Confissões de um Vira-Lata - Orígenes Lessa

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Orgenes Lessa Prmio Mrio de Andrade, 1975 Confisses de um Vira-Lata Maria Eduarda, Maria Joo e Maria Alexandra O. L.Uma Raa Ofendida Cachorro! Cachorro ordinrio! Seu cachorro! Eu no conheo insulto maior. No aos homens, aos ces. Porque os homens, nas suas rivalidades e lutas, em suas brigas constantes (raa mu ito dividida...), sempre escolhem os piores, entre eles, para chamar de cachorro ... curioso. Por uma razo que eu desconheo, os homens sempre se comparam aos bichos. s vezes, tomando o nome deles. Tenho conhecido pessoas sem conta que buscam, entre os animais, o sobrenome. So inmeros os Pintos, os Lees, os Lobos, os Coelhos, os Gaios, os Gatos, os Carneiros, os Raposos. Nunca entendi muito essa mania, to comum na humanidade. Que algum se chame de Lobo ou Leo, eu ainda compreendo. von tade de se fazer passar por valente ou temvel. Mas que outros se chamem de Pintos ou Coelhos (e eu soube de uma famlia Pinto Coelho), no me entra na cuca. Esbarrei uma vez com um menino lourinho. A famlia dele se chamava Formiga. Gente, com certeza, que pretendia ter a constncia, a operosidade, a teimosia desse bich inho danado. Conheci um cara que se assinava Lus Bezerra. Por que Bezerra e no Bezerro, nunca percebi. Contradies do bicho-homem... De qualquer maneira, sobrenome de bicho sempre uma homenagem que o homem presta aos seus irmos irracionais ( muita pretenso...), o reconhecimento da superioridade do mundo animal. Nunca, porm, soube da existncia de um Antnio Co ou de um Joo Cachorro. H sujeitos de obrenome Gato, por exemplo, o nico bicho que eu detesto, por ser egosta e preguioso. Coelho, sobrenome to freqente, um bicho que no faz orgulho a ningum. Tu o isso ficar, para mim, um mistrio inexplicvel. Se existe a famlia Carneiro (e eu conheci um sujeito de nome engraado: Carneiro Leo ) e existe uma famlia que no se ofende de chamar-se Barata (eu acho que todo animal merece respeito, no tenho preconceitos de raa) e h gente de sobrenome Pulga e, se facilitarem, Percevejo, no vejo razo pra ser usado apenas como insulto o nosso nome, logo o nosso, quando muitos proclamam ser o co o melhor amigo do ho mem... Pode ser que haja algum caso, por mim desconhecido, de algum de sobrenome Co. A ele, o meu latido mais cordial. H de ser caso rarssimo. Cachorro e burro so dois animais injustiados. Burro ofensa tambm. (Aqui entre ns, eu justifico. Conheci alguns burros mais burros que certos homens da minha carreira.) Entre esses homens, sou comumente conhecido como vira-lata, ou melhor , co sem dono. De vira-lata- me xingam. Mal sabem eles que, para um cachorro, cha mar de "sem-dono" o maior dos elogios. Para o homem seria tambm... Vira-lata sou, com orgulho o digo. E adoro os meus irmos, com ou sem dono. Tenho agentado muita injustia pessoal, sem reagir. E vou agentar ainda, com certeza. Mas minha raa, na minha frente, no tolero ofensa. A Inconsciente Homenagem Essa mania de chamar de cachorro ao que h de pior no mundo humano foi sempre, par a mim, um osso no gog. H ces que no ligam. Uns do o maior desprezo. Ouvem com indiferena o baixo insulto. Ou tros, infelizmente "comprados" pelo ntimo convvio com os homens, preferem no reagir. Fazem-se desentendidos. Acham mais negcio manter boas relaes com exemplar es dessa raa que lhes asseguram restos de comida e outras concesses que nos aviltam. Por esses, tenho quase nojo. Mereciam ser xingados de "homens". Mas no vou to longe. Eu compreendo as fraquezas caninas. A luta pelo osso no sopa... Comigo, porm, homem no brinca! Que no se use o sobrenome de Cachorro ou de Co, pouco me importa. O problema do ho mem. Mas que nos usem o nome para qualificar o que h de pior entre os homens, isso eu j disse: no suporto. Estou me lembrando agora de uma vez em que perdi a calma, eu, que sou um cachorr

o, em geral, de boa paz. No fao questo de ser enxotado quando revolvo uma lata de lixo. No saio mordendo se me perturbam no exerccio de funes fisiolgicas a que os h omens no fogem. Mas dessa vez eu mandei brasa! Dois homens brigavam. Gosto de assistir briga entre humanos. prova do subdesenvo lvimento da espcie. Raramente, nessas ocasies, eles partem para o murro na cara, para a briga leal. Ficam no terreno da provocao e do insulto, num linguajar que eu no vou reproduzir de jeito nenhum, sou um co de respeito. Bandido! Miservel! Ordinrio! Sem-vergonha! Acho que qualquer dos dois merecia muito mais. Um deles, pouco antes, j me dera u m pontap. O outro me atrapalhara junto ao meu poste preferido. Insultavam-se grande... Voc o maior ladro do mundo! Ladro voc, seu pilantra! Eu me divertia, distncia, vendo o que pensavam um do outro, dois sujeitos at pouco antes to amigos. S me sentia vagamente envergonhado de ter que ganhar a vida numa rua to mal freqentada... certo que ouvi muito mais. Os dois pareciam enfurecidos, tomados de um dio mortal . Mas ainda estavam no vago terreno das palavras que eu no vou repetir... De qualquer modo, era chocante. Cachorro que me latisse a metade daquilo era um cachorro liquidado. De repente, um deles bradou: Quer saber de uma coisa? O que voc , seu canalha, um grande cachorro! Um cachorro! Eu j no gostei. Mas o que me fez perder a coleira (maneira de dizer, coleira eu nu nca tive), foi ver que o patife que tinha reagido apenas no terreno das palavras aos maiores insultos (desses de envolver a famlia...) dessa vez virou fera. Avanou contra o outro ("cachorro voc"), de faca em punho... No chegou a vias de fato, como dizem os homens. Porque eu comprei a briga. Avancei contra os dois. Mordia um, mordia outro. Arrancava pedaos de carne e de cala. Pus a correr os pati fes. E ainda alcancei o ofendido (na minha opinio o meu maior ofensor) e, de um golpe s, arranquei-lhe parte da barriga da perna. Que eu no comi, claro. Tive nojo... O pessoal ficou sem entender aquele ataque intempestivo. A turma do "deixa disso " morria de rir com o final imprevisto da briga. Mas eu estava de alma lavada. Um quilo de fil mignon (sonho de toda uma vida) no m e daria alegria maior. A Inveja dos Nomes Vira-lata sou. Co sem dono. Esta condio de co sem dono foi um dos complexos da minha vida longo tempo. Sem dono e sem nome. Filho de pai desconhecido (s os colegas de coleira, arrumadinhos e at perfumados, cachorrinhos de enfeite, tm pai registrado) cresci ao acaso das ruas. No me lembro muito da primeira infncia. Pela contagem dos homens devo ter doze ou quato rze anos, sou quase um velho. Pelo menos foi isso o que ouvi, no faz muito, de dois caras que me observavam com ar de entendidos. Um deles dizia: - Esse bicho velho pra cachorro! Olhei com desprezo os dois infelizes. Idade no se mede pelo tempo vivido (eu sei que foi muito), mas pelo desgaste deixado. Eu sou o mesmo que era h no sei quanto tempo. A mesma disposio, a mesma alegria, a mesma coragem na luta pela comida difci l, a mesma rapidez no revolver uma lata do que os homens chamam lixo (eles desperdiam demais, felizmente), a mesma satisfao em encontrar uma colega eventual, para perpetuar a raa. Tenho a mesma ligeireza no fugir ao fantasma das carrocinha s que tm levado tantos dos nossos irmos para destinos incertos. A mesma capacidade d e evitar os colegas atacados pela raiva, que eu to cedo aprendi, nos dias longnquo

s da inexperincia, quando ainda me agoniava por no ter nome nem dono. Mas eu sofri muito nos primeiros tempos, confesso. Casa no tinha. Era quase sempr e enxotado dos lugares onde me escondia. Os outros moravam em casa de gente (eu descobri depois que a casa era um caixote no quintal ou um buraco embaixo do tan que de lavar roupa e no um quarto especial, como diziam). E tinham esta coisa que me causava a maior inveja: eram "chamados"... Leo! (Nome de bicho e de gente, como atrs falei.) Lobo! (Um cachorro como os homens de igual sobrenome. Tinha nada de lobo...) Valente! (Foi o cachorro mais covarde que eu conheci...) Bob! (Nome de homem, que pra mim no honra cachorro nenhum.) Bolinha! (Foi a cadela mais metida a gente da minha carreira.) Peri! (Conheci vrios. Um acabou louco.) Jaqueline! (Quase tive um enfarte, quando foi atropelada.) Tupi! (Nome de uma estao de TV.) Princesa! (Dei-lhe uma ninhada de seis ceguinhos. Todos ns nascemos cegos, com a pressa de vir ao mundo.) Veludo! (Morreu de sarna, o infeliz.) Lorde! (Mania de botar nome estrangeiro...) Sirigaita! (No era nome, era um retrato.) Samanta! (Fugiu com um vira-lata.) Tup! (A carrocinha levou.) Mimosa! (Caminho...) Javali! (No valia nada...) Chico! (Pertencia a um garoto de nome Chiquinho. Pra diferenar, com certeza.) Sarapatel! (Pra buldogue, acho um nome gozado.) Charuto! (O dono morreu de cncer no pulmo.) A mim, nunca ningum me "chamou". Ainda inexperiente, aquele privilgio de certos colegas me invocava. Alguns saam co m orgulho, como se fossem mais do que ns. Tinham nome, como os donos. Confesso, hoje envergonhado, que ao ouvir algum chamando algum, e esse algum no anda va pela vizinhana, eu me aproximava, na esperana de ser adotado por engano. Felizmente ningum se enganou. Mas naquele tempo eu sofria. A coisa me machucava. Fui observando e aprendendo, porm. E vi que, na maioria das vezes, os Javalis e o s Valentes, as Samantas e as Princesas saam de rabo entre as pernas, de cabea baixa. E que nem sempre eram tratados com o devido carinho. Eram enxotados pra c asa. - Passa! No h resto de comida em lata de goiabada ou em prato desbeiado que pague essa humil hao. De jeito nenhum!

