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    22/03/2016 ConJur - Lins e Silva Jr.: Cidadania condenada, em segunda instância, pelo STF

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    OPINIÃO

    19 de fevereiro de 2016, 18h00

    Por Délio Lins e Silva Júnior

    Dia 17 de fevereiro de 2016, pouco mais de dez anos após o julgamento do HC

    85.209, de relatoria do ministro Marco Aurélio, realizado no dia 17/11/2005 na

    1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento foi referendado

    pelo Plenário daquela corte em 2009 nos autos do HC 84.078, de relatoria do

    ministro Eros Grau, (com alguns poucos percalços no caminho, é verdade) vem

    o julgamento do HC 126.292 por aquele mesmo Plenário, onde denegada a

    ordem por maioria de 7 votos contra 4.

    O que de comum entre eles? O tema. A discussão de quais seriam os limites do

    Princípio da Presunção de Inocência (e não se admite aqui chamá-lo de não-

    culpabilidade, pois o texto constitucional é claro) e em que momento se

    poderia dar início ao cumprimento da pena criminal imposta pelo Estado.

    O que de diferente entre eles? A interpretação dada ao princípio, pois,

    enquanto naquele julgado de 2009 se consagrou que até o trânsito em julgado

    de sentença penal condenatória não se poderia dar início ao cumprimento da

    pena, neste último se deu uma guinada total de entendimento e passou-se a

    chancelar que os tribunais de segundo grau do país determinem o imediato

    encarceramento daqueles condenados que tenham suas sentenças

    confirmadas por uma segunda instância.

    Segundo o que divulgado pelos sites de notícias (infelizmente este que vos

    escreve estava em audiência quando do julgamento e não teve como assistir a

    sessão), as justificativas dos votos que rasgaram a cláusula pétrea insculpida

    no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, giraram em torno de que “osrecursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam adiscutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito” (ministro Teori Zavascki

     – relator); que “sobre a possibilidade de se cometerem equívocos, o ministrolembrou que existem instrumentos possíveis, como medidas cautelares e mesmo

    Cidadania condenada, em segunda instância,pelo Supremo Tribunal Fedeal

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    o habeas corpus. Além disso, depois da entrada em vigor da EmendaConstitucional 45/2004, os recursos extraordinários só podem ser conhecidos e

     julgados pelo STF se, além de tratarem de matéria eminentemente constitucional,apresentarem repercussão geral, extrapolando os interesses das partes”(ministro Teori Zavascki – relator); que “a condenação de primeiro graumantida em apelação inverte a presunção de inocência”. (ministro Barroso aoseguir o relator); “o que estou colocando é que é preciso que vejamos a

     presunção de inocência como um princípio relevantíssimo para a ordemconstitucional, mas suscetível de ser conformado, tendo em vista inclusive ascircunstâncias de aplicação no caso do Direito Penal e Processual Penal” (Gilmar Mendes, citando o direito alemão para seguir o relator); e, pior,

    “quando uma interpretação constitucional não encontra eco no tecido social,quando a sociedade não a aceita, ela [a interpretação] fica disfuncional. É 

     fundamental o abandono dos precedentes em virtude da incongruência social”.

    Com todo o devido respeito a esses eminentes ministros, nenhum dos

    argumentos é novo e a discussão acerca do Princípio da Presunção de

    Inocência não vem de hoje, e nem se prende ao nosso país.

    Nesse ponto, convém que se faça um rápido escorço histórico lembrando o país

    que, embora não seja o berço do citado princípio, é o que mais trouxe luz aos

    debates sobre o tema ao longo da história — Itália —, para demonstrar que sua

    interpretação e limites de atuação foi alvo constante de inúmeras celeumas e

    alterações substanciais, sempre de acordo com as conveniências históricas de

    cada época.

    No século XVIII, Beccaria transformou-se no divisor de águas entre o processo

    penal nitidamente inquisitório então reinante e uma nova corrente de

    pensamento, essencialmente liberal, que trazia o respeito à dignidade humana

    como premissa básica. Sua brilhante e sempre atual obra — Dos Delitos e das

     Penas1 — transformou-se no marco inicial da luta contra o sistema inquisitórioentão reinante na Europa, e, consequentemente, para o desenvolvimento da

    ideia de presunção de inocência.

    Com Beccaria, surgiu no direito penal europeu um pensamento de cunho

    essencialmente liberal, de clara influência iluminista, que trata a dignidade

    humana como valor essencial aos cidadãos. Para o referido autor, o mais

    importante não poderia ser provar a existência do delito de qualquer forma,

    mas garantir que essa prova se desse de forma a preservar a dignidadehumana e não deixar dúvidas acerca da culpabilidade do acusado.

