiaridades regionais (SOUTHARD, 1995:16).
Buscar o just milieu, o equilíbrio, eis a tônica da moderação de Droysen. Em
seus estudos sobre as Guerras de Liberdade, ele “ofereceu uma exposição detalhada
da história americana e européia e demonstrou a inevitabilidade histórica da
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unificação alemã como uma monarquia constitucional sob a preponderância da
Prússia” (Southard, 1995:33). Em A posição política da Prússia, de 1845 defendeu
Frederico IV e seu papel na manutenção da paz e no desenvolvimento cultural e
econômico nos países germânicos.
Duncker em Crise da Reforma, publicado em 1845, dividiu a história em
quatro períodos: o primeiro é o do Iluminismo e seu pensamento ahistórico, o
segundo é o do romantismo e seu amor acrítico pelo passado, o terceiro é o
idealismo de Hegel e sua tentativa de colocar conteúdos ilegítimos em formas
legítimas e o último do empirismo, onde se inseria. Duncker e Haym participaram
do movimento protestante conhecido como Amigos da Luz (Lichtfreunde), que
estabeleceu congregações livres em várias cidades alemãs. Separavam o
desenvolvimento do Estado (prussiano) do desenvolvimento nacional
(germânico), cuja história, no entanto, tinha uma mesma fonte: os desígnios
divinos. Duncker e Droysen estavam do lado das populações germânicas em
Schleswig-Holstein e contra os dinamarqueses. Tratando da Prússia, revela
Duncker A monarquia constitucional aparece para nós como uma demanda requerida do tempo, como a necessidade histórica de nossa época, como a reconciliação entre o norte e o sul da Alemanha, como o compromisso entre o absolutismo e a liberdade. O princípio conquistado era serem oferecidas condições aceitáveis, uma paz própria para ser concluída entre os partidos em disputa. Constitucionalismo, como desejamos, era para ser democrático e honrado: não para ser limitado pela representação da burguesia em que um administração poderosa e centralizada controlasse o balanço; era para proceder de um auto governo das províncias e ser direcionado para o caminho de um Parlamento germânico (Apud SOUTHARD, 1995:122).
Droysen tinha medo da anarquia republicana (SOUTHARD, 1995:123) e da
revolução, da guerra civil. E temia que os príncipes não fossem receptivos,
compreensivos com o projeto da unificação. Para Droysen, “a Alemanha deveria ser
forte, mais forte que o perigo ou nossa esperança” (Apud SOUTHARD, 1995:26). A
constituição prussiana, aprovada, teria o mérito de ser confeccionada com base na
representação provincial. Suas expectativas, contudo, foram frustradas pelos
acontecimentos e ele voltou-se para o trabalho acadêmico.
Haym insistia que “o processo histórico consiste no progressivo
desenvolvimento da ideia que subsume todos os fatos e valores” (Southard,
1995:87). Ele acrescentou à ideia de progresso contida na filosofia hegeliana,
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embora abandonasse sua crença em verdades atemporais, a empiricidade,
historicizando a ética. A pedido de Duncker, Haym leu o panfleto de Gervinus A
Constituição Prussiana redigido em 1847 e chegou a conclusões parecidas com as
de Droysen. A Prússia não precisava de uma constituição porque o
constitucionalismo era algo inevitável, ela precisava de uma constituição para
preparar o caminho da unificação. Enquanto Gervinus apelava para a força dos
negócios, Haym tratava do poder dos negócios – pensando-os como agentes de
mudança.
Sybel, protestante vivendo em um território católico, era um fervoroso
adepto do modo rankeano de escrever e pesquisar história, mas não de fazer
política. Em 1843 escreveu Sobre os Tories e também Sobre a relação da nossa
Universidade com a vida pública. Criticava as monarquias absolutas, contrapondo-
as à liberdade, ao caminho constitucional e representativo. E também o mito do
herói de Edmund Burke. Redigiu Os partidos políticos do Reno em 1847, para
combater o partido feudo-clerical. É dele o maior número de colaborações na
Historische Zeitschrift, da qual foi o também o editor-chefe até 1895. Em seguida o
periódico foi dirigido no curto período de um ano, entre 1895 e 1896 por Heinrich
von Treitschke e, em seguida por Friedrich Meinecke de 1896 a 1935.
Ao tratar dos historiadores prussianos, Southard retrata Duncker como
mais ingênuo, Haym como mais raivoso, Droysen como mais enérgico e
personalista, Sybel como o mais conciliatório. À guisa de conclusão eu lembraria que as motivações da pesquisa histórica
partem sempre de circunstâncias do presente relacionadas às carências de sentido
provocadas pelas transformações ocorridas, e isso não foi diferente em relação aos
historiadores alemães. Todos eles abandonaram a produção de uma história
filosófica por outra, mais empirista e mais voltada para as repostas aos problemas
colocados em seu tempo, que invariavelmente se situava entre a política e a
diplomacia. Lideranças em suas localidades, articulados, cultos, autores conhecidos
e enérgicos, aqueles historiadores não poderiam se furtar do debate político vivido,
tampouco fugir do chamamento que a sua atuação exigia. Concordo com Rüsen que
vê na historiografia um modo de constituição narrativa de sentido, no qual domina o fator da relação ao público-alvo, de dirigir-se a alguém mediante o pensamento histórico (que, aliás, sempre é pensado para alguém, para um público ou
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para um grupo de pesquisadores, por exemplo). É determinante desse modo e de sua especificidade científica o ponto de vista da relevância comunicativa. Ela diz respeito à receptividade das histórias. (RÜSEN, 2008:28).
Assim, podemos perceber que havia um rico e profundo diálogo que foi
estabelecido entre os historiadores da Escola Histórica Prussiana do século XIX e
sociedade na qual se inseriam, não somente no plano do pensamento, mas,
sobretudo, no plano da ação, encurtando a distância entre ciência e política, suas
verdadeiras e inseparáveis vocações.
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A História Como Sagesse
Doutoranda Joana Duarte Bernardes FLUC / CEIS 20
Universidade de Coimbra E-mail: [email protected]
RESUMO
É nosso objectivo esclarecer quais as metamorfoses que o axioma ciceroniano “Historia magistra vitae” sofreu diante da mudança da perspectiva temporal. E se tal tarefa implica sopesar-se o contributo das concepções cíclica, judaico-cristã e moderna da temporalidade, deve questionar-se também qual a recepção possível de uma ideia de história tornada exemplum, no contexto da actual crise da produção de memória e da banalização do novo.
Palavras-Chave: historia magistra vitae – sagesse - temporalidade
ABSTRACT
It is our goal to clarify what metamorphosis the ciceronian axiom “Historia magistra vitae” has undergone in face of the various temporal perspectives. And, if such a task implies weighing the contribution of cyclic, judaic-christian and modern forms of temporalities, it should also be asked what reception is possible nowadays – when the production of memories is passing a moment of crisis and the trivialization of the new has been the support of an arithmetic and cumulative experience of time.
Keywords: historia magistra vitae – sagesse - temporality
1. Se é verdade que escrever a história é ler o real como um texto,
admitamos que essa leitura, partilhando com o seu sujeito o presente ao qual este
está arreigado, ao dar sentido ao pretérito não pode nunca deixar de estribar esse
magistério na inevitabilidade de interpretações futuras. Admitamos também que, a
ser uma prática de desvelamento do acontecido, a historio-grafia confere ao seu
escritor uma capacidade de iluminação, não pela tentação da prognose, mas pelo
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exercício do presente como momento de verdade: produção de luz, revelação do
adormecido.
Qualquer uma destas tentativas de definição do ofício do historiador (e
qualquer uma que assuma que em primeiro plano historiográfico está um sujeito
pré-ocupado), ao situar aquele que escreve a História num campo de experiência
adquirida, indirecta, mediada, passa necessariamente pelo reconhecimento de que
é impossível separar memória e história. Mas nem sempre esta reciprocidade é
tida em conta. A verdade é que quer preocupações excessivamente esteticizantes e
datadas (como por exemplo, a avaliação da prevalência de uma cultura sobre
outras; a problemática da existência ou não da História dos outros1) ou mesmo de
ordem ontológica e epistémica (as querelas sobre o estatuto diferenciado ou não
entre historiografia e ficção; a construção do discurso historiográfico) acabam por
secundarizar o que importa de facto: a historiografia nunca poderá ter, de forma
assumida e responsável, uma função pragmática enquanto as leituras do passado
padecerem de excessos de anacronismo ou de exageros presentistas.
O mesmo será dizer que o ciceroniano preceito historia magistra vitae deve
ser depurado e, antes de mais, contextualizado.
2. Se, por um lado, não é novidade dizer-se que é Cícero quem, a propósito
das virtualidades da oratória, afirma ser o orador aquele capaz de veicular o
conjunto de experiências não só do passado mas do outro2, deve sublinhar-se que o
que aqui está em causa é, também, a compreensão clara sobre o papel quer da
escrita, quer da palavra ouvida, na construção de mundividências pessoais e na
tomada de consciência de uma sabedoria que, acima de tudo, pode e deve ser
comum. E, portanto, a história, que era mestra da vida, era também a vida da
memória, logo, sobrevivência possível do passado. Colocando a história ao serviço
da oratória, enfatizava-se, sobretudo, o carácter exemplar das coisas pretéritas e
não somente o seu registo. O que significa que o autor situa o julgamento da
história no presente, porque o julgamento da virtude é feito pela elevação, ou não,
da vida a exemplo (logo, a biografia), e o cumprimento do passado no futuro – que
1 Cf. Fernando Catroga, Os Passos do homem como restolho do tempo. Memória e fim do fim da história, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 191 e ss. 2 “Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia, nisi oratoris, immortalitati commendatur?” (CÍCERO, De oratore, 2, 9, Boston, WELLS and LILLY, 1823, p. 109).
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também seria passado – , uma vez que, feito exemplo, deveria estar sempre a
repetir-se.
Percebe-se que assim seja. Numa sociedade caracterizada por uma
concepção de tempo cíclico, em que a perspectivação da história enquanto
magistério transmissor de uma súmula de exemplos deveria servir às gerações
futuras, a experiência nunca poderia ser considerada passada. Isto é, um futuro
apriorístico estaria sempre em aberto em virtude quer do seu carácter reprodutor,
quer devido a uma rememoração constante da acção original. No entanto, ter-se-á
sempre de perguntar qual a futuridade que existe num horizonte crente no eterno
retorno, ou, numa sua versão mais mitigada, na constância da natureza humana.
Pano de fundo em que o indivíduo deveria ser sempre a personificação do
anterior1.
Se se tiver em conta que historiografia e biografia surgem ambas no século
V (não por acaso o da idade de ouro da democracia ateniense), pode concluir-se,
como foi já feito2, que, se a primeira parece ficar circunscrita aos leitores e ao
ensino aristocráticos, a biografia terá sempre desempenhado uma função mais
democraticamente pedagógica já que seria um género popular, o que mostra
claramente até que ponto um certo ideal heróico deveria estar ao alcance de todos.
Compreende-se: pelo menos num plano teórico, também o futuro era visto através
dos olhos da isonomia ateniense. Ou, talvez melhor, a igualdade entre cidadãos
começava sempre no passado, como se nele residisse uma vocação universal, nem
que fosse a possibilidade democrática de cada indivíduo poder conquistar a Fama.
Nesta universalidade dos exemplos residia a previsibilidade do futuro – forma de
se dizer que os casos vindouros seriam quase expressão, reactualizável, de um
referente máximo (mas não absoluto) e pretérito.
Sem uma vivência diacrónica, o horizonte de expectativas não poderia ser
projectado – e o próprio campo de experiência estaria revestido de uma semântica
peculiar3. De facto, o exemplum conteria uma dimensão anamnética, própria de um
1 Cf. François Dosse, La Apuesta biográfica. Escribir una vida, València, Publicaciones de la Universitat de València, 2007, pp. 123 e ss. 2 Cf. Arnaldo Momigliano, The development of Greek biography: four lectures, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1971, p. 39 e ss. 3 Partimos dos conceitos definidos enquanto categorias meta-históricas por Reinhart Koselleck em Le Futur Passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990, pp. 307 e ss: “L’expérience, c’est le passé actuel, dont les événements ont
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estrato temporal não apenas passado como narrativizado, distante temporalmente
e estrangeiro subjectivamente, mas cuja consciência do estranhamento é
irrealizável porque a acção funcionaria por via mimética. Visto que na ordem
cíclica das coisas – ou no reino do só aparentemente mutável – cada dia inaugurava
uma possibilidade de reinício, o presente estaria sempre a acontecer e a decair,
sem que se ultrapassasse nunca uma fatal roda da fortuna elevada à escala da
natureza: a cada movimento de crescimento, seguir-se-ia outro de
degenerescência.
Veja-se o que sucede na Odisseia, a título de exemplo. Quando Hannah
Arendt afirma que Homero, no momento em que Ulisses regressa a Ítaca,
amalgama no aedo Demódoco, a função de poeta e de historiador, defende que
assim se funda a primeira circunstância historiográfica1. Faz, contudo a seguinte
ressalva: trata-se da fundação poética de uma experiência humana historicamente
mais antiga. Como se dissesse que, desde que inserto numa comunidade e,
precisamente por isso, público da vida e da morte do outro, o homem
experienciasse a passagem do tempo enquanto fenómeno.
Pelo que Ulisses certamente perguntaria a Santo Agostinho o que era o
tempo – em virtude da experiência narrativa – e não historicista – que pontuou o
seu regresso2. E isto porque a ordem cíclica do tempo vivia do exemplo que vivia da
imitação da acção – ciclicamente. Desta feita, em última instância, a renovação da
ordem circular das coisas gera e alimenta-se do esquecimento. Pelo que, só através
de uma práxis exclusivamente humana, produtora de mitos, de poesia, de filosofia,
de histórias3 se poderia ter a ilusão de se fugir à amnésia inexoravelmente
provocada pela corrupção do tempo físico.
Com efeito, falar em historia magistra vitae somente faz sentido
numa sociedade cujo pensamento, nas suas diversas manifestações, estava
été integrés et peuvent être rémémorés (…). Dans ce sens, l’histoire a effectivement de tout temps été saisie comme porteuse d’une expérience étrangère. On peut affirmer la même chose pour ce qui es de l’attente: elle aussi est à la fois liée à l’individu et interindividuelle; elle aussi est s’accomplit dans le présent et est un futur actualisé, elle tend à ce-qui-n’est-pas-encore, à ce-qui-n’est-pas-du-champ-de-l’expérience, à ce- qui-n’est-pas-aménagéable” (p. 311). 1 Cf. Hannah Arendt, Between Past and Future, USA Penguin Books, 1993, p. 45. 2 Cf. François Hartog, Régimes d’Historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Seuil, 2003, p. 68 e ss. 3 Cf. Hannah Arendt, op. cit., pp. 64; J. A. Barash, Politiques de l’histoire. L’historicisme comme promesse et comme mythe, Paris, PUF, 2004, p. 240 e ss.; Fernando Catroga, Os Passos do homem como restolho do tempo, p. 16-18.
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dominado pela crença na índole degradativa e corruptora do tempo, e,
consequentemente, na sua renovação, compreendendo esta não tanto a repetição
da res gestae, mas sim sucessivos ciclos tipológicos. O que, mostrando que a
própria natureza humana seria imutável e ahistórica, o afamado axioma se
compaginava com a necessidade de se contornar o esquecimento. Se para o grego,
o homem estaria sujeito irrevogavelmente às leis da physis, então nada lhe restaria
a não ser a opção – ou a inevitabilidade – de dois caminhos. Se, por um lado, é a
manutenção do trabalho e, decorrente deste, a criação da ordem, que permite
considerar como finalidade humana a materialização da luta contra o olvido, por
outro, apenas através da práxis o homem assegura as condições para a recordação.
O que faz de Heródoto um justo. Para o autor, o historiar deveria combater o
esquecimento o que denota que ele adivinha algo que apenas mais tarde fará
sentido, à luz das diferentes experiências do tempo: que a historiografia se faz para
ordenar (não esquecer) o passado e pacificar o presente. Em suma, ela, tal como o
mito nas sociedades de cultura oral, aparece como uma ars memoriae, adequada à
sociedade da escrita, e como uma resposta aos efeitos aculturadores e amnésicos
que, a par da expressão ontológica do tempo, esta inevitavelmente também
provoca1 na sagesse assente na oralidade. Não surpreende, pois, que Heródoto
afirme que regista o que viu, o que lhe granjeia o estatuto de testemunha – e que,
consciente de que esse é um trabalho de mediação, as suas histórias sejam as
histórias de Heródoto. No caso do hístor (e não historiador) de Halicarnasso,
declara-se o processo selectivo que deve nortear a narração de um passado que
não deve ser esquecido – não como registo da passagem do homem mas antes
como catálogo de passados ideais, positiva e negativamente.
E se é sedutora a ideia de que, em virtude da experiência temporal, só na
Antiguidade clássica uma história do tempo presente poderia fazer sentido de
forma cabalmente lógica, não será porque cada fragmento tornado narrativa de
interesse humano (que é a base tanto da narrativa ficcional, como da
historiográfica), é apresentado, não como uma fracção do todo, mas cuja
1 Fernando Catroga, op. cit., pp. 27 e ss.
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concretização, enquanto produto narrativo, só sucede porque pretendida como
modelo?1
3. Com contradições na própria apropriação que a antiguidade fez da
máxima de Cícero, não surpreende que os próprios Padres da Igreja a tenham
sempre olhado com renitência e desconfiança. Isidoro de Sevilha, por exemplo, não
confere grande relevo, explicitamente, ao preceito ciceroniano, já que os exempla
deveriam ser lidos nos argumentos religiosos, não na história profana2. Contudo,
se é verdade que o paganismo assombrou sempre a intelectualidade patrística
precisamente por pôr em causa a maquinaria temporal do Livro, não o é menos que
o próprio autor das Etimologias, na definição de historia, consagra um pequeno
subcapítulo a “De utilitate Historiae”, no qual, se considera alguma força educadora
aos autores pagãos, também localiza a história num passado que admite uma nova
compreensão: se ela serve o aperfeiçoamento institucional através da “praeterita
hominum gesta”, o conhecimento dos anos (através dos annales) e dos tempos
(através da historia) pressupunha uma perspectiva retrógrada3. Não espanta que
assim seja. Não apenas a qualidade do exemplo é alterada, como a teia temporal
judaico-cristã obrigará a que se reequacione a lei do De Oratore.
Com efeito, a divindade judaico-cristã, instalada na sua eternidade e criando
um tempo que, enquanto criatura, tem princípio e fim, ao estar orientado para uma
meta escatológica, propiciava, teoricamente, a criação e emergência de um homem
novo e de um tempo novo4 – enquanto fenómenos absolutos, irreversíveis e
irrepetíveis. A partir do momento em que a criação do mundo é identificada com
um Alfa Único, homem e cosmos passam a estar sob o imperativo da Revolução e
da Revelação: o ritmo da história pauta-se, então, pela irreversibilidade, alegoria
que é da divindade criadora – também ela Una. Todavia, porque a cristianização 1 Cf. Françoise Proust, L’Histoire à contretemps. Le temps historique chez Walter Benjamin, Paris, Les Éditions du CERF, 1994, p. 19. 2 Com efeito, assim descreve sucintamente Reinhart Koselleck, partindo da obra de J. Fontaine, Isidore de Séville et la culture classique dans l’Espagne wisigothique, a dificuldade de Isidoro de Sevilha face à definição de História, já que recorrer ao axioma implicaria, segundo o autor, admitir o predomínio da exemplaridade do mundo profano. 3 “Historiae gentium non impediunt legentes in iis, quae utilia dixerunt. Multi enim sapientes praeterita hominum gesta ad institutionem praesentium historiis indiderunt. Siquidem et per historiam summa retro temporum, annorumque supputatio comprehenditur; et per consulum, regumque successum multa necessaria perscrutantur.” (Isidoro de Sevilha, Opera omnia: Etymologiarum, liber I, caput. XLIII, Typis Antonii Fulgonii, 1798, p. 72). 4 Sobre a conceptualização do homem novo no contexto revolucionário francês, vide Mona Ozouf – L’homme régénéré. Essais sur la Révolution française. Paris: Gallimard, 1989.
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obrigava a que o herói fosse substituído pelo mártir (daí que a sua historiografia
seja, em última análise, uma hagiografia), culminava por também inscrever no
caminho salvífico do homem, condenado à história porque pecou, a exemplaridade
bíblica (consubstanciada no exemplo dos exemplos: Cristo) – que acaba por
efectivar a função dos exempla postos agora ao serviço da Cidade de Deus.
Em última análise, num tempo em que, contrariamente ao que virá a
suceder na experiência moderna (na qual a causa de sofrimento – e suporte de
uma atitude melancólica – é o mesmo tempo), o valor do exemplo se afirmava
sempre através do novo como encarnação sempre mais próxima do sagrado, o
significado da historia magistra vitae é aquele que apresenta a História como
conjunto de experiências paradigmáticas e pretéritas, reconhecidas como fonte de
exemplaridade irreversível que só por imitatio poderá ser rediviva, testemunha de
que o Deus transcendente se revelara historicamente1.
Por conseguinte, aos olhos do crente o Livro também constituía uma
narração arquetípica, não pelos factos em si mas pelos sinais do gradual anúncio
da salvação do sofrimento causado pela história. O que fez com que o seu futuro
escatológico fosse incindível de uma prática que aparentemente contraditava: a
convocação do rito e, portanto, da memória. Não admira, pois, que o próprio Santo
Agostinho tenha rejeitado o seu neoplatonismo inicial, porque a concepção cíclica
não permitia que o homem se libertasse do fatalismo, e que tenha procedido à
seguinte clarificação, quer a nível subjectivo, quer a nível colectivo: o presente, ou
melhor, o presente-presente é sempre presente-passado e presente-futuro. E, por
isso, quanto a este último, a história só seria mestra da vida se ela fosse lida como
uma semiótica da esperança transcendente.
Na hagiografia ficam plasmados testemunhos – mais do que exemplos,
precisamente porque martyroi – da relação que é possível estabelecer com a
divindade judaico-cristã, na medida em que a História já está escrita antes mesmo
de o ser2. De facto, contrariamente ao que sucede na experiência cíclica, a vida
exemplar é delimitada por uma temporalidade cosmológica também ela
circunscrita por uma narrativa que começa e acaba (o Livro) e que, per se, não é
1 Fernando Catroga, op. cit., p. 135 e ss. 2 Michel de Certeau, L’écriture de l’histoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 281; François Dosse, op. cit., pp. 137 e ss.
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mais do que um fragmento do Todo divino. E por isso o mártir não contraria a
vontade divina – pelo que não poderia ser considerado herói – nem se confunde
com ela – não sendo messias.
Assim sendo, e porque a experiência legada era, não apenas passada, mas
obrigatoriamente a experiência da alteridade, a lógica judaico-cristã, assente na
transcendentalização da própria divindade, não excluía o sujeito do páthos
edificador, ao eleger o sacrifício e a conversão como condições para o
aperfeiçoamento moral, bem pelo contrário. O que talvez faça com que a
hagiografia possa ser pensada como estando nos antípodas da historiografia1 é a
sua inevitável capacidade de personificar o lógos divino, instrumentalizando o
homem do ponto de vista da experiência como mediação – mas sem que esta se
traduza num problema. Esta lógica, ao fazer de Cristo o exemplum exemplorum,
cerceia a prática da virtude cívica cantada pelos filósofos pagãos para que se possa
inaugurar a conversão e tornar a Revolução possível. O sujeito deixa de estar sob o
jugo da roda da fortuna – no sentido de imitar um passado que oferecia o futuro,
como se este precedesse sempre o sujeito – para projectar no Além (que está fora
do tempo) a Esperança. Modo de se dizer que ao sujeito ficava reservada a
hagiografia e não uma historiografia: para que ele pudesse apreender a história do
mundo – contida no Livro e por ele e à luz dele historicizada.
4. Nessa medida, quando, em pleno processo de secularização e
modernização do homem, em período de enfraquecimento da escatologia judaico-
cristã, Maquiavel exorta à admiração e imitação dos antigos, não será ingénuo
pensar-se que se trata apenas de uma convocação mecânica do axioma de Cícero?
Maquiavel, como já antes Petrarca (De Viris Illustribus), apresenta o exemplo antigo
para que da imitação possa ser criado um grande homem que só atingirá esse
estatuto se conseguir, através da acção, ou melhor, da virtù, relativizar os efeitos da
fortuna.
A bem dizer, só então se conjugaram as circunstâncias ideais para que,
ultrapassadas as teologias da história e em plena época de reordenamento da
1 Cf. Michel de Certeau, op. cit., p. 274. Segundo o autor, citando Sulpício Severo, o que demarca a hagiografia do discurso historiográfico é que, quer o discurso, quer o seu significante estão ambos ao serviço de uma verdade transcendente que organiza os próprios acontecimentos, o que, mediante os preceitos genológicos da hagiografia/hagiologia, excluía da História qualquer função epifânica.
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própria natureza e auto-suficiência do político, o antropocentrismo permitisse que,
ao reactualizar-se o sistema judaico-cristão, Maquiavel identificasse a velha
virtude enunciada nos exempla greco-romanos com a capacidade de controlar a
fortuna e de a ela resistir. É este matiz na concepção do herói renascentista, por
comparação ao herói antigo, que justifica que também o primeiro seja celebrado –
ou, talvez melhor, biografado. Com efeito, equilibrando a exemplaridade clássica e
a tyche (superior à balança dos deuses), reconhece a virtù somente quando através
da acção supera uma história já ditada. A História surge verdadeiramente como
mistério mas também como plasticidade, o que começava a potenciar a abertura de
caminho à chegada do Progresso, enquanto futuro aberto, e de uma concepção do
homem capaz de, colectivamente, através do seu sucessivo aperfeiçoamento,
contrariar, ironicamente, a decadência do mundo1.
Posto isto, a releitura que a moderna experiência do tempo levará a cabo
sobre aquele que é, porventura, o mais humano dos ensinamentos, parece vir
contraditar, pelo menos teoricamente, o preceito de Cícero, na medida em que se
fixa numa concepção de tempo irreversível, pelo menos desde o século XVIII.
Vejamos. Em primeiro lugar, um futuro aberto vem ocupar o lugar, quer do
regresso, quer da transcendência do fim judaico-cristão; o que significa, admitindo-
se a infinitude do tempo (e, consequentemente, do espaço), que a possibilidade
perfectiva do homem enviesava, de certa forma, a imitação. Por outro lado, o
passado, em virtude da crença no progresso, é sempre mais imperfeito do que o
presente, e, por esse motivo, o futuro, sendo forjado no passado, é sempre
qualitativamente superior. Pelo que, a credibilidade da divisa só seria sustentável
no seio de uma visão imanentista e teleológica do devir, e isto porque a
retrospectiva que a legitimava tinha de encarar o passado com o continente
potencial do conteúdo que o tempo ia explicitando como progresso.
Deve, pois, perguntar-se qual vem a ser o lugar do exemplo se, mesmo não
podendo prescindir da analogia, a experiência moderna do tempo releu o devir
universal, não como fatalidade e degenerescência, mas antes como realização
gradual e perfectiva da Humanidade por ela mesma. O que, em parte, explica por
que motivo a revolução deixa de ser encarada como movimento circular cósmico –
1 Miguel Baptista-Pereira, Modernidade e Tempo. Para uma leitura do discurso moderno, Coimbra, Minerva, 1990, p. 75.
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com paralelo na vida dos homens1 – para ser entendida como o lógos cristão
intentou no plano religioso e transcendente: a chegada de uma nova ordem das
coisas através da Revolução implicava que a consumação do previsto como
Verdade estivesse situada no Futuro – no caso moderno, exequível através da
aceleração do tempo (Diderot; Robespierre). A rasura do passado, apanágio
revolucionário, parece prescrever à exemplaridade o papel de experiência
tipificada (e, portanto, impossivelmente geradora de virtù), posta no catálogo das
grandes narrativas com uma finalidade pedagógica e em que os exempla (de
indivíduos, de épocas) são sobretudo relevados enquanto antecedentes e
precursores de valores de porte universalista, porque inspirados na natureza
humana.
Com a Revolução e a metamorfose das histórias numa História entificada e,
portanto, com o início de uma pré-ocupação veridictiva na valoração do discurso
historiográfico, o passado deixa de ser modelar para passar a ser um ausente
relativizado. No entanto, poder-se-á afirmar que esta relativização dos
acontecimentos subsume a historia magistra vitae2? A grande diferença entre os
regimes modernos de historicidade e os seus precedentes é que a história se
transforma em mestra da vida não por imitação – porque o futuro seria sempre
qualitativamente melhor do que o pretérito, independentemente do grau de
analogia passível de estabelecer entre acontecimentos –, mas sim através da
selecção do passado e da sua filiação face ao presente e ao seu uso como
argumento legitimador da previsão do porvir. O exemplo passa a ser perspectivado
enquanto potencial instrumento para a emancipação do presente – direccionado
para a consumação da Felicidade futura. Daí que faça dos grandes homens
momentos mediadores e, portanto, pioneiros do que, finalmente, se iria realizar em
plenitude. Mesmo nos discursos contra-revolucionários e conservadores, a
insistente convocação do que foi, seja através da glorificação do passado, seja
através da observação do passado como condição de Progresso, já não está em
causa a automática e cíclica reprodução do tempo.
1 Cf. Joana Duarte Bernardes, “O século XX ou o ambíguo tempo dos profetas”, Estudos do Século XX, Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX - Universidade de Coimbra, nº 9, 2009, p. 96-98. 2 Cf. R. Koselleck, op. cit., p. 47.
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5. Se isto é sintoma da passagem do herói a grande homem enquanto
médium do télos agora inscrito na própria História – isto é, da mudança de lente
para melhor se retrospectivar o passado – também revela que desta transmutação
resulta não apenas a firmação da História (e da Humanidade) como entidade, mas,
outrossim, a sua assunção como memória, presa num jogo em que o futuro não
pode ser recalcado. Ganha, assim, sentido que se deixe esta pergunta: se, com o
advento da Modernidade, a História continua a ser, dentro dos pressupostos
assinalados, mestra da vida, não será igualmente correcto sustentar que a vida
também é mestra da História? O que nos conduz à seguinte questão: quando pode,
afinal o conhecimento do passado produzir sagesse?
Enquanto a procura e a aquisição de conhecimentos são próprios do filósofo
e do cientista (não por acaso identificados com as concepções cíclica e moderna de
tempo, respectivamente), tão só quando esses conhecimentos resultam na
compreensão do que é a condição humana (o homem como ser para a morte e,
simultaneamente, como ser para a vida) é que a História pode ser veículo de
sagesse. E não será menos verdade asseverar que o magistério da História torna o
Homem conhecedor da sua natureza e circunstância quando e se o seu
conhecimento histórico estiver ao serviço da compreensão do outro, da diferença e
da finitude.
Muito para além da historiografia, a vida é o Homem estar perpassado de
tempo e no tempo1. Resta saber, pois, que uso disto fará uma actualidade marcada
precisamente pela crescente reprodução do convencimento – que a análise
profunda da experiência subjectiva não confirma – de que esta não passa de um
somatório cumulativo e aritmético de memórias e esquecimentos. Neste horizonte
(ou na falta dele) faz-se a vénia servil à vivência meramente presentista e
sucessória dos momentos, como se a temporalidade (e, por conseguinte, a
historicidade) tivesse como exclusiva condição de possibilidade esta premissa: o
advir do momento seguinte exige o total esquecimento do momento anterior. 6. Admitamos, apenas provisoriamente, que a experiência moderna do
tempo pode ser balizada entre a Revolução Francesa (1789) e a queda do muro de
Berlim (1989)2 e que o século XX termina mergulhado numa experiência de tempo
1 Fernando Catroga, op. cit., p. 111. 2 François Hartog, Régimes d’historicité, p. 116 e ss.
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presentista. Por presentismo, entenda-se a sempre iminência do presente e o
domínio do ponto de vista desse mesmo presente1. Como suas provas são
chamados à colação movimentos estéticos, como o simultaneísmo ou o nunismo,
ou mesmo diferentes posições diante do estudo do passado. A título de exemplo,
referimo-nos ao papel mediador do sujeito, destacado por uma corrente de
pensadores que, contra os objectivismos e positivismos vários, relevou a dimensão
contemporânea de toda a indagação histórica. Na verdade, outro ensinamento não
se pode retirar do magistério de autores como Droysen, Dilthey, B. Croce ou
Collingwood. Facilmente se percebe que não se tratava de reduzir a história ao
tempo presente (ou cair-se em anacronismo), mas defender o inevitável círculo
hermenêutico que existe entre os problemas do presente e as representações do
passado. Algo não muito distinto, mas numa perspectiva menos teórica e mais
historiográfica, foi avançado pelos Annales (Marc Bloch e Lucien Febvre).
Tendo sido defendido já que o conceito de historia magistra vitae deixou de
ser operatório à entrada do século XX (o que pressupõe uma errónea e
remanescente concepção essencialista de tempo). No entanto, ultrapassadas que
devem ser definições impressionistas, urge perceber até que ponto a banalização
do conceito não está a decorrer nesse mesmo hipotético regime de temporalidade
presentista. Aliás, os que enfatizam esta última experiência nem sempre percebem
que não pode competir àquele que pensa o tempo a sua alegada revelação.
Guardadores do tempo, sabem melhor do que ninguém que é sempre à luz de
memórias e expectativas – e não de um impossível presente-presente – que o seu
labor cognitivo sobre o passado tem lugar. Dizemos mais: o presentismo mais não
é do que tanatopraxia do tempo não assumida, através da sua transformação em
coisa.
As últimas décadas do século XX ficaram marcadas pela chamada revolução
da informação e por um surto tecnológico que se propagou a todos os níveis da
esfera pública e da esfera privada, alimentando quer a queda de barreiras culturais
(e consequente reafirmação das diferenças), quer a disparidade entre um mundo
que vê (mais lato mas inevitavelmente circunscrito) e uma multiplicidade de
mundos que são vistos. E se isto pode significar uma crescente participação do
1 Idem, ibidem, pp. 120-122.
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indivíduo no processo de comunicação global – e da globalização –, também é certo
que as dessincronias entre os povos pressentidas pelo pensamento iluminista
estão, mais do que nunca, à mostra e para uso das consciências. A hipertrofia da
memória motivada pela superabundância de informação e pela permanente
referenciação digital do mundo e da vida, marcas da vivência inegável de um
presente cuja futuridade se pretende sempre adiar, exige, talvez mais do que
nunca, uma nova releitura do magistério da História.
Fenómenos como as chamadas políticas de memória, ou, e decorrente
destas, a patrimonialização1, se respondem a uma espécie de estética do efémero,
simultânea e ironicamente desenvolvida para a acumulação mas não para a perda,
reclamam que o diálogo entre o legado da experiência e a humana necessidade de
um horizonte de expectativas resulte na veiculação de uma sagesse. Ora,
neutralizar a lógica do axioma em apreço por força de um argumento que tem na
sociedade de produção e de consumo as causas – inegáveis – para a
supervalorização do agora e consequente retardamento das ideias de fim e de
finalidade, é querer silenciar o seguinte: ser o presentismo a face da crise da
moderna experiência do tempo potencia que o axioma Memória e Espera, mestras
da História, se cumpra, contrariando-se a idolatria do presente através da
compreensão da evidência do passado. Esta releitura da feliz glosa de Cícero é
indispensável, na medida em que apenas ela pode resgatar das práticas frias da
patrimonialização – acumuladoras do passado – o conhecimento das coisas
pretéritas. Este deve estar sob a égide de um trabalho da memória consciente de
que, se dela parte a paulatina edificação da nossa pré-compreensão do mundo e a
nossa capacidade de o representar, esse conhecimento só é válido se estiver ao
serviço de uma leitura em que a alteridade seja perscrutada como estágio anterior
no presente de quem rememora – e não como monumentum “estrangeiro” no qual
não seja possível ler a experiência do outro. Isto implica, antes de mais, pesar-se o
exemplum à luz da desconstrução (ou, pelo menos, da questionação) dessa
exemplaridade hegemónica
1 Vítor Oliveira Jorge, “Património, neurose contemporânea?”, in Conservar para quê? coord. de Vítor Oliveira Jorge, Coimbra / Porto, Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto, 2005, pp. 25.
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Ao protelar-se, grosso modo, o fim, ao relativizar-se, através da
multiplicação e da sobreposição, o presente, este tende a escapar à historicidade. O
agente da chamada “sublime historical experience”1 tem, assim, ao seu dispor os
instrumentos críticos necessários para escapar aos vícios historicistas do século
XIX, às políticas de silêncio do século XX e à atracção contemporânea pelo
presentismo. Repare-se: a história pode ser narrada liberta da sedutora previsão
do fim, colocando em plano de epistemológica igualdade passado e presente – o
primeiro, por via negativa, o segundo, e ainda que ilusoriamente, por via positiva. É
que o presente, se se supõe que seja auto-suficiente2, também surge conotado
como o que já passou e como o que ainda não veio. De onde se infere que os
sentimentos de expectação, plasmados na linha do horizonte de expectativas,
passam por um processo voluntário de activação – caso o sujeito se posicione
criticamente no seu presente em relação ao passado – ou de ignorância. Mais do
que nunca, é necessário um processo crítico de selecção de memórias.
Forma de se dizer que o velho preceito mantém a relevância de sempre para
a construção do conhecimento histórico e para a qualidade da experiência do
indivíduo – mas que cabe ao historiador a aquisição e partilha de uma sagesse que
só o é se tiver implicações humanas.
1 “Sublime historical experience is the experience of a past breaking away from the present. The past is then born from the historian’s traumatic experience of having entered a new world and from the awareness of irreparably having lost a previous world forever” (F. R. ANKERSMITH, Sublime Historical Experience, Stanford, California, Stanford University Press, 2005, 265). 2 Cf. Fernando Catroga, op. cit., principalmente pp. 27 e ss.
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A Experiência Estética De Hans-Georg Gadamer e a Vivência De Wilhelm Dilthey: Contribuições Da
Hermenêutica aos Estudos Da História1
Doutoranda Sírley Cristina Oliveira Universidade Federal de Uberlândia
Instituto Federal Triângulo Mineiro – IFTM Campus Ituiutaba E-mail: [email protected]
RESUMO
O propósito deste artigo é promover uma reflexão acerca dos fundamentos metodológicos e filosóficos da hermenêutica, discutindo, sobretudo, em que medida os pressupostos de Hans-Georg Gadamer e Wilhelm Dilthey dialogam com os princípios teóricos e metodológicos no campo da História.
Palavras Chave: História, hermenêutica, Gadamer, Dilthey
ABSTRACT
The aim of this article is to promote a reflexion about the methodological and philosophical fundaments of hermeneutics, especially discussing how the Hans-Georg Gadamer and Wilhem Dilthey's presumptions communicate with the theoretical and methodological principles in the field of History.
Keywords: History, hermeneutics, Gadamer, Dilthey
Em uma concepção simplista, hermenêutica sugere um ramo da filosofia
que busca a compreensão humana, o esclarecimento e a interpretação de textos
escritos. Notadamente, se apresenta como sendo a tradutora de uma linguagem
obscura e desordenada cujo fim desaguaria na interpretação única e verdadeira do
texto.
Segundo o crítico literário Luis Costa Lima, os primeiros tempos da
hermenêutica se organizavam a partir de pressupostos teóricos e filosóficos
1Este artigo é fruto das discussões e leituras realizadas na disciplina História e Hermenêutica ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Spnola Caldas no curso de Pós–Graduação em História (Doutorado) da Universidade Federal de Uberlândia /UFU, no segundo semestre de 2007.
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essencialmente frágeis, baseados, sobretudo, na descoberta do sentido literal da
palavra ou texto. Na Antiguidade Clássica a hermenêutica era entendida
exclusivamente como a arte de interpretação, ou seja, a responsável por
apresentar o significado, a tradução dos textos. Essa visão filológica via a
hermenêutica como um instrumental viável à redescoberta da literatura clássica.
Na Idade Média, a hermenêutica se transformou em uma área do conhecimento
eminentemente religiosa. A concepção teológica hermenêutica deságua na
compreensão reformista da Bíblia e na tradução normativa ligada ao conhecimento
metódico do texto sagrado. Em ambos os casos, o propósito maior era a
decodificar, descobrir algo estranho, inacessível à compreensão ou ao
entendimento humano. Tanto na literatura quanto na Bíblia a hermenêutica
procurava desvendar o sentido original, correto e absoluto dos textos (LIMA,
1979).
Contudo, a hermenêutica não pode ser entendida como um simples ato de
interpretar ou um mero instrumento lingüístico que viabiliza a compreensão única
e verdadeira da linguagem. Ela fez tradição no campo do conhecimento e seu
estudo tornou-se essencialmente complexo e de difícil apreensão, exigindo por
parte de quem a estuda uma série de cuidados e averiguações1.
Assim, ao longo dos tempos muitos teóricos se debruçaram sobre a
problemática da hermenêutica e apresentaram contribuições importantes a essas
questões. A maior delas, é que a hermenêutica é essencial aos estudos das ciências
1 As divergências teóricas e metodológicas expressas no estudo da hermenêutica fizeram desse campo do saber uma área de estudo essencialmente complexa e até mesmo estranha ao mundo científico. A explícita discordância e a ausência de unidade do pensamento de seus teóricos podem ser identificadas nas seguintes obras: DILTHEY, Wilhem. Estructuración del Mundo Histórico por las Ciencias del Espiritu. IN: IMAZ Eugênio (org). Obras de Wilhelm Dilthey. El Mundo Histórico. México (D.F): FCE, 1978. _____. Schiller. IN: IMAZ Eugênio (org). Obras de Wilhelm Dilthey. Vida y poesia. México (DF): FCE, 1978. GADAMER, Hans-Georg. Quem Sou Eu, Quem És Tu? - comentários sobre o ciclo de poemas Hausto-Cristal de Paul Celan. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005. _____. Verdade e Método I – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2007. ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura. São Paulo: Editora 34, 1999. JAUSS, Hans-Hobert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. LIMA, Luiz Costa. A Literatura e o Leitor - textos de estética da recepção. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. _____. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. Vol. 1. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis: Vozes, 2001.
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humanas e que sua relação com a História exerce uma atração especial, mas que ao
mesmo tempo não pode ser pensada sem restrições ou reservas. Assim, a melhor
forma de nos aproximarmos dos pressupostos teóricos e metodológicos que
sustentam a hermenêutica e suas contribuições aos estudos da História é, sem
sombra de dúvida, entrarmos em contato com autores tradicionalmente
identificados com ela.
Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um dos teóricos mais expressivos para
pensar questões pertinentes à hermenêutica e à implicação de seu uso no campo
das ciências humanas. A instigante relação entre hermenêutica e as ciências do
espírito humano ocupou as atenções de Dilthey ainda no século XIX. Em 1870
publicou a biografia de Schleirmacher -, o primeiro que pensou a hermenêutica no
campo da ciência e a concebeu a partir da existência de um método. Depois, em
1883, publicou a obra Introdução às Ciências Humanas: tentativa de estabelecer
fundamentos para o estatuto da sociedade e da história. Em 1900, tornou-se público
o livro O Nascimento da Hermenêutica, onde conferiu a hermenêutica o estatuto de
ciência da interpretação. Em sua obra El Mundo Histórico, projetou não só a
especificidade das ciências humanas, mas, sua legitimidade frente às ciências da
natureza1.
As bases do pensamento de Dilthey estão localizadas no século XIX,
portanto parte expressiva de sua produção cientifica é fruto das conturbações e
dos conflitos pelo qual passava o conhecimento científico. Nesta época, o mundo se
deparava com a ascensão das idéias darwinistas, com a crise das explicações
religiosas, com o auge das ideologias positivistas de Comte, com a sistematização
dos novos métodos científicos e sociológicos e, sobretudo, com as mudanças de
paradigmas da História. Vivia-se, então, um momento de intensa crise.
Em meio à euforia dos eventos científicos do século XIX, as contribuições de
Dilthey consistiram na formulação de princípios que fundamentaram as ciências
humanas. Em sua perspectiva de análise, um dos pontos que constituíram a base
1 Torna-se importante ponderar que Wilhelm Dilthey ocupou um lugar de destaque na produção cientifica do século XIX, tendo seu nome e seu pensamento constantemente associados ao historicismo alemão. Contudo, não existe um consenso em torno da importância intelectual do teórico. Alguns o classificam como reducionista, conservador, antimarxista e criador de uma filosofia de vida favorável ao expansionismo imperialista e à doutrina nazista alemã. Para maiores informações consultar: REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
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epistemológica das ciências humanas foi a critica da razão pura. Contra o mundo
abstrato, estático, atemporal, racional, sistematizado e cultuado pelas ciências
naturais, o autor apontou outro caminho, o da crítica da razão histórica:
Em el mundo histórico no existe ninguna causalidad cientifico - natural porque causa, em el sentido de esta causalidad, implica que provoque efectos necessariamente, com arreglos a leyes; a historia sabe unicamente de relaciones de hacer y padecer, de accion y reaccion. (DILTHEY, 1944, p. 221).
Necessariamente, a crítica da razão histórica consiste em mostrar que o
homem é diferente da natureza pela capacidade que ele tem de apresentar sua
experiência vivida, de mostrar sua expressão de mundo e compreender o outro. O
mundo histórico é, então, o mundo das possibilidades humanas, da diferença, da
linguagem, dos sentidos, enfim, o mundo em que a comunicação existe e é
amplamente possível. Ao conceber a idéia de crítica da razão histórica, Wilhelm
Dilthey está marcando com precisão os limites do universo histórico, cujas
especificidades se configuram em três proposições essencialmente importantes
não só no processo de compreensão, mas, também, na produção do conhecimento
histórico. Para ele: - Todas as manifestações humanas são partes de um processo histórico e devem ser explicadas em termos históricos; - As diferentes épocas e os diferentes indivíduos só podem ser entendidos de seu ponto de vista especifico que deve ser considerado pelo historiador. -O próprio historiador está limitado pelos horizontes de sua época. (ALBERTI, 1996, p. 08)
Esta passagem é significativa, pois sugere algo que hoje se apresenta
comum ao oficio do historiador: as formas de compreensão da realidade, as
expressões de conhecimento, bem como as experiências humanas devem ser
pensadas a partir de seu contexto histórico, ou seja, a sua historicidade.
À luz da mediação histórica, Dilthey aposta seu projeto intelectual em uma
filosofia de vida. A vivência é um dos pontos chave de sua teoria e deve ser
entendida como possibilidade de conhecimento e compreensão nas ciências
humanas. Para ele vida e história são termos indissociáveis, tudo é manifestação da
vida histórica: En la cooperación de vivencia, comprension de otras personas, captación histórica de ´comunidades’ como sujetos de actuación histórica y,
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finalmente, del espíritu objetivo, surge el saber acerca del mundo espiritual. La vivencia es el supuesto ultimo de todo esto y por eso nos perguntamos cuál es su aportación. La vivencia incluye las operaciones elementales del pensamiento. He designado esto como su ‘intelectualidade’. Se presentan com el incremento de consciência. El o caminho de una ‘realidade’ (sachverhalt) interna se convierte así em conciencia de la diferencia. (...) A la ‘vivencia’ se adhieren los juicios sobre o ‘lo vivido’ em los cuales esto es objetivado (DILTHEY, 1944, p. 220).
O conceito de vivência é, pois, a categoria por excelência das ciências
humanas para entender o homem é preciso, sobretudo, compreender a sua
historicidade. A história se faz na vivência com os valores, os sentidos, os ritos, os
sentimentos e as experiências de que são portadores todos os homens.
Essencialmente, a vivência é uma categoria viva, concreta, dinâmica intrínseca à
vida humana e essa fórmula, visivelmente, não se encontra disponível nas
categorias abstratas e estáticas das ciências da natureza.
Mediante essas condições, a autobiografia tornou-se, a partir da concepção
de Dilthey, a forma suprema de compreensão da vida, o lócus de autêntica filosofia,
poesia e experiência. Ela é, então, um código estético, um gênero literário, uma
manifestação da arte que viabiliza a compreensão. Sendo assim, a autobiografia só
pode ser compreendida em função de sua vivacidade e com base no entendimento
hermenêutico que se tornou o procedimento fundamental para todas as ações das
ciências humanas:
La autobiografia es la forma suprema y más instructiva en que se nos la compreensión de la vida. En ella el curso de uma vida es lo exterior, la manifestación sensible a partir de la cual la compresión trata de penetrar en aquello que há provocado este curso de vida dentro de um determinado médio. Y, ciertamente, quien compreende este curso de vida es idêntico com aquel que lo há producido. De aqui resulta una intimidad especial del compreender (DILTHEY, 1944, p. 224).
Nessas circunstâncias, pode se afirmar que o projeto intelectual de Dilthey é
simples, mas ao mesmo tempo profundo e complexo: a vida é matéria poética e
carrega uma possibilidade enorme de compreensão e conhecimento. Em vista
disso, [...] en el fondo de la creación poética se encierran las vivências personales, la compreensión de estados ajenos, la ampliación y profundización de la vivência por medio de ideas. El punto de partida de
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la creación poética es siempre la experiencai de la vida, como vivencia personal o como comprensión de la de otros seres, presentes o pasados, y de los acontecimentos en que estos seres cooperan. Cada uno de los infinitos estados de vida por que pasa el poeta puede calificarse como “vivencia” en un sentido psicológico; pero solo aquellos momentos de su existência que le revelan un rasgo de la vida guardan una relación profunda com su poesia (DILTHEY, 1978, p. 140-141).
Contudo, poesia para Dilthey não é uma mera imitação ou relato de vida,
muito menos um retrato fiel da realidade. Também não se configura como um
objeto fortuito, utilizado apenas para o entretenimento e descontração. A poesia
que tem como mote de inspiração a vida humana se materializa a partir da relação
de nexos que se estabelecem pelas vivencias dos homens, pela trama da existência
e pela experiência que alimenta cotidianamente os indivíduos em um tempo
histórico. Essencialmente, a poesia carrega recordações do passado, projeta o
futuro e apresenta as condições materiais e psíquicas da vida humana no presente.
Nessa direção, é possível afirmar que a hermenêutica diltheyniana é uma
interpretação eminentemente historicizada.
Outro teórico que tem seu nome associado à ciência hermenêutica é Hans-
Georg Gadamer (1900-2002). Suas obras, que apresentam diferentes
procedimentos no âmbito da hermenêutica, ganharam notoriedade no campo do
conhecimento científico, primeiro pela capacidade que apresenta em dialogar com
pensadores clássicos como Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger, e, segundo, por
propor os estudos da hermenêutica totalmente desvinculados da problemática
metodológica e científica das ciências naturais1.
Em sua expressiva obra Verdade e Método, Gadamer quer mostrar a
validade da hermenêutica filosófica na busca da verdade a partir dos princípios da
filosofia, da estética, da arte e da razão. A arte se torna central na obra do autor,
1 Os princípios teóricos e filosóficos da doutrina de Hans-Georg Gadamer podem ser estudados a partir das seguintes obras: GADAMER, Hans-Georg. O problema da Consciência Histórica. São Paulo: FGV, 2003. ______. O Caráter Oculto da Saúde. São Paulo: Vozes, 2006. ______. Quem Sou Eu, Quem És Tu? - comentários sobre o ciclo de poemas Hausto-Cristal de Paul Celan. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005. _____. Verdade e Método I – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2007. _____.Verdade e Método II – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2007. _____. A Atualidade do Belo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. ____. A Razão na Época da Ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. _____. Hermenêutica em Retrospectiva. São Paulo: Vozes, 2007. Vol. I, II. III, IV
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com o propósito maior de revelar que a ciência e seus métodos são incapazes de
absorver a experiência estética das manifestações artísticas, da filosofia e do
cotidiano. O método não só separa o indivíduo do objeto, como também mata a sua
historicidade, diz Gadamer. Explicitamente, essa idéia é uma resposta à ascensão
do historicismo alemão que se aproximava cada vez mais do modelo e do método
das ciências pura da natureza.
Ao projetar a ciência hermenêutica desvinculada de um método, Gadamer
cria, então, uma série de princípios que visam organizar o problema da
compreensão e da interpretação, que para ele passa, necessariamente, pela
experiência humana do mundo. Em vista disso, uma das formas mais expressivas da
experiência humana é a obra de arte. Em Verdade e Método, das três partes que
compõem a obra, uma é exclusivamente dedicada à busca da verdade a partir das
experiências estéticas da arte.
Assim, ao pensar a obra de arte do ponto de vista da hermenêutica,
Gadamer tem como preocupação romper com a consciência estética formulada por
Dilthey. Notadamente, ele se afasta das noções de vivências, da filosofia de vida e
dos valores essencialmente psicológicos e intimistas da doutrina diltheyniana.
Desse modo, para Gadamer,
[...] a interiorização das “vivências”, não pôde construir a ponte para as realidades histórias, porque as grandes realidades históricas, sociedade e Estado, determinam de antemão toda a “vivência”. A auto-reflexão e a autobiografia – pontos de partida para Dilthey – não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por elas a história é reprivatizada. Na verdade, não é a história que nos pertence, mas somos nós que pertencemos a ela. (...) a lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não passa de uma luz tênue na corrente cerrada da vida histórica. Por isso, os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica de seu ser (GADAMER , 2007, p. 367-368).
Gadamer entende que o modo de ser da arte não passa exclusivamente pela
experiência do seu criador e que a vida não pode ser entendida como o fim único
para a constituição de uma obra. Ele parte do princípio de que a experiência
estética de uma obra de arte se materializa a partir da sensação, imaginação e
compreensão de quem a interpreta. Neste caso, a obra de arte se traduz na
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recepção, na autocompreensão do intérprete e é a partir dessa recepção que ela se
torna um veículo capaz de realizar a estética: [...] a experiência da arte que precisamos fixar contra a nivelação da consciência estética consiste justamente em que a obra de arte não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si. Antes, a obra de arte ganha seu verdadeiro ser ao se tornar uma experiência que transforma aquele que a experimenta (GADAMER, 2007, p. 155)
Ao procurar o modo de ser da arte a partir dos pressupostos da recepção,
Gadamer não está à procura de uma teoria da arte de compreender, mas parte do
fato de que toda obra de arte é um jogo. Extraordinariamente, o jogo tem um papel
importante na procura do modo de ser da arte e na busca de sua experiência
estética, pelo fato de estar constantemente aberto ao espectador. Para Gadamer,
aquele que não participa do jogo, mas que assiste ao seu espetáculo, é o que tem a
experiência mais autêntica do ato. Isso se explica da seguinte forma: o espectador é
o sujeito que irá recriar a interpretação da obra, do jogo que lhe está sendo
apresentado. É ele que melhor visualiza as ações e as sensações do jogo, pois seu
distanciamento permite identificar a essência, a identidade, a unidade do
espetáculo, ou seja, da obra infinitamente criada. E ele esclarece: Minha tese, portanto, é que o ser da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque, por seu lado, o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo ontológico da representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo. Que conseqüência ontológicas tem isso? Se partirmos assim do caráter lúdico do jogo, o que resulta para determinar mais acuradamente o modo de ser da arte? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte entendida a partir dele não são um mero sistemas de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo poderia se realizar livremente. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como a satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar da própria poesia na existência. Assim, a questão é saber o que é propriamente essa obra poética, de acordo com o seu ser, uma vez que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que o que nisso se torna representação é o seu próprio ser (GADAMER, 2007, p. 172).
Diante desse propósito, torna-se importante ponderar ainda que Gadamer
não identifique o intérprete como um sujeito autônomo, desenraizado das
condições políticas de sua época. Para ele, o receptor não se apresenta passivo
diante das expressões estéticas das obras que lhe são apresentadas. Ao contrário,
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ele é um sujeito que atua e está visivelmente presente no jogo da arte. Ocupa,
sobretudo, o lugar de sujeito do conhecimento, interpreta, recria e, indo além,
redimensiona os códigos da arte com as expressões da vida. Assim, o espectador tem somente uma primazia metodológica: pelo fato de o jogo ser realizado para ele, torna-se patente que possui um conteúdo de sentido que deve ser entendido, podendo por isso ser separado do comportamento do jogador. (GADAMER, 2007, p. 164).