A Iluso da Coleira Outra iluso da minha juventude foi a coleira. Eu achava bacana. Parecia colar em pescoo de mulher. S cachorro com dono tem coleira. Mais do que isso, sinal de cachorro que foi regi strado no sei onde, proteo contra a carrocinha, meu terror toda a vida. Havia cachorros - e ainda h, que a canilidade no muda - de pescoo duro de tanta vai dade. Julgavam-se de uma raa mais nobre. Olhavam do alto meus irmos vira-latas. Mas aos poucos fui percebendo o mau sentido da coleira. Ela estava ligada inicia lmente idia agradvel de uma bia certa, s vezes no de simples restos de comida, mas de um bom angu expressamente feito para o cara. Comida a hora certa, que um problema para os ces da rua. O tal caixote no quintal, que eu j citei. Muitas vezes, e com certa freqncia, at muito carinho. Porque, de um modo geral, homem gost a de co. Rara a casa que no tem cachorro. Para assustar ladro. Para amigo dos filhos. Muitas vezes com tratamento de filho. H muito cachorro de vida mole, nesse vasto mundo, humanizado pelo tratamento. Defendendo a famlia com uma lealda de e um herosmo verdadeiramente caninos. S um co capaz de sentimentos to nobres. Os prp ios homens o reconhecem. Passarinho canta e encanta, mas fica de bico fechado, se ladro aparece. Gato macio de pegar, mas arranha quando menos se esper a e no presta o menor servio a ningum. Galinha til: bota ovo e acaba na panela, mas na maior inconscincia. Lobo, que homem acha to bom ao ponto de us-lo co mo sobrenome, botem criana perto pra ver o que bom. Leo, tigre, nem se fala. Peixe precioso para a humanidade como alimento, mas sem querer. Dedicado, amigo, sincero, servial, defensor das crianas, pavor dos bandidos, espontaneamente , por grandeza de alma, s o co. Mesmo sofrendo eventuais injustias. Mesmo com o nome usado como insulto. E o homem sabe disso. Pode no gostar da lambida fria do cachorro do vizinho, mas chega a beijar o seu prprio cachorro. E h ces que tm encontrado entre os homens seus melhores amigos. Digo isso com a maior imparcialidade, porque eu, pessoalmente - destino destino - nunca fui muito feliz no trato com os homens. Sempre fui um marginal. Mas o qu e verdade se diz. Certa ocasio, no 1 ou no 2 Festival dos Vira-Latas em que tomei par te, ao ver a turma latir horrores contra a humanidade, eu procurei esclarecer os colegas. Cheguei mesmo a dizer que o homem era o maior amigo dos ces. Houve mu ito protesto* claro. Eram todos vira-latas. - Vendido! Vendido! Mas eu, com a minha lgica, falei (ou lati, se preferem): - Eu sei. O homem no perfeito. Nada perfeito neste mundo. Temos muitas queixas. T em a carrocinha... Tem o pontap... Tem o "passa cachorro"... Tem aquele negcio de jogarem pedra... Tem os que jogam bolinho envenenado... Tem aquela histria de enxotarem a gente no melhor do poste... O verbo enxotar parece que foi inventado especialmente contra ns. Mas nem todos os humanos fazem isso. H bons e maus. H band idos. Que matam os outros homens. Que cometem crimes. Que atropelam crianas. Que vendem maconha. Mas, se a gente comparar o homem com os outros animais, a que a gente d valor ao homem. Na minha opinio, devemos perdoar o mal que nos fazem, pelo bem que fazem a muitos dos nossos irmos. Comparem o homem com a pulga, por e xemplo. No prefervel o homem, do qual, pelo menos, podemos fugir? Comparem com os lees... Eu vi um par deles no Zo, tive a pior impresso... Comparem com os ga tos... Comparem com os coelhos... Bem, dos coelhos a carne gostosa, mas amigos eles nunca foram. Nunca houve um coelho que se apresentasse voluntariamente para ser comido... O homem raramente amigo de todos os ces, mas sempre amigo de um ou dois. alguma coisa. Vocs conhecem algum animal que tenha esse carinho com q ualquer de ns? Minha tese foi latida por vrios colegas, acabou sendo aceita. Mas, com isso, eu m e afastei do que estava dizendo. Eu falava de coleira...

O Discutvel Amigo O homem o maior amigo do co... H um pouco de ironia, claro, nessa verdade. A coleira que o diga. Poucos animais tm, como o homem, o instinto da propriedade, o sentido de posse. Pelo que eu observei, ao longo do meu latir pela vida, a frase devia ser modificada: o homem o maior amigo do seu co. Gosta do que c dele, rara mente suporta o dos outros. Mas h milhes de ces pelo mundo a fora com um homem, ou toda uma famlia, a seu favor. s vezes tratados como ces. s vezes reconhecidos como gente. Principalmente quando na famlia h essa coisa boa que chamam criana. A criana o homem ainda humano, quase canino. um irmo que a gente consegue. Na realidade nenhum outro animal se ligou a ns como o homem. Nosso mundo praticamente o dele. Convivemos, b rigando muitas vezes, mas os homens, entre si, tambm brigam muito. Uma fatalidade qualquer aproximou os nossos destinos. Os lobos, os lees, os tigres, os prprios ma cacos, to humanos em seus gestos e molecagens, os hipoptamos, os rinocerontes, as guias, sempre viveram na sua e da sua independncia. Ai deles quando se aproxima m do homem. a morte ou a escravido. s olhar as galinhas, que no me deixam mentir, o boi, a vaca, e outros colegas de duas ou de quatro patas. Quem entra n um Zo v animais poderosos que escaparam morte na sua aproximao com o bicho-homem. Escravos so. Salvam-se os que guardam distncia, os que se refugiam nas florestas e nos altos, os que no se misturam. Ns nos misturamos. A coleira o resultado. Smbolo de escravido, embora muitas vezes amvel e disfarada. No dia em que eu compreendi a coleira, eu me libertei daquela mgoa. Vi muito cachorro metido a bacana ser agarrado pela coleira e arras tado pra casa. E vi que a coleira estava ligada a outro smbolo de escravido: a corrente. Essa infelicidade mais comum entre os chamados ces de raa, pelos quais os homens p agam, por vezes, verdadeiras fortunas. Vi muitos de coleira e corrente. Coleira, corrente e horrio certinho. Com o dono, a dona ou a empregada do outro lado da corrente escolhendo a rvore, o poste, o local. Puxando-a, sem piedade, se o infeliz v na calada um ossinho inesperado, s e encontra um colega ou uma coleguinha do seu gosto. Essa dependncia foi sempre a minha diferena na vida. Alis, meu fraco nunca foi cach orro de raa. Muito luxo, muita farolagem, mas no agentam um tranco, mal sabem latir. Eu cheguei a esta idade sem ter visto um veterinrio. Remdio meu so alg umas ervas que conheo. Me arrumo em qualquer monto de lixo com a maior tranqilidade . E natural que eu no despreze uma papinha, um ossinho mais rico, uma carne melhor. Mas qualquer comida me diverte. Os palhaos, qualquer mudana de temperatura, qualquer diferena de comida, febre, tosse, Policlnica. Um lixo... E tome coleira... E tome corrente... Que so a desgraa de muito cachorro de verdade, igual a mim. O pobre ostenta, com e rrado orgulho, os sinais da escravido. Inconscincia... A prova que, na hora do angu agarrado pela coleira, eu nunca vi um cachorro ir de boa vontade. Tem qu e ser arrastado. Ele esperneia e resiste. Adianta alguma coisa essa dependncia? No melhor viver "na raa" que ter raa? Amigos, a liberdade do poste e da lata de lixo alguma coisa na vida de um co! Fal ei, t falado. Alis, lati, t latido... O Velho Tobby Um dos meus maiores amigos (como eu odeio automvel!) foi o Tobby. Ele me explicou , na lngua latida, a lngua mais bela do mundo, que os cachorros de raa procuram esquecer, ou esquecem, de tanto que no os deixam latir nos apartamentos e palcios onde vegetam no luxo, que o nome lhes fora imposto pelos homens. Odeio nome estrangeiro. Me chame de Uau-au, pra lembrar minha infncia di stante. Era assim que me chamava o filho do dono do circo, naquele tempo pouco mais alto que eu... Infelizmente cresceu, foi ficando homem, comia fogo, trabalh ava no arame, cabriolava no trapzio, uma vez caiu de mau jeito, se danou... Voc conheceu gente de circo? - perguntei maravilhado. Fui profissional, meu filho. Trabalhei muitos anos!

Em circo? Ele sorriu, mostrando os ltimos dentes, com aquele sorriso que s os ces percebem no s seus companheiros. Tive fama internacional, meu caro. Conheci vrios pases. Viajei muito. Est ive numa tal de Europa. Conheci Buenos Aires, Bolvia, Aracaju, Hamburgo, Lenis Paulista, Bauru... Vi gente falando toda espcie de lngua. Vi o pessoal do circo se atrapalhando pra conversar com os homens dos muitos pases. Quer dizer que voc conheceu muito cachorro pelo mundo... De todas as classes. De raa e de rua. De circo e da vida! E dava pra conversar com todos eles? Claro. Os homens falavam em cada pas uma lngua diferente. Havia uma parec ida com a lngua latida, comum a muitos deles, o ingls. Comigo nunca houve problema . A lngua latida lngua universal. Essa uma das muitas superioridades da nossa raa. Mas voc trabalhava no picadeiro? O pessoal aplaudia? A nica inveja que eu tive foi de cachorro de circo... Saamos, latindo baixinho, num bate-papo amigo, percorrendo postes e latas de lixo . Me late a tua vida - pedi eu uma vez, maravilhado. Circo a maior iluso dos ces independentes - ele me explicou. - Eu vi muit o cachorro de rua parado em frente ao circo - isso em todos os pases que visitei - olhando os cartazes em que a gente aparecia, "Os melhores ces amestrados do mun do"... Vocs eram os melhores do mundo? Bobagem... Isso besteira de homem. Todo homem se julga o maior e mais i mportante do mundo. Ele e o que dele. Nosso circo tinha os maiores trapezistas, os maiores mgicos, os maiores domadores, os maiores ventrloquos, os maiores palhaos , os maiores bailarinos (isso eu acredito, era uma troupe de doze elefantes...), os animais mais sabidos do mundo. Mas eu pergunto: vocs... Eu sempre admirei trabalho de circo. Entrei mui tas vezes pelo meio do povo, esperando o nmero canino... Me esbaldava de gosto... Pra quem viveu na base do "passa, cachorro!", d gosto ver milhares de pessoas bat endo palmas pra colegas da gente... Iluso, meu filho. A gente faz todas aquelas coisas, fica em p como homem, passa pelo meio do arco de fogo, dana de acordo com a msica, joga futebol, planta bananeira, faz uma poro de besteira, tudo a poder de ameaa e de comida s depo is do nmero, sem liberdade nenhuma. a pior forma de escravido que pode existir. No diga! Voc pensa que alguma vez cachorro de circo teve liberdade pra dar uma vo ltinha? Nunca! Mas no bom ser aplaudido? Voc nunca notou que quem agradece o domador? Voc viu alguma vez um cachor ro agradecer, mesmo quando o mestre finge transferir os aplausos para a troupe? Nunca! Eles esto pensando na bia. E sabendo que seu nico momento de liberdade apare nte quando esto trabalhando... Saem do picadeiro para a priso... Eu penei oito anos naquela desgraa. O pessoal at que era amigo. A bia era escolhida. A gente recebia muitos agrados. Mas liberdade, que bom, nunca houve. Nunca tive o prazer de fazer por minha conta um pipi na rua, t bem? Tinham medo que a gente se misturasse com vocs... - Ah, cachorrada! Foi sem querer que eu usei a palavra. Sa com o rabo entre as pernas, com vergonha de mim mesmo. A Gloriosa Aventura Felizmente Uau-au (era assim que ele gostava) no percebeu minha gafe. A gente tan to lida com os homens que acaba pegando muitos dos seus vcios. Ele no tinha esse instinto de luta, esse amor da liberdade, que faz, na minha opi nio, a grandeza dos vira-latas.

Alis, estou sendo injusto. Ele apenas estava empolgado com as recordaes, no prestou ateno na rata que eu dei. Rata ser ofensa aos ratos? Se , que os amiguinhos me perdoem. Acho que a gente dev e comer tudo quanto rato que aparece ( a luta pela vida e toda comida me diverte) , mas no tem o direito de ofender uma raa. Mas, como eu ia dizendo, foi uma injustia. Porque Uau-au era, exatamente, um caso tpico, um exemplo vivo de amor liberdade. No seu latido manso, de cachorro que muito viveu, ele me contou uma vez o seu ca so: Voc t me olhando, t me achando velho, no t? No diga uma coisa dessas... Voc parece um garoto...Ele ficou srio, me olha ndo. Voc tem dono? Deus me livre! J teve? Nunca! Mas j lidou muito com gente, pelas ruas do mundo, no lidou? Confirmei. T explicado. Mas no faa mais isso. No imite os homens. Seja sincero. Homem que tem a mania de esconder o que pensa, de mentir. Acho muito feio. Voc t me olhando, t vendo. Eu no sou nenhum broto. Sou muito mais velho que voc. Olha a dentadura... Quase toda j foi. Olha o meu plo. V se alguma cadelinha nova se interessa por mim... Nem olha... Cachorro que vive entre os homens pega muito s dos defeitos humanos, principalmente esse de julgar pela aparncia. O que vale o carter do cachorro, t bem? E a experincia. Ningum pode ter mais experincia do que u, que fui do circo... Em matria de cadela, eu tenho que forar a mo, que essas cadelinhas de hoje s vo em conversa de cachorro novo. (Entre os homens a mesma coisa...) Mas no esse o problema. Estou velho (no adianta latir uma nova hipocrisia...), estou velho e no me envergonho de estar. Quando eu vejo um cachorro metido besta me chamar de coroa, eu s digo uma coisa: "Reza pra ver se chega minha idade, t?" E nem te ligo... Mas no pense que eu sou cachorro ab andonado. No pense que eu fui chutado do circo pela idade... Interrompeu-se bruscamente. Com seu olhar ainda vivo descobriu um osso na sarjet a e voou para ele. Este meu. Eu vi primeiro. Coitado... Os dentes no funcionavam muito. E o osso j fora explorado. At o tutano s e fora. Deu- lhe uma chupadinha desconsolada, voltou ao gog. No pense que eu fui chutado... Alis, o pessoal do circo era relativamente legal. Quando algum de ns chegava aposentadoria era internado numa Policlnica. O circo pagava. E dava notcia no jornal, pra fazer propaganda... Coisa muito huma na... Experimentou ainda o osso (s era bom pra treinar os dentes), continuou: A gente vivia numa revolta danada. Ns tnhamos uma sociedade secreta, latam os em segredo o nosso protesto. A gente sabotava o possvel. De vez em quando um fingia estar doente, chamavam o veterinrio, ele no achava a doena, que no havia, mandava deixar a gente em observao (rancho melhorado). A troupe, s vezes, no se apresentava. Outros tentavam errar os nmeros pra envergonhar o patro. No era n egcio, a gente apanhava l dentro. E todos sonhavam com a fuga. Mas cad coragem? E cad ocasio? Escravo escravo, meu filho. Batem palmas, pedem bis, mas a escravido continua. Uma vez ns tnhamos vindo de Buenos Aires, viagem de caminho (viemos representando por todo o caminho). Chegamos ao Rio. Todo mundo es tourado. Artistas racionais e irracionais (irracional o raio que o parta!) estav am na ltima lona e era preciso trabalhar. Show todos os dias. Dois shows no sbado, do is no domingo... Que beleza! - exclamei instintivamente. Beleza a vovozinha! A maior chatura do mundo! Estava todo o mundo por c onta. At a famlia do dono do circo (eram todos artistas). A, depois de uma poro de reunies secretas, eu combinei com o pessoal (canino, evidente). Na hora do nos

