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1 códex mikhæ por Sérgio Roberto Rodrigues de Oliveira

códex mikhae - mateus göettees

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códex mikhæ

por Sérgio Roberto Rodrigues de Oliveira

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o olho atrás da porta.................................................................................................................4 o velho e grande olmo de Trafalgar .....................................................................................12 despertando demônios............................................................................................................20 interlúdio ..................................................................................................................................30 fantasma não, mãe... índios. ..................................................................................................42 tem gente na asa do avião. .....................................................................................................55 acredita em fantasmas?..........................................................................................................68 a premonição. ..........................................................................................................................84 os paramédicos ........................................................................................................................92 conversando sozinho.............................................................................................................108 o mensageiro de jeanne. .......................................................................................................120 o campo de guerra. ...............................................................................................................133 quem são vocês? ....................................................................................................................140 o conclave ...............................................................................................................................152 o primo embate......................................................................................................................165 travesseiros.............................................................................................................................175 convento dos cordeliers.........................................................................................................179 conexão dos mortos...............................................................................................................198 princeps militae coelestis.......................................................................................................213 o retrato de chaves ................................................................................................................222 a dissensão..............................................................................................................................236 francesco bernardone ...........................................................................................................238 portas abertas para...............................................................................................................243 contratempo ...........................................................................................................................253 não há nada que... .................................................................................................................264 ...se possa fazer? ....................................................................................................................274 por trás dos olhos fechados..................................................................................................283 sete de dezembros. ................................................................................................................292 escalem o monte nitaha. .......................................................................................................314 bandeiras fincadas. ...............................................................................................................333 a repercussão. ........................................................................................................................344 sorrisos falhos. .......................................................................................................................349 somos todos culpados. ..........................................................................................................363 compromisso. .........................................................................................................................378 o menor e o maior. ................................................................................................................384 renascendo das cinzas...........................................................................................................393 o olho atrás.............................................................................................................................404

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"Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu”. Ap. 12:7

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PREÂMBULO

o olho atrás da porta

A mesma noite tenebrosa dos últimos dias recomeçava.

O mesmo tempo frio e úmido parecia dar o tom do que estava prestes para acontecer. Não que as coisas ruins acontecessem nestes dias, mesmo porque quando as bruxas estão soltas existe sempre o lado bom –– pelo menos um.

A chuva que não atingia senão um chuvisco nebuloso dava às casas próximas um ar de calmaria exacerbada. O ar não se mexia, o odor acre da fuligem não se dissipava e nem as luzes dos postes brilhavam em meio ao denso nevoeiro. Carros não se moviam, pessoas não apareceriam, nem um som era ouvido e as luzes continuavam como um leve embaçado nas janelas que ousavam se mostrar vivas.

A cinquenta e nove minutos do centro, Amersham era uma dessas comunidades pacatas preenchidas de sutilezas que nem seus moradores poderiam desconfiar, se bem que imaginavam quais. As casas quase georgianas, construídas lado a lado, igualmente imponentes e minúsculas, se preparavam para uma longa noite de tempestade. As chaminés que emergiam aqui e ali deixavam escapar colunas de fumaça que indicavam que estas casas ainda estavam acordadas.

E é em uma destas casas escondidas entre arvoredos do subúrbio londrino, com seus jardins bem cuidados, onde as coisas estão suspensas, aguardando o momento que ‘eles‘ esperavam.

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Dentro, ambientes adormecidos, pois já passa da meia-noite, e uma pequena luz se acende. Primeiro no quarto, depois num outro cômodo. Como quem acorda de um sono profundo, a casa geme ao inesperado som do vento que se arremessa entre os vãos das portas e janelas, rangendo a madeira do telhado. Aos poucos, o barulho aumenta, um passo rápido, pequenas vozes e, enfim, da penumbra de uma porta semiaberta, um olho somente, que estava esperando a sua hora de piscar. Que despertara involuntariamente de um pesadelo e ainda transpirava imaginando ter sido atacado por lanças e espadas entre gritos e a agitação de imagens perturbadoras.

Da fresta, embora atordoado e confuso, ele podia ver duas pessoas que conhecia muito bem –– os seus pais.

Podiam dizer que compunham uma família bem comum, sem

mais para contar a respeito –– e era o que importava aos outros. No entanto, como em qualquer família trivial , eles tinham seus segredos. Destes segredos que todos teimam em esconder e mesmo assim, à boca pequena, todos sabem. E as coisas estavam realmente tensas, absorvidas por posturas fingidas que ditavam o que se podia fazer ou não.

O silêncio estava simplesmente aguardando que uma explosão de sons irrompesse em combate. Havia um motivo para eles estarem nervosos e desassossegados. Como sempre, um pequeno ele achava –– prestando atenção ao que aconteceria a seguir, de sua fresta oportuna –– que seus pais tinham razão; e pensando bem, as coisas estranhas que lhe aconteciam deviam ser realmente intoleráveis.

Teimavam em espremê-lo a cada instante, interrogando de onde vinham as tais esquisitices ou se ele estava apenas sendo mais um rebelde, provocando-os por algum pretexto desconhecido. Nada de mais, porém o senhor Patrick Fox considerava tudo uma grave infração dos costumes e da rotina vitoriana inglesa, mesmo sendo ele um irlandês nato. Apesar das atitudes do pai, era a mãe, Sarah, que sempre conseguia mudar qualquer opinião exagerada sobre o assunto, tanto dos outros quanto o de seu pai. Sabia persuadir como ninguém; tinha na

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manga não só uma boa carta, mas uma quadra de ás que não deixava dúvidas, nem para o mais cabeça-dura que topasse em seu caminho.

Alerta, cheia de vida e perspicaz, era prática e nunca desistia de fazer com que os outros pensassem melhor sobre tal coisa –– desde que fosse a verdade, mesmo que a sua verdade. Talvez por isto tenha se casado com alguém que lhe era o adverso –– o aventureiro, apaixonado, corajoso, turrão e que dizia o que lhe vinha à cabeça, quase sempre passando da conta.

Podiam dizer que ele era tenso demais, esquentado e que falava mais do que devia. E era a mais absoluta verdade. Nisso acabava magoando quem não precisava e quem não queria –– e nem sempre consertava o erro. Ambos eram sensatos à sua maneira. Um por falar sem pensar para depois arcar com o remorso e, o outro pensando duas vezes antes de abrir a boca. E é aí que entra o olho que está atrás da porta, observando a discussão, vítima deste exagero.

Patrick passava os dedos por entre os fios de cabelo

pressionando-os esporadicamente contra a testa franzida enquanto notava a papelada espalhada sobre a mesa. Calara-se atordoado. E o dedo desfilava abrindo caminho entre os documentos, destacando valores de contas, prestações em atrasos, mensalidades e dívidas que lhe fugiam a uma solução imediata. A mais pura verdade era que estavam desempregados.

Ergueu uma perna passando os braços como uma criança apavorada e se não tivesse com o rosto escondido poderíamos vê-lo transfigurado pela ansiedade. Sarah sentara-se, despertando-o da distração. Ele não estava preocupado com as contas que se amontoavam, mas sim com o que acontecera há alguns dias. E este não envolvia valores, mas atitudes. Atitudes estranhas do seu próprio filho.

–– Problemas com dinheiro, Patrick? Ele resmungou um talvez nada convincente. –– Sei, ainda está pensando no Sean, não está? Heim? ––

enfática o bastante para que estivesse mais do que certa. Bastou ele levantar os olhos e ela confirmou suas desconfianças.

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Da cozinha, sentados à mesa, passariam a discutir novamente

sobre o filho mais velho que acabava de aprontar mais uma das suas. E esfregando desorganizadamente seus cabelos amarelados, o senhor Fox, mantinha a testa comprimida de cansaço enquanto desabafava. Magro, porém atlético, vivia ocultando-se em suas camisetas largas e surradas do seu time de futebol favorito. E como era o avesso da senhora Fox também era atrapalhado e meio aéreo, estava provavelmente preocupado com a morte da bezerra.

–– Estou cansado destas esquisitices –– socando a mesa com insistência instintiva ––, talvez fosse melhor que ele..., ou talvez o garoto... essa foi a gota d’água! Quantas vezes eu vou ter que dizer para ele não fazer isso, até parece criança! –– Sarah rapidamente tapou-lhe a boca e sussurrando ao ouvido disse: –– É claro que é uma criança. Não está vendo que estamos em casa e que alguém po-de nos ouvir? O que pensa que está fazendo. –– desta vez aumentando alguns tons –– Não lhe dou o direito de falar assim, não se lembra da última vez que falou pelos cotovelos?!

Assim mesmo estava bastante calma e continuava tentando prender seus longos cabelos escuros com um palito de madeira que tirara da gaveta dos talheres. E como era o contrário do Patrick vestia-se até bem demais para quem ia dormir. O senhor Fox resmungou –– Mas não se lembra das outras vezes?! Agora ele saltou de cabeça no rio porque pensou ter ouvido alguém gritar socorro? Acorda Sarah! E quando a mesa de jantar disparou contra a janela só porque ele quis! Então me diga que não é ele?!

Levantou-se tão veloz que a cadeira voou contra a parede logo atrás. Largava as mãos sobre a mesa, encurvado diante dos olhos de Sarah, mas antes que pudesse desabafar o resto.

–– Cale a boca! Quem você pensa que é para dizer isto ou aquilo! Sempre com medo do que os outros dirão? –– e finalizou sarcástica –– Então vá morar com eles.

Ela era assim, não deixava a conversa virar um diálogo muito extenso. Bastava abrir a boca que ela tomava as rédeas. Ele suspirou, ergueu os olhos chorosos da mesa da copa em direção à porta do quarto dos filhos. –– Acho que não escutaram –– frisou enquanto o relógio insistia num tique-taque frenético. No mesmo

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instante sorriu envergonhado, chacoalhando a cabeça –– dura –– desdenhando de si mesmo, esperando a razão acordar. Ria baixinho como um idiota que era.

–– E isso é desculpa?! –– e em seguida ela estalou um bofetão bobo no seu rosto, principalmente por causa de como agira, e sem dar tempo a qualquer reação, falou:

–– Nem ouse me censurar, você sabe que eu estou certa e este tapa foi merecido, ou não foi!

O pranto amargo corria sua face, com algum arrependimento evidenciado. Procurava descontar em qualquer um qualquer interferência em sua vida. Como um cãozinho assustado concordou e levantando a mão para pedir uma trégua, repetiu: ––Um tapa merecido, sim. Me perdoa?! Sei que não devo descarregar nele... Eu o amo. Mas ele precisa falar dessas coisas? Você sabe como as pessoas são preconceituosas e já estão nos segregando... estamos ficando sós. O que os outros vão dizer...

–– O que lhes ocupam a cabeça oca, nada de muito importante. Basta. –– e o vento tremeu as vidraças como se fossem ordenadas pelo basta.

–– Mas... –– já propenso em aceitar o fato. ––... o resto que fique por conta de quem não tem nada para

fazer. E chega de inventar desculpas. Ele é nosso filho. E temos contas a pagar... É essa a imagem que você quer deixar pro seu filho? Quando ele precisar de sua ajuda vai se lembrar de alguém que seria melhor evitar. Não importa o que acontece, mas sim o que podemos oferecer. Como somos seus pais, devemos fazer de tudo para que possa sempre confiar em nós. Não estou dizendo que devemos ser anjos da perfeição, contudo temos nossas obrigações. Como seria se um dia ele quisesse nos contar algo extraordinário e, em sua cabeça, fossemos aqueles a quem é melhor se evitar e diz não para tudo?!

–– Tá certa, mas é que eu não sei lidar com tudo que está acontecendo. Prefiro ignorá-lo. –– antes que ela respondesse –– Esse é o meu jeito, porém vou tentar algo novo. De qualquer forma precisamos descobrir do que se trata, não concorda?

Balançou a cabeça levemente antes de completar –– Acho, pelo menos vamos tentar. Depois veremos.

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Agora a chuva começava a cair fragilmente, o suficiente para prejudicar quem quisesse ouvir a conversa ao longe. Sarah apoiou suas mãos sobre as dele e deu um puxão vigoroso, derrubando Patrick sobre a mesa. Ela se aconchegou com o queixo sobre os braços cruzados, estavam cara a cara. E os lábios mexeram, não para dizer sim, mas para um beijo de conciliação. Em pouco tempo estariam dançando desajeitadamente enquanto Patrick cantarolava Sinatra aos ouvidos solidários. –– Meu querido diabo! –– Sarah se aconchegava aos braços protetores. O que ela devia ter perdoado estava acima do que a conversa revelava. Não eram somente as coisas estranhas que vinham acontecendo com o filho ou as dificuldades em conseguir trabalho ou se o gato já foi ao veterinário naquela semana ou não. A verdade ia além do que o garoto ouviu escondido.

Infelizmente o olho atrás da porta não havia visto e escutado

tudo, fugiu assim que percebeu os olhos que o perscrutavam alcançar os seus.

Refugiou-se na cama, num choro de raiva contida que desaparecia ao tamborilar da garoa na calha. O quarto parecia-lhe intenso, a cada relâmpago as pequenas estrelas fosforescentes faiscavam esverdeadas no teto enquanto as sombras se mexiam trêmulas. Os fantasmas se moviam a cada relâmpago.

Ele era um covarde, nem sabia porque respondera ao socorro. Estúpido, pensava de si. Além da angústia também tremia de medo, havia muita fúria em si, de suas esquisitices –– como dizia papai –– mas o amava bastante, não era culpa dele se...

Nem haviam começado tais pensamentos e um vulto se aproximou da sua cama. Assustou-se quase que imediatamente e um arrepio de surpresa modificou-lhe, por um tempo, a sua atitude melancólica. Procurou disfarçar. Fingiu estar dormindo, não queria falar com ninguém e nem que o vissem deste jeito. Agora esse alguém puxava suas cobertas.

Continuou o teatro. Mas parecia que não queria arredar o pé dali, continuava à

espreita. Virou-se contrafeito, e de pé ao seu lado, entre um brilho e outro, pode ver alguém... nanico. De pijama de algodão branco e

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amarrotado, com as mais estranhas figurinhas –– de bolas a luas de queijo –– concluiu que essa pessoinha só podia ser seu irmão mais novo.

No tempo em que ele esfregava a mão fechada sobre os olhos, iniciava-se outra chacoalhada nas cobertas. Desta vez percebera, ao puxar os lençóis, que ele ainda usava a pena presa à orelha. Que desde o princípio da semana adotara. Vinha se comportando diferente, e repetia que só queria deixar ‘ele’ mais à vontade –– mas ele quem? –– perguntavam.

–– O meu amigo índio que mora aqui conosco! –– Explodiu de repente, explicando sem que o ouvissem. Devia ser mais um amigo imaginário. Bom para ele que o pai não implicasse.

Ainda cutucando-o, quase dormindo, murmurou: –– Posso dormir com você, tô com medo dos trovões. Mesmo magoado e querendo ficar só, gostava o suficiente de

seu irmãozinho, talvez fosse o único que não precisasse saber destas esquisitices –– pelo menos por enquanto. O engraçado é que ele nunca antes tivera medo de chuva, raios e trovões! Abriu as cobertas, esperando que ele se deitasse logo, e nem percebeu o ligeiro sorriso curioso que esboçou no canto de seus lábios. Gesticulou alguma coisa para as sombras do quarto, que ele não entendeu o que era, e virou-se para cair no sono. As sombras ainda dançavam por aquelas bandas.

–– Boa noite, Sean! Durma com os anjinhos. Amanhã vai ser um dia bem legal.

Aos poucos foi se desligando do que ouviu atrás da porta, o sono é sempre bom conselheiro e o travesseiro o melhor amigo.

Agora as sombras pareciam se acalmar. Os bichos-papões e os monstros iam se retirando. Lembrava vagamente dos afazeres para o dia seguinte: a escola e intermináveis aulas, os amigos, a louça lavada, o aspirador passado, as plantas regadas e a mesa posta no fim do dia. Hábito. Que na manhã seguinte veria seu pai pulando com a gravata, atrasado para um trabalho inconstante, enquanto tentaria ligar o automóvel implicante. Do outro lado da casa, a mãe que tentaria vestir uma criança desajeitada e inquieta, ao mesmo tempo em que aprontaria as pastas com currículos e materiais que deveriam ser entregues por toda a cidade de Londres. Provavelmente a chuva continuaria, talvez o frio

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aumentasse. E ele, na cozinha, preparando algum café da manhã industrializado que conteria de cereal a ovos mexidos.

Mas isso seria só amanhã. Quase naquele momento mágico, em que se passa de

acordado para dormindo, pôde ouvir –– ou pelo menos jurava ter ouvido –– seu irmão sussurrar algo.

–– Não é bom escutar atrás da porta, não é? E alguém mais retrucar, com um sotaque rouco: –– Não

mesmo, mas precisava. Hum! Cansado demais para se importar com o que diziam à sua

volta, desistiu. E apagou. Aos poucos uma fantasia difusa se aperfeiçoou em seus

sonhos mais sólidos, onde alguém, delineado por uma luz fraca, deitado, distendia de uma das mãos um papel velho e machucado. Alguma coisa parecia se destacar entre as letras incompreensíveis daquele pergaminho... e o sonho continuou reino adentro. Entre vozes estranhas e pessoas sussurrantes que assopravam palavras que pouco ficariam impregnadas em sua mente.

Difusas, como as imagens que como fumaça se apagavam. Os trovões magistrais soavam suas orquestras durante a

madrugada, dissipando-se, assim que as crianças adormeceram. Os pingos se espaçavam.

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o velho e grande olmo de Trafalgar

A tarde do dia seguinte estava bastante chuvosa, destas

que ninguém podia se esquecer. Apesar de tanta água, poucos se importavam com a monotonia do clima, aliás, algo muito londrino... principalmente com as suas acinzentadas e compactas nuvens que fechavam o dia àqueles que –– poucos –– gostariam de olhar para o céu.

Algumas perguntas são sempre redundantes, mas quando não se vê o sol por alguns dias, ouve-se todos os tipos de comentários.

–– Mamãe? Cadê o sol?! –– Por aí filho, rápido! –– cuspiu ligeiras estas palavras,

contornando a multidão, puxando um filho extasiado que permanecia boquiaberto olhando para o firmamento.

Os londrinos num balé de guarda-chuvas escuros, nas suas cores –– se podiam ser chamada de cores –– beges, pretos e cinzas, marcavam o ritmo do trabalho. O trânsito era o único que não obedecia esta bagunça organizada. Este andava, outra hora parava, numa velocidade branda que intimidava os outros, isto é, não-londrinos. Os outros diriam que pés molhados, capa encharcada e nariz constipado são incômodos a serem evitados, mas os londrinos não são um povo realmente preocupado com trivialidades –– ou será que é somente por que chove sempre?! Os edifícios serviam mais para amedrontar do que para acolher um

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molhado a mais; apinhados de molhados a se secarem, improvisando algumas compras. Disfarçando olhares enviesados uns nos outros. De qualquer modo havia, lá fora, sim, guarda-chuvas vermelhos, um ônibus mais rápido –– desgovernado, creio –– e ainda quem olhasse para o céu.

Lá. Perto da loja mais a oeste do rio Tâmisa, abaixo do semáforo

categoricamente verde, escoltado por aquele homem de casaco xadrez –– não-londrino, com certeza ––, na esquina desta mesma avenida, olhando para o céu estava alguém a quem se notar. De cabelos negros e compridos, a pele morena e em uma de suas mãos uma pequena algibeira. E ninguém parecia notá-lo.

Seria possível que fosse tão raro que preferissem fingir que não o viam? Não que fosse tão diferente. Apesar de não estar usando um guarda-chuva, também não estava usando roupas. E fique bem entendido que não estava sem o casaco, ou o terno ou qualquer proteção ao frio e à chuva que continuava lá. Ele estava realmente nu. Bem, quase.

Além dos pés descalços, da tanga de couro e da lança –– a pintura, os adornos e outros itens de série ––, era extraordinário como não estava resfriado. E isso tudo sem que alguém reparasse na cena. Quem diria! Um jovem índio na Trafalgar Square e, ninguém parecia aflito. Até mesmo um londrino –– povo igualmente enxerido como nós –– já teria reunido algumas centenas de espantados transeuntes, parando o balé, trancando o trânsito e chamando a atenção daquele que estivesse aleatoriamente olhando para cima.

Acabava de chegar em Londres. Vindo de lá, onde poucos sabem como chegar. Se alguém o perguntasse diria apontando para algo como para cima e um pouco à esquerda daquela estrela gordinha. Continuava inerte, olhando para o alto. Correndo o olhar num círculo lento, procurando algo. Às vezes deixava escapar um rápido suspiro de seu nariz –– desdenhando da chuva, ou porque não despertara a devida atenção.

O ritmo do aguaceiro parecia hipnotizar. Naquele momento os londrinos pareciam esquecer as suas preocupações –– isso quando

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não perdiam um táxi –– e a chuva começava a diminuir acalmando os ânimos mais instáveis. Demonstrando estar confuso deixou-se guiar pela multidão que saia de uma admirável e iluminada fenda do chão. Naquele instante foi espremido diante de vitrines, e as mais estranhas coisas começaram a desfilar ante seus olhos. Lugares que eram verdadeiras zonas livres estampadas por adesivos contra alimentos transgênicos ou a favor de peles sintéticas que imitavam alguns animais –– existentes ou não.

–– E por que raios tantos estavam vestidos? Era quase impossível identificar alguém dentro desta

balbúrdia. Estancou firme, contra os desejos da massa andante –– pensante nem um pouco –– e enfiou uma das mãos na sua sacola. Remexeu bastante até que precisou apoiar a lança entre as pernas para liberar a outra mão. Encostou-se na vidraça de uma gigantesca loja de departamentos para escapulir da agitação.

Agora as duas mãos fuçavam. Apesar de pequena, a sacola devia ter muita tralha. E eis que

encontrou o que procurava. O majestoso Guia de Ruas de Londres, edição atualizada e colorida, de umas trezentas e tantas páginas, com capa dura e tudo.

Contudo parecia não conhecer muito bem o livro –– digo livro, o objeto mesmo, sendo que talvez nunca tivesse visto um –– pois o segurava aberto, apertando as páginas que se enrolavam sobre mão direita, pendendo a papelada toda para esquerda, de lado, caído. O divertido era vê-lo envergado, de cabeça virada procurando uma rua que nem sabia onde ficava. Para isso remexeu na bolsa sacando novo exemplar. Desta vez era o bom e velho Dicionário Tupinambá-Inglês-Tupinambá, de folhas amareladas e repleto de orelhas e indiscreto odor bolorento.

Seus olhos brilharam diante de importante informação: –– Isto é uma rua! Bom.

Em sua cabeça se perguntava porque então, não usavam –– os londrinos –– um sistema mais simples, como na floresta. Podiam localizar uma aldeia com razoável desenvoltura, bastando para isso que usassem como ponto de referência, aquela árvore, esta pedra ou até mesmo o barulho da onça bebendo água.

Mas estava ali por outro motivo, fora solicitado ou destacado por uma pessoa incógnita e nem imaginava aonde iria encontrá-la.

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No entanto acataria as ordens como se fossem do próprio chefe. O tal telegrama, ou algo do tipo, dizia simplesmente:

Senhor Guarini. Guardiões do Bosque da Colônia. Encontre-me em Londres. Serviço urgente... Venha hoje antes

das 17:00 horas médias. Impreterivelmente. Atmatattva. Intrigado pela ausência de detalhes acerca do serviço

destacado –– que não era do feitio –– voltou-se ao objetivo principal: Onde podia estar esse cara!

“Mas Londres não era nenhum vilarejo com uma pracinha no largo da igreja. Por onde começar?!” –– gemeu temeroso.

Os ruídos, os ônibus vermelhos e altos que cruzavam em todas as direções, os transeuntes que dirigiam imprecações de alívio diário e aqueles que lhes respondiam com o balançar do guarda-chuva furioso, eram as distrações que mais o incomodava. Além –– é claro –– da persistente mania de seguir uns aos outros por caminhos que acabava contornando para um lado, depois para o outro, andava mais um pouco e outra guinada e então estava no mesmo lugar de antes. –– Isto é quarteirão! Bom também.

O que lhe restava então era dirigir uma boa prece de auxílio aos céus e esperar que nenhum outro guia ou dicionário despencasse do mesmo lugar, sobre si. Por isso tinha sempre um olho aberto quando fazia suas orações e pensava muito bem no que ia pedir.

Já fazia algum razoável tempo que estava neste serviço e

sabia que para um bom guardião bastava saber para quem eram suas obrigações e fazê-las observando certos protocolos, mas eram primordiais: a boa e escassa aplicada razão e muita competência moral. Gostava mesmo era de agir e o tal blá-blá-blá mais parecia perda de tempo. Por isso aceitou feliz quando fora convocado a fazer parte do grupo de socorro e vigilância daquele mesmo bosque mencionado no tal telegrama. Contudo, as qualidades que se apreciam nestes grupos são a sabedoria e a paciência, o que não era completamente verdade. Ele é sim um

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pouco birrento e até impaciente. E com aquela cara fechada e séria, assustava qualquer criança. Se ele gostava de crianças ou não, era outra história. E já que estava tão longe de casa parecia mais mal humorado e impaciente do que nunca.

A chuva ainda seguia o seu curso, batia no piso duro e era sorvida por pequenos buracos nas ruas. As pouquíssimas árvores pareciam brotar deste piso compacto como se estivessem em exposição. Só faltava a placa indicando: floras carbonicas, exemplar em extinção de vegetação urbana.

Percebeu que, descendo por entre a chuva mais forte, surgia uma borboleta branca que flutuava indiferente às gordas gotas de água que caiam sem trégua. Pairou alguns instantes sobre uma enorme placa luminosa, vermelha e azul, na boca do buraco de gente –– um tal de underground –– e pôs-se a descer no meio da multidão. Ela havia sumido. Correu até onde estava e nada de encontrá-la.

Depois de algum tempo olhou para baixo, em desânimo, e percebeu acanhada flor que nascera no piso áspero. Com a mão à testa, apertando os olhos, virou-se de um lado a outro procurando algo. Abriu um sorriso disfarçado no canto da boca. Subiu nas pontas dos pés descalços, cerrou novamente os olhos, o máximo que podia para aguçar a visão, e percebeu outras gramíneas floridas. Nesta direção a vegetação parecia estender-se, primeiro eram pequenos chumaços de grama, depois alguns amontoados destes.

Seguia por entre a turba, desviando cuidadosamente para não perder o próximo montículo. Ajoelhava-se para se assegurar de que estavam ali mesmo. Seu peito arfava de tanto correr e parar. Continuou andando.

Próximo a Trafalgar Square, estes amontoados pareciam pequenos oásis no concreto. Já no meio da avenida, sob o xadrez amarelado das faixas de trânsito, estes aglomerados se fechavam inteiramente. E qual não foi a sua surpresa quando, dali para frente, se descortinou verdadeiro campo verde e florido que engolia toda a praça; as heras abafando tranquilamente parte da coluna de Nelson e dos chafarizes que estavam ainda repletos de peixes e folhagens aquáticas. Aproximando-se do centro, as flores iam alcançando belezas descomunais e o brilho tênue parecia

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congelar o ambiente. Isolando o barulho, o movimento e, principalmente, afastando algo de ruim.

Porém, nada se comparava ao antiguíssimo e imenso olmo que balançava suavemente seus galhos no meio da cidade. De tão grande impedia que a chuva caísse, emprestando à cena a magia de um devaneio. As nuvens abriam pequenas rajadas de luzes que dissipavam a escuridão presente. Os pingos finos, assim como as poças, refulgiam o sol com uma leve coloração dourada.

Mas a pessoas não percebiam a beleza da transformação. Respondiam a todo este esplendor com desdém de quem não

tinham olhos para ver. Como todos haviam fugido da tempestade, o farfalhar das folhas podia ser ouvido a dezenas de pés de distância.

Caminhou, o índio, deste modo, só. Sentindo a mudança de ares. Afinal estava na pracinha daquela cidade. Ali estaria quem procurava. Andava bastante cauteloso.

Sentado à base da árvore, de pernas cruzadas, uma pessoa bem despreocupada do que acontecia no mundo pareceu ver nosso amigo de poucos trajes e lhe acenou pedindo que viesse para perto. Vestido de túnica alaranjada, transpassada por grande lenço azul trabalhado com arabescos bordados, aquele senhor de sorriso meigo deixou transparecer o amor que se irradiava em torno de si. Esfregava as bochechas como se houvesse acabado de acordar. Bocejando tão forte que seus olhos começaram a lacrimejar. Aparentemente ele lembrava bastante um monge tibetano, –– descalço e careca e etc. –– mas ele gostava de ser chamado de Atmatattva.

–– Enfim nos encontramos, meu filho. Aguardava-o para os preparativos que se aproximam. Estamos quase na hora. Vamos até lá. –– Erguendo sua mão para que o índio o auxiliasse a se levantar. De pé bateu as mãos ajeitando seus indumentos e contrariando a tradicional reverência, abraçou-o.

–– Mais novo do que pensei que fosse. Bem, Guarini, já te contaram tudo? Caso não tenham te informado siga-me depressa. –– Levemente chocado diante da presteza do lama, não conseguiu captar suas intenções dinâmicas. Já devia estar em Londres por tempo demais. Guarini e Atmatattva –– pois estes eram seus nomes –– seguiram para perto de um dos chafarizes para sentar-se. O monge esfregava um dos pés adormecidos.

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–– Ainda acho que Nelson, aquela raposa velha –– apontando para o obelisco ––, iria preferir aconchegar-se à árvore a ficar de pé lá em cima... Nem dá para vê-lo direito, coisas de gente. Depois me parece daqueles que não descem do pedestal, nem para cumprimentar, oras.

O monge já estava evidentemente tempo demais na cidade grande. Desde que assumira a tarefa de guia à quase seis anos, ninguém jamais soube do que se tratava e quem estava por trás daquele silêncio incomum. Por vezes surgiam boatos que diziam que eram ordens superiores e por isso não existia uma informação certa sobre o assunto. Só que era protegido, quando necessário, por alguns guardiões destacados, como o próprio Guarini. Entrementes, as ordens vinham e jamais deviam ser contestadas; e como ele sabia? Bem, bastava ver de quem eram. E desconfiando destes boatos, o índio previa que mais uma vez seriam empregados seus préstimos particulares. Ele já estava impaciente.

A luz do sol voltava a brilhar estranhamente por entre as nuvens. E o diálogo iniciou-se depois que o monge recolheu um monte de panos que insistia em cair de suas quase roupas.

–– Eu preferia contar a história, tintim por tintim –– puxando um pedaço que ficara preso em seus pés ––, mas o bom senso me impede de adiantar os acontecimentos que amanhã serão bem, digamos, explanados. Basta que cumpra o que lhe peço. Preciso me afastar imediatamente por outro... motivo, nada a ver com os garotos. –– respondeu o monge ao olhar de dúvida do rapaz.

–– Aliás, fazia um bom tempo que não aparecia um rosto novo por estas bandas, não é que os caras de Hampton Court sejam desagradáveis, mas depois de quinhentos anos tudo cansa. –– Rindo-se dos bons tempos passados, divagava. –– Eles são bons em pregar peças, apesar disso, ninguém mais se assusta.

–– Sei. –– falou Guarini, com seu jeito contido. Abriu a boca disposto a inquirir algo quando o senhor-monge

puxou-o, deixando cair algumas das tralhas de sua algibeira. Tropeçando e escorregando até parar do outro lado da praça. Seguiu algumas faixas, ziguezagueando-as, em meio ao trânsito, até vislumbrar um apanhado de pessoas paradas, de pé, juntos, esperando algo. Já o esbaforido tibetano –– indiano, frisou ele a este pensamento fortuito, agora puxando os panos de sob os pés do índio –– não conseguindo sentar-se sobre a cabine telefônica,

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ajeitou-se sobre um grotesco cilindro azulado dos correios, esperando.

–– Está enxergando bem o relógio? –– acenou Guarini em resposta. O mecanismo de grandes ponteiros parecia o Big Ben.

Procurou seguir-lhe o raciocínio, no entanto o monge mais parecia um guarda de trânsito autodidata. Tentou se acalmar, sendo obrigado a sentar-se ao meio-fio e aguardar o desenlace.

–– Dezesseis horas e trinta e oito minutos. Dezesseis e quarenta e um. Dezesseis e quarenta e nove. –– como ele não respondia a qualquer interrupção, a ansiedade aumentava. O índio já estava levando as unhas para roer de tão aborrecido que estava. Não parou um minuto de imaginar o que poderia acontecer às dezessete horas. O rosto sério se transfigurou em agonia, fazendo-o parecer tão jovem quanto era, se é que isso é possível. Nunca mais iria aceitar convites sem esclarecimentos prévios, mesmo vindo de velhinhos simpáticos como aquele.

–– Dez... nove... oito... sete... seis... veja, estão vindo deste lado. –– gritava, alterado, o velho, balançando pernas e braços com se estivesse distinguindo o próprio Khrisna –– Bastante pontuais... três... dois... pronto. Previsíveis demais. –– Fixou dedo e olhar em uma criança que passava batendo os pés com força, imitando a guarda britânica, encolhendo os cotovelos e mantendo cabeça erguida. Não parecia ter mais do que cinco-quase-seis anos e, nem que fosse um pop star que merecesse os cuidados daquele monge meio amalucado –– porém sábio ––, diria que era o motivo de seu encontro. Pouco atrás, porém, o seu irmão lhe seguia constrangido pelas estripulias daquela criança peralta. Mantinha os fones do MP4 ligados no último volume, evitando qualquer indisposição desnecessária e, às vezes, cutucava-o pedindo compostura.

–– Quieto Jox, se manca! –– Tá bom, Sean. –– contrapôs meloso, e até parece que ele o

obedeceu.

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despertando demônios

Tudo o que Sean buscava naquele momento era se

esquecer dos acontecimentos da noite passada. Tinha seguido a burocracia prevista, com exceção do pai que nem se levantara para trabalhar. Estranhou, mas nem quis pensar no porquê.

Era pouco menos de dezessete horas. E nesta quinta-feira, de maneira especial, os alunos do colégio saíram mais tarde, atarefados com os preparativos de um evento próximo. Os garotos atacavam as ruas com rapidez, balançando suas mochilas, seus casacos e gravatas enquanto corriam em várias direções para alcançar o carro do pai, os ônibus 4 Waterloo, 29 Trafalgar, 259 King’s Cross, 19 Piccadilly Circus, etc. –– e algumas outras linhas que nem quero cogitar ––, o metrô e eventualmente algumas lojas que vendessem badulaques e doces para certas crianças com algum dinheiro sobrando no bolso. Nem havia passado dez minutos completos e os arredores da escola pareciam desertos –– a garoa ajudou, é bem verdade ––, ninguém queria ficar lá além do necessário, porém havia um colegial que preferia ficar para trás.

E se Sean estava preocupado com o que os seus pais pensavam das suas esquisitices, por outro lado ficava ansioso de

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ter que enfrentar os olhares cômicos e as gargalhadas cochichadas dos colegas.

–– Olhem o esquisito, dizem que ele ouve coisas! –– sussurrou o grupinho, fazendo cara de medo, de modo que fosse ouvido pela vítima da vez. Às vezes partiam para cima, aporrinhando ou meramente empurrando ou batendo.

Esperando a chuva forte minguar, apertou bem fundo os seus

fones, não deixando espaço para escutar mais alguma idiotice, e levou o fio até o aparelho.

PLAC. Um som alto e estridente rompeu em seus ouvidos. Selecionava os MP3s à procura de algo barulhento, mas

desistiu, sintonizando uma estação de rádio. Onde quer que ele ajustasse o aparelho de rádio, a mesma música continuava “... the saints are coming...“, quase desferindo golpe mortal ao aparelho. Ajeitou a surrada mochila enxugando os cabelos empapados com a mão que ficara livre. –– Jox, fica ligado. Pegue a sua mochila e vamos. Todos já se foram...

–– E eu não sei? –– Sean nem precisava terminar a frase para que Joshua entendesse que ele queria ficar sossegado, longe das risadas.

E também não era o que poderíamos considerar de garoto

prodígio, que todos os pais sonham desde o primeiro dia, ainda no colo; não mesmo. Estava mais para um garoto-problema com a ressalva de que não era ele quem procurava os problemas, mas os tais problemas que surgiam do nada. E se alguém escutasse um pedido de socorro vindo do rio, não pularia em resgate?! Pois bem, Sean o fez.

Com o inconveniente de que ele foi a única pessoa que escutou os tais gritos. E o problema não é só esse, junte a tudo isto um pouco de polícia, um bocado de bombeiros e centenas de grupos de resgate reunindo-se espalhafatosamente no centro de Londres e teremos ideia do que as esquisitices provocam. Para completar, a televisão não deixou de reprisar o episódio, em horário nobre –– e injusto –– durante os últimos dias. Não dava para acreditar na sorte do garoto, pois tudo de estranho que não

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acontecia com ele, ou ocorria perto ou as pessoas acabavam achando que era com ele. Realmente parecia persegui-lo.

Pobre coitado. No começo passava noites e noites matutando em como evitá-

los e com o tempo só esperava fingir que não era com ele. O que não mudava muito. Por isso talvez fosse o tal garoto-problema. Por conseguinte assumira o papel com perfeição, na aparência pelo menos. Vivia recluso, isolado de possíveis amizades, escutando música durante quase todo o dia e se vestia com certo desleixo... bem normal para quem tem 13 anos, acho. Não atendia aos apelos da mãe –– do tipo faça isso e não faça aquilo –– e nem se lembraria de fazer os deveres mais corriqueiros se não fosse pela mesmice de não fazer nada. A princípio uma doença que tem designação: adolescência.

Os chuviscos já não atrapalhavam mais, então eles

diminuíram o passo. Despreocupado, Sean seguia por instinto o caminho confuso que Joshua insistia em fazer marchando, batendo os pés firmes e gesticulando ombros, cotovelos e cabeça.

A rua clareava sob as luzes que eram acesas precipitadamente. Os movimentos dos automóveis lustrosos aumentavam a vivacidade refletida pelas superfícies molhadas. Muito do que deveria estar acontecendo um pouco antes, estava a ponto de recomeçar, pois os que adiaram seus compromissos por causa do aguaceiro voltavam abruptamente a invadir ruas e calçadas. Buzinas, gritos roucos e escorregões e muitos guarda-chuvas se entrechocavam de alto a baixo.

A mão de Sean vinha batendo contra paredes e grades, tamborilando os dedos enquanto ouvia o mesmo som estridente. Escondido sob o casaco escuro e pela face inexpressiva, tentava passar incólume pela algazarra. Não gostava de ficar molhado e se fosse o cabelo ajeitadinho, negro, com a franja espetada que demorava horas montando, aí sim evitava água. Apesar de usar as mesmas roupas amarrotadas todos os dias, seja o uniforme do colégio, ou as roupas do dia a dia, tinha uma certa personalidade... sombria.

E as expressões de seu rosto ficavam entre mal humorado e aborrecido; vez ou outra era pego puxando os lábios para a esquerda como se querendo sorrir. Por incrível que pareça,

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quando se esquecia de fingir ou encenar o papel de coitadinho perverso, era espantosamente carismático. Ninguém conseguia deixar de perceber que os olhos verdes e profundos sempre diziam a verdade: que ele é alguém a quem se deve confiar. Parece que sempre ouvia, dentro de sua cabeça, sua mãe berrando: Sean M. Fox, obedeça! No entanto, o que mais desejava era se esquecer da conversa ouvida através da fresta da porta do quarto, que a dor de cabeça passasse e que ninguém olhasse torto para ele. Não suportava ser chamado de esquisito ou estranho –– é a mãe! Na melhor das hipóteses. –– E tudo começou há tão pouco tempo.

Vez ou outra um comerciário saia aos berros, afastando-o –– principalmente sobre as mãos sujas nas vitrines ––, mas a música alta impedia-o de atendê-los. Joshua agora pulava sobre algumas poças d’água, molhando as barras do uniforme que deveriam servir até o fim daquela semana. Mas nada parava aquele moleque. Os seus cachos arruivados já estavam mais do que molhados e colados à cabeça, esse não se importava com o visual. Durante seus pulos, corria e ziguezagueava perfeitamente por entre a multidão. Já Sean tinha dificuldades até para andar, esbarrava, tropeçava e escutava as mais variadas recriminações. E assim sempre procurava apertar o passo para alcançar seu irmãozinho que devia estar a algumas milhas adiante. O que ele não viu foi que Joshua parara.

Quando Joshua chegou perto da Tottenham Court agachou-se. Manteve o olhar firme no que parecia uma assombrosa caixa azulada de ferro. Levantou-se e esticou o pescoço nas pontas dos pés. Seguiu o olhar até um beco escuro, com a ponta da língua sobressaindo da boca. Sean olhou para o relógio, eram dezesseis horas e cinquenta minutos. De repente esbarrava, tropeçava e caia sobre Joshua. Seu irmão chamava-se Joshua, que por uma falha de pronúncia quando fazia três anos passou a ter como apelido oficial –– Jox. Nem se importava. Quando Joshua aprontava das suas era Sean quem –– precipitadamente –– vinha lhe defender. Por isso Joshua nem se importava, gostava demais daquele irmão-guardião sem asas.

–– O que tá fazendo, Jox? São quase dezessete horas. –– mais assustado do que bravo com Joshua.

Sean tirou, então, os fones dos ouvidos para perguntar o que havia acontecido e, nem bem haviam saltados das orelhas, ele

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sumira. Procurou em todas as direções. Atrás do poste. Além desta esquina. No meio da multidão. Pulando para ver dentro do ônibus parado. Bem longe na cabine telefônica. Não, nada dele. Joshua era a verdadeira razão de nunca estar inteiramente preocupado consigo, ou se perdia, ou perdia os outros de vista. Os Fox jamais tiveram razões para se perturbarem com os sumiços dele, Sean vivia reparando o enigma. E mesmo com aquela carinha redonda, cheia de sorrisos, com os cabelos levemente encaracolados e claros como os de um querubim, ainda assim era um capetinha. Às vezes Sean pensava que ele fazia de propósito, como se soubesse que tais sustos não passavam de distrações e assim não pensava muito nos seus próprios problemas. Quando percebia já estava longe, desligado de tudo. Procurou mais uma vez nas lojas e na saída do metrô na Goodge Street. Assim que percebeu que ele havia realmente desaparecido abriu os olhos em expressão de surpresa, fechou levemente um, indicando leve dúvida, que terminou se tornando uma face emburrada com a boca em bico e ombros caídos. –– No way?! –– De repente alguém lhe cutucava às suas costas.

–– Sean, me empresta alguns pennies? –– pulou assustado com a cutucada da mão congelada sob a jaqueta.

–– Onde você est...! –– parou conformado com os sumiços instantâneos do irmão para completar –– Para que dinheiro? Já não tem algum no bolso?

–– Tenho. Mas preciso de mais –– falou limpando o nariz na manga sempre suja. Os olhinhos pareciam molhados de contente pela espera de algum presente.

–– Só tenho duas libras e cinco pence e um tíquete extra. –– Mostrando-os por entre os dedos. Instantaneamente agarrou-se à quantia e saiu correndo para a loja enquanto berrava algumas palavras explicando. Não pôde ouvir direito e nem correr atrás, pois estava recolhendo o tíquete e os pennies desconsiderados. Aconteceu tudo tão depressa que dois gigantes apressados esbarraram em seus ombros, lançando-o, em cheio, sobre uma poça encardida. Agora os cabelos e as roupas estavam encharcados. Em vez de esfriar a cabeça, a água fez o efeito contrário. Podia-se até imaginar o vapor subindo colado ao corpo enquanto a cara ficava pesadamente vermelha.

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–– Mas que m....! –– bufou zangado. Inesperadamente uma mão surgiu ante seu rosto sujo. Um homem de casaco camurça marrom estava parado e sorria balançando a mão estendida como se pedisse para pegá-la.

–– Desculpe aí! Estava distraído procurando o Museu Britânico. –– falando com forte sotaque. Sean reparou que ele só podia ser francês por causa da similaridade com o modo de falar de sua mãe e também porque havia uma pequena bandeira tricolor colada à sua pasta, o que não deixava dúvidas.

–– Não tem problema –– mentiu, apontando a esmo ––, siga até a Avenida Belford. –– Não prestou muita atenção no homem, pois estava tentando se ajeitar, esticando a roupa ensopada. Mas algo lhe intrigava no estranho, devia ser impressão exagerada de quem estava irritado com tudo e todos. Quando já podia caminhar para seguir Joshua, deparou-se com o mesmo deixando uma confeitaria com os braços carregados de pacotes e até de uma coisa fumegante que deixava escapar uma fumacinha perfumada.

Do outro lado da rua, Guarini fixava os olhos, ora no monge

sorridente, ora no alvoroço que acontecia, esperando –– com reservas –– as explicações. O velho pôs-se a andar até a guia da calçada. Puxou para si o índio perplexo e, com o dedo, que fizesse silêncio.

–– Veja só o que acontece. Olha, não é maravilhoso? –– E só disse isso. Desta vez, sério. Depois de tanto trabalho. Perseguindo as informações mutiladas do velhaco, lá estava ele, Guarini, olhando duas crianças brigando por dinheiro. Uma problemática, a outra no mesmo caminho. E, aliás, no meio da chuva.

–– Cale-se, você raciocina demais. –– chiou o monge com as mãos fechadas como um cone. –– Veja bem o que acontece para eu te dizer o que te acontecerá em seguida. Quem poderia imaginar, só me faltava essa, pajear um homenzarrão deste tamanho. Pfu. –– e Guarini só pode resmungar.

Joshua encontrou o beco que procurava. Seguiu um bom

pedaço antes de parar. Neste instante Sean havia parado observando, pronto para chamá-lo, quando do meio de caixas de

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papelão surgiu, embrulhado e em trapos sujos e molhados, uma figura acavalada. Talvez mais assustado do que a criança, ele arregalou os olhos escondidos no meio de tanta barba e cabelo, tentando descobrir o que estava acontecendo. Antes mesmo que Sean pudesse articular algo para afugentá-lo, Joshua abriu a boca jovial.

–– Oi moço, trouxe este leite quente e os doces para você! –– entregando todo o pacote de supetão. Mais apavorado do que antes, o mendigo olhava de um lado para o outro. Esfregava a barba emaranhada tentando entender. Quem sabe o menino estava passando um trote, ou a polícia estava escondida, esperando o momento de prendê-lo por sequestro. Mas não conseguia pensar em nada de bom. Tantos lhe afugentavam. Passara fome. Perdera a dignidade e a saúde. Tudo. Mas aquele menino...

–– É seu. Alguém me pediu para entregá-lo. E se o senhor não quiser eu posso levar para quem queira. –– agora o pobre senhor se acalmou. Quase chorou. E agradeceu veemente, abaixando a cabeça várias vezes.

Na boca do beco, Sean ficou parado, não podia se mexer, ele sentia uma dor de cabeça que o incomodava desde cedo e que aumentava. Mas não sabia se era medo ou outra coisa. As pernas simplesmente não obedeciam. Assim, apreensivo não escutou toda a conversa. E nem percebeu Guarini e o Monge passarem por ele à boca do beco. Ao passarem pelo garoto, Guarini viu o porquê de tanta consideração daquele monge pelos meninos.

Joshua esticara o braço esquerdo apertando a manga contra a testa do mendigo carinhosamente, tentando limpar um pouco a área. Entre as tosses e os espasmos que o tal senhor provocava com as crises de uma doença aguda, Joshua mantinha os olhos fixos nos dele. Aos poucos os olhos do barbudo foram se enchendo de lágrimas, tornando-os vivos e intensos. Sentia o amor que tinha se esquecido, o amor de seus filhos, de sua esposa, daqueles que o cercaram durante sua vida. Achava que nunca mais sentiria isso. E aquele menino que saiu do nada, com as mãos repletas de comida, trazia também amor. Desta vez não segurou e chorou e num gesto curioso perguntou:

–– Que anjo é este que vem na minha hora de partida! O que você deseja? –– E aproximando-se do rosto do mendigo

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cochichou algumas palavras no qual respondeu com um balançar afirmativo de cabeça. E abraçaram-se.

Ao todo não demorou mais do que alguns minutos, mas foi o suficiente para alegrá-lo. Sean só pode ficar olhando, pasmo. Sabia que o irmãozinho estava mais certo do que muita gente que se esconde na caridade de dar para não doar. Olham indiferentes para o sofrimento pensando que é o Governo quem deve agir, senão por que pagar impostos para não ter que ver estas coisas? Sentia-se pequeno por não fazer o mesmo, mas concordava com Joshua e assim admitia que um dia não precisaria das loucuras dele para justificar o que tinha que ser feito de correto –– acho que deu para entender, não é?

Certo ou errado, ele fez mais do que isso. Talvez Guarini entendesse melhor o olhar admirado do velho,

havia percebido a gravidade da ocasião, sobretudo nas palavras ditas ao ouvido do sem-teto. Agora ele tinha um segredo para guardar.

Tudo voltou ao normal. O estranho momento marcava o seu término às dezesseis horas e cinquenta minutos. Tempo mais que suficiente para tomar o ônibus rubro e estrepitoso das 16h50 que marcava na legenda luminosa que estampava, na dianteira, o seu rumo passando por North Finchley com o número 134 em destaque. Desconcertados pelo que escutaram, só tomaram conhecimento dos adeuses que o mendigo gesticulava, aos berros. Entre os movimentos do entra-e-sai dos ônibus e lojas, perderam algo.

–– Por que você fez isso? –– perguntou surpreso Sean. –– Porque ele tava com fome, oras. –– Não estava

convencido. Quem seria aquele garotinho, pensava Sean. Estava sempre o surpreendendo. Por isso gostava dele. Mais uma vez escapulia de seus braços e corria no sentido contrário. Abrindo o casaco e tirando uma carta amarrotada, foi chegando mais perto da caixa de correio azulada. Forçou os pés o máximo que pôde e enfiou um envelope pardo na boca metálica. Do que se tratava, nem Sean fez questão de perguntar. Trocou o paletó do colégio pela jaqueta guardada na mochila. Penteou o que sobrara do cabelo e desta vez fizeram o certo: entraram no ônibus.

A dor lancinante parecia ter aumentado mais. Agarrou Joshua e subiu apressado. O trajeto era bastante curto, uns três ou cinco

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minutos até a estação de metrô na Warren Street, mas o trânsito parou por causa do congestionamento monstruoso. O ruído dos motores e os faróis piscando junto com cada buzinada não serviam de atenuantes. Agora nem a música de uma estação de rádio qualquer serviria. Correram ao andar superior, junto das janelas centrais. Seguidos pelos espectadores do beco; o índio e o monge juntos na sexta fila fofocavam. O brilho da luz branca que refletia por todo lado emprestava um ar de artificialidade ao ambiente do ônibus. Sentados, havia, além destes, uma senhora na frente, quieta, tricotando algo para os netos neste inverno; e mais atrás, nos fundos, onde uma lâmpada defeituosa estava piscando, um homem com uma capa vermelha que cruzava o peito, encobrindo os braços e o resto do corpo. De olhar firme e rosto obscurecido pela falta de expressão estava lá por causa de alguém que acabava de subir.

Guarini percebeu e, falando ao velho, inquiriu-o sobre quem era o carrancudo do derradeiro banco.

–– Aquele só diz respeito ao grandão. –– referindo-se a Sean. –– Por enquanto nada temos a tratar com ele. –– fechando a cara em repulsa ao olhar no rosto do forasteiro enquanto despachava alguns papéis para cima de Guarini. Sean, por sua vez, pressentia que algo, em breve, iria acontecer ali. A dor apertava mais e mais. Sentia vontade de fugir dali, quando ao longe, ritmados, um tropel fraco de passos abalizados apareceu marchando em sua direção e ampliando o desconforto. A cada batida –– que aumentava rapidamente –– a cabeça lhe doía desmensuradamente. O barulho metálico era como um milhão de latas batendo umas contra as outras e estavam se aproximando.

Trac. Truc. Trac. Truc. Assim que os passos chegaram na avenida onde estavam

trancados, mesmo muito distante, o som retumbante da primeira badalada do Big Ben ecoou.

E a cada badalada Sean gemia e se contorcia mais. O ambiente frio de luzes claras dançava diante das visões de

Sean, entorpecido pela dor. Então, em desespero, agarrou-se aos tubos de segurança que formavam o balaústre, caminhando cambaleante até a escada curva. Sentia vontade de vomitar.

O barulho combinado da multidão, dos passos e do relógio fazia sua cabeça e estômago girarem. Desceu alguns degraus

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ficando preso pela jaqueta num dos ganchos de fixação do corrimão. Com dificuldade para se soltar puxou-o com força, arrancando o casaco e perdendo o equilíbrio. Joshua observava através do espelho convexo sem saber o que fazer. O que aconteceu em seguida ele pouco se lembraria nos próximos dias, porém a queda foi tão forte que só conseguiu parar na rua. Caído de borco sobre a rua encharcada. Paulatinamente os curiosos se acercavam de Sean. A chuva voltava com insistência.

A massa que se aproximava oculta pelos respingos começava a se delinear. Sob o som da última pancada do relógio, um exército marchava. Atravessando por entre os carros, caminhões e ônibus. Empunhavam lanças e estandartes de guerra.

Do alto, milhares de soldados romanos se dirigiam para o sul, iguais em seus uniformes e em suas feições frias, apoiando a mão livre sobre os gládios presos à cintura de suas armaduras luzidias. Alguns usavam elmos, outros capas que indicavam suas posições.

Mas que estariam fazendo atravessando Londres? O que quer que fosse que o monge havia preparado, estava

terminando e, as explicações pelo qual o inquieto índio esperava, estavam para ser reveladas.

–– Espero que você cuide bem do meu garoto. –– disse o Velho displicentemente. E o segredo veio à mente de Guarini. Não aguardava tão simples conclusões e decidiu perguntar do que se tratava esse cuidar. Nem perdeu tempo.

–– Ele é seu. Deixo o cargo para assumir outros encargos inadiáveis. O que precisar saber dele, saberá ao seu tempo. Mas cuide bem do garoto. Como o mais novo guia, de que eu tenha conhecimento, lembre-se muito bem do que aconteceu no beco. E tem mais, o Sean também é de suma importância, fique por perto. –– e sem mais soltou um –– tá ligado?!

Outra oportunidade de fazer perguntas, perdidas. Em instantes, carros de resgate chegavam, refletindo suas luzes azuis e vermelhas.

O monge frisou –– Este aí, ––, apontando para Sean –– está apenas despertando os seus demônios.

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2 ½

interlúdio O garoto apoquentado pelo menos havia ensinado o

caminho correto ao museu. O homem ainda pisava apressado fugindo de uma nova tempestade que se aglutinava no apropriado momento em que o distante Big Ben avisava inabalavelmente ser dezessete horas. O céu voltava a escurecer trovejando ao som de sirenes distantes.

Estava começando a pensar que chegaria atrasado ao encontro, mas não conseguia se concentrar no compromisso. O garoto, de alguma forma, havia provocado uma onda de ansiedade sem motivo aparente. Como se o coração fosse sair pela boca.

Antes de avançar sobre os degraus parou bem debaixo dos banners que informavam as exposições mais recentes quando, de repente, se inflaram com o forte vento, retesando os cabos de fixação ao som de panos tremulando. As velas estavam içadas. Sentia como se estivesse manobrando um clíper nos mares bravios do Cabo Horn. A mente trabalhando a mil. O homem de casaco marrom não resistiu, girou nos calcanhares e de braço estendido gritou: –– Sr. Smith ouço um tique-taque! –– assuntando um grupo de estudantes que definitivamente não pertenciam à Terra do Nunca.

Algumas garotas soltavam risinhos histéricos. Mas a revoada inesperada dos pássaros causou maior estrago na multidão do que o susto de verem um capitão eufórico em terra firme.

Acabrunhado e rindo subiu, ligeiro, a escadaria, chegando ao saguão magnífico diante de um balcão de informações

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desamparado. Ajeitou-se, correndo a mão sobre o casaco e retirando um pouco da água da chuva acumulada no material impermeável. De porte atlético e jovem acercou-se do balcão sacando algum panfleto de localização quando um segurança se aproximou abalizando a antena de seu comunicador e pedindo que se afastasse –– ou ele morderia mesmo.

–– Estou à procura Professor Hodgson-Crookes. –– disse erguendo as mãos mostrando que não havia mexido em nada, um ato de rendição.

–– Estou certo que sim. –– retrucou o guarda sem a focinheira –– ele te aguarda na grande galeria da biblioteca. –– apontando a antena para dentro do edifício solicitando que ele entrasse e seguisse sempre em frente.

Bernis já se acostumara a ser tratado como estudante, senão um arruaceiro universitário padrão como agora; formado e professor privilegiado de uma das maiores universidades da Europa, ele não perdia tempo explicando, simplesmente fazia o que pediam e adorava ver quando descobriam quem ele era. Desculpas e salamaleques viam logo em seguida. Apertou o passo enquanto secava seus cabelos castanhos claros com a lapela de seu casaco de camurça. Os passos ecoavam monstruosos na grande biblioteca do museu que era circundado de galerias suspensas e em seu vão livre, janelas de uma grandiosa cúpula neoclássica iluminavam parcialmente as mesas de leitura. O ambiente estava superlotado de livros, periódicos, revistas e outras edições que abrangiam milênios de história escrita, desde os cuneiformes de Ur até os mais recentes arquivos digitais do parlamento inglês reunidos na véspera. A luminosidade feérica criava a atmosfera de que este espaço só a Deus pertencia, talvez alguns anjos até pudessem consultar os arquivos.

Não costumava atravessar o Canal da Mancha –– ou Canal Inglês dependendo de com quem falasse, sem afetar os brios –– para tratar de assuntos tão vagos, mas o professor William Hodgson-Crookes fora enfático quanto à discrição, destacando pausadamente pelo telefone que deveriam se encontrar pessoalmente, pois precisava lhe entregar algo.

Se a curiosidade não foi o principal pretexto, a chance de que ele pudesse discutir velhos projetos com o emérito professor seria satisfatório. Havia, então, reunidos alguns documentos

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considerados sigilosos –– que ninguém daria falta, já que Bernis era o diretor –– e embarcou no mesmo dia, cedo, rumo a Londres no primeiro TGV que partisse cedo da Gare du Nord.

No fim da galeria D, Bernis deparou-se com uma mesa desocupada e, aturdido virou-se duas vezes antes de perceber que a mesa não estava realmente vazia. Atrás de um amontoado de livros e papéis percebeu que um ruído baixo e algumas sombras que se movimentavam no piso, projetadas pela fonte de luz localizada sobre a mesa, só podiam indicar uma coisa.

–– Meu caro senhor Marcus Bernis. Sente-se! –– frisou a pilha, ou da boca que estava escondida. Antes mesmo de sentar-se, a voz enfiou uma das mãos entre a papelada e arremessou-a para o chão criando um estrépito seco que continuou em ecos sucessivos até sumir. O velho professor Hodgson-Crookes há tempos se esquecera dos protocolos sociais e só se importava com suas teorias e pesquisas que jamais reclamavam de sua conduta.

–– Quanto tempo, Marcus! –– reiniciou a conversa o velhote. Por trás de seu compacto bigode de morsa pôde divisar um esboço de sorriso quando apertaram as mãos. O homem devia ter uns setenta anos, mas só de informação acumulada devia beirar uns dois mil, e bem que o rosto transparecia os séculos. Marc lembrou-se que os alunos costumavam chamá-lo de César pela semelhança com os altivos bustos de mármore e pelo fato de ser um expert em latim e história romana. Se bem que pincelava alguma coisa dos povos nórdicos pelo tempo que passou na Noruega em companhia do avô de Bernis. Isto tudo logo após os embates em Mikkeli, onde se conheceram nos anos 40.

–– O que o senhor precisa de mim, professor? Vim assim que recebi a sua mensagem. –– durante a limpeza de seus obscuros óculos que não se atrevia a usar em público, com medo de acharem que não dava conta do serviço, digamos, dos olhares femininos. Mantinha um sorriso de reconhecimento.

–– Bem, só para me dizer o que acha disto! –– e esticou uma garrafa metálica bastante enferrujada que continha um manuscrito encanecido, enquanto bebericava um pouco do chá aguado que lhe oferecera antes.

Marc tomou o papel e com o tal óculos aproximou-se.

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Intrigou-se que o pergaminho tivesse chamado a atenção do professor, entretanto continuou a análise. E levantou discreto olhar sobre as lentes.

–– Iluminura italiana do século treze feita por um tal de Bernardo discorrendo sobre uma batalha travada durante as cruzadas –– resumiu. Não era a área de estudo do professor William. Ainda mantinha o ar de quem não entendia a finalidade do suspense. O professor Hodgson-Crookes desenhou o dedo sobre o papel apontando uma mancha, quase um esboço.

–– Você se recorda das escavações na Escola de Medicina de Paris? Acho que foi no final do século dezenove... –– sussurrou o professor que teve um aceno afirmativo como resposta. –– Acho que acabaram mudando o traçado da rua... –– divagando em voz baixa. –– Bem. Desconfio que estes eventos tenham relação com este documento que, infelizmente, é só um componente de um pequeno livro perdido, Marc. Desta vez Marc ergueu a sobrancelha, ouvindo cauteloso o que o professor teria a complementar.

Para Marc, suas reações não passavam de um suave arquejar de sobrancelhas. Pouquíssimas vezes ele desmanchava sua impassibilidade e quando o fazia se destacava magistralmente sem que houvesse um pingo de dúvida. O professor estava testando-o, sabia exatamente o que ele estava tramando. Coisas de velho, o que recordava, em muito, o seu avô.

O senhor William havia sonhado com os eventos descritos no pergaminho pouco antes de receber o material e, desde então uma série de coincidências o punha de cara com o assunto.

–– E é só? –– falou disfarçando sua apreensão durante o exame de umas marcas datilografadas à margem do papel que estava protegido por uma película plástica. Algo atiçou seus instintos. Era como um déjà vu vago, quase um sonho nebuloso. Uma recordação de sentimentos que o alertou quanto à importância do que segurava em suas mãos. Uma impressão que, ainda assim, deixava-o ansioso.

Ao lado deles alguém continuava ouvindo seus pensamentos e

sorria maliciosamente. Arrumou-se no canto da saleta provocando um som metálico indistinguível. Ninguém percebeu o movimento

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e nem os sapatos prateados que surgiam à meia-luz. Riu-se novamente.

O professor reparou que Bernis seguia olhando a margem e

continuou. –– Esta marca está no papel mesmo, meu rapaz. Não consegui determinar uma tradução para o criptograma. E sabe onde foi encontrado este pergaminho? –– antevendo a negativa, não perdeu tempo e respondeu por si mesmo, nervoso como se pressentisse algo. –– Estava fechado dentro desta garrafa térmica. –– Rindo-se, enquanto recordava o que lhe aconteceu nos últimos meses.

Marc continuou sem entender, porém a curiosidade despertara em ondas crescentes de suor. Observou mais uma vez as marcas sem correr os olhos na mancha, forçando sua memória para traduzir o que estava escrito, era bom em sânscrito, mas alemão não era o seu forte. Em parte pôde identificar números que talvez fossem de controle e uma palavra: Livreiro, Paris. Deveriam existir milhares de livreiros. Todo o resto era anotações referentes ao documento e que exigiria maior tempo de estudo. Por hábito, Bernis apertava o indicador e o polegar entre os olhos, como se seus olhos estivessem embaçados.

–– Você soube da expedição que partiu para a Noruega no mês passado? Aquela que estava recolhendo amostras de gelo para análise do clima do planeta? Bem, eles acharam mais do que gelo...

Bernis tirou os olhos do papel e encarou o velho professor esperando que ele concluísse. Decerto não gostaria do que ouviria, mas desconfiava que o seu segredo tinha ficado escondido por muito tempo. Aliás, estava encafifado como ninguém havia percebido antes.

–– Um antigo aeroplano nazista que seguia para Arkhangelsk. –– acenava discreto Marc para um William remoído. –– Sinto muito não ter ficado mais tempo por lá.

E passou-lhe um fragmento de jornal. “... descobrindo uma barreira a sessenta metros de

profundidade que se confirmou, através de sofisticados equipamentos de sondagem, como sendo um avião. Parte da expedição foi deslocada para outros setores aguardando a chegada

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de uma equipe britânica para a remoção do objeto. Eles utilizaram um Super Gopher, compressor de jatos de água quente para abrir um canal nas profundezas da geleira dura como granito. A aeronave foi pacientemente descongelada, desmontada e levada, peça por peça, para a superfície. Mesmo depois de 50 anos, o messerschmitt Bf 109E alemão ainda apresentava as insígnias visíveis e o bico amarelo característico com suas três pás da hélice fixas ao motor V12 invertido que envolveu a maior operação de resgate da expedição. Os arqueólogos não descobriram vestígios do piloto e todo material foi enviado para Londres, junto com a carta de voo com o trajeto entre Arras, na França ocupada, e a cidade russa de Arkhangelsk, no Mar Branco...”.

–– Mas ele não podia estar indo para a Rússia. A guerra! ––

sugeriu Marc num repente quase surpreso. –– Por isso ele atravessou o Mar do Norte costeando a

Noruega até desaparecer perto de Sogndal. Numa geleira a nordeste de Bergen, Jostedalsbreen. Com certeza o rapaz estava se evadindo dos radares. Depois, o que ele faria para alcançar o Golfo de Dvina, só tenho especulações...

Mas Marc não deixou de se assustar diante do acaso, tentando fingir desinteresse contido diante da revelação. O professor Hodgson-Crookes re-entregou o manuscrito piscando um dos olhos. Foi neste instante que Marc percebeu declaradamente que ele sabia de algo mais e já dava mostras de delinear um argumento, uma meia-verdade, quando, de boca semiaberta para contar seu indigesto segredo, fora interrompido.

–– Não foi difícil topar com as marcas, apesar de não entendê-las, ainda. –– insinuando que Marc concluísse balançando suas mãos como quem tivesse pressa, prosseguisse.

–– Até onde consegui ir, estas manchas parecem ser folhas ovadas, lobadas e tomentosas; –– reproduzindo o dicionário –– existe uma para cada documento e são iguais no formato. No entanto foram executadas de distintas formas, técnicas, materiais e épocas. –– Hodgson franziu os olhos esperando que lhe brotasse a solução, Vinis vinifera, indiferente à sugestiva entonação dada à última palavra.

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–– De uma videira! E... –– atropelando o raciocínio esquivo de Bernis. Com toda a sua afobação viu se vestindo os óculos de Marc.

–– E então, com exceção deste pergaminho –– erguendo o papel amarelado que lhe fora confiado ––, de todos os documentos, este é o único que é compreensível, se bem que não faz nenhum sentido para mim.

Depois de uma breve pausa para alinhar suas ideias abriu sua pasta espalhando algumas fotos translúcidas que o professor William tomou contra a luz do pequeno abajur de leitura. Sua expressão denotava certa ignorância impronunciável. –– Estas línguas não fazem parte do meu vocabulário...

–– Do seu e de ninguém. As fotografias reproduziam manuscritos e plaquetas de argila

e estelas de pedra negra e pergaminhos em rolo e pequenos diários de couro e tapeçarias, que Marc ponderava como um bizarro códice. Se não fossem as folhas de videira, jamais descobriria uma correlação entre os tais registros tão estranhos entre si. E sabe-se lá, Deus, quantos ainda estão ocultados em seus sepulcros.

–– Além do óbvio, não decifrei nenhum. –– Como assim? Estou vendo que estão escritas em alfabetos

reconhecíveis. A não ser que... –– Estejam criptografadas. –– para Marc representava outra

derrota. As luzes deram rápidas variações, ampliando as sombras das

estantes, alguém derrubara um livro. Podia-se ouvi-lo em escusas sonoras e inconvenientes a certa distância. As sombras ganharam momentânea vida.

Continuou. –– Tentei de tudo. Aprendi até novas línguas, a maioria mortas. Só então experimentei programas de decriptação e nada. Mas quando juntei alguns deles, procurando similaridades de escrita e som, é que surgiu uma coincidência.

–– Um nome? –– apressou-se Hodgson-Crookes. –– Exato. Se os textos se referiam a algo em comum, haveria

uma correspondência. Mas com isso surgiu outro inconveniente, não poderiam ser um criptograma. –– fez se silêncio, interrompido pela dúvida de Bernis. Ele estava de olhar fixo na marca...

–– Voltando atrás. O que o senhor queria dizer com marcas, já que só possui este pergaminho?

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O professor abriu um sorriso de quem apreciava um bom observador. Por pouco pensou que ele não havia percebido. Largou a chávena sonoramente acima de alguns papéis manchados por círculos similares ao que acabava de produzir. Levantou-se pegando os fotogramas para reagrupá-los num monte que ofereceu de volta para Marc. Ele estava perdido com o ato.

–– Agora. Siga-me. Marc socou a papelada na mochila sem ver a operação

enquanto os três saltavam para dentro de um corredor operacional do prédio. O professor cambaleava, movimentando seu peso entre cada passo lerdo, não era um caminhar mórbido, mas gracioso como o de um pinguim. Desceram vários lances de escada, a despeito de possuir um elevador para esta ação, despontando num gigantesco depósito subterrâneo guarnecido de colunas e de estantes de vidro com gavetas finas o suficiente para guardar placas. Não havia ninguém.

William consultava uma folha avulsa que implicava num movimento de vai-e-vem entre o papel e as gavetas numeradas.

Quando estava certo abriu a portinhola envidraçada, agachou-se e delineou as gavetas com as pontas do dedo até parar no código desejado. A gaveta aberta servia como mesa para uma placa de granito alaranjado com relevos em árabe cúfico. E olhou esperando a reação.

–– Ah! Estou vendo a gravura. –– correndo a mão sobre a imagem em baixo relevo. –– Este também é legível, Marcus. Códigos de alfândega e taxas diversas. Se não me engano foi encontrado na Espanha.

–– Sei. Na época eu estava no sítio arqueológico de Uxama. Haviam descoberto as fundações do antigo monastério visigótico de San Miguel. –– e Marc olhou diretamente para o bordo, empregando seus óculos pela segunda vez naquele dia. Deu um chega-pra-lá no catedrático se esforçando para erguer a grossa prancha sem cerimônias. –– Este também não é legível. –– apoiando parte da placa fora do encaixe. –– Passe sua mão pelas quinas. Suas bordas estão falando conosco.

O professor William teve a impressão de sentir ranhuras, marcações paralelas de cima a baixo, que poderiam ser confundidas com deteriorações e lacerações comuns ao tempo ou

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transporte descuidado. Não parecia em nada com uma catacumba recentemente descoberta, contudo a exultação era idêntica.

