Condição de Estudante

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  • 8/16/2019 Condição de Estudante

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     NTRO UÇÃO

    O ofício de estudante

    A primeira tarefa que um estudante deve realizar quando ele

    chega à universidade é aprender o ofício de estudante. Paradoxo,

    objetarão alguns, porque ser estudante é um status social provisório

    que, diferente de um ofício, dura apenas alguns anos. Esse é,

    precisamente, o principal problema que encontram os estudantes

     manter-se por vários anos na universidade, especialmente além do

    primeiro ano, onde se dá, na França, um conhecido fracasso. Hoje, o

    problema não é entrar na universidade, mas continuar nela. O

    crescimento da demanda social por formação superior e das

    possibilidades de acolhimento, as diversas reformas que foram

    realizadas ao longo dos últimos vinte anos não resultaram numa

    mudança sensível das taxas de fracasso e abandono observadas. Para

    compreender esse fenômeno, é necessário abrir a caixa preta da

    seleção na universidade e tentar ver, pela prát ica de uma etnografia

    de campo, como se fracassa, quais são os mecanismos e as conexões

    internas desse processo de seleção e de classificação social que

    distingue aqueles que permanecerão estudantes daqueles que serão

    excluídos.

    Aprender o ofício de estudante significa que é necessário

    aprender a se tornar um deles para não ser eliminado ou auto

    eliminar-se porque se continuou como um estrangeiro nesse mundo

    novo. A entrada na vida universitária é como uma passagem: é

    necessário passar do estatuto de aluno ao de estudante . Como toda

    passagem, ela necessita de uma iniciação. O trabalho que eu apresento

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    aqui se funda sobre a hipótese de que os estudantes que n1 o

    conseguem afil iar-se fracassam. Eu entendo por afiliação o método

    através do qual alguém adquire um status social novo. O estudante

    deve mostrar seu

    savoir faire2

    na medida em que ele é uma condição

    do sucesso. Ter sucesso significa que fomos reconhecidos como

    socialmente competentes, que os saberes que adquirimos foram

    legitimados. Se o fracasso e o abandono são numerosos ao longo do

    primeiro ano é precisamente porque a adequação entre as exigências

    acadêmicas, em termos de conteÚdos intelectuais, métodos de

    exposição do saber e dos conhecimentos e os

    l abitlls

    dos estudantes,

    que são ainda alunos, não aconteceu. O aluno deve adaptar-se aos

    códigos do ensino superior, aprender a utilizar suas instituições e a

    assimilar suas rotinas. Como se adquire esta competência se não

    através de uma aprendizagem que inicie o debutante nas regras de

    seu novo universo? A entrada na universidade pode ser analisada

    como uma passagem, no sentido etnológico do termo, que eu

    proponho considerar em três tempos:

    _ o tempo do estranhamento, ao longo do qual o estudante entra

    em um universo desconhecido, cujas instituições rompem com o

    mundo familiar que ele acaba de deixar;

    - o tempo da aprendizagem quando ele se adapta progres

    sivamente e onde uma acomodação se produz;

    - e, por fim, o tempo da afiliação que é o do manejo relativo das

    regras identificado especialmente pela capacidade de interpretá

    Ias ou transgredi-Ias.

    O objetivo desse livro é mostrar que o sucesso na universidade

    passa pela aprendizagem do ofício de estudante e que a entrada na

    universidade de nada serve se não foracompanhada por um processo

    de afil iação, ao mesmo tempo, insti tucional e intelectual. Tentarei

    mostrar que o sucesso acadêmico depende, em grande parte, da

    capacidade de inserção ativa dos estudantes em seu novo ambiente.

    Trata-se de identificar as propriedades desses processos de aquisição

    que, apesar de estarem à margem do conteÚdo acadêmico

    A __ •.••. . ••, . . . ;;:, .. . •.••r rc·TI II ' \ . • • •.T : · . 4 ~NTQAnA NA VIDA UNIVERSITÁRIA

    propriamente dito, parecem-me essenciais em toda carreirêl

    estudêlntil de sucesso.

