28
Com som! Sem som...

Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

Com som! Sem som...

Page 2: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos
Page 3: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

Com som! Sem som...

Liberdades políticas, liberdades poéticas

Heloísa de A. Duarte ValenteSimone Luci Pereira [org.]

letraevoz

Page 4: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

© Copyright 2016 Os autores© Copyright 2016 Letra e Voz

Preparação de originaisMaria Zilda Gouveia

DiagramaçãoEstúdio Xlack

CapaLuiz Fukushiro

Com som! Sem som… Liberdades políticas, liberdades poéticas / Heloísa de A. Duarte Valente e Simone Luci Pereira, (organizadoras) -- São Paulo : Letra e Voz / Fapesp, 2016.

ISBN 978-85-93467-00-4

Vários autores.Bibliografia.

1. Música - Aspectos políticos. 2. Música de protesto. 3. Mídia. 4. Brasil - Política e governo - 1964-1985. 5. Música - América Latina. I. Valente, Heloísa de A. Duarte. II. Pereira, Simone Luci.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Índices para catálogo sistemático:1. Música - Aspectos políticos : Música de protesto : Mídia : Brasil - Política e governo -

1964-1985 : Música - América Latina : Coletâneas 781.59

CDD-781.59

Letra e Voz

Rua Dr. João Ferraz, 67

São Paulo – SP – 03059-040

(11) 3473-3054

www.letraevoz.com.br

[email protected]

Conselho editorial

Daphne Patai (UMass Amherst)

Fernando Luiz Cássio (UFABC)

Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)

Gerardo Necoechea Gracia (INAH)

Márcia Ramos de Oliveira (Udesc)

Marilda Aparecida de Menezes (UFCG)

Mônica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)

Ricardo Santhiago (Unicamp)

Richard Cándida Smith (UC Berkeley)

Page 5: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

Sumário

Prefácio 7

Apresentação 11

Sobre o Centro de Estudos em Música e Mídia 17

Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…

Arte, criatividade e vida do espírito: O que a liberdade de expressão tem a ver com isso? 23

Daphne Patai

Tempo de tocar, tempo de cantar, tempo de calar, tempo de inventar: Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil 51

Marisa Trench de Oliveira Fonterrada

Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira

A música como linguagem e os conceitos de música universal e música nacional 67

Lina M. Ribeiro de Noronha

O papel do compositor em debate na imprensa escrita: Brasil, décadas de 1920 a 1960 79

André Egg

Sambas de Adoniran em HQ: Narrativas transversais na cultura midiatizada 97

Laan Mendes de Barros

Page 6: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas

Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido! A canção de protesto como memória midiática da cultura 119

Heloísa de A. Duarte Valente

Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias através da palavra cantada 139

Susana Sardo e José Mário Branco

Música popular, migración, exilio, diáspora: Uruguay en los siglos XX y XXI 161

Marita Fornaro Bordolli

Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, un caso paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX 199

Mercedes Liska

Tecnologías del sonido más allá de la urbe 219

Miguel A. García

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa

La música en una cárcel de la dictadura chilena 237

Alfonso Padilla

Observar o inobservável: Música e tortura no oratório digital A Geladeira 251

Paulo C. Chagas

Sobre os autores 283

Page 7: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

Canções mensageirasA cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias através da palavra cantada

Susana Sardo

José Mário Branco

Este texto constitui um trabalho de reflexão – em progresso – sobre os processos de transformação política e social suscitados pelas canções quando elas atuam como dispositivos1 de militância ideológica. O processo de análise e de escrita usa como princípio a partilha de duas experiências diferentes: a de Susana Sardo, etnomusicóloga, cuja ação vem sendo desenvolvida a partir do seu papel como acadêmica e pesquisadora sobre diferentes

1 Sabemos o quanto o conceito de dispositivo é devedor à obra de Michel Foucault, cujas reflexões constituíram exercícios matriciais retomados posteriormente por autores como Gilles Deleuze, Hubert Dreyfus ou Paul Rabinow. Como refere Oscar Moro Abadía (2003), a pulverização do termo por diferentes domínios do saber é significativa dando lugar, frequentemente, a um uso conceptual despido de qualquer preocupação teórica que corre o risco de empobrecer o próprio conceito ou mesmo de o banalizar. No caso deste trabalho o conceito de dispositivo situa-se num plano contra-hegemônico – ao contrário do que sugere Foucault – enquanto mecanismo de subversão, de conscientização e de militância ideológica que se opõe a saberes e poderes instalados a partir de linhas de fratura e de fissura que tornam visíveis os saberes indizíveis (Deleuze, 1990).

Page 8: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

140 Com som! Sem som...

práticas musicais associadas ao espaço da lusofonia, e a de José Mário Branco, compositor e cantautor, cuja ação política pode ser encontrada de forma expressa na canção A Cantiga é uma Arma, abaixo descrita.

Usamos como universo de observação algumas canções que circularam entre Portugal e o Brasil durante as ditaduras e o período pós-ditaduras de ambos os países e optamos por uma análise que inclui uma constelação de processos discursivos que constroem e definem a vida de uma canção ao mesmo tempo que a tornam geradora de novas formas de entendimento do mundo. Interessa-nos a relação das canções com os seus compositores e intérpretes, as razões e os processos individuais e coletivos associados à sua criação e divulgação, e o modo como a recepção da palavra cantada pode superar a eficácia da palavra escrita oferecendo à canção um lugar importante enquanto ator no processo de transformação social.