so nmero (ningum na casa podia esperar uma coisa daquelas...) no melhor da festa, todo o canil debandava. Ia ser aquele susto... Do treinador, dos artistas, do pbl ico. Salve-se quem puder! "A ordem era a gente se meter pelo meio do povo como feras, latindo e correndo. O povo ia ficar no maior alvoroo, pensando que todos ns estvamos doidos. Um dos golpes era fingir que estvamos com raiva. Mas cada um tinha que buscar o seu cami nho. Cada qual que se arrumasse... "E assim foi feito. A confuso foi incrvel. Gente corria, gente gritava, gente desa bava com medo, crianas choravam. Infelizmente o pessoal da casa era de circo. Passado o primeiro espanto, artistas, palhaos, charutos, todos eles saram atrs de ns , feito loucos, e foram agarrando um por um, apesar das mordidas e da incrvel confuso. "Mas eu escapei, meu filho. Eu tambm era "de circo". S eu escapei. Ganhei esse mun do velho sem porteira. Velho como estou, no poderia ter fugido. Mas eu estava em plena forma, no vigor da juventude. Ningum me pegou..." Parou, emocionado, recordando a grande aventura, arreganhou os lbios, mostrou-me os ltimos dentes: Uma desgraa, no ? Idade, meu filho... Mas naquele tempo eu tinha uma denta dura que era o fino. Com ela eu podia fazer o cachorro- propaganda na televiso pra qualquer creme dental. Te juro que podia... No Vasto Mundo Para quem nunca teve dono, para quem nunca teve nome, para quem nunca foi "chama do", como eu, a aventura de Uau-au, aps a fuga do circo, era um verdadeiro romanc e, era fascinante como novela de televiso. Confesso que nunca vi novela. Televiso que eu conheo em demonstrao de vitrina. Mas sei pelos colegas de coleira ou de nome. a nica hora de liberdade que temos - dizem eles. - A famlia fica empolgad a acompanhando a histria e a gente abre no p... A fuga de Uau-au foi uma autntica novela. Dava gosto ouvir o veterano contar, no seu calmo latido. S quem atravessou muito arco de fogo, s quem aprendeu a equilibrar e joga r o corpo, como eu, podia ter atravessado, sem se machucar, aquela multido a gritar, correr, desmaiar e cair. Passei por cima e por baixo de muitos. A casa e stava cheissima. Nem em Buenos Aires tivemos tanta gente. Varei pelo meio do povo , assisti priso de muitos colegas, dei uma dentada num trapezista que quase me apan hou (coitado, era um cara legal!) e sa no cheiro dos caminhos livres. Passei por baixo da lona, peguei o descampado. Nem acreditei. Havia muita gente em volt a do circo, vendedores de amendoim, pipoca, pirulito. Alguns me olhavam, sem com preender a confuso e gritaria que se ouvia l dentro. Nem eu era besta de contar. Finquei p. Entrei por uma ruazinha estreita, onde havia, aqui ou ali, uns caras conversando , crianas brincando. Quando me viram a correr naquela fria, alguns pensaram que o pa pai tinha enlouquecido. Algum deu o alarme, todo o mundo fugiu. Achei timo. Quebrei a primeira esquina, j de lngua de fora. Encontrei uma cadela que se agrado u do meu tipo. Eu nem te ligo. Tinha l tempo a perder com cadela... Ela veio me seguindo, eu falei: Te genta, minha filha... Eu sou fugido. "Ela fez-se de desentendida, continuou. "A eu me lembrei de uma conversa de uns vira-latas, uma tarde, perto da nossa pri so. A carrocinha vem a, companheira! "No cheguei a latir a frase toda, a bicha tinha desaparecido. Com o tempo compree ndi quanto ela tinha razo. "Quando dei por mim, estava no outro extremo da cidade. Estava na praia. Fiquei mais tranqilo. E pensei que podia ficar. Naquela noite, a primeira noite livre de

toda uma vida, farejei um restaurante, a fome era muita, fiquei olhando os homen s comendo. Um garom farejou, por sua vez, a minha fome. Era um bom camarada. Ench eu uma lata com restos dos pratos dos fregueses, veio at calada, me chamou: Vem, Bonaparte... "Eu devia ser parecido com algum cachorro antigo da famlia dele. "No fiz cerimnia. Lavei a lata em menos tempo do que o necessrio pra atravessar trs arcos de fogo. E nunca me regalei tanto. Com o tempo aprendi a identificar. Mas, pela memria, sei que naquela janta eu entrei em feijoada, pescadinha, vatap, arroz, angu baiana, bacalhau, sarapatel... Cara de sorte! - exclamei. Sorte nada! Apanhei a maior dor de barriga deste mundo! Tudo o que eu c omia antes era medido e pesado. Quase morri, meu companheiro! Cheguei a pensar e m voltar para o circo (pelo rasto era fcil), mas no meio do caminho pensei: antes m orrer livre que viver na escravido. De madrugada a coisa piorou. De manh encontrei um colega na praia, me queixei, ele disse: Pena voc no ter dono... Por qu? Porque ali tem uma Clnica Veterinria... "Fiquei at envergonhado de no ter visto antes. Era falta de traquejo no mundo livr e. Pelo olfato eu devia ter percebido. Havia no ar uma condensao de cheiros de raas caninas. E at o prdio eu conhecia. Tinha estado l uma vez. Ento eu vou at l - disse eu. No seja besta, companheiro. L no se atende a cachorro. S a dono de cachorro ... Cachorro pode chorar e ganir aqui fora vontade que eles no do pelota... S levando o patro... Erva, t me entendendo? Tutu... Grana... "Com o tempo eu iria entender. Uma das misrias da vida... "Fiquei naquela curtio muitas horas. Mas eu era forte, era jovem - voc pode no acred itar, mas eu j tive dez anos... - e no dia seguinte eu j me sentia feliz, olhando o Sol, olhando o mar, olhando a praia. E aprendendo uma grande lio... Qual foi? Que a beleza de um animal, principalmente o feminino, no depende do nmero de patas. Havia muitas ali, de duas patas apenas, que eu vou te contar... Recordaes de Uau-au Uau-au continuava suas memrias. Voltava sempre a suas antigas aventuras. Mas eu no tive paz por muito tempo. Logo percebi que estava sendo perseg uido e procurado por toda a cidade. Sempre que eu encontrava colegas ouvia aquel a conversa. Curioso, aproximei-me de um grupo. Vocs souberam? Fugiu um cara que trabalhava no Gran Circo Internacional. .. Um artista famoso! S podia ser comigo. Me fiz de ingnuo, perguntei: Algum malabarista? Que malabarista, qual nada! O maior astro do circo! O rdio e a televiso e sto descrevendo. Cachorro, meu filho, cachorro! Via-se que todos estavam entusiasmados. Era o grande assunto dos homens e dos ces . Em pleno skow, na hora em que a troupe canina, que era a grande atrao da Companh ia apresentava seu nmero, um tal de Tobby... Cachorro estrangeiro? - perguntei, me fazendo de besta.Estrang eiro uma pipoca! Brasileirinho da Silva. Mas conhecido no mundo inteiro! Esteve em tudo quanto terra de gringo, fazendo sucesso... Dizem que em Nova Iorque o circo deu um espetculo s pra cachorros acompanhados por uma pessoa da famlia... Dos cachorros? Dos donos... S podia entrar uma pessoa para cada cachorro, pra segurar o bicho pela corrente, se no eles invadiam o picadeiro, apaixonados pela troupe... Ou pelo Tobby? - perguntei.

Com certeza por ele. Os milionrios ofereciam fortunas... E ele deve vale r uma fortuna. O circo paga no sei quantos milhes pra quem encontrar o fujo... Tem gente por todo lado procurando... Como a descrio que eles fazem do cara? Um dos vira-latas me olhou: Escute... No voc? Ele me olhava com admirao e deslumbramento. (Naquele tempo, voc pode no acreditar, m as eu era de parar o trnsito.) S pode ser ele! - disse um outro, num latido respeitoso. - S pode ser ele ! Fiquei gelado. Entrei pelo cano. Vo me denunciar... Mas eu, que sempre tinha vivido longe do grosso da raa canina, ignorava a nobreza dos ces. Homem devia andar me procurando pra ganhar dinheiro. Homem que me recon hecesse, era ponto final. Priso outra vez! Cachorro, no... Eu nem precisei confirmar. Estav a na cara. Mas a preocupao daqueles vira-latas era me esconder. Te manda, meu filho! Cuidado com homem! Entra no primeiro buraco... No c aminha de dia. Foge pra zona norte. L menos perigoso, o pessoal conhece menos cachorro de raa. Um deles me aconselhou: Te suja de lama... Um outro latiu desesperado; Arranca essa coleira, meu filho. O rdio t descrevendo exatamente essa col eira. Qualquer patife reconhece... Levaram-me para uma casa em demolio. Vamos tirar a coleira dele - um dos caras lembrou. Todos concordaram. Agenta a mo, companheiro. Avanaram para mim, triturando com os dentes treinados o selo da minha escravido. L evou tempo. Eu ficava meio estrangulado, no meio daqueles puxes, meio tonto, mas todos tiveram delicadeza bastante para no me enfiar os dentes no pescoo. Depoi s de muita luta a coleira cedeu. Um dos colegas jogou-a disfaradamente no bueiro mais prximo. Pronto! Pela coleira no te reconhecem mais. Agora o que preciso disfarar esse jeito. Como assim? Desmancha esse ar de imperador que voc tem... "No era fcil. Tava no sangue. Mas o remdio era aquele. Meti o rabo entre as pernas, baixei a cabea, tomei um ar de cachorro vagabundo (sem desfazer do colega...) e sa modestamente procura de uma lata de lixo, que a dor de barriga tinha passado e a fome apertava..." A Ingenuidade de Sulto! Uma das coisas que mais me agradavam no ilustre colega era que ele preferia o no me latido - Uau-au - ao nome de gringo que lhe haviam posto no Circo. Ficamos amigos ao primeiro latido. Foi num dia de fome, bem me lembro. Fome castigo de vira-lata. o preo da liberdade. por isso que tantos ces que mereci am melhor destino se aproximam dos homens e acabam se engajando em famlias que nem sempre recomendam um cachorro decente. Mas os ces tm um velho princpio, com o qual s vezes se do mal, mas respeito, porque o que mais nos distingue da raa humana: a lealdade. O co sabe ser amigo. O homem pode no valer grande coisa. Mas se ele sabe dar valor ao seu co - mesmo com as deficincias e limitaes da amizade do homem - ele encontra no seu co uma fidelidade canina. Que tolera e perdoa os defeitos humanos , esquece muito pontap intempestivo do seu dono, e retribui com juros altos os relativos bens que recebe. Ningum como o co sabe agradecer uma simples lata de com ida, geralmente restos da mesa. Ningum, na sua frente, ataca o seu do- n0. O co se transforma. Parece um homem enfurecido. Vira bicho. E bota pra correr o ass altante.

