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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas Maio/2013 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 CONEXÕES CONTEMPORÂNEAS: REPENSANDO A DANÇA DO VENTRE ANDRÉA CRISTIANE MORAES SOARES (UFRGS) MÔNICA FAGUNDES DANTAS (UFRGS) RESUMO Este artigo apresenta um estudo em prática coreográfica para refletir sobre a utilização da hibridação e da antropofagia como processos de composição do espetáculo de dança do ventre "Awalin: as estrelas do mundo árabe". A obra teve como objetivo a reprodução de coreografias de musicais do cinema egípcio das décadas de 40 à 70. A distância temporal, cultural e geográfica entre o vídeo e execução das bailarinas em "Awalin" efetivou-se como uma "recriação" devido as diferenças que o corpo brasileiro encontrou para reproduzir os movimentos das artistas árabes do passado.Proposições de Mônica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard e Nestor Garcia Canclini elucidam as questões. O artigo espera contribuir refletindo a dança do ventre enquanto matriz técnica em obras contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: Hibridação, Antropofagia, Composição Coreográfica, Dança do Ventre. CONTEMPORARY CONNECTIONS: RETHINKING THE BELLY DANCE ABSTRACT This article presents a study in choreographic practice to reflect on the use of hybridization and anthropophagy as processes of composition of belly dance show "Awalin: the stars of the Arab world." The work aimed to the reproduction of musical choreography of Egyptian movie from the 40s to the 70s. The temporal, geographical and cultural distance between the video and execution of the dancers in "Awalin" was accomplished as a "recriation" because the differences that the Brazilian body found to reproduce the movements of arabian artists of the past. Propositions Monica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard and Nestor Garcia Canclini elucidate the issues. The article hopes to contribute reflecting belly dancing while technique matrix in contemporary works. KEYWORDS: Hybridization, Anthropophagy, Choreographic Composition, Belly Dance.

CONEXÕES CONTEMPORÂNEAS: REPENSANDO A DANÇA DO VENTRE · ventre" no Prêmio Açorianos de 2012 pela Coordenação de dança da ... movimento e da gestualidade de cada atriz bailarina

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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013

http://portalanda.org.br/index.php/anais 1

CONEXÕES CONTEMPORÂNEAS: REPENSANDO A DANÇA DO

VENTRE

ANDRÉA CRISTIANE MORAES SOARES (UFRGS) MÔNICA FAGUNDES DANTAS (UFRGS)

RESUMO

Este artigo apresenta um estudo em prática coreográfica para refletir sobre a utilização da hibridação e da antropofagia como processos de composição do espetáculo de dança do ventre "Awalin: as estrelas do mundo árabe". A obra teve como objetivo a reprodução de coreografias de musicais do cinema egípcio das décadas de 40 à 70. A distância temporal, cultural e geográfica entre o vídeo e execução das bailarinas em "Awalin" efetivou-se como uma "recriação" devido as diferenças que o corpo brasileiro encontrou para reproduzir os movimentos das artistas árabes do passado.Proposições de Mônica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard e Nestor Garcia Canclini elucidam as questões. O artigo espera contribuir refletindo a dança do ventre enquanto matriz técnica em obras contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: Hibridação, Antropofagia, Composição Coreográfica, Dança do Ventre.

CONTEMPORARY CONNECTIONS: RETHINKING THE BELLY

DANCE

ABSTRACT This article presents a study in choreographic practice to reflect on the use of hybridization and anthropophagy as processes of composition of belly dance show "Awalin: the stars of the Arab world." The work aimed to the reproduction of musical choreography of Egyptian movie from the 40s to the 70s. The temporal, geographical and cultural distance between the video and execution of the dancers in "Awalin" was accomplished as a "recriation" because the differences that the Brazilian body found to reproduce the movements of arabian artists of the past. Propositions Monica Dantas, Helena Katz, Hubert Godard and Nestor Garcia Canclini elucidate the issues. The article hopes to contribute reflecting belly dancing while technique matrix in contemporary works. KEYWORDS: Hybridization, Anthropophagy, Choreographic Composition, Belly Dance.