–– Ogham, professor? –– Occam, como a navalha?! –– Língua, não princípio lógico. –– corrigiu Marc. –– Se bem

me lembro, possui um abecedário que é representado por estas linhas cortando um eixo. É de origem irlandês-gaélica e muitos acreditam que era uma escrita críptica do alfabeto de dedos dos druidas. Ou mais ou menos isso. Posso? –– mostrando sua máquina fotográfica digital. Will lhe devolveu um balançar curto e rápido em afirmação. Foram vários flashes antes de se dar por satisfeito.

Estavam completamente desligados da realidade. Retornavam

à biblioteca em silêncio oportuno. Ascendendo pela mesma escadaria. Marc revia as imagens capturadas ressaltando quais letras delatariam o autor. Estava tenso e demonstrava seu estado rangendo imperceptivelmente os dentes, ombros duros e pescoço dolorido. E mesmo nessa circunstância desconfortante continuava pensando no garoto caído.

O saguão estava superlotado, preenchido de um zum-zum-zum intermitente de divagações variadas. Marc jogou sua mochila nos ombros aguardando que o professor Hodgson-Crookes selasse o acesso pelo qual escaparam. O piso havia sido limpo e se ouviam o ranger e guinchos dos pés emborrachados, ás vezes um som metálico parecia imitá-los.

–– Quais são as suas teorias, Marcus? Seu olhar denotava esperteza –– Suponho que se resumam a

duas hipóteses. O símbolo pode ser de uma confraria, seita ou ordem religiosa ou não. Ou os documentos falam da mesma coisa, ou seriam complementares, certo?

–– E a outra suposição? –– sabendo que Marc não teria só duas alternativas.

–– Estou trabalhando nisto, meu velho. Sentavam-se à escrivaninha da grande galeria aprimorando a

teoria de uma ordem oculta. –– Ainda não me contou qual era o nome que se repete nestes... –– calou-se quando Marc puxou violentamente um livro de capa avermelhada e gasta de sobre o

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tampo de carvalho mastigado. Quase derrubara a xícara de chá que havia sido recolocada por cima do livro.

–– Isto não estava aqui antes! –– girando o livro para que o professor lesse o frontispício. Estas coincidências estavam cada vez mais frequentes.

–– Ogham. –– Havia uma marcação de página feita por um pedaço de papel rasgado. Uma cruz alterada, delineada pela inclinação do eixo vertical encabeçava a folha referente à grafia muin.

–– A letra m é uma constante, é a primeira letra do nome do escritor. –– selecionava-a entre as ranhuras.

O professor corria os olhos sobre a página buscando mais informações quando percebeu outra coincidência. –– Todas as letras possuem um significado pictográfico. Esta muin, ou m, pode simplesmente ser a palavra videira... –– entreolharam-se.

–– Você ainda não me disse quem o escreveu! –– Existem várias grafias, mas eu escolhi a que eu encontrei

primeiro. Mikhae. Todas fazem parte do códex mikhae. O intrigado senhor William remexia o manuscrito com certa

morosidade, porém desistiu de argumentar enfiando o papel nas mãos de Marc.

–– Marcus. Descubra do quê se trata, pois estava muito bem lacrado, dentro de uma correspondência secreta e endereçada para cá. –– esperou –– Não aceito um não –– lembrando de um sonho onde alguém pedia insistente que encontrasse Bernis e entregasse o papel antes que a doença piorasse ocultando a descoberta para sempre. Se era sugestão de um artigo que lera no mesmo dia, jamais saberia, no entanto pressentia que algo em breve aconteceria.

–– Aqui, para Londres?! –– puxou rápido o envelope amarelado, datilografado em vermelho, para junto de si. Os carimbos não deixavam dúvidas quanto à importância da missiva. O professor especificou –– Para o Museu Britânico, e só demorou uns sessenta anos. E se você soubesse como realmente foi encontrado... Eu não posso contar mais nada, estou me arriscando entregando um papel que ninguém deveria saber de sua existência.

–– E por que você acredita que este pergaminho do século 13 seja assim tão importante? Não vi nada de excepcional.

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–– Não é manuscrito. Junto havia um bilhete que eu destruí –– piscou em cumplicidade ––, seu avô me entenderia.

–– Decerto. Nunca concordávamos em nada. Insistia em certas ideias que jamais compreendi, hoje eu sei que ele estava certo. –– o seu avô, Jacques, destes que acham que existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.

–– Marcus. Sei da sua recente viagem para a Antiochia ad Orotem... sei de Lucano...

Marc segurou o susto, desconfiando porque os melhores tinham que ser loucos ou excêntricos, mas gostou do olhar sincero do seu antigo professor. Desta vez tentou beber o chá.

–– Não preciso dizer nada, basta você reunir os manuscritos perdidos, a este aqui. Não se assuste se acontecer fatos estranhos. Você acredita em Deus, Marcus?

Não sabia o que responder –– Acho que sim. –– O chá desceu quadrado, engoliu em seco. O professor Hodgson-Crookes recusava qualquer participação na investigação. Sabia que as ameaças retornariam para aquele que buscasse por mikhae.

–– Desde quando o senhor sabe de Lucano? –– Pouco tempo. Mas sei de tudo. E pode ficar tranquilo, não

contei a ninguém. Como sei que manteve a mesma discrição, posso dizer que somente nós dois sabemos a verdade.

–– E o que pensa... –– interrompido pelo professor. –– Nada. Que você encontre mikhae. –– falando como se o

documento fosse alguém vivo. –– Caso surja alguém de sua confiança, conte tudo. Seja quem for. Como era mesmo, hum, talvez Princeps militiae coelestis... –– e mantinha o indicador esquerdo levantado para cima. Uma imagem inesquecível e estranha de quem dava, a todos, nomes latinos.

Tão logo Bernis chegasse em Paris precisaria de um co-participante, talvez já tivessem respondido ao seu edital. Depois do silêncio em que Bernis se entregara, se dispuseram a falar de outras coisas, banalidades sobre o mundo acadêmico. Recordando do tempo em que o avô de Bernis e o professor William corriam o mundo atrás de obscuridades históricas. Marc passou muito tempo com eles, conhecendo a Escandinávia e suas lendas. E continuaram discorrendo sobre o passado, as aulas e as controvérsias que jamais seriam aceitas por um ou pelo outro. E

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não havia reunião em que não recordassem da primeira expedição, e brindavam, com chá, São Jorge.

–– Ponto de vista, meu rapaz! Ponto de vista. –– Se é o que me diz... velho amigo rabugento. –– Brindemos –– com chá fraco –– aos inimigos que... –– Tendo pés não nos alcancem, –– Tendo mãos não nos peguem!

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fantasma não, mãe... índios.

Depois da confusão dos últimos dias era o primeiro

momento de calmaria, apropriada para que se conhecessem melhor. O que Guarini tinha em mente era justamente como se apresentaria... Não havia entendido muito bem se era um guia ou se ainda era um tipo de guardião de armas a partir do encontro em Trafalgar. É bem verdade que não fora oferecido nenhum documento ou instrução para Guarini que pudessem revelar as funções do trabalho, ou deveria considerar as palavras de um velho monge –– caduco?! –– como a única certeza? Se pudesse escolher regressaria ao antigo bosque, se preparando para mais uma nova incursão. Tarde demais... refletiu um pouco constrangido. Porém teria –– talvez –– a oportunidade de saber bem do que se tratava por alguém que entenderia o que estava acontecendo ali.

Ao pórtico da residência dos Fox, barrado por dois guardiões familiares, que se pareciam muito com guerreiros vikings famintos por alguma ação, Guarini esperava a licença do Guia da Casa para poder acompanhar Joshua que acabava de entrar. Um deles se chamava Asgard e o outro Hyeron. Um era forte e o outro magro. Um rechonchudo e o outro ossudo. Um era bigodudo e o outro barbudo. Mas ambos usavam longas tranças louras em cada lado da cabeça, sob um elmo encardido e pesado. O conjunto da obra impressionava, sobretudo quando acompanhado por grunhidos e olhares.

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–– Seja bem-vindo, meu bom colega de poucas roupas. –– Aproximou-se frenético o Guia da Casa, quase tropeçando, como se o pudesse. –– Desculpe a demora, estava inspecionando os relatórios dos outros... Você é mais novo do que costumo ver por aí. Quer dizer que o Velho te pôs no jogo? Outro? Muito estranho, mas não é raro.

Os brutamontes repentinamente mudaram de cara, até parecia que o verão chegara e os passarinhos cantavam, porque era cômico como pareciam duas criançolas abestalhadas. Apertando o novo amigo por entre seus braços grandes, deixou escapar um longo piscar de olhos de consentimento. Nem bem tinha se apresentado e já estava dentro do casebre mais cheio de Amersham. Pessoas das mais diferentes... hum, podemos dizer, espécies... transitavam por todos os ambientes.

–– Estamos correndo contra o tempo –– aconchegando-se no chão, perto da mesa de jantar. ––, eu me chamo Naxamuñaca, mas todos me chamam de tio Xaxá. Sou o Guia da Casa e o responsável pela organização das tarefas coletivas dos demais guias que agora inclui você, indiozinho. –– Guarini examinou-o de cima a baixo, determinando que ele era um pouco mais gordo do que havia pensado dos guias caseiros. No entanto era muito mais parecido com ele, com certeza era um indígena ou o foi um dia, mas de outras bandas. Quanto ao título, este devia se encaixar muito bem como velho índio gordo –– digo forte ––, com aquela cara de chefe Touro-Sentado não seria ele o primeiro a desobedecê-lo, imaginava se não seria canibal também. Quando o indiozinho –– expressão do tio Xaxá –– conseguiu abrir a boca para dizer algo, desatou a perguntar tudo que estava engasgado desde a quinta-feira.

–– Quer dizer que eu sou um guia sem estar devidamente preparado, nem fiz os exames preparatórios! Será que não foi engano? Ninguém sabe o que eu tenho com esse curumim, aí? –– apontando para o pequeno Joshua que voava nos braços do pai como um avião.

–– Afinal... –– descansando para recuperar o fôlego ––, alguém pode me dar um copo d’água?

–– Ah, sim. Sei.... bem... não sei. Hummm! –– disse Naxamuñaca, pausadamente, tentando encontrar as palavras certas. –– Digo, alguma coisa eu sei... Oh, sei mesmo. Mas assim

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como você, eu não sei nada do menino... parece-me que o monge gostava de agir sozinho, se você me entende, hum –– assinalando para cima e frisando com bastante ênfase. –– Lá de cima, bem lá de cima. Depois ele não é o primeiro, parece que todos os guias desta casa têm ares esnobes, nem relatórios apresentam no prazo, se bem que não reclamo. Serviço de menos.

Agora destrambelhou de vez. Por um tempo os dois se olharam, Guarini estava estupefato, mesmo que fosse um certo teatro. Não prestava atenção aos gritos de gol do Patrick ou no cheiro insuportável dos waffles que a senhora Fox insistia em assar. –– O senhor quer me dizer que... –– tentando não gaguejar, praticando seu talento e buscando algo mais.

–– Sim. Talvez você tenha conserto. –– deu por terminado o relatório o índio gordo, que o alfinetava sondando-o. Descobriu que não ia saber nada perguntando aos outros, mas pelo menos soube que tudo era importante demais para dizer não. Refletindo sobre o que ouviu decidiu duas coisas: se ele estava ali era porque precisariam dele e se fora escolhido para pajear Joshua era porque deviam se conhecer de alguma outra paragem. Coisas complicadas demais para se explicar em poucas palavras. Teria que fuçar mais a fundo. Por hora aquietou-se, escutando o que inventariam a seguir, mas mantinha em mente que ele sabia de algo a mais. Um segredo. Então seria um olho no peixe, outro no gato.

Naxamuñaca agarrou-se ao braço do índio e de novo derrubou meia tralha enquanto o puxava porta afora. –– Vamos até o correio do Centro, temos um serviço extra hoje. Temos que procurar algumas cartas. –– Não entendendo nada, Guarini fez um trejeito de quem concordava e retiraram-se atarefados. Por um gosto todo particular por veículos coletivos –– cheios ––, tio Xaxá obrigou Guarini a se conformar com uma excursão de mais de uma hora até o centro de Londres.

Manhã clara e ensolarada para encaminhar correspondências. –– De quem é a carta? –– replicou, logo após, Naxamuñaca –– É de um tal de doutor Marc B alguma coisa, hum. Conhece? Gente boa! Meio confuso, mas tem meio mundo ao seu lado! –– virando os olhos, clamando forças para suportar o congestionamento e a conversa fiada dos passageiros que ele não queria ouvir.

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–– Você acha que ele realmente nos viu? Nós dois, lá? –– lembrando de algo que aconteceu antes de saírem da casa.

–– Hum –– usando sempre a mesma resposta curta. Um pouco antes de tudo isso ele acabava de acordar. Sean sentia-se ainda meio zonzo e desorientado. Por sorte a

cabeça não doía mais. Sem pressa, abrindo os olhos, percebeu que se encontrava em sua cama; já devia ser de manhã, pois uma fina luz entrava pela fresta da cortina diretamente sobre seus olhos. Rangeu, resmungou, mas se levantou.

Os seus olhos ainda não conseguiam ficar abertos, e deste modo tateou em busca de suas roupas. Apalpou sobre a cama e nada. Mergulhou as mãos sob a cama e nada. Desistiu. Ergueu-se num salto só e cambaleante foi até a porta do quarto que se encontrava descerrada. A claridade do dia fez seus olhos arderem mais e ele, inexplicavelmente, não tropeçou no degrau do corredor. Ora com um olho aberto ora passando as mãos pelas paredes, conseguiu chegar à cozinha. Podia sentir o aroma do café da manhã com suas torradas amanteigadas e sucos diversos.

O zunzum daquela manhã não parecia o costumeiro ruído de dia de aula e tampouco havia alguém em casa quando o sol já mostrava a sua cara. A não ser que fosse o fim do dia... não, não era tarde, já que os waffles queimados somente eram servidos nas primeiras horas do dia. Nunca de tarde e jamais à noite. Não por costume, mas por causa do cheiro, que convinha para acordar os mais obstinados.

Antes de virar e enfiar a cabeça dentro da cozinha esperou um pouco para tentar focar os olhos embaçados. Enquanto coçava as nádegas declarava em bom som. –– Bom Dia! Mãe.

Não respondeu. Agora já podia ver melhor a cozinha que nunca ficava pronta,

meio pintada de amarelo, com alguns azulejos soltos, os móveis novos estavam empacotados e encostados ao lado dos velhos. A luminária quando queria funcionar ficava mais piscando do que acesa. A única coisa certa e definitiva era uma cortina de pano que parecia tapar o que não queriam expor. A sua mãe insistia em fazer os tais waffles flamejantes que só podiam ser preparados na

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torradeira modificada que seu pai consertou. Por isso era fácil acordar.

De novo disse: –– ‘Dia, mãe. Nada. Devia estar realmente irritada. Foi se aproximando da mesa para pegar algumas torradas e

enquanto declinava sobre o tampo, com os pés levantados, para alcançar o outro lado, percebeu algo estranho. De soslaio, viu que havia alguém na sala, que lhe acorreu serem seu pai e Joshua se preparando para sair. Mas quando foi confirmar a impressão assustou-se. Seu pai estava lá, usando a camiseta do time e balançando Joshua de um lado para o outro. Gritava bem alto –– Vamos, Arsenal. Vamos Red Devils. –– O jogo transcorria empolgante e sem dúvida não era sexta-feira.

Contudo se Sean chegou, mesmo que breve, a se preocupar com o que havia acontecido com os dias da semana, fora por poucos instantes. No outro recinto, a sala de jantar que ficava contígua à cozinha e à sala de onde assistiam ao jogo, havia mais alguém. Esticou a cabeça mais um pouco para poder ver melhor. O susto fora justificado. Duas figuras das mais insólitas, que ele jamais vira, estavam ali, sentadas no piso. Não sei se perceberam, mas Sean ficou imóvel, amedrontado. Ali, um índio pelado –– quase, usava uma tanga –– palestrava com outro, que pelo menos usava uma calça. Um era magro, tão jovem quanto ele e se assemelhava muito com esses índios sul-americanos que deviam comer gente e depois palitava os dentes sossegados. O outro gordo, velho e com cabelos compridos e prateados que saiam em volta de sua careca brilhosa, era de outra espécie. Talvez inca ou asteca ou sei lá o quê. Usava muitas pulseiras e tranqueiras além do cabelo amarrado em uma trança. De cara se via que era o mais sábio, mas sentado na sala estavam mais para ladrões ou coisa que espantasse garotinhos da cidade.

Se não fosse o pavor, a cena toda não passaria de muito engraçada. Dois índios díspares, acocorados serenamente em casa de desconhecidos, assistindo às preliminares do campeonato inglês. Só faltavam o bule e as xícaras de chá acompanhando.

Sean assobiava chamando a mãe e depois fazendo psiu para os dois que pulavam desvairados na sala por causa do gol de desempate. E nada.

Resolveu gritar: MÃEEEEEEEEEEEE!!!!!

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Surtiu efeito imediato, só que quem se virou para olhar foram os índios que conversavam animadamente, se é que monólogo era conversa. Assustou-se novamente quando o mais velho respondeu sorrindo: –– Filho... você está nos vendo, hum? –– apontando o dedo indicador para si. Sean levantou a barra da camisa e apertou-a contra os olhos. Durante o tempo em que estava se recuperando para abrir os olhos escorregou um pouco mais para frente. Abriu-os e eles haviam sumido. –– Ufa! Que susto.

Dormira demais. Agora só restava comer a torrada. Viu-se numa situação mais incomum, já não estava longe da

torrada e nem apoiado por cima da mesa... estava literalmente no meio da mesa. Podia ver seu corpo da cintura para cima como se houvessem lhe servido num grande prato de jantar, destes que levam uma maçã à boca. Os olhos aumentaram de tamanho saindo das órbitas. Para quem conseguisse vê-lo naquele momento, podiam enxergar as pernas atravessarem o tampo consideravelmente sólido daquela mesa antiga. Recuou uns passos e reviu as pernas. Estava mais assustado do que antes.

Desta vez escorregou e caiu traspassando a mesa. Já estava bastante irrequieto. Mexia-se balançando os braços e as pernas num frenesi

imenso para se libertar do pano que lhe cobria todo. Num sobressalto lançou-o ao chão. Estava sentado na cama, desarrumada. A respiração rápida e a testa suada denotavam que ele teve um pesadelo daqueles. Agarrou-se para não cair. Quando pôde, beliscou-se bem forte, e mais de uma vez. Pelo menos não estava morto. Desta vez viu as roupas postas ao pé do leito e se vestiu apressado. Reparou que seus cabelos estavam amassados no reflexo do espelho que ficava no outro lado do quarto e que sempre o assombrava. Mas antes nem havia percebido o espelho.

Estava bastante desorientado, tonto seria pouco. Ainda sentia o cheiro dos waffles quentes e os gritos de seu pai, extremamente eufórico com mais um gol do Arsenal. Era domingo, não sexta-feira como imaginava. Apalpou o criado-mudo à procura de um par de óculos que não usava jamais, e que naquela ocasião

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precisava para confirmar onde realmente estava. Aproveitou para se beliscar mais uma vez. Está bom, estava desperto.

Enquanto enfiava os óculos, uma leve ondulação na imagem fê-lo apertar os olhos na esperança de se adaptar ao mundo. Uma parte da haste dos óculos, rachada bem recentemente, puxou alguns fios de cabelo por cima da orelha obrigando Sean a fazer uma careta de dor. Acordou mais ainda. Não perdeu muito tempo se vestindo, tomou a calça jeans larga, enfiou-se numa camiseta laranja, prendeu uma camisa flanelada à cintura e, tão logo calçou o tênis saiu em disparada para a cozinha; não sem antes tropeçar no degrau do corredor... não escapava uma.

Com a mão espalmada apertou bem firme o tampo da mesa onde antes esteve em dois. Firme como uma rocha. Esticou-se sorrateiramente para poder ver se os índios estavam lá.

Nada. Não havia passado de um pesadelo. –– Você acha que ele nos viu? Ou ouviu algo do que

conversávamos? –– perguntou Guarini ao novo amigo durante as investidas de Sean pela sala de jantar.

–– Se viu ou não viu, agora é tarde, hum. Amanhã estaremos nos preparando para sair de Londres. É, tenho certeza disso. ––suspirou prevendo a canseira que uma mudança poderia causar. O jovem índio nem bem chegara e já estava sendo enxotado. –– Para onde? Quando? –– vendo toda aquela gente se posicionando, carregando caixotes, levando alguns documentos e aguardando a ordem de saída. Como revide obteve uma bem conhecida: –– Só Deus sabe.

Tio Xaxá agarrou o índio e o carregou até a cozinha onde ele empilhou alguns livros que seriam transportados. Mirou uma encadernação muito corroída e pronunciou indistintamente alguma coisa parecida com ‘acho que é muito velho, ele não deve saber ler latim’. Selecionou um belo livro prateado que não parecia ter sido escrito, ainda, e comemorou quando sacou, em meio ao monte, um livro repolhudo de páginas dobradas. Folheou-o impassível às insinuações de Guarini, retirando, ao mesmo tempo, os exemplares que estavam na algibeira do indiozinho. Jogou-os de lado evitando olhar a expressão de assombro de Guarini e socou o livro desfolhado dentro.

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–– Este será seu novo livro de cabeceira, nada destes folhetins da realeza inglesa, apenas franceses. Toma este Julio Verne –– excepcional ––, muito bom para treinar. Mas não se esqueça de solicitar um novo dicionário... de bolso desta vez, hum...

Sean ainda estava intrigado. Caminhou até a sala, atento a qualquer coisa que pudesse ser

estranha. Sarah viu que ele estava diferente. Acercou-se e baixinho sussurrou: –– Bom Dia! O que está preocupando o meu mocinho? –– argh! Não gostava de ser tratado como bebê. –– Até parece que viu fantasma!

–– Fantasma não, mãe... índios. –– e aquietou-se. Sarah não sabia o que dizer e foi até o escritório organizar alguns papéis, espiando vez ou outra a cara do filho quando não estava brigando com o fax. Era para estar preocupadíssima, desde quinta-feira corria para descobrir o que estava por trás do desmaio. Até mesmo Patrick ficou temeroso assim que percebeu que o filho estava adoentado, caído na avenida, sob uma chuva insensível. O que Sarah considerava bom tratando-se das rixas entre os dois. Enfim, só não poderia comemorar o episódio por causa dos exames que confirmavam um discreto tumor na epífise, pequeno, entretanto no meio da cabeça. E se a cirurgia fosse calamitosa... nem queria pensar. A sorte estava na coincidência de que Sarah possuía uma amiga de colégio que é neurocirurgiã das boas, mas estava operando em Paris nos últimos anos.

Aqueles dois dias foram, ao mesmo tempo, intensos e esparsos para Guarini. Desde o incidente com Sean ele experimentava novas obrigações, empurradas pelo velho monge. Nunca escutou, durante todo o tempo em que esteve a serviço deles, um caso de câmbio de guias tão absurdo como aquele. Tudo bem, Joshua acabava de fazer seis anos completos, mas largá-lo aos cuidados de um novato!

Ainda na quinta-feira, depois de escoltar Joshua ao hospital em Charing Cross, regressou com os quatro a Amersham. Sentado inerte sobre a capota do automóvel do senhor Fox, –– enquanto desfilavam por dezenas de ruas e avenidas –– o índio aborrecido procurava organizar seus pensamentos e a papelada alusiva ao curumim. Não adentrou por causa dos guardas truculentos, mas

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deixou claro que não o tentaria até domingo quando deveria se apresentar ao Guia da Casa.

Lá dentro o jogo já terminara a favor do Arsenal. Joshua procurou através do canto dos olhos para ver se Sean

estava bem. Pulou do colo do pai, ainda ofegante, para saltar sobre as pernas de Sean. –– O que aconteceu, mano?

–– Nada de mais, só dormi mal –– e acordei duas vezes, pensou com seus botões. –– e...

–– Não se lembra de nada?! –– Como Joshua poderia saber? Mas nem ele sabia que não se lembrava do que aconteceu até então. Antes mesmo de indagar como, Joshua completou. –– Deixa para lá. Você só precisa se lembrar de uma coisa. –– olhando bem nos olhos de Sean. –– Presta bastante atenção nas mãos.

–– Que mãos? –– falou parecendo meio perdido com tudo que aconteceu. Abaixou o olhar para as suas mãos, virou-as examinando cada poro, mas tirando certas unhas imundas, estavam normais. Não percebeu que durante o exame das mãos os sons do jogo iam se apagando, já não sentia o odor queimado. Balançou a cabeça com se estivesse com os ouvidos entupidos. Olhou para as mãos novamente.

Nesta primorosa ocasião as cartas eram arremessadas porta adentro; Joshua correu para junto da papelada, separando um grande envelope pardo e amassado do miolo.

Lá fora os guardas brutamontes faziam cara feia ao carteiro que parece ter sentido, pois um calafrio percorreu seu corpo, da ponta do dedo do pé até o mais alto fio de cabelo. O comentário dos dois estava relacionado à falta de educação dessa gente que entra sem pedir. –– Tá bom, ele não nos viu. Mas garanto que na próxima vez ele vai exigir que outro venha entregar as cartas. –– rindo-se com sotaque gutural e forte quando viram o homem tropeçar na portinhola e cair, deixando as cartas escorregarem pela rua. Não foi por maldade, mas era um jeito de dizer para o mensageiro que da próxima vez que ele fuçasse correspondência alheia ele teria uma reação à altura. O homem resmungava muito.

–– Não foi coisa nossa. –– falava um dos guardiões com seu machado enferrujado a tiracolo como querendo se safar. –– Pergunta pra esse teu Anjo da Guarda aí! Com anjos assim quem precisa de demônios. Hã?! –– e o outro apontando a clava na

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direção de um rapazote de cabelos cacheados que aplicara a sentença.

Dentro, Joshua acabava de entregar o envelope para Sarah que não sabia onde enfiar a cara. –– Abre, abre. –– pulava o pequeno Joshua. De um lado era possível ver o seu sobrenome, bem claro, não havia dúvidas. Do outro –– suspirou para não desmaiar ––, Museu do Louvre, Paris. Departamento de Pesquisa e Documentação. Monsieur Marc Bernis.

Sua mão tremia durante o exame da sobrecarta, girava de um lado para o outro, certificando-se que ela se chamava mesmo Sarah Fox, pesquisadora e historiadora –– mais uma combinação de paleontóloga com gênio da computação e boas doses de psicóloga –– formada pela Universidade de Manchester. Era importante saber quem era porque ali estava algo difícil de se acreditar. Olhou bem para os três –– que de ombros pareciam não entender –– indagando o que seria isto.

–– Pois então abra logo! –– apontando para a carta. Rasgou-a mais cautelosa do que queria e com a ponta dos dedos levantou um papel. Não, dois. Um era comum. Já o outro se parecia com um contrato.

–– Contrato de quê? Para assinar alguma enciclopédia? –– tagarelava angustiado Patrick que suava frio de apreensão diante de novas contas. O sorriso crescia na boca de Sarah a cada linha lida; às vezes relia para ver se havia entendido bem. A cada parágrafo os lábios aumentavam alguns milímetros. Por fim, tinha acabado. Suspirou de alívio e jogou a missiva para Patrick. –– Aqui está a resposta aos nossos problemas, acho que vamos para Paris. –– A carta se referia a um convite de emprego solicitado por ela dias atrás. Era só elogios. E que precisava de alguém com aquelas especificações e experiências de campo. Aceitava a proposta para arranjar uma acomodação temporária e escola para os filhos. Aguardava-a o mais rápido possível.

Mas havia algo estranho em tudo isso, ela não havia enviado nenhuma carta. Não tinha pedido casa e colégio e nem sabia ter realizado metade das coisas que estavam em seu currículo. Só tinha certeza de uma coisa, quem redigiu seu currículo escrevia muito mal, porque o próprio senhor Bernis respondera corrigindo alguns termos e insistindo que com a devida prática poderia

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aperfeiçoar seu francês –– bem, mas ela era francesa desde que nasceu!

–– Isso está me cheirando a brincadeira de criança. Jox? Por que você fez isso, e como? –– interpelou-o automaticamente como se fosse qualquer coisa dessas que todo mundo faz. –– Tinha um anúncio na revista do colégio, eu pedi para Sean se podíamos levar para você, mãe. Ele não deixou.

Patrick zombava da circunstância, “bem a calhar esta carta”. Se Joshua entendia o que queria dizer não deixar, acertadamente incluía, pois faça você mesmo que é isso que queremos. Não tinham outra alternativa, se mudariam depressa e Sarah teria que aprender algumas das velhas experiências de seu currículo.

Na antecâmara, todos aguardavam pela réplica. O tio Xaxá estava contente pelo procedimento ter dado tão certo e agradecia a cooperação de guias, protetores e guardiões. A mudança começou instantaneamente. Guarini ainda estava maravilhado com a eficácia da trama toda e permanecia com uma dúvida –– entre tantas que havia desistido de descobrir –– como conseguiram botar na cabeça do curumim que ele deveria mandar a carta. Escutando seus pensamentos Naxamuñaca respondeu enquanto coçava as orelhas. –– O monge pediu e ele fez, oras. Que forma mais eficiente do que pedir com jeitinho, heim? –– rezingando da pouca noção que o indiozinho tinha sobre os guias. Pensou em providenciar, o quanto antes, um guia sobre Guias.

Sarah apertou-se a Sean, mais propriamente ao pescoço, e girava de exultação. Não havia percebido que a causa da mudança, a cabeça, estava sendo espremida, chacoalhada e balançada inescrupulosamente pelas mãos de sua protetora, uma mãe competente, porém meio destrambelhada naquela circunstância. –– Ah! Desculpe, Sean. –– Apalpando delicadamente a cabeça como se fosse consertar quaisquer danos com simples beijinhos e carinhos. As mães conseguiam ser estranhas quando queriam, muito estranhas. Agora estava a par de que possuía um tumor, contudo não parecia aflito.

Quando pararam de girar, ainda meio tonto sentiu uma ligeira dor de cabeça. Firmou o olhar para um ponto qualquer e esperou o mundo parar de rodar. Desta vez viu mais do que o recinto onde estava, os móveis e seus pais. Manchas acinzentadas pareciam se mover de um lugar para o outro; não eram fáceis de se ver, mas

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elas estavam circulando pela casa toda. Lembrou-se do tumor e evitou pensar nas esquisitices. –– São por causa do tumor, é, só pode. Estas manchas não são inteligentes, está tudo na minha cabeça.

Joshua se acercou do irmão esperando que ele dissesse alguma coisa sobre a carta e reparou que Sean só fazia olhar para o nada, forçando a vista e se movendo cautelosamente.

–– Que foi? –– indagou Joshua. Ao que Sean devolveu, sem perceber que estavam todos lá, respondendo alto e despreocupadamente. –– Por que estas manchas não param de se mexer para ver se consigo descobrir o que são? –– instantaneamente elas pararam. Para a sua surpresa e aflição elas obedeceram. Ninguém entendeu quando Sean se virou e declarou em bom e alto som que iria se deitar enquanto se lembrava onde era o seu quarto. E com sorte só acordar no dia seguinte.

Os demais, as tais manchas transportadoras, que estavam somente carregando coisas de uma ponta a outra, continuavam extáticos. Não sabiam se andavam ou ficavam congelados. A ordem veio de Naxamuñaca, o tio Xaxá, solicitando maior presteza, pois que o transporte estava marcado para daqui a dois dias, nas primeiras horas do alvorecer e que se não estivessem lá de nada teria adiantado conseguir as reservas de última hora para os três e, que o turrento do senhor Fox ficasse de molho em Londres. Gritava batendo as mãos como quem quer agilidade.

–– Acho que está na hora, mais um pouco e, hum... ele enlouquece de vez. Preparem-se para irmos a Paris ajeitarmos todos os pormenores, hum. –– determinou Naxamuñaca entre uma reunião e outra. Guarini sentou-se numa atitude confortável vis-à-vis com Joshua e tentava falar-lhe daquele jeito meio telepático de se comunicar. Apertava os olhos esperando alguma reação e nada. Falava devagar e audível –– quase urrando –– na esperança de que pelo menos ele se movesse do sofá. Nada. Ia providenciar o tal guia tão logo as coisas se acalmassem. E esse negócio de mudar para outro lugar exigiria um novo dicionário –– tupinambá-francês ––, um novo mapa de ruas e contato com pessoal local, que seria de muita valia para um índio pouco citadino.

Nesta derradeira assembleia pôde ver os guias de cada um, reunidos para discutir o futuro. Exclusivamente, o guia de Sean trabalhava só, e quase nunca, jamais, era visto na residência. Os

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outros se compunham do próprio Guarini, que não sabia bem como se apresentar e duas senhoras. A bisavó de Patrick, senhora Shelley Fox, era a única que suportava os seus estados de ânimo e; uma senhora negra de olhar meigo e paciente, daquelas senhoras enclausuradas para fazer os netos felizes, tricotando algo. Esta era a guia da Sarah e um pouco distante do prosaico. Guarini tinha certeza de tê-la visto em algum lugar ultimamente, mas por onde? Entretanto as mulheres são todas tão parecidas, que detalhes como roupas, cabelos ou apetrechos são estas pequenas coisas que as diferenciam, pelo menos matutava Guarini.

Existiam mais alguns, rondando a casa, no entanto não entravam por causa da guarda de proteção que se posicionava nos quatros cantos, evitando uma presumível invasão de curiosos. Asgard e Hyeron davam cobertura e evitavam que invadissem o lar. Além do mais, proteção por um merecimento que todos deveriam conquistar.

Figuras estranhíssimas, não pareciam contentes e as caras, em meio ao turbilhão que circulava, não eram nem um pouco amistosas. Também pudera, desde o aniversário do pequeno Joshua, no mês passado, a casa vinha emanando um brilho que fazia a noite parecer dia.

Mas só eles viam.

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tem gente na asa do avião.

O dia parecia realmente bom . Mesmo que as nuvens insistissem em se reunir outra vez, o

vento procurava afastá-las. Os raios de sol que buscavam, em seus movimentos aleatórios, atingir a cidade, ofuscavam as pessoas que saiam para o trabalho logo cedo. A cidade acordava com aquele estranho clima que surge logo após uma boa estação de tempestades ocasionais onde o ar fica mais limpo, o céu mais azul, os gramados muito mais verdes e tudo parece resplandecer ao brilho da água acumulada que corre aos bueiros.

O acanhado, e vermelho, Ford Fiesta dos Fox já circulava, corcoveando e balançando pelas estreitas vias que os levariam de casa ao aeroporto. Um pouco antes, a correria dos primeiros instantes do dia ia tomando de assalto a rotina dos Fox. Patrick insistia em ficar –– verdadeiramente contrafeito, devido aos compromissos já agendados –– até arrumarem a papelada da venda da casa, dos carros e outras coisas legais. Contudo Patrick não é destes homens comuns que ajeitam gravatas todos os dias para irem aos seus escritórios enfadonhos, ele vestia a gravata para arranjar patrocinadores e manter, segundo suas aparições contratuais, os velhos. O seu escritório ficava dentro de um acavalado caminhão que já tinha dado o seu melhor em corridas e provas de longa distância por todo o globo, era o navegador que sonhava em ser piloto. Mas era muito mais difícil se livrar dos contratos do que de velhos hábitos. Por isso o truculento

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caminhão de apoio era forrado de insígnias das quais, uma centena, jamais sequer ouvira falar. A viagem era a oportunidade de mudar isto. Também sabia que podia demorar demais, meses, mas Joshua era o privilegiado que não se importava. Ele ia viajar.

Sarah ficara no encargo de providenciar as passagens, reunir os passaportes, fazer as malas e qualquer outra coisa que não fosse tão legal assim. Portanto a Sean e Joshua bastava juntar algumas tralhas, tomar um bom banho e dizer adeus à Inglaterra.

Já Sean procurava não esbarrar nas roupas arremessadas, do armário, por Joshua durante o qual tentava calçar as meias que conseguiu encontrar, um velho par sem elástico que gostava de usar, mas vivia sendo comida pelo sapato. Apertou o que restava dentro da mochila desbotada, um livro fino, satisfatório para ser lido em uma hora, e papel e caneta para brincar de rabiscar algo durante o voo. Se tivesse tempo se lembraria do que deveria dizer à médica, as vozes, as sombras, os índios... Bem, talvez não contasse este último.

–– Calma, crianças. Ainda vamos voltar aqui. –– tentava enganar, Sarah, com um sorrisinho sonso. A casa estava como sempre, nada foi empacotado ou removido, com exceção dos armários que nunca foram desempacotados nos últimos três anos. Entretanto parecia vazia. As sombras não estavam mais lá, Sean se assegurou olhando até dentro do vaso sanitário. Porque se fossem fadas ou duendes queria ter certeza de que existiam.

A viagem até o extremo sudoeste londrino fora como uma

despedida que aos poucos era dissimulada com alguns ensaios de francês que a senhora Fox tentava aplicar constantemente desde a sua decisão. Não estavam nem um pouco afim. Para aqueles que estavam despreocupadamente assentados no carro, os movimentos bruscos de nada interferiam no nervosismo do embarque. Tudo aconteceu tão rápido que Sean nem percebeu que estava pronto para passar por uma elaborada operação cirúrgica. Não estava pensando no assunto a um bom tempo, mesmo porque a sua curiosidade estava direcionada às estranhas sombras que passeavam por todos os lugares que ele olhasse.

Quando se aproximavam da estação de Waterloo, um gato ––preto, feio de olhos amarelados, parecia até um pouco chamuscado de fogo –– atravessou correndo à frente do

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automóvel. A brecada fora tão intensa que parte das malas subiram e foram cair sobre a motorista. O gato continuava lá, apesar de estar com os pelos mais arrepiados e os olhos muito mais esbugalhados do que costumava ficar. Sarah ainda viu o bichano petrificado por entre os cabelos desarrumados antes que ele disparasse noutra direção.

Enquanto se recuperavam do susto e dos gritos dos outros motoristas. –– Lugar de mulher é na cozinha! Vê se não passa batom enquanto dirige, dona! –– O que considerou uma ofensa –– Vocês não viram que tinha um gato na rua?! ––, e parece mesmo que não viram.

Era a oportunidade perfeita de apreciar o que estava acontecendo no carro. Três distintas personagens pegavam uma carona com a família Fox e dialogavam, intrigadas com o incidente, aguardando a partida. Sarah voltou ao banco, se espremendo entre a bagagem arremessada; suspirou confiante e saiu como se não houvesse ocorrido nada. O suor que fluía aos borbotões dizia o contrário. O solavanco foi tão brusco que os seus passageiros, não-convidados, se atracaram ao teto do automóvel.

Continuou corcoveando e sacolejando enquanto os três caroneiros buscavam se firmar sentados sobre a capota. Atrás, presa ao para-choque traseiro, seguia uma pilha de malas e malões de pouco menos de vinte e oito pés de altura, que não parecia tão bem fixada como deveria. A cada curva mais acentuada as malas guinavam e arqueavam na direção oposta. Quando brecava inadvertidamente, a pilha batia na cabeça de Guarini que, a essa altura, preferiria ter ido por meios próprios e mais eficientes.

–– Preciso conversar com Aquele Um sobre o seu gato ficar bisbilhotando... da próxima vez ele perde o privilégio de ter estes animaizinhos. –– Tio Xaxá ainda resmungava sobre o imprevisto e o fato de não gostar muito de gatos ficara definido. Guarini não gostou do que ouviu, será que eles gostariam de seu bichinho? Durante a pequena viagem até o aeroporto, Naxamuñaca, Guarini e a senhora Marie –– a venerável e pacata velhota que era a guia de Sarah –– discutiam as ações para os eventos que estavam preparando há alguns dias. A conversa fluía acompanhada por um saboroso chá de ervas com leite e, nas curvas mais fechadas era preciso segurar o bule com certa insistência, assim como a pilha

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de malas que se estendia encurvando-se para os lados sem que ameaçassem cair sobre os pedestres.

–– Acho que estou pronta para que o senhor Bernis –– quase que cantando o nome –– chegue até a nossa querida Sarah, mas você está certo de que Sean não pode vê-lo, ainda? –– Marie procurava ter certeza, mais uma vez examinando sob os óculos, de um olhar meigo e decidido, qualquer oscilação dos amigos.

–– Marie! De nada adiantaria se o apresentássemos antes dos acontecimentos previstos para daqui... –– consultou uma agendinha embolada –– vejamos, hum... uns sessenta e tantos dias, hum. –– frisou Naxamuñaca, fungando o nariz –– A graça está na surpresa, e vai ser das boas, hum. Querida, você não costuma ser desmancha-prazeres.

Marie se pôs contrafeita diante da insinuação jocosa. Sempre determinava suas atitudes conforme a necessidade, nunca pelo improviso. Não querer que as coisas andassem meio na tentativa desesperada, não a impedia de agir. Se ela não fosse boa, não teria se deixado convencer. Depois ela gostava de bagunça... pois são os quietinhos os mais endiabrados, com o perdão da palavra.

Guarini não compreendia o diálogo e cada tentame de se intrometer era calado veemente por um biscoitinho enfiado goela abaixo pela senhora Marie, que de burra não tinha nada, nem cara. Desprendeu-se inteiramente da conversa observando os estranhos transeuntes que continuavam tão atarefados como se fugissem de algo. A certo momento, distante a tudo, Guarini se surpreendeu sendo afrontado pelos dois como se estivessem esperando alguma resposta. –– E então, vai nos ajudar? –– se lhe fosse possível se esconder, o teria feito, mas teve que perguntar acanhado: –– Como? O quê?

–– Ora, criança. Vai nos ajudar a manter Sean longe do senhor Bernis? –– Nem conhecia o tal Bernis, e por que os guias dos envolvidos não tomavam as providências? Será que não poderia sequer saber o porquê? Os dois, desconfiando das intenções do indiozinho resolveram contar, mas só uma parte deste segredo que não era o mesmo. –– Tá bom. Você merece saber. O monge me paga, se paga. –– pigarreou profundamente Naxamuñaca, batendo a mão contra a perna –– Nós estamos adiantando os nossos planos e para isso precisamos que Sean realize a cirurgia antes de conhecer algumas... –– aguardando que Guarini compreendesse.

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–– Pessoas? –– completou o indiozinho. –– Também, e alguns como nós! –– apontava o dedo

atrapalhado de um lado para o outro, fingindo nada sério enquanto ajeitava a sua trança. Guarini não parecia pego de surpresa, tanto que fez uma cara como se dissesse “e daí”. Marie percebeu os olhares vagos e abriu a boca para explicar melhor. –– É que não fazia parte dos nossos planos que Sean, que ele precisasse nos ver tão cedo. –– esperando que o carro parasse de balançar para servir mais chá –– Por isso não podemos meramente agir do lado de cá. O tumor deveria conter as visões até que ele tivesse uns dezenove anos, acho. É, isso mesmo. –– puxando pela memória.

–– E tivemos que acelerar o processo todo, inclusive capacitar os médicos para que... hum... soubessem como operá-lo; se fosse no ano passado estaríamos, desculpem, ferrados. Sabe, esse negócio de células-tronco, clonagem e tudo mais são um efeito colateral das nossas interferências sobre eles. –– revelou tio Xaxá examinando cada expressão de Guarini, que naquele instante estava ficando intrigado, deixando parte do chá cair sobre suas pernas. –– E eles ainda acham que são coincidências, e todo trabalho que tivemos? Depois tem o tumor, que tivemos que inchar um pouquinho. Não creio que tenha comprometido o garoto, mas na dúvida...

Desta vez o silêncio caiu como uma pedra, assim como aquela que pesava dentro do estômago, que mortos não deveriam ter, mas tinham. Ninguém tinha a pretensão de falar algo mais quando Guarini indagou-os sobre o motivo de darem tanta importância para um garoto tão problemático, tão comum. Mas ele sabia que não era bem assim.

–– Bem, você deve saber, vem de uma casa de guardiões, não é mesmo? Como andam as falanges das Cidades Baixas? –– Guarini engasgou ante a revelação, por que não havia percebido antes? No entanto jamais pensou em fazer parte de um esquema tão amplo. Mesmo antes de responder à pergunta de Marie, sussurrou: –– Então estamos todos envolvidos? –– a resposta veio com um aceno afirmativo e sincronizado de ambos.

–– Já era habitual que tais grupos atacassem alguns postos avançados sem conseguir nada de valor. Estão cada vez mais impacientes e seus agrupamentos mais organizados. A corrente das fraternidades, os sábios, acha que eles não estão só atacando,

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mas evitando que os guardiões... –– recuperando-se, Guarini, depois de mais uma lambada na cabeça ––... penetrem em seus territórios para vigiá-los. É como se eles estivessem se defendendo. Como vocês sabem, não interferimos, mas dá o que pensar. Mesmo assim, o que o garoto tem a ver com essa mobilização toda? –– Ele nem parecia índio, talvez uma gravata lhe caísse muito bem.

–– Acabamos de ser requeridos, de modo bastante gentil, para fazer parte da segurança de Marc Bernis... –– o indiozinho nervoso sorveu o último gole frio que havia em sua chávena –– e consequentemente dos manuscritos que ele batizou de códex mikhae.

Reparou ligeiro, engasgando com uma folha de limão. –– Não abertamente, pois estamos lidando com um evento comum entre Bernis e Sean, muito corriqueiro. Assim que possível eu conto o que pretendemos, conquanto que tenha bastante e inexaurível paciência.

Um clique em sua cabeça parece ter sido acionado, Guarini começava a ver o que estava acontecendo mais rápido do que um mais um é dois. Naxamuñaca e Marie sorriram em cumplicidade. Guarini começava a compreender o segredo. Todos estavam vendo o problema de ângulos diferentes, e cada um com o seu segredo particular que não revelariam enquanto pudessem. Nem sempre era desejável que ficassem a par de todos os detalhes. Conheciam um ditado que dizia que quanto menos soubessem, melhor o acaso trabalharia a favor. Estavam confiando nesta máxima, porém se entreolharam com certeza de estavam escondendo vários segredos.

Por um momento continuaram assistindo o vai-e-vem dos carros no cenário londrino. O burburinho das máquinas não estava mais tão distante quanto antes. Tio Xaxá re-encetou: –– Desde agora nos fechamos ao falatório, bico calado. Dizem que os rastreadores estão cada vez mais presentes. Aliás, alguns já viram, ou melhor, ouviram, os dragões andando por aí. –– assinalando para baixo, no interior do automóvel. –– Pelo menos tivemos a chance de improvisar um novo plano, mas tudo depende desta intervenção cirúrgica. E, sobretudo das escolhas que o menino possa fazer, de suas próprias escolhas. Mas a minha

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curiosidade é quanto às de Marc Bernis, gostaria de saber como ele está. Hum!

Guarini compreendia. Marie declarou-se radiante ante a perspectiva de ganhar a batalha, de um jeito só dela, arrumando o coque e alisando a roupa. Uma batalha muito desigual, não havia bons e maus, mas sim, intenções contraditórias. Apesar dos dragões estarem em oposição aos desígnios do amor, eram seres dignos de perdão. Afinal não somos todos imperfeitos?

–– Não nos precipitemos porque a... ––... porque a ordem sempre vem lá de cima! –– disse o

indiozinho indicando com o dedo o céu acima deles. Talvez um pouco mais para a direita, pensou. E olharam, soltando um muxoxo de ansiedade. O tráfego da M25 continuava bastante congestionado, além das buzinas que não paravam de soar. Tanto esforço por um só garoto? Só se Marc era a causa.

–– É, por enquanto serve, não é Marie? –– olhando em socorro para a recatada senhora que guardava seu bule e xícaras numa bolsinha a tiracolo. Mais uma parada seguida de solavancos e chegavam ao portão de embarque do Terminal Três do aeroporto de Heathrow. Esvaziaram o pequeno Ford em questão de segundos, ajeitando a bagagem como podiam sobre dois carrinhos.

–– Vou estacionar o carro e volto em seguida, vão até o saguão da companhia aérea e me esperem. E nada de sumirem, pois estamos em cima da hora. –– gritou Sarah, bufando durante uma complicada tarefa de procurar as chaves entre os bancos.

Sean se agarrara ao carrinho mais pesado e firmou bem os pés antes de conseguir algum resultado. Joshua o seguia com um carrinho que tinha somente algumas sacolas quando se deslumbrou com as portas automáticas que se abriram sozinhas.

Seguidos bem de perto pelos acompanhantes, eles foram se postar contíguo à grande área de embarque que dava diretamente para a pista de decolagem que estariam usando em poucos minutos. O aeroporto era magnífico, sua estrutura se alongava em centenas de pés parecendo uma enorme caixa de vidro e ferro. Os passageiros que se moviam pelo espaço, circulando entre lojas, balcões e telefones públicos acabavam de embarcar ou desembarcar. O barulho não era muito alto, podiam escutar vários rangidos, de tênis e sapatos sobre o soalho elástico que tentavam

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se sobrepor ao som das esteiras e dos aviões que se aproximavam das hastes de atracação.

Sean aproximou-se da vidraça encarando a circulação de homens e carros que chegavam e saiam dos aviões estacionados. Lembravam formigas. Joshua não perdeu tempo e se ajeitou por entre as pernas do irmão enfiando o nariz batatudo contra o vidro impecavelmente limpo. De vez em quando ele fitava o saguão à caça de sua mãe e o nariz raspava pela janela com um barulhento fluip.

–– Você está preocupado com a cirurgia? –– soltou Joshua entre as divagações de Sean.

–– Estou, mas parece que eu não deveria. –– algo dentro dele dizia que era só uma desculpa para outra coisa. –– Quando penso naquelas esquisitices que vinham acontecendo, eu fico mais curioso para saber se era, realmente, só a minha imaginação ou se existiam... –– calou-se quando percebeu que estava gastando sua conversa com um pirralho de seis anos. Joshua nem se importou, havia preferido olhar um gigantesco avião prateado decolando. Sua cabeça continuava doendo e nestes momentos esforçava-se para se concentrar em algo que não fossem as sombras, que ficavam cada vez mais nítidas. Até viu três destes vultos enfumaçados acompanhando-o pelo aeroporto. Ficou inquieto, mas fingia que não era com ele. Logo depois as sombras mudaram de rumo e se afastaram silenciosas.

Naxamuñaca ia ciceroneando a modesta comitiva, apontando

o balcão de atendimento onde seriam recepcionados. Atravessaram o terminal todo antes de saírem por um campo indicando: acesso ao Terminal Seis. Assim que entraram, viram que o Terminal fervilhava de pessoas que buscavam informações ou simplesmente embarcavam ou desembarcavam de suas aeronaves. No Terminal número Três havia uma grande quantidade de gente circulando, mas no Seis extrapolava qualquer previsão. As vozes da multidão abafavam os sinais que advertiam a partida ou a chegada, determinando que os três fossem sem demora a uma ampla sala transparente, de controle e monitoramento, onde deveriam se apresentar.

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Talvez Sarah não compartilhasse da mesma opinião de Guarini, pois raramente vira um terminal tão vazio e calmo. A todo o momento as plaquetas mudavam, lembrando os voos daquele dia e daqueles que foram cancelados devido às ameaças terroristas corriqueiras. Exatamente por essa razão o aeroporto se encontrava deserto, quase. Ao longe, aguardando o aviso de embarque durante a vistoria de bagagens e passaportes, Sarah, Sean e Joshua fitavam as obras de construção do Terminal Cinco. Alguns pilares colocados, muitos andaimes e barro espalhado. Um informativo dava detalhes de mais dois terminais ainda a serem construídos, futuramente.

Guarini olhava obstupefato para o edifício, espantosas vigas metálicas encurvadas formavam a sua suave cobertura. Gente de todas as nacionalidades andavam preguiçosamente conversando, apreensivas e temerosas sobre a viagem que estariam fazendo. Pôde ouvir alguns grupos que embarcariam para algumas Cidades Altas próximas. Mas a maioria seria redirecionada para os outros terminais, com escala em Cidades Médias com as quais estão mais acostumadas.

Perto do controle, a senhora Marie se adiantou entregando alguns papéis que descobriria mais tarde serem licenças exclusivas de embarque. Naxamuñaca se apressou em cortejar dois senhores que vieram em sua direção bastante tensos, num frenesi diferente do que estavam acostumados.

Um se apresentou como Diretor do Terminal, Sr. Wright, adotando um impecável terno cinza que não combinava com a mixórdia. O senhor Wright recebeu um envelope das mãos do segundo homem, este parecia ser um secretário, pois parecia alarmado e muito mais cansado que o próprio diretor, como alguém que trabalha muito mais do que o patrão. Seu nome era Ken Webster. A expressão dos dois homens denotava que, aos olhos de Guarini, tinham extremo respeito pelo tio Xaxá. O secretário chegava a gaguejar de agonia, mas até podia ser gago de verdade.

–– Caro Senhor Naxamuñaca. Vejo que ainda usa estes antigos salvo-condutos. –– abrindo um sorriso escorregadio. –– As autorizações já foram entregues antecipadamente, alguém muito respeitável zela por vocês. –– Tio Xaxá confirmou balançando a cabeça e insinuando que prosseguissem. O velho

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senhor Wright retornou à sala de operações de onde centenas de funcionários laboravam entregues aos seus computadores. O fulgor e a higiene do ambiente dava ao lugar a impressão de que estavam antevendo o amanhã. Luzes que piscavam, corroborando os voos, flutuavam pelo saguão como se não tivessem qualquer sustentação aparente. No balcão de informações, os terminais individuais indicavam, através de complexos hologramas, o rumo a tomar. Se não sabiam como circular, uma flecha surgia igualmente flutuando desde o terminal até o ponto final. Para Naxamuñaca estas tecnologias eram necessárias, mas se pudesse evitá-las, o faria. Definitivamente não precisava delas, mas teria que usá-las um pouquinho nesta manhã.

Quando o senhor Wright voltou, trazia consigo novos documentos que se assemelhavam a computadores de bolso da dimensão de um cartão e, um manual do tamanho de uma bíblia de mesa. Tio Xaxá examinou-os –– Sr. Wright confirmou que teve que substituir os arcaicos condutos de papel –– e lançou-os para que Guarini os pusesse no embornal que subitamente cheirava a queimado e chiou com o peso. A vantagem era que os tais cartões ocupavam bem menos espaço e o voo seria a ocasião ideal para aprender como.

–– Senhores –– declarou Wright ––, sigam o senhor Webster que ele os levará ao setor de embarque do Terminal Três. Estamos operando em estado de extrema urgência como podem ver. E este terminal deve ser desativado ainda hoje, portanto sejam rápidos. Não é sempre que montamos rotas de deslocamento desta magnitude e aparelhamento, verdadeiras rotas de fuga em massa. A coordenadoria de serviços gerais montou um posto inigualável e contamos com o suporte da coordenadoria de proteção por causa dos tumultos. Então, boa sorte. –– tranquilamente o senhor Webster assinalou o caminho passando por um holograma que contava os pormenores das Cidades Altas situadas na Grã-Bretanha a uma velha senhora vitoriana perdida, que insistia em saber onde ficavam os bondes que iam para Avery Park.

Viraram-se e saíram pelo portão, retornando ao Terminal Três pelo exterior. A senhora Marie correu, com dignidade que aparentava, para se juntar a eles. Ofereceu um cartão para Naxamuñaca e outro para Guarini assoprando instruções: –– Não diga nada, estamos disfarçados para não chamar a atenção,

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simplesmente embarque e relaxe. –– Como se precisasse mentir, não sabia nada mesmo. Aliás, o que ela queria dizer com disfarçado, sendo que dois índios em meio a centenas de alegorias jamais seriam notados. Uma multidão de gente estranha; até mesmo uns elementais que brigavam por uma sala very important person.

–– Sorria. Se quiser ir ao banheiro, a hora é esta. –– piscou a graciosa Marie, imitando uma mãe zelosa. A brincadeira ajudou a descontrair. Guarini aproveitou a chance para perguntar ao jovem Webster a causa de tanta desordem na Inglaterra.

–– Evidentemente ouviram falar dos ataques constantes em Londres! Não?! Parece que um exército por fim conseguiu assustar essa gente... Junte a isso os esforços de guardiões, não tão discretos quanto costumavam ser –– enquanto retirava alguns cartões do bolso com as imagens divulgadas ––, e uma significante movimentação bem concentrada na França. E aí temos todo esse caos. –– Mantinha o olhar sério ante as fotografias que figuravam extensas legiões marchando atropeladamente sobre Londres, como ele mesmo vira há dias, junto ao monge, de dentro do ônibus vermelho.

Em instantes estavam emparelhados ao extraordinário Boing 747 da Air France com destino a Paris. Pelo finger de acesso ao avião, que saia do Terminal número Três, os passageiros se acomodavam aos assentos numerados assim que a comissária de bordo insinuava os lugares certos com mãos galantes e sorrisos mil. Fora, duas pranchas que levitavam, posicionadas em cada asa, davam ingresso a certas pessoas que não constavam na lista normal de passageiros. Indistintamente eram, também, guiadas por prestimosas comissárias que asseguravam as acomodações indispensáveis a cada um deles. Enquanto os passageiros cadastrados pela companhia aérea descansavam entre as variadas classes de conforto, os passageiros especiais eram acomodados em belíssimas poltronas dispostas por todo o alcance da asa. Alguns assentos compunham-se de íntimos ambientes como uma saleta de reuniões bem equipada. E em uma dessas baias estava se espreguiçando Naxamuñaca e seus dois companheiros de viagem.

–– Sei que não precisaríamos usar estes transportes, mas é muito mais emocionante, chegam até a ser elegantes. E assim, no meio de toda essa gente ‘pesada’ ficaremos incólumes. ––

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bocejando mais uma vez. –– Sempre gostei de voar, mas desse jeito é mais divertido, pode dizer que sou antiquado.

–– Por que não nos sentamos lá dentro? –– Não gostaria que alguém sentasse em mim, não é? O compartimento da asa de um superjumbo é, conforme o seu

projeto, grande demais, mas não daria para arranjar tanta gente sem que tivessem que fazer um certo contorcionismo entre cabos, fios, canos, placas, tanques, máquinas e mostradores. Decerto eles estavam lá, como se toda essa tralha tivesse sido afastada, ganhando um espaço que não condizia com o exterior. Einstein enlouqueceria de prazer.

O piloto começou a taxiar pela pista. O dia começou a clarear mais, se tornando mais quente. Os

passageiros já bebiam alguns drinques conjeturando sobre a decolagem; no entanto, os outros passageiros vislumbravam um dirigível que alçava voo, levando seus ocupantes para uma outra paragem não tão fácil de atingir. Acima dos compartimentos de passageiros do aeróstato lia-se um fulgurante: Hindenburg.

–– Tem gente que só confia naquilo que conhece... –– sibilou tio Xaxá abaixando o assento para repousar, admirando o céu através das gigantescas aberturas na asa. Um operador gesticulava sobre a asa, rodando seu indicador para que o fluxo de anjos a frente fosse interrompido durante o voo. O avião acabava de decolar com o estampido das rodas saindo do solo. E Guarini aproveitava para decifrar o manual, lançando-o sobre a mesinha que se quebrou com o peso.

Sean se encostara ao irmão para ver a decolagem pela diminuta abertura. O céu estava límpido, mas algumas nuvens apareciam como flocos translúcidos que cobriam por algum tempo o avião. Assim que uma brecha apareceu por entre as poucas nuvens distinguiu, em uma clareira próxima do aeroporto, uma movimentação insólita. Como não estavam longe suficientes do chão, deu para Sean ver nitidamente uma grande aglomeração como se fosse um exército e seus regimentos. Não era tão grande assim. Mas o que despertou o seu interesse foram os uniformes vermelhos com capas e metais presos. Pensou ver lanças e cavalos. Mais nada depois. Após cutucar Joshua e tornar para a

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janelinha, já haviam sumido. Uma sensação de dejà vu permanecera por mais tempo.

–– Juro que tinha algo, bem lá naquele buraco –– dizendo para si ––, devo estar enlouquecendo. –– devia ser a pressão do ar misturado com um pouco de sono, pensou.

No fundo da aeronave, uma garotinha berrava com os pais –– Olha! Tem gente na asa do avião, tem até... –– segurando um pouco –– um gato. Impacientes, colocaram-na nos assentos do corredor ameaçando umas boas palmadas se voltasse a mentir.

–– E o gato?! –– menina insistente.

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acredita em fantasmas?

Pousar os pés em Paris fora bem mais complexo do que

esperavam, sem transporte ou outra alternativa antepensada; aguardavam que alguém fosse buscá-los, mas Sarah recordou que não havia feito nenhum contato prévio. Apenas achava que seria simples.

E foi. Resolveu não se entregar ao desespero –– ou melhor, à burrice

–– e vasculhou por alguma cabine telefônica. Assim que puxou o gancho percebeu que não havia cambiado nenhum euros antes de partir de Londres. Agrupou os filhos e pediu tranquilidade –– agora eles estavam sinceramente assustados –– enquanto iria buscar ajuda que lhe valesse. Sean e Joshua não paravam de olhar em todas as direções; admirados por estarem em outro país. Aguardavam ansiosos para poder fugir do aeroporto e apreciar a cidade. Sean cultivava a mesma índole de quem não estava nem aí com o que estava acontecendo, parecia um chato de fato. Estava até um pouco mais alegre, mas nada que pudesse ser apreciado.

Uma vibrante carta geográfica da cidade de Paris dava-lhe a aparência de um grande limão que não estava nada risonho. Com um sorriso caído que se chamava rio Sena. Seus lábios eram rematados por bochechas bem verdes, o bois de Vincennes e bois de Boulogne. Onde os lábios se abriam em um suspiro singelo de quem estava pouco se importando com o mundo, ficava a ilha da Cité e sua congênere de Saint-Louis. Talvez por estas observações

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New York fosse uma big apple, se bem que nem se parecia com uma.

O turbilhão dentro do saguão era muito parecido com o do aeroporto de Londres, com exceção do número reduzido de guarda-chuvas e do sotaque melodioso que os franceses possuíam. Era incrível a sensação. Joshua estava sempre pasmado, fazendo com que seu irmão ficasse apertando com certa repetição sua mandíbula. –– Pare de babar, tá chamando atenção. Quer que te chamem de... –– experimentou em francês, não muito feliz com a experiência.

Embora Sarah não soubesse por onde começar, nem precisou deslocar alguns metros e esbarrou com a solução. O rapaz, bem mais jovem do que ela, sorriu pedindo escusas –– como se fosse ele o desligado.

–– Você está precisando de algo, senhora? –– Sim, preciso, sim... Sim. Estou desesperada e não conheço

ninguém nessa cidade. –– tremia enquanto recuperava o fôlego. –– Pois não está mais. Se me seguir, agora, posso levá-la até o

seu avião, qual é o número do portão de embarque? –– desconfiou ele que, não vendo nenhuma mala, elas já tivessem sido levadas.

–– Não, eu acabei de chegar, estou com os meus filhos. –– verificando que o sorriso do rosto do rapaz havia desaparecido. De cabelos curtos e claros, vestindo-se relaxadamente de modo a aparentar menos de dezoito anos, com calças que parecem um armário de tantos bolsos largos que tinham, esticou sua mão para se apresentar. –– Prazer. Bem-vinda a Paris, sou Marc.

Sarah percebeu a gafe e se apresentou. –– Me chamo Sarah, Sarah Fox.

–– De Londres? –– Sim?! –– virando a cabeça perplexa. –– Procurando emprego? Ou pelo menos se apresentando para

um? –– rindo da coincidência. Podia jurar que uma voz na sua cabeça insistia em dizer: coincidência não existe. Com os olhos apertados esperava que ela completasse.

–– S-sim?! –– mais admirada, decerto um bom vidente. Bernis simplesmente ergueu os braços e sinalizando para si

concluiu: –– Então eu devo ser o seu chefe! –– Aquele rapaz desconcertou o mundo de Sarah. Imaginava-o um velhote arquejante que não conseguia levantar sequer sua papelada

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embolorada de escritório ou que apenas precisasse de alguém que fizesse uma faxina, e só. Mas, diante de Bernis, só conseguiu grunhir ou balbuciar algo parecido com: –– Sr. Marc Bernis?

–– Mais ou menos isso –– percebendo que a pronúncia não era exatamente essa ––, mas me chame de Marc.

O resto foi muito mais simples, ele apertou alguns dígitos solicitando para que o motorista que o havia levado ao aeroporto voltasse. Escreveu um endereço em uma mensagem garranchosa pedindo para confiar as chaves do seu apartamento e, finalmente, alguns euros antecipados a contragosto de Sarah. Estava salva. Mas ainda teria que ver bem quem é esse Marc, realmente muito estranho o rapaz. Nem se lembrou de interrogar o que faria no museu, mas imaginou que coisa séria não podia ser –– bem, ele não devia ser experiente, não devia ter nem vinte anos!

Guarini cumprira a promessa e afastou Sean de Bernis

instigando um gorducho a fazer suas perguntas, não no balcão de informações do aeroporto CDG2, mas para quem estava mais perto, que nesse caso era Sean. O gordão, do tipo germânico bufão e falante, ficou contando sua viagem e o que aconteceu quando o seu avião despencou alguns metros durante uma turbulência horrorosa. Balançava de um lado para o outro impedindo que os meninos procurassem a mãe. O garoto tentava empurrar os cabelos rebeldes para achar a mãe antes que o alemão começasse a narrar estórias mais extensas e entediantes, quase pensou em puxar o rádio do bolso e virar as costas. Mas foi o tempo exato para Sarah voltar e contar as novidades sem que ele pudesse se deparar com Marc. Alguma coisa despertara a antiga dor de cabeça.

A senhora Marie rumaria para o apartamento com os três enquanto os dois índios, num desvairo absurdo, iriam direto para a nova casa dos Fox, que nem os Fox sabiam. Apesar disso, Guarini retrucou por achar mais importante cumprir suas obrigações de guia e acompanhar Joshua. Ao que tio Xaxá discordou energético.

–– Não tem nada que você possa fazer pelo menino que já não estejam fazendo... hum... Precisamos de você, rapaz, para outro servicinho. Prometo que conto tudo. –– não muito preocupado

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com o que Guarini fosse pensar de sua desorganização, não se comprometia com tabelas, mas com tanta atividade na área, hã?

–– Espero que sim, senão me demito. –– e ambos riram. Sarah teria outras preocupações. Alguns dias depois Sean já se preparava para a imprevista

cirurgia. Conhecera um pouco da doutora Mel Göettees e pelo menos essa não era tão gosmenta e pomposa como os médicos de Londres. Estava calmo, e bota calmo nisso. A exposição dos procedimentos e a confiança que a doutora Mel passava era tão positiva que se ele morresse não precisaria incriminá-la diante de Deus. No entanto tinha uma pontinha de inquietação que preferia esconder para si. Não disse nada sobre as sombras que lhe escoltava. Quando acabassem as esquisitices, ele contaria à médica o que acontecia, e se não parassem? Não, não pensaria nisto até depois da operação.

A doutora Mel era o tipo de pessoa que não se poderia definir em duas ou três palavras somente, tinha um modo de agir que não batia com seu modo de se apresentar. Se por um lado era bastante profissional e até falava difícil como os médicos –– e a letra, igualzinha, padronizada em garranchos indecifráveis ––, pelo outro era uma verdadeira desleixada. Por baixo do jaleco branco, que era a única peça coerente, exibia uma coleção de cores abusivas que assustariam um pavão. O cabelo era um mundo à parte, cada pedaço das curtas mechas que tinha, estava arrumado para que nenhuma das madeixas estivessem na mesma direção. Portanto, por trás das três camadas de tons dos cabelos claros, organizados desorganizadamente, sorria despreocupada alguém muito especial que só aguardava os pais de Sean se despedirem.

Sean despediu-se da mãe, do pai e do irmãozinho durante o período em que o remédio fazia efeito lentamente. Percebeu que era deslocado pelo corredor a cada vez que enxergava as luzes se movendo. As vozes foram se apagando. Queria gritar, desistir de tudo, voltar. De fato sentia meio abobalhado sob o efeito das drogas e nem teria se surpreendido se o cortassem em dois com uma faca cega de manteiga.

Um pouco antes de fechar os olhos ouviu alguém lhe dizer com muita convicção: –– ‘Alguém vai lhe fazer algumas

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perguntas assim que tudo terminar, não se assuste, estaremos ajudando os médicos’. Não deu maior importância, a vista estava turva e a mente adormecida.

A equipe já estava posicionada na sala cirúrgica, arrumando máscaras, luvas e instrumentos para a operação. A tensão contava seus minutos. Alguns assistentes contavam piadas para descontrair o ambiente. Além da engraçada sensação de aperto, havia uma alegria quase eufórica como se eles fossem invencíveis e, a intervenção um passeio no parque.

Para os familiares o relógio era preciso até demais. Se a operação fosse acabar às vinte e trinta, lá estavam Sarah e Patrick de rostos colados à porta que dava acesso ao corredor de transferência ao centro de cuidados intensivos do Hospital Val-de-Grâce. Bem, era verdade que ainda eram dezenove horas, mas quem não ficaria com os nervos em frangalhos tendo um filho em complicada cirurgia cerebral? E tudo consistia em abrir uma minúscula fenda pelo nariz alcançando a região afetada, fazer um pequeno diagnóstico, encaminhar parte do tumor para uma biópsia a jato e voilà.

Para parecer mais simples, impossível. Posto que a doutora Mel ficou entusiasmada demais com todo o processo. Para ela, e sua equipe de seis auxiliares, era sempre uma chance de aprimorar as técnicas, tirar a teias, mas desta vez foi diferente. Sentiam uma confiança como nunca antes. A mão estava mais firme do que se recordava e a cabeça raciocinava mais rápida do que conseguia pensar.

Um pouco antes de a cirurgia terminar, depois de horas de trabalho, a médica ordenou que Sean fosse despertado pela supressão dos medicamentos como que para testar as áreas afetadas com a ajuda de um aparelho de ressonância magnética e algumas perguntas bem simples. Perguntas que serviriam de avaliação –– Qual o seu nome? –– se respondesse melão, saberiam que algo estava errado. Sean, aos poucos foi despertando, não sentia dor. Algumas lâmpadas foram enfiadas em seus olhos que responderam instantaneamente lacrimejando.

–– Ele acordou, doutora. A resposta das pupilas parece normal. –– disse alguém com máscara verde que transpirava muito. Não teve tempo de avaliar o que acontecia quando outro

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médico verde de rosto coberto se aproximou com alguns trecos na mão.

–– Sean, você se lembra onde está? –– olhando fixamente para um monitor barulhento.

–– Hos... pi... tal?! –– falando pelo canto da boca num sussurro inaudível por entre os tubos de respiração. E o rosto branco ganhou um leve rubor quando a médica deu um salto de alegria batendo a testa no equipamento em volta. Seriam três pontos, ali mesmo, na sala cirúrgica.