Mas a idéia de que a experiência estética da arte se localiza na recepção do
leitor ou na autocompreensão do expectador não é algo tão tranqüilo e
amplamente aceito no campo do conhecimento. Diferentemente de Gadamer,
Schleiermacher acredita que uma obra de arte só será verdadeiramente
compreendia na medida em que for devolvida ao seu tempo original, às condições
naturais de sua gênese. Portanto, o contato da arte com o intérprete, com um
mundo histórico que lhe é exterior, descaracteriza por completo a essência da
obra: [...] a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma (obra) tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua compreensão original. (...) Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente (...). Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu entorno. A ser retirada desse entorno e entrar em circulação, é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas do queimado (SCHLEIERMACHER; ASTHETIK , p. 84. apud GADAMER, 2007, p. 233).
Seguindo essas considerações, nota-se que Schleiermacher está totalmente
comprometido em reconstruir na compreensão a determinação original de uma
obra. Pontualmente ele entende a obra de arte como um código estético datado,
preso a um único tempo - o tempo de sua matriz, de sua gênese. Nessa direção,
enxerga arte como uma expressão superada pelo tempo, ou seja, uma obra datada
que serve de reflexão e compreensão apenas para o momento histórico em que foi
concebida.
A questão do tempo histórico para a compreensão e interpretação de uma
obra tornou-se primordial em Gadamer e, eminentemente, deve ser entendida
como uma contribuição importante pra todos aqueles que pensam a arte no campo
da História. Para o teórico, a distância temporal e a ocasião de representação da
obra, são possibilidades positivas e produtoras da compreensão: “só a distância
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permite que o objeto não seja recebido com a mesma preconcepção de seus
contemporâneos tornando possível questionamento”. Nesse sentido, o modo de ser
da arte não existe em um espaço neutro, atemporal e circunstancialmente
apolítico. Ao contrário disso, a ocasionalidade, a temporalidade são instrumentos
que permitem à obra de arte determinar-se de maneira nova, redimensionar seus
significados e receber outras interpretações. Para Gadamer, [...] é incontestável que a arte jamais é passado, mas consegue superar a distancia dos tempos através da presença do seu próprio sentido. Assim, parece que a partir de um duplo ponto de vista o exemplo da arte nos mostra um caso privilegiado de compreensão. A arte não é mero objeto da consciência histórica e, no entanto a sua compreensão implica sempre uma mediação histórica. (...) se sabemos e reconhecemos que a obra de arte não é um objeto a-temporal da vivência estética, mas pertence a um mundo e somente este poderá determinar plenamente o seu significado, parece que devemos concluir que o verdadeiro significado da obra de arte só pode ser compreendido a partir desse “mundo”, portanto, principalmente a partir de sua origem e de seu surgimento (GADAMER, 2007, p. 232-233)
As considerações de Hans-Georg Gadamer visivelmente aproximam dos
fundamentos teóricos e metodológicos em que se organiza o conhecimento no
campo da história. Assim, aos olhos do historiador de ofício, para quem as
evidências devem ser questionadas e indagadas, toda arte é política e traz no seu
âmago as lutas políticas de uma época. Por isso nenhuma obra de arte é datada. Ao
lidar com fontes artísticas, sejam elas “engajadas” ou “não engajadas”, torna-se
essencialmente importante atualizá-las, redimensioná-las de acordo com seu
momento de produção e com os interesses do presente; acima de tudo criar novas
tentativas de interpretação1.
1 A idéia de uma obra de arte datada, cujos códigos estéticos são delimitados pela circunstância temporal da época de sua produção, constantemente visita a historiografia do teatro brasileiro. Em 1960/1970 vários espetáculos foram considerados obras datadas pelo fato de apresentarem um forte conteúdo político. Entre tantos, mais uma vez, estão as produções da Companhia de Teatro Arena de São Paulo, em especial os musicais Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes. A peça Arena Conta Tiradentes (1967) é um texto polêmico, cujo enredo aponta para uma visão essencialmente oficial da Inconfidência Mineira. No espetáculo, Tiradentes é um revolucionário destemido, um homem a serviço da “revolução” e da liberdade. Os demais inconfidentes se apresentam como intelectuais “fracos”, sem posicionamento político, estão presos aos interesses de sua classe. Assim, Tiradentes se apresenta como o grande “herói”, o homem destemido e forte da política brasileira. A crítica especializada do teatro brasileiro é unânime em apresentar Arena Conta Tiradentes como uma obra datada e, por isso, uma obra didática, esquemática, a serviço da esquerda brasileira, em especial do Partido Comunista Brasileiro. Nessa crítica, em nenhum momento o texto foi articulado com o seu momento histórico, em nenhuma análise seus símbolos ou códigos de representação foram decifrados, o que permitiria o resgate de sua historicidade. É preciso, sobretudo, pensar a
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Em Verdade e Método, mais uma vez Gadamer chama atenção do leitor para
uma série de questões importantes que devem ser levadas em conta no momento
de interpretação de uma obra. A primeira delas é que o intérprete não deve
estabelecer o exercício de compreensão partindo das simples, corriqueiras e
arbitrarias opiniões do cotidiano. Compreender é uma expressão primordial do
conhecimento por isso não pode ser calcada em vícios e hábitos vulgares da linguagem: Quem busca compreender está exposto a erros de opiniões previas que não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que podem ser confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” a não ser a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que é que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas se não o fato de que no processo de sua execução acabam sendo aniquiladas? A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da opinião previa que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez (GADAMER, 2007, p. 356).
Gadamer deixa claro, então, que a interpretação é um ato de recriação do
intérprete, mas esse recriar deve-se configurar necessariamente como
compreensão e conhecimento. Diante disso, torna-se falacioso interpretar, recriar
imagens, decifrar os símbolos da arte, os códigos do texto a partir de noções
pautadas no senso comum, em explicações rasteiras com fundamentos
essencialmente fortuitos. A consciência hermenêutica de Gadamer indica que uma
forma eficaz de compreensão é devolver a obra ao seu tempo, preservar-lhe a
originalidade da linguagem, dos símbolos que lhes são peculiares.
Necessariamente, “quem está disposto a compreender deve estar disposto a deixar
que este lhe diga alguma coisa” (GADAMER, 2007, p. 358). Isso converge para a
obra teatral no interior da luta política de seu tempo, como instrumento de resistência, como representação dos inquietantes momentos que tanto a esquerda quanto seus militantes e intelectuais estavam passando diante da perplexidade e surpresa do Golpe. Para maiores informações, consultar: OLIVEIRA, Sírley Cristina. A Ditadura Militar (1964-1985) à Luz da Inconfidência Mineira nos Palcos Brasileiros: Em Cena Arena Conta Tiradentes (1967) e As Confrarias (1969) Dissertação de Mestrado. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2003, 224 p. Os limites da historiografia teatral brasileira e as restrições à idéia de uma obra datada serviram de objeto de estudo e questionamento para a historiadora Rosangela Patriota em duas importantes obras: PATRIOTA, Rosangela. Vianinha- um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999. _____. A Crítica de Um Teatro Crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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seguinte questão: o intérprete deve estar acima de tudo disposto a reconhecer a
alteridade do texto e da obra de arte.
Contudo, estabelecer limites para os fundamentos do senso comum no
momento de compreensão do intérprete não significa que o teórico despreze os
aspectos “lúdicos” e “fantasiosos” do conhecimento. Ao contrário, a premissa maior
do seu pensamento é romper com os pressupostos dogmáticos da ciência e com a
idéia absoluta e auto-explicativa da razão. Gadamer deposita profunda confiança
nas manifestações advindas da tradição – ritos, mitos, fantasias, expressões
espontâneas da natureza humana, elas são essenciais para a compreensão e
interpretação numa perspectiva hermenêutica. Assim, “essas considerações nos
levam a indagar se na hermenêutica das ciências do espírito não devemos
restabelecer de modo fundamental o direito do elemento da tradição” (GADAMER,
2007, p. 374).
Todas as ponderações feitas até então acerca do pensamento de Hans-Georg
Gadamer permitem identificar que o filósofo está o tempo todo apontando
restrições aos pressupostos teóricos, filosóficos e metodológicos da tradição
hermenêutica, especificamente dos românticos que aqui podem ser amplamente
representados pelas figuras de Wilhelm Dilthey e Schleiermacher. Sendo assim, ao
defender que a experiência estética de uma obra artística se materializa pelo olhar
do intérprete, pelas sensações e sentimentos do apreciador, pelas ações advindas
das tradições, Gadamer está visivelmente se opondo às premissas cultuadas pela
estética do gênio.
Na concepção da hermenêutica romântica, o gênio se apresenta como um
indivíduo cujo poder de criação ultrapassa a normalidade. Exageradamente, ele
carrega um talento especial e uma aguçada capacidade para a originalidade. Sua
obra é, portanto, esplendorosa, exemplar, representa uma grandeza universal,
absoluta, portanto, clássica. O gênio se configura, então, como um indivíduo modelo
e deve ser constantemente imitado pela capacidade intelectual que apresenta e
pelo tom magistral, extraordinário e vitorioso das obras que cria.
Mas a produção artística do gênio acompanha a sua excentricidade, suas
criações não estabelecem um diálogo profícuo com a realidade, pois, ele se atém a
um distanciamento permanente com as pessoas e com o mundo que lhe pertence.
Criteriosamente, o gênio é preso ao formalismo, ao dogmatismo, às estruturas
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estéticas fechadas e aos elementos conceituais, tudo isso em nome do “belo”, da
“perfeição” e do “espetáculo” que deve ser a arte. Nesse sentido, o gênio entende a
arte como um processo de criação meramente individual, sua essência e existência
estão intimamente ligados à ação exclusiva daquele que a criou1.
Assim, para além da crítica da estética do gênio, Gadamer se opõe o modo
exageradamente individualista, idealista e abstrata de conceber a obra de arte.
Existe uma cadeia de criadores que vai além da visão limitada do seu autor, “o
artista que cria uma obra não é o seu intérprete qualificado” (GADAMER, 2007, p.
264). Porém, a teoria da produção genial - cujo expoente maior é Schleiermacher -
extinguiu por completo a diferença entre intérprete e autor, notadamente, ela
legitimou a equiparação de ambos, na medida em que “o que se deve compreender
não é obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a atenção inconsciente do
autor” (GADAMER, 2007, p. 374). O que está em questão é a defesa explícita de um
comportamento divinatório por parte do intérprete, ou seja, ele deve adentrar ao
máximo a constituição completa do seu escritor, percorrer o decurso interno da
feitura da obra e captar a sua originalidade. Gadamer considera esse processo
ilegítimo na medida em que o intérprete se torna um simples reformulador do ato
criador, [...] a compreensão é, pois, uma reprodução referida à produção original, um reconhecer do conhecido, uma reconstrução que parte do momento vivo da concepção, da ‘decisão germinal’ como ponto de partida da composição. (GADAMER, 2007, p. 257-258).
Seguindo essa direção, o modo de ser da arte torna-se essencialmente
comprometido, pois ela não é experimentada pelas condições que lhes são
exteriores. O valor da arte não pode ser reduzido a uma visão intimista, ligada
somente às limitações psíquicas e emocionais do seu criador ou a uma função
meramente pedagógica e compensatória. Ela carrega valores históricos, é a
expressão máxima do conhecimento e, necessariamente, precisa ser inserida na
problemática histórica do seu tempo. 1 Torna-se importante ponderar neste momento que o esforço intelectual, a excentricidade e a originalidade do artista não são inferiores ou menos verdadeiros se lhe tirarmos a denominação de gênio. Isso não sugere colocar em questão a capacidade de genialidade que alguns artistas realmente apresentam no processo de criação de suas obras. O que precisa ser considerado é que a arte produzida pelo “gênio” não pode ser entendida ou apreciada como uma manifestação “sacralizada”, “intocável”, “absoluta”, um produto exclusivo do seu criador. Num processo de criação faz-se necessário reconhecer o papel dos envolvidos na arte do criar, reconhecer a dedicação individual e coletiva de acordo com a arte considerada.
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Com esta perspectiva, torna-se falacioso reduzir a arte a elementos
meramente conceituais e formais da linguagem, uma vez que a arte carrega de
forma bastante explícita uma intencionalidade na sua criação. Essa
intencionalidade, que por sua vez não é controlada e nem medida, escapa à rigidez
do método. A intencionalidade existe, principalmente, para expressar o ser de
determinada maneira e também para revelar as nuanças de um ser que não está
necessariamente à disposição de um discurso eminentemente conceitual.
Diante dessas considerações, observa-se que um dos pontos altos do
pensamento gadameriano consiste no posicionamento essencialmente dialético
frente ao conhecimento. Hans-Georg Gadamer acredita que a obra sujeita a
apreciação, interpretação do leitor/espectador necessita sumariamente que seu
intérprete lhe formule perguntas: “é preciso então que nos aprofundemos na
essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de
realização da experiência hermenêutica” (GADAMER, 2007, p. 473).
O autor acredita em uma abordagem dialógica da obra, cuja unidade de
compreensão e explicação surge na medida em que o intérprete entra em cena, ou
seja, no momento em que participa ativamente do jogo da arte1. Entrar em jogo
significa para Gadamer dialogar com o texto, com a obra, decifrar seus códigos,
estabelecer nexos de sentido, perceber, principalmente, que a partir do diálogo,
das perguntas, das indagações haverá sempre espaços vazios, as lacunas da
compreensão. Assim, o princípio hermenêutico gadameriano de conversão está
aberto às novas possibilidades e não se prende à rigidez das “opiniões”: A arte de perguntar não é a arte de esquivar-se das opiniões; ela pressupõe essa liberdade. (...) A arte da dialética não é arte de ganhar todo mundo na argumentação. Ao contrário, é perfeitamente possível que aquele que é perito na arte dialética, isto é, na arte de perguntar e buscar a verdade apareça aos olhos de seus ouvintes como o menos indicado a argumentar. A dialética, como arte de perguntar, só pode se manter se aquele que sabe perguntar é capaz de manter de pé suas perguntas, isto é, a orientação para o aberto. A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, que é a arte de pensar.
1 Torna-se importante informar que o pensamento de Gadamer sofreu uma influência direta dos pensadores da Antiguidade Clássica, especialmente de Sócrates, cuja, idéia da compreensão dialógica foi inspirada no método socrático, que tinha como propósito interrogar seus interlocutores sobre aquilo que pensavam saber. No decorrer do diálogo (pergunta/resposta) Sócrates apontava as contradições, os problemas de suas argumentações questionando então a arrogância e presunção que os mesmos possuíam frente ao saber.
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Chama-se dialética porque é a arte de conduzir uma autentica conversação (GADAMER, 2007, p. 479).
A partir dessas discussões, nota-se, então, que os fundamentos teóricos de
Gadamer tiveram um papel primordial na elaboração da teoria da estética da
recepção elaborada a partir da década de 1960. Atualmente pode-se dizer que a
estética da recepção se configura como uma Escola de Teoria Literária, cuja origem
está intimamente ligada a um grupo de críticos da Universidade de Konstanz, que
divulgava suas teses na revista Poética e Hermenêutica, especificamente a partir de
1964.
Seus maiores e mais expressivos pensadores foram Hans Robert Jauss, com
a obra A História da Literatura como Provocação à Ciência Literária, e Wolfgang
Iser, a partir da publicação de Estrutura Apelativa dos Textos. Segundo Luiz Costa
Lima no prefácio à segunda edição da obra A Literatura e o Leitor, esses autores
tiveram a perspectiva de romper com a crítica imanentista, que enxerga a obra
apenas na sua fase textual, desprezando os elementos históricos e as considerações
interpretativas do leitor (LIMA, 2002).
Com esta concepção, a obra e o leitor faziam parte de um circulo fechado,
sujeito às normas e a representatividade máxima do autor. Tudo isso em nome da
perfeição estética da obra. A estética da recepção aparece, então, como uma opção
intelectual contrária aos aspectos formalistas, mecanicistas e burocratizantes de
uma interpretação eminentemente tradicional.
Diante dessas circunstâncias, as considerações de Jauss tornam-se
pertinentes, pois entende que existe uma vida eminentemente histórica da obra, e
que esta vida só se materializa com a participação ativa de seu destinatário, ou
seja, o intérprete, o receptor. Contudo, pondera que a intervenção do
leitor/intérprete não pode ser entendida como um simples complemento à obra.
Uma concepção significativa do autor e que visivelmente se aproxima das
reflexões de Gadamer é a de experiência estética. Para ele a experiência estética de
uma obra se manifesta como atividade produtora, receptiva e comunicativa, ou
seja, a partir de seu efeito sobre o leitor/espectador. Sendo assim, defende a idéia
da experiência estética que valorize a interpretação e a capacidade de comunicação
da obra, o que leva a três categorias importantes da estética: a poesis (que sugere o
momento de criação da arte, o estar no mundo), Aisthesis (prazer da recepção,
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percepção da arte, o prazer estético) e Katharsis (o efeito da arte que leva a tomada
de atitude, à transformação). Nesta direção, Jauss considera, então, a estética da
recepção como um processo dinâmico, livre entre autor, obra e público (JAUSS,
2002).
Assim, como Jauss, o teórico Wolfgang Iser valoriza a imaginação criativa do
leitor. Para ele o intérprete não é um simples adendo à obra, o texto despertará no
leitor “competente” uma interpretação a partir do seu próprio repertório. Por sua
vez, esse repertório é constituído pelas circunstancias históricas da vida social,
política e cultural desse leitor.
Ao lado disso, o texto é, para Iser, um ato intencional do seu autor no qual
este intervém em um mundo que existe. Enquanto intencional visa a algo que não é
acessível à consciência. Portanto, o texto é constituído por um mundo que ainda há
de ser decifrado, mas que é criado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo, criá-lo, e
por que não interpretá-lo (ISER, 2002).
Nesta perspectiva, o significado do texto não está marcado dentro dele
próprio, mas, sim, no fato de liberar a linguagem, o sentido, as sensações que estão
no interior do intérprete. Desse modo, nenhuma interpretação é absoluta, pois, a
partir da ação intérprete sobre a obra, vão se constituindo os espaços vazios, as
lacunas que necessariamente são ocupadas pela fruição interpretativa do
leitor/espectador.
Outro ponto importante que aproxima Iser de Gadamer, é que a obra de
arte, em especial a literária não é mimética, isto é, não é um simples reflexo, uma
cópia expressivamente representativa da vida. A literatura, a linguagem artística
permite um distanciamento que deixa reconhecer as fragilidades e os impasses da
dinâmica social dos homens.
À luz de todas essas discussões, uma questão importante se coloca: é
eminentemente inviável trabalhar no campo história sem transitar pelos princípios
filosóficos e metodológicos da hermenêutica. Isso, porque estamos constantemente
trabalhando não só com os valores simbólicos do passado, mas também com as
possibilidades da interpretação. O documento é, para o historiador, o locus
privilegiado dos vestígios humanos, das tradições, dos ritos, das experiências e das
vivências humanas. O tempo é, essencialmente, a matéria-prima maior do oficio do
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historiador, pois, determina os possíveis procedimentos de compreensão e
interpretação da realidade.
Nesse sentido, a relação interdisciplinar entre Hermenêutica e História
permite um exercício intelectual mediado pela distância temporal, o que
necessariamente nos coloca na posição de uma procura constante: o tempo nos
separa de outras expressões da vida, portanto, estamos lidando o tempo todo com o
estranho, o desconhecido, o obscuro, enfim com as pistas. Circunstancialmente,
torna-se impossível trabalhar com a idéia de totalidade, do “dar conta de tudo”.
Desse modo, História e Hermenêutica – ainda que se reconheçam as
especificidades e particularidades de cada uma - caminham juntas no
desenvolvimento da consciência de que a interpretação/compreensão nunca é
finita, sempre existirão lacunas, vazios a serem preenchidos pela vivência, pela
experiência estética do objeto/arte, enfim, pelo olhar atento do intérprete, ou seja,
do historiador.
Oportunamente, essas questões vêm ao encontro de uma série de princípios
que há muito tempo são latentes em nosso ofício de historiador, a de que as formas
de escrever ou abordar um tema em história são variadas, os temas de
investigação são diferentes e as conclusões a que chegamos são na maioria das
vezes controversas. Isso mostra que não existe uma fronteira rígida, acabada para
a História. Ao contrário, ela está em todo lugar, todos os dias incorpora várias
percepções do conhecimento, volta-se para uma produção diversa, interdisciplinar
e rica em possibilidades.
Pensando hermeneuticamente, isso deságua na seguinte questão: as
interpretações podem ser constantemente refeitas; a compreensão é uma
expressão do pensamento humano, portanto, está sujeita às averiguações, às
dúvidas e às indagações de outrens. E o intérprete? Este é sempre o provocador,
aquele faz emergir os sentidos, que faz surgir a História.
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História e Literatura: Algumas Considerações
Dr. Valdeci Rezende Borges Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão
E-mail: [email protected]
RESUMO Busca-se, neste texto, tecer algumas reflexões acerca da relação entre a história, como processo social e como disciplina, e a literatura, como uma forma de expressão artística da sociedade possuidora de historicidade e como fonte documental para a produção do conhecimento histórico. Apontam-se ainda algumas questões voltadas para a construção de uma metodologia de abordagem desse tipo específico de documento na pesquisa histórica.
Palavras-Chave: história, literatura, fonte documental, metodologia.
ABSTRACT Seeks in this text to make some reflections on the relationship between history, as a social process and as a discipline, and literature as a form of artistic expression in society possessing historical and documentary source for the production of historical knowledge. It is pointed out a few issues facing for the construction of a methodological approach of this particular document in historical research. Keywords: history, literature, documentary sources, methodology.
Partindo do pressuposto de que a história como conhecimento é sempre
uma representação do passado e que toda fonte documental para produzir esse
conhecimento também o é, procuraremos apresentar aqui algumas reflexões
acerca das relações estabelecidas entre a história e a literatura e certas
ponderações teóricas e metodológicas sobre as possibilidades de emprego das
fontes literárias na pesquisa histórica.
Uma das vertentes da história cultural que tem recebido grande atenção no
momento atual é aquela que se debruça sobre os diversos tipos de textos para
pensar sua escrita, linguagem e leitura. Para Duby, a história cultural estuda,
dentro de um contexto social, os “mecanismos de produção dos objetos culturais”,
entendidos em sentido amplo e não apenas obras, literárias ou não, reconhecidas
ou obscuras, e autores canônicos. Ela enfoca os mecanismos de produção dos
objetos culturais, como suas intencionalidades, a dimensão estética, a questão da
intertextualidade ou do diálogo que um texto estabelece com outro, dentre
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aspectos diversos, como seus mecanismos de recepção, a qual pode ser pensada
como uma forma de produção de sentidos. Isto, porque, de acordo com Chartier
(1990, p. 27), o termo “apropriação” é visto como “a maneira de usar os produtos
culturais” e de “re-escritura”, que ocorre na diferença e nas transformações
sofridas pelos textos quando adaptados às necessidades e expectativas do leitor.
Pensando que as narrativas, sejam históricas ou literárias, ou outras,
constroem uma representação acerca da realidade, procura-se compreender a
produção e a recepção dos textos, entendendo que a escrita, a linguagem e a leitura
são indivisíveis e estão contidas no texto, que é uma instância intermediária entre
o produtor e o receptor, articuladora da comunicação e da veiculação das
representações. Desta forma, há uma tríade a considerar na elaboração do
conhecimento histórico, composta pela escrita, o texto e a leitura. No que se refere
à instância da escrita ou da produção do texto, o historiador volta-se para saber
sobre quem fala, de onde fala e que linguagem usa. Já ao enfocar o texto em si, o
que se fala e como se fala são questões indispensáveis. No trato da recepção, visa
abordar a leitura de um determinado receptor/leitor ou de um grupo de
receptores/leitores, tratando das expectativas de quem recebe o texto, de sua
contemplação, ou seu enfrentamento ou resistência a ele (PESAVENTO, 2004, p.
69-70).
No entanto, independente do plano no qual se foca e do tipo de textos, as
considerações de Le Goff (1990, p. 545), sobre o documento como monumento,
“produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que a
detinham”, expressam a necessidade de realização de uma reflexão, por parte do
historiador, sobre as condições históricas dessa produção, abarcando a figura do
produtor, o lugar social de onde se produz, como se produz, as intenções do
produtor, as relações de poder que cercam e atravessam a produção e o produto.
Se todo documento é monumento, cabe ao historiador desvelar como foi
construído, a linguagem utilizada, a finalidade da edificação e as suas
intencionalidades.
Para Chartier (1990, p. 62-3), todo documento, seja ele literário ou de
qualquer outro tipo, é representação do real que se apreende e não se pode
desligar de sua realidade de texto construído pautado em regras próprias de
produção inerentes a cada gênero de escrita, de testemunho que cria “um real” na
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própria “historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita”. Desta
forma, todo tipo de texto possui uma linguagem específica, na qual foi produzido,
própria de um segmento particular de produção, e esta ocorre considerando dadas
regras peculiares ao meio intelectual de onde emerge, ao veículo em que será
veiculada e ao público a que se destina.
Assim, contextualizar o texto com o qual se trabalha é indispensável para
elucidar o lugar em que foi produzido, seu estilo, sua linguagem, a história do
autor, a sociedade que envolve e penetra o escritor e seu texto. A época, a
sociedade, o ambiente social e cultural, as instituições, os campos sociais, as redes
que estabelece com outros textos, as regras de uma determinada prática discursiva
ou literária, as características do gênero de escrita que se inscreve no texto, são
questões que permeiam o texto escrito e constrangem o autor de um texto,
deixando nele suas marcas (BARROS, 2004, p. 137-8)
De tal maneira, as noções de leitura, linguagem, representação, prática,
apropriação, intertextualidade, dialogismo, dentre outras, são importantes para
esse campo do conhecimento histórico, que, segundo Chartier, “tem por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler”. As
representações do mundo social, como práticas intelectuais, dentre elas, as
ficcionais, como as literárias, são sempre marcadas por múltiplos, complexos e
diferenciados interesses sociais, sobretudo, aqueles dos grupos sociais que as
forjam. Daí, ser necessário relacionar os discursos proferidos com a posição social
de quem os produz e de quem os utiliza, visto que as percepções do social não são
neutras; produzem e revelam estratégias e práticas que tendem a impor uma
autoridade, uma hierarquia, um projeto, uma escolha (CHARTIER, 1990, p. 16-7,
28).
Para Bourdieu (1992, p. 183-202), autor que abriu o caminho para pensar
as “práticas” na história e o consumo dos bens simbólicos, a noção de campo
intelectual nos ajuda a elucidar a configuração e a historicidade da produção e da
recepção da obra de um autor, suas ideias e formas estéticas postas em circulação
e inseridas no interior de um sistema de relações socioculturais edificadas
publicamente. Essa noção remete ao lugar de onde fala e em que se insere o autor,
literato ou não, assim como outros escritores que o cercam; lugar circunscrito e
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estruturado ao redor das posições que esses produtores culturais ocupam na
sociedade e no meio intelectual, no qual estabelecem relações entre si e com outros
campos que constituem a vida social; lugar marcado pelos jogos de poder e
vinculado com o campo político.
Portanto, o campo intelectual e cultural se apresenta como diversamente
segmentado, delimitado por posições, hierarquias e disputas por lugares, prestígio
e reconhecimento no interior de um grupo de agentes, bem como em relação a
outros grupos, mediante a consideração de regras e instâncias legitimadoras
específicas, socialmente construídas. Deste modo, esse conceito pressupõe a
procura de conhecer as convenções estabelecidas pelos agentes e produtores
intelectuais, as linguagens empregadas, as localizações e as diferentes posições por
eles ocupadas e defendidas, hegemônicas ou não, tal como ainda as estratégias e
jogos de cada segmento, as polêmicas e os rituais que criaram e implementaram
num processo dinâmico de interdependências (BOURDIEU, 1992, p. 183-202).
Tais questões dizem respeito a aspectos elementares de nosso aparato
básico de instrumentais de trabalho de investigação histórica. Assim, devemos
ficar atentos aos mecanismos de funcionamento da comunicação, do pensamento,
das variadas práticas socioculturais, das visões de mundo e das memórias. Os tipos
de textos, a língua que falamos e na qual escrevemos, a linguagem praticada
socialmente, que organizam a compreensão das experiências sociais, e a linguagem
particular de uma produção, seja literária ou de outros objetos simbólicos, os quais
representam tais experiências e formas de compreensão e interpretação dos seus
significados e sentidos, requerem ser problematizados.
Essas dimensões são mediadoras das experiências e práticas sociais e
possuem historicidade, não sendo fixas e estáveis, nem isoladas de outros campos
sociais, afinal, “nenhuma ilha é uma ilha”, conforme Ginzburg (2004), ao abordar as
trocas literárias entre as ilhas britânicas e o continente europeu, que foram
marcantes na formação da literatura inglesa e na identidade de seu povo, visto que
esta mantém relações, contatos e vínculos com outras línguas, linguagens,
literaturas e culturas inseridos num regime de empréstimos diversos. A esta
questão, dos diálogos e dos cruzamentos que os textos e autores estabelecem
implicitamente com outros, que possibilitam ler em um os outros, a qual Ginzburg
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mostra-se atento e é tão característico da literatura, Kristeva (1988) denomina de
intertextualidade.
No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser
tomada como uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha
excepcional de uma época, pois um produto sociocultural, um fato estético e
histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os
sentimentos, as criações, os pensamentos, as práticas, as inquietações, as
expectativas, as esperanças, os sonhos e as questões diversas que movimentam e
circulam em cada sociedade e tempo histórico.
A literatura registra e expressa aspectos múltiplos do complexo,
diversificado e conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere.
Ela é constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste;
é testemunha efetuada pelo filtro de um olhar, de uma percepção e leitura da
realidade, sendo inscrição, instrumento e proposição de caminhos, de projetos, de
valores, de regras, de atitudes, de formas de sentir... Enquanto tal é registro e
leitura, interpretação, do que existe e proposição do que pode existir, e aponta a
historicidade das experiências de invenção e construção de uma sociedade com
todo seu aparato mental e simbólico.
Sendo a literatura uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o
mundo e o tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos
peculiares de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da
narrativa, ela dialoga com a realidade a que refere de modos múltipos, como a
confirmar o que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá-lo, a
ultrapassar o que há ou mantê-lo. Ela é uma reflexão sobre o que existe e projeção
do que poderá vir a existir; registra e interpreta o presente, reconstrói o passado e
inventa o futuro por meio de uma narrativa pautada no critério de ser verossímil,
da estética clássica, ou nas notações da realidade para produzir uma ilusão de real.
Como tal é uma prova, um registro, uma leitura das dimensões da experiência
social e da invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas sociais, de
modo geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos, de forma particular.
Chartier considera que a distinção entre história e ficção, hoje em dia, tem
se mostrado vacilante. Diferenciação que parece clara e resolvida, se aceitarmos
que a primeira pretende realizar uma representação adequada do real que foi e
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não é mais, e a segunda, em todas as suas formas, “é um discurso que ‘informa’ do
real, mas não pretende abonar-se nele”. No entanto essa distinção tem sido
ofuscada pela “evidenciação da força das representações do passado propostas
pela literatura”, como do teatro dos séculos XVI e XVII, e do romance do século XIX,
que se apoderaram do passado, deslocando para a ficção literária o registro de
fatos e personagens históricos e colocando situações que foram reais ou
apresentadas como tais. Além disso, a literatura se apropria não só do passado,
como também de documentos e das técnicas da disciplina histórica, como o
dispositivo de criar o “efeito de realidade”, abordado por Barthes, como uma
modalidade da “ilusão referencial”, com a multiplicação de notações concretas
destinadas a carregar a ficção de um peso de realidade (CHARTIER, 2009, p. 24-5,
27-8).
Portanto, é indispensável refletir sobre as características específicas das
diversas formas de ficção, das relações particulares que o texto literário, o autor e a
escola, a que se filiam, estabelecem com a realidade e definem a representação que
dela edificam. As formas como autor, escola e gênero de texto literário concebem a
produção artística devem ser buscada em seus caracteres próprios. O discurso
literário manifesto em texto, expresso em prosa ou verso, envolve modalidades de
narrativa com características próprias, inclusive, na sua forma de lidar, captar e
tratar as questões propostas por uma sociedade e por um tempo, como o conto, a
crônica, a novela, o romance, a tragédia, a comédia ou o poema.
Essas narrativas, por sua vez, apresentam-se sob forma de vários gêneros,
como o lírico, o épico e o drama, que são ainda marcados por correntes estéticas,
que determinam tanto as relações da literatura com a realidade, quanto ao seu
estatuto e função, como as escolas literárias. Nesse campo, não podemos perder de
vista ainda os modos por meio dos quais o discurso literário se manifesta, como os
tropos: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia. Até mesmo no campo
específico da narrativa historiográfica, podemos nos deparar com tais figuras da
retórica e da poesia clássica como formas estruturais constituintes dos discursos
em geral, como nos mostra a abordagem de White (1995).
Conforme Chartier (2002), ao tratar de um projeto de história literária, o
qual oferece possibilidades para pensarmos como um historiador pode abordar a
análise de textos literários na perspectiva da história sociocultural à maneira dos
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Annales, o objeto da história literária e da crítica textual “é o processo pelo qual
leitores, espectadores ou ouvintes dão sentido aos textos dos quais se apropriam.” Uma história da literatura é, pois, uma história das diferentes modalidades da apropriação dos textos. Ela deve considerar que o ‘mundo do texto’, usando os termos de Ricoeur, é um mundo de objetos e de perfomances cujos dispositivos e regras permitem e restringem a produção do sentido. Deve considerar paralelamente que ‘o mundo do leitor’ é sempre aquele da ‘comunidade de interpretação’ (segundo a expressão de Stanley Fish) à qual ele pertence e que é definida por um mesmo conjunto de competências, de normas, de usos e de interesses. O porquê da necessidade de uma dupla atenção: à materialidade dos textos, à corporalidade dos leitores (CHARTIER, 2002, p. 255, 257).
Essa definição de um projeto de história literária absorve um campo
intelectual mais vasto, aquele dos estudos culturais, levando em conta que, em
cada configuração social, certos discursos são designados pela distância dos
discursos e práticas comuns e são produzidos e difundidos em espaços sociais
específicos, que têm lugares e objetivos próprios e suas hierarquias. Assim, cabe à
investigação histórica realizar uma historicização da especificidade da literatura,
reconhecer as fronteiras diversas, conforme as épocas e lugares, entre o que é
literatura e o que não é; atentar à variação dos critérios definidores da
“literalidade” em diferentes períodos; desvelar os dispositivos que constituem os
repertórios das obras canônicas; os traços deixados nas próprias obras pela
“economia da escritura” na qual foram produzidas (as diversas restrições
exercidas sobre elas), ou as categorias que construíram a “instituição literária”,
como as noções de autor, de obra, de livro, de escritura, de copyright etc.
(CHARTIER, 2002, p. 258).
Para Pesavento (2004, p. 83), o historiador deve tomar a literatura a partir
do tempo de sua escrita, do autor e da época em que foi produzida, tanto se o texto
falar de sua época, de uma passada ou futura. Bosi (1992, p. 176) também chama
nossa atenção para nos atermos à busca da compreensão mais do tempo em que a
obra foi forjada do que aquele que por vez se refere. Candido (1985) aponta que a
abordagem do texto literário deve articular tanto o intrínseco da obra, logo, seu
conteúdo, que engloba suas temáticas, tramas e dimensões formais, estéticas,
quanto o extrínseco, referindo-se ao contexto social e temporal em que foi escrita.
No contexto do tempo e do lugar, no emaranhado das relações históricas, sociais e
culturais, no qual o texto literário foi elaborado, ele revela sua estética, seu estilo,
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sua linguagem, sua escola ou movimento, seus significados, os quais são criações
coletivas e possuem sentidos, aceitação ou rejeição, nesse ambiente e tempo.
Logo, utilizar a literatura como documento a para produção do
conhecimento histórico requer também pensar sua estética, o cânone literário
pertinente a esse tipo de escrita e que foi considerado para sua avaliação, pois o
valor e a importância de um texto literário não são absolutos, podendo o
historiador recorrer tanto aos escritores apreciados e reconhecidos como grandes
pelo grupo de agentes intelectuais, quanto àqueles considerados como menores e
medíocres. Reconhecer as regras e as convenções estabelecidas pelos agentes e
produtores intelectuais, as quais são elementares no processo de reconhecimento
do produtor e do produto, dando-lhes prestígio ou não dentro campo intelectual e
da cultura, explicita o estatuto do texto e ilumina sobre as aproximações e os
distanciamentos que estes possuem em relação à realidade a que se referem e
representam (PESAVENTO, 2004, p. 84; BOURDIEU, 1992, p. 183-202).
Chartier (2002) pondera que a historicização da especificidade da literatura
tem por corolário a interrogação sobre as relações que as obras mantêm com o
mundo social, afastando-se da tentação, que foi grande entre os historiadores, de
reduzir os textos a um mero estatuto documental. Portanto, deve-se trabalhar
sobre as variações entre as representações literárias e as realidades sociais que
elas representam, deslocando-as sobre o registro da ficção e da fábula. Variações entre a significação e a interpretação corretas, tais como a fixam a escritura, o comentário ou a censura, e as apropriações plurais que, sempre inventam, deslocam, subvertem. Variações, enfim, entre as diversas formas de inscrição, de transmissão e de recepção das obras (CHARTIER, 2002, p. 258-9).
Defendendo a construção de um novo espaço intelectual que obrigue a
inscrever as obras nos sistemas de restrições que limitam, mas que também
tornam possíveis sua produção e sua compreensão, Chartier argumenta:
Produzidas em uma ordem específica, as obras escapam dela e ganham existência sendo investidas pelas significações que lhe atribuem, por vezes na longa duração, seus diferentes públicos. Articular a diferença que funda (diversamente) a especificidade da literatura e as dependências (múltiplas) que a inscrevem no mundo social: esta é, a meu ver, a melhor formulação do necessário encontro entre a história da literatura e a história cultural (CHARTIER, 2002, p. 259).
A abordagem, contudo, deve buscar compreender como a recepção
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particular e inventiva de um leitor singular, de um ouvinte ou espectador, encerra-
se numa série de determinações complexas e relacionadas – os efeitos de sentido
visados pelos próprios dispositivos da escritura; os usos e apropriações impostos
pelas formas de representação do texto; as competências, as categorias e as
convenções que comandam a relação de cada comunidade com os diferentes
discursos. Analisar em conjunto essas diferentes determinações e reintroduzir no
questionamento a historicidade é voltar-se para a dimensão necessariamente
“literária” de sua escritura (CHARTIER, 2002, p. 259).
O historiador, ao lidar com esse tipo de documento específico, precisa estar
atento a essas dimensões da representação construída, observando como o literato
alia as regras de escritas, as restrições, os critérios e as convenções, o estético e o
criativo à elaboração de suas reflexões sobre a realidade que o cerca e aquela que
representa. O conteúdo, como temas e questões abordadas e ainda como forma,
requer ser problematizado e relacionado à dimensão temporal, buscando perceber
o texto como campo de tensões e contradições (SANTOS, 2007, p. 96, 105).
Portanto, recorrer à literatura para a produção do conhecimento histórico
pressupõe uma reflexão sobre ela, problematizá-la e historicizá-la. Para Chalhoub e
Pereira (1998, p.7), a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto, crônica, poesia ou romance -, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo.
Se todo documento, seja ele literário ou de fonte oficial, é uma construção
que se pauta num sistema de regras próprias de escrita, peculiares a cada gênero
de texto e específicas ao lugar socioprofissional de onde seu autor o produz, e é a
partir daí que se cria um real em conformidade com a historicidade dessa
produção e à intencionalidade dessa escrita, tanto o literato quanto a literatura, a
linguagem e a sociedade, estão aprisionados nas teias da cultura e do tempo,
ocorrendo entre tais instâncias influências recíprocas diversas.
As representações do mundo social, de uma realidade, tanto objetiva quanto
subjetiva, de um tempo e lugar, resultam do entrecruzamento de aspectos
individuais e coletivos. O literato não cria nada a partir do nada. Não se faz
literatura sem contato com a sociedade, a cultura e a história. De acordo com
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Candido (1985, p. 24), a criatividade, a imaginação e a originalidade, partem das
condições reais do tempo e do lugar, as quais, ressaltamos, podem ser concretas ou
não, da existência social e de suas experiências. Para Davi (2007, p. 12), o literato
insere-se na realidade sociocultural do tempo em que vive, do qual faz parte, com
ela dialogando ao produzir sua representação, por meio de sua vivência, de seus
interesses e projetos, mas não é simples refletor dos acontecimentos sociais; ele os
transforma e combina, cria e devolve o produzido à sociedade.
A literatura, como testemunho histórico, é fruto de um processo social e
apresenta propriedades específicas que precisam ser interrogadas e analisadas,
como qualquer outro documento. Resta ao historiador descobrir, ponderar e
detalhar sobre as condições de sua produção, as intenções do autor, a forma como
ele realiza sua representação e a relação que esta estabelece com o real, as
interpretações ou leituras que suscita sua intervenção como autor, as
características específicas da obra e do escritor, da escola em que este concebe seu
texto e em que estilo, inserindo-os num processo histórico determinado, em um
tempo e lugar, pois “são acontecimentos datados, historicamente condicionados,
valem pelo que expressam aos contemporâneos” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p.
9).
Ginzburg, ao tratar da forma como a pesquisa histórica moderna se formou,
seus procedimentos em relação aos modelos clássicos e as sugestões recolhidas de
outros gêneros de produção e textos, dentre eles, os de ficção, na busca de se
afirmar como modo de conhecer a realidade, mostra como a narração histórica
estabelece relações com a literatura imaginativa, a grande prosa de ficção,
inserido-as num regime de empréstimos e desafios entre si. Para ele, entre os
testemunhos, narrativos ou não, e a realidade testemunhada, existe uma relação
que deve ser repetidamente analisada pelo historiador e, entre as narrativas
ficcionais e as históricas, há uma “contenda pela representação da realidade”, “um
conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos”, o qual deve ser
examinado (GINZBURG, 2007, p. 8, 9).
Partindo das reflexões metodológicas de Bloch sobre os testemunhos
voluntários e daquilo que neles interessava aos historiadores atuais, não os dados
concretos, mas a mentalidade de quem os escreveu, a inteligência, na busca de
fazer valer os testemunhos involuntários e o núcleo involuntário e, mais profundo,
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dos voluntários, Ginzburg contrapõe-se ao ataque realizado ao caráter referencial
dos textos. Defende que “escavando os meandros dos textos, contra as intenções de
quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”. Assim, nos
romances medievais, podemos detectar usos e costumes, isolando, na ficção,
fragmentos de verdade (GINZBURG, 2007, p. 10-2).
Com essa estratégia de leitura, não muito diferente da esboçada por Bloch,
Auerbach analisou trechos de Voltaire e Stendhal, não como documentos históricos
e na perspectiva de seus autores e suas intenções, mas como textos entranhados de
história, dos quais utilizou os rastros deixados mais ou menos involuntariamente.
“A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou
ficcional, e assim por diante.” Ler os testemunhos históricos contra as intenções de
quem os produziu, assim como os textos literários que pretendem se constituir
numa realidade autônoma, significa supor que todo texto possui elementos
incontrolados, algo de opaco comparável às percepções que o olhar registra sem
entender (GINZBURG, 2007, p. 12).
Dessa forma, devemos centrar atenção no funcionamento da linguagem
literária, na pluralidade e na instabilidade do texto, na busca de recuperar os
diferentes significados e as multiplicidades de sentidos, pois não há um sentido
fixo, congelado, estabelecido da obra. Mas é fundamental evitar o caminho da
crítica e da história literária tradicional, que buscava o sentido do texto em si e se
distanciava da prática sócio-histórica. A ideia de um texto não fechado, da
instabilidade de sentido, da pluralidade interna da linguagem, aponta que há textos
abertos a reapropriações múltiplas, que permitem construções diversas de sentido.
Esta questão não pode ser remetida unicamente aos aspectos fundamentais como
as instituições, centros de ensino, livrarias, editoras, nem aos seus mecanismos de
escolha e seleção, determinantes do ato de ignorar ou rejeitar um texto, próprios
da construção do cânon em sua dimensão sócio-histórica. Deve-se analisar por que
se estudam uns autores e outros não; por que há autores que são frequentemente
encenados e outros abandonados; por que, nas estratégias dos editores de
publicação, alguns textos são conservados e outros descartados. No entanto há
uma dimensão que resiste a semelhante estudo que é algo próprio do
funcionamento linguístico das obras, que permite ou que cancela as
reapropriações em longa duração. O entrecruzamento dos enfoques sócio-
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históricos e das proposições estéticas ou formalistas é uma maneira também de
evitar um sociologismo redutor do processo de construção do cânon, pois essa visão remete à estrutura interna das obras e ao funcionamento da linguagem, e não unicamente ao dispositivos externos como a escola, a crítica literária, o mercado do livro, etc., que operaram para estabelecer esta seleção canônica (CHARTIER, 2001, p. 105-6).
Uma leitura entrecruzada pelos aspectos sócio-históricos e estéticos e a
contrapelo, como Benjamim sugeriu, contra as intenções de quem produziu os
textos (GINZBURG, 2007, p. 11), requer uma reflexão detida sobre as
intencionalidades neles depositadas por seus autores. Só sabendo das intenções do
autor podemos ler sua obra em sentido inverso ao que ele desejou. A literatura,
como um registro social, uma reflexão e leitura sobre a cultura e suas questões,
uma agente que institui um imaginário e uma memória, um produto de criação que
envolve memórias e a elas recorre como matéria ficcional, é permeada de
intencionalidades. Ela detém um valor temporal, histórico, o qual se pode desvelar
por meio um processo de historicização, ou seja, de sua inserção no tempo e na
sociedade em que foi produzida, clareando a relação de trocas recíprocas, de
contatos e interações entre essas dimensões, suas aproximações e seus
distanciamentos internos e externos.
A literatura, como índice e instrumento das “relações de força” (GINZBURG,
2002) presentes numa sociedade, da maneira como seu autor se relaciona com elas
e nelas se insere, como prática intelectual, constrói certa história da cultura e do
social, institui uma memória em prejuízo de outras, podendo ser considerada como
um dos “lugares de memória” de uma coletividade, pois, conforme Nora (1993, p.
9), a memória “se enraíza no concreto, no gesto, na imagem, no objeto”. Recorrer a
esse tipo de documento possibilita-nos acessar um imaginário social, pensado
tanto como qualquer coisa imaginada quanto como um conjunto de imagens
variadas acerca da existência em sociedade, colhendo informações, muitas vezes,
não encontradas em outras fontes ou perdidas por tantas, como aquelas referentes
às formas de agir e comportar, de pensar e sonhar, de sentir e relacionar etc.
próprias de um tempo, de um lugar e de um grupo social.
Meio a esse complexo caleidoscópio de imagens e representações, cabe-nos
reunir e aproximar informações, às vezes, dispersas, fragmentadas e afastadas,
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interpondo-as e transpondo-as ao buscar inteirar-se de um mundo que foi e não é
mais e as suas circunstancialidades, na procura de assimilar, digerir e interpretar
os sinais que se dão a ler, com o objetivo de reconstruir uma paisagem cultural e
atingir os significados tecidos e inscritos na cultura, tal como Geertz (1989) a
define, como código público socialmente estabelecido.
No entanto lidar com as manifestações literárias, que sempre apresentam
traços heterogêneos, caracteres múltiplos e contraditórios, exige um exame
minucioso de cada autor e dos pormenores que particularizam cada obra. Assim, as
proposições gerais devem dar lugar a estudos específicos, pois as reflexões
teóricas, os estudos generalizantes não podem escapar do status de hipóteses a
serem testadas e da necessidade de examinar os casos particulares. Investigação
para perceber as especificidades e rever leituras consagradas e consolidadas, que
formam camadas sedimentares de cultura sobre um tema, autor e obra, não raro,
marcadas por lacunas, distorções, subversões e reducionismos.
O historiador da cultura, conforme Paris (1988, p. 85), ao trabalhar com a
documentação literária, depara-se com a questão de que quase nunca é o primeiro
leitor do documento, tendo de abordá-lo em diálogo com uma escala, um sistema
de referências, uma história literária, que já classificou, hierarquizou as escritas, as
obras e os autores. História que, geralmente, realizou tais operações deixando
lacunas, dilacerando os significados, deslocando e subvertendo as significações,
cabendo a um novo olhar sobre estes criar novas imagens e inverter outras
(GINZBURG, 2002, p. 115).
O distanciamento e o estranhamento, como formas de desvelar feições
estranhas e opacas na leitura e tratamento de uma documentação já familiar,
possibilitam retificar ideias, imagens e significados atribuídos, vistos como
equívocos, afastando interpretações, por vezes, consideradas impróprias. Atentar
às lacunas a serem decifradas e recorrer à postura de estranhamento como um
procedimento cognitivo requer tentar apresentar as coisas como se vistas pela
primeira vez e como meio e expediente para revelar feições distorcidas ou ocultas
na leitura de uma documentação conhecida, abrindo caminhos para retificar
interpretações e sentidos avaliados como impróprios, mesmo supondo os
elementos incontrolados da obra e sua instabilidade, por distarem daquilo que a
fonte apresenta e oferece (GINZBURG, 2001, p. 22, 32, 34, 41).
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Se a literatura, como outros monumentos e arquivos humanos, guarda as
questões de um tempo e as marcas de um povo e de um lugar, lidar com tais fontes
requer a construção de instrumentos afinados capazes de lançar luz àquilo que
traz em seu bojo. Se muitos de seus leitores realizaram leituras apressadas,
estreitas e indevidas, às vezes, por não se deterem devidamente às fontes e aos
seus delineamentos, deturpando traços, realçando uns e apagando outros com
toques imperfeitos e produzindo corruptelas, torna-se necessário restaurar suas
feições. Nessa busca de refazer o percurso interpretativo, cabe espoar as diversas
camadas de sedimentos e raspar as crostas de análises que lhe embotam a cor
original ou desfiguram o desenho primitivo, fazendo aparecer os traços encobertos
e as possíveis descontinuidades advindas das linhas que foram apagadas em
muitas leituras anteriores, mas que podem ser recompostas, suprimindo lacunas e
restabelecendo, em grande parte, os traços propostos pelo autor, ainda que para
lê-los contra suas intenções.
Portanto, a literatura, seja ela expressa nos gêneros crônica, conto ou
romance, apresenta-se como uma configuração poética do real, que também agrega
o imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte especial para a história
cultural de uma sociedade.
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Foucault, o Método Histórico-Filosófico de Pesquisa e sua Contribuição para a Metodologia Científica das Ciências
Humanas
Doutorando (UFF) Fernando Gaudereto Lamas, Professor de História na Universidade Federal de Juiz de Fora.
E-mail: [email protected] Mestrando (PUC-MG) Ramon Mapa da Silva, Professor de História do Direito na
Universidade Presidente Antônio Carlos – Itabirito. E-mail: [email protected]
RESUMO
O objetivo desse artigo é discutir as possíveis contribuições metodológicas do pensador francês Michel Foucault para as ciências humanas. Para atingirmos nosso intento passaremos em revista apenas as obras em que o filósofo francês dedicou à História, tanto em seus aspectos puramente metodológicos, quanto em seus aspectos práticos, isto é, de pesquisa. Nosso objetivo maior é perceber que através da adoção do método histórico, Foucault procurou dar uma contribuição ao método de pensamento filosófico.
Palavras-Chave: Foucault; historiografia; história; metodologia.
ABSTRACT
The aim of this paper is to discuss the possible methodological contributions of the French philosopher Michel Foucault to the humanities. To achieve our aim will be reviewed only works when the French philosopher devoted to history, both in purely methodological aspects, as in its practical aspects, i.e in research. Our ultimate goal is to realize that by adopting the historical method, Foucault sought to make a contribution to the method of philosophical thought.
Keywords: Foucault; historiography; history; methodology.
Introdução
O objetivo desse artigo é analisar o método histórico-filosófico desenvolvido
pelo filósofo Michel Foucault ao longo da segunda metade do século XX. Cremos
que este método merece um estudo mais detido, uma vez que pode conduzir à
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análises extremamente úteis tanto para os profissionais da área de Humanas
quanto para os profissionais da área de Saúde, uma vez que Foucault aplicou este
método para perscrutar os procedimentos clínicos usuais em tratamentos
psiquiátricos e médicos na primeira metade do século XX. 1 Não temos, portanto, a
pretensão de realizarmos uma análise aprofundada dos trabalhos de cunho
essencialmente filosóficos do autor. Nosso maior objetivo é discutir a contribuição
de Foucault para o alargamento da Metodologia Científica para as Ciências
Humanas e, particularmente para a História.
Michel Foucault caminhava na direção de libertar, não a História, como
destacou Margareth Rago, (RAGO, 2002, ps. 255-272) mas as ciências ainda muito
atreladas ao método de pesquisa positivista. Para o filósofo francês, a opção pelo
positivismo estava intimamente ligada a uma forma de controle de informação e
consequentemente, a uma forma de detenção de poder. Este foi o tema
fundamental desenvolvido por Foucault. História da loucura é não somente uma
crítica aos procedimentos clínicos adotados ainda no século XX, como também uma
crítica à forma de se fazer Ciência (Metodologia) já que esta se encontra imbricada
com as relações de poder.
Caminhando na mesma direção de nossa apreciação, encontramos
Guilherme Castelo Branco, quando este autor, analisando a fase que ele denomina
“analítica do poder” (1970-1977), afirmou que: (...) no início dos anos setenta, Foucault procurou analisar as relações de poder entre saber e poder num projeto que, apesar de prioritariamente epistemológico, tem de amparar-se numa nova concepção de poder. (in RAGO, 2002, p.175)
A preocupação epistemológica de Foucault, iniciada, segundo Gilles Deleuze,
em História da loucura, resulta, segundo palavras deste mesmo autor, na principal
obra com preocupação científica, a Arqueologia do conhecimento. (DELEUZE, 200,
p. 130). Nessa obra Foucault tentou chamar a atenção para a adoção de novos
métodos que libertassem as Ciências da influência do Positivismo.
Podemos dizer que o que Foucault pretende é inaugurar uma ontologia do
presente a partir de seus estudos sobre a modernidade. Obviamente que ontologia
aqui escapa ao sentido metafísico que a filosofia pretendeu, até Nietzsche, imputar
1 Foucault fez uso desse mesmo método para analisar outros temas tais como o poder em suas múltiplas dimensões (Microfísica do poder, 1979) e a punição (Vigiar e punir, 1996).
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a esse termo. A ontologia foucaultina se reveste com um sentido de crítica, em que
a percepção do tempo presente passa inevitavelmente pelos questionamentos
acerca das inúmeras possibilidades que existiram desse tempo ter sido diferente.
O entendimento acerca da visão foucaultina da história passa, portanto,
obrigatoriamente pelo entendimento da visão acerca da história desenvolvida por
Nietzsche. A visão histórica desenvolvida por Nietzsche inicia-se com uma dura
crítica à forma de se fazer história na Alemanha, ou melhor, dizendo, a maneira
alemã durante o Reich de fazer história. Hayden White, analisando as
possibilidades do discurso histórico, entendeu que em Nietzsche havia duas
formas de considerar a História, a saber: (…) un tipo negador de la vida, que pretendia encontrar el único modo eternamente verdadero, o “propio”, de ver el passado y un tipo afirmador de la vida, que estimulaba tantas visiones diferentes de la historia como proyestos habia para alcanzar un sentido del ser en seres humanos individuales. (WHITE, 1992: 316-317)
Fugindo da história enquanto processo linear, que, alcançaria um fim
idealizado, nos moldes do pensamento hegeliano, Foucault trabalha a questão das
contingências que formam o presente, num questionar constante sobre a
proveniência e emergência dos acontecimentos históricos. Em oposição à ideia de
origem, que pressupõe um desenvolvimento linear, a ideia de proveniência carrega
em si toda a série de contingências, heterogeneidades, rupturas e fragmentações
sutis próprias ao momento histórico.
Da mesma forma, a emergência não se mostra como ponto final do
acontecimento, mas sim como momento em que todas aquelas rupturas e sutilezas
se concretizam em um processo de normalização que grosseiramente representa o
surgimento de determinado elemento histórico. O manicômio e as instituições
totais surgem, assim, como a normalização de todo um discurso sobre a razão e a
desrazão na modernidade que acaba por enxergar na última um problema de
sentido moral e social. Dessa forma, tanto a obra cartesiana quanto o hospital geral
ou as reformas de Pinel, contribuíram, no jogo incessante do devir histórico, para a
consolidação dessas instituições. Nada menos linear, portanto.