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Conexões Contemporâneas: Repensando a Dança do Ventre

Este trabalho propõe refletir sobre os processos de composição

coreográfica do espetáculo de dança do ventre Awalin - as estrelas do mundo

árabe, encenado em Porto Alegre em 2010, sob uma perspectiva

contemporânea. O espetáculo apresentou-se como um grande desafio, para

nós intérpretes, por buscar reproduzir coreografias encenadas por atrizes

bailarinas do cinema egípcio, das décadas de 40 a 70. Seria possível a

reprodução de uma obra coreográfica concebida em um dado corpo, em uma

cultura e sociedade diferente e longe do tempo de sua primeira atualização?

Para abordar esta experiência utilizou-se dados etnográficos tais como

fotos, vídeos de ensaios, anotações referentes à composição do espetáculo,

roteiro, programa, release e projeto do evento. Como este trabalho partiu de

uma experiência que vivi como intérprete e diretora, situo o artigo como um

estudo em prática coreográfica (FORTIN,2009; DANTAS, 2007).

A pesquisa em arte/dança tem crescido no país e intensificado o

interesse de artistas - pesquisadores nos estudos auto-etnográficos. Sylvie

Fortin propõe que a pesquisa de prática artística tem como lócus do problema o

ateliê, a sala de ensaio e demais espaços de interação entre artistas (FORTIN,

2009). A pesquisa de prática artística pode ser realizada por um outro artista

que não o realizador da obra e mesmo nesta situação, segundo Fortin, a

pesquisa ainda seria em arte por se tratar do olhar de um artista sobre uma

obra artística.

Em seu artigo Contribuições possíveis da Etnografia e da autoetnografia

para pesquisa na prática artística, Fortin defende a utilização da abordagem

etnográfica para estes estudos de prática artística em dança:

A auto-etnografia (próxima da autobiografia, dos relatórios de si, das historias de vida, dos relatos anedóticos) se caracteriza por uma escrita do eu que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. (FORTIN, 2009: 83)

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Desta forma a autoetnografia foi uma ferramenta importante de reflexão

entre as descobertas teóricas e práticas que compõe a epistemologia deste

estudo.

Mônica Dantas (2007) explica que disciplinas como a História,

Neurociências, entre outras que não a Dança, quando a estudam, formulam

questões referentes à sua área de atuação tendo a dança como objeto de

estudo. Por outro lado,

a pesquisa de prática coreográfica explicita os saberes operacionais que são implícitos ao fazer coreográfico. Associa, num mesmo processo, a produção de uma obra coreográfica a uma forma de saber sobre esta produção que interage com a obra. (DANTAS, 2007: 3)

A pesquisa em prática coreográfica pode ser vista como um estudo de

dança sobre a área de dança realizada por um bailarino.

A dança do Ventre no Contexto Contemporâneo de Porto Alegre

A dança do ventre é uma forma híbrida que surgiu a partir da dança

egípcia e hoje é praticada mundialmente como uma dança que privilegia os

solos de improvisação, executada principalmente por mulheres. Este estilo,

amplamente disseminado como uma dança típica dos países árabes, combina

elementos da dança moderna americana e dos musicais de Hollywood:

A dança do ventre pode ser considerada como um estilo de dança que

subdivide-se em subestilos como o Raks Sharki (dança oriental clássica) e o

tribal, por exemplo.

A inserção da dança do ventre em Porto Alegre, já não se limita mais a

restaurantes e festas particulares. A criação da categoria "Destaque dança do

ventre" no Prêmio Açorianos de 2012 pela Coordenação de dança da

Prefeitura de Porto Alegre, comprova o grande número de produções de

espetáculos deste estilo nos teatros da cidade (SOARES, 2012). A maioria

destas produções são de mostras de dança de escolas e pequenos festivais.

Porém, também podem ser vistos espetáculos onde a dança do ventre

apresenta-se em meio a uma proposta artística elaborada.

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Concepção do Espetáculo Awalin

Ainda que a dança do ventre esteja conquistando lentamente o espaço

das produções de espetáculos de dança em teatro, ela ainda é normalmente

associada a uma dança não espetacular, no sentido de comportar grandes

produções cênicas, e com a utilidade prática de entretenimento. O trabalho que

desenvolvo desde 2001 com o Grupo Harem de Porto Alegre, busca inseri-la

como matriz técnica que pode produzir obras cênicas contemporâneas.