–– Acho que ele disse hospital. –– A doutora Mel encostou ao lado de Sean, podia vislumbrar o sorriso atrás do pano que lhe cobria o rosto. Pôs as mãos sobre a testa confirmando: –– Sim, parece que está tudo certo, meu filho. Calma aí. Estamos terminando. –– e fez um OK esplêndido, seguido de alguns aplausos da equipe. Sempre com a mão à testa.

O que Sean viu a seguir talvez fosse a sua imaginação ou algum efeito dos medicamentos, pois atrás de cada médico e enfermeiro esverdeado havia mais duas ou três pessoas vestindo uniformes estranhos que pareciam fulgurar na penumbra, aliás, eles pareciam brilhar também. O que estava adjacente à médica erguia os braços sobre seus ombros enquanto outros analisavam aparelhagem indefinida. Monitores translúcidos flutuavam diante deles diagnosticando gráficos e órgãos que se agitavam em tempo real. Mas o tempo estava acabando, administraram novamente os anestésicos.

Pôde ouvir desencontrados pareceres. –– Mais fluido... Verifiquem se ocorreu o desligamento com

os cirurgiões... Desmobilizem a equipe de emergência. Contate o Dr. Basha no Núcleo de Desenvolvimento de Medicina e lhe informe que terminou conforme esperado. Ainda estamos enfrentando problemas com um pequeno grupo invasor, portanto nos envie proteção imediata. –– Só teve tempo de virar um pouco a cabeça e ver-se a si mesmo, de pé, como uma imagem refletida, não se importando tanto e, em seguida, um cilindro ofuscante, antes de dormir pela segunda vez.

Entre um momento e outro se passaria muitas horas, porém o

organismo não pressentiria este lapso de tempo. Assim como dormiu, acordou sem maiores recordações dolorosas. Muito

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silêncio e escuridão rodeavam Sean quando despertou no aposento de terapia intensiva. Estava só, ou pelo menos pensava que estava. Assim que os seus olhos se acostumaram com o breu, percebeu alguns aparelhos bipando e luzindo espalhados ao seu redor. O nariz doía horrores e os braços pareciam presos por fios e agulhas. Suportou tudo com calma, aguardando que alguma enfermeira de passagem pudesse vê-lo desperto e chamasse seus pais. Não queria ficar só. Será que as visões se acabaram, terminaram para sempre? Teria que esperar para descobrir –– mas não muito.

Estava tudo parado e quanto mais se concentrava em despertar, mais se sentia aprisionado. Ainda atônito ergueu os olhos para o corredor escurecido, sentindo o ar gelar. O coração batia ritmado ao barulho de uma respiração pesada que pensara ouvir. Já estava ficando nervoso.

Estava tudo calmo demais. De súbito, com um estrondo, as portas se abriram, deixando a névoa penetrar. Sean tentava alcançar algo para se proteger, mas os fios e os tubos o impediam de se mexer, mesmo assim esfregou os olhos avermelhados, absortos. Aguardava, sempre aguardando que fosse nada, só mais um sonho. Aguçou os ouvidos achando ouvir passos, passos não, um trotar como de um cavalo grande e pesado que relinchava longe como em uma respiração ofegante. Tremia sem poder gritar.

A bruma alcançara a porta de seu quarto. Não enxergava direito, sua vista estava embaçada pelos remédios. Desistiu de esperar, arrancou os fios e se esgueirou para evadir-se dali, quando, subitamente, a fumaça se dispersou num sopro prolongado dando lugar, no fim deste corredor, ao que cogitava ser um cavalo montado por um cavaleiro em armadura metalina. Do elmo podia ante-sentir um olhar tenebroso que, mesmo encoberto pela cerração que vazava das frestas do visor, fitava-o. A respiração era igualmente compassada. Ele não teve tempo de reagir, desmaiou por insuficiência do tratamento interrompido com a remoção do soro.

Enfermeiros abordaram-no a tempo e o recolocaram na cama imediatamente, eles não viram o cavalariano desaparecer. Uma parada respiratória se seguiu, reunindo mais gente do que caberia naquele espaço. Máquinas e luvas eram atraídas para o olho do furacão.

Parte da roupa era rasgada auxiliando nos procedimentos.

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Choques. –– Afastem. Agora! Bip. Bip. Bip. –– Voltou. O resto da madrugada transcorreu usual, os exames de

emergência nada constavam e o garoto repousava tranquilo. Assim a doutora Mel puxou um leito vazio e dormitou um pouco. Roncava sem medo, exausta.

Nos dias posteriores ao pesadelo, de corpo e alma, Sean se recuperou, passando a ficar em ala menos restrita e na companhia de seus pais. Naquele dia, depois de uma semana, quando já começava a esfriar, a doutora Mel comunicou que os exames especificavam uma rápida recuperação e que em breve regressaria para casa. Sarah não se segurou de contentamento e saiu correndo, com Joshua nos braços, para buscar um bolo em comemoração, com muitos doces e determinações médicas de como deveriam ser as tais guloseimas de um convalescente. Joshua balançava os pés em protesto ao sequestro, muito indignado com a atitude desvairada da mãe que nem percebeu que as calças do garoto haviam caído.

Porém Sean demonstrava certa indisposição imatura, de cara oclusa, braços cruzados e boca retorcida em desagrado peculiar de seu personagem. Tinha a mania de soprar o exagero de cabelo caído sobre os olhos com um dos cantos da boca, apesar de ser mais um reflexo de repulsa pré-adolescente. Do quarto, que possuía uma das paredes em translúcido vidro que permitia observar toda a ala e o corredor principal, seguiu-os se afastarem, trôpegos. Entretanto a doutora Mel não pôde escapulir tão depressa de seus afazeres. A sua cara se fechou num piscar de olhos quando três garotos atravessaram a porta dupla do setor. Curioso, Sean emprestou todos os seus ouvidos ao diálogo que se iniciava no meio daquela seção hospitalar.

–– Mãe? Será... Nós viemos falar com a senhora por que... sabe...? É que... lembra do que dissemos ontem? –– O lamurio nunca se completava, esperando que as palavras certas pudessem ser ditas com muito cuidado. Sean começava a rir baixinho. Sabia perfeitamente que eles estavam preparando o bote sobre a mãe e no momento ideal aos seus objetivos fariam sua súplica. Um

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pedido que não podia ter como réplica um não. Estavam jogando bem. Mas a doutora Mel, antevendo o resultado, virou o jogo.

–– Que bom que vieram, fazia séculos que eu esperava alguém para me ajudar! –– e foi empurrando-os para tarefas que poderiam ser consideradas como uma troca justa para um sim. Talvez.

A intragável enfermeira-chefe encarregada do setor também percebeu que algo ia acontecer, pois que se levantou cuidadosamente de sua cadeira, pegou a blusa de lã e vestiu-a, sem cerimônia, para que no momento exato em que se mexia para o lado, chegassem próximo. O mais velho, de cabelo curto e claro, –– como o dos três, aliás, variando somente no comprimento –– parecia ter de uns dezessete a dezenove anos e, emburrado foi arremessado à cadeira defronte ao computador, onde a pouco, a samaritana carrancuda saíra. Este devia entender dessas coisas. A moça que o acompanhava afastou-se rindo.

–– Mateus, querido. Você poderia arrumar aquele arquivo que já havia lhe pedido? Aquele com o cadastro dos pacientes desde mil novecentos e oitenta? Heim, amor? –– de olhar meigo e levemente amedrontador.

–– Mas, mãe, agora?! Não poderia ser noutro... –– cortou-o virando-se para o segundo, o do meio. Furiosa era pouco para descrevê-la. Contudo Mateus tinha também seus motivos, só estava ali por causa dos irmãos; graciosos pirralhos manipuladores. Enfim, que ele se conformasse, tinha sido muito estúpido achando que não sobraria nada para ele.

O outro tinha os cabelos compridos e um jeito de não me toque. Acertadamente era skatista. Não existiam roupas mais exclusivas do que estas. Iguais em qualquer parte do mundo, com variações que poderiam se aplicar aos patins, à bike e esportes radicais análogos. Mas ele tinha cara de skatista mesmo. Pudera, com o skate sob o braço. Este foi até um armário de onde sua mãe lhe socou um esfregão e um balde, deixando cair o capacete dentro do balde sujo. –– Lucas, mãos à obra! Nenê da mamãe. –– apertando suas bochechas de uns quinze anos.

–– Mas, mãe, agora?! Não poderia ser noutro... –– e novamente a pergunta e as ações se repetiram. Desta vez olhou para o terceiro e o mais miúdo e voltou-se para os lados procurando algo para ele fazer. Quando os seus olhos se

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encontraram com os de Sean uma expressão de júbilo percorreu seu rosto. Sean percebeu que ia sobrar para ele. O garoto não teve tempo de se firmar quando a doutora Mel agarrou-o pelo cotovelo e largou-o na cadeira ao lado de Sean, que girou umas duas vezes antes de parar de costas para o garoto. Sem se virar ele ainda assoprava de canto alguns fios de cabelo que caíram sobre a testa, bufando uma careta de desdém.

–– Sean, querido. –– no mesmo tom indisfarçável, mostrando as intenções malvadas –– Este é o meu filho Tiago. Tem a sua idade. Espero que ele fique aqui até sua mãe voltar. Aproveitem para conversar, pois é provável que venham a estudar no mesmo colégio.

–– Sim, Dra. Göettees. –– se agilizou Sean na resposta. –– Doutora Mel, tá bem? –– olhou carinhosa para o menino e

suavemente virou-se para Tiago. Durante este breve movimentar de cabeça a expressão da doutora Mel tornou-se de meiga para rígida. Saiam setas dos olhos, e o sorriso, não era um sorriso, mas fazia força para ser.

–– E você, Tiago! De olho no Sean. Se eu souber que você saiu daí antes –– passando o dedo firme e cirúrgico na jugular ––, nos veremos em casa. Amor de mãe tem limite, boneco!

Antes mesmo de retirar-se girou os calcanhares e brava dirigiu-se a Sean num brado retumbante: –– E você, vê se não conta bobagens para o meu filho, nada de pornografias e piadas... Não suporto gente de boca suja. –– Sorriu e se despediu largando os quatro em suas atividades ordenadas sob certa pressão. Agarrou-se à namorada do filho que continuava rindo disfarçadamente.

Por fim fora brutalmente interrompida pela segunda vez. Um moço esbaforido perguntava à doutora sobre alguma coisa que deveria ser entregue em uma universidade para uma tal palestra. Ela assinou certos documentos e gritou para o enfermeiro que se afastava disperso em seus pensamentos. –– Leve você mesmo o kit e informe o doutor Pipier que ele assume o setor no dia, certo? –– O rapaz confirmou e saiu na direção errada. A doutora e a moça igualmente.

–– Mães, será que todas são assim? –– Acho que são, a minha faz a mesma coisa. –– respondeu

Sean. Agora estavam a sós e podiam rir. Mateus e Lucas

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voltaram-se para o quarto por causa das altas e descontroladas gargalhadas.

–– Afinal o que era que vocês queriam? –– lembrou-se Sean, se esquecendo de manter sua estampa de malvado.

–– Ah! Deu para perceber? É, vejo que sim. –– desalentado com a falta de tato –– Nós só queríamos ir a um concerto de rock neste fim de semana. –– apontando para os irmãos –– Aqueles são Matt e Luc. E antes que você pergunte, sim, nós somos adotados.

Ele nem tinha percebido alguma diferença, mas talvez fosse o temperamento. E Tiago complementou, confirmando as suas suspeitas: –– É que às vezes as pessoas perguntam brincando com o fato de sermos tão diferentes da mamãe que acabam se assustando quando dissemos que sim. Você nunca nos verá usando aquela camisa listrada com todas as cores do arcoíris, te garanto!

Assim Tiago contou como foram parar ali, explicando que os três eram de fato irmãos, isso era evidente. Há uns dez anos, a doutora Mel fora comunicada de uma criança com um desvio comportamental ocasionado por um traumatismo craniano; sensibilizada voou até o Brasil e a trouxe para uma cirurgia experimental, muito parecida com aquela realizada em Sean. Para conseguir a transferência adotou a criança e seus irmãos. A criança a ser operada era o Mateus. O que ela não previra era o que viria depois; teria que arcar com os cuidados dos três. Com o bônus extra de não ter que trocar fraldas, ficar noites sem dormir ou levando-os ao pediatra. Mas teria que ensinar uma nova língua, sofrer com as peraltices da idade e tentar lidar com adolescentes em ponto de bala.

Bom, mãe é mãe. Contudo Sean não pôde deixar de sentir certa simpatia com a

história deles. Pelo curto diálogo entravado, ambos demonstravam receios ao que os outros pensavam. Entretanto Tiago não parecia ter medo de enfrentá-los. Ele não tinha esquisitices para aporrinhá-lo.

Eles tiraram aquela tarde para se conhecerem e descobriram que tinham muitas coisas em comum, botaram o assunto escola em dia, fazendo-o imaginar o colégio, os futuros companheiros e, se tudo fosse tão maravilhoso como parecia, nem precisaria se preocupar com aqueles grupinhos que gostavam de pegar no pé de

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quem é sumariamente diferente. Pronto, acabou se lembrando das sombras.

A festança foi espetacular e até o seu pai compareceu,

disfarçando seu remorso. Se Sean tivesse visto qualquer pista de que seu pai queria se aproximar, teria aceitado de pronto e perdoado. Mas Joshua matava as oportunidades pulando sobre o pai, agarrando a mãe e, às vezes, puxando o cabelo de Lucas ou pisando nos pés do Mateus. Gente divertida, estes Göettees. Era o cômodo mais movimentado da casa de saúde, e muitas enfermeiras, e enfermeiros também, compareceram à surdina. No fundo, aproveitaram a reunião para fofocarem sobre os pesadelos e as crises que haviam acontecido com Sean após a operação. Muitos desconfiavam que a cirurgia não havia resolvido muito, mas pelo menos o tumor não existia mais.

Mal sabiam eles que a finalidade real de tudo era precisamente que as crises de Sean piorassem; na verdade, as sombras pensavam que era exatamente o oposto, as tais crises eram a melhora.

Todos os dias, logo após o dia da festa, Tiago, estranhamente

interessado no novo amigo, comparecia assiduamente ao leito de Sean. Ficavam conversando sobre tudo que podiam e enquanto podiam. Sean parecia outra pessoa, mais extrovertida e feliz. Procurava não lembrar dos acontecimentos, mas estava preocupado quando iriam se repetir. E em uma tarde dessas, a doutora Mel chegou, sisuda, e nem viu que Tiago estava presente.

–– Que história é esta de que você ouvia e via coisas? Parece que ninguém mais confia nos médicos. Bem que podia me contar, não é? –– nisso Tiago mirou Sean perplexo, porém tentou disfarçar, mas não o conseguiu a tempo. Com um baque, o coração de Sean acelerou e seu estômago parecia uma máquina batedora de concreto. Ficou tão nervoso que gotas de suor brotaram em sua testa e a cara ficou mais branca que a própria parede do quarto.

A doutora Mel logo consertou o erro. –– Calma, menino. Não disse que era sério ou preocupante ou qualquer outra coisa. O importante é que agora não vê e não ouve mais as tais ilusões, certo? –– Desta vez Sean fez de tudo para ficar mais calmo, mas a

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essa nova suposição não pode deixar de sentir o sangue subir à cabeça, achou que ia desmaiar.

Guarini estava de prontidão, aborrecido com a tarefa de pajem, aguardando, do lado de fora, o momento em que teria que agir. E seria agora.

Foi à sala contígua e fez com que o paciente, que dormia, se assustasse e desligasse alguns fios de monitoramento. Deu certo. Por pouco Sean não contou a verdade; se não fosse a correria e os gritos de urgência para um paciente que necessitava de socorros imediatos, a doutora Mel teria percebido que ele escondia algo muito mais intricado do que acontecera, muito antes de chegar à Paris. Mas Tiago percebeu.

As vozes em sua cabeça murmuravam incansáveis para que ele fugisse, tinha sido pego em seu maior receio. –– Você é estranho, fuja. Eles não te entendem, fuja. Corra! –– e os murmúrios circulavam em torno de si como se dezenas de pessoas o acuassem e instigassem. Apertou as orelhas e fechou, bem forte, os olhos. Neste instante, um garoto magricela de olhos esbugalhados passava pelo dormitório e se esgueirou, como uma lagartixa, para ver o que acontecia. Tiago tentava pensar numa solução e já se erguia para chamar a enfermeira quando viu o garoto intrometido diante da porta escancarada.

–– Sai daí, não é da sua conta, Sapão. –– porque este era o seu apelido de escola. –– Não tem o que fazer?

Charles Pipier, também filho de um médico do hospital, ríspido e displicente como a doutora Mel costumava resumir, deu um bom exemplo de seu caráter ao filho, que fazia por merecer como integrante de um grupo de alunos baderneiros do colégio. Era isto que Tiago tentava evitar, que mais alguém fosse importunado pelos imbecis. –– Acredito que, pelo menos, você vai respeitar o fato de que ele acabou de sair de uma cirurgia... Estou lhe avisando para não sair caro, Sapão.

Ele era do tipo medroso e não contestou, estando sem os companheiros de arruaça, depois seu pai era extremamente vigoroso quando se tratava de castigos. Tiago replicou mais uma vez: –– Quer que eu conte ao seu pai? Já sabe, se alguma coisa acontecer... –– O garoto, com um sorriso mal-intencionado, completou a frase.

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–– Vamos dar algumas semanas, depois ele é nosso. –– E saiu disparado pelo corredor, esbarrando no nada e dando com a cara no piso de vinil. Tiago não teve tempo de rir, pois Sean voltava a falar gemendo, assustado com algo. Mas Guarini riu sim. E uma pequenina chama que esgueirava recuou até o embornal.

–– Alguém me tire daqui! –– sussurrou cansado. Tentava imaginar porque aquilo o incomodava e não encontrou resposta. Então por que continuava a se sentir mal? Em instantes as vozes desistiam e Sean viu Tiago, entorpecido à porta, saindo em busca de auxílio. –– Espera Tiago, já estou melhor. Foi uma dor de cabeça. Se pelo menos pudesse sair um pouco... –– Tiago retornou e acenou.

–– Sei de um modo, mas é arriscado... Precisaríamos passar pela gárgula. –– se referindo à enfermeira carrancuda e brava sentada ao computador e que nunca descumpria ordens.

Sacou uma caneta do bolso e sorrateiro pegou a prancheta à base da cama. –– Hum, vejamos... solicitação para saída das... –– consultou o relógio com a língua escapando pelo canto –– das quinze horas às quinze e trinta, está bom? Não é bom dar tempo demais, ela vai desconfiar.

Aconchegou a prancheta médica sobre a cama e fez, com cuidado redobrado, uma assinatura que de relance ele desconfiava que era a da mãe. Fez umas voltinhas, pontinhos e estava pronto.

–– Você falsificou uma solicitação? É a assinatura da sua mãe, não é?

–– Eu não chamaria de uma falsificação. Se eu fosse realmente fazê-lo seria “o documento”. –– frisou como se pudesse. –– Já que sei mesmo e não vai fazer mal algum... Vamos lá.

–– Mas como? Você não está querendo me enrascar, está? –– Confie em mim. É algo nato, parece que sempre fiz isso,

sei lá. –– Seguiram, de cadeira de rodas, muito naturalmente quando a gárgula estancou os olhos pequeninos e frios nos dois. Por cima de seus óculos angulosos, na ponta do nariz, os olhos brilhavam de contentamento... Iria pegar mais uns safadinhos fujões.

–– Esperem aí... Aonde as crianças pensam que vão? –– jorrou a enfermeira sob seu penteado irreprochável. Tiago respondeu meio perdido, fingindo. –– Vamos ao pátio interno...

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tomar sol?! –– com esse tom de dúvida, estragou tudo –– Temos até autorização. –– Rapidamente a senhora de branco lançou o olhar sobre o documento estendido. Quando ia começar a pegar o telefone, Tiago que já pressentia a enrascada em que se metera, algo aconteceu. Ela pegou a caneta borrada e assinalou um visto e fez mais, sorriu simpática para ambos.

–– Nunca tinha visto aquela bruxa velha sorrir... Acho que você prometeu um beijo. –– disse baixinho para Sean.

–– Não mesmo. –– disse encabulado, de rosto vermelho. A ansiedade estava diminuindo e chegavam ao largo. Iria

pensar no que aconteceu com mais calma, entretanto Tiago fincou firmemente, esperando uma resposta. Sean balançou os ombros não entendendo a atitude do amigo.

–– E então, vai me contar o que está acontecendo? Ou vou ter que usar uma das minhas técnicas de persuasão? –– relembrando de quando ele e Mateus amarravam um Lucas pelado no hall do prédio que moravam. Ele pediu por isso.

–– Você... você... acredita –– escolhendo o que dizer, por fim decidiu-se pelo simples e direto ––, acredita em fantasmas?

Não saberia dizer se Tiago estava prestes a gargalhar ou bater a mão nas costas em apoio à loucura, o que teria sido igualmente devastador. Mas parece que o garoto tinha uma terceira opção.

–– Você não é daqueles esquizofrênicos que a mamãe cuida de vez em quando, é? Ela vive falando desses loucos que são internados no hospital, mas eu sempre achei que fosse só para me assustar –– disfarçando algo. –– Um dia eu te largo lá, ela vive repetindo.

Sean não sabia como responder. Continuou escutando o tagarela. –– Lembro uma vez, de uma mulher que achava que era uma toupeira e se escondia debaixo do hospital onde nem cabia uma de verdade. Nunca entendi direito! Mas também tinha...

–– Cale a boca! –– gritou Sean. –– Não está vendo que eu não queria isso? Aconteceu!

–– Então é verdade? Pô, cara, ninguém merece. Você vê fantasmas... E eles são branquinhos e transparentes... Carregam correntes... Acho que neste lugar devem ter muitos. –– se Tiago estava eufórico, Sean parecia muito mais aborrecido. Estava se sentindo um palhaço. O que Sean não percebeu foi que Tiago estava tão nervoso quanto e, para não dar na cara começava a falar

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sem parar. Todavia estava escondendo algo, pois os seus olhos diziam outra coisa, estava apavorado com algo que Sean havia dito.

O dia estava mais claro do que ele recordava e o vento suave espalhava o frio em ondas que separavam os doentes protegidos dos agasalhados. Dali a pouco, se lançava a doutora Mel, ao pátio, com expressão de raiva reprimida, tirando-os da friagem. –– É hoje, Tiago. –– E só, não precisava explicar. A orelha puxada iria ficar marcada por dias antes que a mãe resolvesse aplicar um curativo. Também, sendo médica, não podia deixar pacientes sem cuidados. Cuidados que não a impediam de causar outras punições.

Punições como castigos e muito trabalho forçado.

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a premonição.

Setembro e os primeiros dias de aula foram

revigorantes, já não suportava ficar trancado ou deitado inativo, mas, apesar das restrições para não fazer isso ou aquilo, Sean se sentia maravilhosamente bem. Muitas das preocupações de Sarah quanto aos cuidados que não podia oferecer ao filho naquele instante, por causa do novo emprego, estavam sendo redistribuídos pelos filhos da amiga. Devidamente matriculado no mesmo colégio de Tiago e Lucas, o que ajudava em muito e, que fora previamente escolhido para que sempre tivesse alguém para vigiá-lo bem de perto. Pelo menos até estar inteiramente restabelecido.

Já ao Lucas, estava designado a acompanhar Sean e Joshua até as suas casas, com certeza imposto por alguma chantagem maternal. Tiago acompanhava-os. Era impossível que algo de errado acontecesse. Lucas terminantemente não gostava da ideia de se ver sem a possibilidade de usar seu skate um pouco mais, por isso demonstrava estar contrafeito com sua cara emburrada virada. Detestava os pirralhos, inclusive de ter que cuidar de Tiago. Coisas entre irmãos. E Tiago bem o conhecia, se havia algo que herdara por osmose da mãe, era a incapacidade de mudar de idéia. As coisas tinham que ser do seu jeito.

–– Isso é coisa de adolescente, cara. Não liga, não. Tem dias que ele nem toma banho, argh! Você acredita que vamos ficar assim? –– falava Tiago tentando explicar como era o seu irmão.

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Porém Sean não escutou nada do que lhe diziam. Não estava preocupado com o zelo excessivo, mas com o que poderia acontecer caso percebessem que as visões e os sussurros não haviam desaparecido, e pior, pareciam ter aumentado em quantidade e qualidade. Esquivava das coisas estranhas como quem desconfiasse da própria sombra, mas logo precisaria descobrir o que estava acontecendo... Ainda pensava no cavaleiro. Mas havia tempo.

No intervalo entre as aulas, Tiago e seus amigos se reuniam com Sean, que se entrosara rapidamente ao bando. Estes novos colegas o tratavam do modo mais comum e prosaico do que podia se lembrar, mas uns mal-encarados, os arruaceiros do colégio, o rodeavam com olhares mal-intencionados. Nem Tiago, nem ninguém, falava a respeito dos garotos que viviam batendo ou importunando por todos os cantos. Por onde eles passavam formava uma clareira de medo. Entrementes Sean havia notado que ele não tinha sido abordado pela corja até então.

O que ele não sabia era que Tiago tentava adiar este encontro e disse aos amigos que não tocassem no assunto. Ele bem sabia que os trogloditas iriam atacar logo. Como prevenção, pedira aos colegas, Andreu, Jean-Marc e Henri, que ficassem com um olho em Sean e o outro no bando.

–– Não deixem encostar um dedo sequer... O cara já tem problemas demais. –– demonstrando que ele tinha parafusos a menos. Entretanto não contou nada dos fantasmas, não acreditava muito no que tinha lhe contado ou se estava se enganando... Fantasmas, será? O grupo era o único suficientemente forte para impedir os arruaceiros, em parte por serem os mais corajosos e seus pais terem voz ativa no conselho do colégio e poder para amedrontar bastante; no geral, eles ficavam, cada um do seu lado, sem choques.

Perder a oportunidade de incomodar um aluno fresquinho, novo em folha... Maurice, o próprio pesadelo dos colegiais, não a perderia. Ele e seus quatros cavaleiros do apocalipse, inclusive o Sapão que lambia os pés de Maurice.

–– Então, o que vocês estão tramando? –– desconfiou Sean do silêncio –– O que vocês querem me dizer!

Tiago respondeu por todos. –– É que estávamos precisando contar algo, muito importante... Cuidado com Maurice.

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–– O diabo briguento? Não fiz nada para aborrecê-lo! –– pensando que desta vez estivesse livre deste tipo de gente –– Entendi. Ele só estava dando um tempo por causa do meu estado, e quem foi que pediu esta trégua?

Os quatros se olharam, mas foi Tiago quem respondeu novamente. –– Fiz um acordo com o Sapão, ele te viu no hospital no dia daquela crise. –– sussurrando crise –– Ele deve estar tramando algo, não para de nos encarar, vê? –– apontando com os olhos, Maurice e bando. Muito cuidado, disse Sean para si mesmo, parece que, até aqui, ele era o esquisito de sempre. Não conseguia fugir do passado.

Completava seis semanas, nesta sexta-feira, que estava perambulando por aí, sem que tivesse visto ou ouvido fantasmas ao seu redor. A sua preocupação insistente era quando Maurice apertava o cerco saboreando cada reação de Sean, que procurava se esconder como fazia em Londres. Tentava se apagar, se disfarçar e assim ninguém o notaria. Para a sua tristeza, Maurice gostava de brincar, e não eram nem tão diferentes assim.

Contudo sutis mudanças aconteceram no modo de agir de Sean, estava mais relaxado, cabelo revolto, roupas desarrumadas e muito mais displicente e desligado do que costumava aparentar.

O dia seguinte amanhecera chuvoso o suficiente para molhar,

não saberia dizer se era preciso um guarda-chuva, mas depois de algum tempo já estaria acostumado com o chuvisco que flutuava no ar. A cada lufada de ar, as gotículas dançavam em torno de Sean que, desligado, ficara parado observando indiferente as tramoias dos demais.

–– Cara, você está bem? –– perguntou Jean-Marc. Logo se via que era alguém que adorava a tensão da perseguição, visto suas atitudes sempre um tanto que agressivas. Vivia a ponto de acertar alguém em cheio, mas se continha. Nem queiram saber o que é seu aperto de mãos. Um quebra-nozes faz menos estrago.

–– Tudo –– quase conseguindo disfarçar. –– Pode deixar, daqui eu vou só! –– achava que não tinha perigo atravessar o corredor para o ginásio de esportes sozinho. Tiago tagarelava ao longe com uns garotos atrasados, deixando-se afastar sem que se desse conta. De novo algo estranho se repetia, o ar ficou carregado e denso e aquela insistente dor de cabeça voltava

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desfocando tudo em volta. Paredes e armários convulsionavam e se retorciam. Destas manchas flutuantes alguém surgiu.

Lá estava ele, Mau, esperando em júbilo entre dedos estalados. Sean seguiu fingindo tranquilidade, procurando não olhar naquele canto. Nem piscava. Mas apertou o passo. Maurice se adiantou e correu para junto dele, pisando firme.

–– Até que enfim... –– Não tenho nada para falar com você, estou atrasado. ––

nem Sean acreditava que havia respondido ao garoto mais odiado da escola. O coração batia descompassado e as suas palavras soaram quase gaguejadas. Não tinha medo de uma briga, porém não gostava de ser...

–– Oh! O esquisito fala! –– acertara em cheio no ego de Sean, a raiva não vinha só dele, sentia que algo o impulsionava. Melhor seria contar até dez e voltar para o ginásio.

–– Esquisito!!! –– cantou Maurice –– Aonde pensa que vai, não acabamos a conversa. Que história é essa de que você anda vendo assombrações! –– agarrando Sean pelo braço e jogando-o contra o portão aramado. O garoto segurava o queixo de Sean como um troféu e ria repetindo: –– Muito esquisito. Estranho. Não acha?

Maurice era um pouco maior, mas também sem limites, o que Sean não se importava. O que realmente incomodava era ver todo o colégio mexericando sobre suas esquisitices, se afastando em risadinhas e apontamentos. Francamente, nem aqui poderia estar tranquilo? Não; Mau errou na dose, forçando Sean a contra-atacar. Sua tentativa de meter um soco no estômago do garoto só serviu para enfurecer o imbecil do briguento. Tiago retornava pelo mesmo caminho quando percebeu que uma briga explodia diante de si e se escondeu numa brecha escura. Apesar de tudo, também tinha os seus medos e enfrentar o garoto era um da sua lista. Estava pensando se entrava ou não nesta briga.

Maurice segurou o rosto de Sean com a mão aberta empurrando-o com toda a força contra o gradil. Errou outra vez, porque Sean não só bateu a cabeça no alambrado como também na dura coluna de ferro que unia as grades, caindo desmaiado. No ginásio, alguns garotos já caminhavam para o vestiário quando lembraram que haviam, alguns, esquecido as roupas na mochila. Iam diretamente pelo tal percurso, sugestionados por Guarini que

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insistia em apressá-los pelo caminho mais curto. Mas Tiago não podia se dar ao luxo de esperar e se arremessou, entre gritos, contra o inimigo munido com um cabo de vassoura como se fosse uma espada. E não teve tempo de usá-la. No ímpeto de causar o maior estrago possível antes que Mau percebesse a investida, atropelou-o até pararem junto de um armário metálico.

Os passos se faziam mais próximos. Maurice se desvencilhava do garoto que o atacara e partia para um último golpe contra Sean. E ele agravaria a situação se não fosse por alguns alunos que surgiram diante dele, de olhares arregalados de choque. Por instinto xingou e fugiu.

–– Olhem aquele garoto caído, tem sangue... Chamem alguém! Rápido. –– gritou uma menina da mesma idade para os outros colegas.

Sean desmaiara. Sean agora via um homem, caído ao chão. As luzes

lampejavam e uma densa nuvem de poeira impedia-o de respirar, sufocando-o. Escutava gritos e choros, mas em vez de fugir era atraído para o homem deitado. Olhou para os lados e viu dois vultos falando com ele. Pediam que o salvasse, só ele poderia fazê-lo. Depois, o homem ferido, falava pedindo socorro. Não entendia o que se passava. A imagem tremeluzia estranhamente e os sons pareciam misturados.

Então surgiu Tiago que gesticulava para onde havia uma porta prateada entreaberta, –– Eu acredito em você! –– escutava-o repetir. Mas quando ia entrar pela porta viu um homem coberto com uma longa capa bordô envolta sobre o tórax.

Sentiu muito medo. Não sabia se ficava ou entrava. Tiago gritava para pegar a caixa enquanto o homem da capa

encarava amedrontador. Decidiu-se por entrar, contudo a porta parecia recuar como se estivesse caindo. Tentou com mais força e caiu. Ao seu lado estava o homem ferido, de uns vinte e poucos anos, cabelo castanho e rosto arranhado. Observou-o com tanta atenção que seria capaz de reconhecê-lo. Um pouco mais longe estava um papel amarrotado onde apareciam algumas letras confusas e...

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–– Acorda Sean! –– ouviu uma voz familiar em angústia,

agarrando-o pelos ombros. Neste instante, antes mesmo de abrir os olhos, surgiram flashes desconexos de alguém que escrevia em um pedaço de papel, deitado numa maca tosca. E outra pessoa que tinha a mão violentamente trespassada por uma lança lascada. Assustado pôs-se sentado com olhar vidrado e o suor copioso a escorrer de sua fronte. A respiração parara obrigando-o a engolir em seco.

–– Caramba, ele acordou! –– era Tiago e mais uma dúzia de alunos e professores que o haviam posto na enfermaria do colégio. Não gostou do que vira desmaiado, quem era a vítima e por que sentia certa inquietação, sendo que nem sabia quem era?

Ao longe, ele escutava os cochichos sobre a punição, pois tinham pegado o Maurice na fuga. Tiago estava com um olho roxo e um fino corte no lábio inferior. A enfermeira da escola aplicava algumas bandagens ao mesmo tempo em que falava num celular com a doutora Mel, obviamente. Foi então que pediu calma a todos, estava bem. Mas ninguém deu ouvidos aos gemidos de Sean que vomitou na blusa de Tiago. Afinal, antes de o dia terminar, descobririam que Maurice ficaria alguns dias de detenção, cumprindo serviços comunitários à escola. Para piorar, ele sabia que o ódio por ter sido pego aumentaria e, acabaria descontando no culpado por tudo.

E ainda tinha mais, seria uma vingança bem planejada, encurralando-o só em algum lugar fora do colégio.

Mais calmos, Tiago e Sean aguardavam Lucas terminar suas

acrobacias para seguirem até suas casas. O rapaz era incrível, saltava uns lances da escada para descer o resto sobre o corrimão de ferro. Bastante ágil e eficiente, tinha um charme inigualável e por isso era sempre visto cercado de garotos e garotas. Ainda efetuava umas manobras quando caía pela enésima vez. Uns garotos riam recebendo imediata chuva de pedras que Lucas arremessava. Tiago escutava o ocorrido observando o irmão tentar a manobra mais uma vez quando Sean olhou assustado para o amigo.

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–– Aconteceu algo muito estranho. Enquanto estava desacordado, tive um sonho e... você estava nele. –– Tiago ouvia, agora mais atento. –– Tava mais para pesadelo. Tinha um acidente grave, havia muita fumaça e gritos e eu tinha que ajudar alguém, mas estava com medo.

–– Medo do quê? –– cutucava Tiago. Sean continuou a narrativa do pesadelo, explicando tudo, pelo

menos o primeiro sonho, os detalhes e principalmente o momento em que ouvia Tiago repetir: –– Eu acredito em você.

Tiago não deu crédito, mas ficou preocupado com o devaneio, também vinha sentindo certa angústia nos últimos dias. Pensou que fosse por causa do Maurice, mas depois de tudo ainda estava ansioso e angustiado. Também tinha sonhos estranhos e quando ouviu Sean falar do tal homem, da fumaça e das luzes piscando... parou de sorrir. Engoliu as palavras e partiram.

–– Esta confusão de hoje foi diferente, até parece que tirei um peso das costas. Amanhã será outro dia, descanse a cabeça... senão a minha mãe nos interna, vontade não lhe falta. –– Tiago concluiu o assunto.

Caminhavam desligados da azáfama que os rodeavam, quando a multidão aglomerou-se por aquelas ruas apinhadas impedindo-os de andar em linha reta. A rua Mouffetard era o que se poderia descrever como a maior pequena rua do mundo, a cada passo, barracas com artigos do mundo inteiro invadiam as calçadas. O ar mouresco era o reflexo do ambiente e a variedade de pessoas que circulavam rumo à praça de Contrescarpe em ondas divergentes. Sean andava com dificuldade enquanto Joshua seguia, como sempre, à frente, como quem anda num descampado, sem preocupações, de olhos fechados se possível.

Tiago continuava quieto, portanto Sean olhava por entre as pessoas tentando entender o que tinha acontecido. Ainda lhe doía o soco no rosto.

Vendedores urravam, pessoas compravam e alguns carros insistiam em transitar. Um leve olor de chá de menta se fez sentir num quiosque árabe. Por fim algo atraiu seu olhar, alguma coisa resplandecente se movia logo adiante. Quando pôde vislumbrar o que era, assustou-se imobilizado. Em outros tempos as pessoas correriam para as suas casas assustadas, mas elas não o viam. Era o cavaleiro, montado no mesmo animal branco. Sua armadura

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ornamentada refletia a luz dos postes de iluminação que se acendiam com o negrume da tempestade que se aglutinava. Era um verdadeiro mar de cabeças e acima delas, o cavaleiro guinava seu cavalo inquieto com a lança descansada.

Sean sentou-se no chão. –– Vamos embora daqui. –– sussurrou para Tiago e Lucas que

obedeceram assim que perceberam a expressão de espanto embranquecer o garoto. O que era verdade, o medo congela. Ele ainda não estava tão bem quanto pensava para enfrentar mais esta assombração. Como queria voltar aos velhos tempos em que somente sons e luzes o incomodavam; Londres era bom demais. As rixas, ele já se acostumara.

Por que isso tinha que piorar? Um indiozinho o observava em silêncio. Passos colados,

vigilantes e atenciosos. Não ia deixar o moleque sozinho.

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os paramédicos

Por fim chegava o dia tão esperado , o chuvisco se

transformara em momentos de sol e chuva intercalados, que aumentavam o desconforto e o frio da estação que se iniciava.

Se na última sexta-feira fora uma confusão sem fim, o fim de semana não passava de uma ansiedade indisfarçável por causa da forte impressão que o pesadelo causava. Nem a lembrança de um Maurice implacável na sua vingança, servia para tirar os pensamentos de Sean do cara acidentado.

Quem seria? Será que já o vira antes? Nada poderia ser pior do que a sensação de preocupação que o perseguia. Não tinha motivo para acreditar num sonho qualquer, sobretudo depois da cirurgia quando os sonhos já não eram tão impalpáveis assim.

Foi o final de semana mais longo da vida de Sean, quieto em seu quarto. Buscando acalmar seus pensamentos que voavam da cena trágica impregnada em sua retina e da ideia galopante de que um ataque surpresa inventado por um garoto sem limites pudesse se concretizar.

Mergulhou a boca no sorvete de chocolate, irritado por se ocupar de algo que nem aconteceu e, talvez, jamais acontecesse.

–– Será que sorvete com chicletes funciona? –– divagou, Sean, em voz alta, já experimentando.

E já era mais um dia de aula. Tiago e Lucas chegaram cedo, como de costume, por

imposição da mãe, apressando os preparativos nada simples de

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Joshua. Estava ele particularmente mais hiperativo, o que dava um certo trabalho controlar os arroubos de fuga e captura. Se não fosse pelo senhor Fox, que conhecia muito bem as estratégias do filho, os garotos chegariam atrasados à escola... talvez Lucas até gostasse de perder as primeiras aulas.

–– Não sei como você escapou de levar uns pontos, o diabo nunca deixa ninguém inteiro. –– falava Lucas puxando Sean num abraço desconfiado e violento.

–– Sorte, talvez. –– argumentava Sean. –– Eu é que não vou esperar para descobrir.

–– É, talvez. Quem sabe da próxima vez o Tiago não esteja por perto e...

No colégio, Sean recebeu uma recepção mais excepcional da que se acostumara por parte de funcionários, professores e principalmente dos colegas que não suportavam Maurice e agradeciam a Sean pela detenção. O que também não passava de um cumprimento seguido de um muxoxo de pena assim que ele virava as costas, prevendo que ele logo voltaria às suas atividades normais, cobrando juros e correções monetárias.

–– Ele foi incrível, mas nem quero ver... –– dizia um aluno mais velho, que nunca encarava o bando.

–– Alguém tem que esfregar na cara dele a verdade de vez em quando –– contava outro ––, desde que não seja eu!

Alguns não contavam vantagens, tornando-se neutros, ou quase. Caso ouvissem-nos falando escondidos, teriam sérios problemas. Outros se mostravam irredutíveis quanto quem é o melhor, se bem que havia medo por trás destas manifestações.

–– Esse gringo já era. –– Deu uma de intrometido. Já haviam me falado que ele era

estranho e a história dos fantasmas... dá pra acreditar? –– murmurou.

Todo o dia parecia dedicado ao assunto e por algum tempo Sean se sentiu uma celebridade sob tantos olhares indiscretos, principalmente das garotas. Era completamente diferente dos olhares que estava habituado, de pena e medo, mas afinal era o mesmo assédio. Nem havia enfrentado Maurice... mas teria, cedo ou tarde, que ficar de cara com o diabo. Ainda que quanto mais tarde fosse, melhor.

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Quase tinha se esquecido dos problemas. Caminhava tranquilamente através do pátio da escola, abeirando-se do local marcado. Um pouco antes, Tiago saia correndo em sua direção, ofegante, e aproveitava para perguntar sobre o pesadelo da semana anterior.

–– Também estou preocupado com o sonho. O que você acha? –– ajeitando a mochila que vinha arrastando discriminadamente pelo chão empoeirado.

Sean, surpreendido, responde o que pensa. –– Você tinha que me lembrar?! Tava quase esquecendo. –– de olhos fulminantes –– Bem, lá vai. Depois do que vi e ouvi, não acho que seja à toa, mas você não está atormentado pelo que possa me acontecer, heim?

–– Não! –– chocando Sean pela segunda vez –– Estou preocupado com uns sonhos meus, muito parecidos. Não sei bem no que acreditar. Mas sinto como se... como se.

–– Como se fosse acontecer de fato? –– completou de repente, interrompendo Tiago que se atrapalhara nas palavras.

–– É isso que está me azucrinando. Você acha que estou enlouquecendo? –– se esquecendo de que Sean era a pessoa menos apta para se perguntar algo sobre loucura.

–– Bem, você sabe... acho que você está perguntando para a pessoa errada. –– eu sou o louco varrido, pensou –– Eu não sei, realmente não sei. E Tiago nem se lembrou de contar o que aconteceu quando tocou Sean naquele dia, enquanto tentava despertá-lo do desmaio. Arrepiava-se só de lembrar.

Em instantes Lucas se reunia aos dois, rumo ao educandário e depois à estação de metrô mais próxima. Apertaram-se para passar lépidos pelas catracas apinhadas de gente que se separavam em passagens para os diversos distritos de Paris. No subsolo, uma rede de túneis interligava plataformas que levavam toda essa gente para qualquer direção desejada. Alguns músicos esperavam encher seus bolsos enquanto uma cantilena pedinte de mendigos decorativos o exigia, sem cerimônia. A turba passava impassível e ligeira por eles.

Embarcaram silenciosos. Todos estavam quietos, com exceção de Joshua que não parava de andar de um lado para o outro do vagão. Nada que não se esperasse de uma criança de seis anos quando sua curiosidade era muitas vezes superior ao de qualquer adulto; ainda mais cansados como estavam. Lucas que já

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estava bastante aborrecido não se controlou e descontou sua inaptidão no pequeno garoto.

–– Senta e fica quieto, seu fedelho! –– puxando Joshua pela gola do casaco, quase o sufocando. Sean não gostou da atitude e empurrou Lucas para longe, ante a imprevisível reação do irmão do amigo. As pessoas viraram seus rostos, indignadas. Um espaço se abriu entre eles e os garotos.

–– Vê se enxerga. Olha o seu tamanho. Depois ele é o único que não está triste e emburrado por aqui! –– bastou isso para que o sangue subisse à cabeça com tamanha cólera que, se não fosse Tiago se interpor, eles estariam rolando pelo piso. Entretanto não foi o suficiente para que impedisse o revide contra Sean. Tiago caiu sentado no banco vazio, batendo as costas com violência. De novo, em menos de uma semana, Sean se envolvia numa briga, e para quem fugia destes problemas! E antes que Lucas acertasse em cheio o rosto, Joshua mordeu o braço erguido.

–– Aiiii! Porque vocês atrapalham a minha vida! –– deixou escapar por entre os dentes, mas ninguém percebeu.

Estava extravasando toda a cólera acumulada, no fundo sabia que estava errado. Não obstante fazia isto por que eles estavam ali, naquele momento, irritando-o a ponto de transbordar o copo. Nem se importou em descontar neles, muito mais fracos do que ele, o que outros haviam lhe provocado.

Não tiveram tempo de revidar, pois o vagão havia parado bruscamente numa estação que escapava à observação dos meninos.

Os demais passageiros procuravam disfarçar os olhares contrafeitos enquanto entrava uma leva compacta de novos transeuntes. Um senhor até balançava o jornal aberto, tentando se fazer notar e deste modo, que os moleques percebessem a descompostura. Nesta balbúrdia não notaram que Joshua havia escapulido por entre as pernas das pessoas que se apertavam no pequeno veículo e já corria longe para a saída do subterrâneo.

Sean, por instinto, agarrou Tiago pela alça da mochila e criou uma passagem forçada. Lucas não podia estar apático à fuga do Joshua e seguiu-os angustiado com o que ouviria mais tarde da boca da mãe.

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E ele desacelerou por causa de um mal súbito; um reflexo no canto do olho modificou seu temperamento, tinha que alcançar o garoto. Mas sentia, queria muito que ele sumisse.

Algo remexeu no seu íntimo, uma raiva atroz subia à cabeça, como uma voz que instigava. Podia sentir o frio metálico gelando seu corpo... No entanto lutou contra, precisava encontrar os três. Podiam vê-los sumir pelo túnel. A boca de saída para a praça Monge encontrava-se abarrotada.

–– Jox, espere! Peguem este garoto! –– gritavam tentando

alcançá-lo antes que desaparecesse na multidão da praça. Não entenderam quando Joshua parou abruptamente e sorriu para eles.

–– Se esse fedelho não tivesse aprontado... –– E você, que bateu sem motivo. –– Agora era Tiago quem

discutia as rabugices e o mau humor do irmão, empurrando-o. Lucas queria dar o troco, porém Tiago não dava oportunidade, pisando constantemente no orgulho ferido. Não tinha extravasado tudo, mas estava com medo de pular sobre os três, a céu aberto e na frente de tanta gente enxerida.

Sean, entretanto, não escutou nada do que Lucas havia dito e do que Tiago contestado. Fixava-se atentamente em alguém que entrava pela boca do metrô; ele já descia alguns degraus, também hipnotizado por Sean. Havia um reconhecimento entre ambos, mas de onde? Quando já desaparecia por completo, só os olhos aparecendo, lembrou-se da premonição e alguém que seria ferido, muito em breve.

–– Tiago, vamos! Acorda! O cara do meu sonho está descendo para o metrô! –– Tiago não entendeu na hora, mas largou a briga e acompanhou-o do mesmo modo, para o metrô de Paris. Lucas ia a seu encalço quando foi agarrado por Joshua que aprontava um escândalo, não o deixando sair do lugar e tendo que fingir que estava preocupado com o garoto.

Haviam demorado em descer a escadaria por entre as pessoas que emergiam do buraco, assim que um estrondo seguido de tremores e fumaça surgiu ameaçador diante dos dois. O pressentimento de ambos estava se concretizando, o sonho se tornara realidade. Enquanto muitos escapavam apressados e atropelados por todos os lados, eles adentravam na escuridão formada pelo pó, sendo frequentemente atingidos por algumas

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pessoas apavoradas. Tinham certeza de que o homem não tinha retornado por aquele caminho, ele estava ferido como no sonho. Só podia. Esfregaram a blusa contra os narizes, evitando sufocar com a fumaça que dissipava.

–– É loucura, não devemos entrar. –– assoprou Tiago ao ouvido, puxando forte o ombro do amigo para se virar. Não estava querendo desistir.

Quando chegaram ao corredor de ligação entre as plataformas tiveram que se decidir qual direção tomar. Instintivamente, tentando recordar aquele vago pesadelo, imaginou-se seguindo pelos corredores até se deparar com a indicação para a plataforma de Villejuif/Louis Aragon - Marie d’Ivry.

Na plataforma algumas luminárias soltas bruxuleavam aleatórias, não havia ninguém. Os vagões emborcados giraram tombados com suas rodas ameaçadoras. Tudo indicava um acidente nos trilhos.

–– Sean, veja... lá está ele. –– assustando-se com as coincidências do pesadelo. Tiago correu corajoso para junto do corpo, passando por cima dos bancos encostados à parede curva e azulejada da gare. O que aconteceu nos segundos imediatos fez com que Sean ficasse boquiaberto e sem reação. Ele já estava hipnotizado.

Dois paramédicos trajados com jaquetas fosforescentes, distintas daquelas que ele havia visto até então, surgiram. Simplesmente brotaram de um local que não havia nada, nem portas, acessos, escadas ou outra abertura qualquer, só se tivessem vindo pelo túnel interditado.

Mas a exata razão pelo qual estava estático era porque eles atravessaram os destroços. Eles não pularam sobre, eles transpassaram os escombros como se eles fossem mera ilusão, um nada. Mas eles estavam lá, assim como ele e Tiago.

Eles chegaram junto com Tiago ao homem caído. Contudo não pareciam surpresos. Sean estava tão apavorado quanto no dia da aparição no hospital, ainda podia sentir o hálito quente do cavalo fungando em seu cangote. Achava que não ia conseguir andar, suas pernas estavam trêmulas e evitava tossir.

Ele ia dizer algo quando um dos médicos de campo desdobrou um computador de bolso no ar afirmando: –– Ele não está nada bem, mas parece que tem algum tipo de auxílio local. Não estou

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entendendo?! As ambulâncias ainda devem demorar de cinco a quinze minutos. Depois, com tantos feridos na superfície. –– retirando os olhos do monitor –– Talvez alguém daqui?

–– Tem mais alguém aqui, além deste garoto? –– referindo-se a Tiago que se aproximava do rosto do rapaz desmaiado. Desta vez apertou alguns botões no palmtop e direcionando-o para todos os cantos da plataforma destruída, quase engasgou quando um apito assinalou o lugar onde Sean estava entorpecido. Não se sabia quem estava mais impressionado, se era o garoto que tentava em vão chamar o amigo ou se eram os tais fantasmas profissionais que se grudaram para reler à tela translúcida do computador.

–– Não tem nada sobre ele, quem será? –– Não tiveram tempo para criar conjecturas, pois perceberam que o outro garoto mexia displicentemente no ferido. –– Não mexa aí, pode agravar o ferimento! –– reagindo, sem esperar que o escutasse.

É claro que o Tiago não ouvira o conselho dos paramédicos e eles também não esperavam que ele escutasse, entretanto, da outra extremidade da plataforma Sean gritou logo após.

–– Não toque nele, vai agravar a lesão! –– desta vez os médicos se espantaram, perplexos. Não perderam a chance, e o que aparentava ser o mais jovem dos dois fantasmas correu, se aproximando de Sean tão rápido que o impedira de efetuar uma escapatória.

–– Sim, ele nos vê! Quem é você? –– Eu... eu... eu que pergunto quem são vocês? –– não

respondeu de imediato, mas atraiu Sean o mais rápido possível para junto de Tiago. Não tinham tempo para brincar de quem é quem.

–– Sou eu, Tiago –– que achava que era com ele. –– O que está acontecendo? Você está bem? –– já estava cansado de ouvir todos dizerem se estava bem ou não. Sean calou-se, se ajoelhando devagar, para ver o homem caído de peito para baixo.

Parte da estrutura que suportava o teto cedeu de repente, achatando alguns vagões ainda intactos. Esperaram a poeira assentar. Tiago tossia e lacrimejava muito.

O outro paramédico havia instalado uns cilindros próximos do corpo, que se acenderam ao comando do computador de mão. Não sabia como reagir a tudo o que ocorria e, Tiago insistia em

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levantar o homem ou buscar por ajuda. Sean não estava atento ao que ele dizia e sim aos paramédicos que estavam atarefados. Não deixava de pensar porque fantasmas estavam trabalhando para socorrer uma pessoa viva.

Fizeram alguns diagnósticos e se olharam. –– Acho que vamos precisar da sua ajuda. –– Como? –– Tiago respondeu ao como pensando que a

conversa era com ele: –– Você pega nas pernas e eu nos braços. Mas Sean só escutou o paramédico pedindo que ele entrasse

no vagão do metrô e procurasse por um pacote branco. Levantou-se e o seguiu. Desta vez reparou que uma grande letra I estampada na jaqueta era a sua denominação de grupo.

–– Que significa esse I? –– perguntou mais para si do que para alguém, pensou.

–– Somos do Grupo Índia de Socorro, atuamos nesta região da cidade média e você, quem é?

–– Sean Fox. –– irritado e com medo. Tiago murmurava que já sabia quem ele era e que precisava mesmo era de sua intervenção para erguer o homem.

–– Não perca tempo procurando por alguém, não tem ninguém aqui, somos somente nós dois... –– Agora Sean se virou para Tiago e gritou em resposta às lamurias.

–– Estou tentando! Cale a boca e me ouça, já tem gente querendo nos ajudar! Tem um bem do seu lado. –– Tiago calou-se sem saber como reagir, mas também ficou preocupado com o fantasma, será que estavam por perto? Apalpava o ar esperando sentir algo.

Lá estava a porta metálica do pesadelo, era a porta de um dos veículos virado. Ela não queria abrir, teria que se rastejar por uma das janelas trincadas. Apoiou-se com a mochila protegendo os braços e investiu contra o vidro trincado, espatifando-o. Pulou por sobre a abertura, caindo de lado e batendo com força numa das barras de segurança. Com dificuldade enfiou a mão onde o médico apontava e agarrou o embrulho amassado que, apesar da sujeira e da pouca luminosidade, dizia ser do Hospital Val-de-Grâce e enviado à Universidade. Em letras espalhafatosas lia-se: “Cirurgias: Instrumentação”.

Saltou para o exterior arranhando as mãos nas lascas retorcidas do alumínio e andou apressado para o segundo

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paramédico. Assim que se acercou, viu maravilhado que os cilindros projetavam uma representação translúcida do homem que flutuava a um metro do piso, evidenciando alguns órgãos internos numa variação de cores ofuscantes. Um fluxo de cores aleatórias se espalhava rente à imagem. Havia manchas escuras, e uma dessas bem perto do coração, causava mudanças em todo o corpo. Como as ondas do mar contra a enseada.

O segundo médico sacou o computador de um bolso da calça e fixou-o no ar, sem apoios visíveis. Clicou em dois pontos opostos e esticou o monitor até alcançar a medida de seus braços abertos.

–– Uau! –– mas não pôde perguntar mais nada. Novos apitos soaram confirmando uma parada cardíaca que esperava a intervenção de Sean. Nenhum dos mecanismos podiam reparar o trauma, apesar de que eles possuiam equipamentos que faziam verdadeiros milagres, porém eles não podiam intervir. Não diretamente, neste caso.

–– Acho que é com você, Sean! Não recuou ao encargo, queria saber quem eram eles e,

principalmente, quem era o homem ferido. Apoiou-se o mais perto possível do corpo e olhou com flagrante tensão para o médico, esperando alguma resolução diante do embrulho aberto.

Alguns instrumentos estavam selados e brilhavam a pouca luz, evidenciando bisturis, injeções, agulhas e um cem número de aparelhos indefiníveis. Um bip soou medonho.

–– Ponha seu joelho sobre as costas, na altura das axilas –– disse enfático, passando um dedo pelo local ––, não tenha receio. –– não parecia o procedimento habitual para ressuscitamento, aquele em que se põe a mão sobre o peito e faz respiração boca-a-boca, recordou Sean. –– Agora com sua mão direita puxe o ombro para cima e com a outra para baixo, como uma torção... e não se esqueça de girar o joelho.

Não pôde evitar um arrepio quando a mão do paramédico tocou a sua, ou melhor, não tocou. Continuou por algum tempo até que os batimentos voltassem e depois apertou alguns pontos da mão conforme sugerido pelos paramédicos. Com certeza deu muito certo. Mas agora vinha o mais difícil.

–– Ele está com uma ruptura no miocárdio que vazou para a cavidade pericárdica –– demonstrando o perigo através da voz

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pausada ––, mas isso não é o problema, o tamponamento bastaria, mas... –– o homem parou de falar observando a imagem com cuidado, pela primeira vez Sean reparou no fantasma como um ser, um homem, com a diferença que ele estava morto. –– bem, você vai ter que fazer... algo.

De alguma forma este algo cheirava à cirurgia e o medo se apoderou de Sean que, sem perceber, contou ao Tiago o que estava prestes a fazer.

–– Você está louco?! Não é médico, não sabe nem fazer os primeiros-socorros. Depois... –– Sean cortou acrescentando.

–– Eles vão dar uma mão, não sei como. –– Vão te ajudar? Não podiam esperar muito, pressionaram Sean a selecionar

uma seringa comprida, assim como ataduras e outras coisas que acabaram sendo esparramadas pelo chão. Os paramédicos estavam mais perdidos, buscando um jeito de ajudá-lo com o procedimento intricado. Iriam retirar cinquenta miligramas de sangue da cavidade do pericárdio para evitar o colapso cardíaco por causa do excesso de pressão num dos ventrículos, resumindo. Enfim, iriam dar um jeito de evitar a morte. Sean não entedia nenhum dos termos clínicos, mas com um diagrama demonstrado ao computador, pôde dizer que entendia o problema. Porém resolvê-lo era outra coisa.

–– Terei que tirar um pouco de sangue do coração –– ao que Tiago quase desmaiou de susto ––, se não fizer isto ele morre. Você não quer saber quem ele é?!

Tiago se recuperou e confirmou: –– Pode fazer! Eu acredito em você.

–– Imagine que o coração é como dois balões, um dentro do outro... o de fora fica quase que colado ao de dentro. Como o de dentro está furado o ar escapa aos poucos para o segundo balão. O bom é que, sendo o balão de fora menos flexível, isso evita hemorragias mais complicadas. O ruim é que, às vezes, tem tanto ar no balão de fora apertando o balão de dentro que o impede de trabalhar. –– demonstrando com as duas mãos o funcionamento do coração que aos poucos ia parando. –– Por isso precisamos tirar um pouco de ar do balão, entendeu?

Ele só balançava a cabeça.

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Durante a explicação o outro digitava algo ao computador e falava num mecanismo, semelhante a um telefone celular, com alguém que se preparava para acompanhá-los na intervenção. –– Não está errado? Ele pode ser ajudado? É um tiro no escuro, quantas vezes você ouviu falar que alguém sobrevivesse nestas condições? –– seguia com as perguntas pelo intercom.

Todos estavam envolvidos em algo improvisado às pressas, mudança de última hora, e tudo que estava acontecendo estava errado, pelo menos nunca desse jeito. Sempre havia um planejamento de anos, talvez meses... nunca de minutos.

–– Pronto, estamos autorizados. Ele não pode morrer, não hoje. –– sussurrou sorrindo.

Neste instante, de outro cilindro, uma imagem apareceu como um holograma, era outro homem de uniforme médico, mais atraente que os jalecos brancos do hospital da doutora Mel. Debruçou-se sobre a cópia diáfana do paciente e autorizou a intervenção de um procedimento incomum, mas necessário devido às circunstâncias urgentes. Apertou uns botões e se afastou em silêncio. O computador deu dois piques e reacendeu a imagem holográfica. O cérebro de Sean foi invadido de dados como se estivessem descarregando um arquivo, fazendo um download em tempo recorde.

–– Pronto, é todo seu! –– disse o terceiro homem que se projetara há pouco.

–– O que é todo meu? –– Tiago ficou assustado com a pergunta do amigo. A informação temporária fazia sentido para Sean que: –– Os efeitos da pequena quantidade de sangue no saco pericárdico são desprezíveis, mas, quando o volume atinge 150 a 200 ml, às vezes, instala-se um choque severo, talvez mesmo abrupto, já que o pericárdio não pode ser distendido. Nesse ponto crítico o acréscimo ou a remoção de pequena quantidade... No way! Enfim que, o resultado final depende da interação de três variáveis importantes: o ferimento cardíaco, o ferimento pericárdico e o hemopericárdio... ufa! –– agora entendia o problema, mas todos esses dados não lhe davam a experiência que precisava para atender o trauma.

–– Cara, que foi isso? –– admirava Tiago, boquiaberto.

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–– Mas não é um trauma cardíaco fechado? Já sei –– respondendo para si ––, o impacto brusco provocou a ruptura do tecido.

–– O equipamento estará obedecendo ao seu comando, ele lhe ensinará como fazer o reparo. –– Sean repetiu para Tiago que o incentivou a tentar. –– Mais do que isso, só se eu... –– impedido.

–– Tentar o quê? –– O paramédico sugeriu pedir uma simulação para reconfiguração física do coração, ao que Sean reproduziu atropeladamente. A seguir, um outro holograma, mais próximo do coração, apareceu diante dele. Ela mostrava a seringa sendo introduzida por um canal imaginário e retirando cento e vinte e sete miligramas, conforme a atividade presente.

Os paramédicos afastaram-se do paciente, se colocando ao lado de Sean, pois os monitores haviam sido reposicionados para o operador, modificando todas as suas atividades para ele. Um dos médicos se colocou atrás de Sean, apoiando as mãos sobre a testa dele: –– Nós vamos melhorar as suas reações, não se preocupe se esquentar um pouco.

Toda vez que Sean tentava enfiar a seringa asséptica no peito iodado, não conseguia prever se estava certo ou não, chegou a bater nas costelas do homem que tinha sido virado cautelosamente para a operação.

Sean pensou em algo diferente. –– Insira a seringa e minha mão ao holograma em tempo real.

–– pediu Sean ao computador que respondeu acrescentando as novas imagens –– Uau! Até parece uma daquelas cirurgias à distância. –– brincando com sua mão virtual.

Enquanto olhava para as imagens, que desta vez indicavam acertadamente o ponto, pôde sentir a agulha entrar devagar até o coração. Respirou fundo e começou a sugar o excesso de sangue. O computador fazia o cálculo e cronometrava o tempo restante para a próxima parada cardíaca, que era muito pouco. Num dos monitores a imagem balançava com as batidas fracas do coração.

–– Doze miligramas, trinta segundos, vinte e três miligramas, doze segundos, trinta e nove miligramas, cinco segundos, cinquenta e um miligramas e terminou, sessenta e três miligramas.

Sacou devagar a seringa, Tiago ensaiava um desmaio. E o acidentado piscou os olhos e por um instante encarou Sean.

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Sean suava em profusão e deixou-se relaxar curvando-se sobre as pernas pronto para desmaiar. Não havia tempo. Ouviram os primeiros passos, e as luzes das lanternas já piscavam na extremidade da estação. Os dois paramédicos pediram para que eles fugissem, pois não iam conseguir explicar o que aconteceu. Sean agarrou o amigo pelo colarinho e balançou-o seguidamente até que despertasse.

–– Vamos sair daqui... agora. Ao levantar, Tiago ainda queimou a palma da mão num

encanamento exposto, xingando quem podia e não podia, acelerando os procedimentos para a escapada. E se foram.

Os paramédicos piscaram agradecidos. Perto da boca, no fim da plataforma, Sean viu mais duas

pessoas no cais oposto, o único trecho possível. Será que elas haviam visto o que aconteceu? Contudo não se preocupou em saber, pois uma das pessoas se adornava com um manto vermelho de onde só apareciam as sandálias, e mantinha um olhar bizarro neles. O outro tinha um aspecto de frade com sua túnica escura cobrindo sua obesidade mórbida e se postava mais afastado, afagando uma chave que pendia da cintura, junto à máquina de refrigerantes. De jeito atrapalhado e cambaleante que contrastava muito com o seu rosto lívido que denotava algum desânimo e indiferença ao que aconteceu. Foi tudo tão rápido que Sean não viu o estranho sorriso que apareceu no rosto do homem do manto púrpuro.

Instantaneamente sentiu uma dor lancinante em sua cabeça e a sua visão turvar, uma ânsia forte agarrara-lhe o estômago e sentiu que algo ruim o cercava, parando-o.

–– Alguém o queria morto! –– referindo-se ao corpo que largaram aos cuidados dos policiais. Era só uma sensação.

Tiago fora mais prático, esquecido da queimadura, apanhou e empurrou Sean escada acima enquanto ele insistia em olhar para trás.

–– O que tá acontecendo, cara? –– e já estavam à luz da praça movimentada e repleta de ambulâncias e policiais, atendendo os feridos e afastando os curiosos. As sirenes berravam avançando por todos os lados, disfarçando os gritos dos bombeiros e de alguns histéricos. Num dos cantos, separado por uma faixa de isolamento mal ajeitada, estavam Lucas e Joshua tentando

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argumentar com um policial o acesso. Quando os dois se aproximaram de Lucas este ergueu um olhar de alívio e satisfação que durou frações de segundo, caindo na mesma expressão rabugenta e descontente, mas agora com uma pontada de ódio.

Eles estavam brancos de pó, tossindo. Sean não se sentia bem, talvez toda a adrenalina tenha desarranjado seu organismo e o estresse tenha alcançado seu ponto máximo, porque ainda sentia náuseas e a dor de cabeça voltava inflexível.

Algo tão forte quanto o que havia acontecido em Londres, no dia do desmaio, estava se aproximando. Foi tão forte que o sangue escorria de seu nariz.

De longe, alguém atento aos garotos, seguia entusiasmado, com o olhar, a ocasião que se apresentara oportuna, mesmo eles tendo estragado seus planos.

Sean não pôde se controlar e vomitou aos pés de Lucas. Irremediavelmente.

Afinal todos ficaram sabendo do acidente na estação, da fuga

de Joshua e do ataque de nervos de Lucas, entretanto, o mais importante estava a salvo, no silêncio de Tiago e Sean. Mal Tiago conseguia acreditar no que aconteceu e, nem Sean acreditava no que havia conseguido fazer. Lembrou que estava apavorado e por algum motivo sentiu-se atraído para enfrentar aquela situação. Em toda a sua vida, pela primeira vez, conseguia entender o que eram as visões e sussurros, contudo era difícil de aceitar que fantasmas interagiam com os vivos muito mais do que ele imaginava –– é claro que ele imaginava que fantasmas não existiam, mas a partir de então podia ter certeza absoluta.

O castigo pelo que aconteceu, exceto o caso de terem feito algo no subsolo, oculto dos olhares de delatores, seria uma maior rigidez e controle dos passos de Sean. Numa pequena reunião de cúpula composta por Sarah, Patrick e a doutora Mel, decidiram colocar Sean sob a atenção e cuidados de Mateus, empregando-o, por meio período, como garoto-faz-tudo no aeródromo que ele trabalhava.

Faria alguns serviços leves e estaria longe de encrencas. Lucas seria separado de seu brinquedo, o skate, por um período indeterminado tendendo ao infinito dos desejos da mãe e Tiago

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seria responsável por algumas limpezas, já que tentava evitar que as coisas piorassem. Mas explicar o que aconteceu dentro da estação, isso requeria um embuste laborioso e convincente: como haviam dito a todos, que eles tinham retornado para buscar algo que tinha caído e ficaram escondidos, esperando a multidão desesperada sair, e só. Bom, serviu. Serviu até cair a noite.

O que mais chocou fora o boletim da noite que pretendia divulgar uma cobertura do acidente anunciando imagens impressionantes do sistema interno do metrô. Como ele podia ter se esquecido. Bateu com a mão na testa: –– Burro! –– Estava por um triz de ser descoberto e Tiago também pensou o mesmo, porque ligou de imediato para os Fox.

–– Será que nós aparecemos neste vídeo? –– era uma incógnita bastante óbvia, considerando toda a cobertura. Respondida somente após o silêncio, quando a televisão mostrou as cenas que eles reconheceram tão bem. Primeiro com os garotos se aproximando do homem derrubado e, terminando com a pequena intervenção de Sean no coração. Mais silêncio. Entrou o intervalo.

–– Não aparecia nada, não dava para nos ver, não é? –– perguntava Tiago. –– Tudo chuviscado, sujo pela poeira... me diz. Não dá para ver nada?!

–– É, acho que não, nem detalhes, nem som e depois tinha tanta gente. –– Sean falava mais para si, tentando se convencer. Desligou declarando que no dia seguinte talvez conversassem sobre o assunto e encerraram o diálogo, aturdidos, quando o noticiário reiniciou.

–– “... contatamos a Dra. Göettees do Hospital Val-de-Grâce que fora a responsável pelos equipamentos encontrados no local do desastre e que nos respondeu ser uma incrível coincidência os instrumentos certos estarem no lugar certo e nas mãos de quem sabia utilizá-las. Por outro lado, médicos especialistas estão surpresos com a atitude dos garotos que efetuaram um reparo cardíaco que exigiria pelo menos uma toracotomia ou equipamentos sofisticados para conseguir a precisão necessária para a cirurgia realizada. No momento estas são as provas e os órgãos encarregados estão se mobilizando a procura dos meninos que podem ter de treze a dezesseis anos... a seguir, manifestações e fogo em Paris em mais uma noite de atentados”.

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Na televisão um grupo de manifestantes arremessava garrafas com coquetéis molotov sobre os carros policiais, porém uns maquis, usando barretes vermelhos, atiravam com suas pistolas fugindo em meio a bolas de fuligem e faíscas exageradas.

Desviou o olhar cambaleante. Ele estava mais calmo. Como iriam descobrir quem eram os responsáveis, não dava para ver nada direito, naquele chuvisco. Mas o boletim voltava a falar do acidentado.

–– “... após o ocorrido o Sr. Marc Bernis, Chefe do Departamento de Pesquisa e Documentação do Museu do Louvre, fora removido em estado estável...”. –– Num átimo, foi a Sarah quem se inquietara, pulando do sofá para o telefone e berrava comprovando as suspeitas de Sean.

–– É o meu chefe! É o desgraçado do meu chefe! Nem comecei a trabalhar e ele morre?! Não mesmo.

Não podia ser coincidência. Quem estava por trás de tudo? Pois havia alguém por trás. Coincidências já não bastavam para Sean.

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conversando sozinho.

O carro deslizava suave pela estrada , em curvas

generosas que mergulhavam nos bosques verde-oliva da região ao norte de Saint-Denis. Paris ficara para trás, com seu mar de edifícios dourados murando o caminho para o aeródromo.