Centraremos a nossa reflexão em canções de Chico Buarque, de José Afonso e de José Mário Branco, e no modo como elas constituíram vozes de denúncia da situação política de ambos os países gerando sentimentos coletivos de solidariedade e contribuindo para uma verdadeira conscientização, enquanto “desenvolvimento crítico da tomada de consciência” (Freire, 1979, p. 15).2 Nas palavras de José Mário Branco, cuja voz foi tantas vezes silenciada, a revolução em Portugal foi decisiva para o fim, pelo menos, de duas ditaduras: a brasileira e a espanhola. E as canções foram armas efetivas nesse processo. Vejamos então de que forma as canções e os seus cantores inscrevem esse potencial transformador e cúmplice e de que modo a tecnologia de mediação e de divulgação permitiu amplificar esse papel.

2 Adotamos a proposta de Paulo Freire, inspirada no resultado dos projetos educativos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros desenvolvidos durante a década de 1960, segundo a qual a conscientização “implica, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera critica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (Freire, 1979, p. 15).

Page 9: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

141Canções mensageiras

A canção, o cantor e a arte da presença

A canção ou cantiga – como também designamos em língua portuguesa o processo de cantar as palavras – tem constituído um universo de estudo e de análise profundamente pulverizado. A atenção sobre a canção tem estado a cargo de linguistas, fonologistas, psicólogos, musicólogos, etnomusicólogos, folcloristas, semiólogos, estetas, músicos, antropólogos e sociólogos. As abordagens a que tem estado sujeita refletem inevitavelmente interesses e orientações teóricas particulares e disciplinares: ora priorizando a palavra sobre a música ou o seu contrário, ora priorizando o fenômeno performativo, ora incidindo sobre a análise da voz no sentido da redução do ato de cantar a uma espécie de classificação universal do som corpóreo, ora, ainda, buscando no ato de cantar formas de expressão e de construção de uma espécie de cosmogonia individual e coletiva que confere sentido à ação humana. Para os etnomusicólogos, a palavra ‘canção’ parece mesmo ser incômoda talvez pela associação que acaba por ter ao formalismo clássico que a remete para um universo erudito quando, curiosamente, ela é, para os musicólogos, frequentemente tratada como um produto menor da produção erudita. Talvez por essa razão Fernanda Teixeira de Medeiros, Elizabeth Travassos e Cláudia Neiva de Matos, optaram, por chamar-lhe “palavra cantada”, em duas importantes edições de encontros acadêmicos sobre a canção (2001; 2008). É na introdução do livro que registra o segundo desses encontros que Ruth Finnegan, respondendo à pergunta “O que vem primeiro, o texto, a música ou a performance?”, averba o acontecimento performativo enquanto fator determinante para o entendimento das “artes de enunciação vocal”, definindo a canção como algo que tem lugar “(…) em um espaço e tempo específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos materiais, reunidos por agentes cocriadores em um evento imediato” (2008, p. 23-4).

Por outro lado, a experiência de compor e cantar canções – fortemente associada a um dos autores deste texto – permite

Page 10: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

142 Com som! Sem som...

inscrevê-la no quadro da criação concebendo-a como algo que está para lá da palavra e da música onde o cantor corporiza o que é necessário dizer. Neste contexto a canção não é a palavra mais a música ou o seu contrário. É algo diferente: quando a canção acontece tudo é significado. Este princípio reflete uma experiência oficinal: a de um cantautor português cuja biografia, enquanto compositor de canções ou cantigas, se inicia no exílio no final da década de 1960. José Mário Branco nasceu em 1942, na cidade do Porto e em 1963 exilou-se em Paris, tal como outros “cantores de Abril”, ficando impedido de entrar em Portugal onde o regime ditatorial de raiz fascista silenciava qualquer tentativa de posicionamento crítico. As canções eram então o modo possível de se fazer ouvir em Portugal animadas pelo sonho político de contribuir para a construção de um país livre. Na verdade – e assumindo agora a escrita no singular – para fazer uma canção é preciso sonho, paixão, impulso irreprimível! Foi aquilo que me levou a mim, que não fazia cantigas, a pegar numa velha viola que foi esquecida na minha casa em Paris e a pensar ‘deixa ver como é que isto se toca? Como é que eu canto as canções do Zeca?’… e de repente decidi: eu também quero dizer umas coisas! Preciso de dizer umas coisas! Não consigo deixar de dizer umas coisas! Que vêm de dentro! É muito orgânico!

Este testemunho deixa claro que não podemos elidir da canção a presença do indivíduo que lhe dá voz e, em particular, do cantautor. Nos casos analisados neste texto trata-se de cantores que compõem as próprias canções que cantam, assim reunindo no momento da performance uma intencionalidade que está expressa na ação prévia de concepção e de articulação da palavra com a música. A biografia de uma canção confunde-se, portanto, com a do seu cantor/criador e inscreve uma temporalidade que é anterior à sua performance e se pode prolongar para além dela quando a canção se torna resiliente. Para que isso aconteça é necessário que o indivíduo que dá voz à canção esteja presente em todos os momentos em que a canção acontece. Porém, esta “arte da presença” pode ser fragilizada pela mediação tecnológica quando esta se torna na única forma possível de aceder à música. A experiência asfixiante do exílio, por exemplo, ao mesmo tempo que pode ser superada pela possibilidade da voz do cantor ultrapassar as fronteiras vedadas ao corpo, torna inevitável a separação entre

Page 11: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

143Canções mensageiras

ele e a canção, que fica agora entregue ao percurso errático das tecnologias de divulgação da música.