Vi muito cachorro pequenino arreganhar a modesta dentua e afugentar, espavoridos, homens que so verdadeiros caminhes, na defesa do seu dono, tantas vezes ingrato. Vi cachorros vigorosos, de apavorar qualquer ladro, agentarem com incrvel pacincia a maldade inconsciente de muitas crianas. Pisando, chutando, montando, puxando pelo rabo os gigantes bondosos. Voc no deve permitir uma coisa dessas - disse eu, mais de uma vez, a cole gas que se sujeitavam, sem protesto, crueldade infantil. Deixa disso, colega, ele meu chapa... Quando muito, cansados, eles se limitavam a fugir. Fosse uma criana fazer o mesmo com um leozinho, um filhote de tigre, ou mesmo outr a criana... Muitas vezes o homem faz-se amigo de um co por mero interesse. No por querer bem, para vigiar a casa. Entreguem uma casa a um cachorro e vero. Assaltante s entra depois de lhe passar pelo cadver... Conheci muitos casos de ces que deram a vida pelos seus amigos (ou senhores). Os ladres sabem disso. Ladro-homem, claro. Antes de assaltar uma casa, primeiro ve rificam se tem cachorro. Se o bicho feroz, ou finge ser, a casa est salva. De outras vezes, com essa crueldade e covardia de que os homens do exemplos, eles se aproximam, com urna falsa amizade, fazem festinha de longe, e atiram comida ao infeliz. Com a boa f das almas nobres, com a boa f prpria dos ces, o coitado vai na onda. Em geral o co, mesmo o que tem casa, nome, dono e at coleira, vive num regime de fome. Aceita o presente. Engole o bolo de carne. (Nunca um do no deu ao seu cachorro um bolo to inteiro e to bonito quanto o de um ladro ou de um mau vizinho, mas preciso ser vira-lata pra saber...) E minutos depois l est o infeliz se retorcendo de dores. O bolo estava envenenado... E a o homem, que o lobo do homem, digo, o ladro, entra na casa e faz misria... Foi assim que perdi um grande amigo, o Sulto. Era um co rajado, valente como qu! Eu sempre lhe dizia: Acredite em lata de lixo, meu filho. No acredite nunca em bolo inteiro.. . Bolo inteiro, no resto de bolo, jogado a cachorro como laranja em beira de estrada: ou azeda ou t bichada... Mas ele era um desses ces romnticos que acreditam na bondade dos homens. Eu assisti tragdia. Era uma noite linda. Alguns colegas idiotas ladravam Lua, nos quintais vizinhos. (Tem muito cachorro que envergonha a raa...) Eu tinha passado por baixo da cerca e batia um papo com Sulto. De repente, ele me disse: Olha que homem to bom... jogar dois bolos pra ns... Eu vi aquilo e lati baixinho: No seja besta, compadre. Olhe o que eu tenho lhe dito... Isso muamba... Ingnuo, confiante, ele se atirou ao primeiro bolo. Eu avancei, latindo alto: No coma essa porcaria, seu tonto! O coitado pensou que eu queria o bolo dele e fugiu, engolindo-o depressa e dizen do: O seu t ali, seu bobo! O mocinho bom deu um pra cada um... Imediatamente ele cambaleou. Estava mortalmente envenenado. Fiquei uma fera. "Eu vou salvar a honra do colega. Nesta casa ningum entra..." E me botei a latir como um louco! O ladro (t claro que era...) ficou apavorado e fugiu. Os donos da casa acordaram. Acenderam as luzes. Abriram as janelas. Abr iu-se uma porta. Algum apareceu de revlver na mo. Mas vendo o Sulto a estrebuchar e o meu jeito furioso, a sair pelo buraco da entrada, correndo em perseguio do cri minoso, compreenderam logo. O outro bolinho envenenado estava ali. O homem saiu de revlver em punho, deu um tiro, vrias casas se iluminaram, o bandid o estava longe. Eu podia ter corrido atrs do miservel. Mas a morte de Sulto me doa muito. Era um gra nde amigo! Voltei para assisti-lo nos ltimos momentos. Ele j nem me reconhecia. A famlia percebeu tudo. Compreendeu que fora salva por mim. Todos me agradaram. O dono da casa quis me adotar. Mas naquele tempo eu j estava liberto dos velhos complexos. J sabia o que era nome e coleira. Fiquei at o enterro de Sulto, que foi muito decente. A dona da casa chorava. As crianas choravam. Chorei a meu modo. Depois me ofereceram, com muito carinho, uma lata cheia de comida, com carne sem

osso, um banquete para a minha vida de cachorro vadio. Fui chegando, dei a prim eira bocada, o feijo no desceu. Me desculpe, dona, mas no d p... Eu era muito amigo do Sulto... Falei em lngua latida, os infelizes no entenderam. Eu senti que eles no iam me ente nder nunca. Embora de barriga vazia, latindo l dentro, baixei a cabea, ganhei a rua. Mas eu me distra contando tudo isso por associao de idias. Foi num dia de fome parec ida que eu conheci Uau-au, meu amigo e mestre, que um dia um automvel matou. Eu Tambm Sou Tri-Campeo Mas j que eu falei no Sulto, vou falar no assassino. Modstia parte, eu sou tricampeo de olfato. O Centro de Resistncia dos Vira-Latas organiza, periodicamente, esse torneio. Vem cachorro de todos os bairros, de muitas cidades, de vrios pases. Tive a satisfao de bater, uma vez, o campeo argentino, um belo buldogue, que falava muito bem a ln gua latida, mas entendia espanhol e ingls. O dono era ingls e, vindo de Buenos Aires para o Rio, trouxe toda a famlia, inclusive "El Caretn", que era o citado bu ldogue. Ele ignorava que "El Caretn" em Buenos Aires, em suas fugas freqentes, para confraternizar com vira-latas da terra, participava de vrios torneios e tinh a, entre os ces argentinos, o maior cartaz. Ns, vira-latas brasileiros, tambm no fazemos distino de raa. O bicho , antes de tudo m co. E nos nossos campeonatos, como em Buenos Aires, no negvamos inscrio a um colega s por ter coleira e pas registrados e outras tolices humanas. O vira-lata o cachorro mais universal e compreensivo. Para ns, todos os ces so irmos . verdade que h muito pequins (h alguns to bestas que se dizem pkinois), muito basset, muito luluzinho - e at muito galgo, que um dos orgulhos da canilida de - e em geral os ces de luxo dos apartamentos, que nos olham com infinito desprezo. So uns infelizes, amolecidos pelo convvio do homem, atingidos pelos defe itos humanos. Ns, no. Eu, pessoalmente, tenho nojo deles. Mas para o vira-lata comum, todos so ap enas ces. E recebemos, com simpatia, qualquer pastor, qualquer doberman, qualquer dinamarqus, qualquer afeg, como se fosse um simples cachorro. assim que o Centro de Resistncia dos Vira-Latas ( uma questo de luta pela vida, no d e luta racial) aceita, com prazer, a adeso de qualquer deles. Principalmente nos encontros esportivos, quando a gente vence, no pela raa, mas "na raa". Pois bem... O tal buldogue, com todo o seu cartaz, entendendo trs lnguas humanas ( j estava pegando o portugus), perdeu longe do papai. No h como a rua e a necessidade para formar um cachorro de fato! E de faro... O torneio era simples. Exibia-se uma pea aos concorrentes, permitindo a cada um q ue lhe sentisse bem o cheiro. s vezes era um osso, outras uma pea de roupa. Depois , os concorrentes ficavam num matinho esperando a hora da partida, enquanto uma co misso ia levar a pea, arrastando-a pelo cho, de Cascadura ou Madureira at Ipanema ou Leblon. A comisso tinha o direito de despistar. Tomava diferentes caminhos, vo ltava, recomeava, criava a maior confuso. A, o presidente dava a largada. Quem trouxesse o objeto de volta era o vencedor. Trs vezes ganhei. E teria sido tetracampeo, se uma vez no tivessem tido a infeliz idia de usar um pedao de carne, em vez de um simples osso ou uma pea de roupa. Fui desclassificado, porque a fome apertou na viagem de volta... Vingando Sulto Tri-campeo de faro, no era dos meus dentes que aquele miservel iria escapar... Esperei o enterro, como disse. Vi o meu querido Sulto ser sepultado com todas as honras no quintal da casa. Uma das crianas chegou a pr uma cruz sobre a sepultura. A vovozinha no gostou. Achou falta de respeito. Sepultura de cachorro no tem cruz. A me achou que a criana no tinha feito por mal. O pai achou que o Sulto merecia. Era "quase" humano. Eu lati protestando. Sulto era grande justamente por ter qualidades caninas exclusivamente, inclusive a boa f. Eles no me entenderam e foi mesmo por sentir que nunca a gente iria se entender que eu ca fora.

Mas ao ganhar a rua, depois da comovente solenidade, em que entrevi qualidades " quase" caninas naquela boa famlia, me lembrei que era tri-campeo e tinha condies de vingar o covarde assassinato do meu amigo. Peguei o rasto. Sa de focinho no cho. Aquele cheiro maldito me incendiava as narinas. Eu vou pegar esse cara, nem que seja em Nova Iorque! Nem que seja em Ca scadura, vou pegar esse cara. Eu te vingo, Sulto. Parece que o patife tinha experincia de cachorro. A cada passo eu perdia a pista. O ladro devia dar saltos muito grandes, porque toda hora o rasto acabava e eu ficava um tempo enorme, cheira daqui, cheira dali, at esbarrar l adiante com o ras to outra vez. Farejei o dia inteiro, com a maior dificuldade. No parei nem pra comer (e eu tinh a a barriga vazia, a comida no havia descido quando me ofereceram). Ia e voltava. Acertava com o rasto do malandro, logo adiante o perdia. Da cara d ele eu me lembrava, mas confesso que no vi cara de gente o dia todo, sempre de fo cinho no cho. Pegava uma rua, dobrava mais alm, virava direita, quebrava esquerda, entre i num botequim, tornei a sair, entrei numa casa, olhei o pessoal (s havia mulher), pensei em esperar, senti o rasto mais alm, o rasto saa pelo quintal, de n ovo me vi na rua outra vez. Que ladro sem-vergonha! Quanto tempo caminhei no sei. No uso relgio. Caminhei durante uma fome infinita e u ma raiva maior. De repente - era tardinha - tive a maior das surpresas. Pensei que ia voltar par a a casa onde morara e morrera Sulto, meu velho amigo. Mas, seguindo o rasto com o maior cuidado, vi que estava em frente porta da casa vizinha. Essa, no! O bandido morava na casa do lado... Tive ento uma dvida... Seria ladro? Talvez no. Talvez um simples assassino. Talvez a lgum que implicasse com o honesto latir do bom Sulto. Talvez a pessoa me visse entrar e achasse, tambm, que a minha entrada era novo latir na casa do lado . Da o crime. Hesitei um pouco. A porta estava fechada. O criminoso devia estar dormindo tranqilo. Nisso, algum abriu a porta. O cheiro hediondo chegou-me s narinas. agora, meu povo! Perdi a cabea. Entrei de arranco. De p, no meio da sala, estava o miservel. Era exa tamente o "homem bonzinho" que Sulto me tinha mostrado. Passa, cachorro! - gritou algum. O homem me olhou, reconheceu-me, e quis fugir. Bastava isso para confirmar o que o rasto dizia. Bati atrs dele, apesar da gritaria da famlia. Ele quis pegar num pau, pulei-lhe no brao. Ele se afundou num canto, arranquei-lhe um pedao. Gritou, eu lati e avancei. As mulheres pediam socorro. Ele tentava um pontap, eu lhe agarrava a per na. E sempre que agarrava, com a raiva, vinha pedao de gente. O homem estava em sangue. A famlia tinha fugido, a gritar: Cachorro louco! Achei aquilo maravilhoso. Castiguei vontade. Mas no matei. Quando senti a vingana completa, sa, ainda com restos de homem nos dentes. Esse nunca mais mata cachorro! Ouvi novos gritos l fora. Tratei de fugir. Perto havia um crrego. Lavei a boca, lavei os dentes, cuspi fora tudo, apesar da fome. Carne de assassi no no como. Alis, de homem nenhum, seja ou no seja assassino ou ladro. No sou antropfago... Quem me v contar essas coisas ( o segundo caso que eu recordo de agresso da minha p arte) est fazendo mau juzo de mim. Mas reparem bem. No primeiro caso o que foi? Uma flagrante ofensa raa. Um sujeito que agentara sem