O espetáculo Awalin: as estrelas do mundo árabe uniu o vídeo e a

dança para reproduzir coreografias de grandes estrelas do cinema egípcio das

décadas de 40 à 70. O Egito foi um grande produtor de musicais românticos no

período da segunda guerra Mundial, ao estilo dos filmes produzidos em

Hollywood. Ao invés de consumi-los, os egípcios produziam seus musicais,

reproduzindo os conflitos, músicas e danças que condiziam com a sua cultura.

O cinema foi um grande disseminador da dança do ventre pelo mundo,

mostrando na tela, suas grandes intérpretes e seus movimentos peculiares.

Hibridação e Antropofagia no Espetáculo Awalin

A construção de Awalin: as estrelas do mundo árabe foi uma

experiência importante para mim e traz um elemento novo para esta reflexão.

Foi um espetáculo desafiador, tanto em sua proposta quanto em sua execução.

A começar pelo elenco: um grupo de bailarinas selecionado para participar de

um curso que ministrei em minha escola com título "Formação de Bailarinas".

Os encontros eram mensais, o que invalidaria qualquer possibilidade de uma

homogeneização da técnica das alunas. Assumi, então, o papel de orientadora

na construção do espetáculo.

Awalin tinha como objetivo contar a história de grandes bailarinas

árabes da época do cinema romântico egípcio através do vídeo e da dança, e

foi um instrumento importante para o desenvolvimento teórico e prático

daquelas alunas. Antes de cada dança, um pequeno vídeo relatava fatos

importantes da vida e obra de cada artista. A imagem seguia expandida ao

fundo do palco com uma coreografia interpretada pela atriz-bailarina, e a aluna

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deveria interpretar em frente da imagem, a coreografia "idêntica" àquela que

era projetada.

Flávia Reckziegel interpretando Nayma Akef

O objetivo era ingerir a coreografia da atriz-bailarina assistindo

detalhadamente ao vídeo, digerir seus passos, e encarnar a obra da forma

mais próxima possível a que estaria projetada por trás da aluna, conceitos

próprios da proposição de antropofagia na dança de Mônica Dantas (2008).

Mônica Dantas utilizou-se do Manifesto Antropófago de Oswald de

Andrade (1928) para pensar sobre a dança em sua tese de doutorado

defendida no Quebéc em 2008. Em seu estudo, a antropofagia na dança

refere-se ao modo com que o corpo assimila movimentos, técnicas e digere-

os, revelando-os por meio de sua corporeidade. Segundo Dantas (2011) os

corpos antropofágicos são guiados pelo desejo de apropriar-se seletivamente

de repertórios os mais diversos, de misturá-los com prazer para sintetizar

novos produtos artísticos, considerando as implicações políticas e utópicas

dessas ações. A autora explica que "o corpo vibrátil - corpo antropofágico -

reconfigura o mundo tal como ele se apresenta ao corpo.Trata-se então de um

conhecimento por vibração e contaminação, diferente de um conhecimento por

representação e imitação." O estudo aponta entre os processos de criação

analisados, processos de ingestão, digestão e encarnação da obra próprios da

noção antropofágica.

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Mônica Dantas utilizou a antropofagia para explicar a formação dos

corpos dançantes na obra Marché aux puces de Sheila Ribeiro que, segundo

ela, seguiu uma lógica de assimilação de diferentes técnicas:

A exemplo da antropofagia, que sugere a assimilação da substância do objeto devorado para realizar novas sínteses, a coreógrafa e os intérpretes de March aux puces assimilam os princípios (ou as substâncias), de diferentes práticas coreográficas para configurar seus corpos dançantes. [...] Esses corpos dançantes parecem bons exemplos de corpos antropofágicos, pois ingerem, digerem e incorporam seletivamente uma variedade de experiências para se reorganizarem e engendrarem novas criações. (DANTAS, 2011: 15)

Em Awalin, a antropofagia se deu na busca pela assimilação do

movimento e da gestualidade de cada atriz bailarina egípcia. O espetáculo

buscava reproduzir a mesma emoção por meio dos movimentos das

coreografias, figurinos e a presença das artistas egípcias mais conhecidas no

Brasil como Taheya Karioka, Samia Gamal, Nadia Gamal, Suhair Zaki, Nagwa

Fouad, Fifi Abdo e Nayma Akef. A ideia era ingerir não só a coreografia mas a

forma com que cada bailarina egípcia dava vida àqueles movimentos,

buscando reconstruir a mesma intensidade.