    A transição Ensino Médio Ensino Superior

    Sabemos que a transição do ensino médio pêlrao ensino superior é

    delicadêl.Os índices de fracasso e abandono, ao longo do primeiro ciclo

    universitário, traduzem a dificuldade dessa passagem. A universidade

    de Pêlris8,em Saint-Denis, que éo campo que eu escolhi pêll adesenvolver

    minhas pesqu isas, não escapa êIesse fenômeno e experimentêl as mesmas

    dificuldades. A reforma dos primeiros ciclos universitários, iniciada nessa

    universidade êIpartir do início do ano escolar de 1984,era especialmente

    voltêlda para este problema, propondo aos estudantes formações

    pluridisciplinares e uma orientação progressivêl.

    A entrada no Ensino Superior um objeto sociológico

    Na França, a questão do fracasso universitário não

    é

    nova. Vários

    trabalhos lhe foram consagrados e trouxeram contribuições

    importantes. Mas qualquer que seja a sua orientação - teoria marxista,

    da reprodução, das desigualdades e da mobilidade social, da economia

    neoclássica - nenhum deles tomou como objeto êIentmda no ensino

    superior. Ora, esse é,precisamente, um momento decisivo que é preciso

    estudar com muita atenção se queremos explorar os fenômenos do

    abandono e do fracasso que se produzem, principalmente, ao longo

    deste período. Por outro lado, esses estudos não levam em conta três

    fatores que caracterizam o ensino superior:

    trata-se de um ensino que se dirige a adultos e, exatamente por

    isso, problemas particulares se colocam e deveriam ser estudados,

    dentre eles, especialmente, a conquista da autonomia. O lugar

    do saber não é mais o mesmo: não há mais referência aos discursos

    pêlrentais, sendo que a autonomia é obtida em oposição a esses

    discursos visando êllcançar um saber que se exibe em uma

    AlAIN COUlON 33

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    comunidade de construção de conhecimentos onde os pares

    assumem um lugar importante;

    é um ensino terminal: o ensino fundamental prepara para o

    ensino médio. Se eventualmente o ensino superior prepara para

    um novo ciclo como é o caso dos Cursos Preparatórios para as

    Grandes Escolas a universidade prepara em princípio para a

    vida ativa;

    _ a entrada no ensino superior continua voluntária mesmo se ela

    é cada vez mais uma escolha forçada em razão do mercado de

    empregos e porque o   cc l llré t não é mais suficiente para

    garantir uma saída profissional.

    Várias rupturas simultâneas

    Certo número de fatores relacionados precisam ser colocados em

    evidência para que seja possível analisar o fenômeno do fracasso e

    do abandono nas universidades.

    a Para muitos estudantes a passagem para o ensino superior é

    acompanhada por outras mudanças. Ela é marcada por várias rupturas

    simultâneas:

    _ nas condições de existência o que pode gerar às vezes ansiedade

    e comportamentos que favorecem o fracasso;

    _ na vida afetiva com a passagem na maioria dos casos da vida

    no seio da família para uma vida mais autônoma;

    sobretudo uma ruptura psicopedagógica: a relação pedagógica

    com os professores do ensino superior é em geral extremamente

    reduzida mesmo quando se trata de trabalhos orientados em

    pequenos grupos. Se o tempo do ensino médio é aquele do

    tutelamento o tempo do ensino superior é o do anonimato

    também em relação aos ou tros estudantes. Isto provoca

    comportamentos muito diferentes por parte dos novoS

    estudantes cujas referências habituais foram todas subvertidas

    ao mesmo tempo. Uma nova identidade está por ser construída

    uma nova relação com o saber precisa ser elaborada.

    b importante insistir igualmente em relação à responsabilidade

    que tem a organização institucional no sucesso ou fracasso na

    universidade. Vários problemas encontrados ao longo de minhas

    pesquisas mostram o efeito repetido dos dispositivos institucionais

    sobre o desenvolvimento da escolaridade dos estudantes.

    Por outro lado a passagem para a universidade é acompanhada

    de modificações importantes nas relações que o indivíduo mantém

    com três modalidades fortemente presentes em toda a aprendizagem:

    o tempo o espaço e as regras do saber.

    • Como observam os estudantes a relação com o tempo se encontra

    profundamente modificada: as aulas não têm mais a mesma

    duração; o volume semanal de horas é muito mais pesado que

    no ensino médio; o ano quando não é contínuo é recortado em

    dois semestres em vez de três trimestres; o ritmo de trabalho é

    muito diferente; as provas não acontecem nos mesmos momentos

    do ano o esforço que precisam empregar não se distribui da

    mesma maneira.