As canções gravadas são como garrafas de náufragos atiradas ao mar… Ou como filhos que crescem e saem de casa para irem viver a sua vida. Quem as vai ouvir? não sei. Quem vai sentir o que eu senti? Não faço a mínima ideia. As canções passam a existir fora de mim. Deixa de haver coincidência entre sujeito e objeto. Tal como no palco, elas também são apropriadas e recriadas do lado de lá, só que, no caso da canção gravada, eu não sei por quem. (…) Foi assim no distanciamento insuperável do exílio. Presumi que as pessoas que ouviriam a Ronda do Soldadinho ou a Queixa das Almas Jovens Censuradas ou os Perfilados de Medo, lá nesse Portugal longínquo, cinzento e sofredor de uma ditadura jesuítica, provavelmente sentiriam o que eu senti, que era o que eu queria que elas sentissem. (Branco, 2009)

Ora, a impossibilidade de ter o cantor presente associada ao inevitável recurso à gravação e registro em disco, deve conduzir à “criação partilhada em diferido” que obriga a conceber a canção como uma encenação sonora teatral, sonoplástica, porque ela deve criar as condições para uma presença diferida do cantor. Ela deve tornar o cantor presente e isso é decisivo para que a própria canção se torne sempre presente e possa cumprir a sua missão, ou seja, transforme o ato de cantar em valor (mettre en valeur).

O etnomusicólogo Thomas Turino, inspirado por Charles Keil, designa este processo por “high-fidelity performance”, num conjunto axiomático que inscreve a performance participativa – quando não se reconhece a distinção entre o performer e o público – e a performance apresentativa, quando se estabelece uma clara distinção entre o performer e os receptores. Turino concebe a performance de alta fidelidade como um tipo de construção do som que procura reproduzir a performance ao vivo envolvendo, por isso, um conjunto de recursos humanos, técnicos e práticos que concorrem para esse fim a partir de um trabalho laboratorial de manipulação do som em estúdio.3

3 “High fidelity refers to the making of recordings that are intended to index or be iconic of life performance. While high fidelity recordings are connected to live performance in a variety of ways special recording techniques and practices are necessary to make

Page 12: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

144 Com som! Sem som...

Porém, nas situações em que a conjuntura política não permite a presença efetiva do cantor junto do público ao qual se dirige – como é o caso dos cantores exilados – o processo de relação entre a performance ao vivo e a performance de alta fidelidade inverte a equação proposta por Turino, ou seja, torna-se necessário colocar na performance ao vivo aquilo que o cantor colocou inicialmente no disco. Na verdade o disco é, nestes casos, o recurso possível para superar a impossibilidade da presença do cantor que é, no entanto, desejada e, por isso, idealizada e projetada para um futuro possível.

A adaptação ao disco nem sempre foi pacífica e a transição dos anos 1960 para os anos 1970, do “baladeiro andarilho” para a canção gravada – o disco –, tem como pano de fundo uma discussão muito viva que se esgrimia entre os diferentes cantautores sobre o que é uma canção e qual é o papel da música numa canção. O convite para gravar um disco produzia inevitáveis reflexões introspetivas: o que é que eu faço agora? Eu, em cima de um palco com a minha viola, a olhar para as pessoas e a cantar para elas posso fazer uma correta gestão da minha comunicação. No disco não! Estou fechado num estúdio, a gravar uma coisa, não sei quem é que vai ouvir, como é que vai ouvir, não sei quem são essas pessoas, não estou a vê-las, não sei em que estado é que vão estar, não sei se têm preconceitos em relação a mim ou se pelo contrário – o que é igualmente negativo – têm a prioris favoráveis… não sei, não controlo essa parte. É aí que intervêm as encenações sonoras como recurso para a arte da presença. Isto significa que no “vestir” de uma canção para um registro fonográfico devemos incorporar um conceito que é teatral – porque implica criar as condições de uma presença diferida –, e é radiofônico na medida em que é construído a partir de um processo sonoplástico. A experiência na rádio e no teatro é central nesta forma de ver a música porque assim como no teatro o ator deve sintetizar tudo, também no disco o músico o deve fazer. Fazer teatro, embora seja diferente de fazer música,

this connection evident in the sound recording, and additional artistic roles – including recordist, producers, and engineers – also help delineate high fidelity as a separate field of practice. Studio audio art involves the creation and manipulation of sounds in a studio or on a computer to create a recorded art object (a ‘sound sculpture’) that is not intended to represent real-time performance” (2008, p. 27).

Page 13: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

145Canções mensageiras

conduz – pela própria oficina das coisas – ao entendimento do que é essencial num disco: o cantor. E aqui nos referimos não apenas à voz do cantor mas também ao seu corpo, à sua identidade pessoal e patrimonial. Tudo o que se coloca num disco deve contribuir para esse entendimento. Por isso é tão importante o conceito de presença em diferido: o cantor tem que estar presente mesmo para quem o ouve no futuro. Tornar isso possível obriga à obediência a três princípios básicos: (1) ter uma consciência ajustada do que é uma canção; (2) ter a noção de que a música é uma linguagem que tem uma gramática, uma morfologia, uma sintaxe, uma prosódia e uma semântica, e que, portanto, não é só subjetividade porque diz efetivamente coisas; (3) adequar a construção da canção ao modo de produção. Ou seja, a gravação de um disco deve ter um objetivo de busca da verdade no contato diferido com o auditor e não se pode colocar no disco algo que ele depois não consiga ouvir ao vivo. É importante representar, com o mesmo nível de verdade, a estética, a ética e a técnica. E quando a técnica se sobrepõe a qualquer uma das anteriores deixamos de ter verdade.