Para alcançar tais objetivos marquei aulas individuais com as alunas a

fim de decuparmos os movimentos do vídeo. Cada aluna deveria decorar a

sequência e eu a orientaria detalhando cada movimento.

Por muitos anos estudei por vídeos, aprendi a desvendar um

movimento por meio da imagem, observando onde a bailarina concentrava o

peso do corpo, como isolava uma parte para movimentar a outra. As primeiras

vezes que assistimos uma dança no vídeo, nos deslumbramos com o figurino,

o cenário, com o geral ao invés do específico. Só olhando muitas e muitas

vezes é que começa-se a entender como o movimento tomou forma naquela

imagem.

Nos vídeos que estudamos para o espetáculo Awalin, nos planos em

close, não era possível perceber a construção do movimento. Neste caso, uma

pesquisa em outros vídeos da artista em questão era necessária, a fim de

encontrar o mesmo movimento em um plano mais aberto de imagem. Nesta

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etapa encontramos nosso primeiro grande desafio: por mais que

entendêssemos o que a bailarina executava, por maior a técnica que a aluna

intérprete tivesse, o movimento que reproduzíamos não era o mesmo. A

corporeidade da bailarina egípcia da década de 40 e da aluna brasileira dos

dias de hoje, revelou diferenças sutis aos olhos de quem vê, mas imensas para

nós que a executávamos. Um pequeno exemplo é a forma com que as egípcias

produziam os acentos de quadril: por meio de contrações musculares muito

potentes, enquanto nós, para reproduzirmos a mesma potência precisávamos

realizar flexões curtas nos joelhos. Muitos foram os movimentos que tivemos

que reformular em nós para tornar nosso corpo receptivo àquela nova-velha

forma de dançar. Mesmo ao o reformularmos, o movimento tomava outra

forma. Quanto mais interno o movimento, mais dentro da kinesfera do corpo,

mais ele dependia da anatomia do corpo que lhe dava vida.

A segunda etapa dos ensaios consistiu de encontros onde a aluna

deveria apresentar-se para as demais. O vídeo da coreografia que interpretaria

era projetado por trás de si. Neste momento percebi a necessidade de colocar

alguns deslocamentos. Tivemos a preocupação de desenvolver a coreografia

ocupando espacialmente o palco de forma a transformar cenicamente a

movimentação dada no vídeo. Isto porque percebemos que algumas

coreografias com a de Taheya Karioka no filme Hamido (1952), não

apresentavam grandes deslocamentos e privilegiavam a movimentação de

quadril.

Muna Zaki interpretando Taheya Karioka

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Já Nadia Gamal no filme Prem Pujari (1970) utilizou-se de plano baixo,

alto, médio, giros e amplos deslocamentos no espaço, evidenciando maior

conhecimento em técnicas ocidentais de dança e composição coreográfica. Os

movimentos de quadril de Taheya apresentaram um alto grau de dificuldade no

processo de ingestão de sua técnica, mesmo sendo as intérpretes bailarinas

experientes na técnica da dança do ventre. Um dos motivos fora porque a

performance de Taheya foi uma interpretação de improviso, e não uma

composição coreográfica previamente planejada. Dançar de improviso é uma

prática comum na dança do ventre que demonstra a experiência da bailarina e

o conhecimento da música árabe e sua correta interpretação.

Desta forma, mesmo os movimentos de Nadia Gamal, com alto grau de

virtuosismo como a "queda turca"(caída de costas e joelhos abrupta ao chão)

ou o giro de tronco em cambré, foram mais fáceis de reproduzir por termos

conseguido decifrá-los mais facilmente. Por outro lado, a composição de

Taheya, sem o mesmo virtuosismo atlético, apresentou-se como um obstáculo.