Sean observava o motorista que estava compenetrado em seus pensamentos, comentando, vez ou outra, algumas particularidades sobre o trajeto ou do que teria que fazer. Percebera que havia acontecido algo com Mateus, nunca o vira tão circunspecto e a única explicação que descobrira, com o auxílio de Tiago, fora de que ele tinha brigado com a namorada recentemente.

–– Eventualmente alguém vai falar, não é? –– resmungava Tiago sentado atrás, em meio à papelada que corria de um lado para o outro do veículo, embolando num canto antes de rolarem um para o outro.

Estavam sós, dentro do compacto Peugeot prateado; Sean não se atrevia a perguntar e muito menos Mateus de disfarçar. Ambos não deviam se intrometer nos assuntos alheios, pois a barreira da idade não permitia. Era o que os outros diziam: um moleque jamais entenderia destes problemas e, gente grande nem sempre dava satisfação. Ficava deste modo estabelecido o relacionamento entre Sean e Mateus, mesmo que estes quisessem ser amigos.

Contudo Mateus olhava de soslaio para Sean, incomodado com algo, havia um ar de mistério que Sean imaginava ser sobre o

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que aconteceu no metrô. Era óbvio que ele sabia a verdade, Tiago não conseguiria manter o segredo com os irmãos por tanto tempo.

Em tempos, Sean tentava arrancar Mateus do devaneio com algum assunto relacionado à aviação e este até tentava esboçar algum contentamento. Inútil, pois a tal garota era justamente funcionária do aeródromo e era falar num que pensava noutro. Seria melhor calar-se.

Tiago resolveu ficar quieto, deitado com os pés cruzados saindo pela janela, lendo um manual que salvou mergulhando as mãos naquela lixeira: Cessna F-152. Bah!

A esta altura já deviam estar próximos da entrada para Moisselles, aumentando as expectativas de Sean que procurava, com o passeio, esquecer o que havia acontecido no metrô. Precisava se manter longe, mas ficava constantemente pensando no acidente. Se, entretanto, Mateus conversasse mais, poderia se distrair. Mas, distraído estava mesmo era o condutor, que não percebeu quando entraram numa névoa diáfana que atravessava a pista, saindo da floresta cerrada que margeava os dois lados da autopista.

Não parecia normal, considerando que o dia estava claro e límpido, verdadeiro céu de brigadeiro. Mateus percebeu a tensão de Sean e rindo esclareceu o fenômeno.

–– Dizem que estas florestas são assombradas –– mentindo pela chance de pregar uma peça ––, e que muitos desaparecem quando entram nestas nuvens.

Sean não sabia se acreditava, todavia um sinal o alertava para o perigo, estava com a tal dor de cabeça que sufocava suas ideias, ouvia uma voz sussurrando, não entendia o quê.

–– Que foi! –– Não sei bem, a cabeça dói e... Neste instante um cavalo de batalha, imponente, cavalgado

por seu cavaleiro metálico de espada empunhada, cortou a estrada lentamente, soltando fumaça pelas narinas. Antes mesmo que pudesse advertir Mateus, este freava violento, girando o carro algumas vezes, saindo da estrada e se enfiando inclinado numa clareira úmida, num charco escuro.

A fuligem e o guincho dos pneus romperam o sossego. Não havia mais ninguém, rodovia inacreditavelmente deserta.

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Enquanto giravam, Sean pôde ver com nitidez que o cavaleiro olhava diretamente em seus olhos, mesmo que tudo tivesse acontecido em poucos segundos. Pôde ver bem os olhos de um profundo azul. Um olhar que indicava admiração, curiosidade. No tórax, sobre a couraça, um manto branco estampava uma cruz carmim que não tinha percebido antes.

Demorou um pouco para que eles acordassem do impacto. Esfregando braços e testas doloridas. Gemiam em coro. Aos poucos saíram do automóvel, que parecia não ter sofrido senão alguns arranhões indesejados. Instintivamente Sean procurou por Mateus. “Será que também viu o cavaleiro? Só podia, o que mais poderia ter provocado o acidente”.

–– Acho que havia óleo na pista! –– com expressão lívida de quem tentava se convencer, ajeitando as costas.

–– Não viu o... cavalo? –– escolhendo as palavras com cuidado, não queria que Mateus desconfiasse, bastava um por família; se nem o Tiago entendia direito. Desta vez foi Mateus quem se assustou. –– Cavalo? Não, não tinha cavalo nenhum na estrada. –– engasgando-se. Os olhos estavam bem abertos e dava para sentir a respiração ofegante. Talvez fosse só o acidente, mas Sean percebeu algo diferente em suas palavras.

Pararam para ver onde estavam e como sairiam sem maiores dificuldades daquele emaranhado de galhos e ciprestes secos. O carro estava inteiro e o motor ainda roncava.

Mateus desligou-o, esperando se recuperar um pouco. Ainda havia um nevoeiro que não dispersava. Só então se lembraram de Tiago, que como tinha ficado quieto demais, nem cogitaram que ele estivesse ali. Não estava no banco. Porém uns ais e uis enunciavam que ele estava à pequena distância, no piso traseiro do automóvel, encurralado por baixo da papelada. Desta vez foi Mateus quem salvou o irmão enfiando a mão naquela mesma bagunçada.

–– Caramba, mano! O que aconteceu? –– friccionando a destra no topo dolorido da cabeça. Mateus calara-se, saiu do automóvel e caminhou até o meio da clareira que se iluminava por brechas que se moviam conforme as copas. Sean voltou para dentro. A névoa cercava-os, densa.

–– Acho que não foi bem um acidente, mas se foi coincidência, bota coincidência nisso. Quando derrapamos, um

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cavaleiro transpunha a pista. –– sussurrava aos ouvidos de Tiago. –– Mas Matt não teria visto? Teria? –– mais para si do que ao amigo.

Tiago não tinha entendido porque ele não teria visto o cavalo até que Sean explicou. –– Estava na Mouffetard e talvez no hospital. –– ou seja, só Sean podia vê-lo.

–– Você tem certeza? –– Do que vi? Claro. –– Não. De que o Mateus também viu... Você, eu já sei. E ele

falou o quê? –– procurando o irmão que andava em volta do veículo.

–– Falou nada, resmungou algo como óleo na pista. Mas eu vi o rosto dele antes de brecar... estava branco como cera. Creio que ele só freou porque eu apertei o braço dele, e bastante forte. –– silenciaram observando Mateus com cuidado.

Depois do incidente, o bosque caíra num marasmo insólito. Nada. Simplesmente nada acontecia, nem o vento soprava quando, de rompante, uma trovoada contínua soou de todos os lados. Mateus girou olhando para todos os lados. Segundos pareciam minutos.

Como num estouro de boiada, centenas de cavaleiros cruzaram, velozes, o aberto, uns a cavalo, outros a pé, brandindo armas, lanças e escudos. Estandartes e bandeiras, suásticas e águias farfalhavam nervosas, o vermelho predominava.

Foi tudo tão rápido que Sean não pode precisar quem eram; eles se assemelhavam a romanos, ou hussardos, ou meramente soldados. Não conseguiu focar em nada em meio às brumas. E como surgiram, sumiram.

Os corações acelerados bombeavam frenéticos. Mateus continuava parado, em pé. Sean sabia que ele não teria visto nada, os soldados só faziam parte de suas esquisitices, de seus fantasmas. Mas quando ele retornou para o automóvel estava quase desmaiando e balbuciava trêmulo. Sean não falou, no entanto tinha algo acontecendo com Mateus. Será? Não podia.

Quando voltou a si, Sean perguntou-se, em voz alta, sem perceber: –– O que eles estão fazendo aqui? –– já que começava a acreditar em fantasmas. O que Sean não percebeu foi que Mateus prestou muita atenção ao comentário enquanto retirava o carro da mata. Recuando-o à estrada que estavam, há pouco. Tiago tentava

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ajeitar o que podia dos documentos caídos assim como a sua aparência desgrenhada. Ele também não tinha visto o pequeno espetáculo que aconteceu na clareira.

Pouco depois estariam entrando em Moisselles seguindo até o aeroclube de Enghien que ficava afastado dos grandes centros urbanos. Se não fossem as torres de controle do aeroporto Le Bourget e do Charles De Gaulle, a leste deste, poderiam até imaginar como era voar bem livre, como gostava de frisar Mateus.

O aeroclube, simples e agradável, se escondia numa área rural

quase desabitada. Possuía pistas de um gramado bem cuidado em terreno tão plano quanto era possível e, como instalações, tinha uma sede, quatro galpões e a pequena torre de sinalização. É evidente que tinha um bom pátio de estacionamento para as pequenas aeronaves que ficavam aos cuidados dos donos, de alguns voluntários fanáticos e do pessoal do aeroclube. Cuidavam da conservação, higiene e abastecimento como se fosse um prosaico passeio familiar de fim-de-semana. Adoravam voar.

Quando o Peugeot de Mateus atingiu a casa-sede, brecando bruscamente sobre os pedriscos, este olhou severo para Sean que percebeu que não era para comentar nada sobre o acidente –– pois assim convencionou chamar a tal investida da soldadesca. Mateus tentava recompor sua aparência acomodando as roupas e o cabelo, mas o rosto não disfarçava. Certeza mesmo, não tinha como Sean saber.

Mateus era daqueles que passam despercebido, cabelos relaxadamente descuidados assim como sua roupa. Ele vergava o porte de alguém independente, o bastante para não ter que dar explicações de sua vida e, ao mesmo tempo, transparecia uma jovialidade absurda que atraia a todos. Sempre amistoso.

Penetraram por entre a vegetação saindo num largo muito utilizado em reuniões ao ar livre. Uma grade pintada de branco separava-os do pátio dos aviões e dos hangares que ainda estavam fechados. Algumas pessoas andavam atarefadas, descobrindo as aeronaves, retirando o orvalho. Outras puxavam ou empurravam aviões para o abastecimento; e alguns eram tão antigos assim como o próprio clube.

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–– Boa tarde senhor Daurat! –– homem gordo e folgazão que usava uma jaqueta sintética forrada de emblemas e insígnias. –– estes são o Sean e o Tiago, onde os quer? –– apressado demais para se livrar dos garotos.

Sean continuava olhando para a jaqueta, distraído pelos símbolos e nem se importou quando Mateus lhe dispensou, parecia estar com pressa para resolver os seus assuntos. O Senhor Daurat não parava de desfilar comentário atrás de outro, narrando suas peripécias como piloto de guerra e como ajudou os aliados a derrotarem o inimigo, indiferente de ele ter servido do outro lado do conflito e em um posto esquecido por todos, no coração da África. E Tiago era a companhia ideal, pois alimentava o ego do velhote com dezenas de perguntas rápidas e inesperadas.

–– Vou pô-los com Christou para conhecerem bem as suas tarefas, estão me entendendo? –– piscando em cumplicidade –– Estarão sob os seus ma-ra-vi-lho-sos cuidados. –– declarou o senhor Daurat entre uma verdade e três mentiras. Levemente ele empurrou-os para o pátio, atravessando uma passagem com um aviso vermelho-atenção.

Aeródromo. Acesso Interditado. Decreto Municipal de 8/3/1983. Circulação estritamente reservada Aos veículos de serviço, e somente ao pessoal autorizado. Estacionamento autorizado para uso Do aeródromo unicamente. Largou os dois perto de um avião de listas acinzentadas

estacionado para reabastecimento e agarrou outro bode expiatório para ouvir as suas histórias de caserna.

Sean ficou admirado com a aeronave e circundou-a, várias vezes, observando cada pormenor. Há alguns metros, um mecânico se embocava no motor de um aeroplano similar de faixas vermelhas. Só se via as ferramentas caindo pelas entradas de ar. As gigantescas portas sanfonadas dos hangares se abriam rangendo ruidosamente, e, sem esperar, vários aeroplanos eram expulsos puxados por suas bequilhas.

Alguém gritou de dentro. –– Christou! Atenda os novatos!

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O mecânico se ergueu batendo contra a tampa do motor. Sean estava admirado. Christou era uma garota. Bem bonita, aliás. O que ela deve ter percebido, pois se fixou nele, deixando-o encabulado e ruborizado.

–– Uau! Cara. Sempre a achei demais. Incrível! –– virando para perceber o amigo congelado. –– Isso está me cheirando...

–– Cale-se –– falou baixo Sean, metendo a palma da mão sobre a boca do enxerido. Ela caminhou até onde Sean estava e soltando seus cabelos escuros e lisos apertou a sua mão sorrindo.

–– Sou Elene Christou e você deve ser o Sean de quem Matt tanto fala. –– não sabia se era o susto de a mecânica ser belíssima ou o fato de que Mateus falasse tanto dele, mas estava enfeitiçado. Tiago não conteve um sorriso maroto. –– E você Tiago, como está? Seu irmão está por aí? –– nem precisava abrir a boca, ela sabia.

–– Vejo que gostou do GBQA! –– voltando-se para Sean que estava pensando em outra coisa. Elene é fruto de uma rasante linhagem de pilotos gregos, pioneiros da Força Aérea Helênica –– HAF –– que amavam acrobacias e corridas. No seu sangue podia até correr querosene de alta octanagem, porém a sua razão garantiria a mais alta performance.

Ela falava acariciando o cessna que eles estavam admirando instantes antes. Um modelo C182 de cinco lugares. Conversaram um pouco sobre a aeronave, deslizando do motor às asas, perscrutando dos trens de pouso aos estabilizadores e profundores. Cada mostrador do painel e ela se mostrava exaltada pelo que fazia enquanto Sean não deixava de admirá-la –– não escutava nada do que dizia, também tinha ficado mudo. Tiago seguia-os gesticulando mímicas como se estivessem namorando, beijos linguarudos, abraços melosos, olhos virados, enfim, tudo que provocasse Sean sem que Elene desconfiasse.

–– Você me paga! –– assoprou meio rindo, com o punho cerrado antes de tropeçar aos pés da garota. Tiago gargalhava às escondidas.

Depois das apresentações preliminares, contando cada minudência do cessna, Christou entregara um sem número de utensílios para que eles lavassem o F-GBQA. Por hoje, bastava lavá-lo. Ele não pôde deixar de encarar a Elene. Ela era como o próprio nome, uma escultura grega, além dos olhos grandes e

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brilhantes que hipnotizavam, que nem a sujeira de óleo e a fuligem ocultavam. Sean se sentia estranho, tenso pelo estouro de cavaleiros do bosque, mas seu coração voltava a acelerar-se descontroladamente. Ele realmente não percebera que a razão era bem outra. Era a primeira vez que isso lhe acontecia.

Ela seguiu um outro chamado e adentrou célere no aeroclube que ostentava uma bela insígnia composta de duas asas douradas emoldurando um círculo marinho: Aeroclube Croix du Sud –– Moisselles.

Sean enfiou um soco no ombro do chato do Tiago que gargalhava a pleno pulmões, sem se importar de que ela ouvisse ou conjeturasse de tanta algazarra.

Voltaram ao trabalho. Sean lançou o balde e o resto das tralhas para Tiago que ainda

ria enxugando suas lágrimas. Ele agora observava cada pedaço do lugar durante o enxágue, com muita espuma, do monomotor. Estava bastante frio e o outono se preparava para mostrar sua face. Por toda parte pequenas colunas de fumaça surgiam do bosque limítrofe ao aeródromo.

Os hangares ficavam abertos a maior parte do tempo e suas grandes portas de alumínio tremiam ao vento provocado pelos aeroplanos que circulavam no pátio de manobras. Porém um pequeno prédio, mais afastado dos demais, estava fechado, e há bastante tempo. Estas pequenas curiosidades ajudavam a esquecer o que havia acontecido, mas não lhe tirava da cabeça a ideia de que Mateus também tinha encarado o cavaleiro ou pelo menos desconfiava que ele tinha visto.

–– Continua lavando, vou dar uma olhada por aí. –– E eu? –– Você já conhece cada buraco daqui! Depois tem serviço

para acabar. –– jogando água em Tiago como castigo por avacalhar com a namorada do irmão.

Largou um pouco o que estava fazendo e foi bisbilhotar o hangar que não era muito grande, talvez uns três ou quatro aviões entrelaçados caberiam muito bem lá. Apesar disso, encostado a um banco, atrapalhando os seus planos, havia um homem de uns trinta anos, agasalhado como piloto, peça única, jaqueta e luvas de couro acolchoadas de pelo. Na cabeça, de cabelos negros e frisados com uma pasta alisadora, um óculos redondo de aviador

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ficava pendurado ao pescoço. Puxava com os dentes o cordame que pendia da luva. Depois sorria de um modo extremamente petulante.

Regressou ligeiro, terminando a secagem do aeroplano, pois Elene já retornava.

–– Conversa difícil. –– dizendo da boca para fora, do que para alguém ouvir. Nem reparou que Sean estava todo molhado, do joelho da calça para baixo ainda pingava. Tiago voltava a rir, primeiro da garota, depois dos olhares de Sean. Neste instante ele aproveitou para perguntar, evitando que Tiago recomeçasse a brincadeira.

–– Quem é aquele que está sentado perto do hangar enferrujado? –– Elene assustou-se, girando automaticamente naquela direção. Rindo-se mais tranquila. –– Calma, é só o Matt. –– Agora foi Sean quem se virou atordoado, era o Mateus sim. E aquele forasteiro também; conversavam. Ele não se confundiu, tinha certeza do que via.

Sean repetiu –– Só ele? –– Daqui, eu só estou vendo ele conversar com aquele velho

avião. É estranho, mas sempre fica lá, conversando sozinho. –– completou Elene, meio triste.

–– Avião?! –– e Sean só via o tal piloto. –– Sim. Ah, você não sabe, dentro do hangar tem um biplano

de uns oitenta anos, acho que é um Breguét 14. De qualquer forma precisa passar por uma bela restauração. Como não o fazem, Matt adotou um companheiro sem pernas. –– terminando o diálogo enquanto esfregava os cabelos de Sean que desta vez não se importou, até gostou. –– Este não vai a lugar nenhum.

Enquanto um pensava no que Mateus estaria divagando com uma tralha enferrujada, o outro se perguntava, por que razão Mateus não confirmava que havia visto o cavaleiro na estrada, já que ele também via destas esquisitices. Tiago travava um bate-boca com a mangueira, que não parava de espirrar água. Alguém mais rápida e intragável com a língua do que ele próprio.

Longe Mateus continuava. –– E então Jean, quem eram?

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–– Ainda não sei, não me deixam chegar perto. –– comentava o piloto acerca dos cavalarianos. –– Mas seria uma boa hora para fumar, como sinto falta!

Mateus nem escutou, percebeu o olhar distante dos dois perscrutando-o. O tubo de borracha ainda continuava espirrando e molhando Tiago.

O vento frio fez com que ele se espremesse à gola do casaco. Da Elene poderia desconfiar que estava comentando sobre seus monólogos com o Breguét, como costumava dizer, mas Sean... Será que ele via o Jean? Possivelmente.

–– Cuidado com o pequeno ali, ele sabe que eu existo. O mais engraçado é que eu já o vi antes, mas de onde será? –– desta vez era Jean quem divagava em voz alta.

–– Depois eu falo com ele. –– De olhos semicerrados. –– Aliás, vai nevar amanhã. –– Ainda divagando o fantasma. Mateus levantou-se e seguiu para um bimotor que acabava de

aterrissar. Não sem antes passar por Sean e dar uma piscadela sutil e séria.

Confusões à parte, Mateus não abriu a boca. Seguia pensativo e antes de partirem declarou: –– Depois a gente conversa melhor. Amanhã, acho que não viremos ao aeródromo. –– e antes que Sean resmungasse –– Eu disse depois!

Contudo uma coisa ele não deixou para depois, enfiou um belo murro na boca do estômago de Mateus que se curvou de dor com os olhos lacrimejando. Ele não reagiu, entendeu o recado. Mereceu, pensara. Quem não entendeu foi Tiago e Elene.

Guarini e Naxamuñaca esperavam Sean regressar. –– Em

pouco tempo ele conseguirá nos ver mais. Acho que chegou a hora dele falar com o senhor Bernis... hum. –– esfregava o queixo observando Sean se jogar na cama. Jogava o tênis encharcado longe como se quisesse acertar as duas nuvens que o rodeava. Estava irritadíssimo.

–– E o tal do cavalo branco? –– falou Guarini. –– Não sei o que ele quer, eu supunha que sabia... hum...

Desconfiava do que ele ia fazer antes, mas agora, não sei ao certo. –– saindo do cômodo com uma expressão de dúvida renovada. ––

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Continuaremos fazendo o que pretendíamos, algo deve ter acontecido no metrô que não vimos!

–– Não nos deixaram participar. –– Tenho meus contatos, alguém poderá nos contar, assim que

eu o encontrar. –– pressentindo que seria mais difícil do que invadir a estação colapsada. –– Hum, desconfio que Sean é mais do que aparenta. Depois eu pergunto por aí. Se os dragões podem, eu também posso... mas cuidado, seu velho bisbilhoteiro. –– dirigindo-se para si.

Guarini retirou-se encafifado, será que havia mais alguém lá? Sean saiu do banho enrolado numa toalha pouco felpuda,

matutando os fatos para tentar entender um pouco que fosse do que estava acontecendo ao seu redor. Não era a questão de ser tachado de louco ou não, mas o que estes fantasmas estavam tramando.

Sentou na cama e caiu, de braços abertos, admirando as pequenas estrelas que havia colado ao teto. Lá fora esfriava, fazendo as janelas rangerem. As árvores estavam nuas. Duas batidas fortes trouxeram-no à realidade. Curvou-se para levantar e abriu a porta do quarto. Era o pequeno Joshua, que sem explicações puxou a toalha e saiu em disparada. Sean balançou o corpo para fora do quarto com a sacudidela e instantaneamente saiu em percalço do garoto.

Correu pouco, a tolha estava largada ao chão. Abaixou-se para pegá-la quando ouviu a voz de sua mãe

conversando com seu pai sobre os documentos que pesquisava no museu. Patrick fingia que estava ouvindo cada palavra, entretanto bastava olhar para a televisão para que soubessem quem ganhava toda a sua atenção era a partida de futebol.

E voluntariamente, Sarah contava, resumindo o documento. A história de um médico de guerra a serviço dos cruzados e que a incomparável marca que pudesse dar a conhecer a identidade da personagem era um nome, quase uma assinatura. Sean regressava ao quarto.

–– E é por isso batizou toda a pesquisa de códex mikhae. Hoje iremos virar a noite verificando um lote de documentos lacrados que acabamos de encontrar, perdido... Se não encontrarmos nada, ainda temos alguns depósitos externos...

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Ele parou petrificado, suando frio, já vira o nome duas vezes em seus sonhos. E isso doía.

Mais tarde os dois índios de pouca roupa cruzavam o subsolo

do museu do Louvre refletindo a luz difusa que escapava de algumas portas. A iluminação, bem disposta, engrandecia as antigas fundações de pedra do castelo do Louvre que foram escavadas durante as últimas reformas. Só pararam quando os guardas pretorianos inclinaram suas lanças douradas cerrando a passagem ao gabinete do professor Marc Bernis. De magnífica vestimenta encouraçada, a lorica segmentata, os soldados indiferentes a quem quer que fosse, recuaram seus pilos ao sinal do olhar amedrontador do sábio índio gordo –– pois que era rechonchudo sim.

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9

o mensageiro de jeanne.

Fria alvorada de quase-inverno estava decorada de

neve. Telhados se vestiram de branco pela primeira vez emanando, de suas chaminés, o calor que faltava à cena. Aos poucos o Natal se mostrava nas pequenas luzes e decorações laboriosas de festejos antecipados.

Descontroladamente, Bernis e Sarah ainda trabalhavam mergulhados em meio à papelada empilhada, na esperança de que brotasse alguma informação relacionada ao documento mikhae, sem que percebessem que já amanhecera. A longa busca transcorreu infrutífera, vasculharam, em todos os museus e colecionadores particulares que tinham descobertos, pelo resto do pergaminho declarado pelo professor Hodgson-Crookes. Quase um mês de procura e nenhuma pista palpável.

Sarah descobrira que o professor Bernis, ou melhor, Marc, era tão obstinado quanto ela. Desde o primeiro momento não perderam mais do que uma hora para estarem trabalhando em sintonia. Sarah nem se preocupou em esclarecer o currículo enviado por Joshua. Era uma simbiose quase perfeita. Porém para por aí. Sarah e Bernis tinham temperamentos independentes e brigavam sempre, tentando impor os seus pontos de vista. O bom é que as coisas acabavam se encontrando em algum período do processo e nem pensem que os dois...

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Enfim, tentavam descobrir uma razão para que o manuscrito fosse tão importante quanto à ideia que assolava suas mentes. Dezenas de hipóteses, algumas absurdas. Mas ainda existiam as plausíveis, que contavam até então com vinte e sete suposições não descartáveis. Entretanto havia uma em que o próprio professor Hodgson-Crookes acreditava e concordaram em seguir em frente, por mais absurda que ela fosse, pelo menos até que o segundo documento confirmasse ou desfizesse as suspeitas. Isto ganhou maior força quando souberam que o professor William havia desaparecido, sumido, escafedido, evaporado mesmo.

–– Onde foi que erramos! –– desabou Bernis numa poltrona folheada de papéis esverdeados. –– Não tem vestígio, como é possível? Nenhuma escavação passa incólume nesta cidade.

A claridade fraca dos abajures fora substituída pelo sistema automático do museu que se ativava logo cedo, logo que os primeiros funcionários chegavam.

–– Deixamos escapar algo, e depois você ainda não está bem o suficiente para trabalhar. As costelas ainda devem te incomodar muito. –– completou Sarah, arrumando toda a papelada que conseguiram reunir sobre manuscritos antigos existentes, todos que foram catalogados. Principalmente sobre as escavações de 1890 realizadas nas proximidades da rua Gay-Lussac, dentro do triângulo formado pela Escola de Medicina, as Termas de Cluny e a rua Monsieur Le Prince.

Marc olhava com curiosidade as anotações de Sarah em cartões de resumo. Organizava-os conforme o local de pesquisa e, às vezes, incluía discreto título avermelhado em letra miúda. Ela dizia que era uma intuição e não custava nada anotá-los. Sempre serviam de alguma coisa.

Ambos concordaram em dormir, tirar uma boa soneca, e voltar logo após o almoço, de cabeça fresca para avaliar o calhamaço de papel impresso nos últimos dias. E atrás disso, caixas de documentos antigos retirados do arquivo do Louvre, amontoados como uma pequena parede instável. Com exceção de uma única caixa solta sobre a mesa e que não encaixava em qualquer monte. Voilà, seria a primeira.

Talvez Bernis tentasse dormir mais tarde, entretanto preferia caminhar pelo Quartier Latin, entre as barracas coloridas de especiarias da rua Mouffetard, sentando-se num bazaar qualquer

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para degustar um chá de menta fortíssimo. Espairecer era um bom remédio. Adorava dar essas caminhadas, nunca lhe faltava tempo para fuçar as lojas de antiguidades atrás de raridades ocultas; como uma série de mapas impressionantes dos subterrâneos de Paris que acabara descobrindo sendo usados como papel de embrulho.

Alguns iam dormir, porém a cidade acordava. Os garotos se

camuflaram em seus casacos tentando espantar o frio e com dificuldade atravessar uns trinta centímetros de neve acumulada durante a madrugada.

Entretanto Sean tinha várias preocupações em que se concentrar e Tiago não ajudava muito perguntando sem parar, a toda hora, qualquer coisa que lhe viesse à mente.

–– Ainda não entendi. Você está dizendo que o Matt também vê... fantasmas! Não pode ser, como ele iria esconder por tanto tempo. Nunca o peguei conversando sozinho.

–– Por acaso você já foi até aquele hangar fechado? –– perguntando por perguntar, com a expressão de quem estava dizendo que não aguentava falar mais nisso.

Tiago pensou pouco. –– Sim, e a única coisa estranha era que ele vivia falando com o... –– se tocando da asneira que ia dizer. –– Entendi, era o aviador e não o avião!

Batia a mão na cabeça mostrando quão cego fora. Foram interrompidos pelo celular do Tiago que tremia e

tocava uma música horrorosa e estridente tentando fugir da mochila. Todo iluminado e brilhante ele só parou de berrar depois que Tiago apertou uns botões. –– Alô... mãe. –– fazendo cara de nojo e resmungando. –– Sim, pode deixar que eu o aviso.

–– Era para você. –– fungou Tiago –– Mateus pediu para dizer que nevou –– de novo ––, portanto não tem voos. Certo?

O amigo dignou-se a responder –– Acho que compreendi, muito oportuna esta nevasca. Estou bravo porque ele bem poderia ter me dito o que eu estava enfrentando.

–– Vocês dois não tem nada melhor para fazer? –– resmungava Lucas que se distraiu escorregando no gelo. Joshua não conseguiu evitar e soltou uma gargalhada que o enfureceu. Pois além de não conseguir escutar o que os pirralhos fofocavam, ainda serviu de palhaço para o pestinha. Em monossílabos

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abafados finalizou seus resmungos com um simples –– Calem a boca!

Esperando que o dia seguisse normalmente, exceto pela neve

antecipada pelas ditas distorções climáticas, o relógio correu tranquilo. Quando soou o sinal, os garotos correram velozes, retornando às suas casas. Tiago e Sean aguardavam Lucas sair da classe. Como sempre, encostados à marquise principal de acesso ao colégio, aguardavam para ir buscar o Joshua.

–– O que você vai fazer agora? –– Não sei. –– disse Sean. –– Vou deixar como está, se piorar

eu penso em algo. –– Sei não, veja o Mateus. Todo esse tempo fingindo. ––

respirando antes de prosseguir. –– Ele não está bem! Eu o conheço, ele não era assim... tão sério.

–– É impressão sua, esquece tudo. –– tentando se enganar. Sabia muito bem o quanto estas esquisitices atrapalhavam. Não dava para fingir por muito tempo sem errar uma vez ou outra. Depois, ainda tem algo sobre um mikhae, que ele calcula se conta ou não para o amigo.

–– Esquecer tudo?! E eu nem vi esse tudo... Inesperadamente, todos que fugiam, pararam. Dobrava a esquina um caminhão imenso, branco, todo

preenchido de nada. Rugia estrondosamente quando resolveu estacionar –– como pôde –– perto do colégio onde estavam.

Com um suspiro o bicho aquietou-se. Soprava uma nuvem que dava ao monstro ares de disco

voador. E cheirava a óleo queimado. –– O que será isso, caramba! –– olhava Tiago para o alto. A

porta se abriu e de dentro, vestindo algo como um terno puído, apareceu o senhor Patrick Fox. Sorria de orelha a orelha quando saltou o último degrau declarando –– E aí, filho, gostou? Voltei à ativa.

Era impressionante como certos pais não se dão conta da vergonha que fazem seus filhos passarem. Não teve quem não visse Sean embarcando naquele trambolho gigantesco que impedia a passagem dos outros automóveis que buzinavam insistentes. O poderoso Kamaz, todo branco, a quase metro e meio

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dos meros mortais, zumbia movido pelo turbodiesel de seus 240 cavalos emparelhados.

Sean se despediu de Tiago que ficara com a boca escancarada. Logo depois era o pequeno Joshua que reinterpretava a cena correndo aos braços de seu pai. –– Ainda bem que você cumpriu a promessa! –– saltando para alcançar o primeiro degrau.

–– Eu disse para o papai que no dia que ele trouxesse o caminhão viesse nos buscar, não achou legal, Sean?! –– sorrindo zombeteiro. Só podia ser coisa dele. Sean agachou-se um pouco mais, emburrado, com aquele seu jeito de ombros jogados. –– No way! –– Naquele momento só não queria chamar mais atenção para si.

Patrick ainda não se sentia confortável perto do filho, havia um misto de remorso e deixa-pra-lá que amarrava qualquer tentativa de travar uma conversa. Ele podia ser pai, mas não tinha muito tato com criança. Para ele, Joshua era um brinquedo e Sean estava numa posição difícil de determinar: a adolescência é muito complexa e Patrick preferia esperar a mudança de estágio; naturalmente estava mais familiarizado com motores do que com seres vivos.

Imperceptivelmente rumavam em direção diversa daquela que os levariam à sua casa. Quando Sean dera conta de que estavam na rua de Rivoli, já era tarde, teria que ficar atento, pois estava muito perto de esbarrar no tal do acidentado senhor Bernis.

A rua de Rivoli assemelhava-se a um corredor de edifícios históricos, com tantos detalhes que acabavam se parecendo entre si. Não era à toa que o Louvre se situasse neste labirinto de ruas movimentadas do centro da cidade de Paris; todo governante, seja imperador ou rei, insistiam em expandir as cidades desde o castelo, que passava a ser palácio e enfim, o museu.

–– Preciso ficar atento! –– murmurava. Bastava não sair do caminhão e torcer para que o senhor Bernis não viesse fazer uma rápida visita ao mamute de rodas. Sean havia conseguido o impossível de se manter distante por tempo demais. De qualquer forma ia ser muito breve, não encontravam vagas para estacionar. Nunca encontrariam.

–– Vão! Desçam vocês dois e chamem sua mãe. Ficarei dando voltas. –– aconteceu o que Sean mais temia, a opção número três, aquela que nem queria cogitar. Joshua desapareceu tão logo Sean

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lançou-o à calçada. A fila atrás do mamute devia ser visível do espaço, isso porque Sean não queria despertar olhares estranhos; nem de vivos, nem de mortos.

Acumulados de neve cingiam o museu, dificultando a circulação dos parisienses. A impressão que dava era de que os edifícios dourados haviam brotado em meio à neve imaculada que acabava de cair. Sarah gostava de contar que tinham decorado o bolo com muito açúcar de confeiteiro.

E sobre estes montes alvos o Louvre estava sendo vigiado por homens encapados e posicionados, equidistantes, tal como estacas, por todo o perímetro. Na verdade se pareciam mais com dedos brancos que agarram o prédio. Os guardas não expressavam nenhuma emoção e se mantinham de braços cruzados apertando a baioneta erguida contra o ombro esquerdo. Além da arma só se destacava o elmo emplumado com uma grande crina negra que descia pelas costas e estava presa à cabeça pelas alças metálicas que partiam da aba ao queixo –– e a expressão sisuda rematava a alegoria um pouco antiquada, pensou Sean. Eles não se moviam, dava até para assustar, criancinhas, é claro.

Antes de cruzar com o soldado, Sean observou que os seus olhos o seguiam, de esguelha, sem movimentar o corpo. Um arrepio na espinha indicava que ele não estava realmente lá, contudo descartou a hipótese assim que percebeu, por entre a capa esvoaçante, que o homem levava preso à cintura uma pistola automática e um walkie talkie.

Entraram por uma porta discreta, com uns seis metros por oito, de uso exclusivo de todos, apresentando-se ao segurança de plantão que não demorou senão alguns segundos para entregar os crachás. –– Subsolo, Louvre Medieval, direita, Departamento de Pesquisa e Documentação. Dúvidas, pergunte aos guardas. –– acenando o elevador mais próximo com a mão distendida.

Funcionários atarefados ajustavam os banners para uma nova exposição sobre o egípcio Zodíaco de Dendera. Outro arrepio impedia-o de tirar os olhos da placa pétrea. Seguiu adiante, automaticamente levado por Joshua para dentro do elevador.

Sean já suava frio e percebeu que não dava para disfarçar vendo-se no espelho. Seu estômago dava voltas de ansiedade. Joshua estava indócil e todo o momento virava os olhos e dava uma risadinha suspeita para o irmão. Mas o que será que ele está

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tramando? Não é possível que ele saiba algo. Alguma coisa estava cheirando mal e o guri sabia. Arriscou.

–– Hei, Jox. Fala logo o que está acontecendo! –– tentando algo diferente e estúpido para cima de alguém com seis anos.

–– Nada demais, mano. Mas hoje você vai ver aquele homem que espetou no metrô, não é? Dói agulha? –– era uma pergunta ou uma confirmação?

–– Heim?! Como você sabe... –– Sean não teve tempo de sondar, a parede se abriu e o garoto escorregou tão rápido que nem a reação de agarrá-lo pelo colarinho fora tentada. Não iria se preocupar.

Tateou os olhos pelo corredor buscando perceber a presença de mais alguém antes de chegar ao gabinete. Era o setor do Louvre Medieval, e as armaduras deixavam Sean nervoso. Estava silencioso e a luz mortiça dos spots não permitia ver através dos vidros foscos que compunham os variados departamentos e gabinetes de administração e pesquisa do museu. A porta estava descerrada.

Deparou-se com uma sala quieta, com muitos papéis jogados, alguns vazavam da pequena lixeira metálica. Porém, o que mais se destacava era uma área vazia sobre a mesa com um único papel clareado pelo foco de um abajur. Foi se aproximando, passo ante passo, cauteloso, esticando a cabeça para ver do que se tratava. Mordiscava os lábios freneticamente.

Estava de ponta-cabeça, mas dava para ver que era antigo, pois estava amarelo e corroído nas margens. Não dava para entender o que estava escrito. Deu a volta na mesa para não mexer no documento e antes que pudesse terminar o exame ouviu vozes baixas e sussurrantes de um ponto logo atrás de sua cabeça.

Sean já se imaginava surpreendido pelo cara do metrô, o mesmo no qual ele botara um metal no coração; o que não correspondia à verdade. Suavemente girou os calcanhares e para a sua surpresa eram dois índios, novamente. Eles estavam numa posse incomum, quase como uma gangue examinando sua vítima, de braços cruzados, fazendo caras e caretas. O maior deles estirou a mão direita em riste e disse simplesmente: –– Hau! –– pensou em dizer Cara Pálida, mas se conteve.

Recuou com tamanha violência que deixou cair o abajur e alguns papéis de um arquivo encarquilhado. Continuava se

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afastando de costas, procurando se desvencilhar daquela situação constrangedora. De modo repentino, uma mão lhe agarra o ombro estancando sua fuga. Grita assustado.

–– Me larga! –– sendo puxado pelos ombros para ficar de frente com o responsável pela captura.

–– Mas é você, que está fazendo aqui?! –– Bernis não sabia como reagir ao encontro e por mais que firmasse as mãos ainda se encontrava fraco, deixando o garoto escapulir pelos dedos, que mais do que rápido se agachou e passou por baixo da bancada correndo para fora.

Já ia dando o alerta aos guardas quando Sarah, perplexa, clamava ao seu filho. –– Sean, espera!

–– O que aconteceu com ele? –– o rapaz aquietou sentando-se numa cadeira que acabava de erguer. Revidou a pergunta com um balançar de ombros. Pensava na coincidência. O garoto que lhe salvou a vida era nada menos que o filho mais velho de sua associada. E por que ele fugiu?

Agora sabia onde encontrá-lo. Apontando seu olhar para o chão de seu escritório, as folhas

emboloradas, formavam um tapete. De longe ele viu a resposta aos seus problemas em letras grandes de um garrancho suportável.

Descontrolado e apavorado Sean só percebeu onde estava

quando enxugou as lágrimas de raiva que brotavam por sentir-se tão estúpido. Havia escapado próximo de onde entrara, na rua de Rivoli, em frente do Palais Royal, uma clareira na floresta de prédios. Não ia voltar assim.

Sentou-se num banco limpo da praça, se escondendo como pôde por entre os galhos secos e esbranquiçados das árvores.

Girava o olhar tentando fugir de quem quer que fosse. Não estava com ânimo para explicar o que aconteceu. –– Tá bom, eu te operei porque alguns fantasmas legais me ajudaram, mas você deve se preocupar é com os dois índios na sua sala! –– não dava para acreditar mesmo.

Uma sombra o assustou, aumentando o desconforto, toda a tensão se transformava em uma pungente dor de cabeça. Quando ergueu a cabeça reparou que não era o senhor Bernis, nem seus pais.

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O cavalariano e seu cavalo observavam impassíveis. O frio intenso criava uma névoa que turbilhonava a cada movimento lerdo do animal. De repente ele relinchou e o cavaleiro ergueu firme a lança com seu estandarte tremulando, ao mesmo tempo em que fremia os calcanhares contra o ventre do cavalo.

Avançou desvairadamente aonde Sean se encontrava. Reagiu depois de segundos congelado de susto. Tentou fugir,

mas escorregou. Tentava correr meio caído à neve solta quando enxergou um acesso para o metropolitano a poucos metros. Lá um cavalo não poderia entrar, estaria a salvo. Saltou os degraus e resfolegando fechou a porta de vidro com violência antes de se deixar cair no saguão luminoso e asséptico que o protegia. Bufava a pleno pulmões.

Com os olhos bem abertos não acreditou quando os dois resolveram descer os mesmos degraus. Empurrou-se na direção das catracas de ingresso às plataformas subterrâneas, sendo engolido pelas passagens secundárias que nasciam do fundo da terra. Corria a toda pressa pelos corredores, seguindo a esmo a sinalização áurica.

Estava seguro. A estação estava curiosamente vazia, muda. O que se refletia

num mau presságio. Ainda derrapou muito perto de cair nos trilhos, antes de se acalmar de pé. Estava tudo muito brilhante e limpo. Respirava longos haustos de ar morno, curvado com as mãos sobre os joelhos.

Passos surgiram. Depois um leve trotar de casco contra o piso. Não podia estar acontecendo. Sean estava a meio caminho de escapulir, no final do cais, aguardando o metrô estacionar para sair dali. O som metálico característico nascia no fundo do túnel escuro, era questão de tempo.

O cavalo apareceu, seguido do cavaleiro que não parecia contente, sua armadura tilintava. Uma rajada de neve preencheu a câmara de friagem. Vinham balançando-se suaves e decididos.

O metrô se aproximava inexoravelmente. O cavalariano idem. O guerreiro fincou a lança à sela e desembainhou a espada,

brandindo-a em movimentos verticais como se estivesse sentindo a arma pela primeira vez. Olhava-a demoradamente, o brilho das

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luzes que eram refletidas no aço o hipnotizava. Ajeitou-a na bainha.

Sua armadura era ornamentada por pequenos arabescos e frisos dourados que emoldurava pássaros místicos. As placas se chocavam, o couro rangia e a cota de malha chiava no mesmo ritmo da respiração do enorme cavalo.

A uns poucos metros o homem saltou do animal tremendo a couraça metálica e sacou a espada com força, chocando metal contra metal. Sua túnica ainda mostrava a mesma cruz rubra que flamulava ao vento soprado pelo deslocamento de ar e, aquele mesmo olhar insensível emergia das sombras do visor do seu elmo afunilado.

O garoto tropeçou e caiu de costas, afastando-se por instinto, com uma pressa desordenada, firmando os calcanhares e se projetando para longe ainda de costas.

O trem abriu automaticamente suas portas fazendo com que Sean se jogasse no seu interior com tamanha impetuosidade que alguns passageiros olharam para fora para ver o que acontecia.

Com um sopro pneumático ela voltou a se fechar. O metrô não saia. E a porta abriu-se pela segunda vez, devagar e chiando através

de uma fumaça embranquecida. Surgiu o elmo resplandecente, depois uma perna e uma espada empunhada. Em seguida, preso pelas rédeas, o cavalo invadia o transporte. A esta altura Sean se espremia contra a outra porta apavorado, o tempo parou. Ele ergueu a arma tão rápido que só percebeu a investida quando a ponta ficou estirada diante de seu rosto. O cavaleiro ajoelhou-se fincando firme a arma ricamente adornada. O punho ornamentado e os relevos da couraça mostravam a riqueza do traje do cavaleiro. As manoplas blindadas retesaram-se. Entre a couraça o couro estirava. A perna dobrada mostrava o coxote, a greva, a polaina e a bota pesada que partiria um pescoço. Retirou vagarosamente o elmo deixando aparecer seu rosto.

Era jovem, devia ter uns dezoito anos, se fosse vivo. Os cabelos desarrumados e castanhos deram lugar a um rosto que desconcertou Sean, reação estranha da que previra, parecia conhecê-lo. Lembrava alguém, mas quem? A cicatriz marcava uma vertical que passava pelo olho direito que piscou.

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Falou pela primeira vez. –– Sou o Mensageiro de Jeanne. –– sorriu plácido e recuou

olhando diretamente nos olhos, deixando o metrô sacolejar ganhando velocidade.

–– Tome o manuscrito e... –– dito antes de estar fora de alcance. Sopradas em sua mente.

As luzes dançavam reduzindo ritmicamente o tempo em que se demoravam a aparecerem, sempre, correndo às janelas. –– Próxima estação, Pont Neuf. –– declarava a voz inexpressiva do sistema de comunicação.

Sean relaxou ajoelhado no piso, meio zonzo esfregava a testa enquanto os demais passageiros evitavam encarar a cena. Contrafeitos quando algo foge aos padrões. Quietos, pois não lhes diziam respeito. Com exceção de um passageiro, que se encolheu evitando olhá-lo, puxando o capacete para baixo.

Antes que a espada presa se dissipasse como fumo, viu talhado em romano, mil e quinhentos e cinquenta, desaparecendo no ar como um filete de luz que se evaporou por completo.

Desceu na outra estação. Uma vez em céu aberto respirou fundo e se meteu entre a

pequena multidão que raspava a ponta da Ilha de la Cité para alcançar a margem contrária do rio.

Resolveu-se por caminhar sem destino até que estivesse melhor, depois arranjaria uma desculpa qualquer. O cotovelo ainda doía com a queda durante a fuga. Atravessou o rio Sena procurando se abrigar nas ruelas mais escuras que encontrasse, rastejando pelo Quartier Latin. Recomeçava a nevar, desta vez o frio estava mais forte, forçando o ar do corpo a escapar em lufadas cada vez mais sólidas.

Já faltava pouco para chegar em casa, entregue em desculpas mil. Passara pela praça da Contrescarpe evitando um grupo de garotos baderneiros e descia paralelamente à Mouffe. Alguns postes se acendiam, pois anoitecia falsamente. Ninguém transitava por aquelas travessas escondidas por séculos de lendas. Eram pequenas e apertadas, sujas e os carros quase não conseguiam passar. Não queria pensar na perseguição, nunca mais iria dizer qualquer esquisitice que fosse, seu pai devia estar certo, para que

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sofrer. A partir daquele momento se decidira em fingir não ver, nem ouvir o que ninguém via ou ouvia –– não sabia se ia conseguir, mas tentaria.

Os blocos beges de prédios iam se fechando sobre a sua cabeça, restando apenas uma linha do céu cinzento para guiá-lo.

Pensava que estava só. –– O cara bem que estava certo! Rápido, vejam quem veio

levar uma surra hoje, galera! Aquela voz soou familiar. Não acreditava no seu azar,

ademais a rua era sem saída, para ele, pelo menos. Balançava a cabeça negando, não podia acreditar que estava acontecendo mais isso.

Sean havia reconhecido o Maurice, o Sapão e os dois outros que não queria nem lembrar. Havia chego ao fundo do poço; não tinha como escapar. Juntou toda a fúria e todo o ódio que tinha acumulado desde que as visões começaram a atrapalhar a sua vida e partiu para cima dos quatro. A covardia estava temporariamente relegada, considerando-se o breve curto-circuito nos neurônios.

Um verdadeiro massacre. As janelas iam se fechando insensíveis. O medo impedia os

bons de agirem, o mundo é dos maus. A tentativa fora frustrada pelos brutamontes que prenderam seus braços às costas. Mau franqueou o inimigo analisando o melhor golpe e, sem aviso, rompeu um soco na boca do estômago. Sean recuou dando de costas com a parede antes de desmoronar sobre as pernas bambas. Não haveria ganhador.

O segundo golpe atingiu-lhe a nuca, atrapalhando que se levantasse. Deu dois passos antes de estatelar no chão úmido. Depois vieram alguns chutes seguidos de xingamentos que já não conseguia entender. Virou-se de barriga para cima puxando o ar com dificuldade.

Ergueu-o pelo colarinho do casaco impingindo socos no rosto que se transformavam em lacerações avermelhadas. A jaqueta imunda estava ficando molhada de um líquido morno e pegajoso que escorria do canto da boca. Mas, mesmo assim, Sean sorria. A cada investida furiosa de Mau, Sean contrapunha com um sorriso que se transformava em gargalhada nervosa.

As lágrimas de dor se misturavam àquelas de riso.

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Finalmente estava livre dele, o medo. Uma preocupação a menos. Sean levou tantos socos, chutes, pontapés e empurrões quanto era possível suportar antes de desmaiar. Não tinha como se manter consciente, jogado para todos os lados.

Um homem em sua capa protetora olhava, observava apático, escorado numa das paredes adjacentes. Era o que fazia de melhor, olhar. Sempre via o pior e o melhor das pessoas. Ambas em momentos únicos, excepcionais. Estava sempre olhando por aí.

Sean repentinamente abriu a boca, arregalou os olhos e gritou sem parar. Eles não entendiam uma palavra.

Recuaram assustados, aqueles que ainda possuíam um pingo de compaixão.

–– Vamos dar o fora daqui, deixa esse gringo aí! –– Você tem certeza, Mau?! –– retrucaram os demais com

certa culpa na consciência. Maurice empurrou-os para fora da ruela, indignado. Compactuaram por serem fracos.

Caído, olhando através do olho inchado e entumecido, pôde vê-los se afastando. Tossia espasmodicamente, deixando um pouco de sangue escorrer em meio à saliva. A vista turva só permitia ver vultos. Um espectro que escutou seus gritos se aproximou acalmando-o.

Sean apagou cansado, ouvindo algo como. –– Ich bin hier. Mein Vater!

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o campo de guerra.

Surgiram em sua mente léguas e léguas de campos juncados de cadáveres de cristãos e mulçumanos. Eram mais de cinco mil seres humanos, em sua maioria cruzados, misturados a cavalos e mulas com os ventres abertos, carros destroçados, espadas, couraças, elmos, machados, partazanas e alabardas, bandeiras e flâmulas rasgadas e empapadas de sangue coalhado, em meio a membros decepados e crânios fendidos.

Seu corpo doía, o peito doía, as pernas doíam, mas estava vivo –– porque se sentia vivo. Parecia estar tombado num lodaçal nas margens de largo rio, entre os juncos que balançavam naqueles primeiros clarões do dia. Os sons eram quase que completamente dos pássaros que cantavam e das plantas que farfalhavam junto à correnteza das águas barrentas. Ainda sentia o cheiro da morte. Queria se mexer, mas havia sido espancado. Ouviu-se então ruídos de passos em sua direção, o coração disparou. Pensava: –– Que seja rápido. –– Já não suportava a dor.

Um rosto barbado nasceu afastando os ramos mais altos do junco. Era um moço pobre, de feições pacíficas, usando como roupa uma túnica rasgada presa por corda desgastada à cintura. Gesticulou chamando alguém.

–– Venha Bernardo, pelo menos um poderemos salvar. Adormecera. Mais tarde ele fora desperto pelo senhor que o encontrara,

muito magro e barba por fazer, e ouvira chamando-o: –– Irmão

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Francesco, conhece o pobre irmão? –– em resposta –– Mais do que ele pensa!

O que ele queria dizer com aquilo? Neste instante entregou algo a Francesco. E disse devagar: –– Guarde-o para mim, por favor! –– a voz estava diferente, rouca e pesada.

Sean lutava na cama com o lençol empapado de suor. O velho

que o socorrera procurava acalmá-lo com compressas de água fria. Carinhosamente afagava seus cabelos molhados.

Tiago havia chego a pouco, alertado pelo senhor que fuçara em tudo, deparando-se com o número do telefone num papel amarrotado no fundo da mochila. –– Ele não está bem, não seria melhor levá-lo ao hospital?

–– Rapaz, você acha que devemos! –– piscando um olho. –– É. Não acho uma boa ideia. –– devido às palavras

incoerentes que Sean berrava e ele não conseguia entender. Provavelmente Sean agradeceria se mais ninguém soubesse. Durante este tempo o sonho se intensificou, Sean se confundia com o soldado ferido em seu pesadelo.

As mãos cobertas de panos insistiam em sangrar. Irmão

Francesco se aproximou com um pote d’água. Sabia que a morte se aproximava, não havia nada que pudessem fazer.

O dia alcançava o ponto médio e o calor se fazia insuportável até mesmo sobre a copa de árvore frondosa. Desmaiara enfraquecido enquanto recordava a noite passada que falava dos acontecimentos agourentos. E do silêncio seguido do canto lamurioso da ave noturna que prenunciava a batalha que Allan não pôde presenciar nem oferecer sua ajuda como esculápio de campanha.

Ato contínuo recordava-se dos eventos que culminaram em seu desterro. Tudo se iniciou quando entrou em uma das tendas e notou alguém terminando o mesmo pergaminho enrolado que fora entregue ao frade; trocaram gestos estranhos enquanto passava pelos medicamentos, reforçando as bandagens da mão direita para, em seguida, enrolar o mesmo papel dentro do manto.

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A luz bruxuleante das tochas o impedia de ver muito bem quando homens armados penetraram o sítio, desvairados. Correu como pôde para alcançar uma defesa. Os gritos ecoavam por todos os lados. Escondido, viu que o soldado empunhava uma cimitarra e que se preparava para golpear Raphael. O homem na maca era um amigo.

Pulou contra o homem, contra a sua vontade e agindo sob instinto de sobrevivência. Não pôde fazer muito. Com um só baque o infiel acertou-o na cabeça com o punho da espada, caindo desacordado. Allan não firmava a arma por causa da mão ferida e não pôde evitar que o oponente matasse seu amigo.

Max voltou trôpego e ofegante e seguiu absolutamente para o leito de enfermos onde o seu irmão, Raphael, deveria estar. Seus olhos estavam encarnados e sombrios. Não era possível divisar o seu rosto na escuridão das poucas tochas e nem os três relevos que dedos feridos tocaram em súplicas e pesar. Agarrou-o e puxou com violência enquanto as lágrimas de raiva corriam. Allan gesticulava a mão ferida mostrando o que lhe impediu a defesa, mas não adiantou. Max pegou uma lança de quatro gumes fincada no balcão e enfiou-a na mão sã.

–– Que tu e tais escritos improfícuos sejam consumidos no Inferno! –– Depois deixou que seus homens açoitassem-no e assim que caiu quase morto lançaram-no ao rio onde o religioso o descobriu semiconsciente.

Neste instante Tiago tentava soltar a mão dolorida que era

massacrada por um aperto descomunal, resmungava muito. Devagar voltava à consciência e ainda pôde escutar o irmão

Francesco falar antes que ele inexoravelmente morresse em seus braços: –– Eu guardarei o pergaminho que me confiastes e o depositarei sob a minha insígnia e o seu símbolo.

–– Que Deus esteja convosco, Sean. Acordou esbaforido gritando. –– Ele falou comigo! Não sabia onde se encontrava, quarto estranho que cheirava a

bolor. O papel de parede estava solto em vários pontos e a luz vinha de uma vela à cabeceira da cama que estava.

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–– Calma, garoto! Avisei os seus pais e logo mais estarão aqui. –– Voz rouca e tranquila que vinha do outro lado do catre, sentado ao pé. Não podia se mexer, tudo doía. Passou a mão no rosto e sentiu que o inchaço retrocedera.

Tiago avançara com ímpeto sobre o amigo. –– Você está bem! Que susto, cara!

–– Como você chegou aqui? Aliás, onde estou? –– olhava então para o homem que se aproximava devagar.

–– Quem é o senhor? E obrigado. –– Sean tentava se lembrar do que acontecera.

–– Sou Fabien Buchhand, e não precisa me agradecer, há muito tempo espero para quitar uma dívida. Nem me pergunte o que eu quis dizer com isto, criança. Agora descanse. Um dia te explicarei melhor. –– Ou pensa que termina aqui?

O velho senhor barbudo e grisalho que lembrava Papai Noel, meio gordinho e desconfiado, pois não parava de olhar para Sean. Retirou-se para buscar uma infusão que fazia e retornou com um bornal gasto e sujo que colocou à cabeceira.

Enquanto Sean e Tiago sorviam o chá quente, o senhor Buchhand começou a falar; falava sobre tudo, de sua infância, de sua pequena loja na esquina da rua Pot de Fer, de seu filho. Enfim, ambos se recuperavam das dores, uma física outra da alma. Em pouco tempo estavam tão familiarizados uns com os outros que poderiam se considerar uma família.

–– Não devem se demorar, logo seus pais chegarão, senhor Sean Fox! –– Sean reconheceu algo nas palavras. Mas o senhor Buchhand mudou o rumo da conversa para a mochila.

Lá fora, naquele canto da Mouffe com a Pot de Fer, um

espectro se avizinhava pela ruela que desemboca as portas do minguado edifício. Circulava por entre as colunatas de ferro do meio fio antes de se apoiar à fachada contraposta ao modesto prédio de esquina onde se situava a antiguíssima loja de coleções publicadas do senhor Buchhand. Trincava os dentes paralelamente aos passos mais firmes.

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–– Sabe, meu filho –– achando engraçado chamá-lo de filho, re-encetava. –– Bem, meu filho. Não precisa ter medo de nada, nem destes imbecis que te rodearam. E não estou falando somente dos que vi. Eu já tive preocupações parecidas que depois de algumas décadas parecem coisas de criança. Quando tinha mais ou menos a sua idade, durante a ocupação nazista, meus pais foram mortos. –– respirou calmo rememorando o passado como quem saboreia um chocolate.

–– Morávamos bem perto do conflito e assim não é impossível de imaginar que as coisas ficaram muito feias... Passei alguns meses escondido nos bosques, tentando fugir dos alemães.

Tiago ouvia atentamente e nem se lembrara que anoitecia. Fabien pigarreou, sacando um lenço, seus olhos se enchiam

de lágrimas. Continuou –– Um dia estava escondido num celeiro observando um campo militar quando ouvi disparos e gritos que não entendia. Aviões decolavam apressados. Um homem ferido corria em minha direção. Tive medo.

–– Te pegaram? –– atropelou-o Tiago. –– Mais ou menos. Desci para fugir, mas era tarde. A patrulha

avançou pelo outro lado do galpão ficando entre o soldado ferido e os guardas. Não tinham como errar, eu estaria morto antes mesmo de me lançar ao solo. –– Deixando os garotos em suspense. –– Então o moço correu e entrou na linha de tiro para me proteger como podia. Caímos quietos. –– Sean instintivamente pôs a mão no ombro.

–– Acho que depois de um tempo a patrulha se desinteressou e voltou para o acampamento. Havia outro fugitivo. Esgueirei-me para sair debaixo do corpo. Era mesmo um soldado alemão, além de medo, agora sentia raiva. Mas depois descobri que ele era uma boa pessoa.

–– Mas ele não morreu?! –– disse Tiago surpreso. –– Como você acha que eu sobrevivi tanto tempo, vivemos

anos juntos. Ocultados de franceses e alemães até quando pudemos. Após a guerra ele me adotou. Esta mochila foi dele. Fugiu do acampamento, pois não queria matar, era só um médico.

Pegou a mochila e soltou sobre os braços de Sean. –– Agora é sua para se lembrar que não devemos jamais ter medo de fazer o que é certo.

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Senhor Buchhand girou rumo à porta do quarto quando se lembrou de perguntar: –– Aliás, quem é Allan?

Neste minuto, bruscamente adentravam Patrick e Sarah Fox. Foi tudo tão rápido que Sean não teve como se desembaraçar do presente. Nem o pai de Sean teve audácia de ralhar vendo o estado do garoto. Não teve como disfarçar uma expressão de repúdio diante do que sobrara de Sean. Preferiram ficar quietos. Foram conversar noutra sala, deixando-o só.

–– Allan? Quem será este, agora! –– preocupado com o que pensou ter sonhado. Tiago se empanturrava de biscoitos, sorrindo de bochechas gordas com farelos caindo pela boca.

–– Mas o que aconteceu com você? Foi atropelado? –– aproveitou-se Tiago.

–– Amanhã eu te conto. Só queria poder dormir para sempre. –– E uma gargalhada alta explodiu quando ele se lembrou da cara de espanto do garoto estúpido que todos temiam. Exceto ele que chorava de rir ou de dor, a que fosse mais forte.

Tão logo o velho senhor Fabien sentou-se diante dos Fox, um enigmático e prolongado olhar fez com que Patrick e Sarah se confrontassem perdidos. O ambiente criado pelo compartimento abarrocado auxiliava que o tempo estagnasse.

–– Sinto muito pelo Sean. –– querendo se desculpar pelas esquisitices assíduas do filho.

–– Eu é quem devo me explicar, demorei demais para intervir na briga. Nem pensem que o garoto a provocou. –– quase ríspido com Patrick.

–– Acredito no senhor. –– Respondeu Sarah diante dos atropelos do marido.

O velhote não poderia fazer nada para convencer a ambos que Sean estava isento dos acontecimentos presentes e anteriores, nem que ele estava no lugar e momento primoroso para que as coincidências ganhassem mais fundamento. Tudo tinha um propósito.

–– Vocês não me conhecem, mas admito que conheço seu filho melhor do que ele mesmo. Deem-lhe uma chance para que ele mesmo descubra o que tanto procura dentro de si. –– Os Fox estavam pensando que ele se referia a um passado análogo que o identificava com o garoto, no entanto eles nem desconfiavam que este passado era completamente impensado. O senhor Buchhand

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jamais provocara esquisitices, muito menos vira um fantasma rondando o seu caminho.

Um bom tempo havia passado até que resolvessem partir. Sean acenou agradecido de dentro do carro. O velho Fabien

Buchhand sorria enquanto se afastavam. Esfregou as mãos como que as aquecendo e voltou para o prédiozinho que chamava de lar entre gracejos seguidos de uma ladainha que lembrava música.

Só parava para falar sozinho. Olhou firme para a esquina

adjacente, como se enxergasse através da parede. Aparentemente não havia ninguém.

–– O tempo está passando! –– para ouvidos moucos. Quando terminou de trancar a porta, levando o frio para fora,

resmungou sussurrante, cantando um pensamento em meio à cantarola descontraída.

–– Mas como você demorou, meu amigo! –– e voltava a ferir os ouvidos da vizinhança em alto som.

O dia do amanhã seria o mais impressionante de todos os anteriores e o feriado de Toussaint –– Todos os Santos –– terminaria com extraordinárias participações coletivas.

O moleque tinha mais coisas com que se preocupar, até

segunda ordem deixaria para fingir quando descobrisse o que estava realmente acontecendo. Algo não cheirava bem. É bem verdade que a mochila fedia a arenque defumado, queijo velho e meia suja.

Sean não venceu a curiosidade e deu uma espiadela dentro da sacola. Tiago ergueu as sobrancelhas de bisbilhotice. Mas só encontrou, entre vários trastes de guerra, um diário papudo e outras coisas sem importância. Em sua capa, em baixo-relevo, um anjo desgastado enfrentava o demônio negro.

Folheou-o, estava em alemão. Óbvio.

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quem são vocês?

No amanhecer imediato, após a campanha de lutas reais e imaginárias, o sol era o único que conseguia apoiar-se em Sean sem levantar imprecações. A dor latejava, não sabia bem onde, mas não importava o lugar, mas a intensidade.

O quarto clareava aos poucos quando Tiago se lançou adentro. –– Mas que raios aconteceu?! –– mais perplexo do que assustado pelo arroxeado do rosto do amigo. Recordava de tê-lo visto amassado, mas durante a noite as diferenças se fizeram extremas.

–– Tudo que você conseguir conceber e outras inacreditáveis. –– falou olhando para qualquer lugar, cansado destas coisas que os outros insistiam em achar incríveis e que eram mesmo horríveis. Ninguém gostaria de passar por isto, tinha certeza.

–– O pior dia de minha vida. –– reprimindo um riso. Tiago havia se jogado na cadeira sem perceber a mochila

desgastada, e cogitava o que Sean queria dizer com algo pior do que o incidente no metrô. –– Tá bom! Me engana. O que pode ser pior que aparecer em rede nacional rasgando o peito de um homem? –– querendo completar com um: já sei, ir para a escola só de cueca.

–– Encontrar-se com ele! Milhões de perguntas surgiram naquelas frações de segundos,

mas antes que ele pudesse escolher uma. –– Ele me reconheceu, mas não foi ele quem me preocupou.

Haviam dois índios sentados, acocorados, me vigiando ––

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suspirou ––, do espécime invisível para você e para a maioria. –– suspirou de novo.

–– Assim como o cavaleiro que me seguiu até o metrô, invisível, ele e também o cavalo. –– fungou o nariz.

Tiago acrescentou à narração –– Uau! Mentira, cara. E tinha mais. –– Então eu andei por aí e dei de cara com o Mau e mais três,

só para a coisa toda ficar justa. Desmaiei de tanto apanhar –– rindo sarcasticamente –– e acabei tendo outro pesadelo antes de acordar na casa de um homem que foi salvo por um soldado alemão da segunda guerra. Pode, e tudo isso num dia só!

–– Heim? Conta isso direito. –– Fazendo um gesto como se tivesse recebido mais informação do que a sua capacidade de assimilação. Sean resumiu de forma que não houvesse dúvidas, precisava de alguém que o ajudasse a entender tudo, não era a melhor opção, mas era a única disponível. E aquela que ainda acreditava nele.

A cada frase Sean parava para ver a reação estampada pelo amigo encolhido sobre a cadeira abalroada de roupa. Depois ficaram em silêncio, se encarando por algum tempo. As mentes de ambos trabalhavam arduamente buscando destrinchar alguma informação coerente. Um buscava por respostas o outro formulava mais perguntas. Em meio a este processo Sean parou e:

–– Lembrei de algo! –– recordando-se do senhor Bernis –– Será que o manuscrito que o ”homem de lata” pediu para encontrar era aquele sobre a escrivaninha do senhor Bernis?

O outro só escutava, tentando imaginar porque ainda se metia nestas enrascadas, havia prometido à senhora Fox e à senhora sua mãe que ficaria de olho em Sean, quase que em tempo integral. Senão! Não sabia se valia a pena, mas que era interessante, não podia negar.

Sean deixou as divagações em voz alta para lá e seguiu com a narrativa e detalhes picantes, se é que podemos chamar de picante, socos e pontapés na boca do estômago ou ser atacado por um fantasma encouraçado. Teriam muito mais para esclarecer, contudo Tiago tinha um compromisso e que desejava quebrar, mas não tinha como.

–– Para quem perguntar direi que você está doente.

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–– Nada disso, chega de mentir. Vamos ver se o cara consegue lidar com a situação. Aposto que ele vai ter uma surpresa. Tudo, para ele, gira em torno de sua celebridade. Sem plateia ele vai ficar louco de raiva. Pelo tamanho do seu ego, a queda vai ser estrondosa. Vamos ver se ele gosta disso. –– falava durante a despedida.

Ficaria sozinho, aparelhando o pensamento. –– Eu que não vou ficar por perto. –– dignou-se Tiago. Teve vários longos dias de repouso antes de decidir o que

fazer. Quando começasse novembro as aulas retornariam com a mesma e angustiante ansiedade. Ficava distraído vendo através da janela o pai lustrando o mamute da Sibéria meio ancorado no passeio público, para facilitar que os filhotes passassem. Evitavam se falar, mas quando era impossível se ignorarem, partiam para desculpas ridículas e escapavam de fininho.

Parava de nevar. O vento forte já havia secado a umidade excessiva. Estavam todos felizes; o pai com o patrocínio para o Paris-Dacar, o Joshua com os brinquedos da vez e sua mãe com a pesquisa. Precisava descobrir o que o manuscrito mikhae tinha a ver com ele, antes que o senhor Bernis resolvesse visitá-lo, e ele até teria uma boa desculpa, do tipo como está o doente?

Ergueu-se com sofreguidão. Tinha que tomar uma atitude imediata. Olhou rápido para o

diário do Buchhand e sentiu coragem para enfrentar os seus medos, um de cada vez, por ordem, é claro. –– Se ele conseguiu eu também posso. Será que eles estão lá, ainda? –– rastejou-se arqueado, vestindo um pijama largo, até a sala de jantar. Não era a mesma casa, mas hábitos raramente mudam.

E era verdade. –– Estávamos te esperando, curumim! Sean não podia acreditar que, em segundos, estaria arfando e

palpitando por entrar na sala de jantar, todos os dias passava por ela e coisa nenhuma. Nada de estranho. A mesa entulhada de papéis e livros que não se misturavam; num monte, material de pesquisa do museu, no outro –– desordenado ––, manuais de motores e tudo que fosse relacionado com porcas, parafusos e

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correias. Às vezes algumas peças de Lego espalhadas advertiam sobre um terceiro ocupante.

Alguns vasos postos sobre a bancada que separava as demais salas, várias fotografias –– sendo a maioria do Patrick nas suas corridas. Um raid no Saara Oriental, um Paris-Dacar com largada em Marrocos e mais uma infinidade de lugares em que, esporadicamente, Sarah aparecia descabelada, suja e mal humorada.

Tirando isso, só os índios. –– O que vocês fazem por aqui?! –– dito gaguejando e

tremendo nas pernas. Tentava a todo custo manter uma pose autoritária.

–– Eu sou Naxamuñaca. –– parou e repetiu de forma que Sean pudesse acertar quando precisasse chamá-lo –– acho que... hum... tio Xaxá seria melhor. E este é Guarini. Eu sou o protetor desta casa e ele é o guia do seu irmão, Jox. –– Sean não entendia direito que estes dois queriam dizer com esse papo de guia.

–– Anjos da Guarda. Espíritos. Alguns são mentores. Outros, bem poucos, arcanjos. Mas santo mesmo, quase nenhum. –– respondeu indignado para o moleque.

Guarini acercou-se sorrateiro de Sean, raspando sua lança. –– Nada, não queremos nada. Só estamos fazendo o que todos os outros guias fazem, ajudando os vivos até onde conseguimos. Como não interferimos na vida de ninguém, a escolha é caoticamente livre. Mas gostamos de assoprar alguns conselhos de vez em quando.

Não conseguia entender muito bem. Se eles protegiam, porque ele não se sentia à salvo. Novamente Naxamuñaca responde ao silêncio. –– Até onde é permitido, meu filho. Existem coisas que devem ser resolvidas por si só. –– buscando ouvir os pensamentos do curumim como quem lê um livro desconhecido e surpreendente. –– Mas nós protegemos! É que você ainda não compreende o que é realmente importante. A maioria jamais compreende.

–– E eu tenho algo a resolver com estes... mortos?! –– e pela primeira vez aceitou que as visões eram de pessoas bem mortas.

–– Hum. É. De forma resumida, é isto mesmo. –– Com todos eles? –– impressionado com a quantidade de

gente que viu nos últimos dias.

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–– Claro que não. Só alguns. O resto desconsidere. –– Desconsiderar? Guarini abriu a boca para acrescentar. –– Nem pense que

todos são guias. A grande maioria nem sequer sabe que está morto. Não é porque morremos que viramos santos.

Agora Sean analisa melhor o índio, não era muito mais velho do que ele e mesmo assim era, como eles mesmo disseram, guia do Joshua. –– Só pareço. –– redarguiu o indígena. Os dois estavam tensos e com aparente pressa.