    • No que concerne à relação com o espaço os estudantes sublinham

    que uma universidade -mesmo quando suas instalações são restritas

    como é o caso de Paris 8 em St. Oenis - é imensa infinitamente

    maior que um colégio ao ponto que eles têm dificuldades no início

    de encontrar a sala de aula ou a secretaria certa.

    • A mudança mais espetacular reside na relação com as regras e

    com o saber.

    É

    preciso distinguir esses dois aspectos apesar de

    que a relação com o saber é subjacente à relação mais global com

    as regras. Na universidade inicialmente há um número

    expressivo delas que atuam eventualmente de forma simultânea

    além de serem muito mais complexas. Elas são com freqüência

    articuladas umas às outras resultando em que o desconhecimento

    de uma delas provoque a ignorância de todo um grupo de regras

    que lhe são relacionadas. Além das regras propriamente ditas o

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     sentido do jogo é muito diferente. Quanto

    à

    relação com o saber,

    ele

    é

    totalmente modificado quando se entra na universidade,

    ou pela amplitude dos campos intelectuais abordados, ou em

    razão de uma maior necessidade de síntese ou ainda, por causa

    do laço que o ensino superior estabelece entre esses saberes e a

    atividade profissional futura.

    Esse conjunto de reflexões me levou a pensar que, se o primeiro

    ano de universidade é tão catastrófico para muitos e tão difícil para

    todos, era porque, além da capacidade e da aptidão de cada um,

    existiam problemas sérios de adaptação ao ensino superior. Os

    estudantes que aí chegam, vindo diretamente do ensino médio, ficam,

    geralmente, surpresos de ter tanta dificuldade para se adaptar a esse

    novo quadro que é a universidade. Os alunos do ensino médio não

    estão preparados para se afi liar ao ensino superior, especialmente

    porque lá eles devem suportar uma orientação obrigatória que lhes

    faz acreditar que estão no lugar que merecem. Esses processos de

    orientação - existência dos CIO, o papel das subáreas do bnccnlnurént

    o todo-poderoso conselho de classe - que atribui um lugar a cada um,

    mascaram os fenômenos de afiliação que, entretanto, existem no

    ensino médio, mas passam desapercebidos. As estratégias dos

    indivíduos são, dessa forma, ocultadas pelo próprio dispositivo

    institucional de orientação que impede que os alunos sejam

    confrontados com esse tipo de aprendizagem, como seria o caso em

    um sistema escolar mais flexível em matéria de orientação. Assim,

    eles só descobrem a importância da afiliação e seus riscos,

    experimentando muita ansiedade, quando entram na universidade.

    o

    ofício de estudante

     Tornem-se estudantes profissionais , eu digo isso aos novos que

    acabaram de chegar à universidade. Não no sentido pejorativo que se

    pode atribuir, às vezes, a esta expressão. Aprender a se tornar

     estudantes profissionais não é, como eu compreendo, uma

    brincadeira irônica que os convida a ser estudantes sempre atrasados,

    A _~  

    > . • .•

    T••... •...T.:· A i:hJT~AnA

     -IA

    \11nA

    IINIVF R ;ITÁRIA

    um pouco diletantes e que acabariam por não final izar seus estudos.

    Esteconselho deve ser escutado como: considerem seu novo status de

    estudante como uma nova profissão que vocês irão exercer . O que

    significa não apenas que devem consagrar a ela um tempo significativo

    desuas vidas imediatas, mas que é necessário, antes de qualquer coisa,

    começar a aprendê-Ia, a dominar suas ferramentas, a identificar e

    aprender suas regras.