reao maior os maiores insultos, botou pra quebrar quando o chamaram de cachorro! Fui obrigado a dar uma lio aos dois pilantras. Neste segundo o que foi? Um caso grave de canicdio. Vi um colega meu ser assassin ado no cumprimento do dever, enganado na sua boa f por um desclassificado. Eu podia ficar de braos cruzados, digo, de lngua de fora, diante de uma barbaridade to grande? Claro que no. Olhem que o miservel pretendia me matar tambm. No ca, porque sou macaco velho da rua. E quando parti para a vingana, no pra matar, mas castigar, nem uma s vez me passou pela cabea a lembrana de que o malvado tinha um bolinho esp ecial para mim. S me lembrei do amigo morto, de seu sofrimento, da sua agonia dolorosa... Tudo isso prova que eu no sou um cachorro de maus bofes. Alis, diga-se de passagem , nunca tive ningum que me oferecesse voluntariamente um msero bofe em toda a minha longa vida. Esses dois fatos, um contado logo depois do outro, podem fazer muita gente pensa r que eu sou de briga. No sou no. J vivi um pedao. J vivi muito. Um tempo e mais um tempo e mais outro tempo e mais muitos outros e mais a metade de outro t empo. Como diziam aqueles caras que eu citei, sou velho pra cachorro! E a no ser alguns outros casos que eu talvez seja levado a contar, todos com justa razo, lut ando pelo meu povo e pela justia, minha vida foi sempre tranqila. Dura, difcil, mas tranqila. Um cachorro de paz. Uma vez, por exemplo... No que eu j ia contar outra histria de briga? Vo fazer mau juzo, eu no quero. Enten se, porm, que eu estou preocupado com o juzo dos meus irmos de quatro patas, no com o juzo dos bpedes humanos. Esses, outra coisa no so que serviais da vio cia. Nunca vi bicho mais feroz do que o homem, animal que vive armado. Algum j viu um cachorro de faca, de metralhadora ou de bomba? O co, quando luta, se mpre em legtima defesa, ou na defesa de seus amigos humanos, na garra, no dente. O homem, pouco confiado nos seus braos e dentes (a maior parte usa dent adura) inventou os meios mais terrveis de destruio. Nem gosto de falar. Tive um amiguinho japons (cachorro, bem entendido) que contava de duas cidades de seu pas completamente destrudas por uma tal de bomba atmica. Trabalho de americano... Gente que dizem gostar muito de cachorro... Morreu gente e cachorro, naquelas du as exploses, de dar pena. Os homens se destroem de maneira espantosa e s vezes curiosa. Quando um mata um, preso. Fazem discursos, falam muito, o assassino, co nforme o caso, condenado. Quando mata uma poro, ganha medalha. Torna-se heri. So as tais de guerras, que duram tempos sem fim. Sempre na base de instrumentos p oderosos de destruio. Ns raramente temos guerras, mas sempre na base leal do corpo a corpo, do dente a dente. muito mais nobre. Eu nunca entendi muito as contradies humanas, j disse. Nunca percebi muito a difere na entre matar e matar, que os homens fazem. Nem vou entender. Mas o homem no mata s homem. Mata bicho tambm. Galinha que o diga. E vaca. E boi. E carneiro. E as mortandades macias de insetos. E a tal de carrocinha... Est claro que eu no sou anjinho. H mortes que eu compreendo. So impostas pela sobrev ivncia, exigncias da luta pela vida. A dos insetos, por exemplo. Tou do lado dos homens, sempre que eles fazem massacres incrveis de carrapatos e pulgas. Isso ajuda a humanidade e a canilidade ao mesmo tempo. Na base da dentada no se a caba com pulga. Conheci um colega que teve uma varejeira na ponta do rabo. As vo ltas que dava o infeliz a ver se coava o rabo eram de cortar o corao. Tambm entendo a matana de bois e galinhas. Se o homem mata colegas, no de espantar que mate animais pra comer. J passou de moda a antropofagia. O jeito comer peixes, vacas e galinhas aos milhes. O que eu no concordo que eles condenem a gente por fazer o mesmo. S eu sei quanto apanhei por ter matado e comido uma galinha, num dia de fome quas e humana. A pobrezinha estava num quintal entre uma infinidade de suas irms. Eu comi apenas uma. Deixei o resto - era uma poro - para a famlia comer. Foi a conta!

Ser cachorro, entre os homens, padecer num paraso, meus amigos. Porque comida, en tre eles, mato! E como eles defendem a sua! Papelzinho Pintado ou Metal Redondinho... Passo em muita porta de aougue. s vezes nos jogam ossos, carne estragada, restos, inaproveitveis pela freguesia. Aougue, pra mim, galeria de arte. Como lindo ver aquelas metades de boi penduradas! Davam para alimentar um canil inteiro. E talvez sobrasse! Como lindo ver, pendentes de ganchos de uma sbria elegncia, aqueles nacos maravilh osos, tentao para os ces mais covardes! Como cheiram bem os fgados e rins! Que soberbos ossos tenho visto l dentro! E como aougueiro gente de imprevistos... Nunca cheguei a compreender bem a alma do aougueiro. s vezes chega uma pessoa, fala, fala, o aougueiro sacode a cabea, de cara enfarrusc ada, e no cede. De outras vezes, pega os melhores pedaos, pesa numa balana, e d aquela carne viva e apetitosa em troca de pedacinhos de papel. Uma comisso de ces andou estudando o problema. Chegou a gozadas concluses. Os tais papeizinhos, que se trocam por carne e outras comidas e objetos de toda sorte, so o chamado dinheiro. Dinheiro move os homens e as mulheres. um papelzinho pintado e pequeno. s vezes, um troo redondinho de metal. O homem no faz coisa nenhuma sem puxar dinheiro. Dizem que coleira de mulher custa muito. Mulher usa coleira no dedo tambm. Por ve zes, uma poro. J observei numa loja, de onde me chutaram sem razo - eu estava apenas olhando - que as coleiras, tanto de pescoo como de dedo, custam fortunas. Coleira, pra mim, nem de graa! Mas um dia achei na rua um dos tais papeizinhos que compram de tudo. Tinha cheir o de no sei quantas pessoas. O mais novo era cheiro de mulher. Tricampeo de faro, tive um bom pensamento, pelo menos do ponto de vista dos bichos humanos. Vou descobrir esta dona, devolver esta grana. Sa pela calada, o rasto era fcil. Caminhei dois outros quarteires, entrei numa loja de coleiras femininas, entrei numa loja de roupas, me soltaram um "passa, cachorro" que no me agradou. Continuei no meu farejar. dona cheirosa! Entrei numa loja de frutas. Gritaram comigo de novo. Me perdi por um momento, achei o rasto logo adiante. Fui atrado por um poste. Vi que a Mimosa andava por perto. Mas nem a Mimosa me tirou do meu pensamento. Cont inuei farejando. De repente, vi que o cheiro da dona estava mais forte. Deve estar aqui perto - pensei. Engano meu. Devia estar era "ali". Porque o cheiro era muito forte e no continuav a. Mas ali estavam duas donas, nenhuma delas a minha. Tentei em vrias direes, nada. O rasto acabava naquele ponto, de onde as duas donas e mais um senhor barr igudo, que cheirava a muita coisa, mas principalmente a falta de banho, me olhav am com a maior desconfiana, digo mais, com medo. Achei melhor me afastar, sempre de olho. Nisso, vi parar uma carroona de gente, um nibus enorme. As duas entraram rpido. O barrigudo entrou, gemendo ao prprio peso, com dificuldade. Voltei ao lugar. E compreendi: Ela entrou num carro igual. Foi quando notei duas coisas: uma, que eu ainda tinha o tal dinheiro na boca. Ou tra, que havia um aougue ali pertinho. A eu pensei:

Achar essa cadela (cadela, em linguagem latida, sempre foi elogio) acha r essa cadela vai ser impossvel. O dinheiro meu... Ficou meu... E o cheiro do aougue me chamou, ento, com uma violncia terrvel. Vou comprar um carroo de carne! Entrei no aougue com a maior pureza de alma, ostentando o dinheiro na boca. Esperei, ningum me atendeu. Dei uma latida baixa, pra chamar ateno. Olha esse cachorro com dinheiro na boca - disse uma freguesa. Todos me olharam. Vou ser atendido, afinal - pensei. Fui atendido? E o que vocs pensam! O aougueiro veio de l de dentro, me fez um aceno . Eu, com a boa f de Sulto no dia do bolinho envenenado, esperei, na maior ingenuidade, que ele me tirasse o dinheiro da boca. Devia ter muito valor, porqu e todos tiveram palavras do maior espanto. Mas em vez da metade do boi que eu esperava receber, levei o maior pontap da minh a vida! J na esquina, ainda ganindo de dor, ouvi duas mulheres que falavam: Esses aougueiros so todos ladres! Eu que o diga - pensei eu. Limitei-me a pensar, porque lngua latida pouca gente entende... Latindo que a Gente se Entende H aougue de carne de vaca. Existe aougue de galinha defunta. Tenho visto cadver de muito bicho pondo gua na boca dos homens. J vi muito porco ( outro animal que os homens no usam como sobrenome, s como insulto ) feito em pedaos, pendurado no aougue. Peixe, ento, nem se fala! H aougue de peixe por todos os bairros. As feiras esto cheias de cadver de peixe, ca maro, caranguejo e outros bichos do mar. Bicho cru eu como. Eu j disse que qualquer comida me diverte. Mas bicho preparado para os homens comerem fica muito melhor. Eu no sei se no tempo da antropofagia (fase que a humanidade superou, segundo ouv i de uns garotos, numa porta de escola) os homens eram comidos crus ou preparado s. No gnero meu. Tive mais de uma oportunidade, ao longo da vida, de comer carne huma na. Recusei. Mas acredito que frita ou assada, talvez no fosse m. Porque a capacidade que tem o homem (geralmente a mulher) de preparar para a mesa qualq uer bicho ou pedao de bicho simplesmente genial. Eu acredito, mesmo, que na cozinha que o homem conseguiu superar, de maneira inc ontestvel, a canilidade. Temos que reconhecer esse fato. Uma carne assada, um bom bife, uma galinha de cabidela, um peixe frito (e olhem que eu s tenho apanhad o restos, muitas vezes nas latas de lixo) so, sem dvida nenhuma, infinitamente mais gostosos que o bicho ao natural. Numa reunio, certa vez, do Centro de Resistncia dos Vira-Latas, eu defendi essa te se. Foi um escndalo. - Vendido! Vendido! engraado... Eu, que sou um dos ces mais independentes do mundo, que sempre fui um cachorro livre, que nunca tive dono, mais de uma vez tenho sido acusado pelos meus colegas. Eles no so capazes de compreender minha imparcialidade. Quando fao uma concesso, quando admito certas qualidades no homem (eu sempre achei que o homem, como qualquer outro animal, tem o seu lado positivo), eles pensam que eu fui subornado, que estou me vendendo. Lanaram-me essa acusao muitas vezes. Felizmente eu fui, sempre, um cachorro de paz. E uso a cabea. Acho que a cabea no apenas moldura para olhos, orelhas, focinho e boca, rgos indispensveis na luta pela vida. Cabea foi feita pra pensar. Cabea foi feita pra raciocinar. E latido no foi feito apenas pra espantar ladro, assustar criana, perder tempo com a Lua.