–– O que eu tenho que fazer para acabar com isso? –– Você não pode acabar o que não começou. Mas lembre-se,

não nos aproximamos uns dos outros sem uma razão. Subitamente a porta do hall se abre com um estrondo e,

esbaforido, Tiago invade o cômodo distraindo Sean. Quando volta o rosto para os índios, eles já haviam

desaparecido. Tiago ainda respirava rápido tentando recuperar o fôlego enquanto tentava dizer algo entre cada respirada. Não dava para entender, porém ele já subia as escadas.

–– Lembrei que esqueci o celular. –– justificando-se. Quando Sean encontrou o telefone sobre a cômoda, viu uns

papéis amassados presos ao cordame de sua mochila escolar que retirou de uma só puxada e notou que eram documentos do Louvre que se embrenharam após a trombada com o senhor Bernis. Uma folha rabiscada e rasurada com um esboço traduzido do documento mikhae e assim que começou a lê-lo assustou-se com o acaso, era um pedaço do mesmo sonho angustiante que teve após o espancamento. As notas feitas em caligrafia destacada, na beirada do papel, não deixavam dúvidas de que em agosto de mil duzentos e dezenove aconteceu tudo aquilo. Primeiro uma premonição, agora uma recordação? De quem? Como?

–– Hei, Tiago, como é possível sonhar com algo que aconteceu há quase oitocentos anos?! –– caminhando até a janela embaçada que trepidava por causa do vento cortante.

Ele simplesmente não entendeu o que ele queria dizer, todavia sabia que alguma tinha acontecido, embora não tivesse lhe contado. Ainda.

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–– Vamos, conta logo. O que foi desta vez! –– não tão chocado, na realidade esperava que acontecesse sempre, a partir de agora.

–– Eu já vi tudo isto, precisamente como está descrito aqui. Até sei mais detalhes do que está nesta folha. Se isto é do Bernis...

–– Então é uma cópia do manuscrito –– continuou Tiago. –– Parecia que eu estava lá, como numa lembrança ruim à

beça. Tudo muito absurdo, juro que não consigo explicar. –– Como? –– jogando-se na cama do amigo, desistindo da

escola. –– Eu estava lá, oras. E não foi nada agradável, veja! ––

Lançando a fotocópia à cama, ao que Tiago avançou sedento. Não tinha muito, mas o suficiente para saber o que era. Sean ainda olhava para fora. Estava ficando mais frio, obrigando-o com que esfregasse a manga do casaco no vidro. Qual a razão para ter dado de cara com Bernis? Se tudo tinha um motivo, então ele só precisaria saber qual era.

Deslumbrado, Sean escutou ruídos vindo da rua, já terminara de clarear a vidraça. Soldados estavam posicionados diante de sua casa, enfileirados em grupos organizados, com fuzis postos de lado por uma larga alça branca. Eram baionetas longas que ultrapassavam mais de um metro.

Suas casacas escuras, de cauda bipartida, eram arrematadas por faixas claras que se cruzavam sobre o peito. As botas iam acima do joelho cobrindo as calças beges. Muitos botões dourados, dragonas e um chapéu bicorne coberto de enfeites e um penacho.

O pequeno batalhão se aparelhava para atacar. –– Vamos sair daqui, agora. Eles vão invadir. Tiago correu até a vidraça, espalmando mãos e rosto contra o

vidro. –– Não estou vendo nada. –– Mais um sinal de que deveriam fugir, ou não! Não ia arriscar.

Porém alguém viu Tiago esparramado na janela, num ângulo de onde não podia ser visto por Sean. Esse alguém estava espantado com o que descobriu. –– Recuem agora. Abandonar ataque –– fora bastante expressivo o comandante da invasão. O capitão saia de sua tenda, de onde acabava de esquematizar a investida com seus oficiais graduados, e obedeceu irritado.

–– Precisamos sair daqui. Mas para onde? –– declarou Tiago.

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–– Eu não sei –– verificando o sumiço repentino dos soldados. –– Eles sumiram, todos.

–– Que eles estão seguindo alguém, isto está claro. –– Mas nós não somos tão importantes assim?! –– esfregava o

queixo –– Não podem fazer nada! Estão mortos. –– Eu não, você! Eles estão atrás de você. –– arrematava

Tiago tirando o corpo fora. Ambos ficaram calados por um tempo. Foi Tiago quem sugeriu esquecer o assunto, por hora. Era o

momento de se depararem com Bernis, tête-à-tête. Sean conseguiu, no meio da tarde, com o apoio do amigo,

chegar ao museu. Não tiveram dificuldades de entrar fora do horário de visitação por causa dos vistos de Sean. Passaram pela luz artificial que emanava dos postes através da pirâmide de vidro, rumando para os laboratórios que ficavam além do setor do Louvre medieval. Naquele período, as luzes costumavam ser reduzidas, deixando alguns nichos fantasmagóricos. Todo aquele silêncio provocava mais nervosismo.

Com a boca seca, Sean tentava formular um meio de contar a verdade sem parecer louco, mas isso não era possível naquelas circunstâncias. Preferia ter a língua arrancada a ter que falar tais absurdos. E se o seu pai soubesse! Tsc, tsc.

Nenhuma pessoa, daquelas que ninguém deveria ver, cortou seu caminho. Nem os soldados dos casacos de cauda apareceram de sopetão para tirar proveito do ar sinistro que aquele buraco medieval emanava. Tiago se afligia por nada. Talvez a sua imaginação fosse bastante boa, porque as tais alusões de Sean não saiam de sua cabeça. Ser atacado por bárbaros! Ninguém merece.

Para maior angústia de ambos, o escritório de Bernis estava trancado. Agacharam rente à porta e esperaram. Dali não partiriam. Sentiam-se enterrados vivos, sem aberturas ou rotas de fuga. Algumas armaduras pareciam vigiar.

–– Aqui não deve acontecer nada, não é! –– conversava Tiago para se distrair. –– Museu é que nem igreja, terreno sagrado, não é! –– querendo acreditar.

–– Deixa de falar besteira, eles não são vampiros. –– É, mas eles não entram em qualquer lugar. –– E eu não vi os índios aqui mesmo?! –– já entediado.

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–– Sim, mas eles eram bons, não é! Ficaram em silêncio pensando no assunto sem que pudessem

chegar a uma conclusão. E se Tiago estivesse certo, eles estariam lá, fossem bons ou não. Por via das dúvidas ficaria de olhos bem abertos.

–– Eu não enxergo nada disso, mas pode ficar certo que também vou ficar com os meus olhos bem abertos. –– concluiu Tiago mexendo no celular que emitia um sinal absurdamente alto de que alguém o estava rastreando. Desligou-o rápido, esperando não ser localizado.

–– Deve ser a minha mãe querendo saber por onde ando. –– gemendo e chiando enquanto enfiava o aparelho no bolso.

O outro, com o mesmo ar enfadonho e debochado esticou a mão aberta empurrando o rosto do Tiago que se descontraiu rindo um pouco nervoso.

–– Vê se manera! –– pedindo silêncio ante a amargura de estarem num lugar arrepiante e ameaçador, sem viva alma nas proximidades. Talvez fosse melhor. Não demorou muito para que ouvissem passos. Para um era evidente que alguém se aproximava e bem podia ser o senhor Bernis. Entretanto, Sean arregalou olhos e aguçou ouvidos para que, antes de se assegurar, tivesse certeza de que verdadeiramente ouvia algo. –– Você está escutando isso?

–– Claro. Tá pensando que sou surdo... –– quando percebeu que poderia ser um fantasma, lembrou-se de que, se o fosse, não teria escutado nada.

A sombra de alguém chegando acelerado despertou um temor súbito. Apesar da pouca luz, as paredes do fosso do castelo do Louvre, num alaranjado lúgubre, refletiam sua silhueta gerando sombras gigantescas que o acompanhavam como um bando de comparsas sobrenaturais.

Firme e forte os dois se ajuntaram. –– Estava procurando os dois –– gritou a sombra que se

mostrara aos poucos, através da luz difusa. ––, preciso que me acompanhe, agora!

Mateus estava decidido e o ar de susto indicava que alguma coisa devia ter acontecido, senão ele não estaria tão na defensiva com olhares esquivos sobre os ombros. As mãos se contorciam de nervosismo.

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Sean percebeu que devia ser assunto bem específico, de preferência entre os dois somente. Ele não sabia que Tiago também sabia destes segredos. Fazia parte da amizade, mas será que ninguém desconfiava, nem mesmo Mateus?

–– Vou, mas antes me diga o que é! –– olhando assustado para Tiago, agora estava entendendo o silêncio de Mateus. –– Pode contar, seu irmão sabe de tudo.

Desta vez Mateus se sobressaltou com a revelação. –– Um ‘amigo’ seu me procurou e depois Jean apareceu

pedindo para irmos urgentemente até o aeroclube e... –– meio desconfiado do irmão que olhava como se ele fosse um bicho estranho.

–– Quem, Matt? –– Macaxumaca, ou algo assim. Gordo de tranças brancas.

Acho que era um tipo de índio ou coisa assim. Sabe de quem estou falando?

O ruído que surgiu das profundezas da galeria despertou a atenção de Sean do mesmo modo que de Mateus. Já Tiago nada percebeu. Os dois olharam firmes para Tiago. –– Por que estão me encarando? –– descobriram que os passos não eram audíveis senão aos pirados de plantão.

Lançaram-se ao fosso, encostado ao passadiço do museu que circundava a antiga muralha redescoberta, arremessando Tiago que parecia não entender o que estava acontecendo.

A galeria fora invadida abruptamente. Os homens de casaca rasgada e chapéu esquisito regressaram

com muitos outros. –– não façam prisioneiros. –– ordenou o comandante da invasão apontando, de seu corcel negro, seu sabre delgado ao céu sólido daquela cave.

Os soldados haviam ingressado, vasculhando cada aresta daquele departamento. Os três tentaram deslizar sob o passadiço, saindo do outro lado antes que imaginassem como correr para fora. Eles já estavam encurralados.

Estavam aprisionados por um mar de soldados. Estranhamente estavam mantendo posição de defesa de fora para dentro, como se estivessem se protegendo de alguma investida ferrenha, recuando, fugindo. A infantaria formada de carabineiros e granadeiros cercava a tropa de elite enquanto os soldados da terceira linha avançavam com seus mosquetes em

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mãos. No meio estava a cavalaria e os couraceiros, assim como a artilharia de canhões leves que apontavam para além dos carabineiros que se armavam preparando a munição com precisão. O capitão gritava. –– Por Napoleão, cerquem o castelo. –– em um confronto jamais ocorrido.

A agitação de soldados de infantaria vestindo variados uniformes, transitando entre a cavalaria impaciente, demonstrava ser uma tropa de assalto formada por diferentes soldados. Sean recuou amedrontado quando espiou pelo vão de madeira da passarela.

–– Estamos cercados. –– Ainda não estou vendo nada. –– Tiago tentava acalmar

Sean, entre um bocejo e outro. Neste instante um grupo investe para dentro do valo. O que

eles podem fazer? Resposta clara e curta. Mateus ascendeu rapidamente, erguendo os dois pelas mangas

de seus casacos embebidos de suor. Recuavam devagar quando as armaduras expostas começaram a se mexer, tremendo e se arrastando.

–– Isso eu estou vendo! –– rematou Tiago, durante o ataque de uma cadeira que voou sobre eles.

Uma série de badulaques bélicos se desprendeu dos expositores, caindo num amontoado de ferro, couro e tecido envelhecido diante deles. Tiago sentiu cansaço dobrando os joelhos sem aviso. –– Tô numa zonzeira!

A tralha ensurdecedora ergueu-se no ar distinguindo três cavaleiros encouraçados, disformes e maiores do que um homem, que avançavam com suas armas. Balouçando uma maça pontiaguda que resvalou na parede metálica arrancando faíscas. A armadura jogou-se para Mateus que fora salvo pelo empurrão de Sean, jogando-os por terra. A maça soltou-se da manopla e chocou-se contra um mostruário de espadas e floretes que voaram pelo corredor, espalhando-se.

Tiago apanhou uma que devia pesar mais do que um elefante; com dificuldade para levantá-la, usou-a como apoio para se erguer. O susto veio com a espada sendo arrancada pela acometida em arco, ligeira, de ombro a ombro, de outra arma

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pontiaguda. Sean pisou sobre a haste de uma espada menor, chutando-a para que Tiago se protegesse.

Esfregando o supercílio que sangrava, Mateus desviou de um golpe desferido por uma armadura montada, ao que se assemelhava a uma malha de cavalo. Então Tiago viu a lâmina deslizando para si, reagindo instintivamente.

Com uma forte pisada na extremidade aguçada da espada ele alçou o punho ao alcance de suas mãos. Como Lucas fazia com seu skate. Girou-a para o dorso, agarrando-a ao contrário. Amedrontado, premia o polegar à base desta empunhadura enquanto a lâmina surgia atrás de sua cabeça. Com outro giro atacou o metal, bombardeando espada, braços e peitoril do cavalariano de elmo emplumado. Violentamente rasgou o soldado em dois.

Surpreso, Tiago nem percebeu quando Mateus atirou um machado longo que fincou a cota de malha do cavalo à placa de aviso do museu. De alguma forma os cossacos controlavam a massa de ferro que os atacava. Distraidamente Sean buscava uma saída imprescindível, correndo os olhos por tudo, na esperança de que tivesse se esquecido de alguma outra alternativa de fuga. Precisava ganhar mais tempo para pensar.

Este lapso possibilitou que os soldados atacassem pela retaguarda. A porta do laboratório abriu-se de chofre, seguida da ofensiva de cadeiras e mesas que atingiram Mateus e Sean sem que pudessem reagir contra. A escrivaninha e outra cadeira prenderam Tiago contra a parede, deixando sua mão aberta apertada contra o encosto vazado do mobiliário.

Uma voz, inaudível para o garoto, apontava para que não o deixassem escapar. O homem que comandava o ataque, acima do próprio capitão, aproximou-se pela escuridão, olhando diretamente nos olhos de Tiago que nada percebeu tentando se desprender. Em seguida pousou os olhos na mão estendida.

–– Ele tem a marca do quadrelo. Tem que ser ele, desgraçado! –– recuou batendo os pés em surdos sons metálicos.

Toda a tropa recuou subitamente. Algo havia acontecido. Tiros e estouros ecoavam em meio aos gritos dos soldados que fugiam. Um brilho instantâneo e a fumaça revoluta de chispas alaranjadas advertiam um outro ataque. A guarda trocou o seu avanço pela defesa histérica da primeira linha atingida pelo

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clangor da batalha. Faíscas, de canhões invisíveis, e bolas de fumaça, varriam o batalhão hostil, anunciando uma contraofensiva que vinham abertamente pelo flanco direito da tropa. Explodiram em luta na bifurcação entre o medieval e o saguão da grande pirâmide. O ferro morria, despencando em uníssono.

Sean lutava para se levantar da pancada. Foi Tiago quem o acudiu –– Eles ainda estão por aqui? Ao longe, os vira-casacas partiam em fuga acelerada,

deixando alguns armamentos danificados para carregar companheiros feridos. Ele não conseguia entender como eles se machucavam ou morriam, pois já não estavam mortos?

Só então se lembrou de responder ao amigo. –– Não. –– Sumiram sem deixar rastros, senão os pedaços das armaduras esparramadas. –– O que eles queriam?

–– Eles devem querer o manuscrito que Bernis está procurando, o que mais seria?!

–– Pode ser. Preciso mesmo falar com o senhor Bernis, definitivamente. Apesar de que, para mim, eles aparentavam estar se protegendo. –– ajudando Mateus com seus olhos bem atentos ao redor da galeria abandonada.

Tiago ajudava. –– Tudo? Vai contar tudo? –– É tudo ou nada. Mateus retrucou –– Mas antes temos que sair daqui. Vamos

direto para o aeroclube descobrir logo o que eles querem. Depois vocês vão me dizer o que está acontecendo aqui. Que foi isso?

Os blocos do fosso haviam se deslocado, quebrando a uniformidade da muralha. A força desprendida fora incomensurável.

Tiago ainda pensava em como foi fácil manejar aquela espada, e estava bastante assustado com sua própria atitude. Sean parecia pensar o mesmo. Enquanto estava inconsciente teve mais uma visão que contaria quando tivessem mais calmos e com mais tempo para isso.

–– Posso ficar com... –– Nem pensar... apesar de que nunca vi alguém usando uma

espada como você! –– disse Mateus. –– Eu sei que já vi! –– complementou Sean.

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o conclave O PEQUENO PEUGEOT ainda ferido pelo acidente na

floresta acelerava pelo mesmo caminho desprezando violentamente as enormes poças d’água que se expandiam com a chuva teimosa. Já escurecia quando passaram pela Porta de la Chapelle que naquela ocasião deixava de ser uma relíquia medieval para constituir uma passagem sob o extenso cinturão periférico que resguardava Paris com uma muralha de veículos velozes.

Desde que, os três, abandonaram, secos, o estacionamento do museu, ninguém teve coragem de abrir a boca para comentar o que tinha acontecido. Mateus era claramente o mais atônito. Porém Sean queria saber o porquê de não falar a respeito dos fantasmas, já que ficara evidente que os via.

E a chuva, com raios e trovões, só aumentou o drama. Desapareciam as primeiras impressões do tumulto quando

Tiago admirava, deitado no banco traseiro, as fortes luzes de xenônio que bordejavam a autoestrada e que pareciam chuveiros de magma no negrume antecipado pelos cúmulos espessos. Para ele, as luminárias pareciam se cumprimentarem, curvando-se quando passavam.

Os poucos carros que cruzaram, piscavam seus faróis como se perguntassem –– De onde vocês vêm, está seco? E o limpador do para-brisa respondia –– não –– enfático e barulhento. Mas para onde eles iam a água abreviava o seu volume. Assim quando

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atravessaram Saint-Denis só o fulgor polido das edificações e o ar asseado lembravam-lhes que chovera.

–– Não acha estranho que a cidade esteja tão vazia! –– iniciou Mateus tratando de averiguar Sean.

–– Normal. Não vi nada de diferente. Só os soldados de hoje. Mateus mantinha o braço direito estendido sobre o volante,

pressionando a testa com a outra, tentando diluir o estresse. Não gostou que Sean tivesse se referido aos soldados.

–– Talvez para você. Mas antes de você mudar para cá a cidade estava inteiramente tomada por assombrações.

–– E como você sabia? –– As roupas, os diálogos, as atitudes... Viviam atravessando

paredes bem sólidas. Outros faziam coisas do qual nem quero me lembrar.

–– Passar no cemitério devia ser um caos. –– ria Sean, buscando descontrair.

–– Nem tanto. Pior era em bares e locais onde rolava drogas. Sean calou-se esperando que a conversa terminasse por ali. Ele estava em um estupor curioso e não desconfiou quando

Mateus errou o caminho saindo da estrada em Pierrefitte-sur-Seine, indo para oeste, rumo à floresta de Mont-Morency.

No entanto o desconforto pelo frio não passou desapercebido, fazendo com que Mateus girasse o aquecedor ao máximo.O carro ainda reagiu com uns socos, balançando engasgado ao pedido de mais gasolina. Estavam parando no acostamento. O aquecedor deu o seu último suspiro ardente.

–– Pane seca. –– dignou-se a comentar com os passageiros, socando a testa no volante como castigo.

–– Não pode ser, estamos sem gasolina! Mas você é um... –– Tiago nem experimentou dizer mais alguma coisa, já que viu o olhar ameaçador que Mateus lhe direcionou pelo espelho retrovisor. Sean se arrancou do veículo abrindo o porta-bagagem em seguida. –– Se vamos ficar por aqui que pelo menos possamos nos agasalhar. –– Espalhou para dentro o que achou, blusas, mantas, camisetas, calças, panos, enfim, tudo que pudesse servir de proteção ao frio ártico que se condensava diante de seus narizes.

Estranhamente não passava nenhum carro. O que era insólito para uma estrada um tanto movimentada. E por isso eles estavam

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desconfiados do silêncio que assoprava as árvores daquele vácuo urbano. Para todos os lados que avistassem, não notariam qualquer ponto de luz, fumaça ou sinal de vida. Naquele oceano verde, nenhum farol os guiaria.

–– Deve ter um posto de abastecimento logo em frente, talvez uns cinco quilômetros, se vocês quiserem esperar! –– Mateus esperou momentos cruciantes, receando que eles desistissem da proposta e não o escoltasse voluntariamente. Estava com receio de admitir que estava apavorado.

–– Nós vamos juntos. –– frisou Tiago, assustado pela mesma causa. Não queria ficar só. Apenas Sean não estava disposto a sair peregrinando por aí, após o que houve. Assistia olhares furtivos no meio dos arbustos, mesmo sendo a sua fantasia o atormentando, todavia não recusou a companhia dos dois.

Em sua cabeça tentava entender o que estava acontecendo. Havia uma armada que buscava algo; uma não, várias. O cavaleiro que pedia para achar um manuscrito. O manuscrito de Bernis, quem sabe. As palavras dos índios ainda repercutiam em seus ouvidos –– você não pode! ––, não podia acabar com o que estava lhe acontecendo.

–– Que confusão! –– ele pronunciou em voz alta. –– Qual?! –– assustou-se Mateus que se deteve de braços

afastados com o tonel vermelho na mão destra. Por mais que ele tentasse esconder o pavor, a transpiração de sua testa o contradizia.

O garoto retrucou desejando descarregar tudo o que estava entalado na sua garganta. –– Não quero mais. Por que não posso ter uma vida normal? Saindo com os meus amigos sem ter que desviar de uma assombração. Ah, não! Tinha que ser esquisito. E não bastava ver uma ou duas, agora são centenas! Ah, não mesmo! –– agitando a cabeça em ato contínuo.

Pisava apressado diante de Tiago e de Mateus, desatento a tudo, discorrendo alto e gesticulando como um alucinado. Às vezes estacava e olhava sério para o pessoal que deixava ele desabafar enquanto podia e ainda por cima onde podia fazer isso.

E ficaram assim por alguns quilômetros. Todavia a estrada se desvelou adiante num descampado que frustrou as suas expectativas, não havia nada até o horizonte tênue distinguido pelo reflexo da lua cheia. Desistiram.

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–– Pelo menos vamos avisar a mamãe. –– cutucou Tiago sabendo que Mateus odiaria ter que expor o ocorrido, estavam completa e totalmente perdidos.

Ela acreditou na mentira de que estavam no aeroclube e que repousariam por lá. Até certo ponto. Mateus não explicou o motivo, engasgou e se atrapalhou pensando em algo. –– Surpresa! –– pronto, o estrago fora feito.

Agora retornariam quarenta e sete minutos por onde vieram e deveriam topar com o carro. Deveriam, se não ficassem acuados de boca aberta enquanto Tiago já se afastava inocente.

Estático, de pé em meio à rodovia, um vulto de capacete de

guerra grego, lembrando os antigos e atléticos soldados da velha Hélade, os deteve. Meneou em silêncio por muito tempo e como não reagiam, sorriu. Decidiram acompanhar o guardião que não abria brecha para que passassem. Sean notara que usava botas e que pisava firme.

Tiago não percebia o que se passava, mas desconfiava que alguém havia se metido entre eles e, como não queria estorvar ficou quieto, o mais que conseguia ficar.

–– Os aguardávamos para o conclave. –– Como devo chamá-lo? –– perguntou-lhe no mesmo tom,

Mateus, antes de seguir. –– Holofernes, senhor. –– Holofernes? –– surpreendeu-se Sean. –– Sim, Holofernes! E vamos que está muito frio para

posídeon. Avançaram um renque de abetos deparando-se com uma

claridade homogênea que os cegou, com exceção de Tiago que tentava se livrar dos galhos mais baixos com dificuldade. Gemia melindrado.

Sean aproveitou o barulho para sussurrar algo com a mão encobrindo a boca para evitar chamar a atenção do grego –– o que é conclave? –– seguido de um gesto de ombros de Mateus que estava tão no escuro quanto ele.

–– Uma reunião para poucos. O que eu sei eu falo, o que não sei, me calo. –– contrapôs Holofernes que lhes conduzia para uma clareira apinhada de rochas extraordinárias, estavam dispostas num amplo anel vigiado por alguns guardiões trajados a Aquiles.

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Seus peitoris resplandeciam o metal prateado de que eram feitos, assim como espelhavam disformes, os contornos dos três.

Para adentrarem, atravessaram uma fileira de menires que Holofernes assinalou sob as vistas, admiradas, da diminuta guarda de elite. –– Sigam por aqui, estarão lhes esperando.

Tiago trespassou, com desleixo compreensível, Holofernes, que acenou aborrecido.

–– Para com isso! –– puxou Mateus. –– Mas o que eu fiz! –– Estamos entrando numa reunião cheia de gente... morta. Se

você não quiser fazer parte, fique bem quieto. –– completou Sean. Tiago encolheu os ombros anuindo com a cabeça.

Apesar de todo o caminho estar flanqueado por olhares vidrados e duros, o ponto de convergência estava tão sossegado e abandonado que não denotava a importância que lhe haviam dado.

Os garotos não estavam preocupados, pois que esperaram a sós por um tempo impreciso que lhes obrigaram a procurar abrigo do frio, improvisando uma fogueira. Eles estavam cansados demais para reagir de outra maneira que senão aguardar. Precisavam de respostas. O campo emanava lembranças de batalhas remotas, intuía-se uma suave melodia de levantes em sopros gauleses.

–– Que acha que eles querem conosco? –– frisava Sean ajeitando alguns gravetos ao alicerce da fogueira que levantava muita fumaça verde. Ninguém ousou responder. Holofernes não era de falar muito, ficando de pé com seu farolete à mão durante todo o tempo, inerte, sem aparente preocupação ou indagação.

Sean fora bisbilhoteiro depois de tanto e reconfortante silencio. –– Não sei ao certo. Mas as coisas parecem estar ficando mais claras.

–– As aparições? Desde quando? –– Não sei ao certo. –– reprisando-se. –– Agora que estou

vendo, o mundo está tão complicado... Antes que pudesse explicar suas considerações sobre um

admirável novo mundo, fora cortado por forte sopro que quase apagou o fogo em labaredas frias e cortantes. A escuridão limitada pelo alcance das chamas impedia-os de ver o invisível. Estavam cercados por rostos monocromáticos e curiosos como crianças que se abeiram com receio.

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Uma silhueta familiar se destacou caminhando sem ruído. Era Naxamuñaca que apontou circunspeto para se sentarem ao centro das megalíticas pedras. O prado se estendia como se fosse um prato gigantesco, deixando-os protegidos por uma fileira de altas árvores cônicas. Tiveram que se aconchegar na grama alta daquele pasto. Assim sendo os três se enrolaram nas cobertas e Tiago deitou-se, com o tanque vermelho por travesseiro, para esperar o fim, contando estrelas que às vezes se moviam para o seu espanto. As chamas bruxuleavam trazendo cores aos rostos mais achegados.

Tio Xaxá foi um dos que se assentaram, acocorados, perante eles. –– Estamos mortos, sim... hum. Mas que palavra feia. Para mim e para eles –– referindo-se aos outros –– estamos bem vivos.

Mateus deu a entender a Sean que: Por que você não pergunta quem são? –– Calma, eles sempre se apresentam, mas não sei do que isto adianta. Está vendo algum rosto conhecido? Você acha que eles possuem carta de recomendações... hã? –– sem receios.

–– Percebi que já não estão mais com temor dos espíritos. ––

referindo-se obviamente a Sean que desistira de recuar. Contudo faltava, para Mateus, algo que lhe fizesse entender a situação. Ele não costumava reagir às pressões exercidas, mas sim à compreensão dos fatos. Se fizessem sentido, mudaria seu estado de ânimo.

–– Dias-há que tentamos ajudá-los. Com algumas respostas esperamos que vocês possam nos devolver o favor. –– ponderou o ancião abrigado detrás do único dólmen daquele sítio druídico. O garoto se surpreendeu com a inquietação do inquiridor, será que nem eles sabiam o que estava acontecendo ali?

Os demais espíritos ficaram afastados, encobertos pela obscuridade da noite mostrando um perfil mortiço ao lado dos menires protetores.

–– Os soldados! Quem são? Os senhores se olharam acenando um sim síncrono. Naxamuñaca presidiu o conclave redarguindo. –– Os que

vocês viram hoje não passam de meros mercenários, e como tantos outros, originários das Cidades Baixas. Estes são aqueles que atuaram nas batalhas napoleônicas. Por séculos eles vagam

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buscando retratações, mas... hum, são ineficazes porque são muito orgulhosos e egoístas. Ou pelo menos eram ineficientes. Não precisamos fazer muito para impedi-los, vivem trocando as mãos pelos pés –– parou para respirar, mesmo morto. –– O que aconteceu hoje, jamais tinha acontecido. Hum. Conseguiram nos bloquear e ainda aprenderam a manipular os objetos com certa desenvoltura. Além de conseguirem interferir pesadamente... hum, no seu mundo.

–– Cidades Baixas?! Mas o que eles queriam? –– Mateus adiantou-se.

–– Não sabemos ao certo. Até então eles se preocupavam em incomodar antigos inimigos que estão do seu lado –– referindo-se ao mundo dos vivos de carne e osso –– para perseguí-los inescrupulosamente. Defendiam-se de nossas incursões que só serviam para auxiliar os seres recém libertos deste jugo, para tratamento moral. Estávamos preparados para qualquer ataque às nossas cidades, todavia nem eles sabem o que estão fazendo, o que acaba nos confundindo. –– desta vez esclareceu um druida de uns mil anos. –– São seres obviamente excluídos por causa de sua obstinação no mal e por haverem sido causa de perturbação no meio dos bons. Quando renascem são relegados, por algum tempo, entre os mais atrasados, que têm por incumbência fazê-los avançar. Por isso a Terra apresenta um dos tipos de mundo expiatórios onde há infinitas variações e servem de exílio aos espíritos rebeldes à lei do Alto. Mas mesmo assim eles nos surpreendem, às vezes.

Havia tanta coisa que Sean queria elucidar, no entanto ele se concentrou nos últimos acontecimentos. No semicírculo, afastado uns três metros, o senhor de túnica escura, um frade, continuava tão intrigado quanto ele. Mateus não sabia de tudo e só observava as reações da conversa. Tiago adormecera entediado com o solilóquio.

–– E o acidente no metrô, e este manuscrito! –– lembrou-se de repente, buscando encurralá-los. Eles estavam aparentemente irrequietos e pensavam muito antes de responder algo que lhes fossem comprometedor, mas também queriam saber o que acontecia lá fora. A floresta em torno do conclave também ficara precavida, inativa e silenciosa, aguardando a consequência desta

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assembleia. Os pirilampos dançavam no ritmo dos sons de grilos e silvos e zumbidos.

–– O acidente foi uma reparação de tempos anteriores entre você e Marc Bernis e que foge, no momento presente, ao nosso completo conhecimento... hum. Achamos, desconfiamos, que o manuscrito possa ter relação com este fato.

–– O que você quer dizer com tempos anteriores? –– Antes de renascerem agora, outras vezes já o perpetraram,

só não se recordam. É corriqueiro, apesar do que dizem por aí. Porém, neste caso, não temos como saber. –– frisou o druida que tornava o rosto para alguns dos espectros encobertos que lhe dirigiam instintivamente o colóquio.

–– Como não! –– gritou Sean –– Vocês não sabem tudo? Não cuidam de todos?

E calou-o –– Além de não podermos nos intrometer nas escolhas dos vivos. Também não sabemos quem é você!

Mateus estava desconfortável perante o bate-boca entre Sean e aquelas pessoas muito vivas, diga-se de passagem. O garoto não compreendia como não podiam saber quem eles foram, já que não podiam intervir e nem o queriam.

–– Hum. Você não nos compreendeu com o devido julgamento. Nós sabemos quem as pessoas foram com razoável facilidade, para dar alguns conselhos que... hum, condigam ao papel de um bom anjo da guarda. Só não sabemos quem você era ou é, o que preferir. –– respondendo ao pensamento.

Até Mateus silenciou-se na sua agonia de trazer novas dúvidas ao bate-boca, que ainda fervilhavam no seu cérebro apreensivo, ou melhor, talvez ele preferisse correr disparado dali.

–– O seu amigo, que está dormindo bem ao seu lado, sabemos que foi alguém dos mais inusitados que se tem notícia, por exemplo. –– assinalando para Tiago.

–– E por que comigo não, então? –– É o que queremos descobrir, oras. Porque é precisamente

você quem nos impede de descobrir. –– lamentou-se Naxamuñaca. Então era isso, um labirinto sem saída. Ou Sean descobre a

resposta por si mesmo ou fica no escuro. Como um cachorro correndo atrás de seu rabo. Por um tempo ficou embasbacado, sem reação, tão chocado que não conseguia raciocinar. Milhares de anjos e nenhum supostamente sabe o que está se passando?

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–– Somos responsáveis por muitos acontecimentos que considerariam como coincidências, sendo que a maior parte está intrinsecamente interligada, como num castelo de cartas. Em algum lugar alguém sabe o que você precisa; todo baralho tem seus coringas. O fato de não termos todas as respostas se deve a compromissos ao qual não devemos intervir, assim a ignorância impede que atropelemos o que deve acontecer naturalmente.

Não era uma resposta, mas indicava o caminho que levava a outra questão.

–– E o manuscrito? –– disse olhando para Mateus que não sabia desta parte dos acontecimentos.

–– Se era para você estar envolvido? Não era, penso. Mas já está. As explicações, você só as terá com Marc.

Os garotos forneciam todos os elementos que dariam subsídios aos bons espíritos daquela reunião de sábios para que fortalecessem suas posições diante do impasse. Eles tinham determinado que as suas ações só avançariam quando esta bizarra confluência ocorresse. Podiam não conhecer todas as facetas, sobretudo quanto aos personagens, todavia seguiam planos já traçados e que pouco poderiam ser modificados.

O senhor daquele conclave olhava seguidamente para os seus consortes na eventualidade de seguirem adiante com o interrogatório que lhes daria maior precisão quanto aos eventos futuros já delineados. Tão logo seriam experimentados em suas convicções diante da grande transição. Chegava a Hora do Basta.

Eles, através da voz do índio, re-encetaram. –– Qual é o próximo passo de vocês?

Mateus tomou a palavra. –– Bem, acho que devemos falar com este Marc! –– pouco sabendo quem e o que ele representava. –– Temos que sair rápido do que não nos compete...

–– Ledo engano, jovem. Não só compete a vocês como depende de suas atuações. O curumim Sean tinha que se envolver com Marc nestas circunstâncias abruptas do incidente para seguir com seus compromissos. E você tem os seus. –– tio Xaxá não podia dizer nada que comprometesse o fluxo natural dos eventos, mas também nada sabia que fosse mais esclarecedor.

O conclave previra tal reação e preparou explicações que pudessem surtir algum efeito nos garotos. –– Os homens mortais são sempre muito cegos. Supõem tudo na base dos extremos.

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Assim como vocês. –– aguardou um tempo. –– Se agrupam em dois bandos bem característicos: os que são o centro do universo e aqueles que são mais um grão de areia. Quando entraram neste conflito incorpóreo passaram a agir como os primeiros. Querem acreditar que são imprescindíveis para a solução de grandes verdades. –– Sean engoliu um sapo colossal. –– Agora que eu disse que não são, despencam vertiginosamente para o extremo de se acharem uns quem-somos-nós-para... Mas vocês têm seus papéis nestes conflitos entre anjos e demônios. Só desconhecemos as implicações por mera conveniência aos envolvidos.

–– Por causa de nossa capacidade de ver? –– Todos os dias milhares de pessoas passam a interagir com

o nosso plano. Muitos se desesperam em orações fanáticas, outros não querem, fingem. E bem poucos acabam por estabelecer um primeiro contato. E não é por isto que estão aqui?

–– Se somos tão raros! –– Matt não se conformava. –– Contudo não são insubstituíveis. O que os tornam especiais

é que devem a Marc Bernis as suas implicações neste acontecimento sem precedentes. Simplesmente porque devem a ele o seu comprometimento.

–– Ele quem pediu que nos envolvêssemos? Teria que destruir as ilusões de tão prestimosos auxiliares. ––

Não. Vocês se comprometeram em quitar as suas dívidas com ele. –– expurgar o carma, diriam os orientais. –– Só que a requisição veio em uma ocasião, hum, bem mais complicada do que imaginavam.

Ficaram impactados. Para tranquilizá-los, Naxamuñaca prometeu destacar uma

sentinela que eles não descobririam em meio ao cardume de mortais, mesmo que a vissem.

Agora podiam volver para o seu mundo. Um senhor que se encontrava oculto entre os menires falou: –– Além do mais, temos razões para supor que este pequeno

batalhão que enfrentaram, estava tentando aproximá-los do senhor Bernis. Eles estão tramando algo ao reunir estes dois –– frisou para a comitiva ––, depois temos toda esta fuga em massa.

–– O que eles esperam conseguir?! Não podem por as mãos nos diários de Miguel. –– falou tio Xaxá se referindo a algo maior do que os garotos supunham.

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–– Mas podem atrasar a sua revelação. Há anos tentamos expô-los e quando estávamos quase prontos... Apronta-se outra guerra absurda. Cem anos de muito preparativos, arruinados. –– Os homens nem cogitavam a existência de um códice falando acerca do mundo dos espíritos circulando a mais de um século. Nem de seus predecessores tibetano e hindu e tantos outros. Nem que este mundo havia sido devassado por grandes pesquisadores. Os diários poderiam ajudar a levantar este véu.

Um suposto grito na multidão tenta reparar. –– Nunca. O tempo é um fator desprezível.

–– Mas eles estão se fortalecendo! –– Nós também. –– sibilou o estranho por entre as pedras. E a discussão se interrompe. As pedras davam a impressão de movimentar-se devagar ao

redor deles, mudando a paisagem constantemente. O cenário de rochas vivas que pareciam se aproximar para ouvir o conclave.

–– Garoto, não pertencemos às mais altas hierarquias. Não passamos de seres que tendem ao bem, contudo ainda erramos. Nossos méritos são poucos perante nossas faltas acumuladas. Todos as possuem. –– narrava Guarini emocionado. –– O formidável é que não nos culpamos mais, lutamos para ressarcir as dores do próximo.

Do momentâneo vácuo entre perguntas e respostas um grandalhão asiático de pernas cruzadas intrometeu-se. –– E quem é o guardião do menino? –– apontando para Sean.

Ninguém soube. Tio Xaxá ergueu-se para elucidar, porém com um gesto seu

finalizou a reunião. –– Temos Guarini servindo o curumim Joshua e agora ele acompanha o irmão, a pedido meu. –– o que foi satisfatório para agraciar a plateia. Apesar do peso das palavras o conclave fora uma reunião parcimoniosa e tranquila. As almas reunidas não emanavam preocupação exagerada ou arroubos de emoções, estavam plenamente cônscios de seu papel nos eventos que se aproximavam. Sabiam que eles também iriam ser postos à prova, assim como aqueles que estavam espalhados pelos quatro cantos do mundo em suas inumeráveis camadas de vida, físicas e etéreas.

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O conclave não havia descoberto o que estava acontecendo, mas não podia descartar que a chave para a solução desta incógnita estava no passado de Sean, Bernis e os tais diários de Miguel. Para não assustarem o menino, eles evitaram comentar a travessia da guarnição romana londrina que seguia inexoravelmente em suas gáleas para os portos franceses. E uma incomum agitação de espíritos revoltosos que progrediam aleatoriamente para Paris. O que essas criaturas mefistofélicas sabiam que os anjos nem conjeturavam?

A aragem fria despertara Mateus de suas elucubrações lembrando-o do assalto dos fantasmas do Louvre, um gosto acre subiu à boca automaticamente, engolindo em seco. Intrigado, ainda estava envolvido no duelo; suas pernas tremiam discretas. Assim que o impacto passar ele cairá num relaxamento tal que o levará a dormir como uma pedra.

–– Assim que soubermos do que se trata, diremos. –– ao seu modo, claro. Encobrindo que sabiam de algo a mais; decerto fazia parte disto um velhote chamado Atmatattva que se metera numa briga no beco, bastante insólita. –– Só mais uma. Tiago sempre estará por perto quando acontecerem outros combates como este. Os espíritos precisam tanto dele, quanto vocês. Se ele concluir o contrário, relembrem-no.

Os garotos estavam abatidos e cansados, tensos por não terem sido considerados em outras questões que fizeram, de maneira atropelada, à rápida dispersão dos espíritos que compunham o conclave. Nem mesmo Naxamuñaca permaneceu. As pedras continuavam observando, impassíveis.

Escureceu quando o brilho espectral se apagou. Só Holofernes apareceu com sua lanterna feérica. Sem que Tiago percebesse, o seu irmão mais velho o agarrou

para perto de si, embolado na manta umedecida, ainda desmaiado pelo sono. Não comentaram mais nada, decepcionados.

–– Não adiantou de nada. –– resmungou Sean. –– O conclave ainda não terminou. –– aprontou-se o helênico.

–– Indague o seu amigo! –– referindo-se com o dedo em riste para Mateus.

–– Como eu pude esquecer. Tem algo acontecendo perto do aeródromo! –– lembrou-se após um certo esforço. Retornaram ao

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carro jogando-se nos bancos e se agasalharam com as cobertas improvisadas, até uma cueca serviu como gorro.

Não antes de avisar Elene, através da caixa postal, que eles estavam encalhados em algum lugar na D124, dentro da floresta de Mont-Morency, como precisou Mateus ao ver o sinal impresso na orla da estrada.

Dormiram, ou fingiram dormir até serem tragados pelo cansaço. Um reflexo da luta que cobrava seu preço.

Sonhos tumultuados rechearam suas mentes fatigadas. Uma sensação de que o coração estava saindo pela boca. E dolorosamente contido.

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o primo embate

Quando alvoreceu foram despertados por pancadas no

vidro embaçado. Mateus não conseguia ver quem era, mesmo depois de friccionar o vidro com insistência. Seus olhos continuavam grudados, despertando-o para o ruído do tráfego.

–– Abre, é Elene! –– abriu ainda bocejando, enquanto ela gesticulava círculos ao ar e apressando a ideia de abaixar um vidro automático. –– Está lindo com essa cueca na cabeça.

Retirou-a apressado, com um sorriso maroto. Apesar do embaraço, ela salvou-os de uma busca infatigável por combustível. Estava ansiosa por encontrá-los, qual seria a história? Não resistiu, precisava rir um pouco do tímido namorado que a descartava aos poucos. Da cara amarrotada contígua ao vidro não conseguiu disfarçar as gargalhadas, acompanhada de sutis lágrimas.

Fizeram o reabastecimento do carro e seguiram viagem. Depois de alguns minutos, submergiram em um campo até o

aeródromo que estava escondido por uma neblina densa. Não havia vento e os animais ainda hibernavam quando o sol alcançou as copas dos pinheiros mais altos de um bosque a levante. Os hangares estavam selados pelo gelo aglomerado nas suas fendas. Os pingos começavam a estalar o metal.

Eles saíram dos automóveis esfregando as mãos gélidas diante do hálito condensado de suas bocas abertas, raspando os pés no cascalho do estacionamento vazio. Somente eles se mexiam.

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Inevitável que Sean vigiasse sua retaguarda, preparando-se para alguma nova ofensiva, que não seria inesperada desta vez. Não podia imaginar o que o levaria a esta insanidade, precisava começar a deixar de ouvir o que os mortos diziam.

A par das conversas do conclave, Tiago recolheu-se para refletir no assunto, achava que era mais fácil quando não se estava no meio de toda esta enrascada. No entanto Mateus passou a considerar que era mais fácil agir sabendo onde se metera. Afinal, nenhum dos dois estava certo. Para Sean bastava tirar o foco de cima dele, topando com um bode expiatório que realmente tivesse algo a ver com o manuscrito, ou com Bernis ou com quem quer que fosse.

Se ele existia, Sean encontraria, vivo ou morto. Mas com certeza não seria ele, ou Mateus, ou muito menos Tiago. Quanto aos demais, subtendendo os fantasmas, não podia dizer nada, não os conhecia tão bem.

–– Eu é que não serei! –– a voz avançou pela penumbra, furtiva e cautelosa.

Mateus cochichou –– Que tal se você me explicasse os caras que nos atacaram ontem! Tinham até armas! Não vem com a conversa fiada de sempre, agora é pra valer.

–– Sei. A guarda do conclave me apertou. Eu vou mostrar algo, mas sem ruído, heim! Manda o moleque ficar prevenido porque no outro já dei um jeito –– referindo-se a Tiago que fora arrebatado pelos puxões da Elene, influenciada por um acanhado sopro ao ouvido.

Pela primeira vez Sean se encontrara cara a cara com Jean, o aviador que perambulava no hangar mais distante. Jean não parecia exultante com ele, ou talvez os seus amigos do conclave o tivessem dado esta impressão quando o pressionaram. –– Ou você corre atrás do tempo perdido ou... hum, vamos obrigá-lo. –– disse-lhe um índio obeso cobrando um antigo débito. Assim ele seria reconhecido como a sentinela advertida por Naxamuñaca.

–– Quem é o senhor? –– perguntou Sean. –– Sou o Arcanjo –– respondeu diretamente ––, mas pode me

chamar de Jean. –– Sempre presunçoso. Não lhe de importância. Ele é um

destes espíritos que ficam grudados na gente, mas é meu amigo. O cara manja de aeroplanos como ninguém e, além do mais, é

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divertido demais. –– falou Mateus por entre as nuvens que avivava de sua boca. Jean piscou em cumplicidade, com aquele sorriso de conquistador barato enquanto ajeitava o cabelo lustroso. Foram, então, atrás de Jean.

Atravessaram toda a pista do aeródromo e, prosseguiram pela cabeceira, aproximando-se de um bosque das proximidades, entre tantos outros que coalhavam naquele vale. Eles observavam o bizarro movimentar de Jean, que redobrava a concentração evitando que, desprevenidamente, alguma coisa pudesse pular sobre eles. O crepitar dos gravetos era seguido de repetidos psius do Arcanjo que terminantemente não participava da barulheira.

Além, havia um vale profundo que sempre estava calmo, rasgado por um riacho rumoroso, disse Jean. Não havia nenhuma construção ocupando a planície sendo, portanto, o local ideal para os campistas praticantes de esportes radicais. Mas na antecipação de um inverno rigoroso eles não estariam ali.

O Arcanjo sinalizou que se sentassem, esperando a serração dissipar.

–– Os espíritos não deveriam estar em outro lugar? Como o céu ou o inferno ou o purgatório?

A resposta era simples, mas exigia muita explicação. –– Se eles forem católicos e estiverem razoavelmente mortos, talvez. Como muitos nem percebem que bateram-as-botas, ficam por aí, tentando voltar às suas vidas. De fato, aqui não é tão diferente do que estas três localidades astrais; são as funções desempenhadas que são bem maiores do que as descritas. Todos vão para onde suas consciências estão.

–– Mas e todos estes espíritos que estão por aí? –– perguntou Sean enquanto Mateus bagunçava seu cabelo vigorosamente, atraindo olhares furtivos na mata.

Esta resposta seria muito mais simples. –– Estamos em uma área de transição. As regiões etéreas não são estanques, são graduais e acabam se interconectando entre elas. Somente uma regra estabelece a relação entre as regiões, quem está embaixo não consegue subir sem que se modifique seu estado moral, mas quem está acima pode descer. –– obrigando Sean a afastar a mão de Mateus de sua cabeça, pois queria ouvir o que Jean dizia.

Um burburinho brotava da névoa, o que aumentava a ansiedade de ambos. Aos poucos as nuvens se agitavam,

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envolvendo-os nestes chumaços claros que redemoinhava à borda do precipício. Nem Mateus sabia o que Jean queria com isso, porque toda hora ele levava o dedo aos lábios pedindo silêncio e boa dose de paciência.

A manhã transcorria célere quando, de modo repentino, o vale

ocluso se abre. Sean se levanta sem muito equilíbrio, pois centenas de homens estavam abarracados à margem do córrego. O brilho causado pelo reflexo das armas e cotas impediu-os de admirar com mais nitidez, mas sem dúvida eram soldados se agrupando, se aparelhando para a guerra. O acampamento era formado por várias tendas, de tecido rústico, marcado por estandartes que já duelaram naquele mesmo terreno. Muitos séculos antes.

–– Mais armadura, não! –– reclamou Sean. –– São só alguns conrois•, os outros já partiram para se

aliarem com mais algumas tropas. Parece que este é só a cabeça-de-ponte norte da invasão.

–– Que invasão? O piloto não soube responder. Todavia sabia que além destes

soldados armados de espadas, lanças e escudos, muitos outros entravam em alianças medonhas. Fora convocado a fazer parte deste estranho jogo, mas gostava de trabalhar sozinho.

–– Ainda não entendi o que eles desejam, mas que eles estão conseguindo se unir, eles estão. Nada tão perfeito, porém bastante eficiente. –– apontando para um grupo que montava uma catapulta de uns sete metros, um trabuco. Impacientes, os cavalos impeliam a guarda cavalariana que se preparava para vistoriar as fronteiras do campo. –– Temos que partir, eu não quero ser pego no meio desta batalha. Já, vocês, não têm com o que se preocupar.

–– Ontem fomos atacados, de verdade! –– Tá brincando. Como? –– e Mateus contou tudo, não

omitindo nenhum pormenor durante a travessia do capão. Os dois falavam sobre a reunião e Sean tentava reordenar seus

pensamentos buscando um esclarecimento para o impasse. Para

• unidade básica de combate para um cavaleiro ou homem-de-armas e a maior parte tinha entre doze e vinte homens.

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onde quer que ele dirigisse suas hipóteses, esbarrava num mistério. Tinha que ser algo muito importante este códex mikhae, senão como explicar tamanha movimentação de soldados.

Que bom que Bernis não podia ver o que lhe esperava. Por sua vez Sean se sentia, cada vez mais, na compulsão de defendê-lo, ou pelo menos alertá-lo, mesmo desejando sumir. Uma tremenda enrascada que não precisava, contudo estava metido até o pescoço. Se não por Marc Bernis, por sua mãe que estava no meio deste Deus-nos-acuda.

Sair do arvoredo representou um alívio. Pelo menos por um instante. Os cavalos avançaram arrancando tufos de grama do solo

alagado, mal tiveram tempo de reagir. Lado a lado, foram circundados por cinco cavaleiros que impediam a passagem com suas lanças postas. Cada um defendia um brasão senhorial apesar de estarem reunidos sob uma égide comum que os prisioneiros desconheciam.

–– Parem! Bastardos. –– berrou de dentro da peça defensiva que lhe cobria o corpo, daquela que estava no meio do cortejo. Sean e Mateus tentavam ficar apáticos ao cerco. Como estavam vivos os cavaleiros não deveriam representar problemas. Entretanto não era bem assim. O Arcanjo escapara atraindo dois soldados para a mata.

Os soldados remanescentes se olharam intrigados, mas agiram por prudência. Um deles trotou diante dos garotos com a ponta da lança direcionada para os olhos de Sean. O cavalo resfolegava e as lufadas de um ar quente atingiram o seu rosto que começava a suar frio. O cavaleiro tentou amedrontá-los em vão, e antes de partir arremessou a arma sem aviso. Só quando Mateus fora atingido pela lança é que uma dor pungente percorreu seu braço como se queimasse por dentro. Ele não estava realmente ferido, mas estava ferido. Sean não quis entregar a farsa, fingindo que o amigo estava tendo um ataque do coração, copiando os primeiros socorros sob protestos que eram abafados por um boca-a-boca meia boca. Logo a pequena patrulha acreditou no teatro e se juntou à perseguição na floresta.

–– O quê você está fazendo! –– reclamando da dor e das pancadas no peito. –– Pode parar; eles já se foram.

–– Era isso ou eles nos espetariam até nosso traseiro assar.

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–– E queima mesmo! –– sendo levantado por Sean que recordava que era a segunda vez naquele ano, em toda a sua vida, que precisava ressuscitar alguém, mesmo que de mentira.

Passou o braço pelo seu pescoço e se afastaram em passo mais do que acelerado.

–– E o Jean, será que o apanharam? –– agradecendo em silêncio a atitude do Arcanjo, contudo não podiam deixar que ele ficasse preso. De qualquer forma, como poderiam salvá-lo, se nem apertar as mãos podiam, recordando do encontro a pouco.

–– Não contaria com isso. Se ele sobreviveu dias, perdido nos Andes, sem comida e com um frio de rachar; não seriam uns bárbaros brutamontes de quinhentos anos que tirariam a sua liberdade! –– acrescentou Mateus. –– Você não conhece essa gente, eles creem que estão lá e não mudam seus hábitos. Quem é padre continua rezando, quem é guerreiro continua lutando e vai ficar assim até que perceba que tudo está mudado. O que pode demorar um baita tempo.

Ajustou o passo para chegarem mais depressa. Evitaram falar alto durante o percurso, o que dificultava ainda mais a conversa que eles inventaram para disfarçar o temor.

–– Todos ficam assim? –– Que eu saiba, não. Jean nunca encontrou seu companheiro

de aventuras por aqui. Gente como ele fica vagando a esmo, não acreditando que está morto. Um dia ele me disse que só desconfiou de que não estava vivo porque tentou se suicidar e não aconteceu nada. Já tinha morrido há muito tempo.

O sol não emanava mais sua luminosidade etérea por meio do

nevoeiro, ele tinha um ponto definitivo no céu límpido para onde direcionar o olhar, protegendo-se com as mãos, de sua magnitude. Seria melhor correr, fugindo de um campo aberto que estava se descortinando implacável. Distância suficiente para notarem Tiago e Elene removendo os aeroplanos dos hangares.

Sean já levantava a mão buscando o auxílio deles. Foi Christou quem percebeu o aceno insistente. –– Problemas! –– queixou-se alto. Ela se preparava para largar tudo e ir até eles, asseava as mãos numa estopa encardida, quando viu os dois serem arrojados para fora da pista. Voaram bem uns cinco metros antes

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de caírem perto de uma torre de retransmissão. Mas ela não viu nada mais, além dos garotos. Como um passe de mágica, foram jogados ao ar. Gritou pasma, atraindo à pequena distância de si, Tiago.

–– Eles foram atacados. Vamos logo para lá, rápido! –– contou puxando-a pelo punho dobrado da jaqueta.

–– Como assim atacados?! –– Depois eu explico, se puder! Também não sei como. O que Sean e Mateus viram teria ocasionado efeito contrário

nos amigos que se apressavam em alcançá-los o mais rápido possível. O elemento surpresa nunca falha, mas um ataque de peso como aquele era inesperado.

As árvores bem que tentaram avisar, farfalhando violentamente, abriram uma brecha barulhenta. Rasgando as copas, aquela enorme pedra impulsionada pela catapulta não existia realmente, porém a onda de choque provocada pelo deslocamento do ar era como um efeito colateral. A pedra não era bem uma pedra, apesar de que algumas árvores altas, além de Sean e Mateus, acreditassem que fosse.

O vagalhão invisível explodiu por entre a floresta, afastando a vegetação mais elevada e atingindo, de novo, com um forte estrondo, o plano próximo aos dois. Gritos bradavam o avanço imediato da pequena tropa que surgira do bosque cavalgando frenética de onde nasciam os projéteis. Tragavam o espaço até eles como uma gigantesca onda que não podia ser contida. Como em uma crista, os estandartes flamulavam à frente da cavalaria, seguidos pela infantaria, a pé, com suas armas afiadas em punho. Um mar de metal enferrujado penetrava no aeródromo com o intento de emudecer os invasores.

Tombados, com ombros e costas distendidas, só puderam esperar que a primeira linha atacasse-os em breve. Não tinham forças para evadir-se. Sean olhava fixamente para os inimigos sanguinolentos, sentindo as armas tingidas de sangue ressecado aproximarem-se de suas goelas.

–– Não posso morrer, é impossível! –– divagava Mateus com os olhos esbugalhados.

Eles viraram na direção contrária para tentarem se arrastar até a torre, quando enxergaram Holofernes nascer detrás do promontório cujo platô estava sendo invadido. Sozinho ele não

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seria capaz de protegê-los, no entanto ele passou entre os garotos e piscou auspicioso.

–– Creio que ouvi um barulho. Estão precisando de mim? –– riu-se Holofernes, segurando um admirável escudo circular de madeira e, um pequeno gládio de cabo curto que ficara assentado sob o braço enquanto removia o elmo para cumprimentá-los.

–– Trouxe mais alguém? –– sugeriu indócil, Mateus. –– Uns poucos companheiros de batalhas, acho que servirão.

–– ou a presunção dele era legítima ou não sabia avaliar combates. É claro que não enfrentava uma luta armada em quase três mil anos, contudo, do mesmo modo, não se lembrava de ter precisado. Chegavam Tiago e Elene jogando-se perante os dois ainda contundidos na queda. Estavam entrincheirados pelo nada.

–– Que está acontecendo? Ela viu tudo, ou melhor, nada. Ou seja, viu vocês voando sobre a pista. Tá desconfiada.–– perguntou Tiago ao ouvido de Sean.

–– Espere um pouco. –– tapando a boca de Tiago. Do mesmo valo brotaram, a passos abalizados e constantes,

marchando com seus escudos à esquerda e suas lanças de dez metros apontadas para o atacante, centenas de homens, componentes de várias falanges gregas de oito fileiras compactas. Elas se fecharam abruptamente ao redor dos protegidos referidos no conclave, firmaram os paveses e desceram as lanças, duzentas e cinquenta e seis varas compunham a sintagma•, zunindo para o oponente. Com maior número de homens do que os cavalarianos, os helênicos esperavam um entrave curto, porém somente uma fraca série de cavaleiros, que não tiveram tempo de reagir à armadilha grega, chocou-se contra o muro de lanças macedônicas.

Muitos homens couraçados foram arremessados de seus cavalos que desabavam feridos sobre os escudos gregos. O relinchar dos animais atingidos misturava-se aos alaridos de dor das armaduras mutiladas. Os gregos não retalharam a agressão, nem mesmo ameaçaram expulsar o atacante que partia num movimento inusitado por Holofernes. Ao seu sinal, alguns homens afrouxaram as armas da posição de defesa e avançaram num contra-ataque ao trabuco desamparado, ao mesmo tempo em que um bando corria para socorrer os feridos, incluindo os inimigos

• unidade básica das falanges macedônicas com 16 fileiras de 16 homens.

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que insistiam em sangrar, resultado previsto por aquelas mentes frouxas que imaginam ferimentos inexistentes.

Holofernes pôs o elmo e se juntou à tropa em campo, angustiado com o que presenciara. O ataque fora tão dramático que Sean não conseguia falar, se afastou mudo porque pequenos embates espalhados, aqui e ali, continuavam. Apenas alguns homens permaneciam atendendo os derradeiros feridos que continuavam urrando imprecações aos gregos.

Foi uma longa corrida até o pátio de manobras. –– Vocês devem ser muito respeitados! –– cutucou Jean ainda

esbaforido e esgotado da escapada. –– Como eles conseguiram feri-los? Eu pensava que aquelas coisas só eram para afastar, criar um certo temor. Nunca ouvi falar que eles lutassem, só agiam na defensiva. Bem, prefiro acreditar que eles sabem o que fazem.

Enquanto cuidavam do ferimento real e imaginário de Mateus, Sean voltava para dar uma última espiada na batalha que era travada na raia de aviação. Esgueirou-se junto de um dos hangares, pronto para espiar através dos furos de ferrugem. E então enfiou o nariz no peito polido de alguém. Caiu de costas com o susto. O sol o impedia de ver quem era, no entanto dava para perceber que usava uma armadura, outro casco metálico em seu encalço. Ele se aprontava para correr quando o cavalariano mostrou seu semblante. Era o mensageiro.

–– Eles querem aniquilar o manuscrito e todos aqueles que estão próximos. Querem calar a verdade. Esta armada é apenas uma. –– disse plácido, o cruzado com o capacete a tiracolo.

–– Mas o que eu faço! –– Tente procurar por Allan. –– e já sumia acelerado por onde

surgira quando. –– Se é um mensageiro, cadê o bilhete? Ou você é tão

ignorante quanto todos os outros que me viraram as costas?! Rapidamente o homem retornou, tão perto quanto lhe era

possível sem que ocupasse o mesmo espaço que o garoto. Havia algo inesperado, pensou Sean, ante um breve desconforto que o cavaleiro tentava camuflar. Sorriu com ardência.

Retornava perdido em seus pensamentos.

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A derrubada da catapulta despertou-os da trégua. Mateus sacou a chave do bolso e meteu a todos no carro, que em instantes espalharia o cascalho para bem longe, sob o pneu que girava em falso, antes de arrancar em disparada para casa. Nem o ombro dolorido o fizera mudar de ideia. Estava impaciente para enfiar a cabeça no travesseiro e dormir para sempre. Como queria.

No banco posterior, Tiago evitava comentar o que não viu por causa da Elene que compactuava do mesmo silêncio forçado, estava chocada com a atitude e, como ninguém abriu o bico para explicar, ela achava melhor ficar na dela.

Nem poderia imaginar que as derrapagens, na trilha, se davam pelo assalto de algumas tropas dispersas na batalha. Elas atravessavam, audaciosas, o bosque para atacarem improficuamente o automóvel. Os bárbaros brandiam as espadas correndo ao lado deles. Mesmo que elas não ferissem serviam para atrapalhar Mateus que se abaixava quando a espada zunia através do veículo. Um choque mais forte trincou o para-brisa. Numa curva mais lenta, um cavalo investiu contra a porta levantando o automóvel alguns centímetros.

Só parou quando chegaram à autoestrada, saltando através de um monte de neve. Mateus saiu apressado para vomitar. Virou-se e descobriu a porta arregaçada pelo ataque. –– Merda! Merda! Merda! –– chutando-a seguidamente –– Desgraçados!

E caiu num choro convulsivo antes de aceitar o abraço de Elene e se deixar dormir, desmaiado. Ela não sabia o que fazer, mas aceitou-o naquele momento. Seus olhos se encheram de água, mas agora era tarde para recuperar a confiança perdida.

As preocupações deixavam de ser irreais ou sutis. Eles sentiram na pele o que deveria ser quase impraticável. Felizmente uns bons guardiões zelavam por eles. Ou seria coincidência que estivessem passando por ali? Teriam mesmo toda essa atenção? E por que não atacavam Bernis? Tinha um baita furo nesta história...

Mas o mensageiro insistia. –– Será o mesmo Allan do manuscrito? Descobrir o quê, se

ele já estava morto. Isto está acontecendo rápido demais! –– pensava Sean em Francesco. Seu olhar estava perdido no céu. Os outros, o plagiavam. Por enquanto era o melhor que eles podiam fazer.

–– Deixe para amanhã. –– rebatia a Tiago.

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-

travesseiros

–– ... 364, 365, 366, 367 carneirinhos... Contar carneirinhos já não funciona mais. Acho que estou

grande demais para cair no conto do João Pestana. Se não fossem estes pensamentos, talvez eu até conseguisse enganar a insônia... 368, 369, 370...

–– Não consigo dormir. Quem sabe se eu fechar os olhos e só.

As pontas dos dedos já estão dormentes, devo tirar as mãos da nuca? Que silêncio!

Os fantasmas não parecem estar mais ocupados comigo. –– Como o Sean espera que eu acredite que fantasmas estão

caçando um pedaço de papel! Como eles fariam isto, e para quê? Se eu estivesse morto a minha maior preocupação seria se...

–– Não sou insubstituível, foi o quê ele disse. Mas sei que

estão escondendo algo. Esta reunião só prova que eles estão no escuro. Se estes espíritos maus estão se organizando por um objetivo, só podem estar com medo. E um documento poderia fazer todo este estrago? Duvido.

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–– Bem, não sei o que eu faria se estivesse morto. Com certeza não estaria por aqui. Será que anjos têm asas? Tudo bem, eu sou presunçoso sim.

–– Agora tem mais esta, fomos nós que pedimos para entrar

neste conflito?! Porque não podemos nos lembrar destes compromissos. Até parece que assinei um documento em branco! Mateus não gostou de saber...

–– Pelo menos não estou a par das esquisitices de Matt.

Prefiro ver armaduras andando e gente voando do quê eles realmente veem. Talvez esteja mentindo, uma espiada seria bom. Mas ainda não consigo entender porque eles precisam de vivos para resolver os assuntos de fantasmas.

–– É certo que eu estava comprometido com Marc quando

aconteceu o incidente no metrô, mas já não deveria estar livre? Não fiz tudo aquilo para reparar dívidas de um passado? Ou será que ainda não acabou! Devo começar a cuidar de não provocar novos débitos que venham a ser cobrados em outra vida. O que eu fiz para passar por isto!

–– Ah! Se estivesse morto abriria uma lavanderia para lençóis

e daria correntes como brinde-surpresa... Falando sério. Não consigo imaginar porque eles iriam querer um objeto. Como eles conseguiriam pegar? Para quê? Então eles destruiriam este documento. Duvido que eles precisassem de milhões de fantasmas para fazer isto. Basta um. Acho que não sou muito inteligente.

–– Mas o documento de Marc é só um papel com uma

história, se não fosse por mim, pelo pesadelo, não daria nenhuma importância ao manuscrito. Há algo entre Marc e Allan. Talvez ele acabe encontrando alguma pista de Allan enquanto procura o

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resto deste documento. Ainda não sei porque ele está atrás destes papéis! Quem sabe a resposta esteja aí.

–– Se eles não querem alguns papéis, é suposto que não

queiram alguém como refém. Se eu estivesse na mesma condição de falecido ficaria onde os mortos ficam. Mas como eles não querem ficar lá, quem sabe existam outros atrativos. Se eles não gostam de estar mortos, por que não renascem? Acho que preciso dormir mesmo. Escutei o ônibus da madrugada. Acaba de passar o Noctilien, pela milionésima vez. Que sono!

–– Exércitos atacam quem? Eles vêm até Paris para evitar que

o Marc encontre um manuscrito? Que verdade seria esta que colocaria todo o contingente de fantasmas em prontidão? E os diários de Miguel são... Procure Allan, já sei. Procure um Allan. Por onde começo? Preciso dormir um pouco, o ônibus passou mais uma vez.

–– Está bem. Eles não querem nascer porque assim acabam

esquecendo de tudo. E como eles são orgulhosos demais... Se eles estivessem com Morpheus não escolheriam a pílula vermelha, muito menos a azul. Eles iriam querer as duas.

–– Todo este caos é só um show. O que os chefões desejam? –– Por que prefeririam estar vivos? Ah. Aqui eles conseguem

esconder as suas intenções! Podem vestir o manto de cordeiro e aumentar a sua influência sem que todos saibam quem eles realmente são. E conquistar o mundo todo mudaria as regras?! Chega, vou dormir. Decididamente não sou o mais apto para pensar nisto. Um, dois, três...

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–– Se o conheço bem, Tiago deve estar contando carneirinhos para dormir. Se eu já estou assim.

–– Sei que não consigo vê-los, mas sei que estão por aí. Então

ouçam com atenção. Nunca deixem Sean sozinho. E boa noite. –– Estes fantasmas não querem papéis... Quando amanheceu, eles se encontrariam e, em uníssono, se

atropelariam em explicações. –– Não preguei os olhos esta noite...

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convento dos cordeliers

Escancarara a porta. No chão, as folhas ainda emboloradas, formavam um tapete

disforme há muitos dias. De longe Bernis viu a resposta aos seus problemas em letras grandes e só agora podia pensar no assunto. Passou aquela noite examinando os apontamentos, tentando descobrir o sítio exato, superpondo mapas antigos e recentes. A mesa estava um campo de batalha onde lápis quebrados, canetas destampadas, papéis diáfanos e rabiscados se moviam criando um desenho. As partes compunham o todo.

O burburinho que ecoava do conserto dos estragos ocorridos na antevéspera prosseguia incomodando-o. Baderneiros destruíram uma seção inteira da galeria medieval do museu. Estranho que um gládio estivesse naquele setor, erro humano. Mas no momento não era um problema de sua alçada, ele tinha outros para o dia seguinte. Observou bastante descontraído alguns cartões de controle de Sarah com sua letra concisa junto aos documentos e mapas que haviam reunido. Em mais de um havia pequenas inserções em vermelho. À borda do resumo concernente aos documentos do convento a palavra água se destacava só.

Bernis jogou-se para trás, descansando a nuca antes de cambalear até o sofá. Um pouco antes de dormir recordou-se de enviar uma mensagem à Sarah. –– Encontre-me amanhã. Rua Antoine Dubois, perto do Vulpian. Sete horas.

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Em instantes –– Meu Deus! Este cara não dá folga! –– atirando o celular na gaveta do criado-mudo. Patrick pronunciava indistintamente, ainda dormindo. E só mais tarde Sarah pensaria o que queria dizer aquela mensagem sem sentido.

Destarte, após uma noite tumultuada, Sarah ainda tinha pique para preparar o ritualístico café da manhã. Amontoara novos elementos sobre a escavação e agora teria que esperar até depois desta incursão com Marc Bernis. Telefonaria antes.

–– Bom Dia! O que você está tramando? –– enquanto beijava Patrick que se despedia para mais um dia de trâmites alfandegários com seu ansiado rali .

–– Quer expor uma cripta imunda e empoeirada? Está vestida a rigor? –– rindo-se da possível expressão irritada de Sarah. Ela rebateu a altura.

–– Que tal se eu mandar o Patrick te responder essa?! Como os filhos já tinham se levantado, também ouviram a

conversa que transcorria no viva-voz enquanto ela fazia uns crepes malabarísticos. A curiosidade de Sean foi maior do que a sua vontade de ir ao colégio e, já se preparava para impelir Tiago neste lance. Eis que ele entrava na cozinha, meio espantado com mesas e cadeiras. Ele podia jurar que a cadeira se arrastou sozinha, fazendo-o saltar para o lado.

–– Alguma novidade! –– disse Tiago, olhando com o canto do olho sobre sua espalda.

–– Não vamos ao colégio hoje, temos que achar o senhor Bernis. –– levantando-se para alcançar a mãe que ia embora indignada. Ele iria dar um jeito de saber onde era o encontro. Tiago deu um suspiro profundo como se embarcasse noutra furada. Ainda estava cansado pelos últimos acontecimentos.

Os dois se espremeram no porta-mala do carro se olvidando de Joshua ou de Lucas. Por pouco não foram descobertos pelo berro do celular do Tiago que gemia e se acendia a cada estribilho da música que tocava.

Os eventos do dia anterior estavam martelando constantemente sua cabeça. A preocupação não podia ser à toa, nenhum dos acontecimentos seria considerado comum, prosaico, enfim, irrelevante. Depois havia risco de vida, que já não tinha tanta importância assim, ninguém morria de verdade mesmo.

Mas que tinha pavor de morrer, isso ele tinha.