Essa ausência de linearidade atinge principalmente o olhar do homem
contemporâneo, que, como ressaltou Roberto Machado, encontra-se
profundamente antropologizado, medicalizado e humanizado (no sentido racional
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do termo) e que por essas razões percebe aqueles que não se enquadram nessa
forma de apreensão do mundo como diferentes, estrangeiros aos olhos da razão e
da moral. (MACHADO, 2001, p. 17)
François Dosse ressaltou como um dos aspectos positivos da obra de
Michel Foucault justamente o fato de buscar o prolongamento do poder em suas
extremidades, descobrindo, desta forma, por trás do inorgânico e do desordenado, a
hierarquia e a ordem. Ao mesmo tempo Dosse destacou o risco que esse
procedimento tem de diluir o poder, retirando a capacidade de resistência, uma
vez que se o poder está em todo lugar, não se pode lutar contra o mesmo. (DOSSE,
2003, ps. 338-339)
A análise de François Dosse não levou em conta que o caminho aberto por
Foucault possibilitou uma compreensão mais nítida acerca das ramificações e
manifestações do poder nos seus mais variados graus. Como destacou Francisco
Falcon, nas pegadas de Foucault, o interesse maior é pelas investigações acerca das
formas concretas que assume a luta pelo poder (e o seu exercício). (FALCON, 1997, p.
80)
O risco apontado por Dosse é fruto de uma percepção equivocada da obra
de Foucault uma vez que pretende compreendê-la como fruto de um elogio da
irracionalidade pós-moderna, tal como fizeram Luc Ferry e Alain Renaut. (FERRY,
RENAULT, 1988, p. 109) Dentro dessa perspectiva a obra de Foucault passa a ser
percebida como uma análise da descontinuidade em detrimento da continuidade
que marcaria o trabalho histórico e de uma opção pela narrativa pura em
detrimento do entendimento de processo histórico.
Essa crítica perde totalmente seu sentido se entendermos a metodologia de
pesquisa histórica de Foucault. O pensador francês adota a genealogia
nietzscheana enquanto método de pesquisa histórica e em muitos termos continua
o trabalho do pensador alemão. Para Nietzsche a genealogia consiste em reconstruir
as condições de surgimento, transformação, deslocamento de sentido e
desenvolvimento dos supremos valores de nossa civilização (GIACÓIA JUNIOR, 2003,
p. 16). Herda de Nietzsche, por exemplo, a ideia da multiplicidade de
interpretações possíveis sobre um fato histórico, a descontinuidade trágica do
devir histórico, bem como a consciência da arbitrariedade presente na estipulação
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de uma certa “verdade”, em detrimento das demais no desenrolar do processo
histórico.
Assim como Nietzsche, Foucault enxerga na transitoriedade, no
imprevisível, no trágico, uma questão ética fundamental: ‘se temos diversas
interpretações possíveis, podemos ter certeza que a interpretação que escolhemos
é a melhor?’ Para Foucault a resposta não interessa tanto quanto a pergunta, que
ele considera fundamental para uma vida emancipada. Pergunta essa embotada
pelas certezas do pensamento metafísico, que começam a se quebrar com o
advento do Iluminismo. As luzes permitem o abandono das antigas estruturas
universais e o estudo do acontecimento como forma de busca pela consciência
crítica do homem.
Apesar de reconhecer a importância do Iluminismo para a criação de uma
consciência libertadora, Foucault, assim como Adorno e Horkheimer, também
reconhece os limites impostos pela supremacia, não da razão, mas de uma razão, a
saber, a razão burguesa, que se baseava na credulidade, na aversão à dúvida, na
precipitação nas respostas, no pedantismo cultural, no receio de contradizer, na
parcialidade, na negligência na pesquisa pessoal, no fetichismo verbal (...) e em
outras causas semelhantes. (ADORNO, HORKHEIMER, 1996, p. 17)
Nessa crítica à forma burguesa de percepção e auto-percepção da sociedade
Foucault aproxima-se da crítica de Marx à sociedade burguesa, em especial, ao
conceito de fetichismo da mercadoria, responsável direto, segundo Marx, pelo
embotamento de uma consciência crítica social. Também podemos vislumbrar
intercessões entre Marx e Foucault na visão do materialismo exposta por Marx
pela qual a realidade determina a consciência e não o oposto. Os dois pensadores
entendem que a realidade (percebida como totalidade) é muitas vezes mias
complexa que a consciência da realidade (percebida como parcial), originando daí
a multiplicidade de interpretações históricas sobre um mesmo fato, além da
multiplicidade de saídas em oposição à saída única indicada pela visão burguesa.
A consciência originada da percepção acima exposta é essencial para nos
livrar das armadilhas próprias do pensamento metafísico assim como de um
pensamento indicador de uma única via. Nesse sentido, o método histórico de
Foucault, assim como o método marxista, não pode ser confundido com a História,
mas apenas como um método (HOBSBAWN, 1998, p. 175).
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Não é de se admirar que a leitura que Foucault faz do Anti-Édipo, de
Deleuze e Guatari, seja a de uma obra de ética, uma vez que para Foucault esse
livro inquietante ressalta as diversas possibilidades que temos de viver de forma
diferente da que vivemos: Existem momentos da vida onde a questão de saber se podemos pensar diferentemente do que pensamos e perceber diferentemente do que vemos é indispensável para continuar olhando ou refletindo. (FOUCAULT, 2002, p. 14)
Mais do que filosofar sobre a História, Foucault se utiliza dessa História
como método filosófico, como forma de pensar o contemporâneo no jogo
incessante do devir trágico, e como maneira de evocar as arbitrariedades e
escolhas escondidas atrás das “verdades” e dos “conceitos”. Novamente ecoa aqui a
obra nietzscheana, uma vez que na sua Segunda Consideração Intempestiva,
Nietzsche trabalha justamente a ideia de que a História é importante porque nos
faz perceber outras vidas e outras possibilidades, o que não o impede de opor a
desvantagem da História para a vida, que seria embotar o desejo de ação nos
homens, uma vez que esses não podem ter dúvidas. Mas, a par disso, Foucault se
concentra na ideia da verdade e na consolidação dos saberes na história. Se toda
verdade é provisória e arbitrária, o que dizer da verdade histórica? Contra todos os
cânones positivistas e da história factual, Foucault opõe as rupturas, as sutilezas, as
circunstâncias, mas, assim como Nietzsche, com a pretensão de mostrar que a vida
poderia ser diferente.
Tal perspectiva não pode ser confundida com uma negação da realidade ou
com a substituição desta por uma interpretação possível. Foucault compreende
bem que toda a interpretação é uma interpretação da interpretação, pois a
apreensão da realidade em seu sentido mais duro nos é dada a partir de
interpretações produzidas por nós ou por outros. Segundo Eduardo Grüner essa
perspectiva não invalida as interpretações críticas do passado, como o marxismo,
por exemplo, uma vez que lo que hace Marx es empezar por aceptar el “texto” de la
economia burguesa como verdad parcial, y luego interrogar sus “silêncios” o sus
inconsistências (GRÜNER, 2006, p. 124) .
Em vida, Foucault usava desse mesmo argumento para rebater a ideia, bem
difundida, aliás, de que ele seria um autor humanista. Dizia que os tecnocratas é
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que eram humanistas, afinal eles achavam que conheciam o melhor caminho para a
vida das pessoas. Ainda sobre o problema da verdade e a influência do pensamento
nietzscheano na obra de Foucault, não é de se admirar que o seguinte fragmento
do autor alemão seja um dos preferidos de Foucault sobre o tema: Num certo canto remoto do universo cintilante, vertido em incontáveis sistemas solares, havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da “historia mundial”, mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer. (NIETZSCHE, 2005, p. 7)
Muito semelhante ao projeto dos Analles, no que toca a questão das várias
maneiras de se enxergar o momento histórico, o trabalho foucaultiano radicaliza o
perspectivismo ao adotar como fontes primordiais documentos que o autor
gostava de chamar de “exóticos” ao trabalho histórico: cartas de loucos e de
condenados, pinturas, textos literários. Aliás os textos literários merecem um
comentário à parte no trabalho de Foucault. De Sófocles à Artaud, passando por
Nietzsche, Sade e Raymond Roussel, o autor francês aponta sua flecha para autores
malditos e mesmo banidos – como Sade – da história oficial.
A semelhança com a proposta francesa dos Analles não para apenas na
escolha de documentos exóticos, mas na busca por uma conexão lógica entre várias
formas de comportamento, pensamento e sentimento, para vê-las como mutuamente
coerentes, enquadrando-se nesse sentido àquilo que acabou denominado como
História das Mentalidades. (HOBSBAWN, 1998, p. 199). A seguir teceremos alguns
breves comentários ao trabalho de Foucault, destacando, entre sua vasta galeria de
problemas e preocupações filosóficas, alguns temas fundamentais para entender
sua metodologia aplicada ao fazer histórico.
Artaud, Van Gogh, Nietzsche e Sade: a loucura cobrando o seu quinhão.
O texto literário é muito mais do que uma experimentação estética, ou a
articulação de uma narrativa sobre um determinado tema. As flutuações,
inseguranças e mesmo aquilo que não pode ser dito oficialmente dentro de uma
sociedade encontram guarita no texto literário. Em sua análise da contribuição dos
saberes “psi” para o desenvolvimento das instituições totais Foucault parte da
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ideia de que a mentalidade legitimadora da internação se funda na concepção de
que a razão é o que nos diferencia do resto do mundo animal e que nos eleva acima
da natureza. Esse pensamento, de matriz nitidamente cartesiana (FOUCAULT,
1978), esbarra em um primeiro momento com a desrazão, com formas de viver
diferentes, irracionais, mas que compartilham o mesmo locus da racionalidade, as
grandes praças, as sombras dos palácios, os entretenimentos da nobreza e da
populaça.
Com o surgimento do capitalismo a capacidade produtiva se transforma em
um discurso diferenciador das pessoas: os bons são os que podem trabalhar e
produzir riquezas, inteiramente de acordo com as doutrinas de cunho liberal que
enxergavam no trabalho a origem da riqueza das nações, e os maus os que não
produzem e se apoiam nos demais para poder sobreviver. A lógica do capital retira
do “louco” qualquer estatuto moral que antes o mesmo pretendera ter, condenado
ao silêncio do hospital geral e em um segundo momento às celas manicomiais, o
louco é afastado do convívio dos normais, vítima de sua própria linguagem e forma
de ver o mundo, inalcançáveis pelo uso da razão, marcando a distinção social
apontada por Deleuze e Guatari, entre produção, distribuição e consumo
(DELEUZE, GUATARRI, 1996, p. 9).
Foucault tenta dar voz a essas pessoas, silenciadas por uma nova ordem,
violenta demais para que pudessem reagir, e analisa suas fichas de tratamento,
seus memoriais, sua arte, sua literatura. Em Sade ele enxerga uma radicalização do
projeto iluminista: e se a razão tivesse que passar pelo crivo da própria razão?
Como partículas que se anulam gerariam a própria desrazão que pretende
combater. O texto sádico demonstra que a moral defendida pelos moralistas
franceses da época das luzes é tão ou mais arbitrária e violenta quanto o tipo de
moral sádica que ele pretende estabelecer. Nietzsche se coloca também dessa
forma, minando as verdades universais através do jogar com a razão, colocando-a
diversas vezes em xeque, mostrando o tanto de moral e de arbitrário que existe em
nossas posições “objetivas” ou “científicas” diante da realidade, rompendo com
toda a estrutura externa da significação. Para além dessa estrutura “jaz a loucura –
o destino de Hölderlin e de Nietzsche” (DARTON 1986, p. XVIII).
Foucault acaba enxergando, no fim do projeto racionalista, a incorporação
da desrazão como o inatingível, como uma realidade diferente da razão, não o seu
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oposto, algo que ela não consegue fazer falar, mas em que pode enxergar seus
próprios resquícios escondidos. O inconsciente freudiano, o id à solta que explica e
forma o ego. O mundo se medindo pela obra de Nietzsche, Artaud e Sade. A loucura
falando, se apropriando do discurso racional, fazendo novamente o mundo
duvidar.
O corpo, prisioneiro da alma.
A análise das instituições totais realizada por Foucault não possui um
caráter humanista, de condenação do poder institucional como sempre perverso e
destrutivo. Foucault se exime de valorar o poder institucional dessa forma,
buscando sua faceta “construtiva”. O que o poder constrói são novos corpos, novas
formas de se lidar com o corpo (FOUCAULT, 1996). O corpo é visto por Foucault
não como um dado biológico inalterável, mas como algo extremamente fluido e
adaptável às forças que o pressionam e o atravessam. Invertendo a famosa máxima
platônica: a alma, prisioneira do corpo, Foucault enxerga o corpo como um
construto da situação social em que está inserido. A “alma” seria formada pelas
forças que atravessam esse corpo. Dessa forma existiria uma “alma” para o louco,
outra para o preso, outra para o homossexual. O corpo se constrói em resposta à
atuação dessas forças anímicas, construindo novas formas de sexualidade, de
visão, de tato.
As atuações do poder se mostram muito mais sutis do que pode parecer.
Sem essência ou concretude o poder para Foucault não é algo que se possua, mas
que se exerce, que age. Ninguém é dono do poder, ele simplesmente está presente,
capilarmente, na família, no hospital, na escola, na prisão (FOUCAULT, 1979).
Construindo, criando, destruindo, estabelecendo e anulando. O poder é expressão
do mundo, e uma força que o saber histórico não pode ignorar.
Piérre Riviérie, o assassinato como discurso.
Foucault organizou e anotou a publicação dos autos de um processo de
homicídio triplo realizado por um camponês francês em 1835. Piérre Riviérie
degola a mãe, sua irmã Victoire e seu irmãozinho Jules, para, segundo ele, por fim
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aos sofrimentos de seu pai, constantemente artomentado pela mãe. Foucault
chama atenção não para o crime em si, mas para o memorial que Riviérie escreve
para os magistrados explicando o crime e suas crenças sobre a sociedade. Para
Foucault o texto memorial e o assassinato se complementam, ambos são ato e
discurso, acontecimento e fala. Um perde a força sem o outro. Sem seu memorial, o
ato de Riviérie perde grande parte de seu poder de chocar.
Dono de uma lógica por vezes perturbadora o texto se utiliza de argumentos
religiosos, mesclados às teorias moralistas da época para justificar o ato assassino.
Mas, mais que isso, o texto faz parte do assassinato, pois eterniza o ódio de Riviére
por suas vítimas, critaliza seu sorriso cravado por uma sábia idiotia. O memorial
transforma o assassinato em discurso, mas é, ele mesmo, um acontecimento.
Foucault e sua equipe contextualizam o ato e o texto em sua época, se aproximando
algumas vezes daquilo que os historiadores, por falta de um termo melhor,
chamam de mentalidades. Inserem Riviére num discurso de animalidade próprios
do campesinato francês da época, em que o horrível era sempre o “quinhão de
todos” (FOUCAULT, 2007), em que seu ato tenta ofender mais a própria realidade,
que lhe impõem a impossibilidade esmagadora do cotidiano, do que a moralidade
francesa tradicional.
Riviére força o mundo, como força seus cavalos, quase à exaustão, tentando
ver até onde o impossível alcança. Numa época em que as teorias contratualistas
da sociedade começam a tomar forma, Riviére interpreta a ideia da lei e do
contrato à sua maneira, se colocando no papel do árbitro e do executor, que
garante o cumprimento do contrato, ou a punição de quem se nega a cumpri-lo.
Muito mais do que o ato de Riviére, um entre centenas de atos monstruosos na
época, o que choca é a realidade em que esse ato aparece. A monstruosidade
pesada e opressora de um cotidiano que reduz a vida à animalidade, ao nunca
poder, ao nunca realizar. Em que os tributos confiscam até à miséria, em que a
hostilidade da vida leva à hostilidade contra à vida.
Conclusões
Espelho retrovisor futuro.
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Vimos como o olhar foucaultiano sobre a história levanta problemas
essenciais para o amadurecimento de nossas concepções científicas, possibilitando
a emancipação do saber de suas amarras positivistas. Ao encenar o teatro da
certeza e da objetividade, os positivismos criam a ideia da universalidade e da
atemporalidade dos conceitos que constroem, vendendo, ainda que veladamente, a
concepção de que existem verdades absolutas e que somente através de tal ou qual
método é possível que as alcancemos.
A genealogia foucaultiana se inscreve, nesse contexto, como um
questionamento radical não só dos limites da significação e do conceito, lançados à
análise como partes de um processo histórico, mas também de nossa postura
diante desses conceitos e de nossa visão de mundo em geral.
A história para Foucault, portanto, é uma forma de lidarmos com o presente,
de considerarmos todas as possibilidades para a nossa realidade. Ainda que sua
contribuição para o fazer do saber histórico não seja tão radicalmente inovadora é
fundamental para repensarmos nosso viver como viver historicamente inscrito.
Deleuze concebe o monstro como um problema ético fundamental, uma vez que,
segundo ele, o monstro representa aquilo que poderíamos ter sido, ou ainda
podemos ser. Assim também o é nos textos de Foucault. Cercados pelos seus
monstros, loucos e anormais, podemos repensar nossos critérios, nossa forma de
vida, nossas maneiras de emancipação e nossas escolhas. Repensar nossa
normalidade, que como a de Piérre Riviére, tenta nos esmagar com o peso do
impossível.
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Interpretação Do Processo Histórico em Leon Tolstói
Graduando Gustavo Morais Barros
Universidade Federal de Goiás E-mail: [email protected]
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a interpretação do processo histórico segundo Leon Tolstói, isto é, discutir o que para o escritor russo constituía a experiência humana no tempo e as possíveis maneiras através das quais podemos obter esse conhecimento. Tendo em vista os conceitos de poder, necessidade e livre arbítrio, considerados por Tolstói como essenciais à ciência histórica, analisaremos de que maneira esses conceitos influem no desafio que o historiador tem diante de si ao interpretar o processo histórico, bem como intentaremos indicar em que consiste a sua teoria da “integração dos infinitesimais”, tendo em vista que esta constitui o centro nevrálgico da teoria da história desenvolvida pelo escritor russo. Palavras-Chave: Livre-arbítrio; necessidade; poder.
ABSTRACT
This study aims to examine the interpretation of historical process according Leon Tolstoi, that is, discuss what the Russian writer was the human experience in time and the possible ways through which we can obtain that knowledge. Considering the concepts of power, necessity and free will, considered by Tolstoy as essential to science history, we will review how these concepts impact the challenge that the historian has before him to interpret the historical process, and intend to indicate what is his theory of “integration of infinitesimal”, since it is the nerve center of the theory of history developed by the Russian writer. Keywords: Free will; necessity; power.
Introdução
O cientificismo do século XIX notabilizou-se por promover, dentre outras
coisas, a elevação de “ramos do conhecimento” ou “saberes” à categoria de ciência.
Bem entendido, queremos aqui sinalizar com isso o processo através do qual estes
“espaços do saber” se tornaram cada vez mais especializados e dotados de
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ferramentas conceituais e procedimentos próprios para a avaliação empírica dos
dados da realidade.
Para sermos mais específicos, trata-se aqui do período em que as ciências
recém-criadas esforçaram-se por compor um aparato que garantisse a
validade/plausibilidade de suas postulações. O principal elemento deste conjunto
foi, sem dúvida alguma, o método, isto é, a instituição de normas e procedimentos
específicos para a apreciação adequada dos elementos analisados por cada ciência
respectivamente.
Com a História não aconteceu diferente e podemos, com razoável precisão,
apontar para uma data normalmente tomada como um marco referencial no que diz
respeito à metodologia da história: a publicação, em 1824, do manual de metodologia
histórica de Ranke, no qual o autor intenta estabelecer as normas da história científica,
diferenciando-a de outros ramos congêneres, tais como: a filosofia da história e a
literatura.
Houve, na verdade, uma conjugação de fatores que ensejaram o surgimento
de preocupações metodológicas cuja exata análise e apreciação não serão possíveis
neste breve trabalho; porém, recorremos ao auxílio da referida data apenas para
lançar luzes sobre um período a partir do qual os historiadores, baseados em uma
própria metodologia e influenciados pelo espírito cientificista do século XIX,
acabaram por levar a ciência da história a uma situação de sectarismo em relação
às posições deterministas que se tornaram predominantes nas ciências sociais.
Um dos efeitos mais paradigmáticos desta prática será o aparecimento de
obras de história totalizantes, nas quais seus autores procuram explicar o movimento
histórico com base na atuação de grandes figuras públicas: chefes de estado e pessoas
proeminentes. Fazemos notar também que este é o tempo das histórias nacionais, ou
seja, o período em que as trajetórias dos povos são contadas com o intuito de glorificar
e reafirmar as histórias dos Estados-nações europeus, baseadas em uma teleologia
inabalável segundo a qual o progresso é o destino inescapável e inexorável destas
sociedades.
Queremos aqui nos referir ao período compreendido entre a segunda
metade do século XIX e o início do século XX, em que predominou nos estudos
históricos uma vertente que Arno Wehling denominou de “Historicismo
cientificista” em seu trabalho A invenção da História, cujas principais
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características são a predominância da explicação histórica sobre a sistêmica, da
visão diacrônica sobre a sincrônica, pela tentativa do estabelecimento de leis que
traduzissem as regularidades do processo histórico, e de toda a realidade,
freqüentemente pela escatologia dos sistemas sociais com graus variáveis de
determinismo.
Ora, foi exatamente neste contexto, mais exatamente entre os anos de 1865
e 1869 que o escritor russo Leon Tolstói publicou o romance: Guerra e Paz, no qual
expressou sua desconfiança para com as explicações vazias e pretensamente
científicas dos historiadores de então, bem como demonstrou quão frágeis eram os
métodos de que estes historiadores lançavam mão para interpretar o processo
histórico.
O presente trabalho tem por objetivo analisar a interpretação do processo
histórico segundo Leon Tolstói, isto é, discutir o que para o escritor russo
constituía a experiência humana no tempo e as possíveis maneiras através das
quais podemos obter esse conhecimento. Tendo em vista os conceitos de poder e
livre arbítrio, considerados por Tolstói como essenciais à ciência histórica,
analisaremos de que maneira esses conceitos influem no desafio que o historiador
tem diante de si ao interpretar o processo histórico, bem como intentaremos
indicar em que consiste a sua teoria da “integração dos infinitesimais”, tendo em
vista que esta constitui o centro nevrálgico da filosofia da história desenvolvida
pelo escritor russo.
A filosofia da história de Tolstói: uma visão geral
Para que possamos compreender e identificar uma filosofia da história em
Tolstói, isto é, o modo como ele interpretou o que seja experiência humana no
tempo e as possíveis maneiras através das quais se pode conhecê-la, é necessário
que levemos em consideração o que para Tolstói constituía os maiores desafios da
ciência histórica, a saber: a dificuldade de definir as forças que movem as nações e
o problema do livre arbítrio e da necessidade.
Embora não tivesse sido nem filósofo nem historiador de profissão, a
narrativa de seu romance Guerra e Paz está repleta de menções à história e,
sobretudo no "Adendo" da obra, o autor expõe de forma minuciosa suas idéias
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sobre o assunto. Na reflexão que se desenvolverá a seguir acerca da interpretação
do processo histórico segundo Tolstói, é preciso fazer notar que, apesar de muitas
das suas críticas à maneira como os historiadores do seu tempo tendiam a discutir
e interpretar as ocorrências históricas fossem, sem dúvida alguma justificadas, é
difícil evitar a sensação de que as suas ponderações se tornaram um tanto
controversas pelo fato de ele julgar a história de acordo com um entendimento que
lhe era peculiar.
O escritor russo não estava preparado para reconhecer a validade dos
cânones aceitos do processo histórico; além disso, estava demasiado influenciado
pela crença de que a investigação histórica só pode ser digna de respeito se for
capaz de produzir resultados comparáveis aos obtidos na matemática e nas
ciências naturais. Todavia, por mais problemática que se possa julgar ter sido a sua
teoria da “integração dos infinitesimais,” as observações do autor de Guerra e Paz
têm, aos menos, a vantagem de pôr em destaque algumas das dificuldades com que
se deparavam os estudiosos das coisas humanas, dificuldades essas que - como ele
bem notou - eram ainda obscurecidas pelas generalizações inócuas e pelas
ferramentas conceituais grosseiras de muitos historiadores e teóricos sociais do
seu tempo.
Feitas as devidas considerações, procedamos ao tratamento do primeiro
desafio da ciência histórica: a dificuldade em se definir as forças que movem as
nações. Tolstói considerava que, para o entendimento do processo histórico, era
crucial que a ciência histórica fosse dotada da capacidade de solucionar duas
questões fundamentais:
1 - O que é poder?
2 - Que força determina os movimentos dos povos?
O escritor refutava tanto o tipo convencional de história do seu tempo que
procurava apresentar os eventos históricos como efeitos das atividades de
indivíduos ilustres e poderosos, como também aquilo que ele denominava como
“histórias universais” e “histórias da cultura”. Estas últimas, reconhecendo as
fraquezas inerentes à historiografia dos “grandes homens”, tentavam justificar as
evoluções históricas por qualquer outro meio, recorrendo, por exemplo, à
influência de “idéias” ou movimentos intelectuais, ou pressupondo a ação de forças
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subjacentes que de algum modo produzem os eventos da história ou levam os
agentes históricos a agir como agem.
A razão pela qual Tolstói lançava objeções tanto a interpretações deste tipo
como a interpretações que dão prioridade de lugar às escolhas e decisões “livres”
de indivíduos eminentes era, pensava ele, que todas acabavam por cair no conceito
- ainda não analisado - de poder; conceito esse que, tal como normalmente se
empregava, era suficientemente vago e mal definido para ocultar a ignorância
fundamental quanto às reais causas da mutação histórica. A título de exemplo,
tomemos o caso dos historiadores de biografias particulares, para quem o
processo histórico é movido pelos desígnios de pessoas proeminentes.
Tais historiadores interpretavam a força propulsora dos acontecimentos
históricos como sendo o poder existente nos heróis e monarcas. Segundo estas
descrições, os acontecimentos advinham exclusivamente da vontade dos
Napoleões, Alexandres ou, em geral, das personalidades estudadas pelo
historiador. As respostas apresentadas por este gênero de historiadores na
questão da força que movimenta os eventos são satisfatórias, mas somente
enquanto houver um só historiador para cada evento. Logo que historiadores de
nacionalidades e opiniões diversas começam a descrever o mesmo acontecimento
as respostas por eles elaboradas perdem imediatamente doto o sentido, uma vez
que essa força é apreendida por cada um deles não só de modo diferente, mas
também contraditório.
Um deles afirmava que o acontecimento foi produzido por Napoleão, outro,
pelo poder de Alexandre; um terceiro pelo poder de qualquer outra personalidade.
Esses historiadores, além disso, contradiziam-se mutuamente, inclusive nas
interpretações da força em que se baseava o poder de um mesmo indivíduo.
Aniquilando, assim, suas teses uns aos outros, os historiadores deste gênero
destroem também o conceito da força promotora dos eventos, nenhuma solução
fornecendo na questão essencial da história.
Em uma passagem de sardônica ironia, Tolstói nos transmite a impressão
que lhe causavam os trabalhos dos historiadores supracitados por meio de uma
impiedosa paródia. Acompanhemo-la: Luiz XIV era um homem muito orgulhoso e autoconfiante. Tinha tais e tais amantes, tais e tais ministros e governava mal a França. [...] Além
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disso, certas pessoas, naquela época, escreviam livros. Quando o século XVIII chegou ao fim, reuniram-se em Paris umas duas dúzias de pessoas que começaram a afirmar que todos os homens eram livres e iguais. Por causa disso, na França inteira o povo começou a se assassinar e a afogar uns aos outros. Essa gente matou o rei e muitas outras pessoas. Nessa época havia na França um homem genial – Napoleão. [...] Era tão inteligente e astuto que, depois de chegar à França, ordenou que todos o obedecessem, o que aconteceu, aliás. Tendo-se coroado imperador, foi de novo matar milhares de pessoas na Itália, Áustria e Prússia. E lá também matou muitos. [...] De repente todos os aliados de Napoleão tornaram-se seus inimigos; e esse exército marchou contra o imperador, que reunira novas forças. Os aliados derrotaram Napoleão, entraram em Paris, forçaram-no a renunciar ao trono e o enviaram para a ilha de Elba, sem, no entanto, privá-lo do título de imperador. [...] Quanto a Napoleão, após derramar lágrimas diante da Velha Guarda, abdicou do trono e partiu para o exílio. Então estadistas e diplomatas astutos, sobretudo Talleyrand, que conseguira sentar-se na famosa cadeira antes de qualquer outra pessoa e, por isso, alargara as fronteiras da França, discursaram em Viena e, graças a essa fala, tornaram os povos felizes ou infelizes. Subitamente os diplomatas e monarcas quase se engalfinharam. Estavam a ponto de ordenar que suas tropas voltassem a se matar, mas, nesse momento, Napoleão chegou à França com um batalhão e os franceses, que o odiavam, imediatamente se submeteram a ele. Isso, porém, aborreceu demais os monarcas aliados e eles declararam guerra à França, ele se consumiu lentamente num rochedo e legou seus grandes feitos à posteridade. Quanto à Europa, ali ocorreu uma reação e todos os príncipes começaram novamente a tratar mal seus povos. (TOLSTÓI, 1983, pp. 587-88)
Para o escritor russo, analisando apenas as expressões da vontade das
personalidades históricas que puderam se relacionar com os acontecimentos como
ordens, os historiadores incorreram no erro de supor que fossem aqueles, isto é, os
acontecimentos dependentes destas, as ordens. Examinando, porém, os próprios
acontecimentos e a relação com as multidões em que tais personalidades se
encontram, verificamos que elas (personalidades) e suas ordens são dependentes
daqueles, isto é, dos acontecimentos. Tendo chegado a tal conclusão Tolstói responde
as questões cruciais da história da seguinte forma: Poder é a relação de dada pessoa com outros indivíduos, segundo a qual aquela, quanto mais opiniões hipóteses e justificações da ação conjunta que se realiza, formula, tanto menos nesta participa. E o movimento dos povos não é determinado pelo poder, nem pela atividade intelectual, nem mesmo pela união daquele e desta, mas pela ação de todas as pessoas participantes no acontecimento, sempre de tal modo associadas, que às que mais diretamente no mesmo intervêm menos responsabilidades compete; e vice-versa. Sob o aspecto moral, o poder é causa do acontecimento; sob o físico, são aqueles que se submetem ao poder. Como, porém, a atividade moral é inconcebível sem a física, a causa do evento não reside na primeira nem na segunda, mas somente na conjunção de uma e outra. (TOLSTÓI, 1983, p. 605).
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Assim, de acordo com Tolstói, o conceito de causa torna-se inaplicável ao
fenômeno que analisamos; se, por exemplo, eclode uma guerra, não podemos
precisar por qual motivo isso ocorreu, sabemos apenas que, para a execução deste
ou daquele efeito, as pessoas se coligam em certa conjunção e todas participam, e
dizemos ser assim a natureza dos homens, acreditamos ser isso uma “lei”.
Não obstante, o objeto da história é o homem e este afirma altivamente:
“Sou livre e, portanto, não estou sujeito a leis” 1. Precisamente aqui deparamo-nos
com o problema do livre arbítrio e da necessidade. Em linhas gerais, o autor de
Guerra e Paz demonstra que o fato da consciência da liberdade ser uma forma de
conhecimento distinta e independente da razão, proporciona ao homem o pueril
engano de que age tão-somente pelo seu querer, esquecendo-se de que, em todos
os casos em que há representação da liberdade e/ou da necessidade humanas,
nunca é possível encontrar apenas uma dessas categorias agindo, mas a relação
inversamente proporcional de cada uma com a outra, isto é, a proporção de cada
uma aumenta ou diminui conforme o modo sob o qual o ato humano é
considerado.
O escritor de Iasnaia Poliana considera que em todos os casos sem exceção,
em que a nossa representação da liberdade e da necessidade humanas aumenta ou
diminui, três fatores fundamentais concorrem para isso:
1 - A relação do indivíduo, autor do ato, com o mundo exterior, que é o
conceito mais ou menos claro do lugar definido que cada indivíduo ocupa com
relação a tudo quanto com ele simultaneamente existe;
2 - A relação do indivíduo com o tempo, ou seja, a idéia mais ou menos clara
do lugar que a ação humana ocupa no tempo;
3 - A relação do indivíduo com as causas que ao ato deram origem, isto é, a
nossa maior ou menor possibilidade de apreender a série interminável de causas que
constitui exigência inevitável da razão, na qual cada fenômeno inteligível e, por isso,
todo o ato humano deve ter seu lugar definido, como efeito de atos precedentes e
causa de ulteriores.
Para Tolstói, se a história fosse constituída de atos humanos inteiramente
livres, esta seria um amontoado desconexo e fortuito de volições, isto é, atos nos quais
1 Ver TOLSTÓI, L. Guerra e Paz. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983.
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há expressão de vontades, isso impediria então qualquer possibilidade de verificação
de leis na história. Sob esse entendimento, o escritor russo propõe que se diminua o
fator da liberdade a proporções infinitamente pequenas na relação dinâmica dos
indivíduos com os acontecimentos e com suas ações, para que, para além da busca de
causas, a ciência histórica se ocupe antes de interpretações mediante a consideração
de unidades infinitesimais, isto é, das “propriedades comuns da história”, das
tendências homogêneas dos homens.
Leon Tolstói acredita que o movimento histórico é promovido pela integração
dessas unidades infinitesimais; como fora dito, a relação entre elas é definida pela
análise de cada ato como sendo a participação de todas as pessoas, no qual o livre
arbítrio deve ser visto como uma espécie de liberdade a posteriori, quer dizer, uma
liberdade que sutilmente se submete ao caráter contingencial da vida humana.
Com o intuito de ampliar nosso horizonte interpretativo procederemos,
doravante, a um levantamento de algumas análises realizadas por alguns críticos e
intelectuais acerca da filosofia da história elaborada por Leon Tolstói. Não obstante as
particularidades de cada um dessas análises, a maioria tem em comum o fato de
desconsiderarem solenemente a relevância das reflexões do escritor de Iasnaia
Poliana, tratando-as como infelizes postulações pretensamente científicas oriundas de
um intelecto considerado indubitavelmente genial e pródigo enquanto escritor e
artista, mas lamentavelmente canhestro na condição de pensador.
Com efeito, a propósito dessa disposição geral dos críticos em relação à
filosofia da história de Tolstói, nos diz Isaiah Berlin o seguinte: De modo geral, a filosofia da história de Tolstói não recebeu a atenção que merece, seja como visão intrinsecamente interessante ou como episódio na história das idéias, ou mesmo como um dado no desenvolvimento do próprio Tolstói. Aqueles que o trataram basicamente como romancista por vezes consideram as passagens históricas e filosóficas presentes em Guerra e Paz como uma interrupção impertinente da narrativa, como uma disposição lastimável para digressões irrelevantes, característica desse grande escritor, mas excessivamente dogmática, como uma metafísica capenga, tosca, de pouco ou nenhum interesse intrínseco, profundamente não-artística e totalmente alheia ao propósito e à estrutura da obra de arte como um todo. (I. BERLIN, 1988, pp. 45-6).
Um emblemático exemplo deste tipo de análise sobre as reflexões
tolstoinianas, nós encontramos em Ivan Turgueniev, romancista e dramaturgo russo
para quem as postulações de Tolstói sobre a história eram “farsescas”, “trapaças” e,
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em última análise, não passavam de charlatanismo.1 Conforme ainda nos diz Isaiah
Berlin, Gustave Flaubert, que expressou fascínio para com o primor artístico de Guerra
e Paz, ficou horrorizado com o teor filosófico presente nas páginas do romance. A
mesma disposição para com as reflexões de Tolstói nós encontramos no crítico Dmitri
Akhcharumov: “É uma sorte para nós que o autor seja melhor artista que pensador”
(AKHCHARUMOV, 1868, apud BERLIN, 1988, p. 47). Do mesmo modo, a filosofia da
história de Tolstói apresentou pouco interesse para Vogüé e Merejkovski, Stefan
Zweig e Percy Lubbock, Biriukov e E. J. Simmons. Por fim, a maioria dos proeminentes
historiadores do pensamento russo tendeu a reduzir a filosofia da história de Tolstói a
mero “fatalismo”. 2
Entre todas as análises realizadas acerca das reflexões tolstoinianas sobre a
história, as considerações do historiador russo Kareiev foram, sem dúvida alguma, as
mais razoáveis haja vista que este foi o único a se preocupar em analisar seriamente o
conteúdo das postulações de Tolstói. Com brandura e paciência, ele [Kareiev] assinalou que, por mais fascinante que fosse o contraste entre a realidade da vida pessoal e a vida social de um formigueiro, daí não se deduziam as conclusões de Tolstói. É bem verdade que o homem é, ao mesmo tempo, um átomo que vive a sua vida consciente “por si mesma” e, simultaneamente, o agente inconsciente de certa corrente histórica, um elemento relativamente insignificante no vasto todo composto de um enorme número de tais elementos. Guerra e Paz, diz-nos Kareiev, “é um poema histórico sobre o tema filosófico da dualidade” – “as duas vidas vividas pelos homens”, e Tolstói estava perfeitamente certo ao objetar que a história não se faz acontecer devido à conjunção de entidades tão obscuras como o “poder” ou a “atividade mental”, pressupostas por historiadores ingênuos. Na realidade, segundo a apreciação de Kareiev, ele alcançava seus melhores momentos ao denunciar a tendência dos escritores de orientação metafísica a atribuir eficácia causal ou idealizar entidades tão abstratas como os “heróis”, “forças históricas”, “forças morais”, “nacionalismo”, “razão” e assim por diante, com isso cometendo simultaneamente dois pecados mortais: o de inventar entidades inexistentes para explicar acontecimentos concretos, e o de dar livre curso a preconceitos pessoais, nacionais, classistas ou metafísicos. (I. BERLIN, 1988, p. 63).
A seguir, temos as considerações de Kareiev segundo as quais Tolstói
negaria a possibilidade de um conhecimento empírico nas ciências sociais devido a
sua descrença quanto à importância real dos indivíduos considerados
proeminentes e responsáveis pelo movimento histórico. Bem entendido, trata-se
1 Ver E. I. Bogoslovski, Turgueniev o L. Tolstom (TIFLIS, 1894), p. 41; citado por P. I. Biriukov, L. N. Tolstoi (BERLIM, 1921), vol. 2, pp. 48-9; apud BERLIN, I. Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 2 De acordo com I. Berlin, os professores Ilin, Iakovenko, Zencovski dentre outros.
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aqui de atestar que para Kareiev, Tolstói desconsiderou solenemente a
importância das vontades individuais, como se os indivíduos estivessem
submetidos a “forças” inexoráveis e abomináveis, isto é, como se os homens fossem
meros produtos de seus respectivos moldes sociais. “[...] as vontades individuais talvez
não sejam onipotentes, mas tampouco são totalmente impotentes e algumas se
mostram mais eficazes do que outras.” (KAREIEV, 1887, apud BERLIN, 1988, p. 64).
A despeito da inegável coerência de tal interpretação, ela se baseia, todavia,
no que modesta e audaciosamente apontaremos aqui como um equívoco de
interpretação por parte do historiador russo supracitado. Equívoco esse que
provém justamente da interpretação de Kareiev acerca da compreensão
tolstoiniana sobre o encadeamento dos acontecimentos históricos.
Kareiev insinua que Tolstói postulara uma espécie de inacessibilidade
intrínseca das causas dos acontecimentos, ou seja, como se o fluxo histórico fosse
uma entidade regida por leis inexoráveis e inacessíveis, cuja inteligibilidade por
meio de métodos como a observação social e a inferência histórica seria
impossível. Esta análise nos conduz a uma inevitável impressão de fatalismo na
teoria da história elaborada por Leon Tolstói que, em última instância, deve-se a
um mal-entendido cuja origem mais exata discutiremos mais adiante.
Na verdade, o mal-entendido em que incorreu Kareiev decorre de uma
controvérsia presente na própria fala de Tolstói, controvérsia de cuja elucidação
depende todo o desenvolvimento ulterior do presente trabalho. Trata-se aqui de
interpretar a noção que o escritor russo tinha da categoria “leis”, pois este conceito
possui fundamental importância para a correta análise e compreensão da “teoria
da integração dos infinitesimais”, centro nevrálgico e núcleo irradiador a partir do
qual se sustenta toda a filosofia da história tolstoiniana.
Sob esse entendimento, faz-se necessário a esta altura um esclarecimento.
Por questões de clareza e objetividade metodológicas, percorreremos um caminho
interpretativo que modestamente se atreverá a destoar da posição do eminente
historiador russo Kareiev, e assim procederemos não pela tola presunção de
procurar exaurir o tema e fornecer uma explicação definitiva para o mesmo, e sim
pela riqueza interpretativa que a controvérsia do assunto fornece, fazendo com
que o vislumbre de uma interpretação distinta seja não apenas possível como
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também necessária e igualmente edificante no esforço interpretativo do
conhecimento.
A teoria da integração dos infinitesimais
Comecemos sem delongas por definir o que a “teoria da integração dos
infinitesimais” não é: apesar de se basear claramente em um método de cálculo
desenvolvido pela matemática no século XIX, a teoria não consiste absolutamente
em transmutar para a ciência histórica uma espécie de equação mirabolante
através da qual os acontecimentos históricos são apreendidos e explicados.
Tampouco a teoria constitui-se de um conteúdo metafísico como pretendeu Patrick
Gardiner. 1
A questão central reside na antinomia liberdade/necessidade, isto é, a
delicada questão do livre arbítrio humano que, para Tolstói, constitui o cerne da
investigação histórica. Embora não expresso, o problema do livre-arbítrio manifesta-se a cada passo na História. Todos os historiadores sérios chocaram-se com este problema, mesmo contra suas próprias vontades. Todas as contradições, todos os pontos obscuros da História e o falso caminho seguido por esta ciência provêm do fato de que este problema ainda não foi resolvido. Se a vontade dos homens é livre, isto é, se cada homem pode agir de acordo com seus desejos, a História então é apenas uma seqüência de acasos incoerentes. Se, entre os milhões de homens, um só, num período de mil anos, tivesse tido a possibilidade de agir livremente, isto é, de acordo com sua vontade, é evidente que um único ato livre desse homem, contrário às leis, destruiria a possibilidade da existência de qualquer lei para toda a Humanidade. E se houver uma só lei dirigindo as ações humanas, já não pode haver livre-arbítrio, pois a vontade dos homens deve ficar submetida a ela. Nesta contradição reside o problema do livre-arbítrio que, desde os tempos mais recuados, ocupou milhares de cérebros humanos e, desde os tempos mais recuados, surgiu em toda a sua enorme importância. (TOLSTÓI, 1983, pp. 605-6).
Como fora dito anteriormente no presente trabalho, para o escritor russo o
problema reside no fato de que, se tomarmos o homem como objeto de observação
teológico, histórico, ético ou filosófico, encontraremos a lei geral da necessidade à
qual ele está submetido. Entretanto, se o olharmos através de nossa própria
experiência, como algo de que nós próprios temos consciência, nos sentiremos
mais livres. Isto se deve ao fato de que para Tolstói, a consciência de liberdade
constitui uma fonte de conhecimento distinta e autônoma em relação à razão: 1 Sobre este assunto, ver GARDINER, P. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966.
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Esta consciência é uma fonte de conhecimento de si mesmo, inteiramente distinta e independente da razão. Graças à razão, o homem observa a si mesmo; mas ele só se conhece através da consciência. Sem a consciência de si mesmo não são possíveis nenhuma observação e nenhuma aplicação do raciocínio. Para compreender, observar, concluir, o homem deve primeiro ter consciência de si mesmo, como um ser vivo. O homem só se concebe vivo, quando quer, isto é, tendo consciência de sua vontade. Ora, essa vontade, que constitui a essência de sua vida, ele só a concebe e só pode concebê-la, quando livre. [...] Se a consciência da liberdade não fosse uma fonte de conhecimento de si mesmo, distinta e independente da razão, ela estaria subordinada ao raciocínio e à experiência; mas, na realidade, tal subordinação nunca existe e é inconcebível. [...] Essa consciência de liberdade, inatacável, irrefutável, reconhecida por todos os pensadores e experimentada por todos os homens, sem exceção, essa consciência sem a qual é impossível qualquer noção de Humanidade, é que constitui a outra face do problema. O homem, em ligação com a vida geral da humanidade, aparece submetido às leis que regem essa vida. Mas o mesmo homem, independente desse elo, aparece livre. Como deve ser considerada a vida passada dos povos e da Humanidade. Como produto da atividade livre ou dirigida dos homens? Eis o problema da História. (TOLSTÓI, 1983, pp. 606-7).
De acordo com o escritor de Iasnaia Poliana, a resolução da questão da
liberdade e da necessidade encontraria na História 1 – em relação aos outros
espaços do saber que tentam solucioná-la – a vantagem de que essa questão seria
concernente não apenas à essência da vontade humana, mas à representação da
manifestação dessa vontade no passado e sob distintas condições. A História, no que se refere à solução deste problema, encontra-se em relação às outras ciências, na mesma situação de uma ciência experimental em relação às ciências especulativas. A História tem por objetivo não a própria vontade do homem, mas a representação que temos desta vontade. Eis porque não existem para a História, como para a Teologia, a Ética e a Filosofia, mistérios insondáveis na fusão da liberdade e da necessidade. A História estuda a representação da vida do homem, onde já se processou a fusão desses dois termos contrários. Na vida real, cada acontecimento histórico, cada ação humana, são compreendidos com muita clareza e nitidez, sem que surja a menor contradição, embora cada acontecimento apareça em parte livre, em parte necessário. (TOLSTÓI, 1983, p. 609).
Compreender em que medida se articula a fusão entre liberdade e
necessidade na experiência humana é, para Tolstói, o maior desafio que o
historiador pode ter diante de si haja vista que em todas as instâncias da vida
humana sobre a qual lançarmos nossos olhos encontraremos, sem exceção, essas
duas categorias interagindo: “Seja qual for o ângulo por que examinamos a
atividade de numerosos homens ou de um único, não podemos concebê-la senão
1 Optamos por grafar a palavra “História” com inicial maiúscula, tal como se encontra originalmente nos escritos de Tolstói, querendo com isso nos referir à ciência histórica, isto é, à disciplina acadêmica.
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como o produto, em parte da liberdade humana, em parte das leis da necessidade.”
(TOLSTÓI, 1983, p. 609).
Como havíamos visto na primeira parte do presente trabalho, Tolstói
considera que em todos os atos humanos nunca é possível encontrar apenas uma
dessas categorias agindo, mas a relação inversamente proporcional de cada uma
com a outra, ou seja, a proporção de cada uma aumenta ou diminui conforme o
modo sob o qual o ato humano é considerado. O escritor russo considera que em
todos os casos sem exceção, em que a nossa representação da liberdade e da
necessidade humanas aumenta ou diminui, três fatores fundamentais concorrem
para isso. O primeiro deles é a relação do indivíduo, autor do ato, com o mundo
exterior, que é o conceito mais ou menos claro do lugar definido que cada
indivíduo ocupa com relação a tudo quanto com ele simultaneamente existe. Partindo desse ponto de vista, é evidente que o homem que se afoga é menos livre e mais submetido à necessidade que o que se encontra em terra firme; partindo desse ponto de vista é que os atos de um homem ligado estreitamente a outros homens de uma região de população densa, e os atos de um homem ligado à sua família, a seu trabalho e a empreendimentos, parecem incontestavelmente menos livres e mais submetidos à necessidade do que os de um homem só e isolado. Se considerarmos o homem só, fora de suas relações com tudo que o cerca, cada um de seus atos nos parecerá livre; mas, se observarmos suas relações com seu círculo, se observarmos o elo que o prende a quem quer que seja, a alguém que lhe fala, ao livro que lê, ao trabalho que o ocupa, mesmo ao ar que o envolve ou à luz que cai sobre os objetos em seu redor, veremos que cada uma dessas condições exerce uma influência sobre ele e comanda pelo menos um dos aspectos de sua atividade. E quanto mais influência observarmos, mais diminui a idéia que tínhamos de sua liberdade e mais aumenta da necessidade à que ele está sujeito. (TOLSTÓI, 1983, pp. 610-11).
O segundo fator é a relação do indivíduo com o tempo, ou seja, a idéia mais
ou menos clara do lugar que a ação humana ocupa no tempo.
Partindo desse ponto de vista, a queda do primeiro homem, que teve como conseqüência o nascimento da espécie humana, parece menos livre que o casamento de hoje. Partindo desse ponto de vista, a vida e a atividade dos homens que viveram há séculos e estão ligados a mim no tempo não me podem parecer tão livres quanto a vida contemporânea, cujas conseqüências ainda me são desconhecidas. A parte mais ou menos grande de liberdade e de necessidade, sob esse ponto de vista, depende do maior ou menor lapso de tempo decorrido entre a realização do ato e o julgamento feito sobre ele. [...] Quanto mais longe eu me transportar para trás, pelo pensamento, ou, o que vem a dar no mesmo, para a frente, pelo julgamento, mais duvidosa será minha apreciação da liberdade de meu ato. (TOLSTÓI, 1983, p. 611).
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O terceiro fator é a relação do indivíduo com as causas que ao ato deram
origem, isto é, a nossa maior ou menor possibilidade de apreender a série
interminável de causas que constitui exigência inevitável da razão, na qual cada
fenômeno inteligível e, por isso, todo o ato humano deve ter seu lugar definido,
como efeito de atos precedentes e causa de ulteriores. A propósito desse fator,
acompanhemos o que nos diz Tolstói: Segundo esse ponto de vista, nossos atos e os dos outros nos parecem, de um lado, tanto mais livres e menos sujeitos à necessidade quanto mais conhecermos as leis fisiológicas, psicológicas e históricas deduzidas da observação às quais o homem está sujeito e quanto mais seguramente tivermos penetrado a causa fisiológica, psicológica ou histórica de um ato; por outro lado, quanto mais simples for o ato observado, menos complexos serão o caráter e o espírito do homem cujo ato estudamos. Quando não compreendemos em absoluto a causa de um ato, seja ele um crime, uma boa ação ou mesmo um ato indiferente ao bem e ao mal, reconhecemos nele uma grande parte de liberdade. [...] Se um homem, cujos atos examinamos, se encontrar no mais baixo grau de desenvolvimento da inteligência, como uma criança, um louco, um simples de espírito, então, conhecendo as causas de seus atos e a pouca complexidade de seu caráter e de seu espírito, veremos desta vez uma grande parte de necessidade e uma reduzida parte de liberdade, e se conhecermos a causa que deve produzir o efeito, poderemos predizer o ato. (TOLSTÓI, 1983, p. 612).
Destarte, consoante Tolstói, a nossa idéia de liberdade e/ou de necessidade
aumenta ou diminui paulatinamente, segundo o maior ou menor elo existente entre a
manifestação da vida de um homem o mundo exterior, o maior ou menor
distanciamento temporal e a maior ou menor dependência das causas entre as quais
examinamos esta manifestação.
Nas palavras do escritor russo, representar um ato humano submetido tão-
somente à lei da necessidade, destituído do menor resíduo de liberdade é tão
impossível quanto representá-lo inteiramente livre. Portanto, para imaginarmos
um ato humano submetido apenas à lei da necessidade, sem livre-arbítrio,
devemos obrigatoriamente admitir que conhecemos o número infinito das
condições no espaço, o período de tempo infinito e a seqüência infinda das causas.
Se fôssemos imaginar o homem inteiramente livre, não sujeito à lei da necessidade,
devemos então imaginá-lo só, fora do espaço, fora do tempo, e fora da dependência
das causas1.
1 Para maiores esclarecimentos, consultar TOLSTÓI, L. Guerra e Paz. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983.
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No primeiro caso, se a necessidade fosse possível sem a liberdade, chegaríamos à definição da lei da necessidade pela própria necessidade, isto é, a uma forma sem conteúdo. No segundo caso, se a liberdade fosse possível sem a necessidade, chegaríamos a uma liberdade incondicionada, fora do espaço, do tempo e das causas que, pelo próprio fato de não ser condicionada nem limitada por coisa alguma, nada seria, ou apenas um conteúdo sem forma. De um modo geral, chegaríamos a estes dois princípios que formam toda a concepção humana do mundo: a essência desconhecida da vida e as leis que definem esta essência. [...] A razão exprime as leis da necessidade. A consciência exprime a essência da liberdade. [...] Somente reunindo-as é que se chega a uma representação da vida do homem. (TOLSTÓI, 1983, pp. 615-16).
De acordo com Tolstói, na História chamamos o que nos é conhecido de “leis
da necessidade”, e ao que nos é desconhecido de liberdade. A liberdade seria, para
a História, a expressão do resíduo desconhecido do que sabemos das leis da vida
humana. Ainda segundo Tolstói, a História estuda as manifestações da liberdade
humana em relação ao mundo exterior , no tempo e na dependência das causas, ou
seja, ela define esta liberdade segundo as leis da razão. Deste modo, a História só
seria ciência na medida em que essa liberdade for definida por essas leis. Para a História, as vontades humanas se movimentam sobre certas linhas, das quais uma das extremidades se perde no desconhecido, enquanto a outra se move no espaço, no tempo e na dependência das causas; a consciência da liberdade dos homens aí se move no presente. Quanto mais o campo deste movimento se amplia aos nossos olhos, mais evidentes se tornam as leis deste movimento. Descobrir e definir estas leis é o papel da História. [...] Só limitando esta liberdade ao infinito, isto é, considerando-a como uma quantidade infinitesimal, é que nos convenceremos da impossibilidade absoluta de penetrar as causas, e só então, em lugar de pesquisar as causas, a História terá como missão a pesquisa de leis. [...] Chegando ao infinitamente pequeno, a Matemática, a mais exata das ciências, abandona o método de fracionamento e adota o novo método da totalização das incógnitas infinitamente pequenas. Renunciando às noções de causa, os matemáticos procuram uma lei, isto é, propriedades comuns a todos os elementos desconhecidos e infinitamente pequenos. [...] A História usa o mesmo processo. Se seu objetivo é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve, afastando a noção das causas, pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si. (TOLSTÓI, 1983, pp. 617-18).
A “teoria da integração dos infinitesimais” é, portanto, um esforço interpretativo
no qual as categorias liberdade e necessidade devem ser consideradas como compondo
um todo que é a experiência humana no tempo. A interação entre essas categorias é de
tal modo complexo que só poderíamos daí extrair uma intelecção efetivamente positiva
se considerarmos essa interação como um processo em que os elementos – livre-
arbítrio e contingência – relacionam-se em níveis infinitamente pequenos, isto é,
relacionam-se em instâncias sutis da existência humana.
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É chegado, porém, o momento de dedicar algumas páginas de nossa reflexão
à noção de “leis” presente nas reflexões tolstoinianas acerca da História.
A noção tolstoiniana da categoria “leis”
Como havíamos visto anteriormente, uma análise pormenorizada da
acepção empregada por Tolstói para se referir à categoria “leis” é de fundamental
importância para a compreensão de sua filosofia da história. É preciso fazer notar,
entretanto, que em Guerra e Paz, bem como especificamente no posfácio da obra –
em que o escritor russo consagra mais de trinta páginas para refletir sobre a
ciência histórica – não encontraremos particularmente nenhuma passagem na qual
Tolstói defina precisamente o que entende pela categoria “leis”, isto é, em nenhum
momento o escritor nos apresenta um conceito sólido e lapidado da referida
categoria.
Não obstante esta aparente indefinição, procuraremos em nosso esforço
interpretativo fornecer valiosos subsídios para apresentar um caminho de
interpretação diferente do que foi majoritariamente percorrido por críticos
literários e historiadores no que diz respeito ao tratamento recebido pela filosofia
da história de Tolstói ao longo da história das idéias. Não se trata evidentemente
de pretender apresentar um conhecimento definitivo sobre o tema, e sim de tentar
fornecer uma interpretação distinta, ensejada pela própria riqueza hermenêutica
que o tema encerra.
Com efeito, como vimos anteriormente no presente trabalho, a filosofia da
história de Tolstói fora geralmente tratada como uma legítima aberração, uma
disposição infeliz e impertinente de um genial escritor para diletantismos
filosóficos. Estas análises apontavam invariavelmente para um suposto “fatalismo
histórico” presente nas reflexões do escritor russo.