    Foi quando ganhou força a Escola Clássica Italiana, que tendo Carrara como

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    principal expoente, entendia o processo penal como possuidor de uma dúplice

    função. Para seus seguidores, embora o processo penal devesse castigar os

    criminosos, não poderia esquecer-se de evitar que fossem condenados os

    inocentes.[2] Assim, nas palavras de seu líder, “o direito é a liberdade. A

    ciência criminal bem entendida é, pois, o supremo código da liberdade, que

    tem por objeto subtrair o homem da tirania dos outros e ajudá-lo a livrar-se da

    tirania de si mesmo e de suas próprias paixões”.

    Seguindo tal linha de raciocínio, depreende-se que a concepção de direito

    processual penal, para Carrara, tratava a presunção de inocência como um

    pilar de sustentação a ser respeitado como pressuposto destinado a garantir

    que o cidadão seja protegido frente à pretensão punitiva estatal, assegurando,

    por um lado, que um inocente não seja castigado, e, por outro, que o culpado

    não seja apenado além dos limites necessários.

    Aí vem a Escola Criminal Positivista de Ferri, para quem o Princípio da

    Presunção de Inocência não poderia ter o caráter absoluto que lhe era dado

    por Carrara e seus adeptos, sob pena de gerar uma perigosa inoperância no

    sentido de refrear a criminalidade, pois dava aos cidadãos excessivas

    garantias.

    Com isso, para ela o processo passou a ser dividido em duas fases. Uma

    primeira destinada a comprovar a efetiva culpabilidade do delinquente emtermos físicos. Nesta fase, que englobava a instrução e os debates de

     julgamento, Ferri entendia que a presunção de inocência deveria ser

    respeitada, pois todos os cidadãos devem ser “honrados” até prova em

    contrário; e uma segunda, onde não mais deveria prevalecer a presunção de

    inocência, com o escopo de analisar o delinquente do ponto de vista

    antropológico, a fim de determinar a pena mais corretamente cabível ao caso

    em apreço. Segundo tal concepção, a sentença condenatória de primeiro grau

    seria o marco final de validade da presunção aqui tratada.

    As mais contundentes críticas dirigidas ao princípio da presunção de inocência

    nos termos propostos pela Escola Clássica, porém, foram provenientes da

    chamada Escola Técnico-Jurídica, especialmente Manzini, para quem a função

    primordial do processo penal se traduz em tutelar o interesse social de

    repressão à delinquência. Os interesses sociais e individuais de liberdade,

    portanto, foram por ele relegados a um segundo plano, não fazendo sentido se

    presumir a inocência.

    Manzini advogava a tese pela qual o importante no processo penal é

    comprovar a pretensão punitiva estatal em cada caso concreto. Realizando tal

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    função de comprovar a certeza da culpabilidade estariam, consequentemente,

    sendo tuteladas as liberdades individuais e vedados os possíveis arbítrios por

    parte dos órgãos estatais.

    Esse rápido passeio histórico foi feito aqui única e exclusivamente para

    demonstrar que o que se vê hoje é a mesma discussão que se arrasta há

    séculos. O que se fez no julgamento do HC 126.292 nada mais foi do quereeditar a antiga guinada de Carrara a Ferri e, quiçá (só o tempo dirá) a

    Manzini.

    O que preocupa, contudo, são as vias tortas, a forma açodada de fazê-lo, o que

    coloca em risco anos de maturação do garantismo penal que vem a cada dia

    perdendo mais espaço nos julgados ao redor do nosso país.

    O tema é (e como vimos sempre foi) atual e de suma importância, tanto é quefoi regulamentado em vários instrumentos internacionais, desde a Declaração

    dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 — “todo acusado é considerado

    inocente até ser considerado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo,

    todo o rigor desnecessário à guarda de sua pessoa deverá ser severamente

    reprimido pela lei.”; passando pela Declaração Universal dos Direitos

    Humanos — “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser

    presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido comprovada de

    acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradastodas as garantias necessárias a sua defesa” —, dentre outros.

    O nosso constituinte originário de 1988, seguindo a tendência mundial, fez

    constar em nossa Carta Magna cidadã o princípio, porém, o fez de forma ainda

    mais expressa que as demais previsões, consignando que “ninguém seráconsiderado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

    Em verdade, o nosso legislador constituinte tinha, claramente, a opção deseguir o Princípio da Não-Culpabilidade (aí, sim, com a denominação correta)

    insculpido nos tratados internacionais citados acima, mas não o fez

    propositalmente.

    Nossa Constituição é explícita ao firmar o trânsito em julgado como marco

    inicial do cumprimento de uma reprimenda criminal, diferentemente de todos

    os outros instrumentos internacionais citados pelos eminentes ministros para

     justificar a “inversão” da presunção de inocência após o julgamento desegunda instância, que se limitam a afirmar que até provada a culpa se

    presume a inocência sem, no entanto, dispor em que momento se prova a

    culpa, deixando isso a critério do legislador infra-constitucional.

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    E diga-se o mesmo também em relação a todas as demais “ grandesdemocracias” do mundo, onde não se lê em seus regramentos qualquer textosimilar e tão expresso.