Taheya Karioka, (assim chamada por interpretar Carmem Miranda em seus

shows), privilegiara em sua movimentação a melodia ao invés da contagem

rítmica, sua composição não preocupou-se em utilizar igualmente os dois lados

do corpo, favorecendo acentos com rotação da crista ilíaca esquerda.

O vídeo fora imprescindível para a execução da performance de

Taheya, no qual os movimentos próprios da dança do ventre, mais próxima à

sua raiz étnica, privilegia a movimentação de quadril onde predominam

movimentos internos, pequenos acentos e círculos. A anatomia própria de

cada corpo valoriza e dá forma de modo singular a cada movimento. A

possibilidade de ver os movimentos em close na imagem expandida,

proporcionou à plateia visualizar os belos micromovimentos de Taheya ao

mesmo tempo que desenhava-se no corpo da aluna em frente ao vídeo. Um

encontro de culturas e de épocas diferentes no mesmo espetáculo.

Helena Katz também reflete sobre semelhante proposta quando avalia

em seu artigo Visto de Entrada e Controle de Passaporte de Dança Brasileira,

o samba e sua passagem pelo tempo:

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Um corpo que samba hoje requebra diferente do samba dançado há 40 anos, quando as relações entre carnaval e televisão não eram como agora, tampouco o contrato entre morro e cidade. Com isso, a própria noção de como era o samba e o corpo que sambava há 40 anos também se modifica, uma vez que é com o olhar de hoje que os lembramos. As informações vão encostando e transformando, tanto a si mesmas (o passado do samba, no caso) quanto o ambiente (o corpo que dança esse passo), quanto a própria ideia de samba, tanto a de hoje quanto a do passado e a do futuro (KATZ, 2004: 123).

Desta forma, olhamos com nossos olhos de hoje a interpretação da

obra de 60 a 40 anos atrás e a reinventamos, a partir da minha leitura (a

decupagem do movimento do filme) e a atualização da obra na execução da

aluna. A assimilação da obra foi alcançada apenas de maneira global,

delineando contornos.

Helena Katz no texto Um, dois, três: a Dança é o Pensamento do

Corpo Dança e Pensamento do Corpo (1994), afirma que a coreografia carrega

em si mesma algo de seu autor, uma espécie de impressão digital. Sendo o

coreógrafo mais receptivo às "impressões prévias que cada corpo porta" a obra

será a fusão de ambas impressões resultando em uma construção conjunta, o

que a autora denomina caligrafia de corpos. No caso do espetáculo Awalin, eu

participei como dinamizadora da comunicação entre coreografia e aluna

intérprete quando decupei para elas as sequências de movimentos da obra que

havíamos escolhido. Além da impressão digital da autora da coreografia, a

bailarina atriz egípcia, a obra sofreu a degradação a partir de minha

decupagem, uma brasileira do ano de 2010, passando pelo corpo da aluna a

partir de seu processo antropofágico de assimilação dos movimentos.

A antropofagia na dança é vista por Helena Katz como uma ação

política de não exclusão, pois ao tentarmos distinguir uma dança como nossa,

a dissociamos das demais, vendo estas como outras. A antropofagia seria a

resposta para esta exclusão, pois por meio dela a deglutição do exógeno

aproxima socialmente as culturas, potencializando um processo criativo lúdico

e, ou artístico em uma nova forma híbrida. (KATZ, 2004) Por outro lado, Dantas

explica que a atitude política da antropofagia busca apoderar-se do outro para

renovar-se:

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Como bem sabemos, o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade em 1928, difundiu os princípios da antropofagia. Ele retoma a ideia de canibalismo ritual praticado pelos índios da tribo Tupinambá e propõe a ação antropofágica: devorar a cultura estrangeira, digeri-la e assimilá-la seletivamente para restaurar seu próprio patrimônio cultural (DANTAS, 2011: 15).