Pertencem ao historiador russo Kareiev, e ao filósofo e ensaísta canadense
Isaiah Berlin, as análises mais lúcidas e ponderadas sobre a filosofia da história de
Tolstói. Todavia, como veremos, ambos sustentam a tese segundo a qual haveria nas
reflexões do escritor russo uma espécie de “determinismo” proveniente da categoria
“leis” interpretada por eles – Kareiev e Isaiah Berlin – com o significado de padrões
cartesianos universais ou regularidades inexoráveis e imutáveis de comportamento às
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quais a humanidade estaria inescapavelmente submetida. Contudo, esta interpretação
dá sinais de claro desgaste se a confrontarmos com algumas pistas que nos foram
deixadas por Tolstói. Vejamos.
O primeiro argumento que oporemos modestamente às colocações desses
dois eminentes intérpretes do escritor russo é a constatação prosaica, demasiado
simples, aliás, do contra-senso que constitui a aceitação da categoria “leis” como
sendo sinônimo de padrões universais e/ou regularidades inexoráveis do processo
histórico no interior da filosofia tolstoiniana da história. Essa constatação se deve à
razão muito justa de que foi exatamente contra este tipo de explicação histórica
que o escritor russo lançou suas objeções por meio do adendo da obra Guerra e
Paz. Como vimos, Tolstói refutava tanto as histórias nacionais, promovidas pelas
capacidades pretensamente extraordinárias de figuras proeminentes, como
príncipes, reis, ministros ou “heróis” como as chamadas “histórias da
intelectualidade”, isto é, as explicações segundo as quais o movimento histórico
seria promovido pela divulgação ou propagação de idéias. A mesma oposição o
escritor fazia às histórias totalizantes, que procuravam explicar o movimento
histórico através da postulação de leis que traduzissem as regularidades do
processo histórico e de toda a realidade, ou seja, as teorias escatológicas dos
sistemas sociais. A História moderna substituiu os homens dotados de um poder divino e guiados diretamente pela vontade de Deus, por heróis dotados de qualidades excepcionais, sobre-humanas, ou simplesmente por homens das mais diversas qualidades, desde monarcas até os jornalistas que arrastam multidões. Às antigas finalidades, agradáveis à divindade, que eram impostas a certos povos como os hebreus, os gregos e os romanos, e que os antigos imaginavam ser o objetivo dos movimentos da Humanidade, a História moderna acrescentou suas próprias finalidades: o bem do povo francês, alemão, inglês e, no mais alto grau de abstração, a civilização de toda a Humanidade, que geralmente significa os povos que ocupam o pequeno recanto noroeste do grande continente. A História moderna repudiou as antigas crenças sem substituí-las por novas, e a lógica obrigou os historiadores que pretendiam ter rejeitado o poder divino dos reis e o “fatum” dos antigos, a voltarem, por outro caminho, ao mesmo ponto. Foram obrigados a reconhecer que: 1º os povos são dirigidos por indivíduos; 2º existe uma finalidade determinada para a qual se encaminham os povos e a Humanidade. Todas as obras dos mais modernos historiadores, desde Gibbon até Buckle, apesar de sua aparente divergência e da aparente novidade de suas concepções, baseiam-se em dois postulados definitivos. Em primeiro lugar, o historiador descreve a atividade de determinados indivíduos, que, em sua opinião, conduzem a Humanidade. Um só considera como tais os monarcas, os grandes generais, os ministros. Outro, além dos monarcas, inclui os oradores, sábios, reformadores, filósofos e poetas. Em segundo
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lugar, é conhecido do historiador o objetivo para o qual a Humanidade é dirigida. Para um, para leste, é a grandeza do Estado romano, espanhol, francês. Para outro, a liberdade, igualdade, a civilização de certa espécie, de um pequenino recanto do universo, chamado Europa. (TOLSTÓI, 1983, pp. 585-86, [grifo do autor]).
Tolstói compreendia as conseqüências antitéticas e extremamente
problemáticas de se considerar a categoria “leis” como regularidades imutáveis e
passíveis de repetição através do empirismo. Aplicar o padrão newtoniano de
explicação da realidade à História seria prestar um enorme desserviço para com a
sua própria filosofia da História; em uma passagem sobre as considerações de
Kareiev acerca da filosofia da história de Tolstói, Isaiah Berlin nos diz o seguinte: Negar que possamos descobrir muitas coisas através da observação social, da inferência histórica e meios semelhantes equivaleria, para Kareiev, a negar que dispúnhamos de critérios mais ou menos confiáveis para distinguir entre a verdade e a falsidade histórica. Isso, com toda certeza, não passava de mero preconceito e obscurantismo fanático. Kareiev declara que são inquestionavelmente os homens que fazem as formas sociais, mas essas formas – os modos como os homens vivem – por sua vez afetam os que nelas nasceram; as vontades individuais talvez não sejam onipotentes, mas tampouco são totalmente impotentes e algumas se mostram mais eficazes do que outras. [...] O conceito de Tolstói sobre leis inexoráveis que funcionam por si sós, a despeito de tudo o que os homens possam pensar ou desejar é, em si, um mito opressivo; as leis são apenas probabilidades estatísticas, pelo menos nas ciências sociais, e não “forças” abomináveis e inexoráveis – um conceito cuja obscuridade, segundo Kareiev assinala, o próprio Tolstói, em outros contextos, desmascarou com grande brilho e malícia, quando seu adversário lhe parecia excessivamente ingênuo ou esperto, ou sob o domínio de alguma metafísica grotesca. Afirmar porém que, a menos que os homens façam a história, eles não passam, sobretudo os “grandes” homens, de meros “rótulos” porque a história se faz a si mesma, e apenas a vida inconsciente da colméia social , o formigueiro humano, possui significado ou valor e “realidade” autênticos – o que significa isso, a não ser um ceticismo ético, inteiramente dogmático e a-histórico? Por que deveríamos aceitá-lo, quando a evidência empírica aponta em outra direção?(BERLIN, 1988, p. 64, [grifo nosso]).
É interessante notar que o próprio Kareiev, segundo nos mostra Isaiah
Berlin, fornece outro importante subsídio para nossa argumentação. Através do
trecho grifado da passagem supracitada, notamos claramente o fato de que Tolstói
não ignorava os efeitos paradoxais de se considerar a noção de “leis” como sendo
regularidades imutáveis ou forças inexoráveis.
O segundo argumento de oposição às interpretações majoritárias sobre a
filosofia da história de Tolstói encontra respaldo em passagens em que o próprio
escritor russo indica uma acepção restrita do termo “leis”. De fato, se analisarmos
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detidamente os trechos nos quais Tolstói emprega a palavra “leis”, verificaremos
que sempre o termo se refere às leis da necessidade, isto é, às adversidades com as
quais todos os homens em todos os tempos se depararam. Vejamos: “Seja qual for
o ângulo porque examinamos a atividade de numerosos homens ou de um único,
não podemos concebê-la senão como o produto, em parte da liberdade humana,
em parte das leis da necessidade.” (TOLSTÓI, 1983, p. 609, [grifo nosso]).
Em outra passagem, refletindo a respeito do modo como a nossa noção de
liberdade e/ou necessidade aumenta ou diminui conforme a maneira como
examinamos o ato humano, o escritor de Iasnaia Poliana nos diz o seguinte: A relação entre a liberdade e a necessidade diminui ou aumenta segundo o ponto de vista em que nos colocamos para examinar o ato; contudo, esta relação conserva-se sempre inversamente proporcional. O homem que se está afogando e que se agarra a outro e o arrasta consigo, ou a mãe faminta, esgotada pelo aleitamento do filho, que rouba comida, ou o homem habituado à disciplina que, por uma ordem, mata um homem indefeso, parecem menos culpados, isto é, menos livres e mais submetidos à lei da necessidade, aos olhos do que conhecia as condições em que eles se achavam, e mais livres, para quem não sabia que aquele homem se afogava, que a mulher tinha fome e que o soldado recebera uma ordem. (TOLSTÓI, 1983, p. 609, [grifo nosso]).
Na seqüência temos outro exemplo do modo pontual com que Tolstói lança mão da categoria “leis” para falar da complexa interação entre liberdade e necessidade.
Mas, mesmo se imaginarmos um homem inteiramente subtraído a todas as influências, considerando somente seu ato instantâneo no presente e supondo que nenhuma causa o tenha provocado, admitimos um resto infinitesimal de necessidade igual a zero, e nem assim chegaremos à noção de liberdade absoluta do homem. Pois um ser, impermeável a influências do mundo exterior, encontrando-se fora do tempo e sendo independente de causas, já não é mais um homem. Exatamente da mesma forma, nunca podemos imaginar um ato humano que se realize sem a intervenção da liberdade e que só esteja sujeito à lei da necessidade. [...] Por essa razão é que representar-se um ato humano submetido unicamente à lei da necessidade, sem o menor resíduo de liberdade é tão impossível quanto representá-lo inteiramente livre. Assim, para imaginarmos um ato humano submetido unicamente à lei da necessidade, sem liberdade, devemos admitir que conhecemos o número infinito e a seqüência infinita das causas. Para imaginarmos o homem absolutamente livre, não sujeito à lei da necessidade, devemos imaginá-lo só, fora do espaço, fora do tempo e fora da dependência das causas. (TOLSTÓI, 1983, pp. 614-15, [grifo parcialmente nosso])
Os leitores mais atentos chamarão a atenção para o fato de que
anteriormente citamos neste trabalho o fato de Tolstói propor para a História o
mesmo procedimento da Matemática, em que a busca de causas seria substituída
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pela pesquisa de “leis”. A despeito da coerência desta observação, fazemos notar
que o escritor russo se refere a um procedimento metodológico, e não
epistemológico. Dito em outras palavras, Tolstói vislumbrou para a História uma
maneira de proceder que apesar de tomar de empréstimo o procedimento da
Matemática, não partilhava com esta o padrão newtoniano indutivo/dedutivo de
explicação da realidade. A História usa o mesmo processo. Se seu objetivo é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve, afastando a noção de causas, pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si. (TOLSTÓI, 1983, p. 618, [grifo nosso]).
Observe-se que as “leis” às quais se refere Tolstói devem ser interpretadas
como sendo adversidades presentes na existência. Precisamente aqui chegamos ao
centro nevrálgico de nossa audaciosa oposição argumentativa às interpretações
recorrentes a propósito da filosofia da história de Tolstói. Estas invariavelmente
encaram as reflexões tolstoinianas como recheadas de um suposto “fatalismo
histórico”. Este tipo de análise decorre, como já vimos, de uma interpretação que
pensamos ser equivocada da categoria “leis”. O fato de Tolstói não ter se
preocupado em conceituá-la concorre, a bem da verdade, para alimentar a
controvérsia.
O caminho que percorremos procurou fornecer uma interpretação do termo
“leis” como sendo a contingência, isto é, aquilo que pode ou não acontecer, o
incerto, o inesperado que embora tome formas diferentes sob distintas épocas,
sempre será algo com que se deparará o gênero humano.
O caráter contingencial da vida humana: eis algo que invariavelmente
acompanhará a experiência humana no tempo. Sob esse entendimento, podemos
pensar em falar de imutabilidade ou inexorabilidade, pois a liberdade humana
sempre se verá diante dos desafios da dor, do sofrimento, do júbilo, da alegria, da
serenidade, do esquecimento e da memória. Somente interpretando o termo “leis”
como contingência é que podemos compreender a teoria da integração dos
infinitesimais em toda sua inteireza, sem lhe imputar contornos “metafísicos” ou
deterministas que não resistem a uma análise mais aprofundada e cuidadosa.
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Max Weber Historiador A Indologia Weberiana Frente Ao Historicismo Alemão
Doutorando Arilson Silva de Oliveira
Universidade de São Paulo (USP). Órgão financiador: FAPESP.
E-mail: [email protected]
RESUMO
Max Weber se apropriou das exigências metodológicas do historicismo alemão contra toda filosofia iluminista natural e toda filosofia idealista da história. Ele as depurou no intuito de evitar as conclusões do romantismo e os desvios psicologistas do neo-historicismo. Aqui, observamos como ele muniu-se de um método particular, resgatou a racionalidade e a utilizou como parâmetro para compreender historicamente a sociedade indiana frente ao historicismo desencantado de sua época.
Palavras-Chave: Max Weber; Indologia; Historicismo; Teoria da História.
ABSTRACT
Max Weber assumed the methodological requirements of German historicism against all natural illuminist philosophy and all the idealistic philosophy of history. He improved them in order to prevent the conclusions of the romanticism and the psychological deviations of the neo-historicism. Here, we observe how he equipped himself with a particular method, rescued rationality and applied it as a parameter to historically understand Indian society in opposition to the disenchanted historicism of his time.
Keywords: Max Weber; Indology; Historicism; Theory of History.
Introdução
Os estudos sociológicos em geral se apropriam de Max Weber como um de
seus autores fundadores, ou seja, como um eminente (e já clássico) precursor, com
inúmeras e variadas contribuições às Ciências Sociais. Entretanto, aqui, visamos
apresentá-lo como também proeminente teórico da história, pela identificação de
conceitos e princípios advindos de suas análises indológicas, abundantemente
presentes em uma de suas principais obras: Hinduismus und Buddhismus (1921,
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póstumo), ainda pouco conhecida ou quase ignorada pelos estudos weberianos,
sobretudo no Brasil.
Hoje em dia é muito comum afirmar que Weber fez uma sociologia-
histórica. O que devemos nos perguntar é se esse hibridismo poderia ser
reconhecido pelos homens de ciência no início do século XX. Parece-nos que não. E
se nos inclinamos para a negativa, em oposição a essa leitura atual, é porque temos
o intuito de evitar determinado anacronismo. Weber é, além de pensador da
sociedade, um exímio teórico da história. E isto serve à sua própria estratégia
metodológica, já que concebia a Sociologia como auxiliar da História. Defendemos
que resgatar a importância do Weber historiador não implica em negar seu viés
sociológico, mas recuperar também a obra do historiador, obscurecida pela sua
apropriação nas Ciências Sociais.1
Para caracterizar essa recuperação, utilizamos a história filosófica e
indológica weberiana, em geral ignorada ou lida apressadamente, mal
compreendida, mal apropriada e visivelmente sugerida como secundária. Pois,
indicamos que a função da indologia weberiana, assim como toda a sua obra, volta-
se, dentre outros interesses, para a compreensão das particularidades da
sociedade ocidental moderna; notadamente, o desencantamento sem precedente
ocidental será identificado por contraste com a Índia encantada, ou seja, dois
extremos que facilitam uma comparação tipo ideal, por assim dizer.
A nossa pergunta-guia é: se o segundo volume (dentre três) de Gesammelte
Aufsätse zur Religionssoziologie (GARS), obra indológica de Weber, consiste mesmo
em uma obra sociológica ou histórica. 1 Não apenas em obras recentes, tão bem construídas e tão bem argutas, como Orientalism and Religion de Richard King, por exemplo, o qual não dedica uma única referência ou crítica à indologia weberiana, uma vez que Weber lhe havia servido de exemplo e contra-exemplo para muitas de suas afirmações. Ademais, Weber chega a ser silenciado por seus compatriotas como Helmuth von Glasenapp, o qual, em seu pioneiro Das Indienbild Deutscher Denker se detém, com certa extensão, em múltiplos autores que não têm o fôlego intelectual de Weber. Ou como Wilhelm Halbfass, que nas 550 páginas de sua referencial Indien und Europa, tão só inclui uma triste alusão a Weber numa nota final (HALBFASS, 1981, p. 521), referida à problemática da carência do direito natural na Índia. Sem falar do weberólogo Fritz Ringer, o qual elaborou uma exaustiva e minuciosa análise de Weber em Max Weber’s Methodology, 1997 [Metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São Paulo: EDUSP, 2004], mas não fez uma única menção ao método indológico weberiano, tocando no assunto apenas em An Intellectual Biography. Chicago: The University of Chicago Press, 2004; mas com um breve resumo. No Brasil, o weberólogo Flávio Pierucci chegou a escrever sobre a China e o Islã, mas nunca sobre a Índia. Jessé de Souza também já escreveu abundantemente e organizou obras sobre Weber, mas não existe um único olhar direcionado para a Índia pela via de Weber. Tudo isso, provavelmente, desmotivado pela falta de conhecimento indológico e pela incompreensão da abundante língua sânscrita utilizada por Weber.
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Nosso foco central, em si, é muito simples: Hinduismus und Buddhismus é
uma obra de História, a qual ampara uma das principais oposições teóricas
weberianas: desencantamento versus encantamento do mundo. A Índia figura
como tipo-ideal do encantamento, contra o desencantamento proliferado pelo
protestantismo europeu, com o advento do puritanismo e do calvinismo, tão
lucidamente analisados em sua também clássica obra – histórica e não sociológica,
segundo Sérgio da Mata (2006, pp. 113-126): Die protestantische Ethik und der
“Geist” des Kapitalismus [A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo] (1904-5,
1920).
Esse desencantamento ou processo histórico-religioso, segundo Weber, teve
início com as profecias do judaísmo antigo – com seu dogma emissário de
interpelação ética – em conjunto com o pensamento científico helênico ou estóico-
semítico, com a prática sobrelevando a teoria (RUSSEL, 1957, p. 268). Tal processo
rejeitou os meios da racionalização mística (contemplação intelectiva), tendo como
efeito o Entgötterung der Natur [desendeusamento da natureza] e deixando no
espírito um vazio e um mundo submetido meramente ao ganho e o interesse
material (WEBER, 2004, p. 96), não obstante, instalando a insatisfação de um
tempo presente permanente, um amanhã sempre ausente e um passado atrasado
que se deve esquecer.
Isto é, o grau com que as idéias judaico-cristãs se despojaram da magia,
eliminando os significados da vida cotidiana, tendo como mediador ou afinidade
eletiva a técnica helenística e como ponto de chegada ou fim (Abschluss) à cruzada
puritana, com sua divinização do trabalho – “pirataria, só isto!”, dirá Nietzsche – e
seu ethos racional finalista como meio para o vazio de um pluralismo cognoscitivo
recheado de Nada (como dirá Weber). Tudo isso explica, segundo Weber, como tal
ilusão progressista e desencantada adentrou o campo científico e filosófico (ou
mecanismo causal desprovido de sentido) da racionalização do mundo e criou ou
provocou, dentre outras coisas, falsas idéias sobre as idéias do Oriente1 ou falsas
idéias longe do que não se percebeu ou alcançou do Oriente como sendo idéias
primais e complexamente desenvolvidas.
1Logicamente, com suas devidas exceções.
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Tal sintagma (desencantamento do mundo), entendido como
desmagificação ou desracionalização do pensamento místico, representa a função,
portanto, de um processo histórico grandioso e especificamente ocidental, quase à
guisa de um nome próprio e não comum, o enorme e peculiar período de
racionalização alcançada por esta forma de moral monótono-teísta, como inferirá
Nietzsche.
Para o weberólogo Wolfgang Schluchter (1999, p. 113): Somente quando o protestantismo em conseqüência da reforma retomou as heranças judaicas e cristãs primitivas – amalgamando-as sobre o fundamento de um individualismo religioso radical – pôde acontecer [...] o desencantamento (Entzauberung) radical [...]. Nesse sentido, Weber pode afirmar o fato de somente aqui ser realizado o desencantamento completo do mundo com todas as conseqüências [incluso a invenção e difamação do Oriente e o rechaço da filosofia].
Para entendermos esse significativo ponto da teoria weberiana, na
Inglaterra, por exemplo, a magia de um modo em geral perdeu sua força social
antes mesmo que a maquinaria técnica em grande escala (industrial) fosse criada
no intuito de substituí-la. Foi o “abandono” da magia que possibilitou/facilitou a
erupção da tecnologia mecanicista e não o contrário. Na verdade, como
eloqüentemente nos apresentou Weber, a magia era potencialmente um dos
maiores obstáculos (muitas vezes conscientes, como no caso indiano e chinês) à
racionalização da vida econômica tecnocrata. Sendo desobstruída com a fundição
entre a racionalidade neo-helênica européia e a doutrina protestante, como uma
providência do mal-estar histórico, dirigido pela visão de mundo em “nego-ócio”
ou negação do ócio como prerrogativa do desencantamento do mundo: esse reino
mecanicista, no qual os efeitos seguem as causas de maneira previsível e calculista,
sem o auxílio de uma visão mística racional que o detecte.
Por isso, Weber (sob a sombra de Marx que afirmara ser o capitalismo um
judaísmo prático ou Judentum) é o único, dentre os autores germânicos clássicos1
que rompe em definitivo com as premissas da Filosofia da História hegeliana, bem
como das hipóteses fundamentais do evolucionismo darwiniano. Não por acaso,
Weber ironicamente dirá: “ao contrário do que pensam os otimistas
1Podemos citar outros expressivos ou menos conhecidos autores alemães que inferiram acerca de tal relação histórica entre protestantismo e capitalismo, como, por exemplo, Werner Sombart em The Jews and Modern Capitalism, 1911.
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[evolucionistas] entre nós, vê-se que nem sempre a seleção realizada num livre
jogo de forças acaba beneficiando a nacionalidade mais desenvolvida ou melhor
dotada economicamente” (COHN, 1999, p. 65). Ao mesmo tempo em que lamenta a
queda da “magnificência marmórea” da Antigüidade: “comove-nos
melancolicamente o espetáculo de uma evolução que, ao aspirar o mais alto, perde
sua base material e rui sobre si mesma” (Ibid., p. 56).
Tal observação leva Luís Gusmão a elucidar: Weber está perfeitamente consciente de que o mundo dos homens é o mundo da ação intencional, isto é, da ação orientada por crenças e propósitos, dos significados culturais interjubjetivamente partilhados, dos valores e das normas, e não o mundo das forças cegas, das regularidades e dos autonomismos naturais que vinham, desde o século XVII, sendo objeto de um rigoroso e abstrato saber nomológico. Neste reconhecimento, lúcido legado do ponto de vista historicista. Weber se afasta da crença filosófica [hegeliana], tão explicitamente professada por Durkheim em seus textos metodológicos e, ao nosso ver, implícita na obra marxiana, segundo a qual as regularidades e invariâncias, indubitavelmente presentes na vida social, autorizariam o projeto de uma sociologia causal e determinista, voltada para o estabelecimento de leis tão gerais e inflexíveis como aquelas encontradas no âmbito das ciências naturais (GUSMÃO, 2000, p. 244).
Weber, portanto, concebeu a modernização (lê-se “espírito do capitalismo”:
alfa e ômega da moral auri sacra fames) social da velha Deusa Europa, como
resultado de um processo histórico de racionalização ou mecanização das relações
sociais, o qual se manifestou com o sagrado auxílio (com afinidade eletiva) de um
terreno fértil chamado protestantismo, que, por sua vez, determinara que o lucro
fosse um ato natural, podendo ele ser praticado sem o chamado especial de seu
deus e que o indivíduo ou o Eu individual, in majorem Dei gloriam, não pode e não
deve divinizar a criatura (no caso, o homem) através das relações pessoais e com
caráter místico-racional. Não será por acaso que Nietzsche (2007, § 10) definirá o
protestantismo como a hemiplegia (paralisia parcial ou total do corpo) da razão.
O Historicismo alemão
A extenuante formação da ciência histórica e social alemã está marcada
pelo debate original, largo e intricado entre o Iluminismo (Aufklärung) e o
Historicismo (Historismus), “surgido” a propósito da Revolução Francesa e
reforçado com a Revolução fracassada de 1848. E uma de suas investidas
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principais e decisivas foi repensar a relação entre Filosofia e Tempo, Razão e
História. Um inegável mérito do pensamento alemão também foi a reivindicação
do “pensar-se na história” em oposição ao “pensar-se como homem” (legado do
antropocentrismo renascentista europeu). Ante esse intenso turbilhão
intelectual, a defesa alemã do “histórico” foi entendida como o equivalente a
uma tomada de partido lúcida: pela tradição, pelo passado e pela restauração de
uma cultura perdida. Todavia, o histórico não se esgotou com esta mudança,
senão que inaugurou a cultura alemã do século XIX, determinando, assim, sua
tensão com o resto da Europa1 e seu riquíssimo debate filosófico.
Em geral, a crítica historicista alemã contra o Iluminismo se centrou na
separação que esta última havia estabelecido entre razão e história
(interpretando a historiografia como arte). A razão, no Iluminismo, havia
desembocado num conceito abstrato da “natureza humana” e seu conceito
pretendia ser a forma e a norma dos fatos sociais. Todavia, os alemães cuidaram
para que a intelectualidade e as relações de poder (Estado) chegassem a uma
“verdade” particular e separada: vigorosa especulação intelectual versus
devoção apolítica. Na Alemanha, o apriorismo de Kant era o paradigma desta
separação: lugar de manifesto na desarticulação que o mesmo Kant havia
estabelecido entre teoria e prática da razão.
O historicismo enfrentou essa tese de Kant com a afirmação de que, por
um lado, a unidade do conceito de natureza humana não contém a riqueza da
pluralidade e das diferenças históricas, nacional-populares, culturais e
individuais, e, por outro, que sua identidade prescinde das contradições e dos
conflitos reais.2
Dentro do debate entre Aufklärung e Historismus coloca-se também a
questão do determinismo e da teleologia. Kant será o ponto de partida dessa
1 Em torno de 1800, deu-se uma revolução (podemos assinalar: uma “re-volta”) educacional nos Estados germânicos; portanto, anterior a Inglaterra e a França e bem antes da devastação do homo faber alcançar a Germânia (fato instalado pelos nazistas ao advento das grandes guerras no século XX). 2 Do ponto de vista social, a devoção apolítica aos poderosos como precondição para a introspecção e a rejeição germânica do mundo prefigura, talvez, o traço mais marcante da cultura alemã a partir de então, sabendo que suas origens advêm da influência da figura de Lutero e de sua reforma social e religiosa. Noutras palavras, o indivíduo autodidata (incomparável e não meramente intelectual) era sempre descrito como absolutamente único e imbuído de potencial distintivo para a realização pessoal.
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questão com sua afirmação da dupla causalidade na historia: os fatos históricos
enquanto “fenômenos”, “objetos de conhecimento”, não podem ser conhecidos
além de causas-efeitos, sob o princípio do determinismo; enquanto “ações
humanas”, por outro lado, postulam liberdade e se regulamentam pelo dever-
ser, sob o princípio de uma teleologia moral imperativa.
Tal debate entre o determinismo e a teleologia tomou, durante a segunda
metade do século XIX, a forma mais específica de uma questão acerca da
possibilidade e da pertinência cognoscitiva da explicação (causal) ou da
imprecisão (dos fins e do sentido das ações) no método histórico-social. Ele foi
importante para o nascimento de uma “história compreensiva”, a qual provocou
o renascimento da hermenêutica (Schleiermacher), assumida como o método
próprio da filosofia clássica e, por extrapolação, da historiografia romântica
alemã. Conseqüentemente, o cânone hermenêutico da compreensão do “texto
pelo contexto” foi assumido pela História num duplo sentido: 1) os fatos
históricos e suas obras só podiam ser compreendidos situando-os como
momentos e componentes de uma totalidade estrutural e em processo (época,
sociedade, cultura, personalidade etc.); 2) tais eventos e obras eram produtos
dessas totalidades cuja dinâmica obedecia não só a princípios racionais teóricos
ou práticos, senão que se desenvolvia com o impulso de “toda a alma”, do “ser
inteiro”, remarcando, assim, a influência histórica da tradição, do sentimento e,
particularmente, dos valores e fins livremente decididos e não necessariamente
fundados de maneira racional. É o momento no qual se fala de “espírito da
nação”, “espírito das leis”, “espírito do capitalismo” etc.
Desta perspectiva, o ato de conhecimento próprio da história era
“compreender o sentido” dessa totalidade no “espírito” (Geist) em movimento.
E, uma vez capturada a teleologia de uma época, de uma cultura, de uma
sociedade ou de uma personalidade, se podia explicar a aparição real e a
configuração peculiar de certos fatos particulares: do todo à parte, do real à
análise conceitual. Explicar os fatos significava compreendê-los como condições,
instrumentos ou conseqüências do desenvolvimento teleológico de uma
totalidade “espiritual”.
Para estabelecer essa questão em uma forma e em um nível diferentes foi
decisivo o retorno a Kant, na segunda metade do século XIX, o que foi proposto
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por Dilthey e realizado com maior ênfase pelos neokantianos da Escola de
Baden (Windelband e Rickert, por exemplo).1
Assim como Kant pretendeu dar conta da Física e da Matemática de seu
tempo, a escola neokantiana de Baden pretendeu fazer o mesmo com as
nascentes disciplinas histórico-sociais que em Kant ficaram fora da ciência ou
submissas à regularização ético-jurídica racional. A “crítica da razão histórica”,
sem abandonar os princípios da teoria “transcendental” do conhecimento,
tomou a forma de uma axiologia transcendental e, mais especificamente, a
forma de um “interesse” ou “valor” de conhecimento que presidia e determinava
a orientação e o exercício do método. A Escola de Baden refutou que o objeto
determinara o método – posição mantida por toda a Escola histórica e aguçada
por Dilthey – e, inversamente, afirmou que o valor ou o interesse do
conhecimento conduzia a diversos processos de formação ou elaboração do
conceito dos objetos dados empiricamente.
Com isso, a ciência histórico-social mergulhou na Filosofia, uma vez que
os neokantianos esquentaram o debate e apontaram novas propostas que
podiam ser retomadas e reinterpretadas sem a necessidade de aceitar
ortodoxamente suas premissas e conclusões.
Intervenção de Weber no debate historicista
Esta será a tarefa metodológica de Max Weber – notadamente, um vigoroso
neokantiano –: como fundar uma ciência historicista da história social, tendo como
apoio a Sociologia e a Filosofia.
Consciente das hipóteses filosóficas que pesavam nas investigações
historicistas, Weber se opõe a toda teologia (judaico-cristã), ontologia e axiologia
que tiveram pretensões de alcançar a universalidade e o absoluto na determinação
do princípio e do sentido da história. Weber fará suas as exigências historicistas
relacionadas com a “compreensão do sentido”, com o “indivíduo histórico”, a 1 O famoso discurso reitoral de Wilhelm Windelband sobre História e Ciências Naturais, de 1894, manifestou uma nova linha analítica neokantiana – aperfeiçoadas e reelaboradas mais tarde por Heinrich Rickert –, transferindo o enfoque do principio de empatia para o principio de individualidade. E apesar de Windelband praticamente ignorar a psicologia descritiva e as reflexões sobre as disciplinas humanistas de Dilthey, defendia que se devia reduzir o estudo das questões humanas à busca de regularidades psicofísicas – o que Weber considerava e condenava como formas de “psicologismo”.
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teleologia, o “universal concreto”, mas, ao mesmo tempo, intentará reelaborá-las
de maneira que não excluam a necessidade do conceito, a formação de enunciados
causais e a comprovação empírica dos mesmos.
Com Weber, o tema da “racionalidade” recupera a “razão” dentro do
historicismo, sem denotar com isso que o real e o racional, o cronológico e o lógico
coincidam. A racionalidade é apenas uma estratégia metodológica para facilitar
conceitualmente a compreensão hermenêutica dos fatos históricos. Ela possui uma
função heurística.
Ele acrescentará ainda que os fatos histórico-sociais devem ser explicados a
partir da premissa de que eles são conseqüências de ações e que as ações são a
realização de certos fins mediante o emprego de certos meios. Por conseguinte, a
explicação causal da aparição de determinados fatos se baseia finalmente na
compreensão do sentido da ação do agente histórico.
Ou seja, um dos significativos feitos teóricos de Weber – que nos ajuda a
entender sua empreitada – foi a integração de duas perspectivas divergentes que
vinham dividindo teóricos e profissionais das ciências históricas, sociais e culturais
desde o início do século XIX: as chamadas abordagens interpretativista e
explicativa. A barreira entre ambas apareceu em outras épocas e contextos
científicos, mas foi particularmente acentuada na cultura acadêmica de Weber. Na
verdade, seus resíduos ainda constituem sérios obstáculos ao pensamento
intelectual e isso nos proporciona um maior crédito para análise.
Ao nosso modo de ver, Weber teria resolvido a tensão – operando, assim, a
união entre ciências culturais e historicismo – por meio de duas reformulações
cruciais, e, no que mais nos importa, com seu olhar também (e porque não dizer,
principalmente) voltado à Índia. Para começar, adotou um esquema intricado e
flexível de análise causal singular; um tipo de análise que o faz remontar a seus
antecessores causais pertinentes, a determinados eventos e às mudanças
históricas ou desfechos. Depois, ao longo dessa linha de análise, desenvolveu um
modelo de interpretação baseado na atribuição hipotética de racionalidade, o qual
independe de pressupostos subjetivos e naturalistas, ao mesmo tempo em que
redime o processo hermenêutico como uma forma de análise causal singular.
Essa íntima conexão entre interpretação e explicação, no pensamento
weberiano, é ainda ilustrada por sua recomendação de tipos ideais como recursos
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heurísticos. Tais tipos ideais são simplificações ou caracterizações unilateralmente
exageradas de fenômenos complexos, os quais podem ser hipoteticamente
concebidos e depois comparados com a realidade que devem elucidar.
Como exemplo, Weber encontrará na Índia o extremo-oposto do judaísmo,
do protestantismo e do capitalismo moderno,1 uma vez que ela representa o que
há de mais encantado, mágico e substancialmente vivo, portanto, um objeto
privilegiado para suas comparações.
Weber dispôs-se a explicar a “combinação de circunstâncias”, a qual foi
responsável pela diferenciação inicial entre a cultura ocidental e a oriental. Isto fica
evidente quando a contemplação mística e a filosofia – especialmente tal como se
desenvolveu na Índia – é posta em contraste, ponto por ponto, com o ascetismo
interior, tal como se desenvolveu no cristianismo ocidental; enfatizando que o
ascetismo puritano, por exemplo, viola o metafísico, em contraposição ao
pensamento budista antigo que encara a ação deliberada como uma forma
perigosa de secularização.
Nas primeiras linhas de Das antike Judentum, Weber (1978) também dirá
que a conduta social e ritual das castas indianas antigas – para as quais o mundo é
eterno e carece de “história” linear ou típica ocidental – é justamente o oposto da
conduta judaica antiga, pois, para esta, o ordenamento social do mundo é visto
como algo que confirmaria a eleição escatológica do povo judeu como dominador
da terra. O que provocara, segundo Weber, “uma distância enorme” e evidente
entre o pensamento judaico e o indiano. Evidência estabelecida na explícita
dicotomia em relação à visão do tempo (judaica, linear-finalista; indiana, cíclica);
na visão da magia (judaica, antimágica; indiana, totalmente mágica); e assim
sucessivamente em relação ao trabalho, à mulher, à política, à comensalidade, à
economia, à sexualidade, à filosofia etc.
Como assinalado anteriormente, além do judaísmo, Weber coloca em pauta
o protestantismo frente à Índia, pois somente o protestantismo ascético
efetivamente eliminou a magia e a “iluminação” contemplativa intelectualista, que,
na verdade, representa o oposto da concepção de profissão hinduísta
1 Assim como o confucionismo será o “espírito” mais próximo do puritanismo.
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tradicionalista, ou seja, um mundo tal qual “um grande jardim encantado” (WEBER,
1985, p. 379).
Todavia, esta comparação entre opostos extremos, a qual Weber elaborou
com sua indologia, não foi tomada como contribuição para a precisão de suas
construções analíticas, além de não ser considerada como ciência histórica, como
hoje podemos caracterizar boa parte de sua obra. Pois, assim como em Die
protestantische Ethik, em Hinduismus und Buddhismus Weber exagera seus
exemplos e elucida definitivamente seu método e seus pressupostos. Mas, com
tudo isso, a Índia de Weber ficou, além de praticamente silenciosa, reduzida a um
apêndice da sociologia.
Supomos que essa ausência (ou silêncio) da indologia weberiana deveu-se a
algumas razões. Por exemplo, alguns indólogos modernos equivocadamente
consideram, por um lado, que o trabalho de Weber não contribui com nada
significativamente profundo sobre a Índia; e, por outro, que está cheio de
imprecisões, clichês e erros (KULKE, 1986, p. 97). Mas isto se deve, em especial, ao
fato de tal pesquisador não conhecer em especial a teoria da racionalidade
weberiana e suas devidas comparações analíticas em torno da Ásia. Além disso,
Hinduismus und Buddhismus lhes põe a dificuldade – muito mais do que outras
obras – de se ter em conta as linhas fundamentais dos desenvolvimentos teóricos
weberianos, acrescidas da exigência de conhecimento razoável da cultura indiana e
principalmente da língua sânscrita (exaustivamente utilizada por Weber, muitas
vezes sem tradução ou aparato conceitual de apoio) – quase sempre não familiar
aos pesquisadores ocidentais –, para relacioná-los e compreendê-los.
Como elucida David Gellner (1991), muitos estudiosos (ocidentais) de
Weber possuem em Hinduismus und Buddhismus sua única fonte de conhecimento
sobre a Índia. Isso revela um problema tanto para o entendimento da indologia de
Weber quanto para o pressuposto teórico de um Weber historiador.
Não obstante, Weber se apropriou das exigências metodológicas do
historicismo alemão, contra toda filosofia iluminista da natureza humana (Wilhelm
Ostwald e Karl Lamprecht) e contra toda filosofia idealista da história. Todavia, as
depurou no intuito de evitar as conclusões do romantismo (Friedrich Schlegel e
Friedrich Rückert, ambos orientalistas) e os desvios psicologistas do neo-
historicismo (Schmoller, Wundt e Lujo Brentano).
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Com isso, muniu-se de um método particular, resgatou o tema da
racionalidade e o utilizou como parâmetro para compreender a sociedade
ocidental. Além disso, tendo como base seu método compreensivo e comparativo, e
estando inserido numa sociedade contagiada pela Índia,1 não se limitou ao
Ocidente – fato que também o motivou a introduzir em suas análises sócio-
históricas o método comparativo entre as culturas (principalmente entre as éticas
religiosas) ocidentais e orientais. Seu método não só preconizava uma abordagem
causal do mundo cultural e social, como ainda via a “cadeia de causas” históricas
movendo-se em direções divergentes e ocasionalmente opostas, dependendo das
circunstâncias, o que o levou a comparar as culturas ocidentais com as orientais,
sem conjecturas evolucionistas. Assim elucida Colliot-Thélène (1995, p. 77), ao
analisar Weber nesse aspecto: Cada um dos aspectos de nossa civilização [ocidental] se encontra, assim, posto em evidência através da comparação com os aspectos correspondentes em outras civilizações, anteriores ou desconhecidas, os quais se acham reduzidos ao estatuto de imagens invertidas.
Por tamanha ousadia metodológica, Paul Veyne (1983, p. 319) dirá que “a
obra histórica mais exemplar do nosso século [XX] é a de Max Weber, que apaga as
fronteiras entre a história tradicional, da qual tem o realismo, a sociologia, da qual
tem as ambições, e a história comparada, da qual tem a envergadura”.
A exemplo de Peter Burke (1980, p. 16), que afirma: “no que respeita a Max
Weber, a amplitude e a profundidade dos seus conhecimentos históricos eram
verdadeiramente fenomenais”. Tamanha profundidade, comenta François Dosse
(2003, p. 97), o faz atualmente beneficiar-se “de um grande ganho de interesse,
espetacular, na França”. José Carlos Reis (1996, p. 78) sugere que: “os Annales
parecem dever mais a Weber do que querem admitir”.
Veyne acrescentará que Weber – para quem a história é relação de valores –
não procura, na verdade, estabelecer as leis ou regras de suas comparações
(sociologia), mas aproxima e classifica os casos particulares de um mesmo tipo de
fato através dos séculos, utilizando-se do fator tempo como prerrogativa de sua
epistemologia (história). O que fica evidenciado em sua análise do mundo asiático.
1 Principalmente, com a descoberta do sânscrito, da poesia, da literatura, da mitologia, da filosofia e da religião indianas.
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A Ásia weberiana
A Ásia é para Weber um verdadeiro jardim encantado, uma terra de livre
convivência entre as religiões, de tolerância no sentido helênico e de um real
conjunto de coexistências de cultos, escolas e ordens de todo tipo. Ele ressalva que
também aconteceram as disputas armadas, os conflitos políticos e as perseguições
religiosas, principalmente na China, mas tudo isso não tira o encanto dos
intercâmbios mútuos que cultivaram diversas formas de soteriologias, para as
diversas camadas sociais.
Weber acrescenta que, com pouquíssimas exceções, as soteriologias
asiáticas oferecem promessas apenas acessíveis àqueles que levam uma vida
exemplar (no caso indiano, acessíveis de acordo com o cumprimento do dever
ritual específico). Todos participam de alguma forma, todos possuem uma
esperança e um dever em torno dela. No entanto, a intelectualidade tem sido
sempre o guia de toda prática asiática, a mola mestra das motivações, a categoria
que eleva e transcende, a camada que detém os modelos extremados do agir
religioso e o desabrochar das inquietações sociais e filosóficas. Os intelectuais na
Ásia sempre deram os primeiros passos quando munidos de certezas e nunca
foram pensadores meramente teóricos, mas sempre os infantes de suas teorias.
Eles foram os modelos dos demais e sempre chegaram ao topo do possível e
desejado.
A Índia, em particular, diz Weber, é o país típico dessa luta intelectual e
inquietante, única e exclusivamente, por uma cosmovisão no sentido próprio da
palavra: por um sentido da vida no mundo. E acrescenta ele: “não há
absolutamente nada no âmbito do pensamento sobre o ‘sentido’ do mundo e da
vida que não tenha sido já pensado de alguma forma na Ásia” (WEBER, 1999, p.
144). Desta forma, no pensamento weberiano, todo o sentido da vida, da libertação
do mundo, dos afazeres cotidianos, das festas, dos anseios e dos devaneios são
moldados pelo pensamento especulativo, pelo caráter da gnose que agita
intensamente o homem asiático. Toda a soteriologia asiática, portanto, está no
âmbito do saber e é a porta de entrada para a libertação suprema, ao mesmo
tempo em que um excepcional caminho para o reto agir; por isso, ela é sempre
vista como a guia que conduz toda a sociedade.
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Só o saber, diz Weber, dá ao homem asiático poder ético e mágico sobre si
mesmo e sobre os demais. E este é um saber geralmente irracional e algumas vezes
relativamente racional – como no caso da doutrina indiana do karma e do saàsära
–, mas nunca um estudo de conhecimento típico ocidental, senão um meio de
domínio místico e mágico sobre si e sobre o mundo, como bem caracterizado pelo
Yoga indiano.
A Índia aporta à compreensão das idéias de Weber
Sérgio da Mata (2006), um dos maiores defensores do Weber historiador no
Brasil, elucida que o alemão continua a ser conhecido como sociólogo, apesar de
ter escrito parte substancial de sua obra na condição de historiador – como bem
expresso em Hinduismus und Buddhismus –, assim como de analista de complexos
problemas relativos à lógica do conhecimento histórico.
Mas se tal obra foi intitulada Religionssoziologie [sociologia da religião],
como se explica que ela é historicista? Mata (Ibid., p. 125) explicará que, dos três
volumes dos mencionados ensaios, exclusivamente o primeiro foi efetivamente
organizado por Weber. E na nota preliminar do primeiro volume, em nenhum
momento Weber caracteriza o conjunto dos trabalhos ali incluídos, bem como sua
seqüência de volumes, como obra sociológica. Ao contrário, continua a explicar
Mata, ele fala muito mais de abordagem “histórico-cultural” ou “histórico-
universal”. O que implica confirmar, a priori, que o título Gesammelte Aufsätse zur
Religionssoziologie [Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião] não tenha sido
nomeado por Weber. Não sendo por acaso que a edição mais completa de
Hinduismus und Buddhismus seja recolhida com o título: Die Wirtschaftsethik der
Weltreligionen [A ética econômica das religiões mundiais], tomo 20 da seção I, de
Max Weber Gesamtausgabe [Edição Completa de Max Weber], de 1996, elaborada
com o apoio de Karl-Heinz Golzio.
Todavia, a esposa de Weber (Marianne) juntamente com o editor Paul
Siebeck interferiram profundamente na edição da obra weberiana, guiando-a por
critérios próprios, dirá Mata. Muitos dos títulos das seções de Economia e
Sociedade, por exemplo, foram inventados por eles. De forma que há fortes indícios
para se concluir que seja de responsabilidade de ambos, e não de Weber, a
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“sociologia” incluída no título dos Ensaios. Mata (Ibid.) apontará um indício neste
sentido: Numa carta a Siebeck, 24 de maio de 1917, Weber diz estar retrabalhando os textos que deveriam ser publicados, após a guerra, em suas “obras completas” [Gesamtausgabe]. E acrescenta, numa clara menção ao título da futura obra: “ou, se você preferir: os ‘ensaios reunidos’” [Gesammelten Aufsätze]. Nem uma palavra, portanto, sobre sociologia da religião.
Segundo Marriane (1984, p. 396), Weber iniciou suas análises
indológicas em 1911 – para Turner (1981), em 1910 – e uma primeira versão de
Hinduismus und Buddhismus ficou pronta em 1913; tendo a elaboração final do
mesmo em 1915 e início de 1916, quando Weber residia em Berlim. Em 1919, a
obra já estava pronta para ser impressa, e em 6 de fevereiro de 1921, quase seis
meses após a morte de Weber, eis que surge a primeira versão em livro.
Tal obra será uma das investidas weberianas mais proeminentes, como
singular demonstração de seu método histórico comparativo e diagnóstico de
um particular desencanto (racionalização burocrática e tecnocrática) ocidental
e puritano versus a Índia, sua “encantadíssima Índia”.
A Índia, no arguto olhar weberiano, é a terra natal do atual sistema
racional (fundamento de toda calculabilidade, matemática e gramática)
ocidental, o qual manifestou na condução da guerra, da política e da economia –
todas circundadas de um racionalismo que acompanha a literatura que as
teoriza, a Arthashastra. Uma terra onde tanto a guerra cavalheiresca (yuddham)
como os exércitos disciplinados (danda) tiveram sua época; onde o
arrendamento dos impostos (kara-dandayoh) e o desenvolvimento das cidades
(jana-padah) nada deviam ou se distinguiam do patrimonialismo ocidental; bem
como o cultivo da ciência racional (sankhya), de escolas filosóficas (darshanas) e
da conseqüente metafísica profunda (Yoga).1
Dirá Weber (1996, p. 54):
1 Lembrando que a terminologia Yoga nada, ou quase nada, tem em relação com o que se observa nas academias estéticas ocidentais atuais, pois Yoga, termo que designa a forma-propulsora do pensamento indiano clássico, deriva da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar”, “jungir”, a qual originou o termo latino jungere, jungum e o inglês yoke. Yoga designa, evidentemente, um liame; e a ação de ligar-se ao Absoluto pressupõe como condição primeira à ruptura dos liames que unem o espírito ao mundo, ou seja, um estado mental e corpóreo prévio, capaz de promover uma emancipação ou união de si com a metafísica (como coisa em si ou representada numa personalidade ou energia transcendente).
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O atual sistema numérico racional, fundamento técnico de toda ‘calculabilidade’, é de origem indiana. Os indianos [...] cultivaram a ciência racional (e entre ela, a matemática e a gramática). Também tiveram a experiência do desenvolvimento de numerosas escolas filosóficas e religiosas, de quase todos os tipos sócio-historicamente possíveis. Em boa medida, surgiram estas sobre o substrato de uma poderosa tendência ao intelectualismo e à racionalidade sistemática que se apoderaram dos mais diversos domínios da existência.
Em todo caso, afirma Weber (Ibid.): “jedenfalls ungleich größer als
irgendwo im Occident vor der allerneusten Zeit” [infinitamente maior que em
qualquer parte do Ocidente antes da Idade contemporânea], e como em nenhum
outro lugar ou cultura. Além disso, continua o autor, a Índia também é a região
onde o artesanato (karu) e a especialização dos ofícios (vanijyam) alcançaram
estágios grandiosos; onde, como em nenhum outro lugar, apreciou-se tanto a
riqueza (Lakshmi) sem, por outro lado, cair nos ditames de uma ética econômica
(com afã de lucro ou Erwerbstrieb) tipo capitalista (particular da modernidade
protestante) ou do desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), o qual
– este último – caracterizado por Weber como o mecanismo desdivinizado do
mundo, através do qual (do protestantismo à ciência profissionalizante
moderna) se chega ao reducionismo do mundo com seu mecanismo causal
desmagicizante, tecnocrata e burocrata.
Weber também nos apresenta uma Índia onde as éticas religiosas de
negação do mundo (como o budismo), seja teórica ou praticamente, e com a
maior das intensidades, deram margem, originaram e desenvolveram a
contemplação extramundana, a ascese e o monasticismo, manifestando-se de
forma mais coerente e dando início a um caminho histórico que se espalhara
por todo o mundo. Essa é a Índia de Weber: original, sempre cobiçada e ao
mesmo tempo racional e mágica; uma verdadeira terra de filósofos e
pensadores inquietos, sempre inquietos!1
1 Uma Índia que contradizia, e muito, aquela que Hegel apresentara; justificava a que Schopenhauer e os românticos alemães ovacionavam; e se assemelhava muito com a Índia das castas e do código de leis de Manu em Nietzsche: o qual resume as castas naquela que “formula a lei maior da própria da vida” (NIETZSCHE, 2007, §57) e contrapõe o hinduísmo com o cristianismo: “é com o sentimento oposto [à Bíblia] que leio o código de Manu [o mais antigo código de leis conhecido], uma obra inigualavelmente espiritual e superior, tanto que apenas nomeá-lo juntamente com a Bíblia seria um pecado contra o espírito. Logo se percebe: ele tem uma verdadeira filosofia atrás de si, em si, não apenas uma malcheirosa judaína [ópio judaico] de rabinismo e superstição [...]” (Ibid., §56-57, grifos do autor).
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Todavia, a Índia, como todo o passado humano antes do advento do
protestantismo, segundo Weber (2004, p . 68), não desenvolveu uma
racionalidade “com sua ‘vocação profissional’ entendida como missão,
exatamente como dela precisa o [espírito do] capitalismo”. Mas ele não encara
tal fato como desenvolvimento ou evolução, pelo contrário, vê nessa empreitada
única do ocidental puritano um desencanto, o qual provocará a retirada dos
valores mais sublimes e essenciais da vida pública, surgindo o que ele denomina
de “especialistas sem espírito” e “gozadores sem coração: esse Nada [homem
moderno que] imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes
alcançado” (Ibid., p. 166). Para Weber, tal homem moderno, esse Nada, em tais
circunstâncias, está destinado a viver em uma época desencantada: sem Deuses
nem profetas (Idem, 1975).
Com o advento da indologia na Europa, principalmente na Alemanha
romântica, a Índia deixará de ser uma matéria de especulação livre e passará a
ser uma disciplina ministrada com regras rígidas, não obstante,
etnocentricamente hegelianas para os não-orientalistas. Weber será o único
intelectual não-orientalista1 ligado à investigação histórica2 que tentará
transgredir as barreiras impostas pelo academicismo indológico alemão com
raízes hegelianas,3 combatendo intelectualmente a Filosofia da História que
desqualificava integralmente a Índia como sem qualquer fundamento de idéias
profundas. Tal desqualificação, como nos alerta Bermejo Barrera (1999),
expressava aqueles elementos que constituem a idéia clássica da história
universal: a unidimensionalidade política, o caráter linear do progresso, o
caráter sexista que exclui a mulher da história, a supressão ou rebaixamento do
“outro” não-ocidental e não-cristão, o caráter providencial que reflete a idéia de
que vivemos no melhor dos mundos históricos possíveis: onde tudo cumpre
uma função e é necessário; e, por fim, o etnocentrismo que sustentou o discurso
1 Não-orientalista, no sentido de não ter o Oriente como foco principal, mas ao mesmo tempo tendo-o como ambiente sócio-intelectual comparativo ao desencantamento do mundo na modernidade. 2 Na Filosofia, Schopenhauer e Nietzsche farão sua parte. 3 Muitos pensadores alemães, e em parte Marx, olharam para a Índia com preconceito e desdém; com um olhar típico eurocêntrico, semelhante aos cristãos portugueses que a invadiram com suas prerrogativas sentimentalistas. Tais pensadores não a compreenderam ou mal interpretaram-na, ora por não absorverem significativamente o sistema social (varnasrama), a lógica (nyaya), a ciência (sankhya), a filosofia (darshana) e a religião (dharma ou “dever ritual” hindu, budista ou jainista) indianas, ora por constatarem inúmeras contradições e insuficiências entre a Índia como objeto e seus métodos analíticos.
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– por meio de inúmeras ciências, inclusive da História – do colonialismo e da
superioridade do homem branco e europeu.
Conclusão
Frente à história universal, portanto, Weber não verá o não-ocidental ou
não-cristão como o “outro”; ele não tratará o Oriente, por exemplo, como
primitivo ou subdesenvolvido, o qual permanecerá estancado até seu encontro
com o Ocidente europeu. Em seus estudos da Índia, por exemplo, o Ocidente
aparecerá apenas como contraste e sempre como a região do mundo que se
desencantou, que perdeu valores necessários para a sociedade. Até mesmo o
uso dos termos “racional” e “irracional” não estará associado a uma dicotomia:
Ocidente (racional) e Oriente (irracional); pois, a própria idéia weberiana de
“racionalidade” se divide em racionalismo conceitual e racionalismo pragmático
– o primeiro relacionado com o domínio teórico da realidade através de
conceitos abstratos cada vez mais precisos, e o segundo, num sentido de artifício
metódico de um objetivo prático, determinado através de um cálculo cada vez
mais conciso dos meios adequados. Ambos são muito diferentes.
Nas palavras de Laurent Fleury (2003, p. 35), Weber “compreende que o
que pode ser considerado racional a partir de determinado ângulo pode
inversamente ser julgado como irracional de outro. Por outras palavras, Weber
não separa [em certo sentido] a racionalidade e a irracionalidade”.
Ou seja, conclui Fleury (Ibid., p. 33),
apesar da idéia da especificidade ocidental, Weber evita a armadilha do etnocentrismo. De fato, estuda estas civilizações com neutralidade, qualificando o elo que une o comportamento dos indivíduos às formas econômicas, às estruturas sociais e às instituições políticas. Adota uma posição anti-evolucionista pela sua recusa da idéia de progresso e de leis dialéticas de uma história universal, linear e necessária. Insiste num encadeamento de circunstâncias, nos cruzamentos recíprocos de fatores e na simultaneidade das contingências temporais. Este pluralismo causal elimina tudo o que é unívoco [...].
Isto para a época – e ainda para nós – representa uma verdadeira revolução
intelectual e uma alternativa à Filosofia da História.
Andreas Buss (1985) também nos elucida que para analisarmos a posição
weberiana frente ao âmbito asiático, devemos ter em conta uma série de fatores.
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Primeiramente, a atitude weberiana diante da sociedade moderna (com sua visão
lúgubre do capitalismo e do suposto progresso ocidental) pode resultar
surpreendente para a sua época, pois o mesmo já combatia as teorias
etnocêntricas, as quais etiquetavam de irracionais as religiões orientais. Weber
estava convencido da originalidade e da importância universal da sociedade
ocidental européia e moderna, caracterizando-a como racional e burocrática, ao
mesmo tempo em que observa o efeito do hinduísmo e do budismo sobre a vida
econômica indiana, atribuindo, concomitantemente, um alto grau de racionalidade
a suas teodicéias, práticas religiosas, modo de vida e filosofia. Parece claro,
portanto, segundo Buss, que por sua atitude ambivalente frente ao capitalismo, à
ciência e à sociedade ocidental em geral, Weber não havia usado nunca o Ocidente
como exemplo para o Oriente.
Em segundo lugar, muitos autores viram nas obras de Weber uma defesa
do colonialismo e do domínio imperialista ocidental, o qual havia amparado sua
suposta superioridade racional. No entanto, Weber em nenhum momento
considerou o “outro” como irracional; nem sequer utilizou o termo
“subdesenvolvido” ou “despótico”, e muito menos subdesenvolvimento asiático ou
indiano. Finalmente, Weber não queria passar uma imagem acabada de cada
Weltreligion, senão falar das peculiaridades que servem de contrastes em relação a
outras religiões, as quais, ao mesmo tempo, ajudam a entender as mentalidades
econômicas.