    Certo ou errado? O Brasil é, como alguns questionam, o único país certo do

    mundo nesse ponto? Não é essa a questão.

    O momento em que gerada a nossa Carta Magna demandava muito cuidado,pois vínhamos de uma época sombria da nossa história e, como a Escola

    Clássica Italiana, precisávamos frear os abusos do Estado por meio de um

    sistema penal que tivesse o Princípio da Presunção de Inocência como base

    angular. Tinham os nossos legisladores a missão de afastar os fantasmas do

    período ditatorial do qual saíamos e, com isso, a Presunção de Inocência foi

    tratada com um carinho todo especial.

    Talvez até o atual momento do país deva nos levar a uma nova reflexão, no

    sentido de avaliar se a nossa Constituição Federal está certa ou não em exigir o

    trânsito em julgado para a configuração final da culpa, pois ponto comum

    entre todos os operadores do direito é que o nosso sistema penal não funciona

    bem; (para ninguém, pobre, rico, homem, mulher, branco ou preto) que a

    corrupção é um mal a ser extirpado da nossa sociedade; que a população está

    no limite da tolerância; que a impunidade beneficia os maus; enfim, que

    precisamos de mudanças em todos os setores.

    Mas uma mudança tão radical de paradigma tem que ser feita com muito

    cuidado, bem pensada, dentro dos estritos limites legais e pensando em todas

    as consequências, afinal de contas, os fins não justificam os meios e o direito

    penal nunca será a salvação para os males da nossa sociedade.

    E nesse ponto, existe uma gritante e fundamental diferença entre o Brasil e os

    “demais países” do mundo a ser levada em consideração: a existência no textoda lei maior, inserida no rol de cláusulas pétreas, teoricamente imutáveis, umexpresso condicionador ao início de cumprimento da penalidade penal — o

    trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

    Nesse condicionador, com a devida vênia, não existem espaços interpretativos.

    Trânsito em julgado é (e sempre será) trânsito em julgado e enquanto a

    Constituição Federal disser que esse marco deve ser superado para se dar

    início a uma reprimenda penal, assim deve ser, sob pena de se rasgar uma

    cláusula pétrea sem o menor pudor. Tal previsão não existe por mero

    capricho, mas sim por sabermos que mesmo nas matérias de direito discutidas

    nos tribunais superiores pode se chegar à absolvição de determinada pessoa.

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    Os anseios populares devem ser ouvidos, sim, mas pelas nossas casas

    legislativas. O Poder Judiciário não pode pautar sua atuação pelo clamor

    social, mas sim pelas leis existentes e vigentes em nosso ordenamento jurídico.

    O “eco no tecido social” não pode ser míope e mudar de acordo com asconveniências de cada composição que a nossa Suprema Corte venha a ter.

    A partir de hoje não se assustem se os demais incisos do artigo 5º, da nossaConstituição Federal, passarem aos poucos a serem mitigados de forma

    expressa e descarada, pois o aval para isso foi dado pelo Plenário da nossa

    Suprema Corte, numa torta interpretação do que não é interpretável.

    Se o que se pretende é acabar ou modelar o Princípio da Presunção da

    Inocência, que se altere a Constituição e assim o faça, mas pelos meios

    próprios, sem rasgar a nossa Constituição Federal e suprimir garantias

    fundamentais tidas como irrevogáveis.

    Conclui-se dizendo que se ao Supremo Tribunal Federal cabe o último erro,

    nesta quarta-feira (17/2) realmente foi, como disse o ministro Marco Aurélio,

    uma “triste tarde” para aquela corte e para o país.

    1 Giorgio Marinucci define referida obra como uma “obra genial, elegante na

    forma, sugestiva na linguagem, desenvolta e agradável na exposição,

    convincente e impressionante na sua eficácia”. Escrita no século XVIII, essarevolucionária obra tratou de aspectos hoje sedimentados do direito penal,

    mas que à época consistiam em verdadeiras “heresias” contra o sistema.

    Falava Beccaria em abolição da tortura e da pena de morte, tratava a pena com

    uma função de prevenção, sob um aspecto ligado à necessidade e

    proporcionalidade, além de impor limites à atuação estatal no exercício do ius puniendi. MARINUCCI, Giorgio. Cesare Beccaria, um nosso contemporâneo. InBECCARIA, Cesare., Dos delitos e das penas, edição da Fundação Calouste

    Gulbenkian: Lisboa, 1766, pág 32 e ss.

    2 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal, parte geral,

    volume 1, Campinas: LZN Editora, 2002, pág 292.

    Délio Lins e Silva Júnior é advogado criminalista, professor Universitário e ex-

    conselheiro da OAB-DF. Especialista em Direito Penal Econômico, mestre e

    doutorando em Ciências Jurídico-Criminais, todos pela Faculdade de Direito da

    Universidade de Coimbra.

    Revistaonsultor Jurídico

    , 19 de fevereiro de 2016, 18h00