    Dizer que se é um profissional, como se pode dizer em algumas

    atividades esportivas, significa que deixamos de ser amadores, que

    não exercemos mais essa atividade somente por prazer e que

    decidimos que ela vai nos permitir ganhar nossa vida. No caso de um

    estudante, esse conselho pode, evidentemente, ser considerado como

    um artifício pedagógico, na medida em que, por definição, o status

    de estudante é transitório. Entretanto, por não considerar seu status

    de estudante como um ofício de verdade, muitos entre eles, não o

    mantêm por muito tempo. O senso comum sabe que realizar estudos

    superiores representa um invest imento para o futuro, que é preciso

    gerenciar, seriamente, como um profissional , como o demonstraram,

    de maneira pouco crítica, osdefensores da teoria do capital humano ,

    como Gary Becker eJacob Mincer, que concebem os estudos superiores

    realizados pelos indivíduos como uma estratégia econômica

    calculada3•

    Como identificar o essencial

    o exemplo dos estudos de medicina

    Howard Becker, Blanchee Geer, Everett Hughes e Anselm

    Strauss4

    estudaram a vida cotidiana dos estudantes de medicina da

    Universidade do Kansas. Na aprendizagem da profissão de médico,

    a ciência e o talento não são suficientes, é preciso ser iniciado no status

    de médico, ter aprendido seu papel. Esta aprendizagem não se dá de

    uma única vez. A transição, no caso da aprendizagem da medicina, é

    lenta. No início do ano, os estudantes do primeiro ano, que formam

    realmente um grupo

    à

    parte, falam apenas de uma coisa: do trabalho

    que devem realizar e de sua quantidade. Como eles farão para

      ••••• r~ .

      •

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    trabalhar de 70 a 90 horas por semana como parece exigir o volume

    de trabalho que seus estudos representam? Mesmo que estejam muito

    motivados rapidamente sentir-se-ão sobrecarregados. Eles foram

    certamente prevenidos que deveriam trabalhar sem parar e que seriam

    necessárias horas suplementares à noite para finalizar alguns trabalhos

    de laboratório. O problema é que eles próprios devem compreender

    sozinhos a natureza do trabalho a ser realizado que é indefinível .

    O que eles devem conhecer e com que grau de detalhe? Como eles

    devem dosar seus esforços? O que é necessário aprender exatamente?

    É claro que existem os manuais e os textos dos professores mas apenas

    a sua leitura já representa um trabalho tão grande que é absolutamente

    necessário fazer uma seleção. Com a ajuda de que critérios?

    É

    claro

    que eles são supervisionados o tempo todo por assistentes ao longo

    de seus estudos dirigidos mas dizem os autores as exigências

    cotidianas dos professores são mínimas eles fazem apenas sugestões

    informais e os estudantes não podem utilizar suas instruções para

    compreender a natureza da tarefa que têm para realizar. Apenas a

    prova lhes dirá mais tarde se eles trabalharam o suficiente e se

    estavam no caminho certo.

    A sua primeira perspectiva ao longo das quatro primeiras

    semanas é esta constante preocu pação que engendra sonhos

     t raumáticos : conseguir t rabalhar o suficiente para aprender tudo o

    que é exigido. Ao final de um mês todos os estudantes compreendem

    que precisam selecionar aquilo que devem aprender e aí então dois

    tipos de reações aparecem: alguns irão triar aquilo que lhes parece

    importante para a prática médica ; os outros em número três vezes

    maior escolherão os i tens a serem trabalhados em função daquilo

    que os professores querem que eles saibam o que concretamente

    quer dizer aquilo que eles talvez perguntem na provas.

     prender a instituição do saber

    Como adivinhar o que é necessário fazer quando os professores

    se contentam em dizer a estudantes literalmente abarrotados de

    trabalho: Dêem o melhor de vocês ? É assim que nascem as técnicas

    para se dar bem nas provas quando os estudantes realizam

    verdadeiras pesquisas sobre as preferências e as perspectivas dos

    professores. Assim nas  fratcmitics S todas as provas dos anos

    precedentes são conservadas analisadas e comentadas. Se as provas

    são tão importantes aos olhos dos estudantes não é apenas porque

    elas são difíceis e a cada vez colocam em questão sua própria

    existência como estudante de medicina é sobretudo porque elas são

    a única ocasião que eles têm de aval iar através das perguntas que lhe

    são feitas se eles estudam os temas corretos . As notas obtidas e os

    comentários dos professores são considerados primeiro como

    indicações que Ihes dizem se eles estão no caminho certo . Os

    estudantes arriscam ir mais longe ainda tentando compreender como

    responder àsquestões das provas da maneira mais adequada possível.

    Aprendendo aquilo que eles pensam que seus professores querem

    que eles demonstrem como compreendido conhecido e sob seu

    controle os estudantes têm o sentimento de aprender seu ofício de

    médico. Mas fazendo isso ao mesmo tempo eles renunciam ao seu

    ideal de conhecimento para serem mais eficazes.