Em suma, Weber nos previne ante o otimismo do progresso presente no
hegelianismo e marxismo, assim como diante da teoria da modernização, e se
motiva a escrever uma história do processo da racionalização ocidental como uma
perspectiva da patogêneses da modernidade, tendo como extremo comparativo
intercultural: a Índia e seu esboço alternativo de sociedade. O que nos permite
entender que Weber foi além das teorias dos sistemas vigentes, construindo uma
perspectiva da história que possui indicadores sobre “como se podia afrontar o
dilema da escrita histórica atual entre a Cila do enciclopedismo sem limites e a
Caribdis das construções teleológicas” (PEUKERT, 1989, p. 40).1 Vendo desta
1 Cila e Caríbdis são divindades aquáticas presentes na mitologia grega. Da narração sobre Cila e Caríbdis, surge a expressão: “estar entre Cila e Caríbdis”, o que equivale dizer: “estar entre a cruz e a espada” ou “entre a espada e o muro”, ou seja, estar diante de um problema complicado ou de dificílima solução.
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forma, Weber nos adverte que uma historiografia perspectiva não só deixaria que
entrassem em conflito várias imagens históricas, como também animaria e
permitiria um pluralismo de relações de valor.
Um dos aspectos mais originais da visão peukertiana é a importância que
concede a perspectiva histórico-universal de nosso autor. Weber, reconhecida e
consagradamente um dos nomes mais representativos da análise da história
ocidental, especialmente da gêneses do capitalismo, aparece, nos últimos tempos,
também como o pensador dos desenvolvimentos sociais e culturais asiáticos.
Nesse ínterim, Mommsen (1982, p. 182) apontará que, “em um certo sentido, não
só se pode denominar Max Weber como historiador da cultura ou historiador
social, mas também como historiador dedicado à história universal
[Universalhistoriker]”. Opinião semelhante também defendida por Astor Diehl
(2004, p. 23): “em muitos sentidos, justifica-se citá-lo não apenas como historiador
da cultura e historiador social, mas também como historiador do universal”. E
Diehl (Ibid., p. 45) vai além, afirmando que a construção dos tipos ideais de Weber
é simultaneamente “história teórica e sociologia histórica com um extraordinário
grau de abstração”.
O que leva Ringer (2004, p.162) a concluir:
É deveras significativo que alguns dos estudantes de Weber mais comprometidos na Alemanha atual sejam historiadores, e que tenha sido Weber quem inspirou a nova direção mais significativa na historiografia alemã contemporânea, historiografia que deu seguimento à análise comparativa da mudança estrutural.
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A Utilização da História no Decorrer da Conquista da América
Prof. Dr. Adailson José Rui Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL-MG.
E-mail: [email protected]
RESUMO
Fazendo uso de obras escritas durante o século XVI e princípios do XVII que tratam da Conquista da América, apresentamos a forma como a História foi utilizada pelos historiadores da Conquista. Discute-se o uso da política na história como forma de legitimar ou contestar as realizações daqueles que participaram do processo da Conquista.
Palavras Chave: Conquista da América, Historiografia, Memória,
ABSTRACT
Making use of scrip works during the sixteenth century and early seventeenth centuries dealing with the Conquest of America, we present how the history has benn used by historians of the Conquest. It discusses the political use of history as a way to legitimize or challenge the achievements of those who took part in the Conquest.
Keywords: Conquest of America, Historiography, Memory
Introdução:
[....] a todo gênero de escritura, é e foi sempre preferida a História, porque é testemunho dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra dos costumes e mensageira fiel de toda a antiguidade. Pelo qual são os historiadores dignos de ser estimados, pois dão perpétua memória e fama a pessoas valiosas e a seus heróicos feitos (FERNANDEZ,1963, p. CXX A tradução é de nossa autoria)1
1 [...] a todo género de escritura, es y fué siempre preferida la Historia, porque es testigo de los tiempos, luz de la verdad vida de la memoria, maestra de las costumbres y mensajera fiel de toda la
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O fragmento em epígrafe faz parte da dedicatória da obra História del Peru,
preparada por Diego Fernandez e dedicada ao rei da Espanha, Felipe II (1556-
1598). Nele temos uma primeira ideia do valor atribuído ao longo do século XVI, à
História. Ela traz a verdade, mantém a memória viva e ensina. Esses aspectos
indicam a manutenção do conceito clássico de História cunhado por Heródoto:
História magistra vitae (mestra da vida). Diego Fernandez, ao valorizar o
historiador pelo trabalho que desempenha aponta para o uso político da História,
como prática que se manifesta em diferentes formas. Neste artigo apresentamos
algumas delas.
1- Funções da história
Dando continuidade à perspectiva desenvolvida na Antiguidade e na Idade
Média de se fazer uso da História como instrumento que permitia a construção da
memória histórica de forma a sustentar os interesses do presente, na América do
século XVI, a História foi utilizada como instrumento manipulado que possibilitava
perpetuar a memória dos grandes feitos; como mecanismo que permitia mostrar e
divulgar as heróicas realizações de algumas personalidades ou dos grupos aos
quais elas pertenciam com a finalidade de se obterem benefícios e recompensas
por eles; como maneira de denunciar irregularidades como forma de se alcançar
reparações; como meio de harmonizar ou pelo menos tentar harmonizar os valores
culturais de grupos específicos (conquistadores, mestiços e nativos) e, como
instrumento que propiciava o conhecimento ao qual se poderia desenvolver ações
transformadoras.
A existência das diferenças e dos interesses particulares, bem como das
consequentes explicações direcionadas, presentes nas obras produzidas na
América ou sobre ela no decorrer do século XVI, contribuíram para o
desenvolvimento da História enquanto gênero, dando continuidade à nova
perspectiva historiográfica colocada em prática, na Península Ibérica, a partir do
século XII e acentuada no século XIII por Alfonso X, o Sábio (1252-1284), quando o
antiguedad. Por lo cual, son los historiadores dignos de ser estimados, pues dan perpetua memoria y fama a personas valerosas y a sus heroicos hechos ( FERNANDEZ, D. 1963, p. CXX).
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uso político da história ganhou espaço na Península Ibérica. Neste século o aspecto
político, presente no tradicional conceito - magistra vitae - passou a ser mais
utilizado como instrumento que permitia justificar e legitimar as ações.
Os trabalhos, produzidos sob a orientação do rei Sábio, foram os primeiros
que alteraram a forma tradicional de se escrever a história. A história, além de
narrar fatos/acontecimentos, passou a oferecer interpretações e explicações para
os fatos/acontecimentos narrados. O espírito crítico passou a fazer parte do ato de
escrever a história1. Diferenciava-se, assim, da prática comum no período anterior
que, segundo Krzystof Pomiam (1975, p. 940-941), caracterizava-se pelo fato de o
historiador limitar-se ao registro do presente, daquilo que podia conhecer
diretamente. Segundo o mesmo autor, o conhecimento era entendido como
apreensão imediata de um dado. Conhecer significava ver com os próprios olhos,
tocar com as próprias mãos e ouvir com os próprios ouvidos. Isso justificava o
registro do presente; o passado era transmitido sem ser questionado e apoiava-se
no critério de autoridade reconhecida de quem fazia a transcrição, por isso o
historiador copiava fielmente as suas fontes.
A partir da Baixa Idade Média, os historiadores desenvolveram uma nova
forma de escrever a história, por meio da qual confrontavam as fontes e
procuravam oferecer explicações para os acontecimentos relatados. Essa
perspectiva foi amplamente desenvolvida durante o Renascimento, quando, além
de apresentarem o heroísmo de um ancestral, abolindo nessa apresentação a
importância da coletividade, passaram a enfatizar a fama do indivíduo que nesta
época se destacava, também, pelo saber e pela capacidade racional de conduzir as
ações, reduzindo o papel da providência divina, anteriormente colocada como
motor da história. Nessa direção, os autores que escreveram sobre a Conquista da
América, particularmente os leigos, tinham como meta relatar o "presente",
explicando aquilo que estava ocorrendo. É ilustrativo a esse respeito o comentário
feito pelo escrivão real Agustin de Zarate ao dedicar ao rei Felipe II(1556-1598) a
1 Sobre essa temática, veja: RUI, A. J. A elaboração da História na Idade Média: o exemplo de Alfonso X, o Sábio In BONI, L. A. de (org.) A Ciência e a Orgnização dos Saberes na Idade Média.Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 211-217 ( Coleção Filosofia, 112) .
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Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Perú, y de las guerras y
cosas señaladas en ella1. Nas palavras do autor:
“Chegando ao Peru vi tantas revoltas e novidades naquela terra, que me pareceu coisa digna de registrar, logo depois de ter escrito sobre o meu tempo, percebi que não se podia entender bem, senão fosse apresentado alguns antecedentes referentes a origem (dos acontecimentos do presente); e assim de grau em grau fui recuando até encontrar-me no descobrimento da terra; porque vão os negócios tão dependentes uns dos outros, que por qualquer que falte não tem os que seguem a claridade necessária; o qual me compeliu a começar (como dizem) do ovo troiano. (ZARATE,1947 p.459 – A tradução é de nossa autoria)2
Os autores, que escreveram sobre a Conquista no decorrer do século XVI,
narravam a história da qual direta ou indiretamente haviam participado, porém
sempre enaltecendo as suas próprias realizações ou as daqueles que os mandaram
escrever. Agustin de Zarate, por exemplo, demonstra-se sempre fiel à Coroa e aos
interesses dela no Peru. Essa perspectiva assumida pelos “historiadores” do século
XVI e princípios do XVII que escreveram sobre a América conduziu ao
desenvolvimento de uma nova concepção de “verdade” que consistia em ter e dar
provas convincentes que pudessem explicar, justificar e legitimar os seus
interesses. As “provas” podiam ser tanto a participação direta, como testemunhos
deles nos episódios descritos, como as informações conseguidas em documentos
ou ainda, o recurso a outros autores que consideravam fidedignos; a história não
deveria limitar-se ao fato, mas sim deveria explicá-lo. É nesta perspectiva que
encontramos os autores das crônicas e histórias da Conquista, independentemente
da categoria social a que pertenciam.
1.1- Os primeiros testemunhos da Conquista
1 Agustin de Zarate chegou à América na companhia do vice-rei Blasco Nuñez Vela em 1544, no decorrer da guerra travada entre os herdeiros de Francisco Pizarro e a Coroa. 2 “Llegados Allá [Peru] vi tantas revoltas y novedades en aquella tierra, que me pareció cosa digna de ponerse por memória, aunque, después de escrito lo de mi tiempo, conoscí que no se podia bien entender si no se declaraban algunos presupuestos, de donde aquello toma su orígen; y así, de grado en grado fui subiendo hasta hallarme en el descobrimento de la tierra; porque van los negócios tan dependentes unos de otros, que por cualquiera que falte no tienen los que siguen la claridade necessária; lo cual me compelió á comenzar (como dicen) del huevo trojano[ZARATE, 1947, p. 459].
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No decorrer do século XVI, a Conquista avançava e as narrativas sobre ela
começaram a aparecer impulsionando a conquista na medida em que divulgavam
tanto as dificuldades superadas e a forma de os conquistadores tornarem-se
“heróis”, assim como as fabulosas riquezas que ofereciam as novas terras.
Entre as narrativas que se tornaram fontes para a elaboração das primeiras
Histórias, encontram-se as Cartas de Relación elaboradas pelos primeiros
conquistadores, como: Hernán Cortés, Pedro de Albarado, Diego Godoy e Pedro de
Valdivia e os depoimentos orais daqueles que, de alguma forma, viveram a
primeira fase do processo de conquista.
1.1.1- As Cartas de Relación
Entre as primeiras Cartas de Relación, encontram-se as escritas por Hernán
Cortés ao Imperador Carlos V (1500-1558) sobre a conquista do México. Nelas, o
autor oferece-nos a possibilidade de percebermos a divergência cultural entre os
nativos e os conquistadores. Cortés, um conquistador que havia estudado na
Universidade de Salamanca antes de ir para a América, em 1504, foi membro da
expedição comandada pelo capitão Diego Velázquez, cuja missão era conquistar
Cuba. Realizada essa conquista, coube a Cortés organizar e levar adiante a
expedição que iria conquistar a Península do Yucatan, recém-descoberta
(MARTINELL GIFRE, 1992, p. 28).
O desenvolvimento desta empresa foi por ele interpretado como uma nova
cruzada, cujos objetivos eram engrandecer a Espanha mediante a conquista de
novos territórios, a evangelização dos povos encontrados e a submissão desses ao
Imperador Carlos V (Carlos I da Espanha) que havia recebido da Igreja a missão de
evangelizar os povos recém-contatados.
Esses objetivos de Cortés para a conquista devem-se ao seu posicionamento
ético típico do Renascimento, que valoriza o indivíduo, centralizando sua defesa
somente na própria razão, ao mesmo tempo em que mantém traços medievais que
identificam a nova evangelização semelhante à cruzada. Porém, esse
comportamento de Cortés deve-se à manutenção de três virtudes clássicas: a
fidelidade a uma vocação, o compromisso com a lealdade e o sentimento de honra.
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Sobre essas virtudes, Cortés constrói uma ética de situação, própria para cada
momento (ALONSO BAQUER, 1992, p.97).
Inserido nessa perspectiva, Cortés via a Conquista do México como um
compromisso de fidelidade que proporcionaria a expansão dos domínios da
Espanha e da Cristandade. Compreendia a Conquista como um projeto que estava
além dos propósitos comerciais, como os almejados pelo governador de Cuba,
Diego Velázquez, denunciado por Cortés, na primeira Carta de Relación, como
desleal e infiel a Carlos V1. Tal denúncia deu lugar aos primeiros conflitos de
lealdade que marcariam a conquista do México (ALONSO BAQUER, 1992, p.98).
Porém, se por um lado a ética renascentista proporcionou o surgimento
deste tipo de conflito; por outro, foi um dos aspectos que constituíram a
personalidade moral de Cortés, o qual tinha na fidelidade e na honra o seu alfa e
ômega (ALONSO BAQUER, 1992, p. 97). A personalidade de Cortés revela a
permanência de valores típicos da Idade Média manifestados, por exemplo, na
fidelidade ao Imperador, na crença e na missão de expandir a fé católica, por meio
da conquista do México, cujas etapas ficaram, também, registradas nas cinco Cartas
de Relación enviadas a Carlos V.
As informações contidas nas cartas de Cortés complementam-se com as
enviadas por integrantes de tropas que, sob as suas ordens, realizaram expedições
em outras partes do território da Confederação Asteca. Entre essas, destacamos as
do capitão Pedro de Albarado que tratam, entre outros assuntos, dos trabalhos e
dificuldades enfrentadas para pacificar as “províncias” de Chapotulan,
Checialtenengo e Utlatan; e a do escrivão Diego Godoy, em que são narradas lutas e
conflitos enfrentados contra os índios da “província” de Chamula e do
Repartimiento de índios e também as cartas deixadas por Pedro de Valdivia,
conquistador e posteriormente governador do Chile de 1545 a 1552. Sobre a
conquista, foram escritas por ele onze cartas dirigidas a diferentes destinatários,
entre os quais estão o Imperador, a Corte, o Conselho das Índias e Hernando 1 Por exemplo, na primeira Carta de Relación, Cortés denuncia Diego Velazquez de ter forjado uma legislação real para obter o trabalho forçado dos indígenas na extração de ouro (CORTES,1946, p. 02). Bernal Diaz del Castillo vai além, afirmando que Diego Velazquez “comprou” os votos dos ouvidores do Conselho das Índias dando-lhes “pueblos de indios en la isla de Cuba, que les sacaban oro de las minas” e, em conseqüência, os ouvidores atendiam as solicitações de Diego Velazquez (DIAZ DEL CASTILLO,1947, p. 14).
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Pizarro, chefe militar da conquista do Peru (VALDIVIA, 1960, p. 1-74). Nessas
cartas, relata os trabalhos realizados para conquistar e manter o domínio sobre o
Vale do Mapoucho e terras circunvizinhas. O conteúdo dessas cartas foi utilizado
por Alonso de Gongora Marmolejo e Pedro Mariño de Lobera, entre outros autores
do século XVI, que escreveram sobre a conquista do território do Chile.
2- As primeiras histórias sobre a Conquista da América
Entre as primeiras Histórias produzidas sobre a Conquista que tiveram
como fonte os relatos diretos dos conquistadores, sejam escritos ou orais,
encontra-se a Historia General de Índias e a Historia de la Conquista de Mexico,
ambas de Francisco Lopes de Gomara; a Historia del Descobrimento y Conquista de
la Provincia del Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustín de Zarate
e a Historia del Peru de Diego Fernandez.
Francisco Lopez de Gomara nasceu em Gomara em 1511, estudou na
Universidade de Alcalá de Henares e, ordenado sacerdote, foi professor de retórica
na mesma instituição. Durante o período de 1531 a 1541, esteve na Itália onde
conviveu com os principais integrantes do movimento humanista. De lá, regressou
com a expedição de Carlos V que combatia em Spezzia onde conheceu Hernán
Cortés, passando a ser o capelão da sua família. Foi um dos primeiros a utilizar as
Cartas de Relação como fontes para a elaboração da História da Conquista.
Conheceu particularmente o conteúdo das elaboradas por Cortés e ouviu os
depoimentos orais do próprio conquistador. Obteve informações de outros
conquistadores como Pedro Mártir de Anglería, Gonzalo Fernández de Oviedo,
Andrés de Tapia e frei Toribio de Motolinía. Partindo dessas informações, sem
nunca ter estado na América, elaborou a sua versão da História da Conquista em
duas partes. Na primeira, apresenta uma história geral da conquista e, na segunda,
uma biografia (oficial) de Hernán Cortés1. O vínculo de Lopez de Gomara com
1 A primeira publicação da obra de Francisco Lopes de Gomara ocorreu em 1552, em Zaragoza, sendo reimpressa em 1553, em Medina del Campo, e, em 1554, em Amberés, e novamente em Zaragoza.
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Cortés, associado à tendência de valorização do indivíduo presente no
Renascimento, ajuda-nos a compreender as razões que levaram Gomara a exaltar
Cortés apresentando-o como o único condutor da conquista, o líder eminente, cuja
imagem é enfatizada mediante os exageros nas dimensões das dificuldades
superadas pelos conquistadores, graças à atuação de Cortés.
Em relação à conquista do império Inca, além da Historia General de Indias
de Francisco Lopes de Gomara, encontramos também a presença direta daqueles
que participaram da conquista e dos conflitos a ela internos na Historia del Peru de
Diego Fernandez e na Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del
Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustin de Zarate. Sobre Diego
Fernandez, sabemos que esteve no Peru no período da guerra civil, provocada pela
implantação das Ordenanzas de 1542, de Carlos V, em função dos abusos dos
encomenderos em relação aos índios, segundo as denúncias de Bartolomeu de las
Casas, entre outros. Foi morador de Palencia (titulação que fazia questão de
manter, ligada ao seu nome, para garantir os benefícios do Repartimiento de
índios) nomeado escrivão pelo vice rei do Peru, Andrés Hurtado, historiador e
cronista, conforme afirmado pelo próprio Diego Fernandez no início da segunda
parte da sua obra:
Depois veio como vice-rei do Peru don Andrés Hurtado de Mendoza, marques de Cañete, e entendendo o que fiz e aquilo em que me ocupei, nomeou-me como historiador e cronista daqueles reinos, mandando (pelo título que para isso me deu) que eu começasse a escrever a partir da ida do presidente Gasca do Peru para a Espanha, pressupondo o vice rei (segundo disse) que o descobrimento daquela terra e as paixões do marques don Francisco Pizarro e todo o mais que precedeu, já havia sido escrito por outros autores, divulgado e impresso (FERNANDEZ, 1963,p. 242-243 / a tradução é de nossa autoria)1
A Historia del Peru está dividida em duas partes. Na primeira, narra os
acontecimentos que geraram a guerra civil: o confronto entre o governador 1 Después vino por visorrey del Perú don Andrés Hurtado de Mendoza, marqués de Cañete, y entendiendo lo que yo habia servido y aquello en que me había ocupado, nombróme por historiador y cronista de aquellos reinos, mandando (por el titulo que para ello me dió) que yo comenzase a escribir desde que el presidente Gasca salió del Perú para España, presuponiendo el visorrey (según dijo) que el descubrimiento de aquella tierra y las pasiones del marqués don Francisco Pizarro y de don Diego de Almagro y la tirania de Gonzalo Pizarro y todo lo demás que habia precedido, estaba ya por otros autores escrito, divulgado e impresso (FERNANDEZ, 1963, p. 242-243).
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Gonzalo Pizarro, rebelado contra as novas leis, e o primeiro vice-rei do Peru, Blasco
Nuñes Vela, encarregado de implementá-los. Na segunda, dá ênfase aos
acontecimentos ocorridos após a derrota de Gonzalo Pizarro pelas forças do vice-
rei. No conjunto, trata-se de uma obra de caráter oficial cujo objetivo principal é o
de exaltar os feitos do vice-rei.
Agustin de Zarate chegou à América na companhia do vice- rei Blasco Nuñez
Vela em 1544, no decorrer da guerra travada entre os herdeiros de Francisco
Pizarro e a Coroa. Escreveu a Historia del Descobrimento y Conquista de la
Provincia del Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella como resultado das
investigações por ele realizadas para entender o que se passava. A História por ele
escrita foi publicada pela primeira vez em Ambéres, em 1555.
As obras de Diego Fernandez e as de Agustin de Zarate juntamente com as
de Francisco Lopes de Gomara, foram utilizadas pelos contemporâneos como
roteiro e parâmetro na elaboração de outras versões para a história da Conquista.
No entanto, entre elas existe uma diferença: enquanto as obras de Diego Fernandes
e Agustin de Zarate foram utilizadas como uma espécie de banco de dados que
auxiliavam os autores a explicar e justificar os relatos que escreviam, a de Gomara
foi utilizada como fonte de contestação e inspiradora de novas versões para a
História da Conquista.
Autores como Bernal Diaz del Castillo, Fernando Alva Ixotlichtil, Diego
Muñoz Camargo e o Inca Garcilaso de la Vega contestaram a obra de Gomara, pois
nela não viam a presença da verdade. Francisco Lopes de Gomara apresentava a
Conquista como uma façanha exclusiva de Cortés, omitindo ou esquecendo
capitães e nativos que participaram da empresa. Para os autores oriundos dessas
categorias, a verdade precisava ser registrada. Já a utilização da obra de Diego
Fernandez e de Agustin de Zarate não foi a mesma seguida pelos contestadores de
Francisco Lopez de Gomara; as obras por eles redigidas serviram mais como
“banco de dados” do que como objeto de contestação. Entre os autores que
fizeram uso dela, encontra-se o Inca Garcilaso de la Vega, que se serviu delas para
retirar as “informações que considerava como verídicas”, e contestar muitos
episódios descritos por Gomara na Historia General de la Conquista de Indias,
particularmente os que se referiam à conquista do Império Inca.
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Embora exista um intervalo de tempo entre o período de elaboração dessas
obras e as produzidas a partir delas, é significativo destacar a forma como os
autores abordavam aquilo que consideravam como verdade. No entanto,
destacamos que cada autor manifestou a verdade de acordo com os valores que
seguia. Por exemplo, enquanto para Gomara a verdade permanecia ancorada em
características medievais a história conduzida por Deus e pela ação dos grandes
homens; para os cronistas posteriores, a verdade estava relacionada com aquilo
que podia ser provado. Seguindo essa perspectiva, procuravam registrar a
importância e a “utilidade” para o Império não só dos líderes, mas de todos aqueles
que foram excluídos dos relatos oficiais. Contudo, nenhuma delas é uma história
total, mas sim novas versões da história nas quais, quem escrevia, procurava
documentar as suas origens e a sua contribuição para o sucesso da Conquista,
ampliando o número de protagonistas e a possibilidade, também, de participar das
glórias e dos lucros angariados.
2.1- Versões e protagonistas das histórias da Conquista
A prática dos primeiros autores das histórias sobre a conquista, de terem
como meta perpetuar a memória daqueles que consideravam heróis, resultou em
contestação por aqueles que participaram, de fato, da conquista da América. Ao
exaltarem, pois, as ações heróicas de alguns, anulavam a participação de muitos
outros que se consideravam também agentes fundamentais no processo de
conquista. A observação dessa situação contribuiu para o surgimento de várias
versões da história da conquista, elaboradas por aqueles que participaram
diretamente das lutas e confrontos travados com os nativos.
Por meio da História, aqueles que se viram ausentes ou esquecidos, nas
narrativas, encontraram a forma de se fazerem presentes. Com isto, além de
repararem a injustiça, passavam a ter um registro no qual atestavam o
desempenho que tiveram no decorrer da conquista. Seguindo essa perspectiva, a
História passou a ser utilizada como meio de fazer valer interesses específicos,
entre esses, ressaltamos o desejo que os autores tinham de destacar sua própria
contribuição ou da categoria a que pertenciam ou, ainda, do seu povo; idealizar os
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povos que, mediante a integração racial e social, estavam formando a sociedade
americana; de denunciar os maus tratos praticados nos nativos tanto pelos
conquistadores leigos como pelos religiosos e conhecer a cultura dos nativos para
transformá-la ou adaptá-la aos valores que integravam a cultura dos recém-
chegados. Esses interesses estão relacionados aos diferentes grupos sociais a que
os autores pertenciam: religiosos, leigos, mestiços e nativos.
Entre as obras elaboradas por religiosos, destacamos a Historia de la
Conquista de México e a Historia General de la Conquista de Indias ambas de
Francisco Lopez de Gomara. Consideramos também, como pertencentes a essas
categorias, as obras Crónica del Reino do Chile de Pedro Mariño de Lobera e a
Historia de Chile de Alonso Gongora Marmolejo. Pedro Mariño de Lobera e Alonso
Gongora Marmolejo eram leigos, no entanto, as obras por eles produzidas foram
refundidas por jesuítas, dando a elas características semelhantes às elaboradas por
religiosos.
Dentre as obras elaboradas por leigos encontram-se: Crónicas del Peru de
Diego Fernandez; Historia Verdadeira de la Conquista de Nueva España de Bernal
Diaz del Castillo; Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Peru y
de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustin de Zarate; Verdadera Relación de
la Conquista del Peru y Provincia de Cuzco llamada la Nueva Castiela de Francisco
de Jerez. Do rol das obras elaboradas por mestiços, estão: Comentarios Reales de los
Incas do Inca Garcilaso de la Vega; Historia de Tlaxcala de Diego Muñoz Camargo.
Entre as obras elaboradas por nativos, destacamos: Relación de la venida de
los españoles y principio de ley evangélica de Fernando Alva Ixtlilxochitl, Historia
General de las cosas de Nueva-España, organizada por Bernardino de Sahagún, e
Nueva Coronica y Buen Gobierno de Felipe Guamam Poma de Ayala.
A não percepção dessas categorias (religiosas, leigas, mestiças e nativas)
levou Héctor José Tanzi (1987, p. 65-111) a afirmar que as obras produzidas na
América ou sobre ela no decorrer do século XVI possuem um caráter uniforme,
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centralizado na perspectiva dos conquistadores1. Não concordamos com esse
posicionamento, pois, conforme mencionado, não podemos conceber a
“perspectiva dos conquistadores” como sendo algo homogêneo. Os autores desse
período pertencem a categorias sociais distintas, motivo que os levou a expressar,
em seus textos, diferentes versões dos acontecimentos que fizeram parte da
Conquista. Manifestam, portanto, visões de mundo diferenciadas2.
Constituem essas "visões de mundo" características medievais, modernas
(renascentistas) e as sincréticas, desenvolvidas a partir do encontro entre as
culturas "ibéricas" e as nativas. Entre as medievais podemos citar a preocupação
com a cronologia, a confiança na providência divina e a exaltação de um “herói”;
entre as modernas (renascentistas), destacamos: o individualismo, a propaganda
dos feitos e a busca da fama; entre as sincréticas, ressaltamos a valorização de
aspectos da cultura local (nativa) e as novas interpretações dadas por eles a tais
aspectos.
No decorrer do século XVI e princípios do século XVII, o relato histórico
constituiu-se num documento, não só no sentido de registro da memória, mas como
documento de valor legal que dava garantia de privilégios a quem houvesse feito
parte dos episódios registrados.
2.1.1-A história como instrumento de legitimidade
Bernal Diaz del Castillo é um dos autores que optaram por escrever uma
versão própria da história, como forma de registrar a sua participação efetiva na
empresa da Conquista. Nasceu entre 1495 e 1496, em Medina del Campo, onde seu
pai era “regidor”; chegou às Índias, em 1514, como integrante do grupo que
acompanhava Pedrarias Dávila, sendo nomeado governador de Tierra Firme. Em
1 Hector José Tanzi chega a tal conclusão tendo como referência obras gerais como: “Decadas De Orbe Novo” de Pedro Martis de Angleria, “La Historia General de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del Mar Oceano” de Antonio de Tordesillas; “Historia General y natural de la Indias” de Gonzalo Fernandez de Oviedo e, “Historia Natural y Moral de las Indias” do Pe. José de Acosta.
2 Para o século XVI, temos que entender visão de mundo como o conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias pertencentes ao indivíduo, e não ao grupo.
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1517 fez parte da expedição à costa do Yucatan comandada por Francisco
Hernández de Córdoba; retornando a esse local com a expedição de Juan de
Grijalba e, na seqüência, fez parte da expedição comandada por Cortés que
resultaria na conquista de Tenochtitlán.
A sua versão da conquista ficou registrada na obra Historia Verdadera de los
Sucesos de la Conquista de la Nueva-España elaborada durante a sua velhice,
quando já haviam passado muitos anos da sua participação nas expedições
referidas1. Com o intuito de registrar as suas lembranças, iniciou uma Relación que,
segundo o próprio depoimento, abandonou logo por verificar que não possuía boas
qualidades de escritor se comparado à obra de Francisco López de Gomara. Nas
palavras de Bernal Diaz:
Estando escrevendo esta relação, por acaso vi uma história de bom estilo atribuída a Francisco Lopez de Gómara, que trata das conquistas do México e da Nova Espanha, e quando li sua grande retórica e como minha obra é tão grosseira, deixei de escrevê-la, e ainda tive vergonha que ela aparecesse entre pessoas notáveis. (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14 / A tradução é de nossa autoria)2
Mas, se Bernal Diaz sente a sua inferioridade como escritor, não resiste
quando percebe as contradições entre o narrado anteriormente e aquilo que,
segundo ele, realmente se passou: [...] e estando tão perplexo tornei a ler e a olhar as razões e os feitos que Gómara escreveu em seus livros, e vi que não era uma boa relação nem no princípio, nem no meio e nem no final, pois o relatado era muito contrário daquilo que foi e se passou na Nova-Espanha (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 15/ a tradução é de nossa autoria). 3
1 Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva-España foi publicada pela primeira vez em Madrid pela Imprensa Real em 1632. 2 Estando escribiendo esta relación acaso vi una historia de buen estilo, la cual se nombra de un Francisco Lopez de Gómara, que habla de las conquistas de Mejico y Nueva-España, y cuando lei su gran retorica y como mi obra es tan grosera, dejé de escribir en ella y aun tuve ‘vergüenza’ que pareciese entre personas notables[...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14) 3 [...] y estando tan perplejo como digo, torné á leer y á mirar las razones y pláticas que el Gómara en sus libros escribió, e vi que desde el principio y medio hasta el cabo no llevaba buena relación, y va muy contrario de lo que fué é paso en la Nueva-España (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 15). Na edição de Guillermo de Serés, este mesmo texto é apresentado da seguinte maneira: “ Estando escribiendo en esta mí corónica, acaso vi lo que escriben Gomara e Illesca y Jovio en las conquistas de Mejico y Nueva España, y desque las leí y entendí y vi de su polícia y estas mis palabras tan groseras y sin primor, dejé de escrebir en ella[...]” (SERÉS, 1998, p. 89).
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Tal percepção levou-o a reescrever a sua Relación inicial que resultou na
Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva-España. Nela teve
como meta relatar o que considerava como verdade, tratou de esclarecer os pontos
de contradição que tinha encontrado na obra de Gomara, visto que foi testemunha
presencial dos acontecimentos (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14 - 15).
A intenção de Bernal Diaz manifesta-se claramente ao leitor no prólogo da
sua obra: [...] o que eu ouvi e vivenciei, como bom testemunho de vista, eu o escreverei; com a ajuda de Deus, tranquilamente, sem torcer nem para uma parte nem para outra, e porque sou velho de mais de oitenta e quatro anos e perdi a visão e a audição, e não tenho outra riqueza para deixar a meus filhos e descendentes, salvo esta minha notável relação [...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 51).1
Essa preocupação levou Bernal Diaz a corrigir e a eliminar os exageros que
continha o texto de Gomara, procurando, com isso, garantir o direito de reclamar,
também ele, sua parte nas mercês reais (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 91).
Entre os exageros que denuncia em Gómara, encontra-se a exaltação de
Cortés, ao qual era atribuído o status de herói da Conquista. A esse respeito Bernal
Diaz faz muitas críticas. Para ele os agentes da conquista foram os espanhóis,
particularmente os capitães, categoria da qual fazia parte. Procura destacar o
aspecto coletivo sobre o individual afirmando, em vários momentos de
importantes decisões, o papel dos soldados como conselheiros de Cortés. A título
de exemplo, corrige os erros dos cronistas que não estiveram presentes na
conquista, afirmando que a atitude de Cortés de afundar os onze navios, para
evitar que os soldados se retirassem ou desistissem da conquista do Yucatam e
voltassem para Cuba, ou para outros lugares, foi devido ao conselho dele próprio e
dos soldados; portanto não foi uma decisão exclusiva de Cortés, segundo o relato
de Gomara2.
1[...]lo que yo oí y me hallé en ello peleando, como buen testigo de vista, yo lo escrebiré; con el ayuda de dios, muy llanamente, sin torcer a una parte ni a outra, y porque soy Viejo de más de ochenta y cuatro años y he perdido la vista y el oír, y por mi ventura no tengo outra riqueza que dejar a mis hijos y descendientes, salvo esta mi verdadera y notable relación[...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 51). 2 Segundo vários cronistas, Cortés teria ateado fogo aos navios para impedir o regresso dos soldados que haviam ido com ele na expedição que visava conquistar a Península do Yucatan. Conforme nota de Francisco Rico, esta versão deve-se ao interesse destes cronistas em aproximar a “figura” de Cortés a heróis clássicos, tais como: Agatocles, Timarco, Quinto Fábio Máximo, Juliano e outros, que de fato fizeram isto ( DIAZ DEL CASTILLO,1947, p.91).
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Como pode ser percebido, por meio das referências apresentadas, a História
de Bernal Diaz contesta a obra de Francisco Lopez de Gomara, oferecendo outra
versão da história, na qual procura exaltar o próprio valor e o dos seus
companheiros, no processo de conquista.
Encontramos outro exemplo de versão particular da história da Conquista
na obra Relación de la venida de los españoles y principio de la ley evangelica do
mestiço Fernando Alva Ixtlixochitl. Segundo Elisa Angotti Kassovitch (1997, 114-
116), Fernando Alva, filho do espanhol Juán Perez de Peraleda e da mestiça Ana
Cortés, nasceu entre 1578 e 1580. Entre os seus antepassados, encontram-se
Francisco Quetzalmamalintzin e Ana Cortés Ixtlilxochitl (bisavós) e Xiuhtotozin,
tlatoani de Teotihuacan e Tecuhahuatzin, chamada após o batismo de Madalena
(tataravós), dos quais herdou suas características nativas.
Em virtude dos estudos realizados no Colégio de Santa Cruz de Tlatellolco,
dirigido pelos franciscanos, assimilou os valores da cultura cristã ibérica. Inserido
nessa perspectiva, escreveu uma versão da Conquista do México, tarefa que
justifica por não ter encontrado, nas obras existentes, referências ao papel
desempenhado pelo seu povo e, particularmente, pelo seu antepassado Ixtlilxochitl
-infante legítimo del reino de Tezcoco - que apresenta como o principal aliado de
Cortés na Conquista do México (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 197). Constatando essa
ausência nas obras históricas anteriores, Fernando Alva redigiu a Relación de la
venida de los españoles y principio de la ley evangelica na primeira metade do século
XVII, e com o objetivo de registrar a memória do seu povo, particularmente a sua,
destacando as realizações dos seus antepassados. Nela procura registrar o valor do
seu povo, enquanto força aliada e fundamental, que colaborou na vitória dos
espanhóis sobre as forças dos mexicas de Tenochtitlán (IXTLILXOCHITL, 1956, p.
235). Sobre essas ausências, Fernando Alva comenta:
[...] me espanta de Córtes, que sendo este príncipe o maior e mais leal amigo que teve nesta terra, que depois de Deus com sua ajuda e favor se ganhou, não deu notícia dele nem de suas lutas e dos seus heróicos feitos, se quer aos escritores e historiadores para que não ficassem sepultados já que não foi dado a ele nenhum prêmio/recompensa. [...] (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212 / A tradução é de nossa autoria)1
1 [...] me espanta de Cortés, que siendo este principe el mayor y más leal amigo que tuvo en esta tierra, que después de Dios con su ayuda y favor se ganó, no diera noticia de él ni de sus hazañas y
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Porém, ao longo dos seus escritos, é possível observarmos o quanto ele
idealiza a participação do seu antepassado, e serve como exemplo a participação
de Ixtlilxuchitl no decorrer da conquista de Tenochtitlán:
Desde que Cortés e os demais saíram de Texcuco, Ixtlilxuchitl foi com eles e esteve junto a eles em todos os oitenta e quatro dias que durou a guerra do México sem faltar em nenhum, sendo o primeiro em todas as ocasiões, como bom capitão, arriscando a sua vida muitas vezes para livrar os espanhóis dos seus inimigos os mexicanos que se não fora por ele e seus irmãos, houve ocasiões em que podiam tê-los matado sem que ficasse ninguém se não fora por ele e os seus, como tenho referido (IXTLILXOCHITL, 1956.P. 212/ a tradução é de nossa autoria)1
Em virtude dessa falta de referências nas obras históricas, entre outros
motivos, Fernando Alva relata o papel desempenhado pelos indígenas aliados no
processo de conquista. Mediante tal registro, além de fazer constar que as
realizações do seu povo ficassem protegidas do esquecimento total, visava a
conseguir também as concessões que lhe eram devidas, como uma espécie de
pagamento pelos serviços prestados pelo seu povo aos conquistadores, conforme
podia ser comprovado nas fontes fidedignas por ele utilizadas, tanto escritas como
orais para compor a sua versão da história. Sobre elas comenta: [...] os que escreveram ou pintaram, encontraram-se pessoalmente nessas ocasiões [e ainda] alguns deles me disseram, de viva voz, a forma como sucedeu, já que faz poucos anos que morreram, os quais eu os conheci quando já eram muito velhos (IXTLILXOCHITL, 1956, p.211-212/ a tradução é de nossa autoria)2
A mesma confiança nas fontes utilizadas para escrever outra versão própria
de uma das fases da conquista é encontrada no mestiço Diego Muñoz Camargo,
autor da Historia de Tlaxcala. Nela procura enfatizar a contribuição desempenhada
pelos tlaxcaltecas no processo da conquista de Tenochtitlán. Como fontes, ele
utiliza narrativas elaboradas, entre outros, por: Andrés de Olmos, Bernal Diaz del
heroicos hechos siquiera a los escritores e historiadores para que no quedaran sepultados ya que no se ló dió ningún premio[...] (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212). 1 Ixtlilxuchitl desde que salieron a Tezcuco Cortés y los demás vino con ellos, y se halló personalmente en todos los ochenta días que duró la guerra de Mexico, sin faltar uno solo, siendo el primero en todas ocasiones, como buen capitán, arriesgando su vida muchas veces por librar a los españoles de sus enemigos los mexicanos que si no fuera por él y sus hermanos, deudos y vasallos, hubo ocasiones en que podian matarlos sin que quedara uno tan sólo, si no fuera por él y los suyos, como tengo referido (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212). 2 ‘[...] los que las escribieron o pintaron, se hallaron personalmente a estas ocasiones’ [ e ainda] demas que algunos de ellos mo lo han dicho vocalmente y contado de la manera que sucedió que ya pocos años há que se han muerto, los cuales yo alcancé ya muy viejos[...](IXTLILXOCHITL,1956, p. 211-212)
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Castillo, Bernardino de Sahagún, Jerônimo de Mendieta, Toribio Motolinia, aos que
acrescenta os relatos tlaxcaltecas escritos pelos primeiros aliados de Cortés.
Nascido em Tlaxcala em 1529, era filho do espanhol Diego Muñoz, que
chegou ao México em 1524 com seus pais, e de uma índia tlaxcalteca, de nome
desconhecido. Segundo Georges Baudot (1990, p. 440), Muñoz Camargo foi
educado no México (Tenochtitlán) e não em Tlaxcala. Como resultado da educação
recebida, em grande parte espanhola, já que cresceu entre estes, tornou-se
conhecedor dos clássicos e da cultura hispânica difundida na sua época, fato que
contribuiu para que se identificasse mais com os espanhóis do que com os
tlaxcaltecas, aspecto que pode ser percebido, ao longo da sua obra ao destacar, no
relato referente à sua infância, o desejo de ser exclusivamente espanhol1. Em 1545
deixou o México e voltou a Tlaxcala, exercendo vários ofícios, entre os quais os de
hospedeiro, vaqueiro, açougueiro e o de intérprete nos processos. A partir de
1580, levantou os dados que iriam resultar na elaboração da História de Tlaxcala
cujo título exato é Descripción de la ciudad y de la provincia de Tlaxcala en Nueva-
España y en las Indias del Mar Oceano.
Esse trabalho foi motivado pela incumbência recebida para responder às
questões elaboradas pelo Conselho das Índias em 1577, por meio das quais a Coroa
visava a obter descrições regionais dos territórios conquistados no Novo Mundo.
Uma primeira versão da História de Tlaxcala foi terminada em 1585 e entregue por
ele a Felipe II, por ocasião de uma viagem a Madrid. Após seu regresso a Tlaxcala,
continuou reelaborando o texto, finalizado aproximadamente em 15952.
Ao compararmos a versão da história elaborada por Diego Muñoz Camargo
com a escrita por Fernando Alva, deparamo-nos de imediato, com contradições e
diferenças. Ambos têm Cortés como eixo da narrativa, porém, ao redor dele cada
um destaca o seu povo respectivo, registrando a existência de fatos e personagens
diferentes.
1 É comum ao longo da Historia de Tlaxcala Diego Muñoz Camargo usar expressões tais como “nostros españoles” procurando se identificar como espanhol e não como mestiço. 2 A primeira versão foi identificada num manuscrito pertencente à Universidade de Glasgow, sendo editada em facsimile pela Universidade do México em 1981. A segunda, incompleta desde o século XVIII, encontra-se em Paris, na Biblioteca Nacional, na coleção Goupil Aubin, como manuscrito mexicano nº 210. A edição trabalhada por Georges Baudot provém deste manuscrito. Ao longo de ambas as versões, segundo Baudot é perceptível a parcialidade assumida pelo autor. Embora narre a história dos primeiros e “melhores” aliados de Cortés, não deixa de se posicionar como espanhol.
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Nos escritos sobre a Conquista aqui apresentados, constatamos que cada
autor possui a sua verdade e o seu uso da história para legitimá-la. Fazendo uso da
história lutaram pelos seus interesses particulares, apresentando-se como homens
de valor; isto é, como homens que serviram e foram fundamentais para que os
propósitos da Coroa fossem efetivados. A história, para eles, torna-se um
mecanismo de legitimar, tanto as realizações pessoais como as do grupo/categoria
que representam. Por meio dela tornaram públicos os atos de bravura e heroísmo
dos seus povos respectivos, construindo a própria memória histórica com a qual
reivindicaram melhores tratamentos por parte da Coroa.
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As Gravuras Mexicanas Do Museu De Arte De Santa Catarina: Entre Aparição e Nostalgia
Doutoranda Lucésia Pereira1
Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo procura estudar um conjunto de gravuras doadas pelo presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos no ano de 1961, ao acervo do então Museu de Arte Moderna de Florianópolis. Sabemos pela autoria, que parte das imagens deste conjunto se integram a uma etapa específica da história da gravura no México, representativa da produção do TGP – Taller (em português, oficina ou ateliê) de Gráfica Popular. Concebidas em séries e, portanto, sem o valor aurático da cópia única, esta obra gráfica está desvencilhada das condições que presidiram sua origem, cujo propósito era informar e conscientizar através de uma mensagem forte, breve e clara. Os laços estreitos que as imagens têm com a Revolução de 1910, tornam comuns os estudos que destacam o seu papel de construtoras e guardiãs da memória revolucionária. São vistas deste modo como um epifenômeno da Revolução, como acontece em alguns trabalhos sobre o Muralismo. Sem desconsiderar isto, é preciso investigar como esta produção artística dialogou com seu tempo e com os processos mais gerais da cultura latino-americana dos quais são uma parte indissociável. Analisar as gravuras é também uma oportunidade de examinar mais criticamente a história da arte destes países, inclusive mostrando o caráter informe e pouco estudado dos seus acervos museológicos. Palavras-Chave: museu, gravura, imagens, México
ABSTRACT The present article has the purpose to study a set of engravings donated in 1961 by the mexican president Adolfo Lopes Mateus to the then called Museu de Arte Moderna de Florianópolis. We have known by its authorship that part of the images of this set of engravings belongs to an specific history of engraving in Mexico, very representative of the production of TGP – Taller de Grafica Popular (Atelier of Popular Graphic). Conceived in series and, therefore, lacking the aural value of an unique piece, this graphic work is cut off from the context of its origins, which have the purpose to inform and generated awareness through a strong, brief and clear message. The tight bonds between those images with the Revolution of 1910 have unified the studies that put on the spot their role as makers and keepers of a revolutionary memory. They have been seen as an epiphenomenon of the revolution, just like what have happened with some works about the Muralism. Regardless of that, we must investigate how such artistic production had dialogued with its time and with the general processes of latin american culture from which they are an inseparable part. Analyse the engravings it is also an opportunity to look closer and critically the history of the art of those countries and, in doing so, show the shapeless form and spared studies conducted over its art collection. 1 Pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina com recursos do CNPq.
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Keywords: museum, engraving, images, Mexico.
Este texto procura pensar as relações entre história, arte e imagem
tomando como fonte um conjunto de gravuras produzidas no México nas primeiras
décadas do século XX, e que atualmente pertencem ao Museu de Arte de Santa
Catarina – MASC1. Concebidas em séries e, portanto, sem o valor aurático da cópia
única, o conjunto de imagens que aqui chamamos de “gravuras mexicanas” estão
desvencilhadas das condições que presidiram sua origem, cujo propósito era
informar e conscientizar através de uma mensagem forte, breve e clara. Os laços
estreitos que esta obra gráfica têm com a Revolução de 1910, tornam comuns os
estudos que destacam o seu papel de construtoras e guardiãs da memória
revolucionária. São vistas deste modo como um epifenômeno da Revolução, como
acontece em alguns trabalhos sobre o Muralismo. Sem desconsiderar isto, é preciso
investigar como esta produção artística dialogou com seu tempo e com os
processos mais gerais da cultura e estética latino-americana do qual são uma parte
indissociável. Analisar as gravuras é uma oportunidade de examinar mais
criticamente a história da arte destes países, inclusive mostrando o caráter
informe e pouco estudado dos seus acervos museológicos. Desta forma,
contrariando o espectro de uma falsa totalidad como apontou Diana Wechsler ,2
que paira sobre a própria noção de uma arte latino americana. Além destas, pesam
outras questões importantes num estudo desta natureza. Rosangela Cherem 3 diz
que para sair do lugar-comum é preciso revirar os próprios bolsos, implica olhar
para estas coleções, muitas vezes esquecidas nos labirintos das reservas técnicas,
desafiando as cronologias engessadas e os ismos, deixando à mostra as
contradições inerentes ao arquivo, já que como lugares de memória os museus
estão indelevelmente marcados com os germes da contradição e do jogo dialético.4
O objetivo deste estudo é entender de que maneira os artistas expressaram
questões importantes de seu tempo e delas extraíram matéria-prima do seu 1 As seguintes referências ao Museu serão feitas apenas pela sigla. 2 A expressão se refere ao título da comunicação: Exposiciones de Arte latinoamericano: la (falsa) totalidad , apresentada por Diana B. Wechsler no II Colóquio História e Arte: Imagens da América na Latina, realizada Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em setembro de 2009. 3 CHEREM, Rosângela. Notação para uma história da pintura na América Latina. Revista esboços nº 19. Dossiê história, arte e imagem. 4 CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu. Chapecó: Argos, 2006.
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trabalho, sem relegar para isto a pesquisa formal e a inventividade. Há que se
destacar que elaborar narrativas sobre o passado tomando a imagem, seja ou não
artística como documento, é um terreno movediço. Constata-se que apesar da
crítica que trouxe a reboque a ampliação das fontes, ainda se “desconfia” muito
mais das imagens do que dos objetos textuais, aos quais parece pesar sempre um
maior substrato de verdade. Assim, para um discurso que não prescinde de sua
objetividade e que instituiu a palavra como meio mais legítimo de testemunho, os
métodos usados para trabalhar com imagens na história não parecem ser
suficientemente seguros. Na contrapartida desta aparente dificuldade, está um
campo fértil onde podem brotar ilimitadas associações que as imagens
estabelecem na sua transitoriedade pela cultura. A lógica que prevalesce neste caso
é a das associacões inderminadas, tal qual acontece ao colecionador benjaminiano,
quando se deixa levar pelos arrebatamentos ao desempacotar sua biblioteca.
Foi partindo destas premissas que procuramos analisar a partir das
imagens, itens como as narrativas exteriores; o ambiente social em que foram
produzidas; o modo como os artistas enfrentaram os problemas de sua época; os
interesses políticos e culturais que dirigiram o percurso das obras em tempos e
lugares. Mas, a revelia destes esforços, as imagens se colocam como irredutíveis a
um discurso verbal que tenta apreendê-las, afinal de contas falar não é ver1.
Portanto, qualquer dado aqui apresentado não pretendeu ser exaustativo e
tampouco conclusivo, e neste momento preliminar das pesquisas em parte,
rendeu-se aos silêncios impostos pelo arquivo.
Nosso foco se dirige agora ao ano de 1961, quando ao acervo do então
Museu de Arte Moderna de Florianópolis eram acrescentadas 62 gravuras doadas
pelo então presidente da Argentina, Arturo Frondizi, e mais 49 ofertadas em nome
do presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos. O museu havia sido inaugurado em
1949, e, segundo as narrativas criadas sobre este momento fundacional, era fruto
de um movimento iniciado por jovens locais e abraçado pelo escritor carioca
Marques Rebelo, que esteve à frente da criação de outros museus de arte moderna
no Brasil. Seja como for, a aparição do museu condizia com o clima cultural do pós-
guerra e com a introdução do ideário moderno nas regiões mais interioranas do
1 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2007.
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país1. Mesmo a partir de 1976 quando o museu mudou de nome e se tornou
estadual,2 de acordo com a análise de Emerson Oliveira, houve um empenho
contínuo dos dirigentes do MASC em perpetuar um discurso identitário a partir da
arte moderna. Isto foi feito continuamente através dos eventos, das publicações
entre outras ações encampadas pelo MASC. Dado que revela, segundo o mesmo
autor, a dificuldade em aceitar a poliformia de seu acervo: A escolha de apenas
códigos modernistas para a representação de si, numa seleção política articulada,
traz ao acervo um apagamento perigoso e que pode indicar que a instituição está
ligada e comprometida com somente um sentido da história de sua coleção.3
A significativa aquisição destas gravuras, resultava de um pedido de doação
de obras de arte, feito em 1959. A idéia partiu de João Evangelista de Andrade
Filho4 que nesta época cumpria a primeira das suas duas gestões na direção do
museu. Recém empossado, ele visava aumentar o pequeno acervo do então MAMF
que apesar de significativo - já que incluia obras de Iberê Camargo, Roberto Burle
Marx, Athos Bulcão, Djanira, entre outros expoentes modernistas do Brasil – era,
em sua opinião quantitativamente pequeno. Quando questionado sobre a razão de
solicitar especificamente gravuras, ele diz que o pedido soava mais razoável pois,
as gravuras eram mais acessíveis que pinturas ou esculturas. Além disto, ele sabia
pela convivência artística mantida na cidade de Porto Alegre com gravuristas
gaúchos, que no México havia uma forte tradição desta técnica.
Para entender melhor o sentido desta doação, sabe-se que as exposições
organizadas pelos orgãos diplomáticos, assim como a oferta de objetos artísticos
não era nenhuma novidade dentro da prática política. Contudo, Knauss5 em seu
estudo sobre as exposições de arte no contexto da Segunda Guerra Mundial aponta
que já ao término da Primeira Guerra, novos e renovados interesses são 1 LEHMKUHL, Luciene. Imagens além do círculo: O Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis e a positivação de uma cultura nos anos 50. Dissertação. Florianópolis: UFSC (Mestrado em História), 1996. 2 A sua primeira denominação foi Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), entretanto, o termo moderno foi retirado em 1970 quando a instituição deixou de ser municipal e se tornou estadual. 3 OLIVEIRA. Emerson Dionisio G. Um acervo de arte moderna e a identidade institucional. Revista História em Reflexão: Vol. 2 n. 4- UFGD- Dourados jul/dez 2008. 4 João Evangelista foi professor de História da Arte da Faculdade de Direito de Santa Catarina e figura destacada no cenário artístico de Santa Catarina. Os dados aqui apresentados foram recolhidos a partir da entrevista realizada nas dependências do MASC em 28/04/2010. 5 KNAUSS. Paulo. Os sentidos da arte no Brasil: exposições de arte no contexto da Segunda Guerra Mundial. Revista esboços nº 19. Dossiê história, arte e imagem.
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acrescentados a isto, como por exemplo mostrar os valores ilustrativos das
nacionalidades e suas culturas através das obras selecionadas.
Em que medida o interesse propagandístico influenciou a doação mexicana
é ainda um assunto a ser aprofundado. Mas é possível deduzir que o envio das
gravuras, na presidência de Lopes Mateos ao museu catarinense, mostrava
interesse numa aproximação com seus vizinhos, tendo em vista que no mesmo ano
de 1959 quando João Evagelista remetia o pedido, o presidente mexicano fez
também uma visita oficial ao Brasil, chegando a desfilar em carro aberto pelas ruas
do Rio de Janeiro.
Figura1- Fotografia da visita do Presidente Adolpho Lopez Mateos ao Brasil em 1959. Foto: O Cruzeiro. Disponível em: http://fotolog.terra.com.br/tororo: 83
Os fatores que presidiram a escolha do conjunto enviado ao museu
florianopolitano são desconhecidas. Pode se tratar de uma seleção tanto deliberada
quanto aleatória e, é provável que pesquisas futuras possam confirmar uma destas
suposições. Indiferente a estas questões, as imagens estudadas evocam em sua
figuração, as experiências vividas pela maior parte da população latino-americana
como a violência, a luta pelo reconhecimento de suas identidades, pela terra e
mesmo o anseio por um momento mais redentor. O caráter de permanência e
universalidade destas necessidades vão além das fronteiras ideológicas e
temporais de qualquer discurso nacionalista. Mesmo o expectador desavisado, que
nada saiba de antemão sobre a vida pregressa desta obra gráfica, será igualmente
deslocado à atmosfera de conflitos, dramas e esperanças. Estes assuntos que
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certamente ainda falam ao nosso tempo, ganharam forma a partir de narrativas
individuais e diferentes linhas, das quais a obra gráfica remetida ao MASC é uma
expressão.
Sabemos pela autoria, que parte das imagens do MASC se integram a uma
etapa específica da secular história da gravura no México,1 representativa da
produção do TGP – Taller (em português, oficina ou ateliê) de Gráfica Popular.
Fundado em 1937, por Pablo O´Higgnis e Leopoldo Mendez, que o dirigiu por vinte
e cinco anos. Apesar de ter sido uma importante e profícua oficina gráfica, há
pouca circulação de publicações acerca do TGP no Brasil. Os estudos consultados
apontam para a influência que teve na formação de dois clubes de gravura no Rio
Grande do Sul. Um deles sinaliza inclusive que os gravuristas Carlos Scliar e Vasco
Prado2 conheciam Leopoldo Mendez, encontrando-o em duas ocasiões: no
Congresso Mundial de Intelectuais em Defesa da Paz em 1948 na Polônia, e em
1952 em Paris. Segundo o mesmo estudo, a aproximação foi fundamental para a
criação do núcleo de gravura de Porto Alegre em 1950.