Uma Nova Obra em Awalin

Buscando cumprir com a meta inicial, de aproximar nosso espetáculo

de sua primeira versão, selecionei as coreografias de acordo com o perfil

técnico da aluna. Por exemplo, para Nayma Akef, em sua performance no filme

Ahibbak ya Hasan (1958) que combinava grand écart, giros com flexão de

tronco, e movimentos de quadril de alto nível, escolhi uma aluna formada

também na técnica de balé clássico. Para Suhair Zaki, era preciso ter

movimentos de quadril muito precisos, então uma aluna com uma excelente

técnica de quadril assumiu a obra da artista. A adequação da obra ao corpo e

técnica da aluna facilitou o processo de assimilação coreográfica, mas não

evitou que uma transformação acontecesse tanto no meu processo de

decupagem do vídeo, quanto no resultado que tomou forma no novo corpo que

a obra abrigara.

Apesar da assimilação acontecer no mesmo estilo de dança, no caso a

dança do ventre, esta degradação resultou em uma nova obra que teve a

primeira como inspiração poética. A nova obra seria então, uma hibridação da

obra assimilada por meio do processo antropofágico.

Nestor Garcia Canclini, autor de Culturas Híbridas (2011) aborda

em seu estudo as questões das mesclas interculturais na América Latina. Ele

defende que a anteposição do tradicional e o moderno, culto, popular e

massivo não é possível de uma forma homogênea, pois entre cada

classificação há a hibridação. Canclini explica que estas categorias interpõem-

se e convivem confluindo no tempo e espaço, o que ele chama de uma

"heterogeneidade multitemporal". Para ele o mundo moderno e as rápidas

trocas de informações contribuem para contaminação entre culturas:

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[...] entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras (grifo do autor) (CANCLINI, 2011.p XIX).

Com esta experiência de tempos, corporeidades e culturas diferentes,

percebe-se que nenhum corpo é igual a outro e nem o tempo e o momento é

igual ao outro. Cada execução da obra é uma aproximação semelhante à sua

primeira execução. De uma cultura para outra, a corporeidade carrega consigo

diferentes impressões que enformam os movimentos, dando-lhes

especificidades, ainda que sutis. A obra é, portanto, única no tempo, no espaço

e no corpo em que se realiza.

A teoria de hibridação de Canclini e Katz concordam que manter uma

cultura estagnada e protegida da modernidade em uma sociedade com acesso

a modernização não é possível. Helena Katz aprofunda-se nesta ideia quando

propõe a modificação e atravessamento da cultura pelo corpo. Para ela, o

corpo é também agente deste fenômeno. Ela apoia-se em Homi Bhabha para

sustentar sua tese de que o lugar, ou entrelugar, da cultura é o corpo. Para ela,

"a própria noção de cultura nacional como a de um recipiente que contém um

conjunto de tradições históricas e étnicas apoiadas na transmissão deixa de ser

sustentável por fazer parte do trânsito sempre aberto que caracteriza os

sistemas sociais". (KATZ, 2004)

Não significa, no entanto, que o que reproduzimos hoje em Porto

Alegre ou em outro lugar que não o Oriente Médio, não seja dança do ventre,

mas uma dança do ventre revestida pelas referências individuais e

socioculturais de um certo corpo do sul do Brasil que a reproduz, no caso de

Porto Alegre. A mesma música, as mesmas regras, os mesmos passos

carregados de uma especificidade que nos é comum. Diz Helena Katz que não

existe uma nacionalidade da dança, no sentido de não existir uma

característica única e comum à todo o brasileiro. Eu, porém, arrisco lançar a

ideia de que existe sim, uma tendência comum. Algo como um traço que

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influencie a percepção e por fim, a execução da odalisca porto-alegrense.

Hubert Godard em seu texto Gesto e Percepção serve como apoio à esta ideia:

A organização gravitacional de um indivíduo é determinada por uma mistura complexa de parâmetros filogenéticos, culturais e individuais.(...) Qualquer modificação do meio levará a uma modificação da organização gravitacional do indivíduo ou do grupo em questão. A mitologia do corpo que circula em um grupo social se inscreve no sistema postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos serve de veículo para esta mitologia. Determinadas representações do corpo que surgem em todas as telas de televisão e de cinema participam na constituição dessa mitologia. A arquitetura, o urbanismo, as visões de espaço e o ambiente no qual o indivíduo evolui exercerão influências determinantes em seu comportamento gestual (GODARD, 1995).