    A obra de H. Becker e seus colaboradores mostra que o primeiro

    ano é decisivo para aprender a instituição : mesmo que não seja o

    mais importante do ponto de vista do conhecimento estritamente

    médico ele é essencial por ser aquele onde se formam as perspectivas

    dos estudantes.

    É

    durante esse ano que se aprende a viver esse novo

    papel. Mais tarde ao longo de seus anos cl ínicos os estudantes

    deverão ainda enfrentar problemas similares mas aí eles já disporão

    de dois critérios para escolher o que é necessário estudar em

    prioridade: sua experiência clínica através da qual eles podem

    identificar todas as suas lacunas e sua responsabilidade médica que

    os desafia a estabelecer um diagnóstico correto e um tratamento

    adequado. Quando estão no primeiro ano ao contrário eles devem

    aprender tudo como indica bem a expressão americana que os

    designa6: eles são instados a descobrir não apenas o conteúdo

    acadêmico da medicina mas sobretudo a encontrar soluções para o

    problema principal que os atormenta a saber como aprender tanta

    coisa em tão pouco tempo.

     L IN OUlON

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    Os ritos de afiliação

    Raros estudantes estão prontos para se tornarem verdadeiros

    profissionais de seus estudos. Não que eles não sejam capazes. Mas,

    para isso, necessitam ter uma perspectiva a longo prazo, isto é, um

    projeto suficientemente elaborado que justifique os esforços

    empregados e que se realize em instituições que o favoreçam.

    A noção de passagem

    Podemos considerar, como se faz, freqüentemente, na linguagem

    ordinária, a entrada na vida universitária como uma passagem. Não

    é comum falar de passagem para o ensino superior ou ainda do

    baccalallréat como um ponto de passagem obrigatório em direção

    à

    universidade? Esta passagem, para se realizar, supõe o domínio de

    certo número de mecanismos e exige ter realizado, com êxito, certo

    número de ritos de afiliação.

    Quando observamos os primeiros meses que seseguem à entrada

    de um estudante na universidade, ou quando solicitamos que a

    descrevam, é fácil localizar as três fases descritas por Van Gennep7,

    que acreditou ser possível detectar, em todas as sociedades, uma

    estrutura de rituais de iniciação que sempre marcam a passagem de

    um status social para outro: a separação em relação ao status passado,

    a fase de ambigüidade e, enfim, a fase da conversão, que ele chama

    de admissão. Os primeiros meses na universidade são descritos pelos

    estudantes como seguindo três fases:

    _ o novo estudante se encontra inicialmente na fase da separação

    com o passado familiar, ao longo do qual ele perde suas

    referências anteriores: é preciso esquecer aquilo que ele

    conhece bem. Segundo os estudantes, a fac, não é semelhante

    ao colegial , é preciso se habituar . Eu chamei essa fase o tempo do

    estranlzamento Nele, o que é importante é o ponto de encontro

    entre a universidade e o futuro estudante, deixando para trás o

    tempo da separação e a viagem realizada entre esta e a porta da

      __ o   • •

    i _ ~ •..rrTIIr\A -ITF:   FNTR D N VID UNIVERSITÁRI

    universidade. Diante dessa porta que se abre para a estranheza,

    o iniciante percebe um mundo que não é mais familiar;

    a segunda fase, a da margem, é onde se corre os maiores perigos.

    É um período freqüentemente doloroso, feito de inseguranças e

    dúvidas, ao longo do qual o estudante está ansioso. Ele não tem

    mais passado, mas ainda não tem futuro. Ele está no espaço entre

    dois momentos e não tem mais referências. À necessária

    desestruturação que acompanha o esquecimento de seu passado,

    não sucede, imediatamente, a reestruturação que o fará passar,

    definitivamente, para a terceira fase. Uma aprendizagem

    complexa se opera e há de ser feita o quanto antes, já que é

    indispensável para prosseguir na passagem para a vida

    universitária: é o tempo da aprendizagem

    enfim, vem o momento da admissão, aquele da passagem definitiva

    para seu novo estado: o estudante é agora um dos veteranos . Os

    estudantes sabem reconhecê-l o e dizem quando ultrapassaram a

    soleira dessa terceira fase: agora está melhor , eu sei que eu não

    vou mais abandonar : éo tempo da afiliação A duração da passagem

    é variável. Ela depende da duração da segunda fase que varia

    segundo os indivíduos. Ela varia também segundo os

    estabelecimentos, seu grau de sofisticação institucional e segundo

    o número e a complexidade de suas regras.