Além dos fundadores, assinam a autoria das 49 gravuras, artistas
conhecidos como Franscisco Mora, Arturo Garcia Bustus, Angel Bracho, Ignacio
Aguirre, Célia Calderon, Javier G. Iñigues, Sara Jimenez, e a americana Elisabeth
Catlett que assim como Pablo O´Higgnis residia no México. A extensa produção de
várias décadas esta dispersa de forma inalcansável. Entretanto alguns exemplares
do MASC são facimente encontrados em sites de museus e publicações na internet.
Isto acontece com os trabalhos produzidos por Leopoldo Mendez, intituladas
Fusilamento, Los pueblos en defesa da paz, Un dia de vida en el paredon (única delas
1 ADES, Dawn. História da Arte na América Latina. São Paulo Cosac e Naify, 1997. Segundo esta autora foi nas primeiras décadas do século anterior que a busca por uma arte acessível levou a recuperação e valorização da gravura no México, cuja técnica viera na bagagem dos primeiros colonizadores. De acordo com esta análise, coube aos muralistas salvar de um possível esquecimento o trabalho de Jose Guadalupe Posada (1852/1913), cujo valor da obra era reconhecido por artistas como Orozco e Rivera. 2 Para saber mais sobre este contexto ver: JUNIOR, Raul Rebello Vital. O Partido Comunista e a Revista Horizonte: a negação da produção na tradição. Revista Ciências e Letras. Porto Alegre, n.41, p.319-334, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras/publicacao.htm>
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em que consta a data de fatura-1950) e Posada que também pode ser encontrada
com o título de Homenagem a Posada, 1datada no ano de 1956.
A gravura (fig.2) acena para a admiração que Leopoldo Mendez sentia por
Posada embora o título seja apenas uma correspondência e não uma equivalência.
Ao olharmos para uma fotografia (fig.4) em que ele aparece em frente a sua oficina,
parece evidente que Mendez buscava uma semelhança com o “retratado”. Além da
aparência, as duas imagens quase nada compartilham. A mão no bolso
assegurando a pose informal de Posada destoa do tom sério da fisionomia que
vemos da gravura. A feição circunspecta mostrava-se mais condizente com o valor
histórico e o caráter testemunhal que se atribuia a ele e a sua obra. Este detalhe é
importante no que se relaciona ao processo de fatura da obra pois diferente do
imediatismo com que um rosto pode emergir de uma pintura, de um desenho ou
uma fotografia, na elaboração de uma gravura há principios inerentes como a
marca, a transferência e a reprodução, que demandam um tempo próprio.
Figura 2 - Leopoldo Mendez (México, 1903 – 1969), Posada, s/data,
linoleogravura s/papel, 35x78cm.
1 Está assim referido em ADES, Dawn. Op. cit., p.182. Contudo, na apresentação desta e das demais imagens, foram mantidos os dados que constam nos documentos do acervo do MASC.
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Para Débora Caplow1, Leopoldo Mendez, não se contentava com um
tratamento simplesmente icônico, agregando em suas gravuras, textos narrativos
sob diferentes modos, como é dado ver na mensagem que segura a personagem
posicionada a direita e em segundo plano (fig. 3) com relação à Posada. Nela,
consta a seguinte frase: No havrá leva ese pretexto conque los actuales caciques
arrancan de su hogar a los hombres a quienes odiam. Na mesma imagem vemos
ainda a figura que representa Posada em primeiro plano. A mesa onde trabalha é
previlegiada por uma luz que incide sobre as ferramentas de gravador. Ele observa
através de uma janela onde Mendez usou como elementos da sua encenação do
passado, os violentos conflitos em torno da questão agrária e expropriação das
terras pelo Estado. Sobre a sua cabeça, uma nota assinala o ano de 1902, época de
culminância destes conflitos. No seu papel de testemunha, Posada
instantaneamente retem o que se passa “lá fora”, através das marcas feitas na placa
de madeira em que trabalha. Nas artimanhas, jogos e inversões inventados pelo
artista, as noções de tempo e autoria, assim como as de ficção e verdade se
embaralham. O que reforça a máxima de que tudo na imagem, no final das contas, é
somente a própria imagem.
Figura 3 - Leopoldo Mendez (México, 1903 – 1969), Posada, detalhe, s/data, linoleogravura s/papel, 35x78cm.
1 CAPLOW, Débora. Leopoldo Mendez: Revolutionary Art And The Mexican Print. Texas: University Press, 2007.
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Figura 4 – Jose Guadalupe Posada s/data, fotografia. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Posada4.Workshop.jpeg
O artista trabalha dentro de um limite instável entre o que é herdado de
outras épocas e ditado pelo seu tempo. Sobre isto Svetlana Alpers1 num estudo da
arte holandesa do século XVII, mostrou que o seu modo cartográfico deve ser
considerado em relação à especificidade do acesso a terra naquele país, cuja
inexpressividade do caráter senhorial e liberdade nas formas de acesso foram, no
seu entender, uma espécie de unanimidade no Ocidente. A técnica pictórica que se
desenvolveu a partir disto destacou a admiração pela natureza, alimentada pela
ausência do conflito entre campo e cidade. Sabe-se que tais condições foram de
fato uma particularidade, pois as relações entre os seres humanos e a propriedade
da terra se desenrolaram nos últimos séculos em grande parte à mercê de lutas e
conflitos. Nas regiões colonizadas, mesmo após as independências, restaram
marcas estruturais como o problema da distribuição desigual da riqueza, e,
destacadamente, da terra. Este fator manteve excluídos um grande contingente de
pessoas. No livro em que analisa a diáspora caribenha após a Segunda Guerra
Mundial, Stuart Hall2 mostra que a história dos povos colonizados está marcada
pelas rupturas mais violentas e abruptas, e que isto marcou as identificações que 1 ALPERS. Svetlana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999. 2 HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
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são construídas na cultura, uma vez que é nela que tais identificações são
produzidas.
Como parte da cultura, a paisagem está presente em 19 das 49 gravuras do
conjunto mexicano. Por elas é possível entender melhor o diálogo dos artistas com
seu tempo e também com os elementos de uma cultura paisagística fortemente
enraizada nas artes plásticas e na literatura. Faz-se notar nestas imagens certo
atavismo na narração do lugar e seus habitantes, isto se dá pela inclusão de
elementos naturais e culturais, como espécies vegetais, vestimentas e formas de
trabalho. Mas, na sua figuração, a organicidade do conjunto vem de uma maior
preocupação com o ser humano em relação à natureza. Na imagem de Arturo
Bustus (fig. 5), cujo título já assinala se tratar de uma exortação da posse da terra, a
figura do camponês está em primeiro plano. Ela é a presença dominante que
transforma o solo e cria o cenário que sustenta a vida pelo ciclo da plantação e
colheita. O campo cultivado que aparece no panorama da moldura/janela, faz
recuar a natureza selvagem. Como escreve Cauquelin 1 toda paisagem é um
combate ritual entre forças desarticuladas.
Figura 5- Arturo Bustus. Campesino com tierra. s.d.Linoleogravura sobre
papel, 30,4x40
1 CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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Estas imagens ao mesmo tempo em que exprimem continuidade com
períodos artísticos anteriores, quando os pintores projetaram as suas visões de
mundo a partir de um ponto de vista ligado à natureza e ao mundo rural, não
deixam de ser uma nota sombria ao tortuoso avanço dos processos de
modernização das estruturas sociais e econômicas da América Latina. Além de
expor a visão do trabalho agrícola, ainda como ação fundamental à sobrevivência,
as gravuras fazem referência aos modos extenuantes deste trabalho. A composição
de Sarah Jimenez intitulada Tallador (fig. 6) insinua a força necessária para
obtenção das raspas da folha do henequén, variante mexicana de uma planta da
família das agaves, cujas fibras já eram usadas no tempo dos Maias. A atividade foi
integrada à economia internacional no século XIX graças ao cultivo em larga escala
e a exploração da mão de obra de camponeses pauperrizados. O cultivo destas
fibras teve seu correspondente dramático no Brasil quando a partir dos anos
sessenta do século XX, o “ouro branco do sertão” como era chamado o sisal, se
difundiu em regiões do estado da Bahia, consumindo em árduas jornadas de
trabalho, a infância de milhares de crianças.
A imagem de Sarah Jimenez tem um ar monumental pelas proporções
avantajadas e pela solidez com que a figura do homem e suas ferramentas de ofício
se fixam ao chão. As veias intumescidas das mãos e do punho são partes retorcidas
da mesma dinâmica que envolve os outros elementos da composição. Nela tudo se
curva e retorce num movimento incessante e ancestral entre natureza e cultura.
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Figura 6 – Sarah Jimenez. Tallador, s.d. Linoleogravura s/papel, 34,4x28cm.
Nas gravuras mexicanas temos uma visão impactante dos modos de
exploração da força de trabalho que mantém distante qualquer nota idílica acerca
da labuta no campo, como na gravura Cosechadora de Algodón (fig.7) onde tudo é
mínimo e essencial. A cabeça da mulher parece se ampliar junto a aba do chapéu,
ambos pairam acima do torso excepcionalmente magro, que mesmo o delicado
abotoamento do casaco não disfarça. A obra é simples e direta no seu fluxo
descontínuo entre linha e espaço e dela emana uma emoção incômoda. Em
entrevista concedida em 1990, Elizabeth Catlett1 comentava que os objetivos da
arte era dar algo para as pessoas pensarem, e atingir os que sofriam não só no
México, mas em de outras partes do mundo. Como havia feito Van Gogh na sua
extensa série de auto-retratos, com incontáveis traços curtos e rápidos ela faz um
registro particular e não menos intenso uma iconografia dos oprimidos2
contribuindo com o imenso arsenal expressivo da arte moderna.
1 Entrevista realizada por Michael Brenson. Revista Sculpture. Publicação do Centro Internacional de Escultura. Abril 2003. Vol.22 no.3. Disponível no site http://www.sculpture.org/documents/scmag03/apr03/catlett/cat.shtml. 2 CANCLINI. Nestor Garcia. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1999.
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Figura 7 - Elizabeth Catlett. Cosechadora de algodón, s.d. Linoleogravura
s/papel, 44,8x42,3cm.
Um outra gravura de Elizabeth Catlett, intitulada “Maternidade” (fig 8) pode
ser combinada a uma longa série de imagens que aparecem na cultura visual desde
antes das primeiras Madonas pintadas na Renascença. Por meio delas muitos
artistas abordaram questões relativas ao pensamento plástico. Na composição
(fig.8) sobressai o tratamento cuidadoso do jogo entre luz e sombra. Neste jogo,
por uma equilibrada contraposição repousa a atmosfera de suavidade que emana
do conjunto. O resultado é um arranjo formal que coloca em evidência o clima de
comunhão e afeto entre mãe e filho. Combinada a esta série de aparições que
remonta aos primórdios do Cristianismo, o punho cerrado da criança não deixa de
pulsar como uma tensão, mostrando que a vida das imagens na cultura ao mesmo
tempo em se inscreve nos processos de seu tempo conjuga outras temporalidades,
como faz crer Aby Warburg nas suas considerações sobre a permanência de
valores expressivos que sobrevivem como um patrimônio sujeito a leis próprias de
transmissão e recepção.
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Figura 8 - Elizabeth Catlet (Washington, EUA, 1919), Maternidade, s/d.
litografia s/papel, 43,6x3cm.
A gravura (fig.9) “Cabeza” de Célia Calderon foi a vigézima terceira de uma
série de cinquenta cópias. Nela vemos um delicado rosto de uma jovem cujo queixo
se inclina timidamente sobre o peito. A impressão da imagem, em desalinho com o
suporte, é um dado que se soma à inquietação provocada pelos grandes olhos da
garota. Como um artíficio astuto, estes olhos veem aquilo que pode ser especulado
ad infinitum, mas nunca será visto. O olho está aqui para o tempo, como a janela
para a paisagem. É a partir de artifícios de inventividade como este, que a
fisonomia dos grupos étnicos nativos ou não-europeus se inscrevem em parte do
repertório das gravuras mexicanas do MASC.
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Figura 9 - Célia Calderon (México, 1921 – 1969), “Cabeza”, s. d., litografia
s/papel, 55x41cm
A inclusão das fisionomias indígenas, negras e mestiças foi um tema
abraçado pelas gerações vanguardistas latino-americanas da primeira metade do
século passado. Apesar da sua heterogeneidade, intelectuais e artistas membros
destas vanguardas vão atacar a idéia da inferioridade cultural e biológica dos
povos colonizados. Uma das atitudes adotadas para isto, será dar visibilidade as
fisionomias e, ao mesmo tempo destacar elementos típicos do modo de vida destes
grupos, ainda que muito desta produção tenha permanecido rendida, como
outrora, ao típico e popular,. No Brasil, o modernismo encampou de um modo
muito próprio esta tarefa, e alguns quadros de Tarsila do Amaral são emblemáticos
a este respeito. Mas é preciso lembrar, que na arte em geral, a ruptura com
modelos europeus não era novidade. Já se manifestara de formas distintas nos
primeiros séculos da conquista através do Barroco e da arte dos viajantes. No
Barroco brasileiro remete, entre outros, aos rostos mulatos do Aleijadinho e aos
anjos mestiços do Mestre Athaíde.
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Na medida em que o nacionalismo se fortalecia, fez aproximações e
apropriações com a cultura destes grupos. Num texto1 produzido com vistas ao
Congresso Internacional das Artes Populares em Praga em 1928, Henri Foccilon
discute estas apropriações. Contemporâneo do processo ele defendia que a arte
popular não poderia ser circunscrita aos designios do nacional e que a sua suposta
genuinidade era desmentida pela recorrência universalista dos seus padrões. Para
ele os esquemas étnicos não coincidiam com os nacionais. Como de fato, estas
ideias não se sustentaram frente à reorganização das identificações causadas pelas
migrações e processos sócio econômicos das últimas décadas. Terry Eagleton2
resumiu as diferenças nos discursos ligados à identidade ao se referir às mudanças
culturais após os anos 60 escrevendo que a cultura foi o suplemento que veio
desalojar àquilo que ela veio gradualmente retificar.
No caso específico do México, a Revolução fora exitosa ao criar uma noção
de identidade nacional que reconhecia os valores culturais legados pelos grupos
camponeses, indígenas e populares. Uma significativa parcela da “arte
revolucionária” é depositária da esperança que os artistas nutriam com relação à
nação vindoura, onde as injustiças seculares seríam reparadas e as culturas
conviveriam irmanamente. Tendo em conta os interesses ideológicos, entre suas
vantagens estaria o fato de ser mais barata e popular, chegando a um número
maior de pessoas através de cartazes, revistas, jornais, livros... Bem sucedidas no
seu propósito de testemunhar este processo, as gravuras do MASC mantêm acesos
estes valores mas advertem - através de uma cenografia de lutas, protesto e
combates - para o caráter expiatório do caminho que leva a isto. Não à toa, este
sinal melancólico está presente num conjunto impossível de juntar, composto por
muitas fotografias, filmes, cartazes, pinturas..., que “documentaram” a recorrência
da violência como uma epécie de modus operandi da modernidade política destes
países.
Gestos como punhos cerrados podem ser vistos na gravura “Manifestacion”
(fig. 10) de autoria de Javier G. Iñigues. As figuras dos manifestantes exprimem
solidez e determinação. Sobre suas cabeças, o artista criou um céu de linhas curtas 1 FOCCILON. Henri. Arte e cultura populares. Revista Brasileira de História. São Paulo. v. 8 nº 15, pp. 205-314, set. 87/fev.88. 2 EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: UNESP, 2000, p.179.
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e tensas. As zonas limítrofes entre claro e escuro são um obstáculo a ser transposto
num percurso que, a despeito da determinação dos caminhantes, não deixa de
parecer sombrio. Em meio a isto, a mulher se distingue pelo gesto preocupado com
que esconde e proteje a criança, mantida junto ao seu peito. Estes vestígios
impedem que as obras sejam reduzidas aos significados que a elas podem ser
atribuidos pois, as gravuras têm uma lógica própria que inclui desvios e contradiz
as expectativas de uma mera representatividade do social.
Figura 10 - Javier G. Iñigues, “Manifestacion” (1957). Linoleogravura s/papel, 30,5x42cm.
Desde o século XIX, com o advento da fotografia, a questão da
reprodutibilidade técnica das imagens e o crescente aumento dos meios para isto
foi um tema caro a muitos intelectuais que, como Walter Benjamin, tentavam
compreender como estas mudanças alteravam a percepção sobre a arte e sobre o
próprio caráter geral da cultura. Benjamim via com melancolia estas mudanças e
alertava para a miséria narrativa nas modernas sociedades capitalistas, assunto
que se tornou tema central de alguns dos seus escritos1. Na opinião deste crítico, a
impossibilidade de compartilhar experiências numa cultura crescentemente
1 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: Magia e Técnica: arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
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individualista e fragmentada não somente inviabilizava a memória comum, mas
decretava o fim de um extenso tecido narrável.
A despeito de tudo isto, o mundo inconstante do século XX assistiu a
expansão das linguagens populares como o cinema, a televisão e os quadrinhos,
responsáveis por parte do imenso arsenal imagético da cultura visual. Estes meios
influenciaram várias gerações porque as imagens são fecundas de experiência e
deste modo fornecem elementos materiais e simbólicos para o pensamento. No
início dos anos 60, o cinema já fazia parte dos modos de sociabilidade de muitas
cidades latino-americanas, sendo que nas mais pequenas e periféricas se constituía
muitas vezes numa das poucas formas de acesso a um mundo, cuja capacidade de
reprodução de imagens aumentava cada vez mais. Em contrapartida, os meios de
acesso a elas não. Nesta época, o faroeste era um gênero popular, exportado em
geral dos Estados Unidos e apreciado por vários públicos. Entre produções banais
e de maior calibre propagavam uma visualidade representativa do ser mexicano
que se fez por estereótipos básicos como o bandoleiro desenraizado ou o
camponês desafortunado, mercê da tutela ou da justiça de um herói, quase sempre
um indivíduo moral e fisicamente mais poderoso. Destituídos de qualquer sentido
libertário, estes contextos eram apresentados a partir da figuração de elementos
comuns ao modo de vida e, como as gravuras, se nutriram de um imaginário em
torno de uma iconografia mexicana originada na própria Revolução.
Um item deste imaginário é a figura emblemática do trem que aparece em
duas imagens elaboradas por Ignacio Aguirre. Uma delas (fig.11) intitulada Trem
revolucionário, excluindo o cachorro que se coloca em frente do homem a cavalo,
os movimentos dos demais personagens são desencontrados, como a figura da
mulher que parece caminhar alheia ao restante da cena. Com exceção da jovem
sentada lateralmente, que se distingue pelo perfil emoldurado por longos cabelos,
as pessoas apinhadas no vagão de madeira, estão imersas na indolência que é
ditada pela espera. O trem revolucionário desafiava a distância e aridez da terra,
mas dentro de certos limites. Como observado pelo historiador da cultura Aby
Warburg1 em viagem a região onde viviam os índios Pueblo, as ferrovias não
1 WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte. Revista Concinnitas ano 6, volume 1, número 8, julho 2005.
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haviam conseguido alcançar as aldeias mais distantes. Nelas, as práticas mágicas
dos habitantes mais antigos deste território, sobreviviam assim como
teimosamente as tempestades de areia cobriam os trilhos que simbolizavam a
modernidade confusa destes tempos.
Figura 11 - Ignacio Aguirre. Trem revolucionário I –s/d. Linoleogravura
sobre papel, 30,7x42.
Questionado acerca do impacto das gravuras sobre o meio artistico local,
João Evangelista de Andrade1, afirmou que elas foram recebidas sem muito
entusiasmo. Assim que chegaram ao MASC organizou-se uma exposição celebrativa
mas, nos anos subsequentes, elas frequentaram apenas ocasionalmente uma ou
outra exposição temática. Para ele, contribuiu para isto o fato dos interesses locais,
tanto dos artistas quanto do gosto público, estarem voltados para outras
preocupações estéticas, além da ausência de uma tradição da gravura, que só viria
se desenvolver duas décadas depois. Seja como for, a coleção ainda permanece
quase invisível entre as aproximadas 1700 obras que o museu possui hoje. A
reduzida frequência com que as gravuras vieram a público é uma condição similar
1 João Evangelista fez esta afirmação numa entrevista realizada em 2009 e a reiterou numa segunda entrevista realizada em 2010
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aos acervos de muitos museus brasileiros, entre outras questões pela falta de
estudos investigativos.
A situação não deixa de ser um resultado indesejável do aspecto unívoco
das relações entre o museu e a sociedade. Como disse Jorge Coli1 uma vez findada a
sua gênese, a obra deixa de ser objeto e se torna sujeito, pois ao cria-lá o artista
introduz no mundo um ser pensante. Vistas no contexto em que foram criadas,
estas gravuras tinham o objetivo de conscientizar e chamar a atenção. Já as suas
constantes formais e estilísticas permitem que na sua vida na cultura, expressem
os seus próprios pensamentos, instaurando um mundo que passa a viver por si
mesmo. Uma vez mantidas na invisibilidade tudo isto permanece apenas como
latência. Dos diálogos que as gravuras suscitam com o seu antes e depois, resta
saber como a promessa anterior de uma América livre, justa e próspera se
consolidará frente às narrativas descentradas da cultura pós-moderna, assim como
tem sobrevivido à urgência em promover a reforma agrária, a educação, e a
inclusão das populações marginalizadas, lamentáveis continuidades no seu
processo histórico.
1 Palestra proferida no I Colóquio História e Arte: trânsitos da modernidade. Realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em setembro de 2008.
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Cartas, História e Linguagem.
Doutorando em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Kleverson Teodoro de Lima. e-mail: [email protected]
RESUMO
Este artigo apresenta considerações sobre o estudo da prática epistolar, reafirma a necessidade de se desconstruir a equivalência, presente no senso comum, entre o espaço de intimidade e a noção de transparência e contribui para a reflexão do historiador sobre os diferentes elementos que compõem a situação discursiva da produção do texto missivista.
Palavras-Chave: Cartas; epistolografia; História; Lingüística; performatividade.
ABSTRACT
This paper makes considerations about the study of epistolary practices and reasserts the need to deconstruct the common sense equivalence between space of intimacy and the notion of transparency. It also contributes to the historian’s reflection on the various elements that constitute the discursive situation of the production of missive text.
Keywords: Letter; epistolography; History; Linguistics; Performativity.
Primeira década do século XX. Durante os momentos iniciais do dia 1º de
março de 1908, Amália Góia começou a escrever a Armando Lemos.
Saue route. Indo, nadabu e Qua terto sa asdornsoceve! Fuz a q fuzamte! Ebnedau e baujau e mul vezes. Obnigeco. Não ta amquadem de sis1.
1 Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Amália Góia para Armando Lemos. s/l, 1/mar./1908, 1f, s/env. Adotamos as seguintes abreviaturas: s/l (local não identificado); s/d (data não identificada); e s/env (carta sem envelope). A professora do Departamento de Letras da UFOP Hebe Maria Rola Santos identificou a estrutura da linguagem utilizada por Amália e Armando ao perceber recorrências na inversão do posicionamento de algumas consoantes e vogais (como o s pelo m; o a pelo e; o u pelo i; o r pelo n) e a permanência na disposição de outras letras (como o t e o b). Assim Saue route, que abre a carta de Amália, transformou-se em “Meia noite”. Segue a tradução do texto: “Meia noite. Armando, recebi a
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Três semanas depois, Armando endereçou uma carta para Amália,
escrevendo-lhe do Distrito de Passagem, no município de Mariana, em Minas
Gerais.
Lianuce Sauxe. Desejara que tu estivesses junto a mim para saberes o meu sofrimento, pª de instante em instante relatar-te o que passo. Era meu desejo escrever-te logo que aqui cheguei, mas parece-me que em compensação das pouquissimas horas de prazer que passei contigo augmentarão-se as minhas obrigações. [...] Is epenteco ebnedo [c’egiallam] mebam (grifo nosso)? 1
Os códigos criptográficos criados por Amália e Armando, que permitiram a
formação de palavras como “saue”, “lianuce” ou “ebnedo”, nos aproximam tanto das
diferentes possibilidades de jogar com a linguagem (ao provocar a criação de novos
termos) quanto dos desejos de que as ideias incorporem os acontecimentos e, com eles,
realizem, na escrita, não apenas um efeito de realidade, mas a própria realidade, tragam-
na viva, digam sobre o outro. Nesses códigos misturam-se a potencialidade criativa do uso
da língua e a pretensão de que ela proporcione uma performance objetiva, revele o real.
Mas essa passagem do desejo à realidade, do pensamento à escrita, como indicam
os estudos atuais sobre a autobiografia, se desenvolve dentro de um jogo complexo onde a
relação “[...] não é da ordem do mimético ou da transparência (PESAVENTO, 2004)”, mas,
sim, construída a partir de práticas conscientes ou não de representações, seleções,
montagens e exposições (SÜSSEKIND, 1996; ARTIÈRE, 1998; LYONS, 1998; VENÂNCIO,
2000; SALOMON, 2002; MUZART, 2005;). Nesse sentido, esse artigo apresenta algumas
considerações sobre o estudo da prática epistolar; reafirma a necessidade de se
desconstruir a equivalência, presente no senso comum, entre o espaço de intimidade e a
noção de transparência; e contribui para a reflexão do historiador sobre os diferentes
elementos que compõem a situação discursiva da produção do texto missivista. Para que tanto me encommodava! Fiz o que fizeste! Abracei e beijei mil vezes. Obrigado. Não te esqueças de mim Desejo é que seja mesmo feliz, e [ ] com e bem Deus? (Lima, 2008).” 1 Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Armando Lemos para Amália Góia. Passagem,28/março/1908, 1f, s/env. Nos textos trocados entre Armando e Amália são perceptíveis alguns desvios na estrutura programada e combinada para a escrita das missivas, como a substituição do u pelo s no final da palavra “baujau” [beijos], em geral o u é substituído pelo m. Possivelmente, isso se deve à pressa, desatenção ou a algum forte estado de emoção no ato da grafia, que parece ser o caso da carta de Amália Góia anteriormente citada. Devido a esses desvios não é possível decifrar todas as palavras inscritas em suas cartas. “Lianuce Sauxe” e “Is epenteco ebnedo [c’egiallam] mebam?”, presentes na carta de Armando, podem ser traduzidos como “Querida Meiga” e “Um apertado abraço daqueles, sabes? (Lima, 2008).”
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exemplificar alguns pontos abordados no artigo, utilizarei um conjunto de cartas pessoais
escritas nas duas primeiras décadas do século XX, que envolve parentes e amigos de duas
famílias que viviam no antigo Distrito de São Caetano, município de Mariana, em Minas
Gerais. Entre esses missivistas encontram-se Amália e Armando acima citados. 1
Nas oficinas dos historiadores, os interesses pelos artefatos autobiográficos estão
envolvidos pelas mudanças epistemológicas que inseriram novos problemas (como a
importância da narrativa dentro do discurso histórico), novas correntes de investigação
historiográfica (como o estudo das práticas de escrita e leitura) e novos campos temáticos
(como as pesquisas sobre o cotidiano e a vida privada) (PESAVENTO, 2004; PRIORE, 1997;
MATOS, 2002; CHARTIER, 1988; GOMES, 2004). Essas transformações passaram a
perceber os espaços e os atos que constituem o mundo privado como derivados de
historicidade e produtores de história, portanto, fornecedores de significativos elementos
sobre a produção da esfera íntima e de suas articulações com a vida social. 2
Em meio a esse novo front investigativo, os últimos dois séculos transformaram-se
em faixas temporais privilegiadas, apesar de não exclusivas, para a observação das
complexidades presentes nas construções física e simbólica dos espaços público e privado.
Nesses séculos acentuaram-se: a separação entre os espaços de “produção das condições
materiais de vida, daqueles de reprodução da existência”; a escala industrial de produção
dos objetos e, em especial, dos objetos de identificação, como os espelhos, a fotografia e o
cinema; a necessidade do indivíduo comprovar-se (e colecionar-se) ante aos crescentes
desejos de disciplina e controle da injunção social; a discussão, produção e intervenção de
novos modelos urbanos; os conflitos entre as idéias políticas e jurídicas sobre o lugar do
1 O Arquivo Histórico de Monsenhor Horta encontra-se nas dependências do Instituto de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana. Em 1999 o autor desse artigo encontrava-se entre os membros da equipe responsável pelo início dos trabalhos de higienização e organização desse acervo. Utilizei parte das cartas privadas como base de estudo da minha monografia “São Caetano: cartas íntimas no início do século XX”, elaborada em 2003 na Universidade Federal de Ouro Preto, e da minha dissertação “Práticas missivistas íntimas no início do século XX”, defendida em 2007 na Universidade Federal de Minas Gerais. Duas informações: entre as 103 cartas privadas pertencentes ao arquivo 60 (ou 58,2%) foram produzidas nas duas primeiras décadas do século XX, o que acabou gerando o corte temporal da investigação; nos trechos de cartas apresentados nesse artigo respeitamos a grafia e a estrutura dos textos utilizados pelos seus autores, bem como abreviamos ou substituímos os nomes reais por nomes-fantasia. 2 Alguns trabalhos apresentados no II CIPA - Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica - demonstram a diversidade do assunto, abrangendo áreas de conhecimento como a Educação, História e Psicologia: “Memória e narrativa em Clarice Lispector”, Fani Miranda Tabak (UESB); “Os Arquivos pessoais da cantora e compositora Maysa, a construção de uma (auto)biografia, um mito”, Valentina da Silva Nunes (UFSC); “Entornos urbanos, subjetividades e cidadania juvenil”, Martha Cecilia Herrera, Vladimir Olaya Gualterros e Diego Alejandro Muñoz Gaviaria (UPN – Colômbia); Informações disponíveis no site: http://www.2cipa.uneb.br/. Acesso em 04/09/2006.
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sujeito no meio social; a ampliação da alfabetização; entre outros (PRIORE, 1997;
ARTIÈRES, 1998). Segundo Ângela de Castro Gomes (2004), o estudo das cartas pessoais e
de outros artefatos autobiográficos, produzidos nos últimos dois séculos, nos aproxima
das tentativas de coexistência entre as concepções de “igualdade” e “liberdade” que
perfazem as novas idéias sobre o “sujeito”: De um lado, a necessidade de uma eqüidade moral e política constrói a idéia de indivíduo “abstrato” e sujeito do contrato social, alvo imediato de críticas tanto do pensamento conservador (para o qual há desigualdade), quanto do socialista (para o qual essa igualdade é ficção). De outro, o princípio da liberdade, também fundamental ao referido contrato, guarda a idéia de indivíduo singular, ao mesmo tempo único em relação a todos os demais e múltiplo no que diz respeito a seus papéis sociais e possibilidades de realização pessoal.
O indivíduo que postula uma “identidade para si”, uma imagem social
coerente, é o mesmo que se exprime em “identidades parciais e nem sempre
harmônicas” mediante as circunstâncias e a presença do outro. No rastro dessas
construções e necessidades: A correspondência pessoal, assim como outras formas de escrita de si, expande-se pari passu ao processo de privatização da sociedade ocidental, com a afirmação do valor do indivíduo e a construção de novos códigos de relações sociais de intimidade (GOMES, 2004).
Percepção reforçada por Contardo Calligaris (1998): Ora, se para o sujeito moderno falar de si responde à necessidade cultural imperiosa de reconstruir ao mundo e a si mesmo no silêncio deixado pelo ocaso da sociedade tradicional, a série de fórmulas de seus atos autobiográficos deve nos informar de maneira privilegiada sobre seu devir, sobre os caminhos pelos quais ele constituiu [...]. Nesse sentido, uma história da subjetividade moderna é impensável sem o auxílio dos atos autobiográficos.
Em nosso país, a incipiente epistolografia não parece fruto de um desinteresse
sobre o gênero epistolar, já que o mercado editorial vem alimentando o público
com uma série de obras contendo coletâneas de cartas particulares de escritores,
pintores, políticos e acadêmicos (MIRANDA, 1998; RILKE, 2001; AMARAL, 2001).
Esse descompasso entre o interesse pela leitura de correspondências íntimas e a
produção de análises sobre a prática missivista pessoal pode ser içado no texto de
Zahidé Muzart (disponível em: www.rbleditora.com. Acesso em 10/08/2005):
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Comecei o presente trabalho, pesquisando o que haveria, teoricamente, sobre cartas, correspondência. Descobri que a bibliografia teórica sobre a epistolografia é muito pequena. Deve-se procurar a teoria pelo viés das biografias, autobiografias, diários, memórias.
As discussões pertinentes ao ambiente epistolar, como reitera o excerto
acima, encontram-se excessivamente coladas às teorias construídas para outros
artefatos autobiográficos, como os diários e os livros de memórias. Essa
observação, longe de ser excludente, indica que as pesquisas sobre as missivas
ainda estão produzindo um campo singular e consistente de perguntas e
apreensões. Enquanto diferentes artefatos culturais, os registros relacionados à
dimensão autobiográfica, incluindo as cartas íntimas, apresentam distintos
produtos, estilos, formas de consumo, funções sociais, interesses, finalidades,
assuntos, circunstâncias e estrutura de composição. Com isso, formam um campo
potencial e específico de trabalho para cada tipo documental. Em comum, os
estudos sobre as práticas autobiográficas nos ensinam a pisar de uma forma mais
cautelosa e crítica nos espaços íntimos dos atores sociais, ratificam a
desconstrução do autor - enquanto entidade coerente e imanente -, do leitor -
enquanto ser passivo- e, como desfecho, fragilizam a dimensão literal do texto
(CORBIN, 1991; CALLIGARIS, 1998, ARTIÈRES, 1998; SIMILI, (disponível em
www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/Rev_a11.htm. Acesso em
20/12/2005).
No Brasil, o crescimento e a aproximação entre as pesquisas realizadas
sobre os missivistas de diferentes épocas poderão: ampliar o nosso conhecimento
sobre os usos, as finalidades e as maneiras de construir esse tipo de escrita privada
(rede de sociabilidade, padrões de correspondências, trânsito de valorações,
pactos epistolares, observação de rituais, estratégias, formas de tratamentos);
aumentar a nossa percepção sobre os trâmites (oficiais ou não) criados para a
circulação das cartas e a diversificada produção de souvenires para atender os
gostos dos consumidores e o mercado epistolar; e contribuir para uma percepção
mais apurada sobre as ressignificações do íntimo e as inscrições do eu (PRIORE,
1997; FURTADO, 1999).
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No entanto é nítido que um impulso maior a esse nicho de investigação
esbarra em dois pontos. Primeiro: o cultivo privado e sigiloso que envolve esse tipo
de artefato cultural. Cartas avulsas ou acervos contendo um número expressivo de
missivas pertencentes a uma mesma pessoa (ou a uma mesma família) tendem a
ser guardados, colecionados ou destruídos conforme os desejos dos seus
proprietários. Raramente são doados. Segundo: a cobertura legal em torno desse
tipo de documentação - efeito e preço dos embates realizados nos últimos séculos
sobre as tentativas de demarcação das fronteiras entre as esferas pública e
privada. No Brasil, esse tipo de acervo é juridicamente preservado pela
Constituição, Código Penal e Direito Autoral. Segundo Eliane Vasconcelos
(Disponível em: www.rbleditora.com. Acesso:10/08/2005): Do ponto de vista jurídico, o signatário detém o direito autoral da carta: o destinatário possui o direito material, ou seja, ele é dono do suporte, normalmente o papel, onde a carta foi escrita, e os dois são protegidos pelo direito à intimidade assim também como aqueles que são mencionados no texto em questão. O arquivo (público) apenas guarda a documentação. Por esta razão ele não pode autorizar a publicação de seu material, no que diz respeito aos dois direitos mencionados: o autoral e o da intimidade.
O que requer do pesquisador a necessidade de manter-se informado sobre a
legislação vigente e os “procedimentos que deve cumprir para ter seu trabalho
publicado sem problemas legais”. Aos poucos, o interesse pelas análises das
práticas missivistas íntimas contribui para a (re)oxigenação da história social da
cultura, a auxilia em suas investigações sobre a construção do privado e das
tessituras do self com o social. Como os historiadores ainda estão se habituando ao
trato com esse tipo de fonte, o diálogo com outras áreas do conhecimento torna-se
necessário, fronteiriço e enriquecedor. Envolvimento que permite ao historiador
“vôos por outros territórios”, armando-o “de novos conceitos, armazenando
também novos conteúdos, de acordo com a serventia que terão para resolver as
suas perguntas” (PESAVENTO, 2004). Esse envolvimento não deve perder de vista
que a sua questão é elaborada a partir do campo da História.
Em relação à minha ótica, gostaria de evidenciar a importância de dois
conceitos que ajudaram a minimizar a minha insegurança inicial ante ao trabalho
com a prática epistolar privada: as noções de “performatividade” e de “expectativa
de significação”. O primeiro conceito, identifiquei nos estudos de Roger Chartier
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sobre os protocolos de leitura (dispositivos textuais inseridos no processo de
produção dos livros). O segundo, identifiquei no trabalho de Patrick Charaudeau
sobre a “encenação do ato de linguagem”, onde o autor realça as finalidades, as
identidades dos parceiros e os meios utilizados para produzir a informação e a
interação entre os sujeitos em uma determinada situação social. Ambos reforçam o
questionamento das ideias reproduzidas no senso comum sobre o ar espontâneo e
imanente dos textos fabricados nos espaços íntimos. Ao longo do texto, à medida
que apresentar os conceitos, os adaptarei ao meu campo de estudo: as práticas
missivistas.
O peso do Outro.
Tomando como referência as obras escritas ou organizadas por Roger
Chartier, como “A história Cultural: entre práticas e representações”, “Práticas da
Leitura” e “Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação”, é
possível identificar alguns avanços relacionados à observação dos diferentes
elementos intra e extratextuais que envolvem a produção dos textos, entre eles, a
importância dos protocolos de leitura (CHARTIER, 1988; 2009; 2003).1
Pensando a partir da realidade da produção dos livros, Chartier define os
protocolos de leitura como dispositivos textuais adicionados pelo autor e pelas
intervenções gráficas realizadas durante o processo de revisão, edição e
impressão. Como o objetivo desses protocolos é direcionar a interpretação do
leitor, eles acabam evidenciando uma “representação que [o autor e o editor] têm
das competências de leitura” daqueles a quem destinam a obra; criam, portanto,
uma certa expectativa de performance (interpretar conforme se sugere) (Chartier,
1 Segundo Márcia Abreu, na corrente historiográfica, atenta à análise das práticas de escrita e leitura, propõe-se “[...] uma história da leitura que seja uma história dos diferentes modos de apropriação do escrito no tempo e no espaço – seja ele físico ou social –tornando-se por referência a ideia de que a leitura é uma prática criativa e inventiva (o sentido desejado pelo autor não se inscreve de maneira direta no leitor) resultante do encontro das maneiras de ler e dos protocolos de leitura inscritos no texto (grifo nosso) (apud. Chartier, 2003).”
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2003).1 Os protocolos de leitura acrescentados pelo autor podem ser identificados
no título, prefácio, dedicatória ou mensagens direcionadas aos leitores ao longo do
livro. Quanto aos editores, as intervenções dos protocolos de leitura podem ser
encontradas no aumento dos parágrafos, na abreviação ou supressão de certas
passagens e na modernização da ortografia, “o que parece indicar que, pelo menos
em relação a tais leitores, a articulação dos conteúdos nem sempre tem o primeiro
papel no interesse prático da leitura (PÉCORA, 2009).” Nesse sentido, os
protocolos transformam-se em interessantes “pistas” sobre as interpretações que
o autor e o editor elaboram sobre os seus leitores.
O prólogo da quarta edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, escrito
por Machado de Assis, é um exemplo desse tipo de dispositivo textual: O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que êle chama ‘rabugens de pessimismo.’ Há na alma dêste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavôres de egual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo (ASSIS, 1970).
Machado, antes que o leitor entre em contato com o texto do romance, tenta
prepará-lo, o induz a identificar o sentimento pessimista que encontra-se
subjacente aos capítulos, inclusive nas situações irônicas narradas no livro.
Comparando esse prólogo ao texto intitulado “Ao leitor”, também presente nas
primeiras páginas dessa obra, percebe-se que Brás Cubas (o “defunto autor”, como
se define o produtor imaginário da obra), alfineta essa estratégia. Reconhecendo o
teor sugestivo (e pedagógico) das informações dispostas nos prefácios, ele diz: “O
melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro
e truncado (ASSIS, 1970).” Coisas machadianas: o autor defunto (Brás Cubas)
critica Machado (o autor real).
No campo das cartas íntimas, nicho principal desse artigo, é possível
identificar a presença dos protocolos de leitura em textos intercambiados, por
exemplo, entre pares (dois escritores que dialogam sobre um livro) ou entre
1 A máxima “autores escrevem textos, editores produzem livros”, comum entre os pesquisadores das práticas de escrita e leitura, nos serve para lembrar que os protocolos criados pelo autor antecedem aos do editor. Quando estão separados por espaços ou tempos distintos (como no caso dos livros da Antiguidade Clássica) as intervenções protocolares encontram um campo maior de liberdade de ação.
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negociantes (um pintor e um comprador de sua obra).1 Nas correspondências dos
sujeitos qualificados como “comuns” esses protocolos podem ser identificados, por
exemplo, nas referências a uma certa maneira de se ler trechos de uma
correspondência enviada anteriormente, como nesse fragmento disposto abaixo
onde a intenção do autor é reafirmar o seu comportamento de obediência aos pais. Peço-vos pois scientificar-me se recebeo [a última carta] nem só que é (sic) a maior tranqüilidade que tenho [é] em receber noticias nossas, como tambem assim saber se o meo Papae conforma-se com os meos diseres, e nada resolvo sem a opinião vossa e da mamae, pois não quero faser aquillo que vos não se conformar, quero sempre entrar em acordo com os meos Paes apesar de estar pelos lados estranhos [...] (grifo nosso).2
O protocolo de leitura, seja no livro ou em uma carta, pode ser definido
como um dispositivo posicionado dentro de uma certa estratégia discursiva; ao
expressar um desejo de performatividade a sua presença ajuda a desconstruir a
aura espontânea e “essencialista” que ronda os textos fabricados nos espaços
íntimos, já que evidencia o cálculo. Como afirma Michel Perrot (apud. SALOMON,
2002): As correspondências familiares e a literatura ‘pessoal’ (diários íntimos, autobiografias, memórias), embora sejam testemunhos insubstituíveis, nem por isso constituem os documentos ‘verdadeiros’ do privado [...]. Não há nada menos espontâneo do que uma carta, nada menos transparente do que uma autobiografia, feita para ocultar tanto quanto para revelar (grifo nosso). Mas essas sutis manipulações do esconder/mostrar nos levam, pelo menos, à entrada da fortaleza.
Acredito que para compreender o papel das estratégias e das “sutis
manipulações do esconder/mostrar” num texto missivista é preciso perceber a
correspondência como um produto gerado dentro de uma “encenação do ato de
linguagem”.3 Para Patrick Charaudeau (2001), o ato de linguagem (oral ou escrito)
1 Ver o artigo “Ler um quadro – uma carta de Poussin em 1639”, escrito por Louis Marin, onde Poussin (o pintor) envia, além de um quadro, uma carta a Chantelou (que lhe encomendou uma tela) explicando a cena disposta na pintura (ângulos, personagens e significados) (Marin, 2009). A carta, ao servir como um guia de informações sobre a imagem, busca transmitir ao comprador uma forma de olhar e interpretar a obra. 2 Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Demóstenes Felinto para Álvaro M. Felinto. Belo Horizonte, 20/nov./1911, 2f, com envelope. 3 A lingüística, desde a década de 1960, vem tentando responder a questões alimentadas pelos interesses de outras áreas do conhecimento, como a antropologia, a sociologia e a psicologia social,
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é realizado por sujeitos “que são testemunhas, mais ou menos conscientes, das
práticas sociais e das representações imaginárias da comunidade a qual pertencem
[...].” Ele pode envolver dois ou mais sujeitos como, por exemplo, no intercâmbio
de uma carta (remetente e destinatário) ou numa reunião de vários operários. A
encenação do ato de linguagem (o termo tem um sentido teatral) nos permite
pensar os componentes, as estratégias e as “expectativas de significação”
(interpretar conforme se sugere) criados durante a produção de um texto oral ou
escrito. Essa encenação, segundo Charaudeau, estrutura-se a partir de dois
ambientes interconectados: o “espaço do dizer” e o “espaço do fazer social”.
O espaço do dizer é formado pela fala (oral ou escrita), onde são lançadas as
expectativas sobre a possibilidade de realização de algo (de um tipo de leitura) e
de convencimento do outro. No entanto, o espaço do dizer é apenas parte de um
perímetro maior, o do fazer social. Num grupo de correspondências trocadas entre
dois parentes, por exemplo, o que um diz ao outro deve ser visto somente como
parte da “encenação do ato de linguagem”, já que as interpretações que ambos
elaboram não se encontram necessariamente representadas nas falas: em geral
elas são recalcadas (consciente ou inconscientemente) pelos cálculos e escolhas
que acabam filtrando os seus textos (o que dizer?, como dizer?, como ele vai
reagir?). Para Charaudeau, em toda encenação do ato de linguagem existe uma
“relação contratual” formada basicamente por três componentes:
o psicossocial, “concebido em termos dos estatutos que os parceiros
são suscetíveis de reconhecer um no outro: idade, sexo, categoria sócio-
profissional, posição hierárquica, relação de parentesco etc”;
o comunicacional, que configura o “quadro físico da situação
interacional: os parceiros estão presentes [em um mesmo ambiente]? [...] Que
canal – oral ou gráfico – é por eles utilizado? [...]”;
o intencional, conhecimento a priori que cada um dos parceiros
possui (ou constrói para si mesmo) sobre o outro, de forma imaginária, fazendo
apelo a saberes supostamente partilhados [...]”.
sobre as condições de produção, a dimensão psicossocial e as expectativas produzidas no ato de linguagem. A partir desse período, a lingüística passou a ser estimulada (pressionada) a levar em consideração não apenas a “frase”, mas o texto e o contexto em suas análises.
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A interação entre os sujeitos pressupõe duas questões contidas no
componente intencional acima definido: “o que está sendo colocado em questão,
com qual intenção de informação?” e “De que maneira isso está sendo veiculado,
ou, qual será a intenção estratégica de manipulação (de convencimento)?
(CHARAUDEAU, 2001)”.
No campo das cartas, a “relação contratual” nos permite pensar, por
exemplo, as contradições apresentadas nos textos de um determinado missivista.
Como um mesmo sujeito contém diferentes perfis identitários (ele pode ser ao
mesmo tempo pai, comerciante, político, filho, amante, maçon), o peso do
destinatário (do interlocutor) pode levá-lo a se expressar de maneira diferente
conforme a circunstância (algo que é afirmado a um amigo, pode ser desmentido a
um parente, por exemplo). Os trechos dispostos abaixo, extraídos de cartas
trocadas entre dois amigos, nos parece impensáveis nas correspondências que um
ou outro poderia por ventura encaminhar aos seus respectivos pais. Mudamos, agora vou sauber dos amigos. Como vai o nosso B. já cortou o bruto penachu que tem no cu e o J. o que tem feito, elle o nosso vizinho do Phillograma vai bem nao e? Já soube que são entireçado na firma Taqual, [...].1
Amigo José Lino, passo-te essas epístolas linhas para sabêr as tuas boas noticias, que as minhas até me acanho em dar-te, pôrque sou um desordeiro rancador de cabaço como dizem estes filhos das puta,[...].2
Como os elementos que constroem as relações contratuais modificam-se
conforme o interlocutor (estou falando com o meu amigo ou com a minha mãe?), o
desafio colocado para o remetente (pensando o campo das cartas) é o de manter
uma linha coerente de princípios de pensamento. Quanto mais contraditório, mais
as “expectativas de significação” sobre um determinado assunto são distintas já
que pressupõem o uso de diferentes cálculos e estratégias.
Charaudeau utiliza a imagem do “jogo” para exemplificar o “campo
situacional da conversação”, onde a performance desejada almeja o convencimento
(interpretar como se sugere). A carta, por ser um canal de comunicação que
implica uma distância física entre os sujeitos envolvidos e por tentar representar
1 AHMH. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. José Lino para Lindolfo Lemos, Passagem de Mariana, 02/jun/1916, 2f, com envelope. 2 AHMH. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Lindolfo Lemos para José Lino, São Caetano, 25/fev/1917, 1f, rascunho.
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um pequeno encontro (uma breve supressão dessa distância), é um exemplo
singular da vontade de persuasão presente no jogo discursivo. Outros
componentes nos ajudam a pensar a situação discursiva da produção dos textos
missivistas e, como conseqüência, nos aproximam das estratégias discursivas e das
possíveis “expectativas de significação”: o tempo (a época em que o texto foi
escrito); os espaços (de onde se escreve?, para onde se escreve?); os suportes (que
tipo de envelope e papel de carta foram escolhidos para a interação? Comuns?
Especiais? Contém marcas, como o nome do autor em alto-relevo ou impresso, que
permitem observar a vontade de diferenciação e individuação?); os estatutos que
os sujeitos projetam um sobre o outro (tratam-se de parentes, amigos,
profissionais, conhecidos, adversários, amantes?); os rituais a serem cumpridos (os
acordos tácitos, como o compromisso de escrever dentro de uma determinada
freqüência); o(s) assunto(s) abordado(s) (o remetente aborda um ou vários
temas); as formas de tratamento estabelecidas (formais ou informais); o trâmite
(foi transportada através do meio oficial ou de um portador informal); e o próprio
gênero textual (composto como uma espécie de pequeno encontro, onde temos
respectivamente as áreas de saudações, assunto(s) e despedida). A observação
desses componentes (é possível que o leitor desse artigo elenque outros) é
fundamental para que o historiador faça uma reflexão sobre as “regras” que
permitem aparecer determinados enunciados (e não outros) no texto de uma carta
(o que pode ser dito?, o que deve ser evitado?, quais são os limites?).
A construção dessas regras - que buscam direcionar o olhar do destinatário
- demonstra que a performatividade “não é um fenômeno da língua, mas, sim, um
fenômeno que diz respeito à encenação do ato de linguagem” (Charaudeau, 2001).
A performatividade depende da situação comunicacional e a sua apreensão pode
ser ilusória se for tomado como referência apenas o texto oral ou escrito. Enfim, ao
aproximarmos dos espaços de intimidade de um ator social, em vez de entrarmos
num caminho que nos guia à sua “essência” encontramos um outro espaço
complexo e de equilíbrio instável: o da construção de si.
Finalizando, entre as expectativas de recepção e as recepções dos leitores
existe uma distinção, já que a significação de um texto varia conforme as
apropriações, as competências de leitura e as convenções disseminadas no texto
(CHARTIER, 2003). Por mais que o autor se esforce, o texto (tirei o “oral ou escrito”
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pq isso já ta claro, foi dito anteriormente) não reina sobre as interpretações, ele
apenas inicia um ritual de ressignificações.
Considerações finais.
Nesse artigo enfatizamos que o contraponto entre o interesse pela leitura de
documentos autobiográficos, como as cartas íntimas, e a produção de pesquisas
sobre a prática missivista demonstra o estágio promissor, mas ainda incipiente da
epistolografia em nosso país. Essa é a realidade inicial que se abre aos
investigadores que tentam problematizar a partir de tais fontes. Somam-se às
dificuldades de contar com um pequeno arcabouço teórico, os limites técnicos
referentes a observação das situações e condições de produção das cartas:
primeiro, a impossibilidade de equivalência simétrica entre linguagem e realidade;
segundo, o fato do texto oral ou escrito não apresentar todos os elementos que
compõem o conjunto da encenação do ato de linguagem, ele é apenas parte.
Portanto, longe de nos encaminhar aos espaços de revelação do ser, como
pensavam os clássicos ou os românticos, os registros autobiográficos nos
aproximam da percepção de que o self se constrói a partir de processos de seleção,
montagem e exposição, além da leitura feita pelo outro. A carta íntima, não
esqueçamos, é também um produto!
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223
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A TEMPORALIDADE NA CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Prof. Dr. Dagmar Manieri Universidade Federal do Tocantins (UFT)
E-mail: [email protected]
RESUMO
O objetivo desse artigo é estudar as alterações da temporalidade na era contemporânea. São transformações da razão histórica motivadas pela pós-modernidade. Isto significa o aparecimento de uma nova concepção temporal que reatualiza as historicidades dos movimentos sociais.
Palavras-Chave: Pós-moderno, história, dialética, razão, historicidade.
ABSTRACT
This article intends to study the changes of the temporality in the contemporary epoch. They are changes of the historic reason motivated by post-modernity. That means the appearing of a new temporal conception that updates again the historicities of the social movements.
Keywords: Post-modern, history, dialetic, reason, historicity.
Podemos iniciar nossa argumentação amparando-nos numa obra que
representa bem o que significou a história para o século XIX: A razão na história, de
Hegel. Com ela já temos uma idéia da presença do historicismo no pensamento
desse século. Mesmo quando identificamos algumas correntes contrárias ao
historicismo hegeliano – como a Escola Histórica Alemã, que se colocava em
oposição à herança hegeliana -, podemos afirmar que só após a Segunda Guerra
Mundial o historicismo dá lugar a outras formas de abordagens históricas.
Nessa obra de Hegel, o devir e o universal acabam por impregnar toda uma
visão de mundo. “O que o homem é realmente, deve sê-lo idealmente”; “o homem
se determina de acordo com o universal” - eis o viés que Hegel vê o homem e sua
determinação. O Pensamento como forma e expressão do historicismo dá uma
segurança para o homem e a própria filosofia se elege como guardiã desses
momentos que marcam o contexto do homem. Se ocorre o esfacelamento de
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determinado “espírito particular (a cultura de um povo)”, por outro lado algo
permanece porque o “espírito particular” é uma marcha geral do Espírito
Universal. O particular sempre está amarrado a um Universal, em Hegel.
Mas o principal desafio de Hegel é dar conta da “harmonia dilacerada da
vida moderna”. Como propõe a análise de Habermas, Hegel vê os tempos
modernos através de uma estrutura de auto-relação - a “subjetividade”. Esta última
é um sinal de que “a consciência do tempo se destacou da totalidade e o espírito se
alienou de seu si” (HABERMAS, 2000, p. 31). Assim, em Hegel a razão surge como
um poder unificador que deve superar este estado de cisão efetuado pelo princípio
da subjetividade.
Essa ameaça tão presente em Hegel agora está de volta. Provavelmente ela
nunca tenha se ausentado. Essa modernidade, hoje, nos leva a um campo onde as
definições não conseguem mais abarcar tudo aquilo que ocorre. “Esgotamento das
energias utópicas” (na expressão de Habermas) que obriga a história a se refazer,
quando não temos a própria racionalidade histórica posta em questão.
O retorno dessa ameaça da modernidade está presente em diversos
pensadores. Jean-François Lyotard denomina de “idade pós-moderna” o período
que sucede aos anos 1950. Mas há uma afirmação de Gianni Vattimo que parece
fundamental para os objetivos desse artigo. Em A sociedade transparente, ele
comenta que a modernidade se encerra quando não é mais possível falarmos de
uma história como algo unitário, já que essa “antiga” visão da história implica na
existência de um centro onde se reúnem e ordenam os acontecimentos (VATTIMO,
1990, pp. 74, 75). Se tomarmos essa afirmação como correta, então podemos
afirmar que houve um apagar da razão histórica e uma fragmentação das
historicidades sem que uma nova razão histórica pudesse lhe dar conta. É nessa
linha de raciocínio que pretendemos desenvolver nossa argumentação.
RAZÃO MODERNA E HISTÓRIA
Na leitura hegelo-marxista de Kant, este último é inserido como um
primeiro momento do pensamento dialético. Tanto Marcuse quanto Lukács
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concebem em Hegel o momento de nascimento da dialética moderna. Mas Kant
surge nessa perspectiva como uma espécie de “pano-de-fundo” que dá legitimidade
ao nascimento do hegelianismo de esquerda. Então, temos um Kant que se situa na
origem dessa forma de evolução do pensamento dialético, coroado, logo depois,
com o materialismo dialético de Marx.