Para Godard, mitologias do corpo são formadas por ideais de si e do

outro a partir de quadros de referência que servem como modelo para o sujeito.

No Egito, as mulheres bonitas são aquelas que tem um corpo grande, largo e

forte, não roliço, mas exuberante. O padrão de beleza ocidental, com o corpo

magro e longilíneo não encontra no Egito, a mesma aceitação. Se no ocidente

o auge da beleza da mulher encontra-se em seus 20 ou 30 anos, no Egito as

bailarinas só alcançam reconhecimento depois dos 30 anos. Isto porque é

depois dos 30 que a mulher domina sua feminilidade de mulher, mais do que

de menina. Prova disso é que as bailarinas de maior renome no Egito como

Randa e Dina tem mais de 30 anos. Outros padrões, outras mitologias, outros

corpos, outra forma de dançar.

Considerações Finais

Comparando as afirmações de Katz quanto a autenticidade do samba,

considerando que cada corpo é único no tempo e espaço e a experiência vivida

no espetáculo Awalin, concordo com a autora quando ela afirma que não existe

uma expressão de autenticidade nacional, aqui referindo-se a autora a uma

dança típica brasileira. Porém, apesar de cada corpo ser único, a formação

cultural de indivíduos de mesma nacionalidade constroem mitologias de corpo

comum entre eles, facilitando uma construção corporal semelhante. Levando

estas considerações para meu estudo, também seria impossível acreditar em

uma autenticidade de qualquer dança étnica, seja ela oriental ou ocidental.

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Todos os corpos e etnias modernas estão sujeitas a hibridações e

contaminações. O corpomídia está em constante troca de informações, tanto

no Oriente quanto no Ocidente. Mesmo se a coreografia for elaborada com

alguma preocupação com a autenticidade, o corpo que a atualiza é moderno,

contaminado por transmissões constantes de informações. Nem mesmo no

Oriente, portanto, seria possível encontrar uma expressão de autenticidade da

dança árabe em relação a ela mesma há anos atrás.

A experiência com o espetáculo Awalin exemplifica a forma com que

corpos diferentes e distantes no tempo, cultura e espaço percebem, recebem e

enformam um movimento. O que é relatado em teorias foi percebido por nós

corporalmente a medida que tentávamos reproduzir os gestos daquelas

imagens que movia nossos corpos e espíritos. Nós, dançarinas brasileiras do

século XXI portamos em nosso corpo todos os atravessamentos de

hibridações, modernizações e com estes olhos de hoje que buscávamos

reviver aqueles corpos. O espetáculo atingiu seu objetivo de formar as alunas e

de informar o público, mas nós jamais poderíamos reviver com exatidão

aqueles movimentos.

Em Awalin: as estrelas do mundo árabe, a escolha pela reprodução do

repertório destas grandes artistas inspirou a nós praticantes de dança do

ventre, a compreender a dança egípcia. Vimos sua crescente

ocidentalização/hibridação ao longo das décadas, onde as coreografias mais

distantes de nosso tempo utilizaram-se mais de improvisações e poucos

deslocamentos, enquanto as performances mais próximas utilizaram passos de

danças ocidentais, como dança moderna e balé para os deslocamentos, e

modernizaram-se até em figurinos. Ainda que com a intenção inicial de

preservar a obra reproduzida, o resultado demonstrara a transformação por

meio da hibridação resultante do processo antropofágico em movimento, tempo

e espaço. São as conexões contemporâneas que submetem-nos, cada vez

mais, ao aumento do fluxo de comunicação e informação favorecendo as

mesclas culturais.

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Referências

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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013

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Andréa Cristiane Moraes Soares Formada em Comunicação Social (PUCRS), Especialista em Dança (PUCRS) Estudante de mestrado em Artes Cênicas (UFRGS). E-mail: [email protected]

Mônica Fagundes Dantas Professora Doutora Coordenadora do Curso de Graduação em Dança (UFRGS). Orientadora do curso de Pós Graduação em Artes Cênicas (UFRGS). E-mail: [email protected]