    Da noção de passagem à de afi Iiação

    Aprender o ofício de estudante consiste em aprender os inúmeros

    códigos que balizam a vida intelectual e proceder de maneira que os

    professores, que são também os seus avaliadores, reconheçam que

    eles apresentam um domínio suficiente para exercê-Io. Assim, não se

    trata apenas de adquirir esta competência, é necessário igualmente

    aprender a maneira de mostrar que eles a possuem.

    Esta exibição da competência assume diversas formas. Ela não

    se manifesta somente nos momentos de avaliação acadêmica formal,

    mas depende também de operações informais que são objeto de

    ALAIN COULON

     

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    julgamento por parte dos professores e de outros estudantes:

    expressão oral e escrita, inteligência prática chamada, às vezes, de

    competência para saber se virar 8, seriedade, ortografia, saber

    apresentar referências teóricas e bibliográficas. É preciso exibir sua

    competência, mostrar que se tornou um igual , que atribui o mesmo

    sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos. Neste

    sentido, a cultura estudantil é diferente da cultura dos jovens do ensino

    médio. Entre estes os códigos são outros, são outros o discurso e a

    linguagem e, igualmente, a maneira de identificar, de colocar e de

    resolver problemas. O colégio e a universidade não têm a mesma

    comunidade de   uzbitlls e o primeiro ano de universidade, sobretudo

    os primeiros meses, ou as primeiras semanas, exige que se passe de

    uma

    à

    outra. Este trabalho deve ser realizado além do trabalho

    intelectual normalmente relacionado à universidade. Ele demanda

    tempo e deve ser considerado como uma aprendizagem verdadeira.

    Esquemas culturais devem ser desenvolvidos, é preciso esquecer

    sua cultura anterior de estudante de ensino médio, na qual ele viveu

    durante sete anos, para substituí-Ia por uma nova cultura, mais

    complexa, mais sofisticada, tão mais difícil de decodificar e adquirir

    na medida em que ela é mais simbólica.

    Tornar se um membro nativo uma aprendizagem

    do senso comum

    Como se adquirem esses códigos, essa cultura particular de uma

    universidade? Seguramente, não só de maneira acadêmica. Muitos

    deles não residem no trabalho acadêmico propriamente dito. Pois o

    senso comum, como sublinhou P. Perrenoud9, é difuso, ele está

    implicado na prática mais insignificante, na interação mais

    insignificante, no mais insignificante objeto, no mais insignificante

    aspecto da organização social p.247).

    Assim, não é de bom augúrio que um estudante diga: eu passo

    o menor tempo possível na universidade, assim que as aulas acabam

    eu vou embora . Aqueles que conhecem as condições de vida difíceis

    de um estudante no interior de certas universidades não se

    surpreenderão com uma fala como essa. Entretanto, é preciso ter

    consciência que esta prática, freqüentemente induzida por condições

    de vida difíceis, leva igualmente o estudante a se isolar de múltiplas

    e minúsculas operações que participam da imersão nessa nova cultura.

    Quanto mais interações aconteçam, mais se atenua a ambigüidade da

    segunda fase da passagem e melhor se realiza a indispensável

    aprendizagem do senso comum.

    Os estudantes devem tornar-se nativos desta nova cultura

    universitária, tornarem-se membros dela, pois, para eles, isso é uma

    questão de sobrevivência. A noção de membro, que, para a

    etnometodologialO, designa o domínio da linguagem natural do grupo

    ou de sua organização, permite compreender a necessidade e as

    condições dessa passagem para o status de nativo. Tornar-se membro,

    não é apenas tornar-se nativo da organização universitária, é também

    ser capaz de mostrar aos outros que agora possuímos as competências,

    que possuímos os etnométodos de uma cultura. Esta aquisição não é

    completa porque a cultura da comunidade nativa é movente e

    cumulativa. Ela é ainda menos completa na medida em que o próprio

    debutante participa, desde que esteja suficientemente iniciado, de sua

    transformação e elaboração. Apesar disso, a posse de uma parte dessa

    cultura de senso comum é suficiente, em geral, para conferir, àquele

    que a detém e que sabe exibi-Ia, o status de membro.