Em Lukács, Kant é concebido em sintonia com o momento histórico do
século XVIII. Como é bem típico em Lukács, o fundamento último para se entender
um pensador está nas contradições históricas de sua época. Por isso Lukács vê em
Kant a expressão da mais intensa crise da filosofia de fins do século XVIII. Em Kant
já temos um despontar do pensamento dialético; mas isto é só um sinal, já que o
pensamento metafísico ainda persiste como instância determinante para a crítica
filosófica. A contradição (em Kant) torna-se um problema limite e que demarca a
fronteira irrealizável de nosso pensamento.
A idéia (revolucionária para a época) de evolução não atinge ainda a
filosofia kantiana; há em seu sistema uma preponderância da “estática
classificatória da biologia”: [...] a evolução é para Kant, de forma conceptual, inexistente. Não há mais que classificação ou especificação de acordo com o pensamento: ascende-se do particular ao geral ou se dirige do geral para o particular. Isto significa que a indução e a dedução, que até então se apresentavam sem qualquer conexão, e até como tendências filosóficas rigidamente separadas (pensemos em Bacon por um lado e Spinoza, por outro), aparecem como métodos coordenados (LUKÁCS, 1965, pp. 22, 23).
Assim, Lukács já percebe em Kant um despontar da dialética, bem como
uma oscilação entre materialismo e idealismo. O mundo objetivo - com sua
formação e ordem - é negado por Kant; a ordem nas coisas é conseqüência de
categorias do sujeito transcendental. Para Lukács, a razão que Kant proclama se
aproxima do agnosticismo: “Nosso uso da razão não pode consistir mais que pôr
um limite ao entendimento” (Ibid., p. 26).
Há, então, nesse agnosticismo de Kant uma bancarrota da ciência. Mesmo
que no filósofo alemão possamos encontrar um crescente aperfeiçoamento do
conhecimento dos fenômenos, ainda assim persiste a incognoscidade no princípio
das coisas. Há em Kant um agravamento do subjetivismo, bem como do
agnosticismo: “O agnosticismo domina todo o âmbito da ciência, todos os seus
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problemas concretos e todas as suas soluções concretas; o método inteiro se
resume num claro subjetivismo (Ibid., p. 29).
Assim, o que em Kant é objeto de crítica por parte de Lukács, será nos
pensadores da condição pós-moderna um elemento positivo. Essa “liberdade” meio
solta (sem definição) referente às coisas singulares também é criticada por Lukács:
“Por isso, toda diferenciação, toda especificação da realidade; em resumo, todo o
particular e, ainda mais, todo o singular, tem necessariamente que parecer casual
(Ibid., p. 30). Eis o motivo de Kant estar no início do pensamento hegelo-marxista,
bem como da possibilidade de sua saída. Entre os hegelo-marxistas e os
pensadores da pós-modernidade, há uma inversão de valores ao se tratar do
pensamento kantiano. O que neste último era reprovável, agora passa a ser um
momento positivo.
Nesse percurso que vai do dualismo kantiano à dialética marxista, a lógica
hegeliana representa um passo importante. Do momento subjetivo da filosofia
kantiana passa-se, no exemplo de Hegel, para o idealismo objetivo. Isto quer dizer
que a própria razão adquire um sentido (filosófico) diverso daquele empregado
por Kant. Em Hegel, a própria história é concebida como razão; não há uma
particularização desta (mesmo como um instante do universal), mas uma
apreensão da realidade histórica como um critério da razão. A Revolução Francesa
mostrou que “o homem se dispôs a organizar a realidade de acordo com as
exigências do seu pensamento racional livre, em lugar de simplesmente se
acomodar à ordem existente e aos valores dominantes” (MARCUSE, 1969, pp. 17,
18). O mundo, em Hegel, tornar-se uma ordem de razão; entre este mundo e o
próprio homem a diferença começava a desaparecer, pois o homem veio a confiar
em seu espírito e submeter a realidade aos critérios da razão. A realidade histórica
adquiria novo status epistemológico porque agora está submetida ao “pensamento
racional e livre”.
E foi a Revolução Francesa, segundo Hegel, que proclamou o poder
definitivo da razão sobre a realidade. Mas de forma diversa do Iluminismo francês
- que considerava a razão como uma força histórica e desejava que ela triunfasse
sobre a irracionalidade social - Hegel crê que a razão não pode governar a
realidade “a não ser que a realidade se tenha tornado racional em si mesma” (Ibid.,
p. 19). Entre o pensamento (racional) e a realidade histórica ocorre um conflito. O
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primeiro tem uma ação destrutiva – que implica na atividade autoconsciente do
homem – e que tende a elevar a forma social para um “universal”. Não há
progresso histórico sem antes um progresso do pensamento. O conceito das coisas
(que descobre o pensamento) leva o homem a ultrapassar o valor aparente dessas
mesmas coisas. Nesse horizonte, “as condições vigentes surgem como
particularidades limitadas que não esgotam as potencialidades das coisas e dos
homens” (Ibid., p. 219).
Há progresso, então, nessa filosofia da história de Hegel. É um progresso em
direção à autoconsciência da liberdade. A transformação histórica equivale a um
progresso para algo mais perfeito. Vê-se nessa interpretação a existência de uma
“potencialidade lutando por realizar”. Para Lukács, em Hegel há uma
sobrevalorização do papel do pensamento em detrimento do “ser social”. Isto
equivale, obviamente, a um elemento de “defesa histórica” da revolução burguesa.
Lukács identifica um Hegel idealista, deformador dos fatos. Mas ao mesmo tempo,
existe um Hegel progressista que em sua dialética do universal/particular, dá um
salto importante se comparado aos seus predecessores: “(...) as idéias básicas
dessa dialética não são meros esquemas formalistas, senão sérios intentos de
apreender os momentos reais da evolução histórica (LUKÁCS, 1965, p. 56). Ainda
segundo Lukács, quando Hegel permanece fiel ao método dialético é o particular
que luta até o final com o particular; ele concebe a história como real e feita
exclusivamente pelos homens. Mas o conflito de interesses nos homens surge
mediado por uma universalidade que se faz “repentinamente transcendente, se
mistifica idealísticamente, aparece em um além das lutas humanas, do processo
fático histórico (Ibid., p. 58). A Idéia universal se põe a salvo das lutas e
contradições da vida social. É a chamada “astúcia da razão” que utiliza a
particularidade (que implica em “vida infeliz”, “trabalho árduo”) individual para
realizar seus desígnios. A “verdade” e a “liberdade” são sustentadas pelo fracasso
do homem.
O sujeito da história, assim, está no espírito do mundo (weltgeist). Ele não é
uma entidade metafísica, mas se materializa no Estado – realiza a liberdade no
Estado: “Ele não existe separado destas realidades e atua por meio destes agentes
e destas funções. A lei da história, que é representada pelo espírito do mundo, atua,
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portanto, por trás e acima das cabeças dos indivíduos, sob a forma de um poder
anônimo irresistível” (MARCUSE, 1969, pp. 212, 213).
É, portanto, essa idealização da razão moderna – subjetiva em Kant e
objetiva em Hegel – que Marx critica. A totalidade em Hegel é diversa da totalidade
em Marx. No primeiro, a totalidade era uma “totalidade da razão”, um sistema
ontológico fechado que se identificava com o sistema racional da história. Em
Hegel, a história se dá sobre um sistema metafísico do ser. Marx elimina essa
condição metafísica e coloca a negatividade dialética na realidade e a torna uma
condição histórica. A negatividade em Marx está nas relações de classe. O método
dialético se transforma no próprio método histórico. Além do mais, a crítica
marxista (especialmente a de Lukács e Marcuse) vê na dialética hegeliana avanços
consideráveis, mas lamenta que a historicidade dessa dialética só compreenda um
movimento (histórico) que vai do passado ao presente. Marcuse identifica de
forma precisa essa face conservadora do hegelianismo; afirma que sua “filosofia da
história” termina na sociedade burguesa e que os períodos da história “aparecem
como estágios necessários na realização da forma de liberdade daquela classe (a
burguesia)” (Ibid., p. 209). Assim, a dialética hegeliana não está fundamentada a
ponto de transcender a sociedade capitalista. Suas idéias filosóficas sofrem uma
espécie de traição na medida em que sua doutrina política entrega a sociedade à
natureza, a liberdade à necessidade e a razão ao capricho.
Com Marx, o próprio idealismo que deformava os problemas sociais cai por
terra. A universalidade de Marx representa uma abstração derivada da realidade
mesma; ela só se converte em pensamento correto quando a ciência reproduz de
forma adequada a evolução viva da realidade em seu movimento. A dialética
histórica de Marx mostra que a negatividade da realidade é uma condição
histórica; ela (a negatividade) é uma condição social associada a uma forma
histórica particular de sociedade. As relações de classe correspondem a essa
negatividade; são elas que representam as contradições desta dialética (concreta).
História e dialética não se separam – o método dialético torna-se o método
histórico. Portanto, como afirma Marcuse, a dialética marxista concebe o fato
através de sua superação: “Um dado estado de coisas é negativo e só pode ser
tornado positivo pela libertação das possibilidades a ele inerentes” (Ibid., p. 285).
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A verdade da história só é percebida pelo “novo estado” que não surge
automaticamente, mas é fruto da “ação autônoma dos homens”. A verdade assume
uma forma transcendente: de uma realidade histórica para outro estágio, também
histórica. É uma transcendência histórica, portanto.
Se Marx concebe o momento atual como uma pré-história representada pela
sociedade de classes, então o transcendente corresponde a uma nova estrutura
social onde o homem tornar-se-ia um “sujeito consciente do seu desenvolvimento”.
No estágio atual da sociedade de classes, o homem é esmagado por forças
econômicas que configuram “contradições inerentes” a esta mesma sociedade. Na
sociedade de classes encontramos a necessidade; daí as transformações operarem
com base num fundo correspondente às contradições internas. A passagem do
capitalismo para o comunismo só é necessária se responder à tarefa do pleno
desenvolvimento do indivíduo. Essa nova história equivale à “realização da
liberdade e da felicidade” dos indivíduos, onde a sociedade livre e autoconsciente
deixa de ser uma “entidade objetiva, independente”.
A CRISE DA RAZÃO HISTÓRICA
Para efeito de nossa hipótese, vamos partir de uma afirmação de Maurice
Merleau-Ponty que encontramos n’As aventuras da dialética (cuja primeira edição
é de 1955). Ao se referir à idéia de revolução, afirma: “Esse marxismo que continua
verdadeiro faça o que fizer, que prescinde de provas e de verificações não era a
filosofia da história, era Kant disfarçado e foi, enfim, Kant que encontramos no
conceito de revolução como ação absoluta” (2006, p. 306). Para Merleau-Ponty, o
problema real está na dialética, pois só ela pode gerar uma forma de
transcendência que se possa designar de verdadeiramente revolucionária. Na
dialética ocorre esse possível dos “relacionamentos em dois sentidos”, de
“verdades contrárias e inseparáveis”, de superações e uma gênese perpétua, de
uma pluralidade de planos ou de ordens. Nesse espaço de trocas e inserções
recíprocas há a possibilidade da ocorrência da dialética. Assim como o Sartre da
Questão de método, As aventuras da dialética procura pensar a derrocada do
comunismo (real) e reascender a possibilidade de uma retomada histórica na
perspectiva da dialética.
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A dialética, ainda na concepção de Merleau-Ponty, oferece a “coesão global,
primordial, de um campo de experiência em que cada elemento abre para os
outros. Pensa a si mesma sempre como expressão ou verdade de uma experiência
(...)” (Ibid., p. 268). Assim, o todo não é constituído pelo pensamento dialético; é
este que está situado naquele. Nessa concepção, o próprio conceito de revolução
adquire em Merleau-Ponty uma configuração inédita, nova. É preciso enxergar “a
história que aconteceu” - Merleau-Ponty refere-se à história da Revolução Francesa
– “o que os outros inventaram fazer na conjuntura, inspirados no espírito
revolucionário, mas também levando em conta o “reflexo” e, portanto, com seus
preconceitos, tiques, manias e também, eventualmente, seu lado “partidários da
ordem” (Ibid., p. 282). Então, se a história é maturação, desenvolvimento objetivo,
é Robespierre quem tem razão contra as possíveis soluções radicais.
A reflexão de Merleau-Ponty nos leva a entender a história de uma forma
menos absoluta, sendo que a própria revolução tem agora, de forma quase
endógena, uma inércia. A revolução nunca desvendará a história, nunca aparecerá
de forma clara. Merleau-Ponty é precavido em suas conclusões; ou melhor, essas
conclusões não existem. Ele sonda a história e o aparecimento das revoluções com
a experiência de suas “derrotas” ao lado. A filosofia da história não se arroga mais a
fornecer um modelo evolutivo das transformações sociais, mas ao mesmo tempo
não abandona os esforços em compreender a história. É nesse meio-termo que se
posiciona Merleau-Ponty. É a dialética que lhe fornece esse ponto de apoio.
Embora suas análises se situem numa fase anterior ao aparecimento da condição
pós-moderna, ele já vislumbra essa possibilidade. Deseja realizar uma revisão do
pensamento revolucionário após a crise do comunismo. Em relação à Revolução
Francesa, houve um aborto, um retrocesso; houve também um retrocesso na
Revolução Bolchevique. Esse fracasso da revolução está na própria revolução. Não
há uma classe (ou grupo) que poria o carro revolucionário em sua trajetória ideal:
“A revolução e seu fracasso comporiam um único todo” (Ibid., p. 288). Então, os
acontecimentos históricos mostraram que havia uma idealização na concepção da
revolução, bem como na filosofia da história.
Portanto, nas análises de Merleau-Ponty há uma negação do
desenvolvimento objetivo da história. Entre o passado e o presente surgem
ocorrências que a filosofia da história não dá mais conta: “(...) vínculos vagos,
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contaminações, identificações que cruzam as relações de filiação dadas ou
voluntárias, uma espécie de apagamento ou de amortecimento do passado real”
(Ibid., p. 289). Merleau-Ponty se aproxima do paradoxo nietzschiano: há progresso
com desaceleração e perda. O avanço histórico é, também, estagnação da história.
Deixa-se de aparecer uma particularidade das várias revoluções – “toda revolução
é a primeira”, afirma ele. Há, isto é verdade, um mínimo de justiça exigível que
aumenta. Mas a grande revolução que recria a história é sem fim e “os progressos
históricos não podem ser somados como os degraus de uma escada” (Ibid., p. 290).
O que transparece dessa análise de Merleau-Ponty é o poder (ou coragem)
de encarar a história como “ambigüidade”, como algo relativo e entender que nesta
mesma história, “vitória e fracasso formem um único todo”. Então, há uma verdade
das revoluções que não concorda com a imagem (ou saber) que elas fazem de si.
Essa mesma inquietação de Merleau-Ponty e que se traduz em um desejo de
representar uma nova temporalidade à luz do “fracasso” revolucionário, encontra-
se também em Cornelius Castoriadis. Neste, já presenciamos a intenção de pensar
a história fora do esquema hegelo-marxista. Castoriadis comenta sobre a
possibilidade de se alcançar uma nova perspectiva. Acima de tudo, a história é
concebida por ele como uma “questão de emergência da alteridade radical ou do
novo absoluto”.
A questão principal, nesse contexto teórico, é pensar o novo objeto sem uma
subordinação às significações e às determinações já adquiridas. Castoriadis faz
uma ampla retrospectiva da tradição filosófica ocidental e mostra (principalmente
em Aristóteles e Platão) que esse “novo” foi encoberto, oculto e marginalizado. Há,
nesse sentido, uma impossibilidade do pensamento em tematizar esse “novo”. O
que ele denomina de “pensamento herdado” contém dois limites. São limites da
“lógica-ontologia identitária” e que indica a impossibilidade de se pensar a criação
ou a gênese que não seja simplesmente devir, geração ou corrupção.
Tanto o social quanto o histórico são dotados de um princípio inédito do
ponto de vista ontológico: “O que o social é, e a maneira pela qual é, não tem
análogo” (CASTORIADIS, 1982, p. 217). O exemplo do social mostra que ele não
pode ser pensado através da “lógica herdada”. Para Castoriadis esse social
representa uma espécie de magma, “uma diversidade não conjuntizável” ou em
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termos filosóficos: “O ser só é sempre ser dos entes e que cada região dos entes
desvenda uma outra face do sentido do: ser” (Ibid., p. 218).
Nesse sentido, opera-se uma fratura na concepção de tempo. A emergência
da alteridade radical como princípio ontológico em si faz com que toda herança do
pensamento herdado não mais satisfaça como categoria que apreende a realidade
histórica. O pensamento herdado não consegue mais compreender a história, pois
esta é “criação imanente, novidade não trivial”. O que Castoriadis acentua em
contraposição à temporalidade tradicional é uma noção de tempo que revoluciona
a própria lógica-identitária: Só existe tempo essencial, tempo irredutível a uma “espacialidade” qualquer, tempo que não seja simples referencial de reconhecimento, se e na medida em que há emergência da alteridade radical, criação absoluta – isto é, na medida em que o que emerge não está, no que é, seja “logicamente” ou como “virtualidade”, já constituído, em que não é atualização de possíveis predeterminados (...) (Ibid., pp. 225, 226).
Como pensar, então, um tempo desse porte? Como conceber um tempo que
é, ele mesmo, o “aparecimento de determinações”? Eis aqui os desafios do
pensamento de Castoriadis: pensar a história como “tempo de alteração-
alteridade”. Desaparece, nesse horizonte da reflexão, o “tempo” como uma ordem
de sucessões. Nota-se que Castoriadis coloca aspas nesse tempo; no fundo ele não é
o tempo mesmo, mas uma expressão da lógica-identitária que expulsou o
verdadeiro tempo para uma marginalidade qualquer. Sem a emergência do outro,
de “figuras outras”, não há possibilidade de haver o tempo. Assim, não há um
tempo puro, mas um tempo com aquilo que se faz ser pelo tempo.
E para justificar seus argumentos, Castoriadis resgata as fontes daquilo que
ele denomina de “lógica identitária-conjuntista”. Esta concebe (ou cria) uma
temporalidade que só pode ser decadência ou imitação imperfeita da eternidade
(Cf. Platão). No interior desse pensamento herdado a criação é impossível pois “o
mundo criado não pode manter-se no ser, ele não é ontologicamente autárquico,
ele se apóia no único ser ao qual “nada falta para existir” ” (Ibid., p. 233). Eis por
que surge a grande questão para Castoriadis, ou seja, o mundo histórico-social
“sofre um encobrimento total” de tudo aquilo que ele é de fato. Em caso contrário,
haveria uma destruição da “determinidade do ser e a idéia do ser como
determinidade, que deve necessariamente transacionar-se em imutabilidade,
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inalterabilidade dos eidé como totalidade, sistema e hierarquia fechados e
determinados, excluindo que se possam aí introduzir outros eidé (...)” (Ibid., p.
234). Assim, a ruptura que a contemporaneidade realiza implica no aparecimento
de “figuras outras”, de “determinações outras”, numa gênese lógico-ontológica. Ou
como afirma Castoriadis, “pensar o que é como temporal exige pensá-lo como
fazendo ser modos de ser (e de pensamento) outros” (Ibid., p. 237). É a própria
história que “reduz a nada” tudo que sabemos (ou que foi dito) do ser. Essa história
trava uma batalha de morte com o pensamento herdado.
Mas, dessa forma, como conceber essa concepção de tempo que o
pensamento herdado nos legou? Qual sua função de fato? Aqui se concentra uma
das grandes contribuições de Castoriadis e que implica em mostrar que esse
“tempo” faz parte da instituição imaginária da sociedade como tempo identitário.
Não se trata, portanto, de uma ruptura que a contemporaneidade realiza nessa
temporalidade. Não é uma passagem condicionada pelo tempo. É um fato
(observar que Castoriadis expressa seu pensamento como descoberta, afirmação,
tese) que contrasta e permite com que surja um pensamento sobre essa
institucionalização da sociedade. Essa visão sociológica (e até antropológica) que
Castoriadis lança sobre a formação social não parte de uma configuração
intelectual sancionada – como o campo sociológico, por exemplo -, mas de uma
ruptura, de um pensamento radical que tem como desafio conceber o tempo como
gênese lógico-ontológica, de “pensar o que é como temporal (...), fazendo ser
modos de ser (e de pensamento) outros” (Ibid., p. 237). Essa história, em si, reduz a
nada tudo o que alguma vez foi dito sobre o ser e a necessidade de pensá-lo.
Segundo essa exigência de Castoriadis, cai por terra o pensamento filosófico
pois ele também é concebido (assim como outras instâncias que apagam ou
anulam o tempo verdadeiro) como instituição que institui o tempo como
identitário. Em contraposição a esse tempo identitário, há o tempo da alteridade-
alteração: O presente, o nun, é aqui explosão, cisão, ruptura – a ruptura do que é como tal. Este presente é como originação, como transcendência imanente, como fonte, como surgimento da gênese ontológica (Ibid., p. 238).
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Nota-se, nessa passagem, que o autor indica a “transcendência imanente”
como uma característica desse tempo da alteridade-alteração. Esse tempo é em si
revolucionário; não realiza algo, mas realiza sempre, incessantemente. Ele não cria
uma transcendência na história, mas pela história, com a história. E na medida em
que surge a instituição social-histórica, ocorre uma demarcação comum ou coletiva
do tempo.
O social-histórico é a origem incessante de alteridade que figura e se figura;
ele comporta sua própria temporalidade como criação e “temporalidade específica
que é cada vez tal sociedade em seu modo de ser temporal que ela faz ser sendo”
(Ibid., p. 241). A instituição fixa, enrijece e escande essa temporalidade; na
instituição a temporalidade “se inverte em negação e denegação da
temporalidade”. Assim, o social-histórico é o movimento da auto-alteração e que só
pode ser dando-se figuras “estáveis” através daquilo que se torna visível.
Nesse sentido, em Castoriadis, bem como em Merleau-Ponty, há um
questionamento da razão histórica herdada do Iluminismo. Estamos às portas do
pós-moderno, já que uma nova concepção da história se avizinha. O acontecimento
adquire um novo estatuto. Para nosso objetivo, as reflexões de Merleau-Ponty são
particularmente interessantes porque se situam num período crítico, ou seja, a fase
imediata ao pós-Segunda Guerra Mundial, onde se inicia o questionamento de
padrões até aqui adotados. Trata-se de uma época onde ocorre uma virada do
pensamento ou, pelo menos, uma tentativa de um novo posicionamento mais
aberto e menos rígido de categorias importantes como a história, a revolução, a
dialética, etc. Isto pode ser comprovado nas Conversas-1948, onde Merleau-Ponty
já antevê uma nova fase para o pensamento ocidental: Podemos e devemos analisar as ambigüidades de nosso tempo e tentar, por meio delas, traçar um caminho que possa ser mantido com consciência e dentro da verdade. Sabemos porém demais a esse respeito para retomar pura e simplesmente o racionalismo de nossos pais (MERLEAU-PONTY, 2004, p.73).
Esse questionar que Merleau-Ponty aciona não representa uma dissolução
de conceitos até então herdados (uma queda no niilismo), mas a busca de um novo
paradigma. Daí o por que dele contrastar o clássico com o moderno. Esse último
implica em reconhecer a ambigüidade das coisas e em não “preferir a palavra
razão ao exercício da razão”. Esse moderno que Merleau-Ponty indica, corresponde
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a um conhecimento (e reconhecimento) da “incompletude e a ambigüidade em que
vivemos” (Ibid., p. 74). Há toda uma intenção do filósofo em deixar o pensamento
em suspenso, aberto, tenso. Ele crê que uma nova verdade – que é a verdade em si,
a coragem em reconhecer essa ambigüidade e incompletude das coisas – nasce
nesse período. Isto não é decadência, mas “consciência mais aguda e mais franca
do que sempre foi verdade, portanto, é aquisição e não declínio” (Ibid., pp. 74, 75).
Consciência do filósofo de uma fase de transição. Mas ao mesmo tempo, crença em
que uma nova verdade ou paradigma possa surgir: A verdade é que o problema para nós é fazer, no nosso tempo e por meio de nossa própria experiência, o que os clássicos fizeram no tempo deles, (...) (Ibid., p. 76).
Podemos enxergar no pensamento de Merleau-Ponty, em especial nesta fase
inquietante do pós- Segunda Guerra Mundial, um despertar do conceito de pós-
moderno. Já há um clima intelectual propício para tal inquietação epistemológica;
um reconhecimento da crise daquele padrão de pensamento que havia nascido
com o Iluminismo.
A IMANÊNCIA HISTÓRICA
Se a temporalidade é uma modalidade do sentido que deriva do tempo, que
nova temporalidade – se assim crermos na condição pós-moderna – emergiu da
época atual. Os indícios do pensar sobre essa temporalidade podem ser
identificados em alguns pensadores. Jean-François Lyotard, por exemplo, identifica
essa temporalidade como um tempo desmoronado, onde a “síntese totalitária” não
tem mais lugar. Há, na sua apreciação, “cesura” onde se alternam instantes de
entusiasmo e melancolia. Não eliminamos mais os estados contraditórios, ou
melhor, eles não podem ser mais exorcizados em proveito de um sentido da
história.
Dessa “cesura” que a época atual nos legou, Lyotard redescobre outros
modos de narração onde a imanência emerge como instância primeira. Há um
julgamento que parte de lugar nenhum e que fala em nome de nada e de ninguém.
Como o próprio Lyotard comenta, ela é uma “imanência necessitante e
necessitada”.
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Mas que estranha temporalidade é esta que se assemelha à melancolia? É
que ainda vivemos da lembrança do sentido histórico anterior. A melancolia pode
ser entendida como uma nova temporalidade que não sabe ser sentida como
tempo renovado; o homem teme abandonar a dimensão transcendental que
outrora lhe concedia o gosto do absoluto. Sem a transcendência a reconciliação não
surge mais como uma promessa, convive-se a todo o momento com um imanente
que assombra. Como o próprio Lyotard assinala, a vanguarda transforma-se no
“marginado” e não mais no “marginalizado” - este último como um produto do
sistema; o primeiro surge como tomada de posição que não ausenta a “solidão
desolada”. Em uma era onde todas as questões acharam uma resposta do discurso
da tecnociência, só nos resta, então, “o sentimento melancólico de nosso ser-aí”
(Apud GUALANDI, 2007, p. 152).
Observando com atenção essas idéias de Lyotard, podemos perceber que
não estamos distantes de Nietzsche ou de Michel Foucault. A proposta da
genealogia nietzschiana parece que se converte na própria prática do saber no pós-
moderno. Assim se expressa Foucault: A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imagina em conformidade consigo mesmo (FOUCAULT, 1979, p. 21).
Ao destruir o próprio sentido histórico, a história genealógica tem como
meta essa práxis da destruição, da fragmentação e do mostrar a história (portanto,
a construção, a interpretação arbitrária) “efetiva” que não se apóia em nenhuma
constância: “Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção à história e
apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente
movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto” (Idem).
O empreendimento de Foucault, portanto, parece levar ao extremo tudo
aquilo que em Nietzsche representava uma crítica à razão centrada no sujeito: “Os
desvelamentos feitos na teoria do poder enredam-se, assim, no dilema de uma
crítica auto-referencial da razão que se tornou total” (HABERMAS, 2000, p. 140).
O que permanece como fundamento de análise em Foucault é o diagrama.
Esse, sim, age como uma “causa imanente não-unificadora, entendendo-se por todo
o campo social” (DELEUZE, 2005, p. 46). Como uma “máquina abstrata”, o
diagrama é a causa dos agenciamentos concretos que se produz no tecido social. O
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movimento do diagrama, sua lógica, está no efeito que o atualiza, integra e
diferencia. “Há correlação, pressuposição recíproca entre a causa e o efeito, entre a
máquina abstrata e os agenciamentos concretos” (Idem).
Ao se tratar do diagrama, mais que produção, temos a “atualização”.
Reprodução de relações de forças (ou de poder) que são apenas potenciais,
instáveis, evanescentes, antes de entrarem num conjunto macroscópico. Assim,
nessa “atualização” há uma integração num duplo sentido: progressivo e
diferencial. Progressivo que vai do princípio local até o global, “operando um
alinhamento, uma homogeneização, uma soma de relações de força”; diferencial
porque a multiplicidade diagramática atualiza-se tomando caminhos divergentes e
repartindo-se em dualismos: É precisamente porque a causa imanente ignora as formas, tanto em suas matérias como em suas funções, que ela se atualiza segundo uma diferenciação central que, por um lado, formará matérias visíveis e, por outro, formalizará funções enunciáveis (Ibid., p. 47).
O assombro diante dessas quebras de causalidades, diante dessas
imanências móveis, se consuma ainda mais quando procuramos entender as
abordagens de Jacques Derrida. Aqui, o mundo é apreendido através de uma
filosofia da linguagem. Mas é uma filosofia que nada mais significa que
“gramatologia” - uma ciência da escritura. O texto é liberto do contexto de origem e
a escritura ganha autonomia tanto em relação ao autor, quanto ao objeto de que
fala. Assim, essa autonomia da escritura garante que o texto possa ser lido de
diversas maneiras, em diversos contextos.
Há em Derrida, sem dúvida, um trabalho de corrosão da razão, bem como
do significado de todo o saber. A força transcendental (Husserl) é negada para se
afirmar “a produtividade da escritura, anônima e fundadora da história”
(HABERMAS, 2000, p. 250). A virada desse saber que pretende desempenhar os
trabalhos de Derrida nos desloca, assim, do logos para a ècriture. Descobre-se um
imanente – a escritura – que é errante, alienada de seu sentido próprio, exilada.
Mas o problema permanece, na medida em que a crítica da razão
dominadora não recorre mais aos meios dessa própria razão. É aqui que Habermas
se detém na crença de uma razão comunicativa que salva a razão da corrosão pós-
moderna. Nietzsche, Adorno, Heidegger e Derrida vão além ao vislumbrarem um
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campo crítico purificado da razão moderna. O que Habermas critica em Adorno e
Derrida pode servir de identificação para o pós-moderno: Utilizam o fragmento como forma de representação e colocam qualquer sistema sob suspeita. Decifram de modo original o caso normal a partir de seus casos-limites; coincidem em um extremismo negativo; descobrem o essencial no marginal e no acessório, o direito no marginal e no acessório, o direito no lado do subversivo e do infrator e a verdade na periferia e no inautêntico (Ibid., p. 263).
A crítica ao logos empreendida por Derrida ficou caracterizada como
“desconstrução”. Destrói-se a hierarquia habitual de conceitos básicos, bem como
ocorre uma erosão de contextos de fundação. O resultado disso tudo é uma
equiparação entre filosofia e literatura. A positividade da crítica se desloca da
“coerência lógica” para o “êxito retórico”. Talvez, Habermas exagere um pouco em
sua análise sobre Derrida ao remetê-lo, simplesmente, a esse “êxito retórico”, mas
acerta ao afirmar que seu objetivo é desmontar os suportes ontológicos
construídos pela filosofia ocidental. O mundo se converte em um texto literário; os
gêneros (filosofia, literatura, ciência, etc) se dissolvem num único texto e a crítica
literária se converte na única crítica capaz de dar conta dessa nova leitura do
mundo.
Michel Foucault em As palavras e as coisas afirma que foi Nietzsche quem
queimou as promessas mescladas de dialética e antropologia. Incêndio precoce,
com certeza, mas que teve a continuidade com Heidegger. A superação dialética
não resolve mais a questão da “razão e seu outro”. Como observa Habermas, agora
ocorre uma relação de tensão: repulsão e exclusão recíprocas. Nem a auto-reflexão
ou a práxis esclarecida apresentam uma saída para esse problema. Razão que ao
aparecer como impotente vê nascer ao seu redor “subjetividades obtusas”, forças
de anamnese que demandam outra observância (Cf. HABERMAS, 2000).
OBSERVAÇÕES FINAIS
A crise que afetou a razão moderna foi, essencialmente, uma forma de
renúncia ao princípio da transcendência. Este princípio não é mais evocado para
resolver as contradições fundamentais da realidade social. Houve uma derrocada
da forma de se apreciar o próprio movimento do mundo social; na expressão mais
acabada do materialismo dialético, temos a seguinte concepção:
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Mas o mundo real não permanece em repouso; sua grande lei é a lei do desenvolvimento e da troca, da transformação do velho estado qualitativo em outro novo, em virtude das tendências opostas que se encerram em cada objeto e fenômeno (RESENTAL;STRAKS, 1960, p. 331).
A “máquina” (a dialética) que movia e impulsionava essas mesmas coisas
rumo a uma “nova qualidade”, evaporou-se. Em relação a esta idéia, são evidentes
agora os esforços de Sartre e Merleau-Ponty para salvar a dialética daquilo que
eles já pressentiam: sua conversão numa dogmática que não mais compreendia o
mundo ou muito menos trazia a esperança de um homem renovado. A crise da
transcendência trouxe, concomitantemente, toda uma série de problemas não
resolvidos e que assola o pensamento filosófico atual. A própria experiência
histórica ganha ares de estranheza na medida em que não pode mais utilizar os
padrões de análise da dialética histórica.
O próprio Alberto Gualandi em sua obra sobre Deleuze mostra essa nova
perspectiva: “O que acontece com a identidade dos objetos da experiência e de
nossa própria identidade, se nenhuma Idéia transcendental nos traz a garantia da
unidade e da permanência?” (GUALANDI, 2003, p. 44). Imagens assombrosas e
estranhas ameaçam entrar em cena; “Alice ora grande, ora pequena, o tempo volta
para trás e enrola-se em espiral” (Ibid., p. 45).
Aquilo que Foucault havia identificado e inserido lado a lado como
emergência epistemológica em fins do século XVIII – o tema transcendental e os
novos campos empíricos -, ameaça desabar nos dias de hoje. E essa derrocada do
edifício epistemológico moderno implica numa nova configuração (que ainda não
temos) que totalize essas novas tendências. Ou não haverá mais nenhuma
totalização possível? Foucault vê uma correspondência entre a filosofia
transcendental (Kant) e os conhecimentos positivos. Seu “estruturalismo” da época
d'As palavras e as coisas caracterizava uma epistéme que abarca essas frentes. Mas
se essas últimas forem concebidas em perspectiva de desnível, podemos afirmar
que hoje a fratura se ampliou.
O que Foucault observa de inédito em Ricardo, entre outras coisas? Que a
historicidade penetrou no modo de ser de sua economia. Nas palavras de Foucault:
“O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação,
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será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua
manifestação iluminada” (FOUCAULT, 1999, p.361). Aqui, sim, se amarram os
temas da “plenitude do homem” e do “devir do tempo”. Então, provavelmente,
podemos procurar as sementes dessa crise na própria razão histórica que não dá
mais conta de explicar o esfacelamento dos próprios conteúdos históricos. É nesse
sentido que os argumentos que Foucault desenvolve nos levam a um impasse e não
esclarece, realmente, esse esfacelamento pós-moderno. Na bem da verdade, o
nietzschianismo de Foucault já vê essa fragmentação na própria história. A
epistéme moderna de Foucault se apresenta com os saberes tematizados no
trabalho, na vida e na linguagem; mas eles primeiro recebem uma historicidade
própria que os libera desse “espaço” contínuo que é a cronologia. Daí surgir o
homem do século XIX como “desistoricizado”. Mas são muitas evidências que não
sustentam a tese de Foucault. E ele próprio dá essa abertura meio paradoxal contra
suas próprias idéias: “Haverá, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade
do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão
radical que funda todas as outras” (Ibid., p. 512). Foucault joga a todo o momento
com “esse nível mais profundo” e as “dispersões”; ele não nega uma história que
funciona como “totalidade absoluta” (no século XIX). As “totalidades parciais” (as
positividades) formadas pela história e nela depositadas, entram em contato umas
com as outras sem que alcancem uma “totalidade absoluta”. Foucault nega o
historicismo, já que este vê no fundamento de todas as positividades (e antes
delas) a finitude que as torna possível. O historicismo não dá liberdade nem espaço
para o “ser” das positividades que se constituem na epistéme moderna.
É bem provável que o tema da crise tenha se esgotado. Essa afirmação
parece se confirmar na medida em que nos aproximamos do neopragmatismo
atual. Richard Rorty insiste na redefinição de um pensamento não mais universal
ou romântico, mas que resolva os problemas criados pelas velhas idéias. Temos
que chegar a um acordo intersubjetivo e introduzir idéias novas e surpreendentes,
sem atribuí-las a uma fonte privilegiada (Cf. SOUZA, 2005, p. 266). Em Rorty não há
esse abalo que encontramos nos pensadores da condição pós-moderna. O
pragmatismo já havia realizado suas batalhas por uma simplificação do
pensamento; nos dias atuais, como afirma Rorty, há simplesmente um “senso
comum materialista e reformista”:
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Estamos ficando contentes em nos vermos como animais consertadores, que se fazem enquanto seguem em frente. A secularização da alta cultura, que pensadores como Espinosa e Kant ajudaram a realizar, formou em nós o hábito de pensar horizontalmente em vez de verticalmente – de entender como poderíamos providenciar um futuro ligeiramente melhor em vez de olhar para cima, para a estrutura suprema, ou para baixo, para as profundezas insondáveis (Ibid., p. 270).
O percurso intelectual de Rorty, que Habermas (2000) mostrou bem em A
virada pragmática de Richard Rorty, impede-o de um debate mais profundo com o
tema da pós-modernidade. O que se passa é o inverso, ou seja, o neopragmatismo
se configurou como um campo de saída possível para o impasse pós-moderno.
Habermas trilha esse último caminho. Lyotard, por outro lado, aprofunda a crise ao
assumir os impasses atuais como a “verdade” de seu tempo. O “entusiasmo” de
nossos dias não seria mais um afastamento irremediável entre uma Idéia e aquilo
que se apresenta por realizar, mas o afastamento entre as diversas famílias de
frases e suas respectivas representações legítimas: Auschwitz, um abismo aberto quando é necessário apresentar um objeto capaz de validar a frase da Idéia dos direitos do homem; Budapeste 1956, um abismo aberto diante da frase da Idéia do direito dos povos; (...). Cada um desses abismos, e outros, deveria ser explorado com precisão, no interior de suas diferenças (LYOTARD, 1986, p. 96).
Como na própria afirmação de Lyotard: hoje estamos no início de uma
forma de representação onde se vê o infinito das finalidades heterogêneas.
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Nota de Pesquisa
Que Vença O Melhor Argumento: As Notas De Rodapé Como Artifício Argumentativo Em Casa Grande & Senzala1
Dr. Eliézer Cardoso de Oliveira (UEG)
E-mail: [email protected] Graduanda Vanessa Carnielo Ramos (UEG)
E-mail: [email protected] **
RESUMO
Este texto analisa as notas de rodapé no livro Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, considerando-as, não como mero apêndice do texto, mas como uma estratégia argumentativa, utilizada pelos historiadores para apoiar os seus argumentos em obras de outros historiadores ou para confrontá-las. O texto é dividido em três tópicos: 1) o uso das notas de rodapé no texto histórico; 2) o texto histórico como estratégia argumentativa; e 3) o uso das notas de rodapé por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala.
Palavras-Chave: Notas de rodapé; Jörn Rüsen; Casa Grande & Senzala
ABSTRACT This text analyses the footnotes in the book Casa Grande & Senzala by Gilberto Freyre, considering them not as mere appendix of the text, but as a rhetorical argumentative strategy used by historians to support their arguments on the historians’s works or to compare them. The text is divided into three topics: 1) the use of footnotes in historical text, 2) the historical text as rhetorical argumentative strategy, and 3) the use of footnotes by Gilberto Freyre in Casa Grande e Senzala.
Keyword: Footnotes; Jörn Rüsen, Casa Grande & Senzala
Introdução
O objetivo desta pesquisa é analisar as pequeninas e subestimadas notas de
rodapé presentes no texto historiográfico. A hipótese é que essas notas possuem
uma importância fundamental, no texto histórico, exercendo várias funções de 1 Este texto foi resultado da pesquisa realizada na Universidade Estadual de Goiás “Os alicerces de Casa Grande & Senzala: análise historiográfica das notas de rodapé”, realizada durante em 2009-2010. Professor do curso de História da UEG-Anápolis e Doutor em Sociologia da UnB. ** Graduanda do curso de História da UEG-Anápolis e bolsista de iniciação científica do CNPQ.
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natureza retórica e argumentativa, procurando, nesse sentido, convencer o leitor
sobre a verdade ou sobre a plausibilidade do que está sendo afirmado pelo autor.
Isso implica, necessariamente, um diálogo com os “narrativistas”, ou seja, o
conjunto de autores que consideram a escrita da história como imprescindível
para a reflexão teórica sobre o significado do trabalho executado pelos
historiadores.
Evidentemente, houve uma inversão de prioridades na análise do texto
histórico. Em vez de se priorizar o texto principal, como é de praxe nas análises
historiográficas, priorizar-se-á o texto secundário das notas de rodapé. Essa
postura segue o “método indiciário”, proposto por Carlos Ginzburg como um
paradigma do conhecimento histórico. Esse método foi inspirado na descoberta do
crítico de arte Giovanni Morelli, ao perceber que, para distinguir uma obra de arte
falsa da verdadeira, era fundamental examinar “os pormenores mais
negligenciáveis: os lóbulos da orelha, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos
pés” (GINZBURG, 1989, p. 144). A partir disso, Ginzburg mostrou um rol de
disciplinas e práticas culturais que fazem uso de indícios para atingir o
conhecimento proposto: os caçadores do neolítico, os adivinhos mesopotâmicos, os
médicos da Grécia Antiga, os detetives modernos, os antropólogos, os
historiadores. Dentro desta linha, as notas de rodapé podem ser consideradas
indícios e sinais reveladores da forma de argumentar e de escrever de
determinado autor. Em vez de ficar embasbacado pelo deslumbrante sorriso da
Mona Lisa, far-se-á uma análise mais indiscreta e invasiva, olhando de perto para o
lóbulo de sua orelha.
Esse texto será dividido em três partes. Na primeira, far-se-á uma breve
análise histórico-social das notas de rodapé e o papel que elas desempenham no
texto histórico. Em seguida, far-se-á uma consideração dos elementos narrativos
presentes no texto histórico, a partir, principalmente, das teorias de Jörn Rüsen.
Finalmente, será feito um estudo empírico do uso das notas de rodapé num texto
histórico, a partir da análise de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
I. O uso das notas de rodapé no texto histórico:
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O uso das notas de rodapé é um recurso textual comumente usado pelos
historiadores com as seguintes funções: discorrer sobre temas considerados por
demais periféricos para estar no texto principal, explicitar melhor alguns conceitos
utilizados ao longo do texto, citar as fontes da pesquisa utilizadas no texto e sua
localização, remeter-se a outros autores, buscando apoio para argumentação ou
ressaltando a discordância.
As notas de rodapé é um instrumento textual bastante antigo, seu uso
documentado remonta aos comerciantes fenícios da Antiguidade que colocavam
notas nos papiros, com o objetivo de aprimorar as explicações das transações
comerciais. Seu uso era difundido entre os gregos e romanos. Na Idade Média elas
eram utilizadas para explicar aos recém-convertidos e poucos alfabetizados líderes
políticos europeus aspectos específicos da religião cristã (GAERTNER, 2002).
No entanto, as modernas notas de rodapé estão relacionadas às inovações
técnicas que acompanharam a difusão do livro no Ocidente, por exemplo, a
utilização da ordem alfabética para ordenar verbetes de dicionários e
enciclopédias, o uso do sumário e do índice para informar sucintamente ao leitor
sobre os assuntos, a publicação de obras de referência sobre determinados temas,
etc. A partir do século XVII, as notas de rodapé tiveram um significado especial
para o conhecimento histórico, pois foram usadas como garantia da objetividade e
da erudição crítica. Entre os historiadores, o surgimento da indução estava ligado à nota de pé de página. O termo ‘nota de pé de página’ não deve ser tomado literalmente. O importante era a difusão da prática de dar algum tipo de orientação ao leitor de um texto particular sobre aonde ir para encontrar a evidência ou informações adicionais, fosse essa informação dada no próprio texto, à sua margem (“nota lateral”), ao pé (“nota de página” ou “de rodapé”), ao final ou em apêndices especiais de documentos. (BURKE, 2003, p. 184).
Esse método crítico exigia do historiador que citasse as fontes utilizadas na
pesquisa documental, de forma que oferecesse ao leitor uma comprovação do que
estava escrito, para que garantisse o rigor “científico” do texto e o afastasse dos
ensaios históricos mal-documentados. Assim existia uma ligação entre as fontes e
as notas de rodapé, uma vez que era ao fim da página que o leitor encontraria o
“endereço” das fontes utilizadas.
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Posteriormente, a partir do século XVIII, as notas serviram também para o
diálogo entre os diversos historiadores, ou seja, expressar nas notas de rodapé
uma concordância ou discordância em relação a obras escritas por outros
historiadores. No século XIX, com Ranke e seus seguidores, as notas atingem o seu
apogeu no trabalho historiográfico, passando a ser um ingrediente fundamental da
objetividade do trabalho do historiador. No século XX, a concepção histórica de
Ranke foi demolida por várias tendências – marxistas, annales, weberianos –, mas
nenhuma delas abriu mão das notas de rodapé.
Apesar desse uso indiscriminado e secular, as notas de rodapé ainda não
mereceram as devidas atenções por parte dos historiadores. Isso é bastante
surpreendente, se levar em conta o fato de que, nos últimos 30 anos, depois que
Lawrence Stone “ressuscitou a narrativa1”, apareceu uma grande quantidade de
livros que analisaram a escrita da história2, mas praticamente nenhum deles
considerou as notas como uma parte importante do texto histórico.
O tema – notas de rodapé – é inusitado, porém não descabido dentro da
tradição historiográfica. As notas de rodapé são partes do texto praticamente
desprezadas pelos leitores, mas que, dependendo do autor, escondem verdadeiras
preciosidades em meio a letras miúdas no fim de página ou de capítulo. Um dos
estudos pioneiros sobre as notas de rodapé na historiografia é o trabalho de
Anthony Grafton, As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre as notas de
rodapé. Neste livro, o autor compara o uso das notas de rodapé no texto histórico
com a importância do banheiro nas residências: Como o banheiro, a nota de rodapé moderna é essencial à vida histórica civilizada; como o banheiro, ela parecer ser um assunto entediante para a conversação polida e chama a atenção, na maioria das vezes, quando funciona mal. Como o banheiro, as notas de rodapé descem suavemente pela tubulação – muitas vezes, recentemente, nem mesmo no pé da página, mas no fim do livro. (GRAFTON, 1998, p.17).
1 Trata-se do artigo The revival of narrative (STONE, 1991), publicado em 1979 numa importante revista inglesa que provocou bastante polêmica. É evidente que antes do artigo, a discussão sobre narrativa na história já era feita por inúmeros historiadores. 2 Um levantamento despretensioso de obras históricas que incorpora no título a palavra “escrita” aponta para as seguintes publicações: Escrita da História (Michel Certeau), Como se escreve a história (Paul Veyne), A escrita da História (Peter Burke), Escrita, linguagem, objetos (Sandra J. Pesavento), A história escrita (Jurandir Malerba). Caso considerasse o termo “narrativa” como sinônimo de escrita, a quantidade de obras aumentaria de maneira assombrosa.
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Apesar desse pouco interesse do público em ler e, muito menos, de refletir
sobre as notas, o autor destaca que as notas são o elo comum para duas tarefas
consideradas básicas na historiografia: Examinar todas as fontes relevantes para a solução de um problema e construir uma nova narrativa a partir delas. A nota de rodapé prova que ambas as tarefas têm sido levadas a cabo. Ela identifica tanto a prova primária que garante a solidez da novidade da história quanto as obras secundárias que não minam a forma e a tese de sua novidade. (Idem, p. 16).
Além dessas funções “metodológicas” de referenciar as fontes
pesquisadas e a bibliografia lida, as notas têm uma função retórica importante no
texto histórico: “convencem o leitor de que o historiador realizou uma quantidade
aceitável de trabalho, o suficiente para mentir dentro dos limites toleráveis do
campo” (idem, p. 30). Ironias à parte, a afirmação de Grafton mostra bem a
evolução da historiografia que, no século XX, rejeitou o pressuposto novecentista
de que “o texto convence, as notas provam” e passa a dar mais importância aos
pressupostos retóricos presentes na escrita da história, inclusive nas notas de
rodapé. Por isso, é urgente – diante da grande produção sobre narrativa –
reavaliar o papel das notas de rodapé no texto histórico. Nesse sentido, as
considerações de Jörn Rüsen sobre a teoria da História serão de extrema valia.
II. O texto histórico como artefato argumentativo
Jörn Rüsen é um historiador que possui uma grande influência entre os
interessados pela teoria da História no Brasil. O reconhecimento mundial de suas
reflexões sobre a teoria da História deve-se , principalmente, ao fato de ele ter
produzido, talvez, a mais consistente resposta ao terremoto Metahistória, de 1973,
que abalou as bases epistemológicas da disciplina História. Rüsen foi um dos que,
aproveitando os escombros caídos no chão, procurou construir um novo templo de
Clio, não tão sólido e duro como aquele construído no século XIX, mas um edifício
flexível o bastante – como as construções japonesas – e capaz de suportar abalos
sísmicos de grande magnitude.
Evidentemente, suas reflexões têm outros méritos. O maior deles, talvez, foi
tentar construir uma posição mediana entre os extremos: narrativa e pesquisa,
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ciência e cultura, modernidade e pós-modernidade, objetivismo e subjetivismo,
nomologia e hermenêutica, racionalidade e irracionalidade, Marx e Weber.
Além disso, é um autor representativo de uma tendência dominante no final
do século XX de pensar “teoria da História”, em vez de “a” teoria da História: ela
deixa de ser específica a cada vertente historiográfica (Escola Metódica, Marxismo,
Annales, etc.) e passa ser uma reflexão geral, válida para obras de todas as
vertentes. Esse formalismo analítico é bem evidente quando Rüsen afirma que A teoria é o plano da ciência da história em que a visão de conjunto é adquirida. A teoria cuida para que o conjunto da floresta da ciência especializada, como constituição estrutural do pensamento histórico, não seja perdido de vista nos múltiplos processos de conhecimento histórico, em benefício das árvores dos processos particulares. (RÜSEN, 2001, p. 27).
Aproveitando a ecológica metáfora do autor, deduz-se que para enxergar a
floresta em vez das árvores isoladas, é necessário um lugar alto e estratégico o
suficiente para livrar-se do ofuscamento produzido pela copa das árvores. Em
Rüsen, esse local estratégico que o permitiu enxergar as diversas espécies de
árvores – as diferentes matrizes teóricas – que formam a floresta da História é a
sua bem conhecida matriz disciplinar.
A Matriz Disciplinar são os cinco princípios básicos e fundamentais
presentes no conhecimento científico produzido por historiadores profissionais.
Em formato circular, os elementos da Matriz são os seguintes:
1) Interesses: consiste na já bem conhecida e aceita constatação de que o
interesse pelo passado humano é resultante de uma inquietação do
presente. Croce foi um dos pioneiros em formular essa idéia quando
afirmou que “toda história é história contemporânea1” e, anos depois, na
França, os fundadores dos Annales popularizaram isso com sua “história-
problema”. A especificidade de Rüsen foi de mostrar esse interesse pela
história como um antídoto à inquietação psicológica da passagem
inexorável do tempo, que traz medo, dúvidas, velhice, doenças e morte.
1Croce afirmou: “o que constitui a história pode se assim descrito: trata-se do ato de entendimento e compreensão induzido pelas exigências da vida prática”. (CROCE, 2006, p. 26). Curiosamente bem semelhante à justificativa de Rüsen do interesse humano pela História: “as carências fundamentais de orientação da prática humana da vida no tempo, que reclamam o pensamento histórico” (RÜSEN, 2001, p. 30).
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2) Idéias: ou perspectivas orientadoras do passado são as categorias, as
perspectivas, os conceitos que os historiadores profissionais utilizam para
interpretar e selecionar os acontecimentos do passado. Longe do empirismo
historicista ingênuo do século XIX, Rüsen está afinado com as principais
matrizes teóricas do século XX – Marxismo, Annales e Sociologia do
Conhecimento de Weber – ao propor uma história conceitual.
3) Métodos de pesquisa empírica: são as fontes históricas e as técnicas de
tratamento utilizadas pelos historiadores profissionais. Aqui se nota o
realismo de Rüsen, quando afirma que não é possível produzir
conhecimento histórico sem as “experiências concretas do tempo passado”.
Na verdade, esse reconhecimento da importância das fontes históricas para
a produção do conhecimento histórico é uma unanimidade entre as
diversas tendências históricas – nem mesmo, “relativistas” como Hayden
White ou Foucault abdicaram-se da necessidade do uso das fontes no
trabalho histórico.
4) Formas de apresentação: é a transformação do conhecimento histórico num
texto escrito, ou seja, uma “representação narrativa da continuidade
temporal do passado, presente e futuro”. Rüsen é consciente do fato de que
a escrita da história não é um relatório frio e objetivo da pesquisa. Ela está
permeada de elementos poético-retóricos. Aqui a dívida de Rüsen com os
narrativistas1 é clara e evidente, quando faz um elogio direto ao seu maior
“rival”: “Hayden White os descreveu como ‘poéticos’ e alcançou, com isso,
uma influência altamente benéfica sobre o debate na teoria da história”
(RÜSEN, 2007, p. 25). Além dos elementos estéticos, a escrita da história
incorpora elementos culturais, já que está voltada para um público de quem
pretende satisfazer demandas por sentidos.
5) Funções de orientação existencial: são as diversas funções culturais que o
texto histórico exercerá numa sociedade. Depois de pronta, a obra histórica
1 Outro autor importante e pioneiro em reconhecer o papel específico da narrativa histórica foi Michel Certeau, que percebeu uma espécie de “distorção” na escrita histórica: “só uma distorção permite a introdução da "experiência" numa outra prática, igualmente social, mas simbólica, escriturária, que substitui a autoridade de um saber pelo trabalho de uma pesquisa. O que é que o historiador fabrica quando se toma escritor? Seu próprio discurso deve revelá-lo.” (CERTEAU, 1982, p. 95)
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é apropriada para os mais diversos usos e funções: na produção de livros
didáticos de História para o Ensino Básico, na produção de filmes e novelas
históricos, na inspiração de obras arquitetônicas, na criação da moda, na
elaboração de romances literários ou poesias, etc. Mas o mais importante do
que tudo isso é que as narrativas históricas contribuem para a legitimação
da identidade dos diversos grupos sociais.
Como se percebe, não há nenhuma novidade substancial nesses cinco
elementos apresentados por Rüsen. Mas como bem notou Pedro Caldas (2008, p.
08), Rüsen disse o óbvio que ninguém tinha dito antes. É lugar comum que o
conhecimento histórico é produzido a partir de uma indagação do presente, que os
historiadores usam conceitos e categorias para interpretar os fatos, que o trabalho
metódico com as fontes é essencial na produção do conhecimento do passado, que
existem elementos retóricos na narrativa histórica e que o conhecimento histórico
é essencial para a fundamentação da identidade coletiva. No entanto, o modo como
Rüsen concatenou cada um desses elementos, criando um modelo formal de
análise do conhecimento histórica não foi, de modo algum, banal.
A Matriz Disciplinar responde a uma secular pergunta – formulada pela
primeira vez por Croce: “o que faz com um livro de história seja história”, ou seja,
qual a diferença entre a História produzida por um profissional daquela produzida
por amadores Para Rüsen, as narrativas históricas científicas terão os cinco
elementos, enquanto as outras narrativas que tematizam o passado não terão um
método de tratamento das fontes, conceitos ou uma narrativa bem fundamentada.
Qualquer narrativa sobre o passado pode partir de interesses culturais e
fundamentar a identidade de grupos, mas apenas a narrativa histórica “científica”
faz isso de modo racional. Isso significa que o conhecimento histórico racional Não se contenta em apenas afirmar alguma coisa sobre o passado da humanidade, mas indica sempre as razões para tanto, por que se deveria aceitar tal afirmação e por que as que dizem outra coisa não convenceria. “Razão” quer, pois, designar o que caracteriza o pensamento histórico que se processo na forma de um debate movido pela força do melhor argumento. (RÜSEN, 2001, p. 21).
Desse modo, a racionalidade do trabalho histórico estaria no debate entre
os pares. No cotidiano da vida acadêmica, esse debate ocorreria nos seminários,
nos simpósios, nas defesas de teses, nas conversas informais, nas resenhas; porém,
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de maneira explícita ou implícita, o resultado desse debate é incorporado na
narrativa histórica.