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Só não queria ser pego em mais uma emboscada tramada por uns cavaleiros carrancudos ou soldados armados até os dentes. Portanto precisava saber do que o manuscrito discorria, e o que tinha de absurdamente extraordinário. Lembrar de perguntar quem era Allan era o menor dos problemas, porque ele sabia, em parte, que o homem morrera em mil duzentos e dezenove no Egito, e sabia muito bem como. Transpirava só de recordar. Parecia que ele estivera lá, era tudo muito real. Só Tiago acreditava nele e nem precisava de muito, bastava descrever a cena e ele já se sentia enjoado. –– Pode parar, pode parar. Chega!

–– Pai, a mamãe esqueceu a pasta! –– disse Joshua antes de

pegar na mão de Lucas e saírem. Patrick deixou-a de lado pensando que a levaria assim que pudesse. –– Aonde ela disse que iria mesmo? –– coçando o queixo em apreço.

Chegaram bruscamente ao ponto combinado. Sarah decolou até a escadaria da alameda Antoine Dubois

atrasada, incapaz de seguir de carro pela ruela para pedestres. O dia clareava dourado apesar da neve acumulada nos telhados. Naquela madrugada a previsão meteorológica previra uma gigantesca nevasca que se mostrou alguns flocos inalteráveis. O edifício que abrigava a Universidade Paris V engrandecia a cada passo dado degrau abaixo. E a agitação dos estudantes era intensa entre a biblioteca interuniversitária e demais prédios que compunham o complexo do Centro de Pesquisas Biomédicas.

Acercou-se de uma escultura esperando que Bernis irrompesse no ponto marcado a qualquer instante –– Mas o que seria o tal Vulpian? ––, enquanto olhava para a base da estátua circunspeta do senhor Edmé Félix Alfred Vulpian, um distinto e empombado neurocirurgião do século dezenove.

Sarah olhava ao redor de si como se não desse conta de onde estava. Seu olhar, assim como seu pensamento, retornava ao século treze. Quando não existia nada além dali. Que além das grossas paredes da muralha não havia senão algumas choupanas que manchavam o extenso manto verde que corria ao sul de Paris. Ideava-se em face ao canal que rodeava a muralha úmida e

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coberta de musgo, na paróquia de Saint-Côme. Logo ali estaria uma das torres de vigília que antecederia a movimentada Porta de Saint-Germain no atual boulevard.

A sueste, o torreão cuidava impassível do claustro do santuário dos Cordeliers; em noites claras de lua cheia alguns frades desobedeciam os rigores religiosos e subiam furtivos para vislumbrarem a cidade, senão se embebedarem com o licor produzido em seus vinhedos que cresciam juntos à grande muralha de Philippe Auguste. Só o refeitório escapara ao tempo implacável, que se furtara dos descuidos e da destruição humana. Donde deveria se situar o convento e sua igreja monumental estava agora o já antigo prédio da escola de medicina de Paris e, do torreão dos frades, um moderno edifício sombreava o refeitório feito museu. De 1774 a 1795 o religioso passava a ser científico, acompanhando a onda de materialismo que varria a Europa. Apagaram o passado como se limpasse uma imundície milenar.

Concentrava-se para visualizar o contorno da igreja com sua imaginação nas pontas dos dedos, delineando da abside ao pórtico que findava neste cruzamento com a rua da Escola de Medicina. O brilho intenso do sol impedia-a de terminar o esboço mental, porém um perfil inusitado surgiu por entre os telhados e uma indefinível figura, com um bastão às mãos, saltou esguia para longe de seus olhos.

Bernis chegava, esbaforido, com vários penduricalhos a tiracolo, ademais alguns papéis que não queriam se dobrar. Olhou de soslaio a escultura impávida e comentou: –– O seu filho não foi operado por um neuro? –– e a estátua parecia atenta ao comentário que escapou sem finalidade.

Voltando à realidade. –– Outra coincidência. –– entre tantas. Para inconformidade de Vulpian que não achava ser.

Sean e Tiago escutaram pouco do diálogo escondidos num dos vértices; não foi complicado seguí-los, no entanto não sabiam como se manter próximos e discretos, tendo igualmente que vigiar as costas.

Em uma portinhola enferrujada, na entrada principal do número quinze da rua da Escola de Medicina, entraram sem se preocuparem em fechá-la. Um prédio moderno, de pequenas aberturas perfeitamente equidistantes, germinava em meio ao vão, entre duas fachadas antigas e corroídas. Foram pela direita

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fugindo da movimentação. Tiago recuou para ver os panos que tremulavam de algumas janelas; o ar estava tenso e alguns estudantes e pesquisadores substituíam o silêncio por ordens ritmadas gritadas em protesto. O escrito tanto o falado diziam: Abaixo aos empregos fictícios, sim aos pesquisadores ativos.

Outro, em vermelho, declarava que existiam jovens cérebros em fuga, e que a França estava falida. Oras, reivindicações justas, desde que a polícia não intervisse.

De longe, um indiozinho esguio sacudia a cabeça pensando

em como toda aquela gente adorava complicar as coisas, tantos os vivos quanto os mortos que, naquele inadequado momento, seguiam de perto o caminhar dos quatro.

Não havia nada demais a considerar dentro do prédio. O largo

abria-se surpreendentemente verde, mesmo que a invernia tivesse sobreposto seu manto branco entre os galhos nus. –– Este é o Jardim do Pavilhão de Dissecação, não é espantoso?

Árvores e arbustos, ressecados, emolduravam a majestosa construção elipsoidal, era como se a natureza estivesse se preparando para colonizar a cidade, espremendo-se contra as paredes daquele claustro monocromático.

Percorreram o claustro imperial, composto por arcos amplos que protegiam as salas, cingindo o pavilhão transformado em anfiteatro. Num dos cantos, entre o edifício e o jardim havia algo oculto dos olhares de estudantes afoitos.

–– Acho que estamos sobre a cripta da abadia dos cordeliers e se estiver certo, a porta de acesso fica por... a-qui! –– apontando uma área encerrada pela vegetação numa das arestas do prédio. –– Acho que o documento do aviador saiu daqui. –– segundo conseguiram supor dispondo os milhares e mais variados dados correlacionados, bem como um acanhado relatório de achados da escavação que descrevia que ele estivera ali. Só faltava o X marcando o local.

Bom. Sarah agarrou-se aos papéis certificando-se que o manuscrito era um dos artigos inventariados da escavação de 1880, mas só tinha esta lâmina, nada mais. E ainda por cima pertencia ao Louvre.

–– Se era nosso, como foi aparecer em Londres?

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–– Durante a ocupação nazista, creio. –– resignou-se a mentir Bernis, arrancando as trepadeiras estéreis que cobriam um alçapão gradeado.

Incrível, estava ali todo esse tempo, debaixo deles. E de acordo com a requisição da chave, desde então nenhuma

pessoa ingressara naquele mausoléu. Nem eles. A chave não entrava pelo cadeado carcomido que lembrava um gracioso X. Bernis trouxe o pé-de-cabra antevendo o problema, desta vez foi fácil. O ruído da grade de ferro contra a laje de pedra assustou alguns pássaros invernais.

–– Vamos entrar? –– insinuando que damas fossem primeiro. Tiago também se assustara com a grande batida. Mas Sean se

preocupava com os dois guardas romanos que patrulhavam a escada da cripta. Que não se importaram com a passagem dos dois primeiros. Redondamente apáticos.

Bernis batia forte na lanterna que voltava a se apagar assim que ele apontava para os degraus lisos de gelo, até que ele desistiu, ficando com uma meia luz que se sustentava. –– não bata mais, deixe-a assim –– gritou Sarah, interessada nos pequenos filetes existentes na parede daquela escadaria em caracol.

–– Janelas no subsolo? –– sussurrou para si. Dava para enxergar uns dois ou três metros na escuridão que

os engolia. A cripta era mais profunda do que se esperava e causava arrepios constantes de frio. Mesmo com aquela luz puderam achar umas lamparinas que ainda cheiravam a betume. Acenderam uma com dificuldade. O clarão varreu a cripta instantaneamente. O teto baixo era formado por abóbadas ogivais verdoengas pelo musgo e pela infiltração, que em alguns pontos desmoronara. Era gigantesca, contudo muito menor do que deveria ter sido. O setor do subsolo que imaginavam situar-se sob o traçado da rua estava soterrado, assim, somente a sexta secção da cripta, exatamente onde os frades esconderiam as relíquias religiosas –– como o dedo do pé de São Denis –– sob as capelas do altar, mantiveram-se intactas. A terra que escorrera e se acumulara no pavimento quase encobrira alguns sepulcros talhados.

Os dois sentaram-se afastando os diagramas do convento sobre os túmulos dos religiosos que se conservavam

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razoavelmente limpos. Por um milagre aquilo não havia despencado, as raízes das árvores ajudavam a manter a estrutura agarrando-se aos pilares e às cúpulas.

–– Faltam alguns equipamentos, Bernis. –– ralhou Sarah. –– Nada, acho que trouxe tudo. –– Falta o chapéu e o chicote, Jones. –– gozando da imensa

quantidade de tralha que despencou de seus braços. Lá por cima, há pouco tempo, os soldados com seus pilos

fincados à lateral do corpo, miravam desconcertados a investida dos garotos, com negativa expressão na fisionomia. Os outros dois ainda desciam tateando no escuro quando a lamparina se acendeu ajudando-os a ficar em pé sobre o revestimento escorregadio. Sean não contou nada sobre os soldados de guarda, mas como eles apenas olharam quando passaram ligeiros, auxiliado pelos empurrões dele sobre Tiago, ficou calado. Um rotundo monge suarento se aconchegou atribulado, berrando algo incompreensível aos guardiões que se dignaram a recuar para que o religioso, que andava balouçando a carcaça, sentasse numa mureta do horto.

Vasculharam cada canto, descobrindo alguns poucos artefatos despedaçados que não davam pistas do pergaminho irmão.

–– Ou esse Bernardo nos enganou ou o documento perdeu-se para sempre! –– secava a fronte suada com um dos mapas do mesmo modo displicente que supunha terem cuidado do manuscrito. Marc Bernis havia se enfiado por todas as frestas do salão, menos na secção sudeste que estava coberta de terra e escombro.

Sarah abriu o mapa outra vez. –– Se estou certa, aqui ficava a igreja, basta seguir as enormes

fundações que seguravam a nave central e os arcobotantes. –– apontando alguns pontos com a sua imaginação aguçada. –– Atrás temos parte da muralha de Philippe Auguste que deve ser a rua Monsieur Le Prince. Lá o pátio e, adiante, o convento e o refeitório dos frades.

Marc calou-a. –– frades franciscanos? –– Creio que sim, e existem outros? Ele puxou o mapa revendo as designações e estava certo,

refeitório dos frades franciscanos. –– Bernardo era franciscano. –– E os tais Cordeliers? –– pensou Bernis em voz alta.

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–– Frades da Ordem de São Francisco que se cingiam com cordas, os encordoados. –– reviu Sarah lembrando-o de algo que lera em meio aos arquivos. Descobriram algo novo.

–– Mas não eram jacobinos? Quero dizer, dominicanos? –– Não. Sim. –– meio confusa –– Os jacobinos que

eventualmente se reuniriam aqui eram de um clube político revolucionário...

–– Hum, verdade... durante a Revolução Francesa. Sarah complementou, sem muita clareza. –– A confusão vem

do fato de que os dominicanos se estabeleceram na rua Saint-Jacques... por isso jacobinos. –– realmente estavam perdidos. Os tais jacobinos dominicanos ficavam na Saint-Jacques. Aqui ficavam os revolucionários cordeliers. Justiça seja feita, estavam estafados com esta estória de manuscrito.

Os garotos aproveitaram e se encolheram numa sepultura ouvindo tudo, puseram as mochilas ao chão. Sean relembrava do pesadelo onde havia um Bernardo e o descrevia para Tiago que voltava a ficar mareado. Mas podiam ver que as tentativas foram infrutíferas, pois Bernis arrumava as coisas com certa azáfama.

Lá no alto a neve derretia e começava a pingar dentro da câmara, além da água que despencava pela escada em caracol. Sarah recolhia as coisas do piso, evitando que se molhassem e percebeu uma ligeira correnteza que batia entre os túmulos e seguia para aquele canto a leste, levando alguns papéis soltos –– Bernis, a água escorre em direção ao refeitório. –– catou a lanterna que voltou a funcionar e disparou para lá.

Ele estava ocupado redesenhando o refeitório sobre a carta de Paris, buscando algo distinto que deixou passar. Estava tão certo da cripta que nem pensou em relacionar os demais edifícios às escavações. Será que havia uma câmara lacrada no refeitório?

Sarah Fox se esgueirava entre algumas pilastras deslocadas e se espremia adjacente à parede, tateando por entre os blocos. O rumor da água reverberava quando caía por uma fissura no alicerce da cripta dos cordeliers. Sugeria o som de água contra água. Havia algo estranho.

Ela passava com simplicidade e agilidade. Tentou deitar-se e viu uma rachadura de dois dedos que corria por toda a parede, como se o piso tivesse se enviesando para aquele lado. Estava difícil de ver, a lanterna não alcançava a abertura.

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–– Preciso de uma mão! –– Marc a alcançou, pegou uma corda e prendeu-a num pilar torto entre os destroços que dificultavam a sua passagem. Manchas de escuridão e claridade se moviam pelo ambiente da cripta.

Inesperadamente o piso ruiu. Bernis ficou com o antebraço preso entre a corda e a pilastra quando Sarah despencou pela fenda recém aberta. O movimento rápido friccionou a corda contra a pele queimando-a antes de travar. A lanterna caiu com um baque seco n’água.

Silêncio. Sean saltou em direção à desordem. Prendendo a corda em

outra base e, com a ajuda de Tiago improvisaram uma falsa polia puxando com os pés contra a parede, não podiam ficar de fora do que acontecia.

–– Mãe, você está bem? –– gritou Sean olhando para a cratera escancarada que piscava por causa da lanterna. Em instantes, Marc Bernis se livrava da corda para segurar a amiga com firmeza. Ele olhava desconfiado para os garotos.

–– Sarah! Responde. –– Bernis tentava agarrar a gola do casaco dela. –– Estou bem. –– Reagiu depois de tomar conhecimento do que havia acontecido. Espalhava a poeira e os pedriscos da vestimenta e dos cabelos desgrenhados assim como cuspia um pouco de terra da boca. Lembrava os bons tempos em que participava dos ralis com o marido. Ela estava pendurada num fosso escavado pela água que descia uns quinze metros, com as pernas enfiadas num poço de água cristalina. –– Espere, me desça um pouco mais –– Sarah não sabia que seu filho estava lá. Bernis gritou que soltassem devagar, com cuidado, para evitar outro deslizamento.

–– Quem está aí, Bernis? –– ele não respondeu, por hora. A mulher pescou a lanterna e com um tabefe ela tornou a

clarear com carga plena. Era um bolsão de água acumulada numa antiga catacumba que estava repleta de ossos e ilustrações gastas.

–– Bernis, desce mais um pouco! –– outro olhar desconfiado para Sean.

Encostou os pés no chão, a água chegava aos joelhos. Mirou a luz no fosso iluminando o rosto do amigo. –– Parece ser uma catacumba romana?!

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Passou a vasculhar a sala escavada na rocha imaginando se seria conhecida ou não, possivelmente não. Uma das passagens estava fechada, a outra subia íngreme. Às suas costas, um túnel mergulhava na água. Não havia papéis ou pergaminhos que fossem proveitosos. Os sepulcros funerários estavam bem conservados, na maioria lacrados. Passou a mão pela ranhura tentando se livrar das teias. E surgiram quatro letras mal traçadas, CAVE. Perigo em latim. Os passos lentos de Sarah criavam ondas concêntricas que se chocavam, dificultando que visse alguma coisa dentro da pequena lagoa.

Contudo, dentro d’água, algo faiscou. Estava preste a alcançar o objeto quando uma mão lhe segura

o ventre puxando-a com força. Era Bernis que desamarrava a corda que a impedia de se agachar.

–– Mas que susto! –– estapeou-o por reação. –– Agora, quem vai nos subir?!

–– Você não tem noção, depois te conto. –– Empurrando-a para frente. Ele pegou o objeto, uma adaga esculpida, de lâmina adunca e gasta pela ferrugem. Raspou os dedos tentando decifrar a adaga. –– Isto não é romano ou anterior, é? –– girando-a diante de si.

Sarah lavou-a e achou algo muito curioso. –– Não é romano da Lutécia, é medievo! –– muito posterior. –– Deve ter deslizado pelo canal vindo da cripta acima. –– Não sei não. Veja estas inscrições, estão em arábico. Uns

rabiscos que não se encontrava em santuários cristãos... Pode ter certeza disso! –– evidente que havia exceções, porém difíceis de explicar.

Ambos passam a examinar melhor a catacumba, alguns ratos subiam pelos sepulcros fugindo da água que se elevava devagar. Escutaram mais cascalhos correrem pelo fosso. Um verdadeiro milagre. Um bolsão de rocha que manteve o buraco protegido de infiltrações, pois se achavam abaixo do leito do rio Sena, que a dois passos dali, antes de ser encoberto por terra de casas e edifícios, operava a baía e o porto romano de Lutécia.

Ela ajeita os cabelos molhados pelas gotas que brotavam do teto intricado, prendendo-os com a adaga, para ficar com as mãos livres. Nada de diferente, resolveram recuar até o meio para avaliar de longe o ambiente e tirar alguns instantâneos. Bernis

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tropeçou numa laje encoberta pela água, tocando com as mãos um relevo submerso.

Ainda na cripta da igreja, Tiago e Sean olhavam pela fenda do fosso a certa distância. Tiago arriscava jogar ao aparelho celular despreocupado, pelo menos tentando estar. Sean, livrando-se da imundície, pensava numa boa desculpa para estar ali. Infelizmente a sua mãe ficaria sabendo da verdade sobre o imprevisto no metrô. Se não fosse por ele, seria pela boca do próprio senhor Bernis.

Quando o cascalho rolou, os dois se aproximaram do túnel, aguçando os ouvidos para ver se escutavam melhor. Com um assombro, eles foram puxados para trás com brutalidade.

–– Qual é mano! –– disse assustado Tiago, seguido de um brado de Sean que dera de cara com o monge balofo genuflexo ao seu lado, que também se apavorara com o grito berrando de modo efeminado e evadindo-se dali. Por sua vez Lucas caiu na própria armadilha, entrando no coro com a reação dos fedelhos.

–– Que foi, cara. Se toca! Estava fazendo um favor. Podiam ter caído aí. –– expelia Lucas.

Tiago estava bastante intrigado com a maneira como Lucas estava se comportando nos últimos dias. –– O quê você está fazendo aqui?

–– Seguindo-os. Mas eu não preciso me esconder no carro. Eu perguntei e ela me disse para onde ia. Tá ligado!

–– Tô ligado –– sussurrou Sean recuperando o fôlego perdido. –– Desta vez eu os peguei, que tá acontecendo aí? O monge, que acabava de galgar ao vergel, e os pretorianos,

estavam apreensivos, não com o que estava acontecendo no subsolo, mas com o que ouviam por detrás das muralhas dos laboratórios da faculdade de medicina. Em meio aos protestos estudantis contra a barreira policial, um exército marchava impassível. Uniformizados da milícia militar de ocupação circundaram os complexos, escoltados por dois tanques camuflados e alguns caminhões de faróis riscados, munidos de metralhadoras. Em alguns braços as suásticas negras em faixas rubras separavam-nos dos gendarmes de Paris e dos manifestantes.

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Instintivamente os manifestantes apertaram o cerco chocando-se contra os escudos, de um polímero transparente, da barreira. O conflito agora tinha o seu pavio acesso. Era como se esse movimento invisível insinuasse atitudes negativas, impondo motivos para que o conflito se efetuasse realmente, dos dois lados.

Os granadeiros, de fuzis empunhados e capacetes de aço, tentavam invadir o largo pelo acesso principal comboiados de um tanque Panzer que acabava de romper as últimas medidas de proteção. Sustentavam posição. Os policiais parisienses já não conseguiam firmar as suas.

O capuchinho estertorava em latim. –– Onde estão eles, ninguém nos ouve! –– Os guardiões se mantiveram em posição de defesa, segundo prometeram.

Enquanto isso, Marc improvisava uma vareta com pedaços de

um madeiro e cordame, tentando espaçar a máquina fotográfica para conseguir uma imagem inteira do jazigo sob a água. Imóveis, esperaram a lanterna parar de lampejar e no automático o flash piscou algumas vezes. Ele se certificou de que as fotos estavam boas antes de tentarem escalar o fosso. –– Isto não é incrível! –– friccionando o dedo no relevo. –– Olhe a data, do mesmo período do documento de Bernardo...

––... Numa catacumba do século três?! –– respondia para si Marc. Contudo, antes que pudessem analisar melhor o túmulo submerso, o canal desmoronou selando a única rota de saída. Tiago e Sean só não foram tragados pelo desmoronamento porque Lucas os puxara, instantes antes, com aquela brincadeira estúpida.

Os cinco gritaram. Diante do convento um daimler-benz conversível penetrara,

bruscamente, com alguns integrantes bem fardados. O coronel erguera-se observando o tumulto dos manifestantes que iniciavam derrubar as grades. Um sorriso amarelado acompanhado da remoção do quepe bastou para que o regimento se posicionasse protegendo-o de um assalto iminente. Ele procurava alguém.

Um soldado em continência exacerbada abriu a porta do veículo direcionando o braço para o pavilhão do anfiteatro. Com dois dedos ele agrupou alguns homens para que o seguisse.

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Sean apanhou os gráficos e se agitou para espaço aberto. Tiago e Lucas demoraram um pouco para perceberem a atitude do amigo, ajuntando como puderam as mochilas e as ferramentas de Marc. A lamparina ficou para trás, assim como o felino negríssimo que miava e se asseava serenamente sobre a sepultura mais alumiada.

O frade ouviu as pisadas, recuando com as mãos agarradas à pança que atrapalhava quando corria. O garoto de cabelos desalinhados lamentava de raiva quando apontou o seu dedo para o franciscano.

–– Onde é a outra entrada! –– berrava. O homem não compreendia, rindo apavorado como se não

falasse a mesma língua. –– Onde fica a en-tra-da! –– repetiu o garoto com mais ênfase. –– Onde é a entrada. Por favor, minha mãe... –– desta vez o religioso assinalou choramingando num riso nervoso para o diagrama do refeitório com um sorriso forçado. –– La torre.

Lucas estava boquiaberto, não entendeu nada do que aconteceu naquele claustro branco, o pirralho estava falando com o nada, ninguém. O seu irmão não esperou e seguiu Sean passando pelo largo atacado pelos manifestantes e, alguns nazistas.

Os homens do coronel Rommel formavam uma comissão

armada com o intento de ocupar a cripta e escoltar invisíveis, aproveitando a oportunidade, as ações do senhor Bernis, onde quer que ele fosse. Usando o contingente que fosse imperioso para impossibilitar que a verdade viesse à tona. A pequena guarda do Louvre tentara impedi-los, mas com ofensivas bem coordenadas, abriram brechas ocupando boa parte do museu antes que pudessem estabelecer uma defesa.

Quando Sean explodiu no largo, os papéis soltos em seu colo ainda estorvaram sua visão, adiando que ele percebesse que não se encontrava sozinho. Ergueu os olhos, espantado com os soldados de um novo Reich e, sobretudo com o tanque blindado que estava a alguns metros de sua cara. Tiago não viu senão os manifestantes que assaltavam a faculdade, armados a paus e pedras, o que acabou fazendo-o esbarrar em Sean, que se aproveitou da acometida para impelir o pórtico do convento dos cordeliers.

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De alguma forma o coronel se assustou perante o garoto, arregalando os olhos enquanto retirava o quepe. Os soldados, atentos ao ato do comandante, notaram algo diferente e retrocederam instantaneamente.

–– São eles! –– disse um dos rastreadores do coronel que não fora destacado para seguir exatamente o senhor Bernis.

Na entrada do alçapão da cripta, Lucas ainda se sentia mal como se uma vaga de aversão o atingisse sem dó. O frade ainda rezava uma vez que o reforço se apresentara. Admiravelmente o monge e os pretorianos se curvaram para o homem que chegara. Adotando uma túnica protegida por uma mantilha escarlate, o jovem senhor, de cabelos castanhos claros e curtos e com seus olhos escuros semicerrados, demonstrava ser inflexível. Seriíssimo, esperou que seu gato se enroscasse entre as sandálias de couro trançado, antes de proferir algumas palavras.

–– Podem ir. –– Meu senhor, os dragões estão aqui. –– Quem eles mais temem, igualmente. Partiram silenciosos, apesar da indiscrição. Quem meteria

medo à armada? O cônsul percebeu o índio que se equilibrava na cumeeira da edificação com seu arco de caça e o puçá atravessando o peito. Uma flama esguia serpenteava ao seu lado como se o acompanhasse por vontade própria. A criatura movia-se como uma serpente ou uma chispa elétrica, suas duas, três, seis ou mais pernas nasciam, conforme o imperativo, como línguas de fogo que víamos no sol. A brisa ergueu o manto desvendando um simplório bordado na barra da túnica que lembrava um e cursivo. Os olhos dos dois se cruzaram, Guarini já podia agir.

O empurrão de Tiago colou Sean à maçaneta, que estancou

assustado, sem se mover. Um calafrio percorreu sua espinha provocando medo. Seus olhos saltavam às órbitas. Aos poucos ele foi abrindo a porta espessa com as pontas dos dedos. Lutava contra a vertigem, pois estava flutuando há um pouco mais de um metro do solo. Os frades mantinham-se alheios, fazendo as suas refeições em silêncio, sob a luz de centenas de velas escorridas e acres. Sentiu outra sacudidela forçada por Tiago que queria escapar do tumulto ocasionado pelos manifestantes, que recuavam espavoridos diante da tropa de choque da polícia. Foi quando

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Sean voltou a si, e o chão voltou aos seus pés e o sangue ao seu rosto lívido de transe.

O refeitório se transmutara num museu de esculturas mórbidas e suas sombras vivas. Certos de que estavam no refeitório, construção contemporânea dos primeiros cordeliers à Paris, Tiago arriscava topar com algum interruptor que pudesse acender as elevadas luminárias que estavam fixas às arquitraves do lugar. Sean buscou, meio desorientado na realidade que estava, tatear a base da torre.

Em algum ponto abaixo de seus pés, Bernis transportava Sarah pelo túnel escorregadio que terminava subitamente numa porta empenada de grosso carvalho. Bastou poucos contragolpes, com pés e ombros, para que ele descobrisse que jamais sairiam vivos dali. Os dois fuçavam cada centímetro do subterrâneo gritando, na expectativa de que os ouvissem. Sean escutou. Sarah estava muito ferida e se sentou fatigada, com a respiração acelerada, controlando sua taquicardia.

Nem Tiago, nem Sean encontravam um acesso, só os diáfanos brados nasciam por entre as fissuras da torre de pedra do convento. De repente o ambiente se iluminou, era Guarini que se aproximava com um farolete. A luz provinha de uma flama corcoveante que galgava célere para se postar ao seu ombro. O fogo tinha vida e recordava um ofídio, parecia assoprar algo estranho aos ouvidos do indiozinho que tinha o som de madeira crepitando. Era uma salamandra-de-fogo ou boitatá, mas ele a chamava de Mbaê, sua amiga dos reinos elementares que fumegava o caminho por onde passava. Era raro alguém ter um animal de estimação, mas Guarini ia além, tinha domesticado um elemental de primeira grandeza.

Os soldados partiram velozes, seguindo o seu coronel ainda

alarmado. Tão rápidos que a turba de manifestantes soltaram suas armas improvisadas, ruborizados, assim como a polícia que parou de avançar sobre os estudantes desarmados. Estavam todos atordoados. Em minutos não havia mais ninguém.

–– Saiam agora! –– disse insensível Guarini. Sean não reagiu, continuava arranhando a lousa,

esquadrinhando algo. Não escutou o pedido de Guarini. Mas

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percebeu a chegada de um paramédico que conhecera pouco tempo atrás. Ele meneou a cabeça levemente, em movimentos laterais. –– Ela está muito ferida!

–– Não! –– gritou Sean. –– Ela não pode morrer. Tiago pegou uns desenhos do convento para ver se havia

algum detalhe que tivesse passado despercebido, tanto nas plantas quanto nas gravuras. Nervoso, Sean juntava suas lágrimas ao desespero de encontrar um jeito de entrar, ou o que quer que fosse.

–– Saiam agora! Ele não se deu por vencido, levantou-se apressado e encarou

Guarini. –– Não! –– Saiam agora! –– Guarini tinha um motivo, alguém podia

ajudá-los, mas estava lá fora, aproximando-se pontual. Sean estava descontrolado, não sabia o que fazer. O médico se preparava. Sean berrou para ele. –– Deve ter um jeito. –– com os olhos umedecidos.

–– Não mais. Entretanto Sean pressentiu que conhecia uma passagem, não

sabia explicar como. De súbito um soldado alemão sai da escuridão do museu e se ajoelha diante do garoto angustiado suplicando perdão. Ele não tinha tempo para isso.

–– Não consegui terminar o túnel... perdoe-me. Insistindo peremptoriamente enquanto desaparecia. Sean não

entendeu, mas dentro de si a esperança se evaporou. Se tinha algo que lhe perseverava o inconsciente, parecia desfeita pela súplica do soldado maltrapilho. Mas não ia desistir tão fácil.

O desenho nas mãos de Tiago era a resposta. Retirou-se evasivo do local, recuando de costas ante o pórtico externo para observar a fachada do prédio.

–– Veja. O prédio era mais alto. Aterraram-no. –– Então... Sean concluiu. –– Então a porta está na torre, mas embaixo de

nossos pés. O piso foi recomposto, só temos que arrancar umas pedras.

O paramédico interveio. –– Sim, mas não antes que... Com a dispersão da polícia pelas ruelas, atrás de alguns

manifestantes mais ferrenhos, o lugar estava às moscas. Tanto silêncio só foi quebrado pelos passos de alguém. Esse alguém que

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cutucava às costas dos meninos. –– O que vocês estão fazendo aqui, cadê sua mãe! –– Patrick esperava desconfiado. Sean e Tiago se inclinaram para ver, logo atrás, o caminhão branco que brilhava de tão limpo.

Tiago resumiu com um olhar de cumplicidade e os lábios em arco. –– É, acho que serve.

Assim que Patrick soube de tudo, ou parte, não demorou muito para que amarrassem os cabos do guincho do mamute em alguns ferrolhos fixos às pedras do piso do refeitório. Com os equipamentos de apoio que estavam no caminhão, escalou magistralmente um andaime –– abandonado entre tantas reformas que viviam acontecendo –– e passou os cabos pelas traves do forro do museu e tornou acelerado ao volante.

Esta tentativa apenas ergueu o caminhão. Com um gesto decidido, ele engatou a marcha certa e acelerou. De uma só vez, com um estampido rouco e ensurdecedor, a pedra voou, levantando pó e arrancando as traves de sustentação antes de sair zunindo para lascar uma porção do pórtico. –– Ops, desculpe o mau jeito. –– murmurou Patrick, ansioso pelo resgate.

O paramédico estava confuso, eles a salvariam a tempo, mas não era o que estava no monitor de seu palmtop. Uma boa parte do telhado e do piso ruiu, despencando violentamente com muita poeira, o que os impedia de se aproximar da fenda. Sean viu o paramédico digitando ao computador.

–– O que foi, ela ainda está bem?! –– Sim. Não entendo, aqui diz que não era para isto acontecer. –– Então diz para isto aí que ela não vai morrer hoje! ––

retrocedeu alguns passos. O computador deve ter escutado muito bem, pois num piscar

de olhos alterou os dados, acatando a ordem. Pelo menos pareceu uma. –– Quem é esse garoto?!

Guarini não sabia, mas o pouco que descobrira, contou. –– É alguém que tem como mudar o destino.

Marc havia desistido de forçar a abertura encarquilhada

daquele cárcere para cuidar um pouco de Sarah. Sentiu que era o fim dela e se...

Uma nuvem de poeira invadiu as frestas do portalete com ferocidade, depois um ruído de destroços deitou abaixo a porta.

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Estavam livres. Uma mão surgiu pela fissura, era Patrick que acudia aos apelos de socorro. Ele estava contente, contudo Sean não conseguia tirar da cabeça o olhar desconfiado de seu pai, mesmo quando os dois se abraçaram comemorando o resgate, algo os impediam de baixarem a guarda.

Patrick seguiu para o hospital junto de Sarah. Havia muita aglomeração em torno das sirenes e das luzes bicolores que pulsavam sem pausa; com o fim da manifestação, as tropas policiais remanescentes retrocederam para a faculdade para manter, um pouco que fosse, de ordem, quando notaram as tentativas de resgate. Algumas ambulâncias que estavam acolhendo os feridos retornaram a pedido dos gendarmes. As luzes vermelhas batiam nas paredes girando do topo das ambulâncias do SAMU parisiense. Todo o quarteirão fora evacuado e cercado por causa do risco de desmoronamento das criptas subterrâneas. Um senhor berrava diante da destruição do convento dos cordeliers, pranteava histérico atrás de um culpado. Tiago e Sean estavam sendo tratados das escoriações enquanto Bernis os encarava, absorto.

–– Acho que ele não está muito feliz. –– sussurrou Tiago. Assim que terminou de pôr as bandagens, Marc voltou para

averiguar o esqueleto do convento. Mas não imaginou que toparia com uma arca em meio aos bancos fendidos e relíquias litúrgicas enterradas. Depois de tanto tempo ainda era possível sentir o odor das velas sebosas. Dentro do baú, o novo manuscrito. Agora ele estava concluído. Bem melhor do que imaginara, mas não que valesse o risco de perder Sarah. Mas a pequena demolição valia. Observando alguns caibros que despencavam.

Saiu descontraído e sorridente. –– Acho que ele não está bem! –– sussurrou outra vez. –– Nós é que não estamos, Tiago. Depois que a multidão se afastou, levando a confusão para

longe, Sean caminhou até a boca do refeitório. Admirava o estrago que uma simples pedra poderia causar. Tirando uma das cartas, o castelo ruiria. Não estava pensando na destruição ou no manuscrito que tão ardilosamente Marc escondera dos curiosos, estava divagando. Vagueava o olhar entre algumas lascas caídas ao chão, chutando-as a esmo enquanto caminhava distraído. Só se agachou porque viu algo diferente. Levantou girando o pequeno

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objeto preso por um fio, ele já o tinha visto no pescoço de Marc. Um amuleto que se parecia com um grande t em madeira e que mantinha sob a camisa.

–– Não é só um amuleto. O tau simboliza muitas coisas. Para Marc é o passado que tenta esquecer, mas sente saudades. –– falava Guarini sentando sobre o capô de uma viatura policial.

–– Obrigado por me ajudar com... O índio sorriu. –– Muitas coisas, das quais você não tem conhecimento, estão

presentes ao mesmo tempo. Não pense que tudo que está ocorrendo seja por sua causa. O sol não gira em torno de nós.

E Sean observava o talismã rodopiar. –– Eu estava justamente pensando nisso. –– com dificuldade

para aceitar os eventos do dia como um mero acidente. Estar no lugar errado, na hora errada, eis o que aconteceu. Percebia, cada vez mais, que não tinha nada a ver com isto. E quanto a Bernis? Nunca se via sendo perseguido, nem mesmo agora que tinha encontrado o documento.

–– O que você me diz? Desvendaram algo deste conflito? –– Mas você pensou em indagar para quem sabe?! –– fixou

leve expressão de bom humor. E quem realmente sabe? Sean retornava para Tiago que

continuava agachado na traseira da ambulância, fugindo das ataduras que a enfermeira tentava, a todo custo, enrolar em seu joelho esfolado. Bem, talvez ele não fosse o centro do universo. Como já diziam, onde tem fumaça, há fogo.

–– Concordo. –– conclui Guarini com um piscar cúmplice.

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14 ¾

conexão dos mortos.

–– TRAIDOR, você nos enganou! Bateu forte contra a mesa encurvada. O lugar escuro, molhado

e cheirando a podre não interferia na contenda. Não estavam sós naquele bunker nazista radicado no coração parisiense, numa câmara ainda inexplorada. Ocultos sob o liceu de Montaigne e esquecidos pelos vivos. Das catacumbas do cemitério de Montparnasse, numa junção lúgubre das galerias repletas de olhares ocos de caveiras sorridentes até aquela câmara, ninguém ousaria submergir em tal território sob o controle dos dragões.

Num gesto ligeiro espalhou a cadeira para bem longe e agarrou-o pela garganta com o punhal apontado para o rosto. O peito arfava em tal frenesi, que as placas metálicas entrechocavam-se ruidosas. Não podiam ser vistos. Apenas uma brecha de luz refletia a claridade da faca na face do homem. Abeirou a lâmina do olho arregalado e espantado sob o quepe negro e, trincando os dentes, respondeu.

–– Jamais me confunda com seus subordinados. –– disse ao coronel que tentava se sustentar inerte nas pontas dos pés.

Grunhiu –– Não acho que possa me matar. –– Mas eu posso fazer isso doer por toda a eternidade, você

tem tempo? –– apertando a ponta da lâmina contra a córnea. O suor escorria encharcando a bela farda condecorada, já não importava quem eram, mas sim o ódio e o poder que possuíam. Estavam todos no mesmo barco, cegos e ignorantes. Uns mais, outros menos, mas enfim todos tinham medo.

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–– Não espera que eu creia que não sabia que ele estava por perto, sir Max.

–– Não. –– suspirou arremessando-o energético enquanto seguia para junto de um esqueleto, onde as sombras podiam ocultar as suas feições. Ele sabia, porém estava jogando a seu favor, e não contra seus aliados. Precisava convencê-los. Convencê-los não, enganá-los pelo tempo que precisasse deles. Um sentimento de antipatia ganhou forças, o seu passado assenhorava-se de si quando pensava no que o manuscrito representava. Todos esses séculos a serviço de sua revolta abrigada, estava cobrando o seu preço. Perdia, aos poucos, o controle sobre si. Queria destruir aquele quem matara seu irmão.

–– Lembre-se de que ainda estou no comando. –– sibilando cinicamente para o inquiridor. Um sopro incomum balançou a suástica esfarrapada que pendia de uma parede logo atrás. Os únicos que poderiam estar lá estavam mortos, selados.

Mas assim mesmo se ergueram de seus postos para se aproximarem da reunião. O primeiro fumava um cigarro fumarento e fedido que lançou com os dedos para além. A pouca claridade que varria o ambiente permitia visualizar os contornos. Valia-se de um uniforme de um tecido lonado e esverdeado sob as botas negras e, sua camisa, de mangas arregaçadas, estava aberta no peito. Agarrou uma cadeira e girou-a para apoiar seus braços sobre o encosto.

–– Sargento Davidson, se apresentando. –– berrou pouco disciplinado, largando sua mochila e o capacete nas pernas de outro fantasma. O capitão Sixderniers já era popular por sua brutalidade, mesmo antes de ser esquartejado pelos ingleses, no entanto não ia perder a chance de atormentar aquele saxão animalesco assim que a aliança terminasse. No seu território, ele é o imperador. Sixderniers cumprimentou-os com um balançar de cabeça, retirou o bicorne e a delgada espada e sentou-se inexpressivo. Sua única frustração era não ter combatido em Waterloo com o grande general.

Sorrateiro alguém se apresentava chocando e rangendo sua arma contra a indumentária. Foram interrompidos por um soldado em sua armadura polida de combate que abriu por instinto a viseira e entregou uma carta selada com a insígnia escarlate dos Lenffers. Um cinturão de balas corria o peito do cavaleiro,

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ajustando-se ao rifle semiautomático que pendia onde deveria estar a espada. O sir não se impressionou com a notícia de que a pequena armada, em Moisselles, fora rechaçado pelos guardiões.

–– Sixderniers e Lenffers ainda insistem em manter posição naquela planície? Confiança é um artigo extremamente raro por aqui. –– ponderou herr Rommel.

Não respondeu, Max. O motivo para manter aquela tropa segmentada era estratégica, seu e de mais ninguém. Lá estava quem deveria perseguir implacavelmente, acima de suas ordens. Voltou-se para a reunião esperando os ânimos se acalmarem.

Aquele que altercava juntou-se, assim, aos demais. –– Coronel Rommel, queira dizer o que aconteceu para os

nossos aliados? –– disse então o homem que redigia a assembleia. O seu olhar de desprezo passou por cada um antes de retirar o quepe nazista e ajeitá-lo sobre a pistola mauser. –– Alguém pode dificultar os nossos planos. Estava preparando o cerco para a operação de ataque quando Marc Bernis, aquele intrometido que está atrás dos diários... Mas ele... –– parou um segundo para registrar a expressão dos outros. –– Mas ele estava bem protegido.

–– Quantos guardiões? –– frisou Davidson. –– Um. –– Você deve estar de brincadeira, herr Komandant. ––

zombando. O silêncio respondeu por si só. Arregalaram os olhos

surpresos com a possibilidade de. –– É ele? O homem resvalou seus pés metálicos e concluiu –– É, sim. Ele pensava num meio de garantir a sua vingança sem que os

três intervissem. Precisava se afastar deste combate perdido com a tríade. Eles jamais suprimiriam a verdade. Aquela baboseira de que iriam conseguir manter a verdade deles era ilusória, ele sabia: o poder, a arrogância, o dinheiro e o orgulho tinham seus dias contados. No entanto eles ainda tinham força, o mundo ainda era deles. E desta vez pensavam ser diferente.

–– Ele não pode com todos nós, vamos atacar juntos. –– falou Sixderniers depois de muito bate-boca entre o sargento Davidson e herr Rommel. –– Concordam?

Acenaram em afirmativo. Um acordo temporário, depois cada um tomaria o controle daquilo que lhe cabia. Ser um dragão sem São Jorge para pisar sobre.

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–– Este é o nosso pacto. Absorveremos Paris dentro dos próximos dias. Mobilizaremos nossas tropas para que elas entrem aos poucos, por todos os lados. Caso enfrentemos resistência, recuaremos atraindo os desgraçados e fechamos o cerco pela retaguarda, sem muito alarde. Temos que evitar a ocupação dos cordeiros no nosso território. As terras médias sempre nos pertenceram e agora que estamos mais fortes teremos maior controle sobre os vivos.

–– Não seremos expulsos novamente, ficaremos. –– exaltou-se herr em seus devaneios de um exército marchando na avenida do Champs-Elysées. Alcançando o céu que lhe era possível quando repudiasse o Tártaro.

Resmungando mil palavrões, Tiago afastava os primeiros-

socorros. Em poucos movimentos ele se livrava da moça, saltando atordoado da ambulância, soltando as ataduras que o atrapalhavam. Atirou o amontoado de gazes longe antes que a médica batesse abruptamente a porta com desprezo, inconformada com a rabugice do garoto.

No meio do caminho eles se encontraram. O jeito como ele andava, envolto nas ataduras, fizera com que Sean se recordasse da breve visão no museu. Um sopro de ar murmurava entre os vãos escancarados do prédio.

–– Você está bem? –– Melhor impossível! Mas você não me parece bem. Sean queria se jogar numa cama quente e macia, mas a

recordação de sua mãe não escapava de sua memória imediata. Para não ter que falar sobre o acidente ele resolve contá-lo da visão:

–– Dois cavalariços treinavam com espadas curtas, um eu reconheço dos pesadelos, o outro só não me parece estranho. Estava tudo bem claro –– e imitava os passos. –– De repente eles se movem em sincronia. Não dá para saber quem está ensinando quem, mas aquele movimento que você fez para se defender das armaduras era idêntico –– respirou fundo e continuou. –– Não sei se faz sentido, mas eu acredito que um dos cavaleiros era você, Tiago. Eu sinto, não sei explicar como.

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Tiago estava pálido, nunca tinha contado para ninguém os sonhos que tinha desde pequeno. Sean sabia que era ele. Quando Tiago ficava quieto demais era porque tinha algo para esconder. Sean não continuou a conversa, desconfiava que não era o momento ideal. –– Depois a gente fala mais sobre o sonho. Que foi legal, o golpe, foi.

Não demorou muito e Marc voltava cambaleante para resgatar os garotos. A tarde passou tragando as horas em grandes goles de expiação. Exausto, Bernis tomou fôlego e telefonou para o pronto-socorro, averiguando o estado de Sarah e aproveitou para avisar os pais que os dois passariam a noite com ele.

Residia perto do Louvre e em instantes subiam ao elevador de serviço. Largou-os na sala do apartamento para que pudesse tomar um banho demorado, sem fantasmas em sua cabeça.

O apartamento de Bernis corroborava as qualidades de uma pessoa extremamente desordenada, nada combinava com nada e as folhas soltas de livros e rascunhos estavam grudados por todos os cantos. Só tinham, por ordem, uma distribuição cromática das capas que nunca tinham visto em suas vidas. Um só livro que estivesse fora desta classificação ficava evidente, como constatou Sean numa rápida corrida de olhos pelas estantes.

Bolor, comida, umidade, roupa suja e, muitos livros denotavam que o senhor Bernis não recebia visitas com frequência e se recebeu, talvez jamais tenham encontrado a saída. –– Vamos ficar bem aqui, parados, não quero me perder. –– sorriu Tiago.

Um pergaminho estendido estava enquadrado, tomando toda a parede oposta com letras miúdas e borradas. Sobre o vidro, anotações com tinta temporária destrinchavam partes resgatadas do desgaste do tempo.

Bateram à porta. Sean não prestou atenção. Bateram novamente. Tiago cutucou. –– Vai você. Gesto infeliz, Sean o empurrou para o hall. Ele abriu. O que mais podia fazer. Assaltaram o apartamento, sem dizer uma única palavra e se

largaram no sofá. Não estavam contentes e com certeza tinham algo para reclamar assim que pudessem se manifestar. Nem todos

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gostavam de ser babás, mas cuidar da situação que estes bebês aprontavam, estava fora de cogitação.

Mateus entrara empurrando todos, com isso, Lucas e Joshua literalmente voaram sobre Sean. Somente Elene pôde desfrutar do pouco cavalheirismo que ainda restava. Se ele estava tentando esconder sua zanga, podia muito bem esquecer, essa não colava.

Bernis enfiara a cabeça ardente na ducha com rapidez, contudo não surtiu o efeito esperado. Quanto mais queria entender, mais confuso ficava. Ele não era tão importante. Não descobriu nada que fosse extraordinário ou especial. Mas tinha um segredo, bem pequeno, de letras miúdas, talvez fosse isso.

–– Que surpresa, todos aqui. –– Marc não se tocou que acabava de hospedar mais gente. Mais é sempre melhor. Mas naquele apartamento!

–– Para casa eu não volto. Enquanto aquele índio gordo não sair. Como alguém pode cantar tão mal! –– disse Mateus. Bernis não entendeu, porém não ia perguntar. Até onde havia compreendido, isso era coisa dele. Sean confirmou. Ouvia o mesmo índio balofo de graciosas tranças, que sorria enigmático, sentado sobre a estante com as pernas balançando no ar.

Marc escapuliu para trocar a toalha encharcada por um jeans e uma camiseta esburacada. Juntou-se aos convidados na cozinha devorando com avidez as fatias de pizza e o refrigerante quente. Acomodou-os em quartos e, assim que Joshua adormeceu, Lucas se retirou alegando cansaço –– já o mau humor ficava por conta de todos. Eles estavam igualmente fatigados, mas a ansiedade não deixava relaxar, todos queriam respostas.

–– Quer dizer que eles estão por aí? –– retrucou Mateus, sedento por informação, falando o mais baixo que conseguia.

–– Aos montes, por toda a cidade. Se você tivesse visto os que estavam lá! Garanto que não estavam de brincadeira. Mas sumiram de repente. –– dava de ombros Sean.

Naxamuñaca complementava: –– Até onde pude penetrar, todos que estiverem com Miguel serão perseguidos. E ele só pode estar entre vocês. –– conforme lhe contou. –– Senão como poderiam explicar tamanho interesse das hostes que se esgueiram cautelosos para cá! Hum. Eles estão atrás de algo, que somente uma grande massa de infelizes criaturas poderiam subjugar. Sinto cheiro de encrenca, tem que existir uma boa explicação. Talvez

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um segredo muito bem guardado. Além do mais, não passo de um simples guardião que tem mais afinidade com simples mortais do que com os anjos.

Um outro olho escondido na escuridão de uma porta

semiaberta se deixava sorrir, um sorriso malicioso, envolto em júbilo. Logo ele teria a sua desforra. Só ele entendera a mensagem subliminar de Naxamuñaca. Eles jamais encontrariam Miguel, estariam mortos antes que...

E a porta bateu em seu nariz, xingando a revelia. Quando o sono os alcançou, partiram para seus quartos,

silenciosos, diante do estado de ânimo que se abateu. Em poucos minutos o apartamento adormecia aos sons de um aquecedor que rangia lamurioso. Até ele se apagar e os rangidos do frio estalarem aleatoriamente na escuridão.

Abriu bem devagar o olho canhoto para o mostrador que piscava três horas e dezoito minutos. Marc não conseguia conciliar o sono, tombava na cama sonhando acordado com um enxame de zumbis invadindo seu apartamento. Criaturas apodrecidas que saltavam de seus túmulos cobrando a paz para os seus tormentos.

Ergueu-se espalhafatoso, deixando que as cobertas caíssem sobre Sean que respondeu gemendo algumas palavras desconexas. Marc fora em busca de um pouco de café descafeinado que borbulhava da cafeteira elétrica desde a véspera.

Contudo não era fome ou sede que o fizera se levantar àquelas horas da fria madrugada parisiense; era, sobretudo, receio de que, talvez, estivessem de fato lhe espreitando por entre as trevas. O pior é que sabia que estavam lá, mesmo não os vendo.

Passou algum tempo apoiado na janela observando a neve se chocando contra o vidro. As luzes da cidade criavam um halo translúcido envolvendo os prédios em brumas leitosas. Nem mesmo o vento se atrevia. Quanto mais ele olhava para o vazio, mais imaginava estar enganado. Esfregou forte o rosto e encarou a papelada disposta à mesa de carvalho, ao lado de uma antiga máquina de escrever Corona Sterling que pertencera a seu avô.

Nas primeiras luzes matinais encontraram-no debruçado sobre a mesa, revendo minuciosamente a carta de Bernardo. Não havia

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como negar, só a conclusão cruel da morte do escapulário de campanha. Ele relia, e mais frustrado ficava. Abaixou a cabeça dando pancadas de leve no papel.

–– Vamos, você está aí, tem que estar aí. Sean puxou desinteressado o rascunho da tradução que Marc

refizera a pouco e, caminhou até a janela. A cidade estava acordando e alguns enfeites natalinos ressurgiam tímidos em vitrines e janelas embaçadas. Tardiamente os parisienses se preparavam para os festejos de fim de ano, com aparente despreocupação e falta de zelo; estavam alheios ao espírito de natal. Uma sensação estranha lhes oprimia o peito. Impressionados que estavam com o desânimo que lhes abatia a alma. Uma névoa invisível escurecia os céus de Paris.

Fixou-se no papel. Certamente satisfazia ao que Sean já sabia, um relatório que não era tão eloquente quanto à realidade que presenciara em sonhos. Estavam lá quase todos os detalhes. O ataque, o socorro e a morte. Mas faltava algo, além da menção ao manuscrito que estaria com Francesco, faltava mais alguma coisa que ele não conseguia recordar.

Despertava de seus pensamentos sendo observado por algumas pessoas que se agruparam defronte ao edifício, olhavam-no diretamente aos olhos como se esperassem uma autorização. Os velhos soldados já estavam retornando ao bloqueio, desta vez permaneciam afastados, dentro do alcance, cautelosos e amedrontados. Seria verdade? Estavam assustados? Não estava enganado; eles estavam com medo.

Em concordância, Mateus acenou. Também percebeu os rostos desconfiados da horda. Um bando que escondia suas intenções apesar dos movimentos aleatórios de aflição eminente. Estavam aguardando ordens. Estavam com receio. Do quê? De quem, talvez?

–– Era disso que você estava me falando quando perguntou da cidade estar abandonada? São estes que haviam desaparecido? –– inquiriu Sean.

–– Não exatamente. Facilmente os confundiríamos com os vivos. Quase as mesmas roupas. Soldados! Acho que nunca tinha visto um... Quem sabe nos campos mais afastados da cidade existissem muito mais. Vamos sair daqui. –– empurrando Sean.

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–– Está querendo me dizer que eles fugiram quando estes chegaram?

Mateus esperou um instante pensando no que ele dissera. –– Só pode, não tenho outra explicação. Eram tantos que não consigo imaginar que todos, juntos, resolvessem desaparecer de uma hora para outra. Com certeza existe uma causa, pode bem ser esta aí –– apontando para baixo.

–– O pouco que sei se deve ao que Jean me falou e que eu mesmo descobri. São fantasmas como ele, que vagam em busca do que perderam. Ele costuma resumir como uma falta de paz, procuram por paz. Mas eu não chamaria de paz perturbar por vingança ou vícios. É como uma simbiose. Sugam-nos como vampiros. Muito poucos, eu acho, fossem anjinhos de verdade.

–– Assim não temos quem nos proteja? –– inquiriu Sean, assustadiço.

–– Não. Calma, garoto! Quero dizer que poucos conseguem deixar seus guias se aproximarem. Não querem ouvi-los, deste modo os outros encontram as portas abertas para influenciar como quiserem.

–– Está preocupado com eles? –– Nem tanto. Estou mais preocupado comigo, agora todos

vão me olhar de longe. Como se fosse uma aberração. Decerto você me entende. –– e mantinha a expressão murcha e conformada de desânimo. –– Quando tinha sua idade me escondia debaixo da cama assustado com todos estes espíritos que perambulavam perdidos por aí. Arrisquei falar com minha mãe, mas percebi que ela não tinha porquê acreditar no que lhe expunha... miragens, fantasias e esquisitices tolas.

As esquisitices atingiram Sean como uma parede de tijolos. As impressões eram muito parecidas, porém ele nunca teve que lidar com fantasmas circulando em seu meio. Fosse na escola, na rua ou em casa. Os seus pesadelos ocorriam há pouco tempo e em locais quase sempre isolados. Como seria ignorar espíritos no dia-a-dia. Sentiu súbita compaixão pelo amigo.

–– Não deve ser fácil! O que eles querem, quem são? –– Nunca soube. Fiz bem o meu papel. Só Jean teve paciência

para esperar que eu falasse com ele. Esperou quase dez anos antes que eu desistisse. E ele só repetia, incansável, que sempre soube

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que eu o escutava. Um dia eu teria que me trair. –– ria-se lembrando das tentativas de Jean. –– O cara é incansável.

E ambos voltaram a observar os tais fantasmas. E tinham na ponta da língua a mesma dúvida. –– Não sabia que fantasma tinha medo de outros fantasmas. Vamos embora daqui antes que eles resolvam entrar.

–– Agora não. Ninguém tem vontade de sair, vamos ficar por aqui até que as coisas esfriem! –– disse Mateus. Até mesmo Lucas se aquietou jogando-se ao sofá com desdém.

Contudo Sean não arredou os pés da janela, desconcentrado e alheio a tudo. De olhos vidrados no vazio, até que Tiago se abeirasse apoiando a mão no pescoço do amigo que acordou sobressaltado.

–– Quanto mais eu olho, mais penso ver algo... –– Não, você não vê. –– Sean resmungava irritado. –– É, mas depois do que me contou, de que adianta fingir que

eles não existem, seria muito mais cômodo. Sabe, eu prefiro achar que eles estão por aí do quê ficar na trevas.

Sean olhou com o canto do olho –– Como?! –– Se o que você me disse está certo, só posso pensar que

somos mais influenciados do que supomos. Está certo, você nem tanto –– pensando naquela vantagem que Sean possuía. –– Mas nós, a maior parte que não sente a presença invisível, será que estamos realmente imunes ao seu controle?

–– Pode ser! Sem aviso os soldados estancaram o seu movimento circular e

deram um passo adiante, ultrapassaram a muralha invisível. Em seguida andaram um pouco mais, chegando à beira do edifício. Seja lá o quê os estava barrando, ruiu.

Talvez de perto fossem mais reais do que supunha a cinco andares e, nem pareciam os farrapos que observava. Trajes desarrumados se alinhavam ao conjunto de feridas, ferimentos, pústulas e inchaços que a maioria não se importava em mostrar. Aliás, dava para contar nos dedos aqueles que não tinham sangue espalhado pelo corpo. Um deles obviamente fora enforcado, ainda levava a corda presa ao pescoço azulado e se tinha um que morrera afogado, não o percebeu.

Como ele ia enfrentá-los, aquilo causava aversão a qualquer um. Guarini e Naxamuñaca estavam ao seu lado. Ambos tinham

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suas razões para permanecerem junto de Marc ou Sean. Principalmente agora que alertaram meio exército de mortos-vivos. Ainda tinha aquela dúvida acerca do que estava realmente acontecendo, cada um tinha uma opinião, mas só um tinha noção do que era.

Guarini mantinha uma posição de curiosidade ante a presença desagradável dos soldados, o que despertou a língua do tio Xaxá, por dois motivos. Um desagrado quanto à salamandra-de-fogo que mostrava a língua malcriada empoleirada em Guarini que tentava disfarçar seu constrangimento galopante e: –– Esses irmãos sofredores trazem consigo os reflexos dos erros deliberados a que se entregaram. Hum... Seja a doença ocasionada pelo desequilíbrio da mente ou os ferimentos mantidos na alma pelos pensamentos que geram. Esse negócio... hum... de que são sofrimentos injustos enviado por Deus não existe. São as próprias culpas estigmatizadas na alma, o reflexo do verdadeiro espírito.

–– Como podem melhorar? –– disse Guarini diante de Sean. –– Modificando suas ideias. Muitos do que se consideram

vítimas são, na verdade, algozes. Senão, como poderiam ter estas marcas provocadas pela própria culpa?

Ambos concordaram em silêncio. –– E o que eu faço agora! –– emperrara Sean. Os índios se olharam e concederam um leve sorriso para o

garoto, volvendo seus rostos para Bernis que ainda arremessava bolinhas de papel amassado numa lixeira que transbordava.

O telefone tocou. Em dois saltos, metade dos ocupantes do recinto alcançaram

o aparelho que continuou tocando até que se resolvessem. Marc largou a mão no gancho e atendeu-o para o alívio de Guarini.

–– Como?! Esperem por mim, estou indo para aí agora. Não mexam em nada... –– resolvendo duas questões ao mesmo tempo. Sua frenética tentativa de enfiar o casaco e sua dúvida se deixava ou não os garotos sozinhos. Quando desligou estava preso pelo fio do telefone que saia pela gola atravessando todo o casaco já abotoado. Puxou o com violência antes de pedir, aos três, que esperassem por ele. –– Estou retornando para a cripta. Descobriram algo.

Assim que bateu a porta, tio Xaxá falou. –– Que nada! Só se confundiram um pouco com o que sopramos aos seus ouvidos.

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Ah! Gente sugestionável. –– Gargalhava comovido, sentando-se na bergère puída onde Lucas estava descansando fogosamente.

–– Sugiro que o siga! –– Sem pretexto aparente e de face séria deixou escapar, em um relance, o que parecia ser um certo receio. Sean não pode ignorá-lo por mais tempo se quisesse acompanhá-lo de perto. Não recebeu nem mais uma informação, nada que pudesse servir de esclarecimento para a perseguição. Bastava admirar a expressão dos índios que foram tomados de indisfarçável temor.

Tomou o casaco que se encontrava em mãos e saiu desabalado, escadas abaixo, para o susto de Tiago que apenas balançou os ombros para Mateus. Em consenso mudo resolveram ficar esperando o retorno de um ou de outro. Quem aparecesse antes, se bem que uns fantasmas surtiriam o mesmo efeito que Sean antecipara.

Para surpresa de Sean, os guardas haviam se dispersado, perdidos, e não se interessaram por Marc. Estava ficando muito estranho. Não estavam caçando o senhor Bernis, ficava evidente o menoscabo dos três soldados encostados no prédio, sob as luzes de um letreiro da revista Life. Nada tão paradoxal quanto isto, entretanto, ele recuava atento aos dois. Marc que seguia apressadamente, atravessando a rua por entre os automóveis empacados do congestionamento e, os soldados enfadonhos que riam debochando de algo. Quanto ao grupo que não assinalava qualquer intenção de alcançá-lo, estes, trajavam uniformes modernos, da grande guerra, que se integravam aos rifles semiautomáticos que pendiam de seus ombros manchados de sangue. De alguma forma, um deles fumava. O garoto estava decidido a seguir Marc, todavia não queria despertar a atenção destes espíritos que surgiam aleatórios a cada canto da cidade, observando distraidamente os transeuntes sólidos atravessarem o seu caminho. Seguida de uma onda de escárnio que impregnava as pessoas de mau-humor. Tudo parecia desencadear para uma catástrofe. Mesmo que nos próximos dias fosse noite de Natal, o nascimento de Cristo. Se é que vale de algum alívio.

Homens e mulheres estavam atarefados em suas compras de última hora, lembrando Sean dos momentos agradáveis que eram as festas de fim-de-ano. E pela primeira vez pensou em alguém, um amigo, que desejaria ter por perto na comemoração da ceia de

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Natal. E uma sombra encobriu seu ânimo. Não que o impedisse da presença de Tiago, mas porque uma outra pessoa surgiu em sua mente como alguém que gostaria de ter por perto. Envergonhou-se.

Marc esboçou um movimento esquivo e escapou por um triz de um ônibus ruidoso que freara antes de seu ponto no quai de la megissérie atraindo os olhares de duas criaturas sombrias que não costumavam transpor paredes. Acenavam apontando os narizes para Bernis. Em seus casacos pardos aceleraram o passo tentando alcançá-lo ainda na pont au change que parecia estranhamente deserta.

Não poderia deixar que o atacassem, dava para ver que as suas intenções eram más. Além do mais sentia um formigamento inquieto, como uma intuição. Decerto que algo ruim aconteceria, por isso Sean correu até ultrapassar os homens. Não ergueu o olhar, apesar de que a dureza de seus gestos, nervosos, pudesse ser mais delatores do que um simples relance de olhos curiosos.

Tinha que improvisar. –– Hei. Senhor Bernis! –– deve ser por dinheiro, sempre é,

então. –– Meu pai pediu para te dizer que não tem como emprestar a quantia, só deixou estes trocados para um lanche. Sinto muito. –– sacando algumas moedas.

Ele não entendeu nada, mas viu quando os dois estranhos estancaram lívidos diante deles. Em alguns segundos Sean descobriria se tinha dado certo o estratagema. Por precaução piscou disfarçadamente para Marc.

O que estava com as mãos enfiadas no bolso do casaco parecia ofendido e se fosse um revólver? Não imaginava que em uma reação de raiva frustrada ele pudesse se livrar dos dois por desforra, por não terem senão uns míseros trocados que tilintavam em bolsos folgados. Nunca mais tiraria conclusões precipitadas sem antes cogitar que o tiro saísse pela culatra. E saiu.

–– Senhor, desculpe-nos. Deixou cair sua carteira. –– para não dizer que estavam com remorso por não poderem ajudar Marc com sua pequena crise monetária.

–– Muito obrigado. –– e como a situação ficara estranha quanto à recompensa, os homens malvados gesticularam uma negativa peremptória seguida de fustigantes acenos que atingiram em cheio o coração ferido do garoto.

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–– Ah. Pensei errado. Marc apertou Sean com força, caminhando trôpego antes de

percorrer toda a ilha de la cité e cair de gargalhadas junto à praça Saint-Michel. O rio silencioso que abarcava a ilhota mesclava-se para formar de novo um só fluxo, sorvendo consigo o vento gelado que silvava por entre as árvores secas vindo desde das galerias escuras da igreja de Notre-Dame. Um vento com cheiro de história estagnada.

–– Por que este interesse em mim? –– recuperava-se Marc. –– Não pude evitar. Já disseram que você tem uma

personalidade magnética? –– Nunca. Não tinha uma ponta sequer de sarcasmo, ele queria os fatos,

mas o que Sean poderia definir como tal? O acidente e a premonição? Que tal algo mais, como os ataques no Louvre e os muitos outros por aí? Bah! Enfim por onde ele poderia começar!

O largo que delimitava o espaço aberto entre as muralhas douradas de suas fachadas singulares rematava numa bifurcação bem demarcada que seguiria, à esquerda, como boulevard Saint-Michel e noutra por rua Danton; pontilhadas de árvores sonambúlicas pelo inverno característico de Paris.

Os pássaros instintivamente, em sincronismo não coreografado, lançaram-se acima dos edifícios, desaparecendo abaixo da silhueta de ogivais dos telhados de zinco esverdeado dos apartamentos haussmannianos. Marc e Sean estavam afastados alguns metros entre si quando um estampido despencou de todas as direções, um eco potente de uma grande explosão que gemeu o solo. Um som alto o suficiente para que fosse percebido por meia Paris. Um som de reconhecimento para Marc que ficou branco e gritou sem som. Movimentos irreconhecíveis enquanto o barulho ressoava ao redor de ambos. O solo, em reações convulsivas soltava farpas num raio de afastamento que tinha como o seu centro a esplanada. Uma suave nuvem de poeira acinzentada atingiu-os até os joelhos antes de caírem atordoados. Os carros brecavam desalinhados de seu trajeto, avançando sobre alguns pedestres.

Um segundo estrondo puxou as fachadas como se as sugassem para o epicentro antes de serem afastadas por uma onda que estilhaçou os vidros. Um período de estagnação e então o

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subsolo regurgitou uma fumaça densa, envolta em pequenos fragmentos, através do buraco da estação de metrô de Saint-Michel, seguido pelos bueiros próximos. Um automóvel fora lançado em um rodopio perfeito, sobrevoando Marc para cair de quatro logo atrás, num baque seco que fez disparar seu alarme.

Ato inesperado que os jogou ao solo, como se empurrados por mãos inesperadas para o meio da rua. Marc tentava levantar-se escorando as pernas abertas, gritando sem que Sean ouvisse por cima do zumbido que urrava em seus ouvidos machucados. Em instantes, objetos despencavam do céu como a chuva de um tornado, espatifando pedras e metais sobre as pessoas. Marc parou de berrar e saltou de olhos lacrimejantes através do pó que se dissipava, arremessando Sean para longe de um pedaço da estátua de bronze esverdeada que quicou onde estava antes. Sorrindo de sua boca escancarada, os dentes afiados de um dragão sem asas.

O efeito de desorientação passou assim que a poeira e o barulho sumiram. As poucas pessoas que conseguiam se erguer gemiam aos socorros das primeiras ambulâncias. Não sabiam se tinha passado minutos ou horas. Marc puxou Sean para junto de si, erguendo-o com mais força do que necessitava. Mesmo com o impacto de toda a destruição, havia muito silêncio.

–– Como você está! –– sussurrou Marc. –– Com muita raiva. –– Nunca vou me acostumar com estas explosões... –– deixou

escapar por entre os dentes. E antes que pudessem prosseguir, contemplaram tudo, num

giro assustado. Com a ressalva de uma única cabeça distorcida de bronze, caída aos seus pés, estavam diante de uma pequena clareira livre de outros destroços, inexplicavelmente limpo. Limpo demais.

–– Não estão atrás de você, nunca estiveram. –– se quisessem, a ocasião não poderia ter sido melhor.

E Marc não sabia o que falar. Ficaram assim, em silêncio, um bom tempo; observando a paisagem sob o olhar lânguido da escultura que permanecera intacta. Saint Michel talvez tivesse seus motivos, mas Marc julgava outros quando sorriu em meia boca para Sean, logo depois de encarar a expressão de placidez do anjo. Que, de sua espada ondeante, almejava uma confissão em um julgamento que durava anos.

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princeps militae coelestis

–– Princeps militiae coelestis quem honorificant angelorum cives.

Coincidência ou não, ela não podia ser desprezada. Parecia-lhe óbvio demais que tudo estivesse tão bem planejado, cada inesperado golpe de sorte, parecia guiá-lo com eficácia precisa. Sentia-se como um fantoche em mãos invisíveis.

Sean acordava de seu congelamento mórbido, apavorado. Muita gente devia estar gravemente ferida, precisando de assistência imediata. Saltou rumo à boca escancarada que servira de saída ao metrô, contudo desistiu de qualquer tentativa. Antes mesmo que pudesse articular qualquer intenção, paramédicos dos dois planos invadiam o subterrâneo. Entretanto, foi um amigo de jaqueta translúcida com o vestígio de um longo I que lhe acenou negativamente, encerrando as suas esperanças. Ele adiantou-se impondo uma barreira com sua mão estendida, o evento merecia que sua lição fosse compreendida por Marc e todos os demais envolvidos neste ataque. Nem homens-bombas, nem pacatos civis estavam isentos de suas responsabilidades antes e depois da explosão. Uma associação inconsciente, necessária ao reajuste passado, visando a renovação futura. Pode não ser agradável, entretanto é eficiente.

Marc agarrava-o pelo pulso, impedindo seu avanço desenfreado até que ele se acalmasse. E o garoto caiu fragmentado, com a alma dolorida. Suas lágrimas refletiam seu estado de completa desilusão e remorso. E se tudo isto fosse por

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causa dele! Que todas estas mortes fossem efeitos colaterais de uma perseguição imperceptível. Mas uma voz murmurou ao seu ouvido.

–– Todos estavam onde deviam estar, não cai uma folha sem que Ele o permita –– e Sean só pode distinguir um vulto desaparecendo num lampejo de um manto escuro como o sangue. Estava transtornado, seus dentes travados denotavam sua incapacidade ante o inflexível sofrimento humano. Ele não era ninguém.

–– Vamos. Precisamos sair daqui, não há nada que possamos fazer –– e Marc recolhia o garoto entre os ombros, afastando-se pelo boulevard sob os guinchos agudos das sirenes.

Um lampejo de como poderia agir contra. –– Tenho que lhe contar algumas coisas, senhor Bernis.

–– Também tenho –– respondia nervoso, pois chegou o momento de contar um segredo.

Ainda tentavam limpar seus rostos e trajes quando chegaram por fim defronte a um pitoresco restaurante árabe que se abrigava em uma das indistintas travessas medievais da baixa Mouffe. Com sua particular extravagância aromática adentraram hipnotizados com a decoração mourisca. Arcos e adornos talhados em filigramas douradas que representavam frases emprestadas da Shura. Muitas cores que tremeluziam pelas intensidades de lamparinas inconstantes. Um ambiente mergulhado em meias trevas.

–– Bom Dia, senhor Bernis! –– Piscou o enigmático senhor Hammed, que trazia umas toalhas mornas e úmidas para que tentassem tirar um pouco do pó de seus rostos acinzentados pelo concreto moído. –– Chá de menta! –– berrou para um rapazote magro que se apressou a atendê-lo. Deixou-os por um minuto, procurando brigar com o sobrinho enquanto estalava a língua, indignado com o parentesco.