    Reconhecer a competência de um membro é identificar aquilo que

    ele exibe do domínio que tem das rotinas, admitir nele uma naturalidade

    autêntica que lhe permite realizar certo número de coisas sem pensar

    nelas, obedecendo a alguns esquemas de pensamento ou de ação, o que

    Pierre Bourdieu chamou de habitlls que, como conjunto de pensamentos

    e práticas incorporadas, gera novas atitudes e facilita novas aquisições.

    Entretanto, a aquisição do conjunto de procedimentos novos, através

    dos quais nos tomamos membros, não está ancorada sobre um habitus

    constituído de uma vez por todas, fonte infalível e motor inesgotável de

    todas as aquisições e performances ulteriores. Ela se produz sobre um

    habitlls constantemente renovado, que se enriquece - ou se empobrece,

    como é o caso no analfabetismo - de experiências novas que são como

    sedimentadas sobre as precedentes. As incorporações mais recentes são

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    aquelas que foram objeto de um julgamento avaliativo, o que pode ser

    de uma grande eficácia destrutiva: osestudantes que não podem mostrar

    que eles incorporaram, ao longo dos primeiros meses após sua chegada

    à universidade, os traços distintivos de sua afiliação ao ofício de

    estudante são, impiedosamente, eliminados (fracasso) ou se auto-

    eliminam (abandono).

    Estudantes ordinários

    Meu propósito não é o de analisar a formação das elites, formadas,

    em geral, nas Grandes Escolas. Eu estou interessado na imensa massa

    de estudantes ordinários que fazem seus estudos na universidade

    e que se tornam, em seguida, elites médias . Esse fenômeno social é

    muito importante, especialmente por causa das perturbações

    econômicas e políticas que provocaram a explosão demográfica

    universitária das últimas três décadas.

    É chocante constatar que a universidade comum, que produz os

    quadros executivos e que diz respeito, cada vez mais, às classes

    médias, foi pouco analisada a partir de pesquisas empíricas. Não se

    sabe praticamente nada acerca das práticas concretas, nem das

    universidades, porque elas não são avaliadas no plano qualitativo,

    nem da experiência e estratégias dos estudantes no interior das

    universidades e menos ainda das práticas pedagógicas dos professores

    do ensino superior. Eu me esforçarei então para oferecer ao leitor,

    graças aos métodos etnográficos que utilizei, uma visão de dentro

    acerca das práticas universitárias.

    Por que se interessar por estudantes de uma universidade

    reputada, mas considerada marginal ? Acontece que a universidade

    de Paris 8, em Saint-Denis, apresenta uma dupla vantagem: trata-se

    de uma universidade inovadora do ponto de vista pedagógico, desde

    a sua origem, e que dispensa atenção aos estudantes de primeiro ciclo;

    além disso, ela acolhe, particularmente, um grande número de

    estudantes imigrantes e estudantes titulares de

    L nccnln lrénts

    tecnológicos ou profissionais, considerados como culturalmente

     dominados . Essas características fazem dela um campo

    privilegiado de estudos de fenômenos que jásão observados em outros

    espaços, mas que devem produzir-se, massivamente, em talvez um

    terço das universidades francesas ao longo dos dez próximos anos.

    Trata-se, então, de analisar os mecanismos de afiliação que estão em

    curso nelas. A revelação desses mecanismos, mesmo que descobertos

    e analisados localmente, tem a ambição de ter um alcance mais geral

    e resultados suscetíveis de ser generalizados ou uti lizados em outras

    universidades.

      org n iz ção do livro

    Depois de iniciar expondo o contexto e as condições da pesquisa,

    bem como os métodos utilizados em campo, eu apresentarei as

    análises que me parecem possíveis sobre o material recolhido e os

    resultados a que cheguei. No primeiro capítulo, O tempo da

    estranheza , eu vou mostrar a desordem que atinge os estudantes

    quando eles chegam, pela primeira vez, à universidade e se defrontam

    com os dispositivos institucionais dentro dos quais eles terão de

    trabalhar. No segundo, O tempo da aprendizagem , eu vou expor

    as estratégias que eles utilizam, as perspectivas que se desenham, os

    desencantamentos que ameaçam levar ao abandono e a instalação

    progressiva de rotinas. Finalmente, no terceiro capítulo, O tempo

    da afiliação , eu insistirei sobre a interpretação que fazem os

    estudantes das regras do currículo e sobre a incorporação que fazem

    dos

    nllnnt de sai

    intelectuais que irão defini-Ios, progressivamente,

    como estudantes competentes.