E o local explícito, no texto, em que esse debate entre os pares aparece com
nitidez é as letrinhas pequenas das notas de rodapé. No século XIX, as notas eram a
garantia da cientificidade do texto histórico, ao fazer referência aos documentos
utilizados pelo historiador no seu texto, permitindo a outrem conferir a veracidade
de suas afirmações. Essa função ainda existe, mas agora a teoria da História de
Rüsen permite vislumbrar, nas notas de rodapé, um papel importante na
racionalidade do texto histórico, ao possibilitar ao leitor acompanhar o debate
travado entre os pares. É geralmente, por meio de notas, que os historiadores
citam outros historiadores que corroboram suas afirmações ou confrontam suas
afirmações com as posições contrárias. É evidente que esse confronto ou diálogo
pode acontecer no corpo do texto, por meio da citação direta; mas o diferencial das
notas é o fato de elas possibilitarem um espaço institucionalizado socialmente para
esse reforço de argumentação.
O próprio Rüsen, em seu texto permeado de notas, fornece exemplos dessa
função argumentativa das notas de rodapé. Assim, a afirmação do seu texto de que
“a produção de determinadas carências é sempre também um processo de
produção de novas carências” (idem, p. 57) é acompanhada da seguinte nota de
rodapé “Assim, por exemplo, na antropologia de Karl Marx, como exposta no
capítulo sobre Feuerbach na ‘Ideologia Alemã’” (idem, p. 57, nota 5). A afirmação
no corpo do texto é perfeitamente clara, o que dispensaria a necessidade da nota.
No entanto, a função desta nota não é a de dotar o texto de clareza, mas de reforçar
a argumentação, buscando a autoridade de um clássico do calibre de Marx. É uma
forma de persuadir o leitor a acreditar nas palavras do texto, buscando o aval de
outro intelectual de peso.
Por outro lado, as notas de rodapé são utilizadas também para marcar um
distanciamento em relação a uma posição contrária. Apesar desse tipo de nota ser
bastante rara em Rüsen, o que denota uma personalidade simpática e
apaziguadora, é possível encontrá-la em alguns momentos, como quando ele
discorda, amavelmente, da concepção de Jeismann: Jeismann propôs, em sua didática do ensino de história, como operações essenciais do aprendizado: análise, juízo objetivo, valoração. Creio que ‘experiência, interpretação e orientação’ são mais abrangentes e
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fundamentais, sem ficarem restritas ao campo cognitivo da ciência da história, que parece ser o único interesse de Jeismann. (RÜSEN, 2007, p. 110, nota 22).
A nota reconstitui com clareza o debate entre dois profissionais sobre quais
são as operações essenciais para o aprendizado da história: Jeisman afirma que
seriam “análise, juízo objetivo e valoração”; por outro lado Rüsen afirma que
seriam “experiência, interpretação e orientação”. Para o leitor que não conhece
Jeisman, a impressão é que Rüsen tem os melhores argumentos, já que ele conduz
o debate.
Enfim, baseado na formulação de Rüsen, segundo a qual a narrativa
histórica é uma arena de argumentação, pretende-se, a seguir, analisar as notas
como elementos argumentativos num autor prolixo como Gilberto Freyre.
III. O uso das notas de rodapé por Gilberto Freyre em Casa Grande e
Senzala
Casa Grande e Senzala, livro publicado por Gilberto Freyre em 1933, é um
marco na história intelectual brasileira. Tornou-se um clássico literário,
ultrapassando os limites restritos do campo das Ciências Sociais e da História: foi
adaptado para o teatro, enredo da Mangueira no carnaval de 1962 e transformada
em história em quadrinhos1. A obra foi traduzida para vários países e elogiada por
intelectuais do quilate de um Barthes Febvre, Braudel e Fernando Henrique
Cardoso2. Geralmente, os admiradores ressaltam os seguintes méritos da obra: foi
a primeira a utilizar sistematicamente o conceito de cultura para interpretar a
realidade brasileira, rejeitando o conceito de raça; fez a história da colonização
brasileira sem priorizar os acontecimentos político-administrativos; utilizou fontes
inusitadas e diversificadas; reforçou a influência do negro e do indígena na cultura
brasileira; foi pioneira em fazer uma história do cotidiano brasileiro; utilizou uma
forte base teórico-metodológica, baseando-se em autores como Weber, Dilthey e
1 A adaptação do texto foi feita por Estevão Pinto (2005) e as ilustrações foram feitas por Ivan Wasth Rodrigues. 2 Necessário lembrar que os três últimos intelectuais citados prefaciaram diferentes edições do livro: Braudel a edição publicada na Itália, Febvre a tradução publicada na França e Cardoso a edição brasileira de 2006.
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Boas; interpretou o passado brasileiro de maneira não evolucionista e
progressista; abordou temas inusitados, tais como o odor, o corpo, a sexualidade,
dentre outros1, etc.
No entanto, esses elogios não foram suficientes para que essa obra
escapasse das críticas e das polêmicas. As críticas foram muitas e de diversos tipos:
fraqueza metodológica, já que muitas de suas teses não se apoiariam em base
empírica consistente; seu discurso é repleto de coloquialismo e linguagem chula,
imprópria para um texto científico; sua motivação ideológica seria justificar o
modo de vida patriarcal nordestino, do qual demonstraria um intenso saudosismo;
seu modo ameno de abordar a escravidão brasileira serviria ao perverso propósito
de defender uma falsa democracia racial brasileira; seus elogios à colonização
portuguesa serviria aos propósitos imperialistas de justificar a colonização
portuguesa na África e Ásia; seus limites interpretativos seriam supervalorizados,
uma vez que transpôs elementos da realidade nordestina inadequadamente para
toda realidade brasileira; sua análise foi feita da janela da Casa Grande, o que
explica o seu tom patriarcalista; seu autor possui posições políticas conservadoras
e direitistas.
Na verdade, ser polêmico e suscitar discussões apaixonadas é a marca dos
grandes livros, como O Capital, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, O
mal-estar da civilização, dentre outros. Por isso, apesar das críticas e das
polêmicas, não é possível negar que Casa Grande & Senzala é um grande e belo
livro sobre a realidade histórico-sociológica brasileira. É um clássico, no sentido
defendido por Gadamer2 em Verdade e Método.
Desse modo, uma obra de tamanha dimensão merece ser lida e analisada
com rigor. E de fato foi. As edições de Casa Grande & Senzala em língua portuguesa 1 Cabe aqui citar a opinião de um dos grandes admiradores contemporâneos de Freyre – Peter Burke (2005, p. 144): “Foram feitas referências ocasionais ao som do passado por Johan Huizinga e Gilberto Freyre, que descreveu o rumor das saias nas escadas da casa grande no Brasil Colonial. Freyre, além disso, descreveu o odor dos quartos de dormir no Brasil do século XIX, uma combinação de cheiros de pés, mofo, urina e sêmen.” 2 O que é clássico é aquilo que se diferenciou destacando-se dos tempos mutáveis e dos gostos efêmeros; é acessível de modo imediato, mas não ao modo desse contato, digamos elétrico que de vez em quando caracteriza uma produção contemporânea, na qual se experimenta momentaneamente a satisfação de uma intuição de sentido que supera toda expectativa consciente. Antes é uma consciência do ser permanente, uma consciência do significado imorredouro, que é independente de toda circunstância temporal, o que nos induz a denominar algo de clássico, uma espécie de presente intemporal que significa simultaneidade para com qualquer presente. (GADAMER, 1997, p. 432).
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já chegam ao espantoso número de 48, mais do que o dobro das de Formação do
Brasil Contemporâneo, outro livro clássico da historiografia brasileira que possui
23 edições. O número de estudos sobre a concepção historiográfica de Freyre é
impressionante, sendo impossível resenhá-los todos nos limites desse espaço.
No entanto, ainda subsiste uma parte substancial de Casa Grande & Senzala
que não foi analisada sistematicamente: as notas de rodapé. Na verdade, é possível
afirmar que essa parte do texto foi pouco lida, já que pouquíssimos autores citam
as notas em suas análises da obra. No entanto, as notas de rodapé são elementos
fundamentais para a compreensão plena do texto; caso contrário, o autor não as
teria escrito em tamanha quantidade. Freyre já foi chamado de “prefaciomaníaco”
pela quantidade e tamanho de seus prefácios. No entanto, seria mais adequado
chamá-lo de “notemaníaco” pela quantidade e densidade das notas de rodapé
presentes em Casa Grande & Senzala. A tabela a seguir ilustra, quantitativamente, o
espaço das notas de rodapé e dos prefácios no corpo principal do texto: Tab. 1 - Estrutura de Casa-Grande & Senzala (em número de páginas)
Corpo principal do texto: Corpo secundário do texto: Capítulos Quant. de pag. Prefácios e notas Quant. de pag.
Capítulo 1 54 Notas do capítulo 1 33
Capítulo 2 73 Notas do capítulo 2 26
Capítulo 3 74 Notas do capítulo 3 19
Capítulo 4 96 Notas do capítulo 4 30
Capítulo 5 53 Notas do capítulo 5 16
Seleção de prefácios 44
Total: 350 Total 168
(porcentagem) 67% (Porcentagem) 33%
Fonte: confeccionada a partir da 31ª edição de Casa-Grande e Senzala (Editora Record, 1996)
Nota-se que cerca de 1/3 de Casa-Grande & Senzala é composto por partes
consideradas secundárias, como o prefácio e as notas de rodapé. É muita coisa para
ser relegada a um segundo plano. Muitos aspectos interessantes da obra de Freyre
poderão ser levantados no estudo sistemático dessas notas e prefácios.
Nessa pesquisa, destacou-se, por meio da análise das notas de rodapé, uma
característica fundamental da narrativa de Gilberto Freyre: o seu caráter dialógico
e o seu estilo coloquial. Poucos autores no mundo levaram tão a sério a idéia,
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posteriormente formulada por Rüsen, de que a racionalidade da narrativa histórica
é garantida pelo diálogo entre o historiador e seus pares. No seu texto,
principalmente nas notas de rodapé, Freyre conversa com uma infinidade de
autores. Por isso, sua obra é o melhor exemplo para mostrar como as notas de
rodapé contribuem para o reforço de argumentação do texto histórico.
Freyre, como um bom antropólogo, mostrou ser uma pessoa sem
preconceitos, como demonstra a sua famosa entrevista a revista Playboy, em março
de 1980, em que confessa uma experiência homossexual1. Do mesmo modo, como
intelectual, Freyre não se furtou a conversar com autores de diversas tendências
teórico-metodológicas, inclusive com autores marxistas, geralmente os mais
ferrenhos críticos de sua obra. Quando disserta sobre o peso do latifúndio
escravista na caracterização social do Brasil, Freyre não tem pudor de apoiar-se no
famoso livro de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, inclusive
elogiando com veemência a obra: E em um trabalho extraordinário, também se mostra de acordo com nossa interpretação e caracterização dos fatos de formação agrária da América Portuguesa o Sr. Caio Prado Júnior, ao destacar que na colonização portuguesa do Brasil o elemento fundamental foi “a grande propriedade monocultural trabalhada por escravos” [...] E ainda, em uma confirmação, para nós honrosa, da idéia esboçada por nós neste ensaio, desde 1933, sob forma do complexo casa-grande e senzala: ou do sistema patriarcal agrário, isto é, latifúndio, monocultura e trabalho escravo (FREYRE, 2006, p. 353, nota nº88).
Ao mostrar no texto, por meio do texto da nota, pioneirismo e afinidade de
idéias com o importante historiador brasileiro, Freyre adiciona ao texto autoridade
na sua argumentação, mostrando que a sua interpretação do passado brasileiro
não é solitária, nem descabida. Por outro lado, diálogo não significa concordância
nem discordância plena: pode-se concordar ou discordar em partes. Isso fica
evidente quando Freyre argumenta sobre a importância de se considerar a família
patricarcal como unidade básica da colonização brasileira e leva em conta as
admoestações de Caio Prado e Nelson Werneck Sodré sobre a dificuldade de se
constituir família no Brasil colônia em bases sólidas e estáveis (Freyre, 1996, p. 64,
nota 55). Ao levar em conta as considerações dos historiadores marxistas,
aparentemente contrárias ao seu argumento, Freyre é obrigado a sofisticar a sua
1 A entrevista está reproduzida no seguinte sítio eletrônico: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/vida/entrevistas/playboy.html
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argumentação, mostrando que o fato de haver poucas uniões matrimoniais formais
não significava a ausência de um forte sentimento de família. Para corroborar sua
tese, Freyre, nesta longa nota, cita exemplos empíricos (até os padres possuíam
famílias informais, era grande o número de crimes em defesa da família) e
estudiosos do assunto com idéias convergentes as suas (René Ribeiro, Donald
Pierson) e as observações de uma testemunha ocular, o Frei Plácido de Messina
que esteve em Pernambuco em 1842. Dialeticamente, num exercício retórico-
argumentativo, Freyre demonstra que a tese dos dois historiadores marxistas
sobre a fraqueza da família formal não invalida a sua da força da unidade familiar
na colonização brasileira.
O mesmo artifício é utilizado no diálogo com outro importante historiador
da geração de 1930, Sérgio Buarque de Holanda, em relação à predisposição ou
não do povo português para a agricultura. Holanda defende a tese de que os
portugueses eram mais mercadores do que agricultores. Freyre, por sua vez,
concorda em parte com seu colega, alertando somente para o perigo das
generalizações, uma vez que o povo português “tornou-se um dos fundadores da
moderna agricultura nos trópicos por meio de combinações de métodos e valores
trazidos da Europa com métodos e valores indígenas” (FREYRE, 2006, p. 350, nota
85).
Por outro lado, consegue-se também o reforço da argumentação por meio
da discordância com outros estudiosos do tema. Numa de suas notas, Freyre
dialoga com o historiador norte-americano Waldo Frank sobre quem era mais
europeu: o português ou espanhol. Para Frank, os lusitanos são mais europeus do
que os hispânicos, porque possuem uma fraca linhagem semítica e uma forte
linhagem gótica. Já a posição de Freyre é inversa: Pensamos exatamente o contrário: que o português sendo mais cosmopolita que o espanhol, é entretanto dos dois talvez o menos gótico e o mais semita, o menos europeu e o mais africano: em todo o caso o menos definidamente uma cousa ou outra.” (Idem, 1996, p. 55, nota 13).
É justamente na discordância que Freyre demonstra a sua melhor
capacidade argumentativa. Um “duelo” interessante foi com o brasilianista
Alexander Marchant, cuja obra Do escambo à escravidão, publicada no Brasil em
1943, que, utilizando informações do Tratados da Terra e Gente do Brasil, colocou
em xeque a tese de Freyre da má alimentação dos brasileiros na época colonial, ao
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afirmar que a alimentação dos baianos era rica em frutas e verduras. Freyre vai
demolindo o argumento contrário a uma das suas principais teses aos poucos:
primeiramente, ele aventa uma explicação vaga, sem forte base empírica: se houve então essa abundância desses e de outros produtos
destinados à alimentação, parece que foi por um curto período durante o qual os primeiros colonos da Bahia puderam combinar com a grande lavoura tropical, inimiga da policultura, seu velho gosto pela horticultura (Idem, nota 113).
Depois, como que reconhecendo a fragilidade do seu enunciado, Freyre
aprimora a sua argumentação, amparando-se agora em documentos empíricos: No princípio do século XVII, Salvador padeceria – é verdade que
concorrendo então para a escassez de alimentos a situação de guerra no norte – de falta até de farinha de mandioca, como indicam documentos recentemente publicados (Documentos Históricos do Arquivo Municipal – Atas da Câmara – 1625-1641). (idem)
No entanto, a argumentação ainda não é totalmente convincente, porque,
como o próprio Freyre reconheceu, trata-se de uma documentação referente a uma
época de exceção e que, por isso, não poderia ser generalizada. Então Freyre aplica
o seu golpe decisivo, desqualificando a obra de Fernão Cardim, que foi a base
sólida dos argumentos de Marchant: Do próprio Cardim, aliás, deve-se ter em contra – insistamos neste ponto – seu caráter de ‘padre visitador’, excepcionalmente bem recebido nas cidades e engenhos, do mesmo modo que com relação aos tratados de Gandavo devemos nos recordar, com o arguto Capistrano de Abreu, que eram de certo modo propaganda para induzir europeus a virem para o Brasil como colonos. (idem).
A estratégia final de Freyre foi utilizar Capistrano de Abreu,
reconhecidamente um mestre na crítica documental, para mostrar que a
interpretação do passado feita pelo brasilianista foi baseada numa fonte que
também não era confiável, porque retratava a exceção e não a regra geral.
Freyre foi pródigo no uso de notas de rodapé, porque a sua forma de
argumentar sempre levava em conta o trabalho de historiadores ou de outros
intelectuais de sua época ou de tempos mais remotos. Por exemplo, é comum dizer
entre os estudiosos da historiografia brasileira que praticamente ninguém lia
Manoel Bonfim1; pelo menos Gilberto Freyre leu, como revelam as notas 73 (idem,
p. 23, nota 73) e 138 (idem, p. 400, nota 138) que, respectivamente, demonstra
11 Sobre essa tese em relação a Bomfim, ler VENTURA e SUSSEKIND (1985), REIS (2003) e MAIOR (1993).
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uma leitura atenta de Brasil na América e América Latina: males de origem. Freyre
não se furta em conversar mesmo com historiadores “inatuais”: Varnhagen,
Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Paulo Prado, dentre muitos outros estudiosos da
história brasileira, poetas, literatos e pessoas comuns.
Desse modo, Casa Grande & Senzala foi um livro construído aos poucos.
Desde 1933, cada edição o autor foi incorporando cada vez mais notas para refutar
os críticos ou modificar o texto. Por exemplo, a nota 106 do capítulo 1 traz uma
longa digressão de Freyre sobre uma correspondência recebida de São Paulo, que
critica o emprego do termo “sistema” digestivo ao invés de “aparelho” como
“asneira”. Freyre capitula-se passando a utilizar o termo “aparelho” nas edições
posteriores, mas não antes de fazer uma erudita análise filológica do termo
“sistema” em inglês, grego e francês, e reclamar da aspereza do crítico: “Daí nos
parecer haver no mínimo lastimável exagero na qualificação da expressão ‘sistema
digestivo’ como ‘asneira’” (Idem, 1996, 76, nota 106).
Assim é o estilo de Gilberto Freyre: coloquial e despojado. Serviu-se de boa
parte de suas novecentas e sessenta e quatro notas de rodapé em Casa Grande para
dialogar com os pares, aprimorando a sua argumentação e a racionalidade do
texto. Mas as notas também serviam como arma para vencer e humilhar o
adversário. Se Rüsen disse que, no conhecimento histórico, vence aquele que tiver
o melhor argumento perante os pares, Freyre foi o protótipo do historiador-
argumentador.
Conclusão
Enfim, esta pesquisa visou basicamente mostrar a importância das notas de
rodapé na análise do texto historiográfico. Longe de serem mero apêndices do
texto, as notas têm uma função bastante importante dentro do conhecimento
histórico: elas são, por excelência, o local em que os historiadores podem dialogar
com seus pares e, assim, executar a proposta de Jörn Rüsen de utilizar o melhor
argumento na interpretação do passado, garantindo assim o mínimo de
racionalidade ao texto histórico.
Na obra principal de Gilberto Freyre, as notas de rodapé demonstram bem o
uso de notas de rodapé como reforço de argumentação. Essa constatação é
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importante porque depõe contra aqueles que consideram Casa Grande & Senzala
como um livro literário, ensaísta, repetitivo e sem metodologia. O livro possui os
três princípios da Matriz Disciplina de Rüsen que conferem cientificidadeà obra
histórica: conceitos e categorias, princípios de pesquisa e uma narrativa
fundamentada racionalmente, já que procura sempre depurar-se no diálogo entre
os pares para encontrar o melhor argumento.
No entanto, não se deve pensar que as notas de rodapé possuem apenas um
propósito racional em Freyre. Às vezes, elas são utilizadas, num monólogo, para
ilações discutíveis, como, por exemplo, a afirmação de que a colonização da
Amazônia brasileira só ocorreria com “O desenvolvimento e barateamento da
técnica de ar condicionado e de outras formas de domínio do clima pelo homem
civilizado” (, 1996: 57, nota 16). Além disso, a quase ausência de diálogo com os
intelectuais pioneiros da Universidade de São Paulo pode ser revelador de um
certo rancor de quem recebeu títulos e prêmios do exterior, mas foi preterido de
lecionar na primeira universidade do País. O que mostra que a função das notas
não é apenas argumentativa, mas também retórica.
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Entrevista
Entrevista realizada com o Professor Sérgio Da Mata, no – III Seminário de História da Historiografia: Aprender com a História? – No Dia 29/08/2009. Entre 12:30-14:00 H.Mariana-MG.
Daniele Maia Tiago; Flávio Silva de Oliveira e Frederick Gomes Alves. Graduandos em História pela. Universidade Federal de Goiás. Diretores da Revista de Teoria da História. E-mail: [email protected]
Revista de teoria: Professor, como o Flávio havia falado, nossos principais temas
são trabalhar alguns pontos relevantes da teoria da história, dentre esses, a
primeira pergunta que nós pensamos, uma vez que o senhor estuda e tem um
grande conhecimento sobre Weber, sobre historiografia alemã, de forma geral,
qual seria então a influência da historiografia alemã, principalmente do século XIX
e do século XX, na teoria da história do Brasil hoje?
Sérgio da Mata: Eu cheguei à Universidade justamente quando acabava o regime
militar, no ano de 1986. Estudei na UFMG, onde fiz tanto a graduação quanto o
mestrado. Para a maior parte dos que estudaram mais ou menos na mesma época,
essa presença alemã na verdade não existia. Sempre houve e ainda há uma
influência francesa muito forte. Sobretudo a influência da Escola dos Annales,
evidentemente. Mas é de certa forma natural que fosse assim, porque justamente
nessa época passa a haver mais obras disponíveis desses autores. Os nossos
professores tinham lido esses autores ainda em francês, mas o grande boom da
influência dos Annales se deu a partir da segunda metade da década de 1980. Nesse
sentido, a imagem que nós tínhamos dos autores alemães era uma imagem
invertida, ou melhor dizendo, era uma imagem filtrada pela recepção que os
autores alemães, seja historiadores, seja teóricos, tinham tido na França. E que era
quase uma não-recepção, porque entre os franceses há uma resistência em
aprender alemão. Há muito mais alemães que falam francês do que franceses que
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falam alemão, mesmo hoje em dia! Bom, o que isso significava na prática?
Significava que a nossa visão de historiografia alemã, por exemplo a de fins do
século XIX, que é a que mais me interessa, era um pouco deformada, sobretudo
porque a historiografia alemã foi bastante influente na França em um certo
momento. Nós sabemos que Michelet apreciava profundamente o trabalho de
vários autores alemães. Era, certamente, também um grande admirador de Vico.
Mas ele tinha uma grande admiração por Jacob Grimm. Suas Origens do direito
francês foram diretamente inspiradas pelas Antiguidades jurídicas alemãs de Jacob
Grimm. Se nós pensarmos na geração de historiadores franceses que criou a
revista histórica, a Revue Historique, boa parte deles tinha estudado na Alemanha.
Nas décadas de 1860, 1870, 1880, 1890, não havia dúvidas, na Europa, de que os
principais historiadores, os grandes historiadores – estavam na Alemanha. Ela era
o “grande laboratório”, nas palavras do próprio Gabriel Monod, um dos fundadores
da Revue Historique. O afastamento entre a historiografia francesa e a alemã se
inicia com a guerra de 1870. O grande impacto, porém, vem com a Primeira Guerra
Mundial. Isso afetou diretamente os jovens estudantes de história, entre eles
Febvre e Bloch, embora Bloch tivesse estudado na Alemanha. Bloch foi aluno de
Karl Lamprecht em Leipzig e do grande historiador e teólogo alemão Adolf von
Harnack, em Berlim. Eu quero crer que Bloch ainda continuou a manter uma
relação mais tranqüila com os alemães. Febvre não. Em Febvre a gente percebe que
a Primeira Guerra representou algo muito difícil, como havia representado para
um homem que ele admirava profundamente, Henri Pirenne. Pirenne era belga, e a
invasão da Bélgica pelos alemães foi algo que causou tremenda má impressão na
época. A Bélgica era um país neutro, e, enfim, essas relações políticas entre os
países acabavam impactando também as relações historiográficas entre as duas
margens do Reno. E é claro que com a Segunda Guerra Mundial esse fosso se
aprofundou ainda mais. Bom, então o que isso nos afeta, no Brasil? Isso nos afeta à
medida que a influência francesa, em especial a dos Annales, aumentou muito no
Brasil. Essa visão um pouco ligeira, rápida, superficial a respeito dos alemães se
consolidou entre nós. Eu me lembro muito bem que, quando da minha graduação, a
gente dizia assim: “história positivista do século XIX, escola histórica alemã, etc”,
quando na verdade isso significa uma simplificação grotesca, porque as grandes
obras sobre teoria do conhecimento histórico, as primeiras grandes obras, estavam
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sendo produzidas na Alemanha a partir da década de 1880: Dilthey em 1883, a
Historik de Droysen, Rickert, que lança o segundo volume da sua grande obra em
1902, os ensaios teóricos de Weber, que são do início do século XX, os trabalhos de
Eduard Meyer, enfim, houve um verdadeiro boom de reflexão teórico-metodológica
na Alemanha entre as décadas de 1880 e 1890. E a história participou ativamente
disso. Então, essa visão caricaturesca de uma historiografia positivista, como dizia
Febvre, que não queria saber das idéias, que não queria saber da teoria, não se
sustenta, pois se havia um país que estava adiante dos outros nesse aspecto era a
Alemanha. Infelizmente, este problema político-militar dos dois países acabou nos
atingindo indiretamente, porque prevaleceu entre nós uma visão um pouco
negativa demais da teoria da história alemã, isso no meu momento de formação. Eu
fui para a Alemanha em 1998, e, até aquele momento, posso dizer que eu não
percebia nenhuma grande diferença neste quadro. Continuava vigente aqui –
vamos dizer assim – um “paradigma” dos Annales, e em algum momento se somou
a influência italiana, vinda da micro-história. Mas quanto aos alemães, havia um
grande silêncio. Quando muito, líamos autores como Marx, às vezes a Escola de
Frankfurt, a qual tinha um impacto limitado, quase marginal, junto a nós
historiadores. Claro que Marx a gente tinha que ler na época, mas muita gente
nesse momento não estava tão próximo do marxismo. Quando voltei da Alemanha,
em 2002, senti uma diferença imensa. Uma coisa curiosa é que eu saí daqui num
momento que este diálogo estava sendo retomado. Comecei a ter contato com
esses teóricos alemães lá na Alemanha mesmo, sem saber o que estava
acontecendo aqui. Ao voltar, foi um verdadeiro susto. Já havia o Koselleck e
também o primeiro volume da triloga do Rüsen, traduzido pelo Estevão Martins.
Fica claro o quanto as traduções sempre são muito importantes, porque elas
disponibilizam para o público universitário autores que só um ou outro professor
conhece, ou que só um grupo que domina aquela língua conhece. Foi interessante
esse movimento. Eu me arriscaria a dizer, e já disse isso outras vezes, que há uma
retomada muito forte dessa influência alemã, no campo da reflexão teórica, em
história da historiografia e em teoria da história. E acho que os franceses vão
passar por um momento mais difícil agora. Acho que tende a haver uma certa
inversão, a não ser para aqueles autores franceses que dialogam diretamente com
os alemães.
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Revista Teoria: Paul Ricoeur...
Sérgio da Matta: Em Ricoeur isso é evidente. Ele começa como um estudioso da
fenomenologia de Husserl, depois caminha para o campo da hermenêutica, mas
nunca perdeu o pé com a tradição husserliana. É um nome muito importante.
Sempre foi um crítico dos Annales, crítico no sentido de “olha, eles são técnicos,
mas eles não fazem uma teoria do conhecimento histórico”. Ele diz isso claramente,
tanto que nunca foi muito citado pelos Annales. Quem levanta a bola de Ricoeur?
Foi um crítico dos Annales, o François Dosse. E, de certa forma, o François Hartog,
ao elaborar a idéia de “regime de historicidade”, está dialogando com Koselleck.
Para mim, claro, é motivo de satisfação. Na Alemanha, ninguém estuda apenas uma
disciplina na universidade, no sentido de que se você faz história então você só faz
disciplinas na área de história. Lá você tem que fazer as disciplinas sempre em três
áreas diferentes, e um mesmo número de disciplinas, embora uma dessas áreas
seja sempre privilegiada (a Hauptfach). Então, normalmente, o pessoal de história
faz muitas disciplinas de áreas afins: filosofia e sociologia, ou filosofia e estudos
literários. Isso tende a dar para eles um cabedal teórico maior do que o dos
franceses ou nós mesmos. Além do que é um país em que a tradição filosófica é
muito forte. Sem falar que um dos campos da reflexão clássica da filosofia alemã a
partir do século XIX é a história – não apenas a história como processo, mas a
história como disciplina. Eles têm uma situação privilegiada, e eu acho natural que
a gente estude esses autores.
Revista de teoria: O professor Rüsen enfatiza muito que foi na Alemanha que
surgiu essa discussão do processo de racionalização das disciplinas, de
institucionalização.
Sergio da Mata: Exato, essa institucionalização ocorre bastante cedo. A Historische
Zeitschrift – Revista Histórica, a mais antiga revista histórica acadêmica, tem seu
primeiro número editado em 1859, foi fundada por um aluno de Ranke, Heinrich
von Sybel. Isso acontece bastante cedo, e é evidente que tem um impacto. Significa
o quê? Não adianta um conjunto de pessoas produzirem um conhecimento original,
é importante que haja um aparato institucional que dê condições a essas pessoas
de continuarem trabalhando. Também contribuiu para isso o modelo de
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universidade de Wilhelm von Humboldt, a universidade ancorada em ensino e
pesquisa (embora isso já existisse na Universidade de Göttingen na segunda
metade do século XVIII). Muito cedo, na Alemanha, a universidade se tornou o
grande pólo de conhecimento. Não era o caso francês. No século XIX, muitos
grandes historiadores franceses não eram professores universitários. Eram
homens de Estado ou estavam em academias, não necessariamente em
universidades.
Revista de teoria: Nesse sentido professor, como seria, por exemplo, já que a
historiografia francesa, de certa forma, foi muito influente no Brasil e continua
influente. Como seria uma comparação de uma historiografia francesa com
Foucault e o estruturalismo e a historiografia alemã?
Sergio da Mata: Você pergunta se na Alemanha algum nome teve influência tão
forte quanto Foucault na França?
Revista de teoria: Não, mas uma comparação no Brasil mesmo, no sentido da
relevância das duas, por exemplo, a relevância de Foucault sendo de uma
historiografia francesa e a relevância da historiografia alemã.
Sérgio da Mata: Bom, é evidente que o que eu estou dizendo não significa que
alguns grandes nomes franceses não tenham se colocado. É uma coisa muito
interessante. Eu estudei na UFMG, um dos primeiros lugares aonde Foucault deu
aula no Brasil, onde ele esteve algumas vezes. O Brasil foi um dos primeiros países
a receber a obra de Foucault e a traduzi-lo muito imediatamente. Vocês sabem que
o seu primeiro grande comentador na língua inglesa foi um brasileiro. Um autor
que vivia ainda na minha época de graduação, o José Guilherme Merquior. Foi um
grande intelectual, um grande ensaísta brasileiro, e que era um diplomata de
carreira. A tese de doutorado dele é muito importante, sobre o pensamento
político de Weber e Rosseau. Ele foi orientado nada mais nada menos que por
Ernst Gellner. Bem, quando fui para a Alemanha, eu me surpreendi porque que eles
estavam começando a ler Foucault. É lógico que os grandes nomes o conheciam,
mas na universidade, como um fenômeno mais generalizado, era bem recente a
leitura de Foucault. Isso acontece um pouco, de certa forma, porque Habermas foi
um grande crítico de Foucault. E Habermas exerceu, em alguns momentos, uma
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influência quase imperial (no meu entendimento até negativa) na Alemanha. Eu fiz
uma referência indireta a ele na minha fala de ontem, como um sátrapa moral.
Habermas condenou muita gente ao ostracismo.
Revista de teoria: Uma forma de controlar o mercado alemão de publicações...
Sérgio da Mata: Controle do mercado de idéias, mais que pelo mercado editorial.
Ele exerceu esse poder várias vezes, contra várias pessoas como Hermann Lübbe e
Ernst Nolte. Em 1998 estourou uma grande crise entre um filósofo mais jovem,
mas influente, Peter Sloterdijk, que denunciou Habermas duramente por utilizar
seus contatos na imprensa a fim de deturpar o que Sloterdijk tinha escrito. Para
voltar a Foucault: na Alemanha, por causa dessa crítica a Foucault, Habermas
acabou influenciando um pouco negativamente demais. Eu não sou nenhum fã do
pensamento de Foucault, mas reconheço a influência e a importância de vários
livros que ele escreveu. A despeito disso, eu diria que há mais abertura dos
alemães para os franceses do que o contrário. Isso não é de hoje, acontece há muito
mais tempo – talvez com alguns momentos mais difíceis por causa das relações
nacionais. Alguns intelectuais que eu admiro particularmente sempre leram e se
fizeram influenciar por autores franceses. É curioso, os franceses sempre recebem
muito bem os alemães que criticam a própria Alemanha: Nietzsche é muito
evidente. Mas não só ele. É o caso do Norbert Elias, de toda a análise da sociedade
de corte, do processo civilizador, e no qual a corte francesa tem um papel muito
central. Mas quando se trata de um autor que mostra as entranhas do sistema
francês, aí eles não traduzem, por exemplo: há uma tese de livre-docência muito
importante de Lutz Raphael, sobre os Annales, e que não tem tradução até hoje na
França e seguramente não vai ter: Die Erben von Bloch und Febvre. Annales-
Historiographie und nouvelle histoire in Frankreich 1945-1980. Ele faz uma análise,
numa perspectiva sociológica, desta escola enquanto uma estrutura de poder. A
análise do Dosse o influenciou, mas ele foi mais fundo. Raphael vai utilizar um
referencial teórico que, paradoxalmente, é francês, que é o Pierre Bordieu. Alguns
nomes franceses chegam muito bem na Alemanha, e o Bordieu é um deles. Os
alemães têm um imenso respeito pela sua obra. Ele não estava muito aí para essa
coisa de “nós, os franceses”, ele dialogava com o pensamento norte-americano,
alemão, enfim.
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Revista de teoria: Ontem, na palestra do professor Rodrigo Sá Motta, ele falou que
toda produção historiográfica é voltada para os pares. Pessoalmente achei muito
interessante. E para o senhor, qual a funcionalidade dessa produção do
conhecimento histórico para a sociedade em si? Quais são os meios e até a gente
pensou no sentido de inclusão de elementos estéticos e retóricos e se eles
poderiam minar ou contribuir para a produção desse conhecimento enquanto
científico?
Sergio da Mata: Eu acho que as pessoas costumam ter uma posição muito taxativa
com relação a isso, no sentido que ou a história não pode ser “popular” ou a
história tem de ser estética: tem de valorizar o elemento de ornamentação do
texto. Na verdade não tenho nenhuma posição muito rigorosa em relação a isso,
porque acho que se trata de algo extremamente individual. Algumas temáticas com
as quais a gente trata são temáticas difíceis, e eu não tenho a menor pretensão de
que nós possamos fazer uma excelente teoria do conhecimento histórico querendo,
de antemão, ser populares. Simplesmente porque essa área suscita problemáticas
pelas quais o grande público não se interessa. Eu acho que se pode fazer uma
teoria da história para ser entendida por quem estuda história. E nem sempre é o
caso. Muitas vezes é o contrário: a legitimação de um teórico se dá pelo fato de que
ele não se faz entender. Então o grande barato é você “entender” alguém que é
inapreensível. O mito de alguns autores gira em torno do jargão que eles criam
para si próprios. Há outros autores que teorizam e fazem teoria do conhecimento
histórico sem jargão, de maneira que é profunda e ao mesmo tempo, se você estuda
história ou se tem algum conhecimento histórico, você lê aquilo e é capaz de
entender. Karl Popper dizia: “temos que escrever para sermos entendidos e não
para não sermos compreendidos”. Se alguma dificuldade advém, ela deve advir da
complexidade do objeto, e não do jargão que eu vou criar para tratar esse objeto. E
então, transpondo essa questão para a historiografia em si, eu acho que grandes
historiadores foram grandes estilistas, incontestavelmente. Febvre foi um deles,
Braudel foi um deles. Os franceses já têm essa inclinação por conta do imenso
prestígio que a literatura tem junto aos próprios franceses. Na França é uma
questão fundamental escrever bem, enquanto na Alemanha normalmente não era
assim – era fundamental ser “profundo”. Nietzsche criticou isso muito duramente
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em vários textos e eu acho que ele foi uns dos autores que, maravilhosamente,
atingiu as duas coisas. Isso não é uma obviedade: você conseguir ser profundo e, ao
mesmo tempo, escrever um bom texto do ponto de vista formal. É o caso de uma
geração filosófica alemã mais recente que, estava começando a estudar e a publicar
na década de 1920, e que fugiu tanto da hermenêutica quanto da Escola de
Frankfurt. Esse pessoal seguiu uma terceira via, agregada em torno de Joachim
Ritter. A ela pertencem dois filósofos que admiro tremendamente, Hermann Lübbe
e Odo Marquard. A forma como Marquard escreve é bárbara, ele filosofa de uma
maneira bem humorada. Seus livros são sempre curtos, densos e, ao mesmo tempo,
maravilhosamente bem escritos. Então acho que, na verdade, são falsas antípodas.
Esses autores acabam mostrando que a questão estética na história,
evidentemente, é um componente importante. Porque, no fundo, o que você está
fazendo – para retomar a idéia de Wilhelm Schapp – é contar uma história. Se
puder contar esta história de uma maneira atraente, tanto melhor. Eu sempre falo
para meus alunos “quer queiramos quer não, os grandes historiadores não eram
apenas grandes historiadores, eles eram grandes escritores”.
Revista de teoria: Pensamos na funcionalidade do conhecimento histórico para a
sociedade, e também para a própria academia, porque dentro da própria academia
às vezes não se reconhece a funcionalidade e a relevância da teoria da história, ela
é bem segregada, pelos menos lá na UFG reparamos que outros alunos de áreas
distintas, da medieval por exemplo, tem um certo receio com a teoria da história.
Sergio da Mata: São duas coisas, a primeira: a questão da relevância. A história
corresponde a várias funções sociais. Uma delas é a construção de identidades. Em
certo momento, se acontece algo diferente na minha vida, um dano qualquer, uma
perda, isso vai interferir na minha existência, e eu vou ser algo diferente depois
daquilo. Isso vale para as coletividades também, e o Lübbe explora isso muito bem.
Uma das funções centrais do conhecimento histórico é portanto a criação e
recriação identitária, individual ou coletiva. Esse é uma razão pela qual não vamos
deixar de produzir conhecimento histórico, nunca. Seja pelas mãos daquele
historiador autodidata, seja de um jornalista. Isso nunca vai deixar de ser
“consumido”, pois há uma demanda social constante. Mas, e quanto à relevância
para a nossa área? Qual é o risco de nós não refletimos sobre o nosso
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conhecimento? Falo isso como alguém que, na época da graduação, não tinha essa
percepção. Eu queria estudar história, mas: por quê se estuda a história? Como é
que a história é feita? Devo admitir que isso, em absoluto, não me interessava. É
evidente que as outras áreas estão interessadas em teoria e metodologia numa
perspectiva muito pragmática; “o que isso pode trazer para mim em termos
metodológicos, à práxis da pesquisa histórica?” O que não é ilegítimo. É natural que
alguém que se interesse por História da Mesopotâmia veja nossa área como um
meio. E é natural que aqueles que têm um pouco mais de interesse teórico vejam
em nossa área um fim em si mesmo. Nós queremos estudar a história da
historiografia e a teoria da história porque queremos entender melhor nossa
disciplina e, num certo sentido, fazê-la melhor. Os grandes historiadores – não vou
dizer todos – de certa forma estão atentos para que os teóricos dizem, sejam eles
historiadores ou não. Os Annales estavam atentos a isso, os grandes historiadores
alemães do final do século XIX não estavam de olhos fechados para que Dilthey ou
Rickert estavam dizendo. Mesmos aqueles mais historicistas, no sentido mais
tradicional, mais convencional. Tudo depende também de uma certa cultura
filosófica da comunidade de historiadores. Diria que a nossa cultura filosófica é, em
comparação com outras, relativamente pequena, embora eu ache que isso esteja
mudando muito! A grande crise dos anos 1990, pós-modernismo, “acabou a
história”, Fukuyama, tudo aquilo criou um grande vazio, e todo grande vazio tem
de ser preenchido. As pessoas passaram a se preocupar mais com a teoria do
conhecimento histórico. Então acho que esse quadro está num processo de
mudança. Essa nossa conversa, com alunos de graduação, nunca aconteceria antes
de meados dos anos 1990. Isso era muito restrito a pelos menos um departamento
de história no Brasil, que era o da Puc-Rio, ou a problemáticas específicas do
campo marxista. Alguns dos grandes nomes, como é o caso de Estevão Martins,
estavam relativamente isolados. Igualmente, demos um passo extraordinário, com
a criação da Associação Brasileira de Teoria da História e História da historiografia.
Voltamos à questão institucional: não basta um grupo de pessoas terem boas
ideias, você tem que agregar estas pessoas. O que, diante das agências
fomentadoras, cria um elemento novo, e a sua área passa a ter um peso diferente
junto a outras que estão muito mais organizadas. Nós estamos vivendo um
crescendo, e eu fico satisfeito de estar vivendo isso.
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Revista de Teoria: Interessante todos os elementos que o professor citou, tanto
de Teoria da História quanto de História da historiografia, que apesar de não ser a
mesma coisa, são indissociáveis.
Sérgio da Matta: Acho que aqui no Departamento de História da UFOP a gente
vive uma situação muito feliz, talvez única, de ter quatro professores trabalhando
na área, e agora com a chegada do quinto que é o Mateus Pereira. Uma coisa
importante que aconteceu aqui, e que não acontece em outros lugares, foi a
distinção das disciplinas uma das outras, as disciplinas da graduação.
Normalmente, em metodologia da história, o professor tratava um pouco de tudo:
história da historiografia, métodos, teoria do conhecimento histórico. Aqui nós
distinguimos as disciplinas, nós diferenciamos mesmo. O responsável por História
da Historiografia Geral vai trabalhar com historia da historiografia, e a disciplina
Teoria da História, dada mais adiante, trata da teoria do conhecimento,
hermenêutica etc. E metodologia da historia vai tratar realmente dos métodos.
Quando eu cheguei à UFOP, existia a disciplina de Historiografia brasileira mas não
existia (o que é muito comum na maior parte dos cursos de história) História da
historiografia geral. Então nós criamos esta disciplina, porque é como estudar
História do Brasil sem ter noções de História Moderna. Acredito ser uma tarefa
para as outras instituições, para aqueles professores que estão lá, promover, fazer
uma reforma do currículo, que não é uma coisa tão complicada assim e estabelecer
mais claramente o escopo das disciplinas. Mesmo os alunos que não têm interesse
na área de história da historiografia ou de teoria da história ganham com isso.
Revista de Teoria: De certa forma facilita para a compreensão daquilo que está no
momento tem uma diferenciação clara do que é teoria da historia e metodologia da
historia.
Sergio da Mata: É evidente, acho que aqui no departamento, nossos colegas têm
muita consciência que não se trata de fagocitar as outras áreas; nós não queremos
isso, não. Podemos estar a serviço de outras áreas.
Revista de teoria: Quando o senhor fala da pós-modernidade, e é um problema
que a gente teve até com o professor Pedro Caldas, que é a caracterização do que
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vem a ser o pós-moderno e o moderno e a interferência desses dois conceitos hoje
na teoria da historia.
Sergio da Mata: Eu acho que o conceito de pós-moderno é um conceito
epistemologicamente fraco. Ele é um label, uma marca, mais que um conceito. Eu
não acredito que nós entramos em um novo tempo, uma nova era. Incertezas já
houve antes. Uma grande era das incertezas, por exemplo, é o final do século XIX e
início do século XX. Com Henri Bergson na França, de certa forma com o próprio
Dilthey na Alemanha. Houve toda uma corrente chamada “filosofia da vida”, a
Lebensphilosophie, no início do século XX, e que se tornou ainda mais forte depois
da Primeira Guerra, e que vai se dar em um Oswald Spengler. Quer dizer: é próprio
da sociedade moderna viver crises recorrentes de seus sistemas de pensamento.
Thomas Luckmann e o Peter Berger mostram em Modernidade, pluralismo e crises
de sentido que, na verdade, nós continuamos a viver numa era moderna. Porém,
como entender a modernidade? O que a caracteriza? Ela é uma época de
pluralização crescente: pluralização dos sistemas de referência, de sistemas
intelectuais, de formas de teorizar o mundo, e cujas crises se dão exatamente por
excesso de ofertas no mercado de idéias. Quando há excesso de oferta a grande
questão é da busca por orientação: “Pra que lado eu vou? Qual a melhor opção
metodológica? Qual a explicação é a mais adequada?” Na década de 1990,
sobretudo por causa de alguns elementos macro-históricos (queda do socialismo,
etc), acirrou-se a sensação dessa grande crise epistemológica. Mas no meu
entendimento tal crise não é exclusiva da nossa época, não é definitiva, e
provavelmente haverá outras. Estou me baseando muito na visão de Berger e
Luckmann, a qual eu partilho, claro. Portanto não acredito no conceito de pós-
modernidade, no sentido mais “denso” que a palavra possa vir a ter. Mas acredito
que a crítica de vários autores que se identificam como pós-modernos teve a sua
importância porque ela se colocou num momento em que as ciências humanas
estavam engessadas em grandes sistemas interpretativos, que eles chamaram
“grandes narrativas”, e que, num certo momento, tiveram um efeito reducionista,
não há duvida. A crítica pós-moderna teve um efeito importante, mas que não é
sem precedentes. Se vocês lerem o trabalho desse pessoal da “filosofia da vida”, do
início do século XX na Alemanha, ou mesmo na França no mesmo período –
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Bergson – vocês vão perceber esse mesmo tom iconoclasta. Mas que volta e meia
tem que acontecer para oxigenar um pouco, digamos assim, o campo intelectual.
Revista de teoria: Nesse sentido, e aí é seguindo Ankersmit, a pós-modernidade,
isso que se conceitua como pós-modernidade, seria o historicismo levado ao
limite? Uma crítica historicista ao limite?
Sergio da Mata: Então para quê falar em pós-modernidade, é o historicismo! É
uma retomada.
Revista de teoria: É uma volta.
Sergio da Mata: Ernst Troeltsch já colocava isso no início do século XX. Eu acho
que não há grande originalidade no pós-modernismo. Se você desce à essência do
fenômeno, é apenas um vocabulário novo para velhas idéias. Não estou dizendo
que a crítica deles não teve relevância, ela o teve em alguns momentos, devido a
uma certa... a um excesso de otimismo cientificista na nossa disciplina. Na época
que eu fiz a graduação, a maior parte dos livros terminava com uma série de
tabelas, queriam quantificar a história. Então, havia essa leitura muito quantitativa,
algo que já está realmente superado, embora, em algumas áreas, possa ser
necessário. Quem trabalha com demografia histórica não pode escapar disso. Mas
houve deturpações enormes. Um autor francês, Pierre Chaunu, tem um livro sobre
La Mort à Paris. XVIe, XVIIe et XVIIIe siècles que usa métodos quantitativos de uma
maneira muito mecânica, quase grotesca. Determinados fenômenos são de
natureza qualitativa. Estamos falando de mentalidades, de subjetividades, ou de
intersubjetividades ao longo do tempo. Quando eu tenho resistência ao pós-
modernismo ou o quê se diz ser pós-modernidade, eu tenho resistência a algo de
que falei ontem: essa visão de grandes rupturas na história, de que vivemos em um
tempo definitivamente novo. Isso não passa de um frisson profético. Existe na vida
social algo que se chama “instituições”, e que tendem a ordenar a vida social.
Situações de relativa mudança, de crise, etc, sempre vão se colocar, mas
imediatamente a própria sociedade produz mecanismos para restabelecer um
certo equilíbrio, uma certa ordem.
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Revista de Teoria: O ponto interessante é que o Sergio Paulo Rouanet fala em As
Razões do iluminismo quando ele cunha o conceito de neomodernidade, no sentido
de que ele está querendo caracterizar justamente as novas apropriações do que foi
considerado como modernidade. Ou seja, prevalecendo tanto as continuidades
além dessa ruptura que caracteriza a pós-modernidade e também vão romper com
que foi a modernidade, é interessante perceber em sua fala essa busca de
continuidade além de rupturas.
Sérgio da Mata: Qual que é o drama do historiador? A história, tradicionalmente,
foi e é compreendida como a disciplina da mudança. A partir de um certo
momento, sobretudo por causa do contato com outras disciplinas das ciências
humanas, percebeu-se que era importante dar atenção aos fenômenos que não
mudam tão rápido, que resistem mais a mudar – não só por causa de Braudel. A
história é, sempre, essa mistura de processos de transformação com dimensões da
vida social que demonstram uma longevidade maior. Para comentar o que você
falou, acho que o frisson pela mudança e pela grande ruptura pode ser um
problema, da mesma maneira que uma certa obsessão pela permanência também o
pode ser. Cabe ao historiador buscar o equilíbrio.
Revista de teoria: Nesse sentido professor, você acha que é possível pensar uma
nova filosofia da história, no sentido de que, por exemplo, o Rüsen faz com a
Antropologia Histórica Teórica, com as constantes antropológicas? Acredita que
seja um caminho viável, um ponto de tensão entre tantas rupturas e tantas
continuidades? De buscar uma orientação no tempo?
Sergio da Mata: Eu acho que essa tentativa existe. Mas isso marcou também a
geração do Rüsen, não na época em que ele estava começando, mas na década de
1970 e 1980. Na Alemanha, a antropologia filosófica se tornou quase uma
coqueluche, mas isso não teve qualquer impacto na França, não teve a menor
influência na França e nem nos EUA. Eles têm horror à antropologia filosófica. Mas
na Alemanha vários autores importantes, e eu me filio a alguns deles, não
conseguem pensar a dinâmica social desconectada de constantes antropológicas, e
isso marcou as ciências humanas como um todo na Alemanha num certo instante.
Apesar de Heidegger sempre ter-se dito contra a antropologia filosófica, esta
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corrente acabou tendo muita influência por lá. Iser foi buscar uma estrutura
antropológica dos gêneros literários, Luckmann fez o mesmo para as formas de
religiosidade, da mesma maneira que o Rüsen no âmbito do conhecimento
histórico. É sempre um jogo arriscado porque se está sempre sujeito a
contestações, a outras visões a respeito do que essas constantes viriam a ser. No
entanto, é o que torna a coisa interessante. Não sei se eu concordo com as soluções
que Rüsen apresenta, quando ele busca essas constantes. Eu procuraria outro
caminho. Me seduz mais o pensamento do Wilhelm Schapp.
Revista de teoria: Pensamos na questão do Weber, quando ele fala do método
compreensivo, e gostaríamos de saber qual a relação entre esse método
compreensivo dele e a hermenêutica contemporânea de Gadamer, que não
sabemos se se poderia ser enquadrado em um método compreensivo. Quando falo
em compreensivo penso mais em Dilthey, então há aí uma relação entre o método
de Weber e de Gadamer?
Sergio da Mata: Olha, verdade seja dita, Weber só incorpora essa preocupação
hermenêutica relativamente tarde. As pessoas são levadas, erradamente, a
acreditar que isso está cedo no trabalho dele por conta de traduções, porque ele
usa muito o termo Bedeutung naquele famoso ensaio sobre objetividade, só que
quando Weber fala em Bedeutung ele não está falando em sentido e sim em
importância. O termo Bedeutung pode significar sentido, o sentido de algo – “Was
bedeutet das?” – quanto pode significar também a importância de algo. Quando usa
o termo nos seus primeiros ensaios teóricos, ele está mais ligado a Rickert, está
querendo pensar por que alguns objetos se tornam importantes para o historiador
e por que outros não. A questão inicial do Weber era essa, e era aí que Rickert
entrava. O Weber tardio, a partir da década de 1910, começa a estabelecer esse
diálogo com Dilthey. Isso se deu tarde por alguns motivos. Primeiro, ele era muito
próximo de Rickert. E Rickert não tinha nenhuma simpatia pelo trabalho de
Dilthey. A importância de Dilthey se coloca de uma maneira muito grande nesse
início do século XX. Ele passa a ser mais referencial do que o próprio Rickert,
porque Rickert escreveu muito para os historiadores, e Dilthey escreveu para as
ciências humanas. Quando Weber passa a falar em “sociologia compreensiva”, isso
se dá tarde na sua carreira. Em segundo lugar, o que Weber escreveu sobre
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compreensão é pouco, e é relativamente ruim em comparação com o que outras
pessoas estavam fazendo, por exemplo o próprio Dilthey e Georg Simmel. Quem
colocou isso à mostra de uma maneira muito evidente foi Alfred Schütz. Num livro
de 1932, Der sinnhalfte Aufbau der sozialen Welt, ele tentou articular Weber e
Husserl. O que Schütz vai mostrar é o seguinte: Weber não tem uma teoria da
compreensão dos fenômenos sociais e, a este respeito, está cheio de contradições.
Schütz vai tentar refazer o que o Weber começou a fazer e não fez. Na verdade, é
curioso que hoje em dia Weber seja muito festejado por ter iniciado a sociologia
compreensiva, mas ele compreendia menos a compreensão do que Simmel, por
exemplo. Como se criou o mito “Max Weber”, ele acaba sendo superestimado num
aspecto que está longe de ser sua contribuição principal. Se você olhar em volta,
percebe que havia gente fazendo isso melhor do que ele. Como Simmel, que, nesse
sentido, era muito mais poderoso na força intuitiva.
Revista de teoria: Por fim, pensamos em um último tópico, que seria a virada
lingüística, que o senhor já citou que é Habermas, e ele identifica duas linhas que
hoje conhecemos por virada lingüística, seria a de Wilhem Humboldt e a de Frege.
Gostaríamos de saber então, como o senhor percebe essas duas linhas distintas de
análise da linguagem para a produção do conhecimento histórico?
Sergio da Mata: Há quem diga que a virada já virou. Há um artigo de Hubert
Knoblauch chamado Das Ende der linguistischen Wende, (“O fim da virada
lingüística”). É claro que há influência muito forte de um Rorty, que acabou muito
difundido no Brasil bem como de alguém que estava ligado a ele que é o Hayden
White. A idéia de que a linguagem constitui a vida social de certa forma trivial, uma
vez que não há vida social sem alguma forma de linguagem. Mas usar a linguagem
como uma chave para compreender tudo na vida social me parece limitador. Creio
que um outro conceito, talvez mais denso, é o de comunicação. Até do ponto de
vista da morfologia da palavra: comunic/ação é uma forma de agir no mundo.
Quem se comunica não apenas emite sinais, ele age, ele interfere na esfera da
existência ou da vida social. Pelo menos três pensadores muito influentes
adotaram o conceito de comunicação como central. Habermas, na sua “teoria do
agir comunicativo”, Niklas Luhmann, em sua “teoria dos sistemas”, e o próprio
Luckman, que elaborou uma sofisticada teoria dos gêneros comunicativos. É claro
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que há distinções fortes entre os três autores, mas o conceito-chave aí não é
“linguagem”, é algo mais complexo. Porque a comunicação também se dá por meios
miméticos. Se, por exemplo, o telefone de seu colega toca durante a aula e o pessoal
já olha, percebemos que este ato comunicou algo, embora não se trate de uma
linguagem do ponto de vista formal. A linguagem é sumamente importante, é
lógico, mas existe também o que está além da linguagem, uma vez que há formas
de interferir na vida social comunicando algo sem fazer uso da linguagem do ponto
de vista restrito. Eu acho interessante o que os teóricos da virada lingüística dizem,
mas acho um pouco ligeira demais a idéia de que os historiadores vão resolver
seus problemas centrais através de uma abordagem lingüística, que veja na
linguagem o alfa e ômega da análise histórico-social.
Revista de Teoria: Nós queríamos agradecer por ter tomado seu tempo e pela
oportunidade da entrevista.
Sérgio da Mata: Eu é que agradeço.