–– Hábito que adquiri na Síria; é ótimo para se esconder da realidade, não acha? –– girando os olhos pelo estabelecimento.

–– Você fala como se estivesse fugindo... –– E quem disse que não estou –– passando a toalha pelos

cabelos com energia. Foram interrompidos por Hassan que, todo sorriso,

depositava, atrapalhado, os copos de prata junto com uma chaleira

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fumegante. Devia ter a mesma idade de Sean e não perdeu a oportunidade de fazer mais alguns amigos, apertando esfuziantemente a mão dos dois. Retirava-se em mil desculpas para contentamento de seu tio que continuava estalando a língua. Hammed empurrava comparações a Hassan, aborrecendo o sobrinho com insinuações jocosas de que o Ramadã acabara e os sonhos do Eid-ul-fitr não trariam para ele o paraíso do bom anjo Gabriel. O alarido diminuía conforme se afastavam estabelecimento adentro. Só um velho rádio portátil emitia uma cantilena infatigável.

–– O que foi que quis dizer! –– recordava Sean. –– Diante da escultura?! –– pois continuava pensando na

frase, sem pausa. –– Bem que preferia esquecer. Significa, o príncipe do exército celestial que a cidade dos anjos honram. –– era ele? Não desconfiava que o professor William queria dizer com contar tudo. Seja quem fosse. Porém o sinal foi absurdamente claro. –– Tenho que te confessar, estou muito curioso sobre você. Nunca quis perguntar nada sobre o acidente.

Sean se sentia acuado, mas também queria descobrir o que estava acontecendo, e começar pelo início, em pratos limpos, era o pedido que desejaria descartar do menu do chez Hammed.

–– Começou com um sonho muito confuso que acabou por se transformar num pesadelo real. –– enquanto mordiscava umas especiarias servidas em abundância. –– Com certeza você não quer falar disso, mas de como eu sabia o que fazer. O fato é que eu não sabia, como ainda não sei como.

Entretanto Marc permanecia entorpecido, aguardando a confissão do garoto com indisfarçável angústia. Vez ou outra acenava para Hammed, em seus bastos bigodes negros, para que lhes deixassem a sós. –– Não tenho como lhe descrever isso sem que pareça falso, sinto muito.

Possivelmente ele gostaria de lançar tudo de uma vez, mas sabia qual seria a reação, se bem que, a essa altura, Marc não se importasse com mais surpresas. E prevendo que o garoto não encontraria as palavras menos chocantes ou mais adequadas para quem estava com certas vulnerabilidades cardíacas, adiantou-se em sua confissão.

–– Talvez eu possa lhe ajudar. Não estou atrás de um manuscrito. Eu já o tenho. –– uma pausa longa para assimilar o

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que Marc dizia abertamente, sem constrangimentos. –– Seja o que for que você quisesse dizer com o nunca estiveram atrás de mim, concordo. Pelo menos quanto ao manuscrito. Todos os atentados que sofri nestes últimos anos, saí ileso, ou quase. Eu até posso dizer que estava, de certo modo que desconheço, protegido. Hoje tive mais uma prova. Então, qualquer coisa a que você se referir não será necessariamente uma novidade, você me entende? –– só que nunca havia alguém por perto, mesmo imponderável aos olhos, quando necessário.

–– Posso tentar. E se eu dissesse que tive ajuda de fantasmas! Respirou fundo, o coração pronunciou ligeira taquicardia. ––

É mais fácil acreditar nisso do que numa tentativa feliz de me salvar –– tentou sorrir para o garoto trêmulo ao mesmo tempo em que sacava um caderno de apontamentos. –– No entanto qual foi o motivo de sua intromissão na minha morte? Porque está claro que você e seu amigo Tiago me salvaram por muito pouco.

–– Me falaram de algo como dívidas do passado, ainda não entendi direito. Sempre desaparecem quando tento obter mais respostas. Se era isso que queria saber... E quanto aos outros atentados? –– mudando o rumo.

–– Sem ferimentos. Posso dizer que sofri mais atentados que muitos países. Grupos separatistas, grupos religiosos radicais. Todos mais preocupados consigo mesmos, olhando para seus umbigos, e nem percebem a devastação que causam dentro de seus ideais. –– e baixou o olhar brincando com suas tâmaras secas –– e em nossos amigos. Meu avô morreu no primeiro meu atentado.

E uma onda de tristeza desceu no semblante de Marc, fazendo-o repensar no tempo que se enclausurara do mundo, em sua pesquisa. Fugindo de amigos que poderiam morrer por sua causa, mesmo não determinando se tinha culpa ou não nos atentados. E Sean passava pelo mesmo drama. Remoendo as mesmas dúvidas. E Bernis percebeu os mesmos pensamentos em Sean, que se assemelhava a um reflexo de suas próprias angústias.

–– Não caia no mesmo erro, garoto. Não nos leva a nada. Não vamos ter paz fugindo do que ocorre ao nosso redor, somos peças em movimento. –– bastava descobrir de qual jogo.

Emudeceram-se por um tempo, recriando seus novos mundos. Marc tentava adotar esta nova realidade paralela que incluía um

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garoto e sua bagagem de fatos bizarros que, apesar de tudo, considerava plausível. Devia estar começando a endoidar, desesperado por finalizar a sua caçada aos mikhae. Se não fosse isso, como explicar sua inclinação para acolher dados poucos científicos? Teria que aceitar as coincidências como elemento de peso em suas reflexões, se quisesse encontrar uma resposta?

Sean notava Bernis em elucubrações mil, buscando algo palpável em que se apoiar. Sabia muito bem que ele não aceitaria suas palavras sem evidências, nem como as obteria. Precisava acreditar que elas não seriam imprescindíveis. No entanto, neste mundo isso não era possível.

–– E você? Tem alguma solução para os meus problemas de sono? –– é evidente que Sean não as teria, mas disse em voz elevada buscando que um ser invisível lhe acudisse.

–– Quem sabe. O que você precisa! –– abanando a mão indiferente.

Marc deu mais corda. –– Como eu devo ler os documentos?! Agora Sean considerava se ele não estava sendo sarcástico,

pensava que não adiantava responder. Se ele, que era um acadêmico em espécime, não sabia, como poderia ter algo que aplacasse sua curiosidade de raciocínio? Que documentos eram estes que eram ilegíveis? Todos!

–– E a narração de Bernardo? –– Não é deste códex. Desconfiava que fosse um comentário

sobre o assunto, talvez esclarecesse como eu poderia traduzi-los ou indicar onde um código pudesse ser encontrado. –– e Marc se preparava para abandonar seus argumentos. –– E o que você sabe?

–– Só o que você sabe... –– suspirou demoradamente observando uma criança engatinhando nos fundos do estabelecimento. –– dos diários de Miguel.

Pensou Marc, o garoto esta sendo sarcástico? –– Miguel? Quem lhe falou isto? –– A fonte era menos material do que Marc imaginava, pois não conhecera Naxamuñaca recentemente. E compreendeu que Sean diria que ela viria de um local inatingível, pelos menos enquanto ele estivesse vivo.

–– Não é o que procurava por todo este tempo, o códice? –– De todos os nomes, em estelas ou pergaminhos ou

manuscritos, não havia uma alusão sequer a um Miguel. Tem certeza de que estamos falando a mesma língua? E por que

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diários? –– Marc puxava a atenção de Sean com seu indisfarçável delírio. E ele só balançava os ombros.

Se tinha algo que Sean achava ter certeza era de que os tais diários de Miguel só poderiam ser o códex mikhae, não havia dúvidas, os nomes eram similares e a insinuação de que estava de posse de Marc, só confirmava o fato. Ou ele estaria redondamente enganado e seriam elementos distintos! Agora era a sua vez, teria que dar o próximo movimento, entretanto ainda não sabia qual jogo estava jogando. –– E o outro pergaminho?!

Decididamente não falavam a mesma língua. –– Aquele que estava na cripta? Era só um suplemento do manuscrito de Bernardo. Pensei que toparia com algum código para entender o códex, já que ele comenta ter conhecimento das marcas da videira...

–– O pergaminho que Bernardo transportava para Francesco também tinha essa marca?

Marc travou buscando ligar algumas informações sobre o tema. –– Bernardo não fala de outra mensagem, nem de um suposto Francesco.

Um momento quase lúdico, ambos estavam estupefatos com a falha de percepção, pois tudo encaminhava para o mesmo episódio que teimava passar despercebido. Acabavam de redescobrir a pólvora. Agora começava a ficar claro o que representa o encontro fortuito dos dois, não poderia ser coincidência ou incidência do destino? Haviam duas histórias, nenhuma estaria finalizada sem a outra. Juntá-los seria a conclusão destas ideias despedaçadas.

Seria possível que houvesse mais um? Como Sean o soube? Poderia confiar nesta fonte de informação inusitada? Mas Sean não recuou, mesmo porque um senhor de adequada índole, de perceptível semelhança com Marc, se aproximava instigando-o a explicar o que realmente aconteceu naquele dia perdido num passado em comum.

Um senhor de bela estampa, de terno aproado, que atravessava alguns clientes desinformados de seu estado espiritual, acomodava seu pince-nez consultando uma caderneta de campo antes de dar um parecer elucidativo. –– Hã. Antes devem saber quem foi Bernardo. Vocês já têm todos os dados em

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mãos, inclusive os de Gaius. –– destacando as mãos enquanto desaparecia como surgiu, do nada ao nada. Por que tanto mistério?

–– Gaius?! –– alto e engasgando repetiu Hassan, deixando a bandeja escorregar com o susto. Marc deixou-se deslizar com a palavra enquanto Sean dava uma piscadela em resposta ao pequeno e assustado garçom.

E Sean se pôs a narrar o que vivenciou no campo de guerra, através dos olhos da mente, numa visão perturbadora que aclarava as obscuridades do manuscrito de Bernardo, dando-lhes novos horizontes quanto quem seria o autor e verdadeiro codificador dos diários de Miguel. Sempre que recordava sua morte, Sean reagia com certa dor e angústia, mesmo que soubesse que a morte não era efetiva e nem supostamente a sua. Agora estavam com outras incógnitas, não tão novas, que envolviam uma trinca desconhecida de Marc: Max, Raphael e decididamente Allan.

O mutismo do senhor Bernis se devia ao intricado mecanismo de pensar. Nem toda a azáfama que a explosão ocasionava nas redondezas do restaurante e do parlatório impulsivo do dono distraia-o da iminente lâmpada a se acender num ponto acima de seu cérebro. Porém não era suficiente para que ligasse os pontos entre o que sabia e supostamente sabia com o que teria sobre a escrivaninha do escritório. Tinham que sair, porém Sean o impediu.

–– Nem pense em sair daqui sem me dizer quem é Gaius. –– segurando forte o punho da camisa, sem que pudesse forçá-lo a se sentar como almejava. Pouca idade, pouca força, muita coragem para alguém como ele. Neste ínterim uma nuvem de fuligem avançava pela rua afugentando alguns abelhudos que ousavam alcançar Saint-Michel. Conveniente aos desígnios do garoto que encarava Bernis recuar até o seu assento desocupado. Marc perguntaria como eles descobriram, mas deixaria para mais tarde, caso fosse o caso.

–– Estou perdendo a cabeça. –– Posso garantir que seu desejo será atendido. –– apontando

para o tumulto de uma multidão em fuga desabalada. –– Quando estive na Síria conheci um Gaius Cassius. Com

certeza você não quer falar disso, mas de como ele soube que eu o ouviria. O fato é que eu não faço ideia, como ainda não sei como

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ele me levou até Lucano. Mas para eu falar deles, precisamos ir para o apartamento assim que possível.

–– Temos que levar Mateus e Tiago junto. –– estacou firme diante de uma premente negativa.

Terminaram o lanche em silêncio. O velho Hammed disparava em brados coléricos a sua

vergonha assim que o rádio enunciou o atentado com a suposta participação de fundamentalistas residentes à periferia excluída de Paris. Sempre os imigrantes revoltados que clamavam por justiça social. –– Allah! Temos tanto o que aprender, e tão poucos interessado no outro. São as muralhas particulares do preconceito. A verdadeira jihad está dentro de cada um. –– ajoelhando-se em contida prece.

Sean rememorava o atentado quando. –– Você não estava indo para algum lugar?

–– Bem lembrado! –– pagou Hammed, transmitindo sua solidariedade sem barreiras, levando Sean pelo cotovelo para a rua que retornava um pouco à normalidade. Os resgates ainda durariam dias. Descobrindo, entre os escombros, oito mortos e quase duzentos feridos que tinham pais, irmãos, maridos, esposas e filhos.

Se ali estava a fonte de suas respostas, não importava mais, fosse o que fosse, estaria soterrado sob novos escombros que deslizaram com o tremor da explosão. O acontecimento que havia ocasionado o involuntário fechamento do Centro de Pesquisas Biomédicas dos Cordeliers passara a ser a salvação de mais vidas. Com a onda de choque chocalhando a terra, um novo desmoronamento engoliu porção dos laboratórios e da esplanada entre os edifícios mais hodiernos, sepultando a recém descoberta catacumba por mais algum tempo.

Resignou-se Marc com a devolução de um só item salvo, sua máquina fotográfica esquecida no dia do acidente com Sarah. Pingava água e nem chiou quando tentou acioná-la a esmo. Sem esperança. Talvez o cartão de memória sobrevivesse.

Agora policiais e bombeiros atendiam todas as estações atingidas num raio de cinco quilômetros da praça Saint-Michel trancando o trânsito de superfície como uma artéria entupida. Mas o coração não parava de bombear e a cidade acordaria da pequena cirurgia sob as prescrições de cautela.

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Uma onda tensa preenchia o ar, carregando-o de um estopim que, quando atingisse o nível adequado, provocaria uma explosão de eventos nada agradáveis. As hostes que assaltavam a cidade traziam maus pressentimentos e aceleravam a estupidez dos vivos que, aos poucos, tiravam suas máscaras. Muito poucos mantinham a índole intacta diante da coação sugestiva destes diabinhos de ombro.

–– De quem você falava quando se referia a “eles”? –– recordava-se Marc, refletindo se mantinha a mesma postura de bom samaritano diante de Sean.

–– Aos exércitos de fantasmas que cercam a cidade. Eu pensava que era tudo por sua causa, ou do manuscrito que já não serve para mais nada. Porém não existe razão para que eles esperem, você sempre teve o documento à vista! Até um completo idiota saberia, basta olhar para a sua estante de livros.

–– É óbvio assim? –– suspirou resignado com a hilária revelação de seu esconderijo.

–– Eu costumo ver mais do que o habitual. –– denotava um Sean bem convencido.

Resignou-se. –– É, é óbvio sim.

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o retrato de chaves

Dezenas de helicópteros zuniam violentamente em direção ao epicentro da catástrofe antinatural. A cidade sempre se organizava para tais calamidades apesar de se tornarem tão corriqueiras quão a inexpressiva reação da população parisiense. Estávamos sendo cozinhados em banho-maria.

Eles não viam, mas havia mais de um causador do mal-estar coletivo. Alguns poucos acuavam para seus belos domicílios gradeados de gritos artificiais; outros tantos mais, as atacavam.

Todo o trajeto seria um suplício sem fim. Retornaram ávidos por elucidações, contudo o caminho estava interditado, teriam que contornar a região seguindo as indicações dos policiais que continham a turba por corredores de circulação improvisados. Para onde Sean olhasse veria outra multidão pouco contida em tentativas adversas. Buscavam destruir o pouco equilíbrio alcançado com os órgãos de controle e urgência.

Subir os degraus, dois a dois, garantiria que suas vontades fossem postergadas pela poltrona bastante convidativa. Só teve tempo de lançar a máquina fotográfica sobre a escrivaninha de estudo antes de se prostrar fatigado ao lado de todos.

Não estavam a sós. Tiago, Mateus e um aborrecido Lucas ficaram aguardando

notícias dos dois, se bem que evitassem o confronto direto com os bandos nada convidativos em suas faces desfiguradas e imprecações de línguas soltas que se aglutinavam próximo do edifício. Não era uma invasão, mas surtia o mesmo efeito.

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Aproveitavam-se do caos para fomentar suas influências e fixar suas posições de batalha. Eles aparentavam alguns grupos isolados e heterogêneos com suas fardas disfarçadas sob a égide de águias ou dragões, que tiveram, cada um ao seu tempo, direitos sobre o mesmo solo onde agora estavam.

–– Qual será o tema da semana? –– resmungava ferino um Tiago inconformado com a covardia do irmão.

Sean saltou para a estante, sacando o volume apontado por sua anacrônica aparência e trazendo consigo seus contíguos representantes para uma queda estrondosa, entretanto estava com o livro cobiçado são e salvo em suas mãos. Mesmo que para essa agitação brusca estivesse estatelado no pavimento, embaixo de uma chuva de novos exemplares.

–– E o que era que estava procurando com tanto afinco? –– auxiliava Mateus ajeitando os livros numa pilha sinuosa enquanto apontava para a porta escancarada. Soldados de lanças douradas olhavam curiosos para o interior do apartamento, seguidos da dupla de guardas truculentos que costumam pajear a residência dos Fox. Eles retribuíram com sorrisos antes de se posicionarem ladeando o umbral. Os soldados sérios que se portavam como legionários do mais alto escalão romano giravam os olhos inconformados com as criancices dos vikings infatigáveis, verdadeiramente hiperativos.

Devagar, Mateus se aproximou com gestos de boa vizinhança, pedindo escusas enquanto encostava a porta afugentando olhares furtivos dos quatro pelas frestas que desapareciam. Não importava quem fossem, estavam sendo intrometidos além da conta. Retornou balançando a cabeça, confuso com a situação toda. Tiago se aproveitava para desmontar o aparelho submergido resgatado por Marc quando disparou um flash inadvertidamente.

Os Göettees seguravam a ansiedade. Marc ergueu-se involuntário, abriu uma bíblia cheirando a

novidade e a endereçou ao inquisitivo Mateus que parecia exigir explicações. Marcou o evangelho de Lucas. Mais precisamente no capítulo 23 versículo 46, que o rapaz repetiu por entre os dentes entreabertos: –– “Então Jesus clamou em alta voz: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito! E dito isto, expirou”.

–– Até aí tudo mais ou menos parecido nas intermináveis versões que existem. Bem, há também alguns erros de grafia que

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o tempo até admite. Vou lhes descrever o que aconteceu entre os versículos conhecidos, enquanto Cristo ainda permanecia no Gólgota. –– tirava o volume antiguíssimo dos braços de Sean. Lendo as anotações francesas de um texto em idioma complicado.

Das trevas ressurgiram as luzes que consumiram Jerusalém. Os anjos se calaram diante do Galileu. E um por um eles tombaram ao solo quando Jesus, de braços abertos, sorriu para aquele que o via.

Um dos anjos, a quem é como Deus, ergueu a fronte e falou ao Mestre: Porei-me à terra e continuarei vosso caminho. Então Jesus lhe respondeu de seu reino: O farás. E guardarás a palavra até que o Espírito da Verdade advenha aos homens;

também receberás as benesses dos nascituros, esquecerás o passado até que estejas preparado. Então uma vez seguirás para o norte, onde terás teu nome, e iniciarás a palavra. Naquela mesma hora o anjo perdia suas asas.

O homem estava ali e chorava em presença do Galileu imortal. Jesus lhe pediu: Quando perguntarem de mim, dize-lhes o que vistes. Um te recordarás. E o outro te esquecerás. E estarás guardado em meu gesto.

Vendo o centurião o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo: Verdadeiramente este homem era justo. –– Perceberam? Eles não entenderam nada, era tudo insonhável. As

implicações destes parágrafos abalariam o mundo? E o que Gaius tinha a ver com este trecho?

–– O que é espírito da verdade? –– fez sua primeira indagação com ênfase, Tiago. –– Ele quem perdeu as asas? –– e continuou atropelando-os. –– E o centurião, quem é? Quem o via, quem? Qual gesto... –– para desgosto de Lucas que não havia percebido que deixava escapar algo desta inquirição.

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Ninguém sabia ao certo o que responder diante destas dúvidas enigmáticas, nem mesmo Marc que supostamente seria perito em alguma coisa do gênero história da humanidade, ou muito velho mesmo para se lembrar. Alguns flocos de neve bateram contra o vidro anunciando a chegada de uma tempestade que redemoinhava abaixo de cúmulos que acinzentava o horizonte. Lá fora, quem podia ouvir, escutaria uma discussão a quatro-bocas que indicava as mesmas agitações oferecidas por Tiago.

Bernis pediu tempo, insinuando com as mãos, como um técnico de algum desporto faria. Pensava que as deturpações, as interpretações fantasiosas e os religiosos da fé cega jamais deixariam vir à tona esta pequena grande verdade. Os exércitos dos dragões poderiam ficar sossegados, os seus aliados vivos seriam mais eficientes.

–– Jamais iriam acreditar, mesmo que o documento seja verídico, não há como provar que foi redigido por São Lucas. E mesmo que aceitem esta hipótese, alegariam que ele nunca esteve à crucificação, recolhendo suas impressões muitos anos depois. E este trecho em particular, da boca de um soldado romano. –– arrematou um Marc Bernis melancólico que não disse como sabia que a fonte deste extrato era o mesmo centurião.

Como ninguém conseguia abrir a boca para acrescentar sua opinião, nem mesmo Tiago, que era propenso a falar pelos cotovelos, calaram-se aguardando que a rotina lhes alcançasse. O que não impediu Mateus de se aproximar do livreto encarquilhado sacando outras folhas que não haviam sido mencionadas.

Sean observava a nevasca afugentar as pessoas no logradouro, inclusive as que não se importariam, se quisessem. As luzes se acendiam, progredindo a partir dos pontos mais enevoados como se fossem tochas enfurecidas caçando um monstro em fuga. Um monstro que não teria pernas nem braços, entretanto possuía a ferocidade de um enxame, de uma epidemia que absorvia a todos.

–– O soldado é Gaius, não é? –– conferiu Sean, deixando cair involuntariamente a sua mochila que esparramou as suas coisas pelo chão. Tiago retornou para ver o que acontecia. Ficaram ambos se encarando nos primeiros segundos.

–– Você sabe de alguma coisa que não quer me contar? –– disse Bernis, com olhar desconfiado. Catavam rapidamente as tralhas.

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–– Talvez. –– forçando a memória. Andou até a mesma janela. Lá fora os fantasmas rodeavam o edifício como se preparassem para escalar uma muralha transparente e pular sobre a sua presa. Os seus movimentos eram constantes, como em uma colmeia em trabalho incessante. Eles estavam diferentes, mas no quê, pensava Sean.

Marc segurava displicentemente o diário que saltara da mochila, improvisando um jeito de mantê-lo inteiro com o adorno que recebera no oriente e não lhe servia mais. A singela cruz de madeiro puído fez-se de fecho para o livro de bolso que socou na mesma secção da mochila do qual despencara. Ele não se importou em se desfazer do amuleto.

Sean empalidecera. Foi Marc quem o tirou daquele estupor branco recomendando

que o acompanhasse até o Louvre, caminhar alguns minutos seria revigorante. Quem sabe para ele que não teria que passar em meio àquela gente incorpórea.

De um brado retumbante, Mateus anunciou a incursão de um bando de bárbaros mongóis que provocou a infalível reação de Tiago contra a porta já bem resguardada por oito braços armados. De costas, contraindo-se ferozmente enquanto enfiava a peças sobressalentes da máquina em um bolso conveniente. O embuste de Mateus fora seguido das gargalhadas unânimes. –– Não acha que a porta os segurará, acha? –– Só se for para refrear os ânimos que estavam em queda vertiginosa.

Mas Lucas não entendeu a piada. Queria saber do quê se tratava, mas estava muito aborrecido para perder tempo com bobagens.

Tufos brancos já cobriam os telhados. E em chãos, o impacto daquela visão dantesca deixou o

garoto duro sob o pórtico enquanto Bernis gesticulava que o seguisse fazendo coro aos fantasmas que riam e grunhiam imitações exageradas das palavras ditas. –– Venha, Sean! Venha garoto, estamos com fome. Comemos crianças no café da manhã e usamos seus ossos para palitar os dentes depois –– e gargalhavam estrepitosamente.

–– Vocês vêm, ou não? –– retornava Bernis e Tiago juntos.

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–– Oh, no way! Falar com os mortos não é nenhum superpoder, vocês sabiam!

Agora Lucas havia entendido a piada. Ninguém parecia preocupado em explicar que fantasmas existiam para ele.

–– Vocês vêm, ou não? Heim! Os quatro guardiões gesticulavam nãos com os dedos soltos,

tiravam literalmente o corpo fora. Apoiavam-se animados contra a parede, aguardando o desfecho, só faltava a pipoca e o refrigerante. –– Não entendo vocês... –– E voltou-se para a turba.

–– Só se for de olhos vendados... –– soprou sem pensar. –– Que seja então. –– piscando cúmplice para Tiago. Em

questões como essa Tiago fazia-se de mudo e, abençoadamente, cego.

Marc Bernis puxou o garoto e o pôs no ombro como um saco de batatas que se acomodasse quieto e imóvel. Nem um pio até o museu quando os gritos se calaram e um grande alvoroço se seguiu à evasão dos homens. Estava satisfeito, apesar da curiosidade em saber o quê os teriam feito correr em disparada qual o diabo da cruz.

Lucas estava tonto quando Tiago percebeu a gafe, ninguém havia contado a ele sobre os fantasmas. Nem saberia se ele acreditaria se o contassem, mas estava muito claro que ele havia reagido muito mal à notícia. Ele balbuciava perguntas que Tiago não sabia contestar, pois também nada via. Mas das vezes que lances inexplicáveis aconteceram e ele não pode ignorar, teriam ajudado Lucas a acreditar em tais lances. E foram exatamente estes que contou para seu irmão, na expectativa de que servisse de precaução contra novas.

Porém Sean só pôde ver, desta vez, os fugitivos evaporando por entre as brumas de um nevoeiro suspeito que brotava do rio Sena e que se espalhava pelas ruas tornando o ar denso o bastante para se apoiar. Mateus seguia-os, colado o suficiente para que se sentisse levemente seguro entre tentativas infrutíferas de braços e mãos em chagas horripilantes. As nuvens ajudavam a encobrir os rostos, mas não impedia o susto de aparições inesperadas.

–– Sabe de uma coisa? –– falando para si. –– Estes espíritos se vestem muito mal.

De forma inesperada uma brecha se abriu revelando uma esquadrilha em formação. Estavam em patrulhamento de baixa

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altitude o que permitia identificar suas insígnias. Mateus olhou aleatoriamente para o alto, acostumado com o sobrevoo de aeronaves, mas estas não evitaram que ele parasse uma segunda ou terceira ocasião tentando entender do quê se tratava. De soslaio, na primeira observação, viu que eram à hélice. Como quem não estava satisfeito, mais atentamente, percebeu narizes amarelos à carenagem dos mesmos. Enfim, retrocedeu para uma nova averiguação que se fixou em suásticas circunscritas de messerschmitts e junkers mergulhadores.

Sean também os notou. Estava mais preocupado com um ataque kamikaze. –– Criar uma revoada de pássaros assustados resolveria?

–– Creio que para estes tipos, não. Depois, não estou vendo nenhum pássaro por perto. –– e o inverno se declarava.

Mas acompanhando os aeroplanos estavam criaturas de cauda e longas asas que, indestacáveis em seu planeio, passaram despercebidas dos garotos; animais que só existiam em lendas da idade média e que poucos conseguiram derrotá-los. São Jorge fincara sua lança em um, outros seguiram-no com algum triunfo, contudo, a grande maioria jamais retornaria viva.

Agora algumas dezenas de aeronaves zuniam ameaçadoras. Um assalto por terra, um quase-outro por ar, o que ainda viria pela água?!

O rio borbulhava. Percorrer as exposições do Louvre seria corriqueiro traslado à

multidão de turistas que aí se afluem diariamente. Portanto não seria simples a quem enxerga mais do que quadros e esculturas. Ainda tinham em mente o confronto com a guarda napoleônica no subsolo do complexo. Nem mesmo Tiago deixava de se inquietar com uma eventual reprise do episódio que Lucas acabava de descobrir, para pavor seu.

Os guias deste Louvre diáfano atravessariam as alas e exposições onde não haveria problemas. Inapropriadamente as secções de pinturas e gravuras estavam acima de suas testas. Eles estavam na asa Richelieu, que alberga as esculturas medievais, seguindo cautelosos até o acesso subterrâneo à Pirâmide de cristal. Os poucos exemplares etéreos que insistiam em ficar perambulando, estavam mais preocupados com a mais perfeita

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pose ou na análise profunda da falange do pé de um anjo barroco ou talvez neoclássico. O pior estava para vir, uma passagem enervante pelo âmbito medievo e suas armas afiadas e temíveis, para acabar, se sobrevivessem à aflição, dentro das antiguidades egípcias e suas múmias não tão sossegadas.

Todavia, as muralhas da fortaleza do antigo Louvre não defenderiam o acesso oeste de novos cercos ao burgo; subterradas e encaixotadas pelo esqueleto de um Louvre menos monárquico e, que aos poucos, fora remodelado por construções mais recentes e insólitas. Nem tampouco proteger aqueles que aceleravam o passo, evadindo-se dos quietos e impassíveis olhares dos elmos dos cavaleiros em seus guarda-roupas de cristal límpido como a água que jamais viram.

Marc já não o consideraria um ambiente tão íntimo como antes. Cada artigo em exibição tinha uma biografia que envolvia indivíduos, multidões ou povos dos quais poucos teriam tido finais felizes. Era bem provável que, quem quer que esteja colado a estes artefatos muito ambicionados, não quisesse que fossem tomados. Quem sabe até estejam, às centenas ou milhares de proprietários, discutindo o domínio em questão. Nada mais lógico.

Mas assim que, alguém bem vivo o possuísse, não haveria mãos que pudessem evitar, se bem que a coleção de antigos donos acompanhariam a excursão da peça até sua revigorada prateleira de mogno empoeirada. Amontoados em velhas discussões.

Para Mateus e Sean, estas ideias não passavam de imagens assustadiças e reais. A imaginação de Bernis não o diferenciava das certezas da vida. Bastava conhecer a natureza humana, sendo ela neste ou noutro mundo, acima ou abaixo deste. As razões nem sempre são evidentes, porém quem as tinham, controlava ou modelava as demais ao seu bel prazer. Meta e força de vontade servem tanto para conquistas do espírito humano quanto para a destruição delas.

O escritório continuava desorganizado, como era a forma de organização de Marc redigir suas pesquisas. Um pouco de ordem se devia aos arquivos demarcados por Sarah com tarjas coloridas e armários setorizados. Um computador estava operacional, assoprando um ruído enfadonho de seu cooler que parecia não querer se desligar. A luz era delicada e se agrupava em bocais de abajures e direcionais de quadros ou comentários de canetas

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vermelhas e negras num painel. Muitas fotografias referenciavam locais e artefatos, outras eram mais particulares, vida acadêmica e amigos em trabalhos. Mas as mais importantes estavam num álbum detrás de sua cadeira de serviço, seus pais, avô e momentos inesquecíveis que poderiam ser clareados de vez em quando, sobretudo quando a memória começasse a descartá-las impiedosamente.

Os casacos voaram sobre o cabideiro. Um telefonema ansiado desanuviou sua apreensão quanto ao

estado de saúde de Sarah para ânimo de um Sean que tivera pouco tempo em sua companhia desde o imprevisto na cripta submersa e o seguido pânico do resgate peculiar.

Os papéis sobre a mesa de tampo luminoso estavam onde ela teria visto pela última vez, cada folha possuía um cartão anexado com esclarecimentos tão sutis quanto a intuição feminina desejasse ocultar. As cores eram citações que Marc desconhecia, ou não fazia questão de saber. Um copo de café fez ele esquecer qual das duas por um momento.

–– Temos que solucionar quem é quem nesta questão sobre os fantasmas e o códice. Bernardo, Francesco, Max, Raphael, Allan, espírito da verdade – só para constar – e, faltou alguém?

Tiago, Mateus e Sean, em coro, gritaram: –– E Gaius! Este ele sabia de cor e salteado, queria descobrir os outros

para chegar ao pergaminho desaparecido, escrito por um e levado por outro até aquele que indicaria quem deveria guardá-lo sob sete chaves. Talvez só uma bastasse. Mas havia nota de quê poderiam ser duas. –– Eu guardarei o pergaminho que me confiastes e o depositarei sob a minha insígnia e o seu símbolo. –– como repetiu Sean em sonhos.

Se ele fumasse esta seria uma ótima oportunidade para tal, porém conteve-se em continuar com o café que esfriava além do ponto de saborear.

–– Gaius Cassius era o legionário romano que presenciou a

morte de Cristo. –– mas não era só isso –– Foi ele quem o apunhalou no tórax com uma lança.

Aparentemente os garotos ignoravam o evento, sendo que não falaram nada, davam de ombros, sem entender. Nem todos eram

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adeptos do estudo e da pesquisa, nem sequer mantinham os ouvidos abertos durante as aulas.

–– Então ele era mal! –– que resumo grosso. –– Não, nada disso. Pelo que soube, o homem reagiu à

tentativa dos sacerdotes de impingirem mais sofrimento a Jesus. Parece que eles haviam quebrado as pernas dos ladrões que estavam crucificados ao seu lado. O próximo seria...

–– Então o soldado acelerou o processo com o que tinha em mãos... –– que Tiago curto e grosso.

–– E ficou arrependido convertendo-se ao cristianismo. Além do fato de ter sido curado das vistas com os respingos do sangue de Cristo. Ainda não estava cego, possivelmente estava na província, meio que afastado, por apresentar sinais de catarata.

A conversão não era marcada só pelo milagre, no entanto havia um componente de perdão e arrependimento que propiciou que ele encontrasse um novo caminho, mais fraternal e justo. Sua vida seria perpetuada pela conversão, mas foi sua ação moral que determinaria a sua evolução e por isso merecia a estima de ter se tornado um santo. Esta passagem provocou revoluções de sentimentos estranhos a Sean, que restringiu suas emoções à mais forte delas, o compromisso.

–– Desde então ele e sua lança percorreram caminhos distintos, adotando nova designação de lançador: Longinus. –– revelou Marc.

O caminho da lança finaliza, nos dias de hoje, no museu austríaco de Hofburg após ter supostamente estado com o führer na última grande guerra. O mito criado em torno do talismã bifurcava para duas personagens que se opunham.

Há uma lenda ligada a esta lança que diz que quem a possuir e decifrar os seus segredos terá o destino do mundo em suas mãos, para o bem ou para o mal. Porém tem sido mais usada como instrumento de conquista e opressão. E não era isso que eles queriam.

Para Marc não passava de uma fábula sobre um artefato que pouco representava, inclusive aos austríacos, senão eles seriam uma nação inigualável; ou a lança do destino era só uma história para ninar. Mas Longinus existiu, senão quem o guiaria até o extrato apócrifo de São Lucas que agora estava diante de seus olhos?

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–– Como veem, tudo que promete demais, acaba cedo demais. Com a ajuda de Mateus, eles inverteram um extenso quadro,

desobstruindo seu verso. O pergaminho de pele brilhava protegido por um composto sintético aprovado para a recuperação de documentos muito antigos. No anteverso, letras gregas miúdas e sem separações reproduziam o que São Lucas exprimiu como os eventos no monte da caveira. O que estava camuflado, agora revelado, era o documento mikhae. O mais antigo e não menos intraduzível, com seus mesmos símbolos gregos impressos num mesmo rolo exposto.

Com uma folha cândida Marc rabiscou uma sequência de letras reconhecíveis e fixou-a abaixo do referido parágrafo. Com uma caneta bastão circulou, no vidro, sobre o pergaminho, a cártula que correspondia ao vocábulo traduzido de mikhae ou mixael. Para cada uma das fotografias espalhadas no recinto ele colou uma lâmina similar. Para linhas, rabiscos, curvas e alfabetos raros havia uma compilação em letras de nosso abecedário. Com exceção das cártulas circuladas, mesmo em letras reconhecíveis, os textos continuavam sem sentido.

Eles percorriam os olhos num giro pleno antes de terminarem seus exames sobre o descobridor que empurrava a papelada em busca de um manifesto da batalha de Damietta, com nomes de destacados militares, alguns religiosos e pouquíssimos capturados. Todos mortos, em batalha ou dormindo, não havia distinção.

–– Uma emboscada ao acampamento situado num dos ramais do delta do rio Nilo dizimou duas frentes de defesa. Uma delas era constituída por cavaleiros teutônicos. Os nomes de dois oficiais e do médico de campanha batem. –– para alívio dos curiosos.

Maximilian e Raphael diziam respeito à casa dos Lenffers, grafia germânica, que provinham de Lotharíngia, ocupada por outra contemporânea designação, Lorena. Estado independente que, com o correr dos séculos, e movimento das marés políticas, pertenceria à Germânia ou França. Inconstância que transparecia na relação entre os irmãos Lenffers, gêmeos de opiniões conflitantes, como denota o pouco histórico incrivelmente amealhado, anexado ao manifesto assim como algumas missivas protocolares.

Era presumível que quem controlava e intercambiava as relações dos gêmeos fosse o médico de campo, Allan cujo nome

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de ascendência apagou-se como a margem do pergaminho desenrolado.

Guarini se locomovia distraidamente de um lado para o outro,

enfiando a cabeça onde não era chamado com relevante cuidado, de mãos cruzadas às costas e boitatá nelas. Tanto papel velho e esturricado seria perfeito para um incêndio inexplicado que teria a marca sutil do focinho de Mbaê.

Eles não estavam prestando a devida atenção ao diz-que-diz; quando eles tivessem resolvido as preliminares interagiriam conforme as circunstâncias. O indiozinho sabia que haveria algumas opções, todavia, a grande maioria tão insolúvel quanto o pretexto pelo qual as portas do abismo se abriram lançando as hostes que corriam sem trégua para ali.

Ele já se impacientava com o atraso. Acercou-se de Mateus que instintivamente agarrou-se ao

computador analisando os arquivos sobre a batalha dos cruzados. Mas não era isso que responderia suas investigações. O índio puxou com um gesto de venha-aqui o homenzarrão que guardava o pórtico do escritório. Asgard em seu sorriso pueril, de braços graúdos como sua clava, espantou Sean que recuou uns passos contornando Mateus encabulado. O grandalhão propunha-se balbuciar alguma palavra-chave que fosse relevante, por movimento de aquiescência de Guarini. Abriu a bocarra sem emitir som, mas antes que a selasse soprou:

–– Wikipedia. –– Tanto espanto que Mateus boquiaberto não reagiu. O brutamontes ergueu as sobrancelhas insinuando estar confundido, todos que podiam escutá-lo estavam parados. Até mesmo Guarani que esperava algo menos tecnológico.

–– Bjarmaland. –– complementou Asgard. Uns cliques após e aparecia o artigo armazenado na rede

mundial sobre este território na Europa Setentrional que é mencionado incansável nas Sagas Nórdicas. Mas Asgard insistia que pulássemos as elucidações gerais com uma pressa empolgante até para ele. Apontava com extrema alegria para si em atenção ao companheiro que se afligia com o caráter pouco confiável apresentado por um guardião deste naipe. Sean repetia uma tradução para que todos ouvissem: –– “Parece que os escandinavos fizeram uso desta rota de comércio, somado àquelas

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realmente trafegadas pelos Varangians. Em 1217, dois comerciantes noruegueses chegaram em Biarmland para comprar peles; um deles seguiu mais ao sul atravessando a Rússia e conseguindo chegar a Terra Santa, onde participou das Cruzadas. O segundo mercador que ficou foi, por sua vez, morto pelos Biarmians”. –– O mercador ainda apontava o dedo para si, orgulhoso.

Marc começava a dar crédito aos fantasmas, era a última incógnita no seu trabalho de busca pelas origens do códex mikhae. Que o descobrimento de um símile o transpusesse do Oriente Médio para o Mar Branco era até admissível, entretanto que os originais tivessem sido levados até lá, em meados do século treze, exigia muita imaginação. Quem seria acusado por esta impossibilidade! Deparara-se com uma probabilidade, por mais estranha e extraordinária que fosse.

Entre o norte e o sul havia uma ampla terra inexplorada, insolente e permeada de conflitos e pragas, mas alguma pessoa a atravessou. E regressou com algo precioso.

Para Marc complementar. –– Os sobreviventes da batalha seguiram para o norte, retornando para Acre ou Antioquia, na Síria. Com o golpe religioso aos cavaleiros templários, aqueles que aproveitaram a chance, saquearam os vilarejos e seguiram para outras regiões. Tem-se conhecimento que a ordem dos cavaleiros teutônicos se dirigiu para o báltico. O ponto de conflito, onde os comerciantes possivelmente teriam capturado os documentos saqueados, aconteceu em 1242. –– que recebeu uma afirmação repassada por Sean a pedido de Asgard e Hyeron. –– Batalha de Gelo. –– arrepiou-se Mbaê que criou.

A aparição surpresa da indiferente salamandra-de-fogo espantou Sean e Mateus que preferiram acuar até o agora menos temível Asgard. Guarini gritou para Mbaê voltar para o seu embornal. Ela olhava indignada, bufando, enfadonha, minúsculas labaredas fumacentas.

Porém, a mesma destruição moral que esta luta ocasionou aos teutônicos lituanos pelo mártir-russo Alexander Nevsky de Novgorod seria re-encenada pelos nazistas alemães na sua retirada coagida de São Petersburgo. Os papéis estariam seguros em sua viagem a uma, para sempre congelada, aldeia na foz do rio Dvina, na cidade pós-bjarmaland de Arkhangelsk.

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Por poucos segundos a descoberta seria notícia, se não fossem

interrompidos por Tiago que se aproveitara da situação in vacum para inserir o cartão de memória, resgatado da máquina fotográfica salva dos escombros do convento dos cordeliers, no compartimento de entrada do monitor de plasma usado em teleconferências muito menos interessantes.

As duas chaves resplandeciam distorcidas abaixo de uma

lâmina de água translúcida. Agora as chaves estavam soterradas. Levaria algum tempo, mas estaria lá. O manuscrito de Raphael, Allan e Francesco. Quando o subterrâneo sacudiu ameaçador. –– Não gosto da ideia de ficarmos embaixo do solo. Bem

agora que os dragões estão sendo acuados de suas prisões seculares. –– Guarini deixou bem claro.

A boitatá ainda bufava e resmungava.

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a dissensão

Bastavam poucas palavras para que os homens ao seu comando o seguissem cegamente; para cada divisão de seu exército havia homens de confiança. Para cada agrupamento, seus subordinados teriam seus próprios homens de confiança que se olhavam com muitas desconfianças. O que os impediam de insurgirem-se contra a cadeia de comando era a ignorância que traziam junto com sua bagagem.

E o medo. Medo de infligir ordens e suas retaliações. Se todos

resolvessem não dar seriedade a estes métodos aflitivos, descobririam que não haveria quem os punissem. Alguns poucos sabiam que bastava pôr em dúvida a hierarquia e as legiões comandadas se transformariam em turba caótica.

E esta coesão já estava se fragmentando. À medida, porém, que se questionam, o horizonte se lhes

ampliavam, e eles compreendiam o bem que está diante de si como compreenderam o mal que lhe está atrás. Mas não estão prontos, ainda estão no meio do caminho. O caminho que conhecem, de dores e misérias. Qualquer dissensão agora seria um impacto tão grande que causaria caos e desestruturação destes seres sofredores e vingativos.

Três comandantes se esforçam para adiar este momento que pressentem iminente. –– O que nos mantêm juntos pode provocar nossa derrocada.

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Davidson e herr Rommel prontamente concordam, mas para o capitão Sixderniers se torna mais intricado. Mas finalmente ele consente com a situação desastrosa que se aproxima. Questões particulares eram esquecidas quando os dragões exigiam plena participação em seus planos. O pouco que estes poderosos subordinados sabiam tornavam-nos tão marionetes quanto seus peões de guerra. Não divisavam que suas ações não passavam de vãs tentativas de conseguir o que estava inexoravelmente perdido.

Os dragões lutavam desesperados para evitar, mais uma vez, que seu mundo fosse desmantelado. As fossas abissais foram abertas e as vítimas e verdugos libertados, avançando para a superfície do planeta em convulsão. Para todo o resto parecia uma invasão, mas existiam outras razões que, até os draconianos desconheciam quando tudo que estava acontecendo provinha do céu. Toda a operação já estava comprometida, eles não sabiam. A maioria somente busca os prazeres de vícios, orgulho inflamado e egoísmo exacerbado para criar mais poder.

Capitão Sixderniers, ignorando ser uma peça descartável,

tamanho o seu orgulho, prontificou-se a suprimir o que estava ocasionando a fraqueza da operação de batalha, Max Lenffers, o cavaleiro dos infernos.

Se alguém estava esperando que o Inferno congelasse, este dia havia chegado.

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francesco bernardone

A imagem fotográfica capturada, instantes antes da cripta romana dos cordeliers desmoronar, provocou uma mudança nos planos de transcrição do códex mikhae. Agora, em vez de alguns anos, talvez fossem acessíveis em –– digamos –– alguns poucos dias.

Para Sean e Marc Bernis a mesma dúvida afligia seu martírio e se repetia como uma cantilena monótona que não saia da cabeça. Se pudessem constatar, teriam percebido que alguém insinuava a dúvida. A citação era já bem apreciada dos dois –– Eu guardarei o pergaminho que me confiastes e o depositarei sob a minha insígnia e o seu símbolo. ––, inteiramente dos lábios de um Francesco perdido dentro da cabeça de um garoto.

Como ter certeza de que os símbolos são estes, a folha da videira estava corroída, assim como a segunda marca que se assemelhava a uma cruz. Cruzes em catacumbas cristãs eram entalhes modernos, medievais. O sepulcro cabia a este período, mesmo que todo o resto fosse dos primeiros séculos e os supostos cristãos fossem identificados por uma simplificação do desenho de um peixe sem escamas ou nadadeiras.

Mateus cutucava Sean com insistência. Seu objetivo era que ele observasse os fantasmas recuando com pressa indisfarçável, esvaziando o recinto que ficava agora desguarnecido de guardiões tão providenciais.

Entretanto Lucas continuava mexendo onde não devia, derrubando parte dos papéis que compunham algumas torres que

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ladeavam o bordo de uma mesa de apoio. Ficava nervoso em não saber o que estava acontecendo ao seu redor, fantasmas tagarelavam e ninguém parecia se importar com ele. Por isso que acabava esbarrando e tropicando nas coisas, talvez conseguisse alguma atenção forçada. Porém, estas torres não-Marchianas, nada cromáticas, mas bem aparelhadas, eram o levantamento de Sarah acerca de três eventos importantíssimos, os Cordeliers, a batalha de Damietta e muitas revistas de moda Vogue.

O garoto desastrado não tinha como disfarçar suas faces rubras pelo deslize cometido, enquanto Bernis se agachava para recolher os destroços. Bem observado, junto destas informações, estava um livro de referência que utilizavam para algumas anotações biográficas. A página em evidência estava selecionada por um grosso envelope pardo. Na etiqueta, a descrição da adaga e um resumo do departamento de catalogação confirmavam ser do sultão Melek Al-Kamil, o ofensor de Damietta na fatídica luta narrada por Bernardo. –– mais outra coincidência.

Ele girou o envelope avaliando seu peso antes de atirá-lo sobre o aparador igualmente atulhado de documentos retorcidos e livros marcados por dezenas de línguas de marcadores improvisados. O volume em suas mãos contava com uma pequena narrativa reconhecida com certa estranheza. De como a adaga chegara até ali, havia uma possibilidade que só este acontecimento traria esclarecimento.

–– É, tinha alguém dentro do campo de batalha com certa influência ou neutralidade entre os dois exércitos. Alguém que possuía um salvo-conduto para seguir as Cruzadas, dado por um Cardeal. Alguém respeitável aos olhos do exército inimigo, reverenciado por Al-Kamil. Alguém que retornou incólume. Alguém...

Ele retrocedia uma folha para rever o título do capítulo que, para seu espanto, conferiu com a sobrecapa do livro antes de soltá-lo a esmo. Sua atenção estava na frenética busca ao manifesto de guerra. Só havia conferido os militares ou Bernardos. A obra, que agora estava com Mateus, permitia que todos os demais soubessem do que se tratava: santos católicos, suas biografias.

–– Existe um Francesco no inventário. –– pasmo. –– Francesco Bernardone... –– E disse isso com incredulidade e

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júbilo. Tinha o elemento que lhe ensinava como chegar ao correto manuscrito, aquele que simplificaria o significado de um diário espalhado pelos quatro cantos do mundo como um bizarro códice.

A folha de uva, da videira, estava presente como símbolo do codificador mikhae. A suposta cruz, do crucifixo de Santo Antão. Crucifixo de Santo Antão –– que em voto de pobreza fora imitado –– posto diante do altar da capela de São Damião, sobre o altar da igreja de São Damião em Assis indicava a outra insígnia. E na cabeça de Marc ressoou vívido de suas lembranças do passado. –– “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Restaura-a para mim!”.

Mateus mostrava o capítulo que vincara o livro biográfico dos santos quase o partindo em dois para os garotos que, com a surpresa, soltaram longos e apalermados hãs.

–– São Francisco de Assis! –– Tal qual. –– gaguejava Marc. –– Acho que agora temos a

personalidade que nos dá o crédito que precisávamos para confiar que os documentos, o códex, os diários sejam sérios. Não acham?

Acenaram um sim. –– Necessitávamos de ambos os símbolos combinados para

que o local fosse demarcado. O que faltava era a assinatura de São Francisco, que costumava registrá-la como um T. A cruz de Santo Antão, o tau grego. –– e sobre a imagem do televisor ele grafou e contornou ambos, assim como acentuou o título na lápide seguida de uma época. –– Temos o tau, temos a videira, temos...

Forçava a vista buscando compreender as garatujas que compunham uma inscrição e números. Na fotografia adjacente teriam a resposta refletida por uma iluminação inclinada que aumentava as sombras do baixo-relevo esculpido na pedra submersa. –– Allan de Sint-Miqels, 1219. Damyat. E ligeiramente abaixo deste, um epitáfio insólito. –– Ninguém me presta auxílio para estas coisas senão Miguel, vosso Príncipe.

Como diria Marc, em espasmos de cientista louco. –– Espantoso. Ou este ano é uma confluência temporal ou é só outra coincidência.

–– Coincidência?! No way, man! –– Sean reforçou sua certeza e dos outros. Gaguejando em outra língua o que constituía apropriada confusão ressuscitada.

O subterrâneo ecoou imediatamente.

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Os cinco pensavam cinco coisas diferentes, no entanto, quem agiu com maior ligeireza fora Marc que se atracou com o cabideiro extraindo seu casaco. Por instantes voltou-se para os garotos, ensaiando uma escusa para a súbita fuga. Ergueu a palma da mão pedindo que esperassem e mudo, sem dizer uma única palavra, pensando uma coisa e fazendo outra, saiu.

Os demais, sem reação, se espremeram no pequeno sofá de três lugares, avaliando o próximo passo. Lucas abria e fechava a boca sem emitir sons, não conseguia construir uma frase sequer sem que parecesse redundante. Tiago confirmava balançando a cabeça.

A manhã já terminava, e eles estavam famintos. –– Estou com fome. –– ergueu Sean que já se vestia com

dificuldade. Eles não retrucaram, pularam sobre as jaquetas forradas e amarrotadas e puxaram Sean com eles. A luz do sol caiu como um alívio ansiado, carregando-os sonambúlicos através da grande ilha de la citè.

Estavam defronte à oclusa praça Saint-Michel, cingida por veículos de serviço e gente atarefada na desobstrução da estação de metrô e no religamento das artérias de cabos e encanamentos rompidos. Ao longe, a estátua ainda parecia vigiá-lo cobrando um antigo pacto. Sean não entendia a sensação.

A chuva de destroços havia marcado o chão, deixando um espaço em branco, exatamente onde ele estava mais cedo. Um círculo absurdamente limpo, sem pedriscos ou rachaduras.

Mateus percebeu os pensamentos. –– Não sei todas as coisas. Mas não posso negar que estamos

mexendo com algo que não devíamos. –– Está enganado, somente nós poderíamos. –– corrigiu Sean. –– Tomara que você esteja errado. –– Tomara. Contornaram as fitas de segurança chegando a discreto

restaurante no quai du Marche Neuf, que com o frio, estava com as mesas à rua, abandonadas, e seu coração aconchegante de uma barcaça-restaurante ancorada no Sena. Fumaças escapavam de suas chaminés com perfume inebriante de assados e massas em ebulição. Mesa para quatro, contudo, considerando a fileira de espíritos que lhes acompanhavam, seria preciso todas as cadeiras e mesas do recinto para acomodá-los.

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Estavam apreensivos, especialmente os que viam a movimentação destes espíritos recém-chegados com ares de excursionista atrapalhado sem mapa e sem rumo.

–– Olhe ao redor, você acha tudo isto normal? –– queria verdadeiramente saber Sean.

–– Não. Por isso mesmo que quero sair fora o mais rápido possível deste tumulto. Se ninguém precisa ver, por que eu me importaria? Acho que você devia fazer o mesmo. –– aconselhava Mateus pouco convincente –– Aliás, faça como eu, finja.

Respirou fundo antes de seu remate inflexível. –– Não vou enfiar o rabo por entre as pernas e fingir que não é comigo. Temos que servir de ponte entre os mundos, senão como explicar o motivo para estarmos envolvidos no meio desta guerra. Considera tudo simples acidente!

–– Sim. –– Não seja um imbecil... Cortado bruscamente por Lucas que não gostava do garoto,

muito menos que enfrentasse seu irmão. Quem era ele para retrucá-lo. Sem dúvida Mateus saberia muito mais, tinha mais tirocínio, mesmo que o tivesse enganado por anos com o encobrimento de suas supostas visões fantasmagóricas. Para Lucas este dia era só uma trégua, porque queria desvendar o que se passava, mas enfim o dia terminara e não teria que representar o cara metediço e desvelado. –– Ouça o que ele diz e cale a boca!

Sean pediu licença aos três e disparou porta afora. Tiago tentou esboçar uma contramedida, mas Lucas segurou-o com firmeza exagerada.

Mateus parecia não se importar, não valia a pena. Agora era tarde demais.

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portas abertas para

Desabalada fuga não passava de pretexto para ficar sozinho, contudo a companhia de Tiago seria bem aceita. Se ele não se propôs a acompanhá-lo era porque discordava do que havia dito. Sean não podia ignorar os sinais pouco fortuitos, mesmo que os fantasmas o ignorassem, se bem que ele desconfiava o contrário. Como eles mesmos destacaram, eram iguais aos vivos, não era porque morriam que eles se tornavam santos. Talvez santos-do-pau-oco.

Este novo mundo era tão parecido com o que ele conhecia que era difícil de perceber as diferenças mais contraditórias. Não porque eram semelhantes demais, mas porque acabavam atrapalhando sua percepção do que realmente estava acontecendo. Os exércitos, as pessoas, os objetos eram todos similares; mas juntos, eram incoerentes e inacreditáveis. Quando e onde ele teria a oportunidade de ver um mercador veneziano dos grandes descobrimentos, em suas roupas bufantes de meias coladas, discorrendo calorosamente com um corretor da bolsa de Nova York da grande depressão.

As avenidas desocupadas tornavam-se ruelas apavorantes, silenciosas. Contudo era uma dessas que o levaria ao seu home sweet home, já não tinha medo de ser encurralado por garotos raivosos de muitos punhos e pontapés. Era uma sensação estranha que não sabia explicar. Conteve-se por instantes antes de transpor os degraus que o levaria ao pórtico. Poucos dias que pareciam meses, sua casa parecia-lhe distante.

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O ranger da porta anunciava e preconizava algo de muito inusitado, silêncio e a escuridão de um breu quase sólido impedia-o de caminhar fluidicamente, tendo que se apoiar em objetos que sabia estar em locais reais, porém de recordações imaginárias. Por isso apalpava de dedos leves e andar ziguezagueante.

Quando seus olhos começaram a perceber os contrastes e contornos da semiobscuridade, uma luz mortiça ofuscou-lhe momentaneamente sua ação. Os contornos ganharam cores embaçadas que se aglutinavam. Sean não escaparia de mais um sermão.

–– Não o esperava tão cedo. –– era Patrick que se erguia amassado de uma poltrona enfeixada pelo foco de luz religada. Ele não estava com cara de estar tendo um bom dia, e claramente procuraria completá-lo. Estar no escuro em plena tarde garantiria que as observações eram estas.

Sean já havia percorrido a grande distância que poderia tê-lo salvo desta confrontação. Estava perto demais para ignorá-lo e longe o suficiente para não tentar escapulir sem represálias, então teria que enfrentar a situação, não tinha jeito mesmo. E tanto não tinha que Patrick deu um passo e agarrou o garoto pelo cangote, puxando-o para a poltrona. Agora era tarde para fugir ao interrogatório paterno.

–– Soube que continua falando o que não deve! –– tão calmo o quanto lhe era possível. –– É por tua causa que não temos sossego nunca. –– elevando alguns tons que chegavam ao limite de indicar alguma raiva moderada.

–– Peraí. Não tenho culpa se se sente incomodado com que eu ando fazendo. Perdi muito tempo aguardando que vocês me entendessem e mais, me defendessem. –– atitude bastante incomum em Sean. Supostamente mais difícil do que aparentava, encoberto por uma taquicardia nervosa de mãos suadas.

Patrick engoliu com um engasgo seu assombro. –– Como?! Contando mentiras? Alimentando o seu delírio? Fiz tudo o que podia, até o que não era capaz...

–– Esse é o seu problema, pai, não acredita que possam existir outras verdades que não seja a sua. Quem é que foge sempre? Eu que aceito a realidade e me adapto às minhas dificuldades ou você que abandona cada um dos seus parceiros porque simplesmente não aceitam suas opiniões! –– o garoto o assustou com sua força

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de vontade e uma maturidade que achava longe de encontrar num filho de poucos anos. Patrick, devagar, soltava os dedos da gola e se erguia intimidado por outra verdade que sabia ser a única.

Seu filho era instigado a falar além do que queria, mas devia, se queria por um fim nestas desconfianças infundadas. Quando ele poderia deixar de ver fantasmas! Até quando conseguiria ignorá-los! Era muito mais fácil lidar com o fato, de fato.

–– Que o senhor não acredite no que estou dizendo, concordo! Mas para impor o que você deseja, antes é preciso que entenda o que está acontecendo comigo. Eu vejo e falo com espíritos, quer queira ou não. É obrigatório que eu me adapte a outras realidades porque para mim elas existem...

–– Para mim não há outra realidade senão esta. –– Somente porque não quer saber delas, elas estão por aí. –– Quem garante que você não está se enganando com

mentiras? –– Patrick ainda estava contendo seu anseio de dar um bom tapa, de fato.

–– Porque elas não existem, só verdades, seja a minha, a sua ou a nossa. Milhares de verdades, talvez várias para cada pessoa deste planeta. O problema é que todos querem aplicar a sua, como o senhor sempre faz com todos, sem exceção.

A mão já descia ligeira para acertar algum ponto já cicatrizado no rosto do filho, mas foi impedido por duas forças que lhe eram desconhecidas. O ar tornara-se grosso em torno do punho, refreando o impacto certeiro. Era alguém que Sean viu, pouco antes de terminar a frase, se interpor contra o ataque. A outra força era mais desmoralizante, a culpa, o remorso por estar sendo injusto. Se bem que sua maior transformação demoraria algum tempo para assimilá-la: quem segurou seu braço?!

O braço estagnado, parado no ar, reforçava sua dor. A anciã piscou fraternalmente, assegurando que o bisneto não soltasse o braço em Sean. Patrick olhou para o filho querendo ampliar sua cólera com o ato que lhe era incontrolável. Todavia Sean mantinha o olhar firme, sem reagir às fraquezas reconhecidas de seu pai. Quase podia sentir dó, a mesma que sentia por si.

Foi o suficiente para quebrar a máscara. Patrick Fox jamais seria o mesmo, prostrou sua estupidez, mas demorou demais para reagir. Queria abraçar o filho como nunca o fizera, mas era tarde.

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Queria se desculpar, mas o prazo vencera e Sean já estava escalando os degraus para seu dormitório.

Ele só queria descansar. Esta discussão perdia o seu interesse. Verdade seja dita, estava mais curioso com o que havia

descoberto. Outras verdades? Qual era a das legiões invasoras, qual era a dos índios, qual era a verdade de Marc ou simplesmente a sua? Tinha que rever seus objetivos futuros.

Arremessara-se à cama cobrindo os olhos como se a coberta encobrisse a enxurrada de pensamentos aleatórios e exaustivos que se arremessavam infatigáveis à sua mente. Os braços estavam cruzados sob a nuca buscando um ar ligeiramente descontraído. Não muito longe conseguia escutar Jox brincando, alheio aos problemas que preenchiam a casa com seu peso específico que derrubaria qualquer um pouco são.

Com receio do quê sua mãe descobriria se lhe perguntasse o que acontecera nos últimos dias; deixaria para responder a esta dúvida quando ela estivesse lá.

Ele se esforçava para descansar sua cabeça por breves momentos antes de saciar sua curiosidade galopante. Não iria deixar de pensar no códex, São Francisco ou no que concebia estar acontecendo com os invasores incorpóreos. Já havia descartado que fossem invasores de corpos, pelo menos não pareciam interessados nisto.

Irresistível manter-se quieto, lançou o cobertor no ar transpassando alguém que ele não via, que permaneceu incólume por enquanto, vasculhando. Alguém impressionado com o cômodo e os objetos juvenis que lhe causavam tanta estranheza.

Sean já vasculhava na mochila algo que preferiria não dividir com ninguém até que pudesse analisar com tranquilidade esta nova charada, que Marc procurasse as dele. Ele tinha uma em mãos. Desde que o velho diário despencara diante de si, dias atrás, justamente quando Bernis enrolava-o com o cordame de sua cruz, entendeu então que Marc não possuía todos os documentos mikhae. O crucifixo cruzou o retrato de um anjo e seu demônio, antes de se encaixar num relevo menos perceptível, porém mais extraordinário: a folha de uma vinha e seus galhos tortuosos cobria um fecho enferrujado e deteriorado.

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O cheiro acre do bolor se misturava com o perfume suave que se desprendia da madeira do qual fora esculpido o crucifixo dos franciscanos. Girava o crucifixo com a ponta dos dedos e fincava a outra mão apoiada no queixo, mas passos e metais tiraram Sean de suas elucubrações.

–– Faça como sândalo que, quando machucado, nos oferece seu melhor perfume... –– se referindo ao madeiro. Era o mensageiro que se aproximava depois de vasculhar disfarçado todos os cantos com desvelo misterioso.

O jovem cavaleiro já não provocava medo ou espanto e agora nem mesmo indiscrição não contida, para admoestação do fantasma que era um pouco orgulhoso de seu status.

–– Hã. É você! –– desdenhando e devolvendo o livro para o ostracismo. Ainda sentia palpitações quando estas aparições surgiam. Os metais de sua armadura tremeluziram quando a luz do sol vespertino alcançou-o em seu movimento de ocaso. Reflexos estes que obrigaram o mensageiro a se sentar à cama, longe do brilho que ofuscava Sean. Quando conseguiu olhar para o cavaleiro sisudo, sentado de pernas cruzadas com extremo esforço, não pode deixar de engasgar com uma risada refreada que disfarçou muito mal.

–– O que você descobriu sobre Allan? –– pergunta de resposta quase que obrigatória.

–– Ele está aqui! Havia júbilo nos olhos do cavaleiro. –– Aqui, em que lugar? –– Sepultado numa cripta bem abaixo do Centro de Pesquisas

Biomédicas que continua a ser... –– Não, não, não. Onde ele está hoje! –– deixando bem claro

que ele queria o tal Allan vivo e respirando. Mas como? –– Não te falaram de re-encarnação? Renascimentos?

–– Ah! Tempos anteriores! –– Sean completou. –– Disseram muito por cima.

–– Todos, quase todos que morrem, regressam. –– Para que? –– Para resolverem certas pendências... –– E?! –– Na verdade é para aprimorarem seu espírito... –– Para quê? –– já começando a irritar o cavaleiro como

queria e estava disposto a executar.

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–– Para evoluir... por isso preciso achar Allan... preciso... –– Você se importa com ele? O mensageiro não queria replicar, porém não estaria

mentindo, de todo. –– Sim, muito. –– Então por que você não indaga por aí, acha que eu poderia

fazer melhor o seu trabalho? –– O cavaleiro obtemperou com esgar de sobrancelha de uma lógica quase vulcana. Para Sean, copiar a ação só ratificava que eles estavam se avaliando constantemente. Os dois se encaravam claramente em dúvidas se queriam seguir em frente. –– Quem realmente é você? Qual é o seu nome? –– almejando completar com sua nova percepção de qual seria a verdade dele. É claro que ele não revelaria suas verdades, talvez nem ele as soubesse, quem sabe!

Pigarreou inconformado. –– Sou o mensageiro de... –– Todos nós sabemos. Se não quer dizer vou te chamar de...

Que tal, senhor MSN?! –– Sean estava sendo mordaz e irritante com o mensageiro. E adorou mais ainda quando o homem sorriu pela primeira vez. Pelo jeito ele não sorria há uns quinhentos ou mais anos. Então Allan estava por perto, mas de que adiantaria procurá-lo se era outro e possivelmente não se recordaria do passado ou dos passados?! Sean não lembrava o seu e não sabia de mais ninguém que o quisesse, já era difícil lidar com uma só vida. Se bem que explicaria porque ele gostava tanto de histórias de batalhas épicas regadas de muita astúcia onde o fraco vence o mais forte e, caçadas fantasiosas a dragões e bestas seculares. Mas também gostava de comer com hashi.

–– Algumas vezes trazemos marcas em nossos corpos físicos que indicam eventos traumáticos. Uma cicatriz, uma deformidade, um sinal de nascença...

O garoto olhou para a sua perna recordando que possuía um aglomerado de pintas juntas e estranhas. Algo passou diante de seus olhos como um foguete; a ideia de levar um tiro numa guerra longínqua de fardas laboriosas, enquanto supostamente recarregava sua baioneta com pólvora, demonstrava o quanto o passado deveria ser esquecido. No fundo o cavaleiro contava com o dom que dava ao garoto uma vantagem nesta busca por mortos ressuscitados.

O mensageiro resolveu recuar, desaparecendo silencioso com um sorriso no rosto que se assemelhava ao do gato listrado e feliz

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do conto de Alice no país das maravilhas. Havia um ronronar no ar que no mais, parecia suspeito. –– Procure por Allan, lembre-se!

A porta evaporou o mensageiro assim que ela fora escancarada sem aviso perceptível. Tropicava e tombava quarto adentro, caindo aos pés de Sean como se empurrado por mãos ocultas em ato de mau gosto. Tiago içava-se atordoado, com ligeiro mal-estar não identificável de uma névoa nauseabunda e fria e tenebrosa. Mas já havia passado a sensação pior.

–– Ufa! Que dias estranhos estes. –– olhava de um lado para o outro, desconfiado, com as mãos no joelho, agachado para recuperar o fôlego que chegaria, talvez, mais tarde.

Esta invasão brusca trouxe Sean aos trilhos. Buscava o diário por entre as cobertas e lençóis emaranhados agora que tinha plateia para discutir o que estava acontecendo. Jogou o caderno rumo ao amigo que inadvertidamente recebeu-o com força no estômago, tombando ao chão. Em pouco tempo ele já deixava de gemer para arremessar o livro de volta ao catre e uma das mãos tateava sondando um apoio seguro. Seus olhos nasceram odiosos no beiral do colchão, inquisidores e levemente cômicos.

Só foi a desforra, por deixá-lo sozinho durante o bate-boca que aconteceu mais cedo.

Depois de avaliarem o diário todo, concluíram com a mais absoluta confiança o que ele queria dizer. Nada. Como os próprios documentos do escritório de Marc, este não servia de nada sem um tradutor. O pouco de alemão que Tiago Göettees julgava conhecer, embora o sangue divirja, servia plenamente para declarar que não dava para entender bulhufas nenhuma das palavras embaralhadas das quase duzentas páginas de um código tão trabalhoso quanto ridículo. Do mesmo modo a exceção se devia às poucas letras que destacavam o autor, que neste compêndio se intitulava Miguel. Olhares enviesados de deixa-pra-lá finalizavam suas pesquisas bem escolares.

Supor que fossem estar a um passo de Marc, só se eles fossem o dito Miguel, lembrando que renascimentos e compromissos eram para todos. Talvez eles tivessem um pé na dianteira de Marc, no diário constava pequena anotação a lápis sobre um Nicklas Buchhand que anunciava sua propriedade ao rodapé da contracapa. Ambos pensavam no velho comerciário da Pot de Fer

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e se realmente existiria coincidência. –– Nã... Não. –– com dúvidas atravessadas na garganta.

A penumbra do anoitecer acordou-os de seus planejamentos

de safári para a realidade do fim do longo dia de vários capítulos; assim que o sol surgisse à leste seria para apressá-los para outro grande dia de colégio, de aulas morosas e intermináveis. Alguns dias de repouso só seriam possíveis graças ao atentado que deu sequência, quase que imediata, ao período forçado de reclusão oferecida a Sean pelos eventos no beco do espancamento. Evento este que acabaria sendo imprescindível para que ele estivesse de posse do diário de Buchhand.

A encadernação rolava em suas mãos distraindo-o em seus pensamentos quando Tiago desistiu das tentativas de tradução de um acanhado trecho que imaginava ter entendido de relance, com um suspiro ruidoso. Eram alérgicos ao bolor e espirros infindáveis finalizavam o trabalho do dia.

–– Quero uma opinião sua! O mensageiro esteve aqui e acredita que eu sou o único que pode encontrar Allan. –– bocejava Sean para provocação do ato em Tiago.

–– Mas você não disse que... –– Claro, mas ele quer um Allan que ainda respire. –– Hã! –– Parece que ele renasceu e está por aqui. –– Que ele vá atrás... Ademais como saberíamos como ele é? –– Tem as mesmas marcas e costumes que...hum, lembro que

ele estava machucado na mão uns séculos atrás. –– E daí, também estou. –– acenando uma mancha em cruz. –– Gosta muito de espadas e... –– Eu também. Quem não gosta. –– Lutava muito bem. Tinha estilo. –– Sei. Como eu fiz. Assim? –– gesticulando espada fictícia

no ar em giros curtos e certeiros. –– Era médico, ajudava os outros. –– Também faço uns curativos de vez em quando. –– Tiago e

sua falsa modéstia adquirida pela observação dos remendos que sua mãe aplicava em seus joelhos ralados. –– E daí!