E o que é a verdade numa canção? É fundamentalmente a mensagem ética que, no caso das canções de protesto ou de réplica4, reside na intenção específica do cantor de “construir valor político” transformando a canção numa arma de militância ideológica e, por consequência, de conscientização.

A Cantiga é uma Arma

A Cantiga é uma Arma é o título de uma canção que foi composta por José Mário Branco no Verão de 1973, durante o exílio na França. Foi editada pela primeira vez em disco pelo Grupo de Ação Cultural – Vozes da Luta (GAC), um grupo formado imediatamente após a revolução de 25 de abril de 1974, que pôs fim à ditadura fascista em Portugal. O grupo foi oficializado no dia um de maio,

4 Sobre a dificuldade de definição deste tipo de canções associadas à Revolução de Abril de 1974 em Portugal, ver Sardo (2014) e as demais referências bibliográficas deste capítulo.

Page 14: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

146 Com som! Sem som...

por iniciativa de Branco, então sob a designação de Coletivo de Ação Cultural (CAC). Reunia um conjunto de intelectuais e artistas de vários quadrantes políticos em torno de um mesmo ideário: a publicação e divulgação de mensagens que designavam por “político-culturais”, utilizando a música e as canções como instrumentos de militância e de propaganda ideológica.

O GAC apresentou-se publicamente pela primeira vez em 5 de maio de 1974, no I Encontro Livre da Canção Popular que teve lugar no Pavilhão dos Desportos no Porto. Editou o seu primeiro disco, justamente com o título A cantiga é uma arma, em 1975, que incluía um conjunto de canções maioritariamente compostas por José Mário Branco e que eram cantadas ao vivo pelo grupo em contextos extremamente diversos de um país que aprendia a viver em democracia. Referimo-nos a contextos como fábricas, quartéis, piquetes de luta, comissões de moradores, manifestações, comícios, campanhas eleitorais, empresas em autogestão, unidades coletivas de produção, escolas, entre outros (Guerreiro & Roxo, 2010). E o GAC, como muitos outros agrupamentos e músicos individualmente, atuava gratuitamente nesses contextos estando os seus membros imbuídos pelo objetivo de usar a música e a canção como instrumentos de transformação social, de conscientização e de construção de um país democrático. Como referem vários cantores de abril em múltiplos depoimentos, faziam-se canções nos bastidores para cantar no palco. Outras eram feitas após a saída dos jornais da noite para serem cantadas no dia seguinte na rádio, porque as canções eram verdadeiras ferramentas de combate político, como podemos ver neste exemplo restaurado pelas memórias de um dos autores deste texto, a propósito da composição de uma canção que viria a ser conhecida como A Luta dos Bairros Camarários5:

5 Os Bairros Camarários foram iniciativas da administração local em Portugal (Câmaras Municipais) instaladas durante os anos 1950 e 60, que visavam ao realojamento de populações de baixos recursos, transferindo-as, habitualmente, de zonas centrais das cidades para zonas periféricas. Estes bairros eram controlados por fiscais das Câmaras Municipais e, especialmente na cidade do Porto, conduziram a situações de extrema violência social uma vez que o livre arbítrio dos fiscais podia decidir a expulsão/despejo de moradores considerados, segundo o chamado Regulamento Abel Monteiro, “indignos do direito concedido” (Rodrigues, 1999).

Page 15: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

147Canções mensageiras

Havia uns amigos do Porto – Ricardo Sousa Lima, Alexandre Alves Costa, entre outros – que estavam ligados a um jornal chamado ‘Primeiro de Maio’ e que me dizem assim: “há ali uma malta que está a fazer um trabalho no Bairro São João de Deus e tu podias ir lá cantar umas coisas”. Eu fui ao bairro e perguntei “mas o que se passa aqui?”. ‘É pá, o que se passa aqui é que há aí uma malta que está revoltada, querem expulsar um fiscal da câmara que fez trinta por uma linha, reprimiu as pessoas, reprimiu famílias, por causa de um regulamento’… aquilo era ao ar livre, cheio de gente, o povo todo do bairro ali. E eu perguntei: ‘Há aí alguma salinha? E quem é que está a trabalhar aqui?’. Quem estava a trabalhar no bairro era uma socióloga ou assistente social que estava a fazer trabalho social no bairro, ou seja, ‘político’! Então fui com ela e pedi-lhe que me contasse a história do bairro. Ela contou como o bairro se formou, quais os problemas que tinha naquele momento, como as pessoas estavam revoltadas, disse-me como se chamava o fiscal da câmara municipal, relatou o modo como ele enviava camionetas para expulsar as famílias e retirar os recheios das casas para “os despejos”, e contou-me toda a história. Eu pedi um quarto de hora. Fiz uma letra, peguei na viola, ensaiei sozinho e pedi se podia ir começar a cantar. Dirigi-me às pessoas e disse: ‘Malta, eu tenho aqui uma canção que fiz e que vocês se calhar vão gostar!’. Cantei a canção pela primeira vez e aquilo ficou a ser o hino do bairro São João de Deus! Ao segundo refrão já estava tudo a cantar comigo! Este hino aparece depois publicado pelo GAC com o título ‘A Luta dos Bairros Camarários’. (José Mário Branco, transcrição de registro gravado em 13 set. 2014)

A Luta dos Bairros camarários

Os fascistas cá do PortoFazem Bairros CamaráriosEscondem nossa misériaNas costas dos seus palácios

Opressão aos moradoresNas costas do alvaráA opressão tem mil caras, tudo rouba e nada dá.