Latido lngua. Latido conversa. Quem no late no se comunica. latindo que a gente se entende... Latindo eu me explico, eles acabam concordando. No caso, eles me deram razo. Eu tenho a impresso de que no dia em que ensinarem nas escolas a linguagem latida (eles perderam muito tempo com uma tal de lngua latina, julgando talvez que foss e a nossa...) os homens e os ces se entenderiam melhor. Acabaria essa relao de patro e de escravo. No comeramos mais em lata de lixo ou de quintal. Comeramos na mesa. E seria um dia grande para a nossa raa. Porque o forte dos homens a panela, a fri gideira, a caarola e o seu prolongamento natural: o prato. De folha, de loua ou de porcelana. Ou mesmo de matria plstica. Mas na mesa e bem cheio. Um Manjar de Sonho... E vo dizer, j vi, que eu s penso em comida... No vou negar. Penso muito. A bia foi sempre um suspense em minha vida. Tudo, na minha longa existncia, todas as minhas recordaes - e mesmo muitos casos de amor que eu no vou desprezar - esto quase sempre ligados falta ou conquista do po, luta pelo osso, com ou sem carne, no bicho morto ou no vivo. Pra mim, feijo sonho. Pra no morrer de fome, eu de qualquer jeito me defendo. A nossa raa, nesse ponto, atingiu a uma grande superioridade. Ns simplificamos a vida. Tendo o que comer, temos tudo. O homem, no. Alm de ter a mesma fome que ns temos - e eu j assinalei que eles fazem qualquer negcio para a satisfao do estmago e chegaram, nesse ponto, a uma criao suprema, a cozinha - eles se atrapalham com muitas outras coisas. Precis am de dinheiro, precisam de casas, precisam de carros, precisam de avies, precisa m de roupas, nunca esto satisfeitos. Se eles se limitassem como ns luta pela bia, tendo nesse ponto chegado aos mais al tos requintes, seriam muito mais felizes. claro que isto uma opinio muito pessoal. Talvez a insatisfao seja muito mais importante do que a fome. Talvez a insatisfao te nha criado, no prprio campo da fome, os requintes da mesa. H ces que tm pelos seres humanos a maior admirao. Acham que o homem vive num nvel mui o mais elevado. Que conseguiu o domnio da Terra. Que est conquistando outros astros. Que o rei dos animais. Pode ser verdade. Opinio no se discute. O que eu quero sossego. Eu fico satisfeito com a fome, que tanto trabalho tem me dado. S lamento que o homem, to dominador e to guloso, capaz de comer tantos bichos, tenh a preconceito contra os ratos. pena. O homem come folha, come fruta, come cereais, come tartarugas, pombo, gali nhas, vacas, peixe, caranguejo, at caramujo. Tudo isso, manipulado nas cozinhas pelo homem, fica um manjar maravilhoso. Toda vez que eu sou obrigado a comer um rato, eu penso comigo: - Isto cru, j bom. Imaginem o que no seria, preparado por uma boa cozinheira de fo rno e fogo! E se Falssemos de Amor? E no se fala mais em comida. Ponto final... Falemos de amor. Ah! Mimosa querida, que um caminho me arrebatou! Ah! Samanta gentil, toda malhadinha de preto e de branco, de focinho fino, de pa ssinho gracioso, de latido suave, de olhinhos to vivos! Nunca houve, sobre a face da Terra, cadelinha mais linda! Se ela entrasse num concurso de Miss Universo - eu disse a ela muitas vezes no m eu quente latir - seria mais uma vitria do Brasil nessa tal de Miami. No precisaria de vestidos caros. No precisaria de mais no sei de que marca. No precis aria sorrir para juiz nenhum, bastava o seu doce latido. Bastava ser ela, vestida de si mesma, na simplicidade que a natureza lhe deu! Devo-lhe cinco filhos, soltos a pelo mundo, presos talvez.

Porque Samanta tinha nome (e dono, portanto). Teve trs meninas, dois meninos. Era cara de um focinho de outro. As meninas saram me. Os meninos eram o retrato do pai, modstia parte. Como foi resignada na espera, condenada pelos donos! Como soube defender com furor maternal seus cachorrinhos, nos dias incertos do a leitamento, contra grandes e pequenos que lhe atormentavam os filhos! E como soube olhar, com a superior filosofia das cadelas, a separao, quando a famli a lhe distribuiu os filhos, j capazes de lutar pelo osso, entre famlias amigas! Ah! Samanta de focinho fino, toda malhadinha de preto e branco! Jamais esquecerei a luz de seus olhos to vivos, quando conseguiu fugir vigilncia d a famlia, que no queria ninhada nova de jeito nenhum! Quanta pedrada afrontei por causa dela! Quanta corrida me deram! E como precisei ser um cachorro de carter pra compreender a sua fuga! Talvez o outro fosse mais o seu tipo. Talvez ela estivesse fugindo, no de mim, mas da escravido familiar. Meu erro foi a ceitar a situao dbia em que se achava. No quis arranc-la s vantagens do caixote noturno e da comida mais fcil. Meu colega foi mais vivo, eu respeitei o c olega. Era a melhor maneira de me dar ao respeito. Mas at hoje eu no posso ver uma cachorrinha de focinho fino, toda malhadinha de pr eto e de branco. Fico logo apaixonado... Tinha Uma Pinta Amarela... Eu acho que j falei. Quase tive um enfarte quando perdi Jaqueline. Era toda branca, de meia raa com cachorro caro, uma pinta amarela no pescoo. Com a experincia do caso Samanta, minha primeira idia foi propor-lhe a fuga. Mas eu sempre fui um sentimental. Corao o meu fraco. No dia em que me aproximei de Jaqueline, disposto a tudo, a fugir com ela, mudar de bairro, talvez de pas, mesmo tendo que me habituar s palavras de uma lngua nova (a gente aprende fcil, "El Caretn" entendia ingls, espanhol e portugus), vi-a n a calada a brincar com um garoto. Fiquei na boca de espera. Relgio no tenho, j falei. No posso dizer quanto tempo. Mas o Sol, quando cheguei, ba tia em mim e botava sombra de um lado. Quando Jaqueline me viu, a sombra j estava do outro lado. Foi tempo... Ela mal deu por mim. A manchinha amarela no pescoo fazia mais vista que certas co leiras que as mulheres usam. Estava um amor. Mas Jaqueline parecia ter deixado de ser cadela. Parecia uma criana, de to feliz n o brincar com o menino. E ele no parecia gente. Parecia um cachorrinho de raa (eu no tenho preconceito cont ra ces de raa, alguns so lindos...) Como os dois se entendiam! Como rolavam no cho! Estavam perfeitamente irmanados. Ela fingia morder. Ele fingia bater. Um fugia, o outro corria atrs. O cachorrinho humano jogava longe um pedao de pau, uma besteira qualquer, Jaqueli ne saa correndo, apanhava a bobagem na boca, vinha depor junto dele. Jaqueline! Era o garoto chamando. L vinha ela... Jaqueline latia o nome dele. Foi a primeira vez que eu vi um ser humano entender a lngua latida. Ele corria para Jaqueline, na maior alegria. Houve uma ocasio em que eu pensei que ele ia esmag-la. Montou em Jaqueline, soltou -lhe sobre o corpo o tamanho do seu.

Vai matar a coitada. Coisa nenhuma. Ela estava treinada. Com certeza, desde menorzinha, ele tinha aco stumado Jaqueline com o crescimento do seu corpo. Achei lindo. Upa! Upa! -dizia ele. Com os olhinhos alegres, a linginha de fora, Jaqueline parecia uma gua no galope. Depois eu percebi que ele no soltava o peso do corpo. Tinha os ps apoiados no cho. Aquela delicadeza de sentimentos me comoveu. Ele no queria maltratar a coitada. Era cavaleiro de brincadeirinha. Upa, Upa, cavalinho alazo... Ela mal me tinha notado, eu disfarcei, sa, fiquei olhando de longe. Dois cachorrinhos autnticos no brincariam com tamanha festa. E ele beijava e cheir ava Jaqueline como se fosse um cachorro de verdade. Nisso, ouviu-se uma voz: Eduardinho! O garoto fingiu no ter ouvido, agarrou-se a Jaqueline e ambos rolaram, rindo e la tindo, numa felicidade assustada. A a voz cresceu: Eduardo! Discreta, Jaqueline se levantou, sria. Eduardo se ergueu, francamente infeliz. Voc chamou, mame? Est na hora do banho. Voc deve estar imundo... Venha... Porque que uma criana de trs anos precisa de banho, nem ela nem eu entendemos. Venha, meu filho! - a voz insistiu. Eduardinho aproximou-se de Jaqueline, acariciou-lhe o pescoo de pinta amarela, Ja queline lambeu-lhe a mo, carinhosa. Eu volto j, t? Nos olhos de Jaqueline vi que ela no tinha iluses. Ele ia mudar de roupa, no teria licena de voltar calada. A eu me aproximei, de manso. Oi, Jaqueline. Oi, companheiro! No tive coragem de propor-lhe a fuga. Uma Famlia Diferente Hoje eu penso que devia ter proposto. (Como eu odeio automvel!). Mas destino dest ino, tanto de homem quanto de cachorro. Durante muito tempo acompanhei a alegria de Eduardinho e Jaqueline, sempre inter rompida, ao fim de pouco ou de muito, por uma voz imperiosa, que no era m! Aquela famlia parecia canina. Era um amor. Das poucas vezes em que me deram bia, s por ser amigo de Jaqueline e de Eduardinho, que j brincava comigo tambm, foi naquela casa. Dona Lila (a que chamava para o banho ou para o almoo), Eliana, a filha mais velh a, que parecia uma cachorrinha de estimao, Renatinho, que j estava na escola (por que que no ensinam a lngua latida s crianas de bom corao?), eram gente da melh qualidade. E eu vou mais longe. Uma tarde em que Eduardinho e Jaqueline brincavam (eu esperava a minha vez com u ma pacincia de santo) algum na vizinhana deu o alarme. Cachorro corria de todos os lados. A "carrocinha" se aproximava. Dona Lila percebeu, l dentro, veio correndo para salvar Jaqueline. Pra casa, Jaqueline! Nisso, ela me viu. E com o mesmo jeito bondoso, me disse: Entra, meu filho. Me chamou de filho! Eu posso viver muitos sculos, nunca vou esquecer esse momento. Eu posso levar duzentos mil pontaps. Nunca hei de esquecer que uma pessoa humana, Dona Lila, me chamou de seu filho!

Posso morrer de velho, posso morrer de fome, posso morrer atropelado (como eu od eio automvel!), posso ir morar na Inglaterra, em Lenis Paulista, em Freixo de Espada Cinta, nunca hei de esquecer aquela fala: Entra, meu filho... Foi naquela ocasio que o Tup foi laado. Linguagem do Corao Comeo a falar em criana, comeo a perdoar a humanidade. J levei muita pedrada. Tenho apanhado de pau. Fome tenho passado. Carrocinha j correu atrs de mim, muitas vezes. Me atiraram bolinho envenenado. No me do sossego no atormentado pipi. Nas outras funes, ento, nem se fala. Principalmente no meu ganha-osso. duro pra cachorro... Mas quando eu me lembro de outras crianas - algumas que eu apenas vi, mas eram li ndas... - e principalmente quando penso em Eduardinho, eu esqueo tudo. Eu at no gosto de pensar muito em criana, porque isso me tira um pouco a rijeza nec essria s correrias da vida. Acreditem ou no, corao o meu fraco. E os sbios da nossa espcie sempre dizem: - Vira-lata tem que se guiar pela cabea, nunca pelo corao... Mas eu tinha entrado pelo captulo dos amores e foi atravs de Jaqueline que eu conh eci Eduardinho e atravs de Eduardinho que eu comecei a perdoar. Digo mais... Eu cheguei a enfrentar, por causa dele, a maior vaia latida de toda s as vaias da minha carreira. Mas acabei vencendo! Sim, consegui que o Centro de Resistncia dos Vira-Latas desse ao meu doce amiguin ho o ttulo de Cachorro Honorrio. Ele nunca soube que havia recebido uma to rara distino. No era possvel explicar-lhe. Ele s compreendia o latido de Jaqueline, mas pela intuio da amizade. Era mais a linguagem do amor, que dispensa latidos e palavras. Mas nessa ocasio j no havia Jaqueline pra contar... Ah!Se Jaqueline Assistisse... H ocasies em que eu penso que cheguei a ser mais amigo de Eduardinho que de Jaquel ine. Com Jaqueline era, talvez, um problema sexual. Apenas sexual. Embora fosse boa d e latido, companheira amvel. Com Eduardinho era amizade simples, generosa, acima das diferenas de cor. Ele era branco, eu sou amarelo, no sei se j contei. Ele era de famlia, eu sou de rua. Acima das diferenas sociais... Ele era rico, eu sou pobre. Os irmos tinham bicicle ta, o pai tinha automvel (no sei se eu j falei que odeio automvel), eu sempre andei no p- quatro. Ele tinha me de coleira no pescoo e no dedo (que um dia me cham ou de filho), eu no me lembro da minha. Uma doce amizade nos uniu desde o comeo. Amizade desinteressada, sincera, leal. Bastava ter amizade ao meu amor pra ter um lugar na minha vida. Mas eu tenho a impresso de que, mesmo sem Jaqueline, teramos sido amigos, se a vid a nos aproximasse. Dona Lila me salvou uma vez da carrocinha. Eu salvei-o muitas vezes de enormes perigos, inclusive da incompreenso dos meus i rmos da rua. Uma vez, por exemplo, ele estava na calada, muito alegre, comendo nem me lembro o qu. Dois colegas passavam (um, parece que o estou vendo ainda hoje, era o Sarapatel, buldogue da maior carranca) e eu percebi que eles estavam trocando latidos sini stros. Vi logo tudo. Iam atacar o pobrezinho, peg-lo s dentadas, roubar-lhe a comida. Pulei na frente dos brutos, latindo bem claro: Calma no Brasil, seus pilantras! Nesse garoto ningum toca! Olha ele! -latiu Sarapatel com desprezo. - Quem que disse que no toco? T oco, mordo e como o que ele t comendo. Quero ver quem no deixa...