    Concluindo, eu tentarei mostrar as conseqüências concretas que

    podem ter esses resultados, como um novo olhar possível acerca do

    primeiro ano de universidade. Eu vou tentar apresentar certo número

    de idéias que, se postas em prática, poderão favorecer uma pedagogia

    da afiliação. Com efeito, parece-me que múltiplas circunstâncias

    políticas, econômicas, sociológicas, psicológicas - que cercam a entrada

    dos estudantes nas universidades, por sua natureza, exigem ser

    consideradas seriamente e tratadas com urgência.

  • 8/16/2019 Condição de Estudante

    9/9 

    Notas

    N. do T.Em francês, há uma diferença entre a palavra éleve atribuída a crianças

    e jovens que estudam até o nível médio e

    étudinnt

    uti lizado apenas para jovens

    ingressos no ensino superior.

    N. do T. Optamos por manter a expressão original por já ser utilizada na

    literatura brasileira.

    Becker, G. S., Human Capital, New York, Columbia University Press, 1964;

    Mincer, J.,  Investment in Human Capital and Personal Income Oistribution ,

    Journal of Political Economy,

    1958, 66, p. 281-302.

    Becker, H. S.,Geer, B.,Hughes, E.c Strauss, A.L.,

    Boys

    in

    White. Student Culture

    in Medical School, New Brunswick, N. J., Transaction Books, 1977) [1961].

    N. do A. As  fraternities , ou as  sororities , caso setratem de rapazes ou moças,

    são grandes casas situadas em volta dos campi. Os estudantes aí vivem

    coletivamente ao longo do ano acadêmico. São lugares onde reina, em geral ,

    uma grande solidariedade.

    N. do A. Os estudantes de primeiro ano são chamados nos Estados Unidos de

    freshmen; no segundo ano, e les se tornam sophomore, em seguida, jllllior e, por

    fim,

    senior.

    Van Gennep A.,

    Les rites de passage,

    Paris, Picard, 1981 [1909],288 p.

    N.do T. Em francês,

    débrouillardise.

    Perrenoud, P.Lafabrication de / excellence scolaire, Geneve, Oroz, 1984.

    10 Coulon, A.,

    L éthnométhodologie,

    Paris, PUF Que sais-je? , no. 2393)

    5e

    édition, 2002.

    11 N. do T.O autor faz referência a uma observação feita por Bourdieu, explicada

    mais adiante no livro.

    A CONDiÇÃO DEESTUDANTE: A ENTRADA NA VIDA UNIVERSITÁRIA

    o CONTEXTO, O CAMPO

    E O MÉTODO DA PESQUISA

    A reforma dos primeiros ciclos de 1984

    Em 1982, o Ministério da Educação Nacional, então dirigido por

    Alain Savary, decide iniciar uma reforma dos primeiros ciclos

    universitários que iria culminar na lei de 1984. Esta reforma se tornou

    necessária em razão dos resultados quantitativos medíocres obtidos

    e, ao mesmo tempo, correspondia a um desejo de que os estudantes

    realizassem percursos profissionalizantes.

    Um grupo de especialistas foi então encarregado de conduzir uma

    reflexão sobre essa futura reforma, consultando centenas de organizações

    e personalidades e associando estreitamente universidades e

    universitários nesse momento preparatório. Foi assim que, centenas de

    pessoas ligadas ao ensino superior, participaram, em março de 1982, do

    colóquio organizado pela Universidade de Lyon

    l

    com a presença do

    ministro e sua equipeI

    o

    balanço

    Todos os estudos sobre os primeiros ciclos universi tários, qualquer

    que fossem as disciplinas ou w1iversidades, mostravam, depois do início

    dos anos de 1970, uma taxa expressiva de fracasso e abandonos: um

    estudante, em cada dois que entravam na universidade, saía sem

    nenhum diploma.

    Por outro lado, as formações universitárias, diversificadas ao

    longo dos anos de 1970, não respondiam muito às necessidades do

    mercado de trabalho nem às mudanças previstas a médio e longo

    prazo. Muitos estudantes se inscreviam sem um projeto preciso e a

    ALAIN COULON