Page 16: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

148 Com som! Sem som...

A opressão tem mil carasTudo rouba e nada dáEm Portugal libertadoTudo isso acabará.

Moradores, povo unidoTodo junto lutará.Atiremos p’rá lixeiraA camionete e o fiscalAjudaremos assim a libertar Portugal.

E gritemos todos juntosPr’ajudar o movimento“Abaixo o Abel Monteiro mais o seu regulamento”

Portugal vivia em liberdade e, por isso, a euforia das canções era permanente, sendo frequente a transformação de refrãos de canções em slogans panfletários. As canções eram verdadeiras armas que permitiam sedimentar e divulgar mensagens políticas de uma forma bastante mais eficaz do que os textos escritos.6 Era,

6 Sérgio Godinho designa este processo por “grafitti sonoro” uma vez que frequentemente alguns refrãos de canções eram apropriados pelos movimentos de reivindicação política como palavras de ordem replicadas em situações de manifestação pública. E

Figura 1 – Capa do disco A Cantiga é uma Arma, VNL-LP / GAC ©1975.

Page 17: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

149Canções mensageiras

portanto, possível cantar em Portugal as canções censuradas e proibidas nos países em ditadura. Por essa razão, e porque tínhamos em comum uma língua, Portugal passou a cantar o que no Brasil era censurado ora através de canções compostas pelos cantautores portugueses, ora divulgando outras, compostas por cantautores brasileiros, e que se dedicavam igualmente a denunciar a ditadura militar.

Vejamos então o papel que algumas canções adquiriram no eixo Portugal-Brasil, quando criadas e difundidas a partir da mediação tecnológica. Algumas narram ou descrevem a situação política no Brasil, outras descrevem a situação política em Portugal. Todas são destinadas a interlocutores de ambos os países enquanto forma de denúncia ou de celebração, e difundidas através da intermediação de diferentes tecnologias de som. Em todos os casos, pelas mesmas razões mas por processos diferentes, as canções foram divulgadas e difundidas em situações políticas que não permitiam a presença efetiva do cantor frente ao público ao qual se dirigiam. Porém, todas estabelecem uma estreita relação de filiação com o seu autor/criador/intérprete que, embora ofereça a sua voz individual a uma espécie de representação coletiva, não deixa, no entanto, de permanecer presente. Centremo-nos no exemplo de três canções: Alípio de Freitas, do português José Afonso, Meu Caro Amigo do brasileiro Chico Buarque, e Sangue em Flor, de José Mário Branco.

As canções mensageiras

A canção Alípio de Freitas foi composta por José Afonso em 1976, a partir de uma carta a que teve acesso, escrita pelo próprio Alípio de Freitas quando este se encontrava detido no Brasil. Alípio de Freitas nasceu em Vinhais, concelho de Bragança, na região nortenha de Trás-os-Montes. Em 1952 foi ordenado padre, e em 1957 decidiu imigrar para o Brasil tendo a seu cargo

desta forma a disseminação da palavra, uma vez cantada, tornava-se num processo profundamente eficaz em termos operacionais e de conscientização.

Page 18: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

150 Com som! Sem som...

uma paróquia da região suburbana de São Luís do Maranhão. Aí iniciou uma função quase missionária, fundou uma escola e um posto médico, e decidiu celebrar missa em português, desobedecendo à ordem eclesiástica e antecipando de alguma forma as decisões do Concílio Vaticano II, que só em 1962 aceitou o ritual em línguas vernáculas. Em 1962, participou em Moscou do Congresso Mundial da Paz, onde conheceu Pablo Neruda, La Pasionária e Nikita Khrushchov. Na sequência desta experiência, decidiu abandonar a hierarquia da igreja, naturalizou-se brasileiro e iniciou um processo de ativismo e de militância política a favor do movimento do campesinato pela ocupação das terras enquanto membro fundador das Ligas Camponesas. Após o golpe militar de 1964, exilou-se no México e mais tarde recebeu treino político e militar em Cuba, acompanhando Che Guevara na guerrilha. Voltou clandestinamente ao Brasil em 1966, e em 1970 foi detido e encarcerado da Fortaleza de Santa Cruz, na Baía de Guanabara. Era então dirigente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Alípio de Freitas esteve detido durante nove anos e foi sujeito a vários tipos de tortura – como 30 dias de privação de sono – e reclusão solitária, tendo saído em 1979 como apátrida, refugiando-se em Moçambique.