S depois de passar por cima do meu cadver! - lati eu. Foi um fuzu danado. Peguei o Sarapatel pelas ventas, dei uma corrida no outro col ega que, se a memria no me engana, era o Valente, o cachorro mais covarde do bairro. Sarapatel era de briga. No latia, urrava. (Acho que tinha aprendido lngua de leo.) Mas comigo no tinha conversa. Assustado, o garoto fugiu. Foi bom. A briga era de sangue. Pra valer. Afinal, surgiram as pedras de sempre. Homem, at pra separar briga de cachorro procura se armar... Nunca vem na raa como ns. Mas Eduardinho havia escapado projetada agresso, Valente havia fugido apavorado, Sarapatel ia ficar muitas semanas de venta rasgada. Eu ainda fiquei por ali, um pouco pra saber se Eduardinho estava realmente a sal vo, um pouco por vaidade. Queria saber se Jaqueline assistira... Paguei, com duas pedras adicionais, aquel a tolice... Cachorro pra Homem Nenhum Botar Defeito... Tolice, porque vaidade um sentimento mais dos homens que dos ces. E porque Jaquel ine jamais teve dvidas, conhecia o seu homem, digo, o seu cachorro. Tinha me visto em mais de uma peleja. Sabia da minha batalha com o matador de Sulto, que j era folclore entre a cachorrada do subrbio, latida em versos ao luar, cantada pelos maiores trovadores caninos. Modstia parte, eu sou cachorro pra homem nenhum botar defeito. Nem cachorro, clar o. Muito menos cadela. Nas assemblias do Centro, quem late mais alto sou eu. Tenho levado vaias de invejosos disfarados entre a multido - quando s vezes procuro reconhecer os aspectos positivos do homem - mas sempre quem late por ltimo sou eu. Late melhor quem late por ltimo, os antigos diziam. Nunca tive uma propos ta recusada. E quando me afastei, de corpo dolorido, no pelos dentes de Sarapatel, mas pelas p edras dos covardes, tive a satisfao de ver que, de trs de uma moita, Jaqueline aparecia. - Obrigada, meu velho... Velho expresso de carinho, no tem nada com a idade do cachorro. Voc viu o que aqueles aprendizes de homem queriam fazer com o teu garoto ? Claro que eu vi. Fiquei gelada. Eu ia latir pra voc, quando voc apareceu. Fechei os olhos pra no ver. Sarapatel o terror desta rua. J era, meu amor. T pra nascer o cachorro que no me ceda o poste que eu exi jo ou o osso que eu reclamo... - ...ou a cadelinha do teu gosto, seu Don Juan convencido... - disse ela com um arrepio no peito. Aquele jeitinho de latir me enfeitiava. Acompanhei muito namoro de gente. Observei - observando que se aprende - muito r omance de amor entre casais de dois ps. Nunca vi mulher nenhuma latir com doura to grande. Nem aquele bater de olhinhos to leve. Samos no cair da tarde, ao longo da rua, digo, da calada. (Se eu pudesse dar um co nselho aos meus irmos, o meu ltimo conselho, na hora da morte, seria: "Nunca pelo meio da rua! Nunca pelo meio da rua!") Um pouco adiante, uma menina caminhava com um po debaixo do brao. Jaqueline me olhou com evidente malcia. Tivera um pensamento mau, que eu apanhei no ar. No, meu bem. A coitadinha vira-lata dos homens. No tem nem sapato. Vai fa zer falta... Lati com simplicidade, sem a menor inteno de bancar o bonzinho. Mas Jaqueline, que era sensvel, me olhou como se eu fosse o mais maravilhoso cach orro do Brasil e do mundo. Sabe o que eu mais admiro em voc, meu querido? Armei o focinho de briga usado contra o assassino de Sulto, e ainda h pouco, na re cente luta com Sarapatel. Os olhos dela se enterneceram. E latiu baixinho, com doura: - o corao... Que hoje e

st velho e cansado. Que quase estourou com um enfarte, semanas depois... Os dois eram to meus amigos que eu s no entrei para a famlia por uma questo de princp o. E s no passei a viver custa de Dona Lila, to bondosa, porque acho que um cachorro q ue sempre lutou pelo osso de cada dia no deve se desfibrar em moleza. Primeiro ganhava o meu, depois chegava. - No quero ser pesado a mulher nem a cadela nenhuma... Por gosto meu, levaria a prpria comida de Jaqueline. Mas ela era uma cadelinha delicada, mal acostumada com papinhas humanas. Nem seq uer se daria bem com o rude osso das minhas sortidas, com a barra pesada do meu comer ao acaso. Algumas vezes, porm, cedi. No queria desfeitear a boa senhora. No queria desapontar Eduardinho, que me chamava de Uau-au, o mesmo nome do ilustr e colega que pouco depois seria o grande amigo das minhas jornadas. E queria ter mais tempo ao lado da amada, que um latido interior me dizia ser cu rto. Foi uma terrvel tentao. Quanto mais eu vivo, maior a admirao que tenho por mim. Porque no era fcil resistir. O gnero humano tem aquele dom sublime de manipular a panela. Comer aquilo em primeira mo, sem estar misturado com os detritos mais vis, e no ao natural, como no ataque a bpedes e quadrpedes de menor porte, um privilgio que tem corrompido os ces mais valentes. Por isso eu perdo ou compreendo os colegas, nem sempre mais belos, nem sempre mai s fortes, raramente os mais inteligentes, nos quais os homens, por critrios puram ente humanos, imaginam ver animais de raa nobre ou superior. Quando eles se acomodam a o convvio dos homens, h uma certa razo. A escravido tem seu lado amvel, ningum pode negar... E foi para no lhe cair nas malhas que eu quase sempre recusava. Confesso, que, com a pressa de rever Eduardinho e Jaqueline, muita vez cheguei d e barriga vazia. E sa de barriga vazia, acreditem ou no! Ao voltar ao meu mundo, depois daquelas horas de convvio querido, com a barriga u rrando e zurrando de fome, uma fria selvagem se apossava de mim. Eu sou humano... Quase humano, pelo menos... A fome no tem lei. E naquelas horas de fome e desespero, s eu sei a que extremos desci. Felizmente Eduardinho no viu. Felizmente Jaqueline tinha ficado, no me acompanhava. O bom amigo de Eduardo, o doce Don Juan de Jaqueline se transformava em lobo mau . Invadia galinheiros. Assaltava aougues. Dava pulos de um metro de altura, roubando lingia. Um dia, levado pelo faro terrvel (eu era bi-campeo nesse tempo), avancei contra um garoto descalo, tomei-lhe o pacote. Devorei como um brbaro os alimentos que levava, to poucos. Depois, me lembrei de Jaqueline alguns dias ante, na calada, e chorei. H momentos na vida de um cachorro iguais a certos momentos na vida de um homem: so de envergonhar uma cadela decente... O Relgio da Fome Eu sei que no durou muito tempo. No temos instrumento de medir a passagem dos dias. muito ou pouco. E basta. No ma is, ns nos guiamos pelos homens. Ou melhor, pela fome. A fome vem, a gente come (quando calha), a fome passa. A fome volta, a gente come (quando calha), a fome passa.

Em torno da fome, antes e depois, h sol, h chuva, h noite, h dia, h pedradas, h corri as, h carrocinhas, o cachorrinho fugindo, os ratos fugindo ao cachorro. E os gatos enchendo... Tenho amigos que industrializaram esse negcio de rato. Empregam-se em casas muito assoladas pelo roedor sem carter. So tratados como amigos, ganham nome. E s vezes renome. Mas no profisso que se cheire. Tem inconvenientes muito srios. Por vezes querem que o cachorro se limite a trabalhar. No do comida. O bicho que s e arrume sozinho. E h o perigo de apanhar um rato que j comeu trigo roxo ou qualquer outro veneno. Quem no tem experincia se d mal... Rato que no foge, que fica bestando, meio mole, que no sabe correr, eu passo! Pra mim rato furado, no me arrisco. A propsito, o tempo foge como rato. s vezes como automvel na rua. A diferena que o r ato a gente pega ou pode pegar. O automvel... Vamos mudar de assunto... Vamos pensar em futebol... Vamos latir contra a Lua... Vamos descer na Lua como os homens tm feito nos ltimos anos... Vamos realizar o 1 Festival Sul-Americano de Latidos... Vamos nos convencer de que a vida boa pra cachorro... Coisas do Amor Eu no tenho coragem de lembrar. Saudade um osso duro de roer. J faz muito tempo... Os anos passaram, os postes passaram, carrocinhas passaram, passei pelos anos, passei pelos postes, passei pelas carrocinhas, passei pelos homens. Corri, comi, lutei, mordi, levei pau na cacunda. Conheci homens bons que tinham a alma de cachorro. Conheci muito cachorro de alm a humana, sem-vergonha. Conheci bons e maus, fortes e fracos, errados e certos. Conheci muita certinha, entre mulheres e cadelas. Por tudo passei. Antes e depois. Coisas que davam para eu ficar aqui, a vida inteira, latindo pra vocs minha longa jornada. Perguntem, que eu conto. Podem latir, que eu no me acanho. Indaguem, inclusive, o lado mau da minha vida. Tou pronto pra falar. Do que me honra. Do que me enverg onha. Do que me comove. Mas me falta o gog, meu latido se afoga, minha cuca se funde, meu corao quase pra. c omo se o homem me atirasse o lao e eu, de repente, ficasse quase duro e de pata de esttua, sem poder fugir. Mas preciso ir em frente. melhor contar logo. O que eu devia no ter comeado. Eu entrei no aougue, no vou sair de queixada vazia. Pois ... Eu acho at que a Jaqueline estava "esperando", coitadinha. Estava mesmo.. . Andava lento, mansa, pesadinha de criana no ventre. Inda no tinha contado, mas eu conhecia essas coisas. Tenho muito filho por esse mundo. Deus permita que sejam todos vira-latas, que nenhum tenha coleira. Nem nome, que besteira invent ada pelos "donos". Jaqueline se chegava, terna, me dava um cheirinho, sorria num meio latido. Eduardinho, na sua inconscincia to prpria dos homens, sem querer a machucava. Monta va em Jaqueline, ela erguia o focinho, os olhinhos brilhando, sem muita vontade de brincar. Parecia dizer: - Tem pacincia, meu filho. Daqui a pouco voc vai ter muita criana pra "reinar", tud o com a cara do pai... E me encarava com doura, querendo imprimir nos filhos em formao meu jeito de macho. "Prefiro que eles se paream com a me", pensava eu, sem latir, respeitando o seu je ito discreto. J com muito de cachorro pelo bom convvio, Eduardinho no insistia. Beijava Jaqueline