Em 1974, após ter tido conhecimento da Revolução de Abril em Portugal, Alípio conseguiu fazer chegar a Lisboa uma carta de denúncia da situação política do Brasil, cujo objetivo seria a sua publicação em jornais de grande tiragem. Porém, o portador da carta – Jacinto Rego de Almeida, à data Conselheiro Econômico da Embaixada de Portugal no Brasil – decidiu que o conteúdo da carta teria mais efeito se fosse cantado por José Afonso ao invés de ser publicada num jornal. O resultado dessa decisão ficou expresso na canção Alípio de Freitas, editada em 1976 no disco Com as Minhas Tamanquinhas, que José Afonso dedicou a denunciar uma espécie de retrocesso em relação à utopia socialista que de alguma forma decidiu a Revolução de Abril em Portugal. A maior parte do texto da canção usa as próprias palavras de Alípio na carta que escreveu para um destinatário coletivo.

Page 19: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

151Canções mensageiras

Alípio de Freitas

Baía de GuanabaraSanta Cruz na fortalezaEstá preso Alípio de FreitasHomem de grande firmeza

Em Maio de mil setentaNuma casa clandestinaCom campanheira e a filhaCaiu nas garras da CIA

Diz Alípio à nossa gente:“Quero que saibam aíQue no Brasil já morreramNa tortura mais de mil

Lá no sertão nordestinoTerra de tanta pobrezaCom Francisco JuliãoForma as ligas camponesas

Ao lado dos exploradosNo combate à opressãoNão me importa que me matem

Figura 2 – Capa do disco Com as Minhas Tamanquinhas. 1976 © Orfeo – STAT 036.

Page 20: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

152 Com som! Sem som...

Outros amigos virão

Na prisão de TiradentesDepois da greve da fomeEm mais de cinco masmorrasNão há tortura que o dome

Fascistas da mesma igualha(Ao tempo Carlos Lacerda)Sabei que o povo não falhaSeja aqui ou outra terra

Em Santa Cruz há um monstro(Só não vê quem não tem vistaDeu sete voltas à terraChamaram-lhe imperialista

Alípio, que então não conhecia José Afonso, descreve desta forma o modo como ouviu a canção, ainda na prisão:

Era meados de 1977. Talvez maio, junho ou setembro. Não me recordo. “Seu” Zezinho, o chefe da carceragem, pediu-me para passar lá, pois tinha uma encomenda para me entregar. Fora, disse-me ele, um Senhor da Embaixada de Portugal (Jacinto Rego de Almeida) que me deixara.Voltei para a minha cela e lá abri o pacote. Continha jornais portugueses, entre eles o Expresso e uma cassete com músicas de um cantor, que eu desconhecia, chamado José Afonso. Coloquei a cassete num gravador e fui ouvindo, não sem estranhar os temas e, sobretudo o seu engajamento político. Aquilo era diferente de tudo o que até então tinha ouvido. Só encontrava paralelo na música latino-americana de intervenção.Quando o gravador começou a debitar a última música, achei que não estava a ouvir bem. Rebobinei a fita, acomodei-me na cadeira onde estava sentado, carreguei no botão e comecei a ouvir de novo:

“Baía de GuanabaraSanta Cruz na FortalezaEstá preso Alípio de Freitas…”

Com o coração apertado, a emoção a subir-me pela garganta, as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, cobri o rosto com

Page 21: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

153Canções mensageiras

as mãos e quando o gravador se calou, encostei a cabeça na mesa de cimento à minha frente e chorei, chorei, até as lágrimas secarem. Afinal nunca estivéramos sós na dura e aparentemente interminável guerra que travávamos contra a ditadura militar. Muitos, muitos e em muitos lugares do mundo estavam a lutar conosco.À noite, depois de jantar, na sala de convívio, todos os que ali, na Frei Caneca (Rio de Janeiro), estávamos presos, escutámos o Zeca. Quando, porém, a “minha cantiga” começou, todos os que estivemos na “batalha” da Fortaleza de Santa Cruz, fomos possuídos pela inabalável certeza de que foi ali que a ditadura militar começou a ser derrotada. O Zeca foi a voz que denunciou a opressão e o arauto que anunciou ao mundo o triunfo de uma liberdade até então oprimida.7

O impacte desta canção trouxe para a discussão pública em Portugal o tema da ditadura brasileira enfatizado ainda por outras canções que nos chegavam agora do Brasil pela voz, sobretudo, de Chico Buarque. São disso exemplo as canções Fado Tropical e Tanto Mar. A primeira – com música de Chico Buarque e letra do poeta moçambicano Ruy Guerra – foi composta em 1972 e editada inicialmente no disco Calabar, que foi integralmente proibido pelo Regime Militar. Um ano depois, “limpo” pelas obrigações da censura e alterado o título e a capa, a Philips voltou a editar o disco com o título Chico Canta. O texto desta canção e a música – com arranjos de Edu Lobo – remete para o regime ditatorial português considerado escabroso e alerta para os riscos do Brasil se transformar num “imenso Portugal”. A perenidade desta canção – que lhe valeu várias versões gravadas em momentos diferentes da história dos dois países – está consagrada na sua inclusão no Filme Fados de Carlos Saura (2007).8

A segunda canção, Tanto Mar, foi composta em 1975 como forma de saudação à revolução dos cravos. No Brasil a censura

7 Este excerto faz parte de um texto mais amplo publicado no blogue Carta Varia, que Alípio de Freitas mantém ativo desde 2012. Pode ser consultado em: <http://cartavaria.blogspot.com/2012/03/esta-estoria-que-vos-conto-santa-cruz.html>. Acesso em: 27 fev. 2017. A sua inclusão neste texto foi autorizada pelo autor, com quem Susana Sardo teve o privilégio de conversar sobre esta mesma experiência em dezembro de 2013.