, brincava comigo. E eu, que nunca fui de brincadeira, me fazia de manso, virava cavalo, rolava com ele, ia buscar as pedras que ele jogava no outro lado da rua, meio constrangido , com medo que algum colega me surpreendesse naquela moleza. Tranqila (no vou esquecer nunca os olhinhos to bons...). Jaqueline acompanhava, agr adecida, o esforo no brincar daquele canzarro de modos rudes. To sem jeito, meu velho... Faz-se o que se pode - eu latia feliz. E fingia morder e me deixava bat er. S o que me invocava era fazer de cavalo... No melhor da festa, com Eduardinho no lombo (eu era bem mais alto que Jaqueline, ele estava montado mesmo...) Valente apareceu, com o riso mais gaiato no focinh o. Me abaixei para Eduardinho no cair, avancei para aquele safado, plo cor de galinha carij. Voc tem amor vida? - perguntei de cara amarrada. La vita bella - disse Valente risonho. (O dono dele era italiano.) Pois, meu caro, se voc quer continuar latindo em italiano e comendo pole nta... no vai dizer, dar nenhuma latidinha do que viu a cachorro nenhum deste mundo, t? Ele se encolheu assustado, orelhas cadas, o rabo entre as pernas. Eu estou latindo muito srio, t bem? T... Tenho a certeza de que ele guardou segredo di- reitinho... Nunca vi cachorro mai s covarde... Pior, s o cara que matou Sulto. Alis, acho que no contei. Pouco depois da nossa brig a foi preso em flagrante, roubando galinha. O Difcil Lembrar... Eu estava na calada fronteira. Tinha um cachorrinho na boca. Vermelho. De matria p lstica... Nem sei como Eduardinho achou foras pra jog-lo to longe. Apertei a bobagem nos dentes. Ia voltar. O garoto nos esperava. Nesse minuto, pertinho, a buzina de um carro vibrou. Parei, que eu no sou de auto mvel. O bicho l vinha, da cor do cachorrinho que eu tinha na boca. No vinha, voava... Nisso, olhei para o outro lado e pressenti o drama. No sei que idia infeliz tinha entrado, ao mesmo tempo, na cabea de Eduardinho e Jaqueline: atravessar a rua, vir at mim. Ainda lati, desesperado, procurando avis-los. No havia mais tempo. O carro pegou Jaqueline, por milagre Eduardinho escapou. Coisa de anjo da guarda , que as crianas tm... Jaqueline fora apanhada em cheio. Nem se movia. O carro, de rodas manchadas do crime, continuava correndo. At hoje no sei descrever. Foi uma dor por dentro, que me subiu do corao cabea. No s se era sufocao passageira ou um jeito novo de morrer. Cheguei a pensar, num relmpago, ter morrido tambm. Latir no conseguia. Compreender, muito menos. Ouvi um grito. Eduardinho estava agarrado a Jaqueline e chorava. Ainda fiquei um pouco preso calada, aquela besteira de matria plstica nos dentes. Uau-au! Uau-au! Era Eduardinho me chamando. Uau-au! Era sem-fim seu desespero. Todo manchado de sangue, coitadinho, sangue de Jaquel ine e dos meus filhos! No sei como, fui chegando. Novo carro passou, tive a impresso de que algum exclamava l dentro: A criana foi atropelada! E o carro fugiu. Gente vinha aparecendo, apavorada.

Sem entender bem o que fazia, agarrei Eduardinho com os dentes, arrastando-o at a calada de sua casa, onde j chegavam, gritando, do interior, Dona Lila e a emprega da. O menino no sofreu nada - afirmou algum, procurando acalm-las. - O carro s pegou a cachorra. "S...", tinha dito a pessoa. Dona Lila beijou o filho, tranqilizando-se, veio, tomou Jaqueline em seus braos. Chorava. Como foi? Quem foi? - perguntou na maior aflio. Mil pessoas falavam. Novos carros passavam. Uau-au! - gritou Eduardinho atirando-se a mim. Uau-au, Uau-au! Jaqueline morreu! No consigo entender como uma criana to pequena, ainda h pouco to alegre, pudesse ter uma idia to dolorida e to viva do inconsertvel da morte. Ou era eu quem estava tendo aquela idia e pensava ser ela. Coitadinho do menino! - disse uma vizinha. - Vai sentir muita falta... Algum veio, deu-lhe um copo d'gua. Outro algum surgiu e limpou-lhe, com um leno, as manchas de sangue que ainda tinha no rosto, onde as lgrimas rolavam. Cachorrinha to mansa - disse uma voz. Parecia gente - outra voz ajuntou. Dona Lila continuava, toda em sangue, com Jaqueline nos braos. Graas a Deus o menino escapou - uma gorda falou. Deus grande - informou um senhor. Novo susto causado, um caminho pesado rolou pelo meio do povo. melhor a gente entrar - disse Lusa, a empregada, muito amiga minha. - Se no, pode acontecer uma desgraa maior. Eu estava ali, arrasado, corao no tuco-tuco, ouvindo e vendo, sem foras para um sim ples latido. Sem largai' Jaqueline (h seres humanos maravilhosos, embora muito cachorro bom no acredite...) mesmo sabendo que o filho poderia ter cado tambm, Dona Lila se encaminhou para casa. Venha, meu filho, voc precisa trocar essa roupa. Os outros se afastaram, falando contra os automveis, se regozijando por Eduardinh o haver escapado ao perigo. Fiquei s na calada, ainda um tempo e um pedao de tempo, sem conseguir entender toda a extenso daquele golpe na maior solido da minha vida. De repente, vi que Eduardinho aparecia porta, ainda de lgrimas nos olhos. Uau-au, vem... Vem com a gente... Pareceu que eu despertava de um longo, incrvel pesadelo. Vi, comovido, sua mozinha chamando, seus olhos molhados. Precisei recorrer a toda a minha energia de velho co de rua, sem nome e sem dono, pra no fraquejar. Felizmente algum, l dentro, apareceu pra me ajudar. Recolheu Eduardinho, to desampa rado em sua tristeza. Me espera - disse ele. - Eu volto j. Foi duro, foi. Lutei comigo. Mas no esperei. Parti para sempre. Nunca mais pisei na rua sinistra. Mas naquela noite, depois de latidos acalorados, Eduardinho foi proclamado Cacho rro Honorrio Mirim pelo Centro de Resistncia dos Vira-Latas, a maior organizao canina do Rio, talvez do Brasil. Pouca gente tem merecido honraria to grande. Curtio de Vira-lata Passar fome, depois disso, era at distrao. Pontap me divertia. Era um regresso vida.

Aougue no me tentava. Acompanhei com desprezo uma lingia dando sopa na cesta de uma velha senhora. Colegas se engalfinhavam por um osso na rua, eu bancava o juiz, indiferente: Quem viu primeiro foi aquele escurinho... Vi uma vez todo o mundo a correr, pnico infinito no bairro infeliz: Cachorro louco! Crianas fugiam. Mulheres gritavam. Fechavam-se portas. Cachorrada abria o p no vasto mundo. L vinha o colega, de cabea baixa, o olhar sombrio, gritavam que j havia mordido no s ei quem, criana ou cachorro, nunca soube. Eu nem dei pelota. Perdido por um, perdido por mil. Uma pessoa apareceu numa janela, o revlver na mo. esse amarelo? S me lembro que pensei: Que bom! Tiveram pena de mim. Vou descansar... Mas sempre aparece um esprito-de-porco. No! Esse cachorro bom. Danado aquele de plo ruo, l na esquina. O homem corajoso, de arma em punho (eu queria ver um homem corajoso que brigasse s dentadas, sem faca ou revlver), abriu a porta, passou por mim. Ia enfrentar o co sofredor. Ainda tentei uma apelao. Comecei a latir. Grosso. Forte. Urrado. Ele nem ligou. Foi esquina, correndo, apontou o revlver, trs tiros soaram, meu colega tombou, est rebuchando, morreu logo. Gente aplaudia, batia palmas, dava graas a Deus, abraava o heri. Os ces sadios foram aparecendo, mais tranqilos. Cachorro louco era ameaa comum. Um deles me falou: Voc no fugiu, camarada? Olhei-o desinteressado. Faz no sei quantas luas que no durmo. No disse, no lati, apenas pensei. Ele era capaz de pensar que eu estava ficando biruta. Curtio de vira-lata coisa muito pessoal. Nem gente nem cachorro tem nada com isso. .. Voltemos ao Mestre Eu fisgava aqui, fisgava ali, numa grande, infinita indiferena. Nem punha reparo. Mas um dia senti fome. Enorme. Bruta. Brutal. Dessas que os homens chamam canin a. Que eu dizia humana. De vida voltando, com certeza. Renasci. Recomecei. Nesse dia, fuando um monte de lixo, conheci Tobby, que preferia ser chamado Uau-a u, como na sua infncia pelo filho do dono do circo, o mesmo nome que Eduardinho me dava. Amizade nasceu, desse tipo de amizade leal, s possvel entre os ces. Aos poucos latimos nossas confidncias, seu passado conheci, aventuras e andanas de le fui sabendo. E minha admirao foi crescendo. Almas irms, certamente. Ele, de origem ilustre, co de cartaz e de circo. Eu, vira-lata de longo lutar. Mas duas coisas nos uniam. A primeira, o nome. Nele, antigo e abandonado, guardado apenas entre as saudades da infncia. Em mim, recente e passageiro, ligado tambm a uma infncia querida. A segunda - e maior - aquele apego feroz liberdade, que o tinha feito abandonar, muitos anos antes, as glrias do picadeiro, e que me fizera renunciar, ainda h pouco, ao apelo daquele cachorrinho honorrio to do meu corao (como odeio automvel!). Foi uma entregao total. Ou integrao, como os homens preferem dizer.

Eu tinha sido sempre um co solitrio. Minha solido parecia maior nas assemblias do Centro de Resistncia, freqentado por um dever de canilidade que eu sabia sagrado. Os imperativos da perpetuao da espcie me aproximavam, muitas vezes, da mulher. Uso a palavra como um smbolo, no quero ofender, de modo algum, as cadelas que amei. Mas junto s que mais amei, eu sempre fui um cachorro zeloso de sua liberdad e, temeroso de perd-la. Por isso, talvez, perdi todas elas. (Ah, Samanta! Ah, Jaqueline! Ah, tantas outras s de nome latido!) Faltava encontrar a alma prolongamento da minha, juntao de almas paralelas. Encont rei-a num co. Nunca me abastardei na amizade dos homens. Nunca me vendi por um prato de lentilhas. Era amizade de luta peito a peito, pata a pata, garra a g arra. De conquistar o osso com bravura. De compartir o osso lealmente. E de latido franco e legal. Desde ento marchamos juntos. A cadela eventual era um detalhe do caminho. Pela qu al nunca brigamos. Cada qual a sua, a raa que se prolongasse. Era preciso. Pode ser que um dia o co ocupe o lugar a que tem direito sobre a face da Terra. No de d ependncia. No de comando. De compreenso e de fraternidade com as outras raas, inclusive a humana, que das mais bem dotadas, ningum vai negar. Uma Sesso no Centro... Um dia, j no fim, depois de ter defendido o seu ponto de vista, no Centro, citand o experincias do seu tempo de circo, um colega ps em dvida os latidos do velho. Esse negcio de circo papo furado, companheiro. O qu? - latiu Uau au, enfurecido. Voc trabalhou tanto em circo quanto eu trabalhei na construo da Ponte RioNiteri. Mais respeito, seu palhao! Armou-se o banz. A sesso foi suspensa. Mostre que foi de circo - disse um deles. - Faz a uma magiquinha, come f ogo, engole espada... Paciente, o bom velho explicou: No seja ignorante. Cachorro de circo no come fogo, no engole espada. Isso burrice que s o homem pratica... Ento cachorro faz o qu? - disse, incrdulo, o cara. Ou melhor, o focinho. Uau-au j estava no fim da carreira. Nunca mais praticara. Eu prprio nunca o vira f azer qualquer demonstrao. Apenas acreditava. Pra mim, ele latia, estava latido. De modo que a surpresa foi geral e minha. Ah! Vocs querem ver? pra j. Afastou os colegas. Serve esta? Equilibrou-se sobre as patas dianteiras, elevando o corpo acima em linha reta, ps -se a caminhar de bananeira com a maior desenvoltura. O assombro foi geral. Querem que eu caminhe como gente? No esperou resposta. Ergueu-se sobre as pa