8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HiN5AqGaSM8>. Acesso em:

Page 22: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

154 Com som! Sem som...

vetou o texto desta canção que foi inicialmente gravada ao vivo com Maria Bethânia e posteriormente gravada e divulgada apenas em Portugal. O texto desta canção é alterado e regravado em 1978, alertando agora para o fim do sonho socialista em Portugal que de alguma forma se esvai com o fim do PREC (processo revolucionário em curso), e o golpe de 25 de novembro de 1975. A resiliência desta canção manifesta-se, entre outras coisas, pela sua inclusão no filme Viagem a Portugal 2014, do realizador Sérgio Tréfaut, a propósito da celebração do 40º aniversário da revolução de 25 de abril.9

Mas para o argumento deste texto, a canção Meu Caro Amigo, é um exemplo singular, sobretudo porque ela inscreve o paradigma das canções mensageiras enquanto encenações sonoras que oferecem ao cantor o privilégio da “presença em diferido” e, com ela, a voz coletiva que procura representar. Esta canção de alguma forma se assemelha àquela que conferiu protagonismo à canção de José Afonso sobre Alípio de Freitas. Foi composta em 1976 e editada no disco Meus Caros Amigos pela Phonogram. Na altura, o teatrólogo Augusto Boal, estava exilado em Portugal mas mantinha contato com os amigos no Brasil a quem pedia notícias e de quem recebia cartas enviadas frequentemente em mãos por portadores confiáveis. Chico Buarque decidiu responder ao apelo de Boal compondo esta canção com música de Francis Hime, cuja primeira versão é uma gravação doméstica, feita em sua casa com Hime ao piano, e que a mãe de Boal transportou para Portugal em mãos. A audição desta cassete aconteceu durante um almoço em casa de Boal, em Lisboa, na companhia de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, e outros brasileiros exilados e, também, de José Mário Branco. A “carta-cassete”, como ficou conhecida em Portugal e também no Brasil, é uma denúncia da situação que o Brasil vivia e imediatamente é divulgada nas rádios portuguesas, apesar da precariedade do suporte tecnológico. No entanto ela oferece uma dimensão de presença muito singular como uma espécie de

27 fev. 2017. O filme Fados faz parte de um conjunto de trabalhos que o realizador espanhol Carlos Saura dedicou a diferentes gêneros musicais icônicos, como são o caso do Flamenco – expresso numa trilogia – e do Tango.

9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hdvheuHhF2U>. Acesso em: 27 fev. 2017. O filme Viagem a Portugal 2014 é a primeira experiência ficcional do cineasta-documentarista português de origem brasileira Sérgio Tréfaut.

Page 23: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

155Canções mensageiras

pedido de ajuda, pelo modo informal como foi gravada, e mesmo improvisada, na própria casa de Chico Buarque.

A divulgação desta canção através da rádio – sobretudo – valeu a Chico Buarque um convite para participar na edição de 1980 da Festa do Avante, uma festa com a duração de três dias, anualmente organizada pelo Partido Comunista Português, de grande projeção nacional e internacional. A Festa do Avante é, desde 1976, um lugar de circulação de músicos politicamente engajados mas cujo impacte abrange públicos diversificados. Foi, e continua a ser, um espaço de conscientização política intensiva, onde a música tem um lugar quase permanente. Durante os três dias de Festa músicos e públicos relembram as celebrações de abril de 1974 e hoje partilham repertórios sonoros que, como referido noutro lugar por Susana Sardo (2014), são agora ressemantizados e (con)sentidos. Chico Buarque foi, efetivamente, um dos músicos mais esperados na Festa do Avante assim como nos espaços mais nobres das salas de concerto em Portugal como os Coliseus de Lisboa e Porto. E a sua música tinha assento permanente na rádio, tal como hoje continua a ter.

Figura 3 – Diário de Lisboa, 11 jul. 1980 (recorte).

Page 24: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

156 Com som! Sem som...

Figura 4 – Cartaz da Festa do Avante, 1980

Finalmente incluímos na nossa análise uma última canção, composta pelo GAC em 1977 de autoria de José Mário Branco e Luis Pedro Faro. Por intermédio de vários brasileiros que viviam em Lisboa e que pertenciam ao PCdoB – Partido Comunista do Brasil integrado em Portugal no PC(R) maoísta –, o GAC teve conhecimento da morte de três brasileiros na Chacina da Lapa, durante interrogatórios levados a cabo pela polícia política no Brasil. José Mário compôs então Sangue em Flor, que foi editada num single que inclui, no lado B, um poema de Sophia de Mello Breyner, por ela declamado.

Page 25: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

157Canções mensageiras

Sangue em Flor

Foi na noite dos chacaisFoi no Brasil dos generaisMorrendo pela revoluçãoFoi Pedro, Ângelo e JoãoCompanheiros, sereis imortais.

Brasil, irmãoTeu povo venceráPara vingar a tua dorO sangue em flor renascerá.

Onze vidas na prisãoCom planos de justiça e pãoNas mãos sangrentas da torturaNão há sol na ditadura Nem sangue que vença a razão.

Brasil, irmãoTeu povo vencerá. Para vingar a tua dorO sangue em flor renascerá.

Figuras 5 e 6 – Capa e Lado A do disco Sangue em Flor, 1977 © Edição “Vozes da Luta” – Cooperativa de Ação Cultural, SCARL e C.A.L.P.A.P

Page 26: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

158 Com som! Sem som...

Companheiros que lutaisSomos milhões a vós iguaisLutando para vos libertarUnidos todos a gritarQue já sois o sol que anunciais

Em 20 de maio de 2013, Sangue em Flor foi interpretada pelo Grupo Coral do Município de São Paulo numa homenagem a Pedro Pomar, um dos militantes a quem a canção é dedicada, no dia em que Pomar completaria 100 anos.10 A canção foi composta para ser interpretada em coro e juntar tantas vozes quantas as necessárias para acabar com a chacina e denunciar as atrocidades que se passavam no Brasil.

Considerações finais

Os exemplos acima descritos permitem-nos estabelecer pelo menos três planos de análise. O primeiro mostra-nos que as canções – ou algumas canções – constituíram efetivos dispositivos para o estabelecimento de relações solidárias entre Portugal e o Brasil, na denúncia de ambas as ditaduras. Portugal, em especial, foi não só o destinatário e depositário das canções de Chico Buarque – quando o Brasil o silenciava – como os próprios cantautores portugueses juntaram a sua voz à dos cantores brasileiros criando as suas próprias canções de denúncia. O caso das canções Alípio de Freitas e Sangue em Flor, definem exemplos evidentes deste processo. O segundo mostra-nos que a canção, enquanto encenação sonora sujeita à cosmética da gravação de som, pode superar o imediatismo da performance ao vivo e transformar-se numa “arte da presença”, convertendo em valor todos os meios de produção que lhe permitem construir sentido e significado (mettre en valeur). Um deles é, seguramente, o uso da tecnologia de som como forma de divulgação da mensagem estética e ética cujo

10 Pedro Pomar (1913-1976) foi fundador do Partido Comunista Brasileiro, e perseguido pela ditadura militar num processo que culminaria com o seu assassinato, por fuzilamento sumário, no dia 16 de dezembro de 1976 durante a “Chacina da Lapa”. Dentre as várias obras publicadas no Brasil sobre a sua ação política, destaca-se a sua biografia, reeditada em 2013 por Wladimir Pomar.

Page 27: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

159Canções mensageiras

alcance, embora desconhecido a priori pelos cantores, estabelece um modo de identificação biográfica tornando a performance em diferido numa efetiva forma de presença. Finalmente, 44 anos após o 25 de abril de 1974 em Portugal e 33 após o fim da ditadura no Brasil, as canções aqui descritas permanecem no repertório central de uma espécie de cancioneiro político português e brasileiro sendo regularmente invocadas como memória de uma história recente que está, ainda, suficientemente presente. Para além de Tanto Mar e Fado Tropical – atrás identificadas, – Alípio de Freitas foi reinterpretada em 2014 pelo grupo Coupple Coffee (na voz de Luanda Cozetti), e Sangue em Flor foi interpretada em 2013 pelo grupo coral UNEGRO do Município de São Paulo como hino de homenagem aos presos políticos mortos pela ditadura.

Na verdade, estas canções ou cantigas, parecem ter superado a própria arte da presença e permanecem hoje como “grafittis sonoros”, nas palavras de Sérgio Godinho, adquirindo uma eficácia muito superior a qualquer discurso político, dito ou escrito. A cantiga parece continuar a ser uma arma não só como dispositivo de militância ideológica e de conscientização mas como forma de documentar a memória, emancipando-se do seu cantor embora, na verdade, nesse processo de superação da ausência o torne efetivamente presente. Nesse sentido talvez seja possível recuperar para a canção, e para o seu cantor, a proposta profética de Gabriel Celaya sobre a poesia. Nos casos aqui descritos as cantigas constituíram efetivas armas carregadas de futuro

Referências

Branco, J. M. A oficina da canção (II): criação partilhada em diferido, 2009. Disponível em: <http://passapalavra.info/2009/08/10781>. Acesso em: 27 fev. 2017.

Deleuze, G. “Que és un dispositivo?”. In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-61.

Freire, P. Conscientização: Teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

Page 28: Com som! Sem som SSardoJMB final.pdf · específicos através da ativação da música, do texto e do canto, e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos

160 Com som! Sem som...

Finnegan, R. “O que vem primeiro: O texto, a música ou a performance?”. In: Matos, C. N.; Travassos, E.; Medeiros, F. T. (org.) Palavra cantada: Ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 15-43.

Guerreiro, C.; Roxo, P. “GAC (Grupo de Ação Cultural-Vozes da Luta)”. In: Castelo-Branco, S. (org.) Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010. p. 551-3.

Matos, C. N.; Travassos, E.; Medeiros, F. T. (org.) Palavra cantada: Ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

Moro Abadía, O. “Que és un dispositivo?”. EMPIRIA. Revista de Metodología de Ciencias Sociales, n. 6, 2003, p. 29-46.

Pomar, W. Pedro Pomar: Uma vida em vermelho. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013.

Rodrigues, M. Pelo Direito à Cidade: O movimento de moradores no Porto (1974-76). Porto: Campo das Letras, 1999.

Sardo, S. “Fado, folclore e canção de protesto em Portugal: Repolitização e (con)sentimento estético em contextos de ditadura e democracia”. Revista Debates (Unirio), n. 12, 2014, p. 63-77.

Turino, T. Music as Social Life: The Politics of Participation. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2008.