Sean também considerava estas características fracas e bem comuns. Se quisesse, também se encaixaria nelas. Contudo, Tiago

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achava tudo muito divertido e finalizou com um gesto surpreendente. Com a mão em L com indicador apontado para cima, piscou e do canto da boca emitiu um estalo –– tsc –– enquanto direcionava o mesmo dedo para frente como os cowboys faziam, com um complemento bem mais moderno. –– Você é o cara!

Para Sean o ato foi como um balde de água fria, este gestual lembrava algo perdido em suas recordações, podia jurar, de pé junto, que havia visto Allan e Raphael re-encenarem-no. Mas como era possível que isto pudesse acontecer? Devia ser uma espécie de curto-circuito cerebral.

–– Pelo que vejo, você poderia ser Allan. –– disse Sean. Alguns segundos de espera e. –– Na... Não! Bah! –– Ambos desistiram dessa perda de

tempo, negando veementemente em caretas de olha-só. Tiago sentia um arrepio na espinha, como se fosse observado

pelas costas. Outra sensação desregulada pelas constantes conversas inaudíveis entre os fantasmas e seu amigo.

Caminharam degraus abaixo se servindo do corrimão como

alicerce para um cansaço acumulado. –– Até amanhã! –– Tiago bocejava já há algum tempo. ––

Temos que dar um jeito de ir até o senhor Fabien. –– Porém Sean não respondeu, curioso com o homem que ascendia pela rua cambaleando, não como um bêbado, mas como um enfermo que manca há anos. O amigo continuava falando, coisas até que sem seriedade, caso Sean tivesse escutado-o.

O velhote andava e parava diante de cada um dos postes antigos de ferro fundido. Levantava o olhar para a luminária, usava sua vara curta para descerrar uma portinhola e elevava uma vela até o bocal que chiava explodindo numa chama regulável de iluminação a gás. Seguia até o próximo repetindo o procedimento.

Tiago já estava longe assim que ele acordou de seu estupor para tentar se despedir, mas estava fora de alcance para ouvi-lo. O velho, caolho de cabelos parcos e desgrenhados, tirou uma das mãos debaixo do casaco encardido para acenar e sorrir de poucos dentes. Sean virou-se duro fingindo não ver.

Contudo alguém bateu às suas costas, insistentemente à porta recém-oclusa e bem chaveada às pressas. Propôs-se olhar através

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da fenda das cartas cuspidas, evitando um confronto desagradável. Para seu espanto o batedor de braço pesado havia pensado o mesmo. Com o susto ambos caíram para trás. Sean agachou-se sem complicações, porém Mateus rolou alguns degraus escorregadiços estatelando-se contra um monte de neve em decomposição acelerada e encharcante.

O moleque estava entorpecido admirando atentamente se Mateus daria algum sinal de vida ou se ele teria que esbofeteá-lo até que despertasse. Não gostava da ideia de ficar do lado de fora, as coisas estavam ficando verdadeiramente estranhas.

–– Entre no carro, temos que conversar! –– e Sean olhou em volta, pensando se iria obedecer quem pouco se importava com tudo isto. Fechou a cara em bico, jogou os ombros inconformado. –– No way, man!

–– Pode ir, eu aguardo. –– gritou Patrick na soleira da porta, sorvendo um chocolate quente que soprava de tão abrasador, enquanto afastava um taco com os pés. Mateus se sentava acenando agradecido.

Respondendo ao olhar irritado de Sean. –– Telefonei antes, pedindo para seu pai uns minutos a sós com você. Ele pareceu não implicar, ele até gostou. –– pelos acenos constantes de Patrick que estava diferente e o rosto ligeiramente hílare. Precisava de um tempo a sós.

Mas Sean não abriu o bico. Tempo para arrumar a baderna que havia feito esbofeteando

alguns pôsteres com sua face jovial e extremamente incômoda. Seu taco estilhaçou cada uma das fotografias onde ele sorria desagradavelmente abobalhado, evitando aquelas em que Sarah olhava desconfiada. Alguns se contentariam em desenhar bigodes e chifres vistosos, porém para o senhor Fox era prosaico demais.

Por outro lado, conseguiu extrair de Mateus a mesma versão extraordinária que o filho insistia em contar. Se bem que Mateus se prontificasse em desabafar algumas verdades entaladas na garganta para constante embaraço de Patrick.

Se agora eram dois, teria que rever suas verdades. Precisava quebrar algo. Suspirou aliviado.

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contratempo

Cruzaram avenidas agitadas coalhadas de luzes ofuscantes, de carros em congestionamentos atados, de vitrines mortas com manequins vivos, de jovens falantes de expressões vazias e miríades de transeuntes autônomos sorvidos pelas esquinas ou buracos. Aos poucos foram sendo levados pela maré até o singular oásis urbano onde encontrariam silêncio e discrição. Uma região evacuada e no aguardo de que a rotina a engolisse neste frenesi que compunha o vai-e-vem diário de orgânicos e inorgânicos e imateriais em suas locomoções sem sentido.

Estacionaram em uma das finas ruelas que desembocavam na praça de Saint-Michel que estava às escuras. Os prédios, mudos, rangiam sua época escondendo-se da modernidade indesejada, porém requisitada por pequenas cirurgias arquitetônicas.

O frio cortante de rajadas insistentes encapuzava aqueles que se propusessem andar nestes lugares pouco convidativos. No subterrâneo o sossego se propagava desde a estação de Chatelêt até Notre-Dame, Cluny e Odéon, selando-os do mundo abalado que lutava ferozmente para engoli-los.

Mateus parou perto de um guarda-corpo temporário que afastava os enxeridos do ponto do desastre. Vários andaimes encerravam a clareira, enclausurando-a com plásticos e lonas esvoaçantes que chicoteavam barulhentas. Estava tão escuro que a pouca luz provinha da outra margem do rio Sena e de alguns pontos de emergência espalhados onde havia acessos e restauros.

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Outros simplesmente apontavam, tais como holofotes baços, a estatueta de contornos feéricos e semblante indagativo.

–– Sinto muito. –– Sean iniciou a conversa contemplando as estrelas que via pela primeira vez nos céus de Paris para não ter que manter os olhos em Miguel.

–– Você estava certo, quanto antes, melhor. É que cada vez parece ficar mais difícil de enfrentar a situação. Contei tudo para Elene que reagiu muito bem, se bem que não quis dizer nada.

–– Desculpe-me, falei por falar. Estou cansado demais para me importar com quem quer ou não acreditar nos meus fantasmas. –– deu de ombros, apático. –– Se não fosse todas estas assombrações cortando meu caminho, talvez até conseguisse passar despercebido, deixar de lado.

Tiraram algum tempo para refletir como, em poucos dias, a vida dos dois mudou radicalmente. É claro que foi amenizada pela cumplicidade de suas habilidades incomuns.

–– Como foi sua primeira vez? –– o garoto não se referia a assuntos biológicos.

–– Ah! Ao contrário do que as pessoas pensam, a aparição de espíritos não causam tanto medo ou pavor. O meu maior susto aconteceu quando percebi que havia alguém escondido dentro de casa. A primeira reação foi de que um ladrão havia invadido e que só estava me encarando antes de atacar. Sumiu no ar.

–– E piorou quando descobriu que era um fantasma! –– tendo certeza que ouviria um sim.

Matt negava rindo. –– Foi um alívio quando percebi que não era um invasor vivo que pudesse me agredir. Fiquei tão surpreso com esta atitude que só depois concatenei com o fato de que era um espírito...

Para Sean, a prova definitiva de que espíritos e fantasmas haviam se apresentado se devia ao assombroso cavalo que acompanhava o seu cavaleiro armado para dentro do centro de terapia intensiva de um hospital. O rapaz concordou que seria difícil de não acreditar que o fosse. Mas Sean só teria certeza total quando índios desapareceram diante de seus olhos, depois de interpelarem-no diretamente sobre se ele os via ou não.

Verdadeiramente traumático. Uma forma de prepará-lo para emoções mais fortes, quesito que Mateus deixava a desejar.

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–– Agradeço por serem mais coerentes, digo, mais ou menos normais. –– frisava Mateus entre um devaneio audível e gestos aleatórios feitos ao ar. –– Sem complicações emanadas por incenso ou eventos místicos e ladainhas que tentam afastar ou atrair fantasmas melodramáticos. E vai por mim, se você realmente quiser, eles preparam uma fantástica representação.

Em toda literatura, fantasmas e espíritos se manifestavam entre brumas de um pensamento desconexo e caótico. Gritos, sussurros e gemidos seguidos de impressões impossíveis de existir caracterizavam-nos como flashes de um sentimento misterioso e doentio. Pavor que não se ventilava. Cenários dignos de queimar a retina. Mas estes não se davam ao trabalho de sofisticar suas apresentações. A grande maioria poderia ser confundida com os vivos, se bem que eles também não percebiam sua condição mórbida e continuavam por aí.

Afinal não havia nada para discutir, seria apenas um desabafo entre iguais. –– Pelo menos tenho para quem contar as esquisitices sem me preocupar se são ou não verdadeiras, se não passa de delírios ou suposições insinuadas pelo medo.

–– Sim, garoto. –– O vento cessava devagar, limpando o ar dos assovios e silvos de frestas mal seladas e corredores emparedados. –– Mas acho que para mim e Elene é o fim.

–– Sinto muito. –– assaltado com breve exultação. Com tudo isto acontecendo com muita pressa, as questões

mais simples eram legadas para segundo plano, contudo elas acabariam vindo à tona. Sendo bem mais jovem, Sean, acabava sendo o mais bisbilhoteiro e impertinente. –– Eu achava que havia centenas de videntes e profetas por aí...

Para ouvir os ombros de Mateus estalando sem respostas, mais preocupado consigo. Avançava, fuçando por entre os tapumes e, se espremia entre cordas e metais com zelo exagerado. Uma última língua glacial soprou da rua de la Huchette trazendo impressões bastante pesadas. Sean recuou alguns metros chegando no quai contíguo, estranhando a imobilidade forçada. O ar cheirava a sebo e fumaça de vela. Vasculhou com cuidado procurando a fonte desta impressão que lhe arrepiava a espinha como um aviso macabro.

Um par de pombas andava no céu. Um par de pombas andava no céu?

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Gritou para Mateus que regressou claudicante com a mesma observação de pássaros caminhando no ar. Olharam-se com indecisão e pavor crescente. Estava acontecendo algo bem acima de seus narizes.

Começaram a discutir qual seria a melhor medida: correr o máximo que podiam ou ficar. Mas Sean não replicava, obrigando Mateus a volver cauto, em direção ao olhar estático do garoto que não movia um músculo sequer fascinado com a extraordinária torre de pedra guarnecendo a Petit-Pont. Bandeirolas tremeluziam com a luz de archotes nas mãos de homens vigilantes nas ameias improvisadas.

Como se uma onda invisível os cobrisse, contornos emergiam mais sólidos aos seus olhos vidrados. As pombas caminhavam pela cumeeira de um casebre que insistia em brotar acima da via marginal que bordeia o rio. Uma segunda vaga reforçou a silhueta selando toda visão do rio. Casas, casebres, sobrados, estalagens e mais e mais moradias imperfeitas em encaixes de madeira aleatórios acotovelavam apinhadas, invadindo a ponte Saint-Michel e absorvendo a sua praça.

Viram-se encerrados num beco encardido de poucas chamas iluminando tavernas suspeitas. O chão era engolido pela terra batida que devorava os poucos remanescentes de postes elétricos ou telefones públicos, apagando quaisquer sinais da realidade. Correram até onde podiam até que sua realidade desaparecesse por completo.

–– Onde estamos? –– estacou Mateus sem rumo. –– Ainda estamos aqui, Matt! –– Sean se agarrava a uma

grade de ferro que não era aparente, entretanto não a largaria enquanto pudesse. –– Não se afaste do lugar... Fique parado.

Tarde demais, Mateus se chocara com um poste invisível que o derrubou, irritado com a mão à testa ferida. Estavam num aberto com um poço centralizado. As casas sujas pareciam elementos nascidos da terra encardido sob seus pés, esgoto e ratazanas corriam livremente entre os antros mais negros do beco. Lentamente o som se erguia evidenciando algum burburinho de vozes embriagadas e música descompassada. Várias janelas estavam abertas vomitando gritos e risadas.

O rapaz buscava levantar o mais rápido possível quando uma explosão de água e urina o fez saltar para trás, de encontro ao

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poste oculto. Uma velha de toca rendada balançava um penico de uma das aberturas, urrando imprecações chulas para eles. Pessoas circulavam em vestidos e trajes imundos, recolhendo água do poço ou prazeres de moças desnudas.

Mateus olhou aturdido para Sean que continuava agarrado ao seu lastro invisível, apertando-o com tanta força que seria capaz de arrancar a barra de ferro se o quisesse. Os ruídos ganharam corpo e o populacho parou aturdido, olhando através de la Huchette, o avanço de gente desesperada em número suficiente para provocar a debandada de aberturas cerradas em coro. Fumaça e fogo anunciavam que o foco dos conflitos ficava perto da torre de pedra escondida, agora, pelas casas altas e sufocantes. Tiros moucos, de armas de fogo recarregáveis com dificuldade, eram sobrepujados por raros canhões que esfacelaram a madeira e o barro de algumas construções. Os estilhaços cobriam os fugitivos arremessando-os contra os ares.

Soldados prosseguiam pela alameda matando homens, mulheres e, sobretudo huguenotes. Com o nevoeiro formado pela pólvora e os berros de dor, eles não podiam reagir. Mateus ensaiava um meio de alcançar Sean quando, além de seus esteios da realidade, um soldado desembainhou um sabre cortando-lhe a cabeça.

Seu pavor só foi maior quando se viu inteiro, em pleno dia,

com os pés enfiados na água seca. –– Matt, e agora! –– gritava Sean com a mão presa no ar. Antes que Mateus interpelasse, um barco a velas encalhava

suave rasgando o lodo negro ao seu lado, oculto por neblina conveniente. Seu casco estava fincado de lanças e manchas de sangue. A detenção precipitada provocou a ruptura do mastro ferido que com um baque ensurdecedor ricocheteou diante de Sean levantando tufos de água e lama.

O vento já afastava o grosso do nevoeiro, descortinando uma baia de barcos emborcados em chamas e, guerreiros implacáveis invadindo as habitações que marcavam os céus com suas colunas de humo enegrecido. Eles estavam numa banquisa que abraçava uma baia estrangulada, e que terminava numa ponte rústica de madeira. Com sua doca afastada, para dentro do que seria o Latin,

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diante das termas dita de Cluny, alaridos e escudos se chocavam. Impetuoso ataque havia derrubado a ponte, provocando a secção das tropas romanas que lutavam com bardos e selvagens das terras do Norte. Da embarcação que aproava, saltavam guerreiros com espadas e lanças que, contra-atacavam os poucos legionários parisii de uma fortificação improvisada.

Sem aviso, bolas de fogo eram lançadas por catapultas primitivas, aproximando-se de onde estavam. Mateus pretendia ficar parado, mas os projéteis arregaçaram a proa do navio, abrindo um buraco irreparável. O seguinte já chegava muito perto de atingi-los.

–– Pode abrir os olhos, pode abrir! –– sussurrava Mateus para

si. Surpreso com o silêncio de um bosque de coníferas cobertas de neve.

O céu claro anoitecia anunciando algumas estrelas. Mateus continuava sentado, olhando para o alto. Foi Sean quem apontou para uma aldeia de fogueiras eternas. Um tempo curto demais para apreciarem a calmaria quando caçadores em peles grossas e amarradas eram lançados por entre as árvores pelo rechaço de um mamute encolerizado. Outros jogavam suas lanças esperando conseguir comida para a extensa invernia. A besta perdia a luta caindo e levando algumas árvores seculares consigo.

Os caçadores pararam assustados, olhando para cima. Uma intensa luz alaranjada era refletida pela neve que com o

clarão repentino atrapalhava seu exame. Aos poucos surgiram as estranhas aeronaves triangulares que fecharam o céu, desaparecendo com um zumbido automático para desespero dos lanceiros ignorantes.

Estavam num campo florido. Era primavera e amanhecia. O lusco-fusco impedia-os de

averiguar os arrabaldes escuros de onde estavam. Enfim, com seus sentidos a flor da pele, estavam atentos às mudanças de luminosidade. –– Está ficando cada vez mais estranho, Matt.

–– Por que você acha isto? –– totalmente sarcástico. –– Ainda estou segurando o gradil.

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E o gradil estava ali, fincado ao gramado florido com a particularidade de estar um pouco gasto, corroído, enferrujado. Mateus percebeu que havia um pedaço do poste retorcido donde estava anteriormente. O Sol se ergueu à leste delineando os contornos de uma catedral em ruínas enfeixado por heras providenciais. Um pasto circundava-os a perder de vista.

A oeste, os raios de luz refletiam os vidros e metais de modernos arranha-céus de uma metrópole idílica. Assustaram-se com uma revoada de pássaros matutinos que escaparam da roseta atemporal daquele santuário.

Os pássaros cruzaram os prédios passando sobre eles,

reunindo-se nos parapeitos e no braço da estátua de Saint-Michel. Estavam de volta, mas Sean se negava a se soltar de sua âncora.

–– Voltamos. –– Mateus caminhava esquecido. –– Não. Está de dia... E várias pessoas transitavam em azáfama diária. Tudo estava

como antes do atentado ao metrô. Sean buscava descobrir quando estavam, girava de um ponto para o outro perscrutando as datas dos jornais que alguns transeuntes abriam, aguardando que o semáforo abrisse. Os carros buzinavam nervosos para indiferença dos não-interessados. Numa última tentativa ele teve que recuar para não ser atropelado por ele mesmo que acompanhava um Marc Bernis apressado. Mateus esboçou um sorriso quase nervoso diante do embaraço do amigo, pelo menos de um deles.

De repente as aves recuaram assustadiças; um pré-estrondo levantou olhares de dúvida. Em seguida os subterrâneos cuspiram fumaça e estilhaços, as pessoas se jogaram quando o piso estremeceu com a onda de impacto da explosão. Carros eram atirados com escombros para o centro da esplanada.

Mateus cobria instintivamente a cabeça seguindo de longe Sean e Marc saírem incólumes da chuva de pedras. Contudo Sean não estava preocupado consigo, encarava um homem, que em claros trajes greco-romanos, de um manto escarlate a tiracolo, semblante duro, mostrou a língua para ele. Mostrar a língua para ele, quanta intimidade!

O sinal nem se abriu com voraz ataque dos pedestres.

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A multidão belle-époque disseminava chapéus e sombrinhas

em comemoração ao sobrevoo do 14-bis em contorno muito alongado à Torre Eiffel. Vitrines asseadas e floreiras abundantes resplandeciam a praça reformada. Esfuziados homens bem vestidos escoltavam mademoiselles de corpete ao Campo de Marte, embarcando em carruagens vistosas, porém o trânsito se fazia impraticável pelo afluxo de curiosos ao largo de Bagatelle.

Os carros derrapavam rumando em direção ao pequeno

monomotor de Lindbergh que se aproximava do oeste continente americano. Os jornalistas corriam para registrar o pouso. Chovia uma garoa inconsistente. A cidade estava cinza.

Outra vaga. Estava escuro. Noite silenciosa. A grade ainda estava ali,

assim como o poste e a praça. Mateus respirava aliviado. –– Acho que ainda não! –– outra previsão acertada de Sean. Algumas barricadas de sacos e veículos militares mantinham

o ambiente semelhante. Uns soldados de capacetes metálicos urravam em língua germânica, partindo em um conversível antigo do derradeiro grande Reich, que ainda derrapou em sua fuga inevitável. Uma sirene estreava um grito exasperado e ininterrupto prevendo o sobrevoo de aviões em formação de bombardeio. Os assobios das bombas terminavam em ensurdecedoras detonações e rompantes de clarões em cogumelos de brilho e nuvens.

Silêncio. Mateus atordoado com a reviravolta de situações extremas

tomba enjoado, respirando fundo. Deitava displicentemente no chão firme e autêntico de sua realidade. Já Sean se esforçava para abrir a mão congelada à grade, mas a adrenalina dava lugar a uma prostração irrevogável.

–– Tudo bem com você? –– chegava Mateus para auxiliá-lo com o gradil do guarda-corpo. Com cuidado torceu cada um dos

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dedos liberando-o da barra. Segurava com tamanha força que o sangue escorria de um corte macerado.

–– Nunca fiquei tão apavorado! Mas não precisava se ferir... –– Achei que se soltasse jamais voltaria para cá... Mateus observava uma mancha escura na palma da mão

demoradamente. –– É só uma mancha, esquece. Não foi um ferimento grave. –– sacudindo-a em movimentos rápidos como se querendo recuperar a sensibilidade.

–– O que foi isto? –– Estamos fazendo perguntas demais! –– triste com a

afirmativa já repetitiva. Sean não queria nem saber o que viria a seguir.

Com seus cabelos negros sacudindo irrequietos sobre o rosto

caracterizado para batalha, Guarini se postava tão silenciosamente que ambos gritaram de assombro quando perceberam sua presença risonha. Estava disfarçando o riso desde que presenciara a divertida investida dos dois na viagem pelo tempo mal concluída. Entre saltos, gritos, tombos e sustos, o índio gargalhava asilado, aguardando o término dos acontecimentos para fazer sua aparição atrasada.

–– O que foi isto?! –– ainda ligeiramente respeitosos. –– Um pequeno contratempo... –– Eram fantasmas? –– Tecnicamente não. Ele pretendia explicar da forma mais simples possível. –– São

só algumas recordações impregnadas neste espaço. –– Delineando no ar o contorno da praça. Mas nem tudo eram recordações passadas oras, questão de semântica.

–– Assim, sem motivo, elas resolveram aparecer por aí?! Assombrando algumas pessoas!

O índio apresentava a razão. –– Não. Hã, é que a culpa é totalmente nossa, mas pouquíssimas pessoas veriam estas... –– Tentando lembrar o termo apropriado para satisfação dos garotos. A Salamandra esboçava uma escapada de seu esconderijo, destruindo o período de ocultamentos obrigatórios e dos apertos constantes da mão de Guarini. Mbaê desvencilhava célere, perseguindo algumas sombras suspeitas que emanavam das lembranças coaguladas que se desfaziam.

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–– Pobre criatura! Estava impaciente para escapulir atrás destes miasmas... –– Quando a boitatá retrocedeu saciada em seu apetite, galgou o cajado se enroscando num encurtado gancho tal qual um farolete vivente que Guarini aproveitava para alumiar o seu caminho. Ela se comportava como uma trivial flama.

–– Estão reforçando alguns escudos protetores por toda a cidade e estas ações embaralham as energias presentes. Este local tem muitas marcas, boas e más. Estou curioso para saber como vocês conseguiram ver as mesmas imagens...

–– E por que estão fortalecendo os escudos? –– indagava Mateus. –– Quem está atacando? –– acrescentou Sean.

–– A invasão já está começando... Alguns homens de uma divisão da artilharia francesa de

Bonaparte, desaparecida no passo do Grande São Bernardo, então encoberto pela neve, arrastavam bocas de fogo incrustadas em troncos escavados. Seus esforços apontavam para o oeste, atravessando a praça esbranquiçada para um ponto de confluência incógnito. Os que supostamente achavam-se gripados xingavam os incômodos botões do punho que atrapalhavam na operação de limpar narizes remelentos.

Soldados da tropa da cavalaria ligeira, com botas negras e fraques repletos de botões de prata, desmontaram seus cavalos com o bicorne sob os braços, divisando, com discrição, os três. Um índio e dois sólidos que os enxergavam.

Guarini não se intimidou e, voraz, dirigiu umas palavras aos cavaleiros: –– Estão olhando o quê?

Para espanto de Mateus e Sean que repararam os soldados retrocedendo intimidados, tão envergonhados que se negaram mirar seus olhos inquiridores. Tão atrapalhados que uns se esbarraram quando buscaram refúgio na caravana.

–– Como fez isto? –– Do meu lado, a autoridade é sempre respeitada, porque só

é dada por mérito, e é sempre exercida com justiça. Sabemos que o homem não deve elevar-se sobre o homem, só sobre si mesmo. Eles podem não concordar, mas sabem disto. E temem, porque é só isso que sabem fazer. –– levemente convencido.

–– Então você...

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–– Que nada. –– completava o indiozinho se adiantando. –– Mas o pouco mérito que arrecadei me serve suficientemente bem para afugentá-los. Precisam ver o que alguns bons anjos fazem...

Só para garantir girou sua lança num movimento ofensivo, provando estar apto contra qualquer tentame menos digno de sua autoridade, possivelmente aquém daquela que intimidasse por si só. Talvez a salamandra-de-fogo fosse o elemento que o auxiliava a consolidar uma suposta ideia de bom guardião.

–– Quem deveria ver estas coisas era o Marc! –– pensava Sean que já estava cansado de servir de garoto de recados entre a solução de um códex mikhae indecifrável e a defesa impraticável contra os exércitos invisíveis.

–– As legiões sempre avisaram que viriam. E quanto ao Marc, ele está bem longe daqui... –– findava Guarini.

–– Longe e em perigo. –– sussurrava Sean.

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não há nada que...

O vale abrigava pacato burgo de diversos casebres alpinos que resplandeciam os primeiros raios de Sol de dias cada vez mais breves. Os bosques de terras sempre úmidas e frescas que subiam pelas encostas das montanhas ressoavam os gritos de madeireiros madrugadores que precisavam aquentar suas casas. A singela capela tilintava insistente um sino de bronze, acordando o restante dos habitantes que insistiam em se recolher em suas camas reconfortantes.

No entanto a tela de cristal líquido do aparelho celular ainda registrava a ausência de área de cobertura do sinal quando Marc olhou-o pela última vez antes de embarcar. Ele teria que tentar mais tarde, o que deveria ter feito dias atrás. Mas precisava agir com pressa se quisesse resolver o enigma antes que fosse devorado pela esfinge.

O pesado helicóptero SeaKing a serviço do governo norueguês buscava se desvencilhar das fortes correntes de ar que proclamavam uma breve nevasca para algumas horas. Contornou o platô com extremo cuidado, reduzindo o empuxo das turbinas que fora sentido com a diminuição do ruído peculiar e dos sacolejos causados pela instabilidade dos ventos próximos do ponto de pouso marcado com muita tinta encarnada e vários bastonetes de sinalização. A aproximação lenta da aeronave arrancava redemoinhos de neve livre que eram sugadas pelas pás e lançadas contra os espectadores. Alguém saltava encoberto por espessa jaqueta clara de capuz ajustado, não se via o rosto e nem

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os olhos que usavam óculos âmbar contra a luminosidade refletiva da neve. Puxou o abrigo e revelou seu rosto queimando pelo frio.

Marc Bernis era deixado no meio dos milenares glaciares de Sogndal, na costa oeste da Noruega, para ver seu excepcional meio de transporte partir tão logo equipamentos fossem embarcados com os técnicos da escavação. O local estava sendo evacuado por causa do frio incomensurável desta temporada hibernal.

–– Bem vindo, Marc! –– E eles quebraram o protocolo, dando um forte abraço de tapas demorados. Erik Kristensen forçava-os a entrar nos contêineres coloridos do centro de apoio arqueológico. Ao longe, o lago azul e sereno era perturbado pela queda de um bloco de gelo da geleira de Briksdalsbreen. Os ecos reverberaram entre as cordilheiras afugentando algumas aves valentes.

Estagiários de campo, Erik e Marc trabalharam juntos após o término da universidade, seguindo os passos do professor Hodgson-Crookes e do velho Bernis às lendas vikings escritas em pedras grafadas e espalhadas por todo o norte da Europa. Havia anos que eles não se encontravam para um potente café batizado a teores alcoólicos e conversas reatualizadas de bêbados incorrigíveis pela ocasião. Quando já estavam suficientemente exaustos de futilidades Erik se ajeitou sério para perguntar.

–– Se eu acreditasse, eu diria que é coincidência. Mas estava justamente querendo falar com você.

Marc não esperava ouvir esta confissão, estava ali porque precisava rever os passos do professor William para ver se descobriria alguma pista do manuscrito perdido. Quanto ao que estava em Paris, a prefeitura só permitiria uma escavação quando os geólogos afirmassem ser seguro, até então, usaria outra abordagem. –– Sobre o quê?

–– O degelo secundário revelou-nos o piloto do aeroplano, soterrado a poucos metros... Com ele estava outra garrafa hermeticamente fechada. Ainda não abrimos, mas a etiqueta se refere a cartas. Achei que você gostaria de saber que... –– procurando as palavras certas. –– nós já sabemos quem ele é.

O semblante de Marc se mantinha inalterado, não estava ali por causa disto, mas as cartas poderiam responder algumas dúvidas. Ele quase não prestava atenção em Erik, seus

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pensamentos puxavam-no para as perguntas que o levaram até aquele inferno gelado de aquecimento barato.

–– Quer ver os destroços? –– quebrando o impacto de sua fantasiosa estadia monótona pelo entusiasmo de Erik.

Desceram bons metros no gelo diamantino escavado com o

auxílio de um jato de água quente sob pressão absurda. O respiradouro, pouco largo, ainda estava ligado à superfície por vários cabos e tubos que mantinham temperatura e luz constante. O ar estava pesado e rançoso. O elevador descia vagaroso raspando a superfície do duto com irritante guincho. –– Como vocês descobriram o avião?!

–– Com o satélite de instrumentos múltiplo usado para sondagens dos níveis eletromagnéticos de anomalias fechadas medidas no subsolo, mas o pessoal gostou mesmo foi da sigla que a agência europeia sugeriu, m.i.c.a.e.l. O arcanjo que zela por toda humanidade. –– Erik admirava o boquiaberto amigo que tentava falar algo. Contudo Marc dignou-se a emudecer enquanto esfregava, acelerado, seus braços congelados.

A gruta modelada refulgia o brilho puro de cristais de gelo como se a luminosidade emanasse das paredes branco-azuladas tornando plenamente vívida as cores dos objetos. A aeronave encaixava como uma luva nos contornos irregulares e suaves do ambiente. O nariz dourado com sua hélice encurvada pelo impacto do pouso forçado apontava silenciosa para cima como se arremessasse feroz para a superfície, de encontro com o céu libertador. Em sua prisão, o tempo parou.

Contornaram parte da fuselagem cobrindo um atalho por sobre a asa intacta para caírem em terreno escorregadiço que exigiu maior equilíbrio para ficarem erguidos. Marc passou os dedos pelos grandes furos de tiros na carlinga e fuselagem. O oficial, deitado de costas, parecia que acabava de adormecer envolto em uma poça gelada de sangue. Sua fisionomia era tão serena que causava outros choques.

–– Sabemos que ele nasceu em Diedenhofen e deixou as cartas para o seu sucessor. O mais perto de sucessor que encontramos foi um descendente vivo...

–– Eu sou de Diedenhofen, ou seja, Thionville. Depois da Segunda Guerra a Lorena foi devolvida para a França e o nome

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restituído. Bem, o que você queria saber? –– Marc aguardava que Erik fosse perguntar algo sobre as possíveis famílias lorenas, mas.

–– Por que nunca me contou que tinha outro nome além de Bernis?

Realmente havia uma semelhança notável entre Marc e o não-nazista morto. Eram tão parecidos que a primeira vez que Erik viu não conteve um suspiro de admiração. Aliás, nem precisaria da confirmação de Marc, pois a análise do ácido desoxirribonucleico dos bancos europeus se certificaria da exatidão que os aspectos fisiológicos já afirmavam.

Por isso que Marc não abria a boca, paralisado com o susto de se ver morto, talvez começasse a entender o que Sean sentia quando via fantasmas.

–– Bem, a linhagem da minha família não é muito apreciada... Termos como implacáveis ou impiedosos acabaram sendo adjetivos permanentes. –– zombando.

Erik passava uma urna térmica para as mãos de Marc que intuía o seu conteúdo com certo desconforto. Estava preparado para decifrar grandes e inigualáveis documentos. Estava preparado para mudar a visão do mundo sobre as sagradas escrituras. E até estava preparado para defender as suas pesquisas que já beiravam o absurdo. Porém não estava preparado para aceitar ou acreditar que um mundo invisível conspirava. Contra e a favor. Plenas de coincidências tão óbvias que negá-las era um contrassenso irracional. E só aceitando esta realidade ele conseguiria resolver o enigma.

–– Melhor sucessor do que este, desconheço. –– regressando para a plataforma que os levaria à superfície, em trevas e tornados congelantes. –– Como está a sua irmã! –– Procurando fugir deste assunto enquanto raciocinava melhor.

–– Ainda está com raiva de você, mas acho que ela nunca te esqueceu.

–– Ela está com você? –– com esperanças. –– Anda fotografando monumentos... no Peru, Incas, eu acho. –– Eu devo?! –– Hã, hã. –– afirmando Erik que faria um esforço a favor. Entretanto estavam ali por outras razões menos femininas. –– Antes de aparecer por aqui, por onde você andava?

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–– Em Londres, recolhendo os arquivos e a papelada do professor William. Ele desapareceu há mais de um mês... –– Marc revelara o pretexto pelo qual viajara milhares de quilômetros até Sogndal, durante um dos piores invernos dos últimos cem anos.

Não só porque fazia muito mais frio, mas porque as mudanças climáticas haviam consumido quase todas as imemoráveis geleiras da Escandinávia.

Regressaram ao contêiner-laboratório onde várias peças

recolhidas dos destroços eram catalogadas e armazenadas em estantes metálicas que preenchiam todas as paredes. O motor ainda estava preso por correntes, erguido sobre um caixote de aço que serviria ao transporte dos componentes maiores, já resgatados. O objetivo era recuperar inteiramente a aeronave que seria exposta no museu aeronáutico junto com outras relíquias voadoras da grande guerra.

O sóbrio Erik aumentou o aquecimento melhorando o ambiente que servia de alojamento improvisado para aquela noite. No dia seguinte partiriam com o restante dos equipamentos mais caros. A tempestade aumentava provocando zumbidos e mudança de pressão dentro dos laboratórios.

Enquanto Erik fervia o conteúdo de pacotes de sopa pré-prontas que seriam saboreadas com gosto, Marc ajeitava uma superfície para receber os documentos selados dentro do tubo lacrado. No topo, um rebaixo que lembrava um amassado qualquer era, aos seus olhos, um esboço da folha de parreira. Do outro lado, à base deste tubo metálico, uma cruz grafada como aquela que ele já não possuía mais. Passava os dedos no pescoço vazio procurando o crucifixo.

O rapaz chegava sem aviso colocando a segunda xícara rombuda diante de Marc. A tempestade recuava e o vapor de ervas tirou-o de suas tentativas falhas de abertura. Ele enfiou a mão no bolso interno e retirou com esforço um pesado cadeado negro que quicou na mesa com seu fecho arrebentado. Era um modelo Yale de fabricação alemã com um estranho X atravessando o buraco da chave.

–– Quando eu percebi que a chave não servia, logo desconfiei que alguém havia estado lá antes.

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O arqueólogo ergueu sobrancelhas recuando atropeladamente para uma estante metálica, dentro de um estojo puxou uma chave que tão logo a desvencilhou do pacote encaixou no cadeado que com um clique cuspiu o fecho rompido.

–– Estas coincidências são difíceis de desconsiderar. –– Bernis começava a repensar em suas convicções acadêmicas. –– Eu já passei do ponto em que as pistas deveriam ser necessariamente palpáveis.

Erik considerava que Marc havia mudado muito em tão pouco tempo. –– Não era você quem dizia que jamais iria concluir uma pesquisa baseando-se em suposições?

–– E continuo assim. Só os elementos que são mais ortodoxos, etéreos, não-mensuráveis pelos nossos conhecimentos. O que eu quero dizer é que não possuímos instrumentos que ampliem nossa capacidade de ver aquilo que está além.

–– Se não te conhecesse diria que começa a acreditar em fantasmas...

–– Acho que não diria desta forma, mas sim. Enquanto Erik ouvia o que Marc estava cogitando, pensava no

que o velho professor William dizia quanto àquilo que não podemos ver, porém existem. –– E o quê te levou a acreditar!

–– Não posso confiar somente nos meus cinco sentidos, e nem nos mecanismos desenvolvidos para ampliá-los. Tampouco posso descartar as evidências de que existem outras realidades.

–– Que evidências? Marc respirou fundo enquanto tentava abrir o frasco. ––

Nunca fui partidário da fé cega, nem da ciência absoluta. Penso que os cientistas deveriam seguir adiante e não se contentar só com respostas baseadas nas técnicas e conhecimentos atuais. Há poucos séculos nem se cogitava que existissem vírus e bactérias! Estou repensando os meus métodos e infelizmente só consigo considerar estas evidências sem me ater às suas influências indiretas. O que não posso ver e sentir, mas perceber.

–– Você está se parecendo com o velho Will. Acreditando em lendas e forças paranormais.

–– Todas as noites milhares de astrônomos olham para as estrelas acreditando que elas estão lá. Contudo eles só têm noção de onde elas estavam há anos, ou bilhões de anos, conforme a sua distância deste mundo. Considerando trajetória e velocidade eles

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até conseguem imaginar onde elas realmente devem estar, caso ainda existam. Eu tenho a trajetória e a velocidade, só estou tentando imaginar.

–– O que espera descobrir aqui, Marc? –– com semblante mais sério.

–– Se eu estiver certo, o meu tradutor. Ele forçou o bocal que com um forte estalo voou bem longe.

Os papéis estavam bem conservados, mas não havia nada que lembrasse um pergaminho esmaecido. Eram folhas com pautas e margens. No meio da papelada um cartão solto escorregou para fora quando Marc girou o frasco. Era uma fotografia velha com o mesmo aviador, que acabava de ver em sua câmara mortuária, abraçando um garoto de uns dez anos. No verso uma dedicatória. –– Que São Miguel te proteja, irmão. –– Assinado por Jacques. O avô de Marc, de pernas finas e sorriso imaturo.

Quanto mais complexa a caçada ficava, muito mais simples os elementos se ligavam. Talvez devesse rever as coincidências. Seria possível que sua família fosse membro de uma seita ou confraria milenar, protegendo documentos ou re-escrevendo códices? Perdeu poucos segundos até que considerou outro fator relevante, se ele era um descendente desta trama como não sabia de nada? Seu avô não morreu repentinamente, o atentado só apressou as coisas, ele tinha tempo para contar um segredo, se houvesse um.

–– Tem certeza que já não o tem? –– ajeitava as cartas dentro de uma prancha acrílica. Ele havia percebido as dúvidas de Marc.

Não tinha porque negar, mas os documentos não estavam nas mãos de uma facção, estavam espalhados por toda Europa e além. Visíveis para quem quisesse ver.

Se ele não estivesse em Antioquia, manuseado uma balbúrdia de folhas denegridas, escavando encadernações obscuras de bibliotecas bolorentas, jamais teria encontrado referências àquela cópia primitiva do evangelho de São Lucas. Uma passagem singular.

Então percebeu o que o aviador-desertor fez. Ele só estava tentando garantir que alguém iniciasse a busca

pelo códex mikhae. O que Bernis descobriu, foi um atalho imprevisto, mas muito conveniente. A carta para Londres seria a chave-mestra que provocaria a busca pelos objetos, as estelas,

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pergaminhos, manuscritos e tantos outros documentos com a marca de uma folha de videira, com a marca indiscutível de serem completamente intraduzíveis. Entretanto quem teria o tradutor? Por qual motivo o piloto escapou rumo ao Norte, tentando alcançar Arkhangelsk, se não levava nada consigo?

Então o tradutor só podia estar em Paris. Na cripta pseudofranciscana; claro que não. Se ele pensava em resgatar o evangelho, teria a chave para

traduzir o texto de seu verso; claro que sim. Nunca saberia ao certo... Mas não era o que as cartas diriam. Marc registrava suas observações com o gravador de voz de

seu aparelho celular inoperante, queria aproveitar as primeiras impressões antes que elas fossem consumidas por ideias mais intricadas e cheias de subterfúgios explicativos que um acadêmico acabaria floreando.

–– Não era bem o que você estava procurando, não é? –– Não sei. Acho que sim... No pico mais próximo alguém chutou um pequeno amontoado

de neve que escorregou montanha abaixo, acumulando outros cristais instáveis. Quando atingiu a primeira coluna de coníferas já podia sobrepujá-la, engolindo o bosque.

Um abalo breve elevou seus pés aos ares, derrubando vários objetos que se espalharam agitados enquanto as luzes ainda balançavam. Uma outra onda derrubou-os sem cerimônia, o que provocou o desmaio de Erik quando bateu forte a cabeça contra a parede da instalação. Mas Marc havia se aproximado da janela calculando a fonte deste tremor. Quando galgou o bosque, a montanha já se mexia arrastando árvores e o que quer que encontrasse na sua passagem. Era uma avalanche.

Marc estava petrificado. Mas Erik agarrou-o pelos ombros, girando rápido enquanto

falava algo estranho. Quem quer que fosse Erik corrigiu a falha e repetia tudo em latim supostamente arcaico. Contudo, antes que pudesse absorver o sentido das palavras, era empurrado para o exterior gelado. Do pouco que compreendeu, foi o suficiente para se lançar ao túnel de ligação com os dutos de escavação. Um cordão umbilical inflável unia os laboratórios e o acesso aos

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destroços, mantendo a mesmas condições de temperatura e umidade. O duto plástico chacoalhava com os ventos descendentes empurrados pela onda de choque da avalanche. Eles não teriam tempo de fugir nos snowcats ou lançando-se ao lago glacial.

Outro empurrão e Marc voou através do duto, saltando sobre a plataforma instável que pendia sobre uma fenda vertical de quase dez metros de profundidade. Contudo aquele estranho Erik havia desaparecido

Marc descia, se adiantando, quando Erik lançou duas mochilas contra seu peito e saltou para dentro do elevador que estava vagarosamente a pouco mais de um metro. Perceberam que não daria tempo, o cordão de ligação se rompia com os fortes ventos, estilhaçando os contêineres com pedaços de troncos e pedras. O veículo de esteiras deslizou cobrindo-os

Quem quer que fosse Erik não pensou duas vezes, passou uma rasteira em Marc que caiu de costas no piso da plataforma e chutou a trava de segurança do elevador, saltando sobre ele antes do mecanismo despencar. A avalanche chegava arrastando tudo, alojamentos, veículos e geradores. A neve revolta mergulhou pelo duto, selando-os. A luz se apagava.

–– Onde estou! –– acordava Erik assustado com a semiobscuridade que era quebrada por uma chama-piloto.

–– Dentro dos túneis... Não se lembra? –– Que caí e bati a cabeça. Depois, de estar acordando aqui. Marc havia feito o reconhecimento das possíveis saídas, mas

estavam enterrados vivos. –– Uma avalanche nos atingiu. –– Pensou rápido, eu teria fugido no snowmobile. –– rindo

enquanto passava a mão no supercílio estancado. –– Mas foi você quem me jogou aqui! –– sacou o telefone e

constatou que ainda estava gravando, reiniciou o arquivo. Erik tinha se levantado e procurava os acumuladores de emergência. Quando as luzes se acenderam seus olhos estavam esbugalhados ouvindo-se falar em latim. Marc pôde entender melhor. –– Vão para a caverna, agora.

–– Deve ter sido a pancada que levei... –– Mas não achou estranho? –– Eu sei um pouco de latim...oras.

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–– O suficiente para não cometer o erro de dizer “Vão para a caverna”, concorda? –– porém Erik não respondeu.

E eles ficariam presos por um bom tempo antes de morrerem. Olhavam para o homem congelado esperando o mesmo fim. Nas mochilas teriam mantas e alguns alimentos desidratados, todavia insuficiente para aguardar um resgate. Marc olhava para os papéis que caíram da sacola, apático com a redescoberta. O telefone apitou com sua bateria fraca.

Para Marc um objeto inútil que poderia ser desligado, mas ele apitou insistente. Para sua surpresa o aparelho estava completamente carregado, sua bateria estava completa. O apito era outro, sinal cheio. Uma voz automática, em norueguês, informava: ––... área de cobertura. Favor selecionar operadora...

–– Erik, conhece um número de emergência? –– estavam tão perplexos que demoraram em selecionar a operadora e digitar o primeiro número que veio às suas cabeças.

O silêncio era fraturado pelos primeiros motores. Em questão de horas, vários helicópteros sobrevoavam a área

demarcada pela triangulação do sinal do celular. Homens em snowcats do resgate local, cães e serviços de pronto-socorro vasculhavam os escombros.

Assim como os veículos se aproximavam da catástrofe, mais de seis mil homens da armada tebana demarcavam suas posições para a operação de repulsão da legião norte que ocupava os contrafortes que margeavam o vale. Um confronto que provocara choques na psicosfera deste campo de batalha, avalanches em terra convulsionada e a fuga de hordas de espíritos bélicos.

O primicerius Mauritius não gostava de reagir com brutalidade, no entanto estava mantendo os desígnios mais altos. Ele sabia que pela reciprocidade, a batalha não seria em vão. Os rebelados foram, num passado remoto, os mesmos carrascos que chacinaram a sua armada em Augunum, simplesmente por não cumprirem oferendas aos deuses romanos.

O desejo de um garoto ressoou aos seus ouvidos. Não antes de uma intervenção. Daquele que salvou Marc. Outra vez. Gaius.

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...se possa fazer?

Novo dia repleto de sensações saudosas de quando o mundo era mais ingênuo. Os que pereciam seguiam para seus paraísos reservados ou para o esquecimento infindável, e era óbvio que ninguém iria para o inferno ardente que emanava enxofre de caldeirões guardados por tridentes e chifres. No pior dos autojulgamentos, talvez se incluíssem num purgatório ou limbo. Os que viviam, ou pelo menos tentavam, lutavam infatigáveis para garantir o futuro de seus filhos, da humanidade.

Na prática era cada um por si e cada Deus por todos. Era quase o mesmo ânimo que aparentava Tiago quando

adentrou, extenuado e inexpressivo, no quarto do piso superior dos Fox. Bem que Joshua tentou provocar alguma reação quando saiu acelerado, roubando as roupas que Sean lutava para recuperar após o banho. Mas Sean parou a perseguição se concentrando numa segunda muda de roupas que precisavam ser postas para lavar. Ainda estavam toleráveis.

Já calçava o tênis encarquilhado e Tiago se jogava na bamba cadeira que servia de cabide para as terceiras, quartas e quintas mudas de roupas inutilizáveis. Terminava suspirando.

–– Qual é a novidade! –– frisava Sean, desta vez. E Tiago continuava calado. Se ele não queria conversar que continuasse assim. Em pouco tempo saberia as causas deste mutismo forçado,

aulas suspensas, de novo e de novo, com um toque sigiloso que Tiago não quis delatar.

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Parece que o atentado havia levado um dos alunos mais notórios, causando um luto quase apropriado, se não fosse o fato de ser um ato trágico. Que, há algum tempo, pouco afetava Sean em seus novos mundos de sua realidade incorpórea e tão vívida.

Contudo ele não estava preparado para o impacto que tal notícia provocaria em seus sentidos, eventualmente muitas pessoas faleceram na detonação dos explosivos na estação de metrô em Saint-Michel poucos dias atrás. Alguma criança, totalmente possível. Mas que esta criança fosse Maurice, nunca pensaria que o seu fim, fantasiosamente desejado por todos os importunados do colégio, também o abalasse de pernas bambas e sentimentos divergentes.

Diante do papel estirado num dos pilares do portão do colégio ele desabou desalentado, chorando copiosamente para espanto dos demais presentes. Vários garotos que seguravam o sorriso, pois conheceram intimamente o valentão, não compreenderam a atitude de Sean. Somente o remorso justificaria, mas a dor que perseguia o garoto prostrado na calçada frígida era de identificação e fraternidade. Ninguém, por mais que nossos pensamentos desejem, deveria sofrer deste jeito. Uma mãe abraçou seu filho e suas lágrimas entenderam o drama. Ele estava sendo simplesmente normal.

Sua sinceridade irradiou-se atraindo muitos curiosos que sentiram suas almas amarguradas. Atraindo quem buscava informações dos papéis colados na coluna de um portão fechado. Que acabavam ficando, indignados com suas negligências em momentos como este. Estavam todos ficando embrutecidos com a selvageria que já não reagiam mais.

Um silêncio, como jamais se ouviu, cobriu-os em suas reflexões quando Tiago conseguiu levantar seu amigo que o abraçou. Como é bom ter amigos.

Quando regressaram ao subúrbio, rastejando-se pelos degraus

lisos, através da vidraça disforme viram Sarah ninando um Joshua já bem crescido com suas pernas pendendo fora de seu berço maternal. Abanava suave, saboreando cada boa interminável recordação que desapareceria quando o filho decidisse crescer. O menino se aproveitava da situação para ganhar um afago melodioso, tão delicioso, de uma mãe bastante saudosa pelos dias

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que ficou afastada. Sean sentiu ciúmes, mas sorriu imaginando-se nos braços.

Ele recuou e contornou a casa pelos fundos. –– Porque temos que ser tão irracionais! –– Sean pensava nas

pequenas coisas que, todos os dias, se transformavam em uma tempestade no copo d’água e nas grandes que, as pessoas insistiam em dar tão pouca seriedade. Sentou-se no balanço ainda sob o choque do evento do dia. As pouquíssimas folhas que se agarravam aos galhos dormentes soltaram-se quando o vento fresco acariciou seu rosto.

–– Mas, com Maurice, isto acabaria ocorrendo. –– Tiago pressupunha.

–– Não. Você está supondo que por ele ter sido encrenqueiro e mal-intencionado, jamais poderia mudar! É, talvez seja melhor, menos um problema. –– Sean emanava certa indignação. –– E se ele se tornasse um grande homem, e se estes acontecimentos fossem o meio que proporcionaria a transformação? Do quê estaríamos abrindo mão?!

–– Não havia pensado nisto. –– É. Ninguém pensa em outras alternativas. E se você

tivesse escutado o que os pais dele diziam... –– O quê? –– Que ele estava arrependido de uma surra em que exagerou,

realmente preocupado com suas atitudes. Cogitava em mudar... Tiago não podia fazer nada e de fininho atravessou o jardim

ganhando as ruas mortas. Tinha os seus próprios problemas para resolver e não estava a fim de enfrentá-los. Devia ter contado, porém Sean não conseguiria consolá-lo.

Dos arbustos que cercavam o garoto que ficou sozinho em seus pensamentos, um par de olhos perscrutava-o tão assustado quanto Sean ficaria se soubesse quem era. Porém a porta dos fundos se abriu atrapalhando os seus planos. Sarah havia visto o filho afugentado ao balanço, seu semblante apático e sofrido indicava que precisava do aperto sem fim de uma mãe. E é o que Sarah fez.

Não precisavam dizer nada. –– Fique tranquilo, sei de tudo. Juntei o que seu pai me disse

com o que Marc ainda não me confirmou e que só podia vir de você.

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Sean não se preocupou, pois sabia que ela compreenderia, só sentia muito por ter demorado tanto para se decidir contar. Com seu pai foi uma obrigação retaliativa por tantas desconfianças e confrontos. Com sua mãe seria vergonhoso, pois que ela sempre o defendia e merecia saber a verdade.

–– Eu vejo espíritos. E ela apertou-o com mais força querendo afirmar que não

importava, sempre faria de tudo para ele ser feliz. –– E eu não tenho porque não acreditar... Agora me conte

tudo, desde o princípio. Sobretudo o que você e Marc estão tramando. –– totalmente atenta e disposta a ajudar, para ânimo do filho que se atropelava na narração dos acontecimentos. Ela observava o rosto do filho que ainda possuía algumas cicatrizes quase curadas. O supercílio e o lábio inferior continham as últimas feridas e um leve arroxeado em torno do olho dava um ar de abatimento exagerado pelo sentimento depressivo.

Quase duas horas de conversa necessitava de um ambiente mais aconchegante regado a muito chocolate quente e bolo compacto de cristalizados.

Finalmente terminou. E Sarah estava chocada e angustiada. Ela não era do tipo que

planejava a vida ao sabor dos ventos, como tampouco era centrada em objetivos imutáveis. Tinha muitos planos, mas era ajuizada demais para adaptá-los conforme a necessidade. E esta seria uma.

Como o filho, começava a acreditar que as coincidências eram inteiramente relevantes. Não se tratava da mão do destino, mas de balizadores que ajudavam a regular a razão de viver, ou alguns aspectos desta. Contudo quem determinava estas sinalizações pela estrada era uma incógnita. Podiam até cogitar algumas personalidades distintas na cátedra de guardiões, até deuses, mas quando tinham capacidade para tal, as próprias almas interessadas regulavam quais sinais precisariam para dar os impulsos imprescindíveis.

Impulsos como uma premonição que o preparou para o salvamento de Marc ou, conhecer outro vidente como Mateus ou, conhecer a médica que... Muitos outros, não necessariamente com Sean. Marc teria muito mais coincidências do que ele contaria em seus dedos, das mãos, dos pés e se possível de mais cinco ou seis sujeitos.

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Com estas informações, Sarah foi a primeira quem fez anotações esperando cruzá-las mais tarde. Consideraria todos os acontecimentos fortuitos e estranhos daqueles que estavam envolvidos no que parecia ser o centro, o tema destes acasos, o códex mikhae. Entretanto os dados não mentiriam e ela descobriria mais outros temas, talvez mais importantes do que a documentação peculiar que Marc estudava. A pergunta que mais a incomodava em relação ao filho mais velho era: Quem seria ele, considerando estes sinais?

–– Falando no Marc, soube dele? –– Sean não tivera tempo de contatá-lo, e as poucas vezes que tentou ele se encontrava fora de área de cobertura, coberto de muitas camadas de gelo.

O telefone tocou, números de vários dígitos estrangeiros afirmavam que transmissão de pensamento existia, falando no diabo... Marc estava retornando, com a voz dispersa de quem se concentrava em uma coisa e falava de outra. Para Sarah o assunto era o de praxe, porém seu olhar mirado para Sean apontava que discorriam sobre outro assunto, ou melhor, sobre alguém que estava de pé bem ao lado. Se ele estava tentando surpreendê-la com as mirabolantes estórias de Sean, ela redarguiu com hums e sims que Marc Bernis entendeu muito bem. Era justamente o que ele precisava para rematar sua confissão de que já estava a par de suas fontes confidenciais, um garoto com particularidades totalmente inacreditáveis que havia provado serem críveis.

Sean concordava com esgares de sobrancelhas encabulados. –– Falando no Sean, por acaso ele está escutando tudo, né? E Sarah riu enquanto espanava os cabelos revoltos do filho

que se afastou fugindo das carícias menos suaves. –– Os manuscritos não me parecem ser a fonte destes

problemas. –– Sarah cochichava problemas se referindo aos confrontos com os fantasmas, e Marc cogitava o mesmo.

–– Não mesmo, se quisessem já teriam destruído todos. –– O quê você acha que é? –– A questão seria, quem eu acho que é. Mas não sabiam quem. Sean e Mateus eram peças-chave na

elucidação. Os diários de Miguel ou códex mikhae, uma razão. Mas quem seria mais importante que a verdade!

–– Se resolvermos os documentos... –– Antes precisamos do tradutor. –– Marc pensava alto.

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–– Nada ainda? –– Quase. E Sean folheava o caderno de Nicklas que tinha tantos

esclarecimentos ocultos em suas mensagens misturadas quanto ele que desejava esclarecimentos claros em suas questões bem definidas. Naxamuñaca fingia não ouvir os desejos, pois sua língua coçava.

–– Hum. Muitas horas depois. No meio da madrugada o estômago roncou reclamando

comida, mas a cozinha ficava longe. Sean se esforçava para levantar, porém o frio e a indisposição provocada por sonhos desconexos eram mais fortes que sua vontade.

Apesar de tudo, um olho, em meio às cobertas, estava fixo no relógio-despertador que piscava. Este desconforto psicológico aumentava sua fome. Sua boca salivava por um sanduíche gigante com muito queijo derretido e fartas fatias de presunto e bacon. O detalhe era o incrível odor que parecia se impregnar em seu nariz, tamanho o desejo. Dane-se o frio.

Desceu nas pontas dos pés, evitando acordar os outros, todavia havia uma ponta de culpa por ter abandonado tão acolhedoras mantas em seu iglu térmico. Aliás, sabia que seu sanduíche se transformaria em alguma coisa comestível, fria e rápida com o que quer que tivesse na geladeira.

Contudo a friagem foi espantada pelo susto quando acendeu as luzes da cozinha. Jean estava sentado num canto lendo alguns papéis e nem pareceu importunado com a súbita chegada do garoto faminto de poucas roupas. E Sean ficou ainda mais perturbado quando olhou para a bancada de granito escuro da cozinha moderna e arejada que Sarah fez questão de concluir, sem móveis estocados e cortinas improvisadas. Devia ser o privilegiado cômodo acabado da casa.

E Sean só admirava o belo e aromático sanduíche que lhe impingia salivas descontroladas.

–– Boa noite, moleque. Vá em frente, coma-o. Ele não pôde fazer nada quando suas mãos atravessaram o

lanche, ele realmente não estava ali. Fechou a cara em bico e soltou seus ombros. –– No way!

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–– Ficou muito tempo pensando neste sanduíche, não é? –– Sim, por quê? –– Isto é uma idealização de seus desejos. –– Para Sean não

importava, pois se Jean quisesse algo de seu mundo também daria com a cara no chão. Teria que se esforçar muito para pegar qualquer coisa. E o Arcanjo riu, imaginando, pela expressão do garoto, que ele não estava nem aí. Talvez.

E um copo sobre a mesma bancada deslizou passando através do sanduíche, só parando quando esbarrou na mão de Sean.

–– Para mim é mais fácil, só tenho que pensar... –– só não contou que este pensar era mais difícil.

Bastou isso para atiçar a curiosidade de Sean, ele também poderia fazer algo parecido?

–– Como eu faço isso? –– Não faz. –– e o Arcanjo voltava sua atenção para os papéis

que estava lendo. Porém não pôde ignorar o olhar intrigante que aguardava maiores explicações. Achava que nos Fox teria alguma privacidade, mas ele estava errado. Felizmente já não era o Mateus que não parava de incomodá-lo –– Pelo menos nunca vi alguém fazendo! Por exemplo, este vaso sobre a mesa.

–– Hum! –– Sean era todo ouvidos. –– Ele não existe, mas o hábito de sua mãe colocar sempre um

vaso florido deixou uma marca indelével. Mesmo agora, neste frio, onde não é possível manter o vaso, a simples intenção reforça sua idealização.

–– Então eu posso estar vendo objetos que não existem? –– Não só objetos, como pessoas e eventos. Sean observava o Arcanjo se levantar e seguir para o armário. –– Este já é mais difícil. Logo depois que vocês se mudaram o

relógio quebrou, não é verdade? –– Sim. Hum! –– Apesar do tempo transcorrido o relógio deixou uma

reminiscência que, assim que todos se esquecerem dele, desaparecerá. –– e Jean se concentrou reforçando a imagem do inexistente relógio que surgiu marcando as três horas e trinta e três minutos daquele amanhecer. –– O sanduíche já é outra coisa, é só sua imaginação. Mas... –– Que, dependendo do indivíduo, poderiam acontecer coisas incríveis.

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O garoto estava ansioso para descobrir se conseguiria achar mais objetos invisíveis espalhados pela casa esperando que, com sua força de vontade, eles retornassem à vida. E andava de um lado para outro esfregando as mãos sobre os móveis. E fingia achar algo que Jean negava rindo. E achava algo que fingia ter estado lá para outra negativa do Arcanjo. Sean já se aborrecia quando acertou em cheio um frasco de linhas retas de um vidro esverdeado que se materializou no piso da cozinha.

O Arcanjo se surpreendeu, pois o relógio havia desaparecido alguns meses e deixara um sinal tão sutil que ele teve que usar toda a sua perspicácia para encontrá-lo. Já o frasco, pelo que pôde pressentir, pertencia a uma família que vivera ali anteriormente. Pelo menos uns dois mil anos antes. E ele pegou o frasco absorvendo suas impressões para constatar que era um objeto tão ou mais comum do que o relógio da cozinha, o que deixaria uma marca impossível de ser detectada.

–– Não deu muito certo, né? –– Parece que você deu sorte de principiante. –– e Sean deu

de ombros, como tanto-faz. –– o que sabe sobre psicometria? Novamente era encarado com ignorância quando negou o

assunto diante do Arcanjo. E ele teria que fazer um resumo. –– Recordações passadas

que... –– Pode parar. Faço ideia do que seja. –– lembrando-se do

episódio na praça Saint-Michel que dificilmente ele deslembraria enquanto vivesse, talvez até depois. Inclusive Mateus.

–– O que você fez com o frasco foi idealizar estas recordações. Para que isto serve? Ainda não sei. –– e Jean estava sendo sincero em suas considerações que só escondia o fato de não ser capaz de repetir o feito. E olhe que ele teve tempo de praticar. E iria demonstrá-lo.

A porta bateu logo atrás de Sean que girou desconfiado da brincadeira de Jean que se divertia indiscriminadamente. Seu retorno à posição anterior revelaria outro arrebatamento. Todos os móveis da cozinha, objetos e badulaques haviam desaparecidos. Para não ter dúvidas, Sean atravessou onde estaria a bancada e nada de poderes de invisibilidade.

–– Cadê as coisas?

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–– Agora nós vamos ver se é bom mesmo. Feche os olhos e idealize, imagine, como a cozinha era. Cada coisa em seu canto.

O garoto se concentrava nos móveis, nas xícaras e nos pratos, no lixo e na lixeira, será que as cortinas eram brancas mesmo, tinham rendas? E os cereais ficavam e quais armários, os pratos tinham desenhos? Ah, os copos eram decorados com bichos, mas quantos? Quando o Arcanjo deu o sinal ele abriu os olhos e caiu na gargalhada. Parecia que Salvador Dali e Picasso haviam projetado o ambiente. Cores erradas, proporções erradas e formatos errados.

–– Como isto aconteceu? Mas o Arcanjo não responderia, Sean tinha se enganado na

idealização. Sua versão da cozinha refletia a sua falta de atenção aos detalhes. E ele se cansou da brincadeira e, sem comida por perto, retornou para sua cama de formas bem acertadas.

–– Logo cedo a cozinha estará aqui. E não conte para Matt que estive por aqui. –– gritou Jean antes que o garoto desaparecesse na dobra do corredor. Ele bufou cansado quando os primeiros raios caíram em suas pálpebras recém fechadas.

Entretanto o Arcanjo admirava ainda embaraçado a concretização de Sean. Ele esperava que os móveis deixassem uma marca que ele pudesse plasmar, talvez conseguisse recriar algo, outros ficariam indistintos ou incompletos, mas ele inventou algo totalmente inédito. Não era o reforço de impressões impagáveis, eram criações. Para se certificar sentou no que parecia uma cadeira muito desconfortável e ajeitou os seus documentos sobre a mesa desalinhada que não mantinha nada estável.

–– Este garoto é muito estranho! –– Hum. É verdade, mas é só um garoto por enquanto. E não

há nada que se possa fazer. –– tio Xaxá admirava a pièce de resistance do que seria cozinha. –– Você nos prometeu vigiá-lo.

–– Nunca quebro acordos. –– Só faz o impossível... –– Só por que afundei o hidroplano?! –– Hum. O motor da direita estava falhando! Entre outras. É

sim.

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por trás dos olhos fechados

O cenário citadino habitual camuflava todos os acontecimentos que divergiam da realidade descrita nas evidências fotográficas da primeira página do jornal de grande circulação que acabava de comprar. Dias seguidos, muito banais, e esta naturalidade não era tão aparente como gostariam algumas pessoas. Porém, os dias com aulas inexpugnáveis retornaram, assim como os dias azafamados de muito trabalho acumulado.

Marc abandonava o táxi irrequieto com seus papéis enfiados debaixo do braço, calçando o copo de café à máquina entre os dedos menos ocupados, numa tentativa irritante de remover o dinheiro da carteira. Esta operação estava tomando mais tempo do que ele gostaria e, muito mais do que o taxista suportaria de um passageiro, obrigando-o a sacar a quantia por conta própria para embaraço de Bernis. O copo de isopor não aguentou a manobra e despencou, acertando a ponta do seu pé. O mesmo pé esquerdo com que vinha se levantando todos os dias desde a avalanche.

Algo verdadeiramente acontecera a ponto de alterar a sua maré de boa sorte.

Com o periódico enrolado, bateu à porta insistentemente. E esqueceu que estava sem a bebida, levando a mão desocupada à boca ansiosa. Sarah o recebeu com entusiasmo, puxando-o para um abraço que o encabulou. Tentou gaguejar algo, mas ela era demais. E tinham muitas dúvidas para responder quando ele mostrou as folhas pautadas do cilindro metálico descoberto em Sogndal. Sua primeira impressão foi de espanto –– caramba ––

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diante das marcas que compunham os extremos deste compartimento.

Um choro dorido brotou do quarto acima. Era a causa pela qual trabalharia em sua casa, dividindo-se entre obrigação profissional, deveres maternais e curiosidade feminina; que só uma mulher conseguiria realizar com justiça e presteza.

Jox estava acamado, precisando de muita cama para se restabelecer, uma âncora com propósitos bem delineados em sua cabeça recheada de bactérias e vírus em espirros desafinados, com muito catarro saindo pelas brechas do rosto. Não caberia outra medida, senão esta. Com hospitais superlotados de doentes em nebulizadores e sondas intravenosas andantes, a melhor escolha estava na amabilidade e cafunés de mães prestimosas. E aconselhamentos indiretos da doutora Mel para evitar os pronto-socorros.

Quando já estava remediado, Sarah saltou os degraus puxando Marc e, acelerou todo o processo despencando o material sobre o tampo da cozinha selecionando os campos em montes por assuntos incoerentes para um leigo. Enquanto ele abalizava algumas anotações complementares apontadas por ela, em sua caderneta de campo rasurada, Sarah preparava o lanche da tarde, servindo-se de uma chaleira ao fogo.

–– Se o documento não estava lá, está por aqui. Quem sabe ele tenha confiado a alguém.

–– Também acho. –– pedindo um pouco do chá que fervia. –– Só precisamos saber quem! –– dirigindo sua atenção às pilhas de papéis que sequestrou dos arquivos do professor Hodgson-Crookes e às que acrescentou de suas observações do códex mikhae e às que trouxe de Erik. –– O que está oculto por trás dos meus olhos fechados?

Uma expressão que Marc ouvia fixamente em sua mente, se repetindo como uma reminiscência apreensiva de que deixara escapar algo por entre os dedos, e não era só um copo de café. Uma frase que ouvia sempre que seu avô se deparava com um beco sem saída.

Por bem, Jacques experimentava reduzir as teorias, simplificando, depois as entrecruzando, mas acabava por solucioná-las com um diminuto elemento desapercebido ou adicionado. Sempre havia um elo perdido e se ele não o

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encontrava fazia um jogo que Marc ainda não aprendeu, supor qual é a peça que faltava e partir em sua busca. E qual seria a que responderia a sua incógnita?

–– Então os abra. –– frisou Sarah. Comporam todas as informações para si, formando um

semicírculo que continha os manuscritos de Bernardo, as cartas, um símile do peculiar evangelho de São Lucas e o seu reverso mikhae. E o que ele não está vendo?

Depois de algumas horas, resolveu fechar os olhos. A tarde alardeara com o impacto a acometida ao horto. Tiago investia às costas de Sean, derrubando-o de cara na

neve enquanto Mateus lançava mais bolas alvas contra rostos aturdidos. O contra-ataque dos garotos seria mais implacável, provocando a fuga de meia dúzia de bisbilhoteiros, acertados pelos tiros imprecisos. Eles entravam no vergel adormecido gargalhando e fatigados da batalha sem mortos ou feridos. Elene vinha logo atrás com cuidado disfarçado para não ser atingida, apesar de que ninguém tinha esta certeza. Por dentro, ela ansiava.

O que ela precisava era estar por perto. E a represália de Sean seria insólita –– Tiago, preste atenção!

–– e pedia que olhasse para Mateus que agachou duas ou três vezes tentando arranhar o chão em vão. E ele se levantava encalistrado, olhando para todos os lados. Neste momento de confusão, eles acertavam o alvo exposto. –– É bom demais. Eu estou provocando com alguns objetos falsos. Agora o seu irmão está tentando pegar um maço de notas que...

–– Não estou vendo nada! –– Tiago não aprendia. –– Você não, mas ele sim. –– Hã. E Tiago fazia careta de quem estava sempre um passo atrás.

Sean já se acostumara com as expressões de pouco caso que ele fazia quando contava casos de outra alçada, completamente fantasmagóricos. E ele estava aprimorando suas técnicas de produção imaginativa, conseguindo confundir até Naxamuñaca com sua bela criação de uma torre de panquecas aromáticas que evaporou diante de seus olhos. Mas que ressurgiu à solicitação do faminto tio Xaxá, que se deliciou com a sua variante aperfeiçoada de panquecas amanteigadas.

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Por pelo menos uma vez, Sean acreditou ter sentido as pontas de seus dedos tocarem em algo menos vaporoso, contudo devia ser efeito colateral de sua imaginação em uso contínuo. Estas pequenas coisas que idealizava servia só para provocar Mateus que parecia desconfiar de alguém específico quando seu olhar cruzou-o de Sean. Este engana-engana confundia-o, trocando o falso pelo real e o legítimo por inventado, o que acabou causando o tombo diante de um portão que tinha certeza não existir, mas existia. Talvez por isto ele olhasse abertamente para Sean com furor. Tiago não suportava estas exibições onde ele não podia experimentar a sua versão.

O olhar fulminante do ludibriado desprendera a calha, derrubando a neve do telhado sobre os garotos que já não riam mais. À face emburrada seguiu-se uma reprodução síncrona que explodiu em alto e indistinguível: –– No way, man!

Os três ingressaram na cozinha em queda brusca, onde Mateus apertava Sean num abraço hostil e era apartado por Tiago em febril guerra de crianças. –– Eh! Desculpe. –– os três constrangidos em conjunto.

Enquanto eles se mexiam doloridos, Elene cumprimentava Sarah e Marc entre passadas bem calculadas que não evitaram resvalar em alguém, levando-a de encontro aos demais. Amaciada pelos presentes, por seus renovados gemidos.

–– Estamos só brincando. –– respondia Matt. O cheiro de comida apressou o levante. Sean se erguia atordoado com a brincadeira inesperada que

provocara. Tiago já estava comendo alguns salgados que mal cabiam em sua boca apertada, para desocupar as mãos que se serviam de uma caneca de um líquido quente que tentava abrir caminho pelos lábios ocupados.

–– Hum. Hã. Nhum. Hum. Hei... –– tentava falar o quanto estava delicioso ou sobre o que estava na mesa, provocando uma mímica incompreensível.

–– Mostre o diário para Marc, Sean. –– sendo vingativo diante do convencimento crescente.

Ele sacou o velho e enrugado caderno de anotações com receios, e que pertencera a Nicklas Buchhand, colocando-o sobre o palco de documentos rearranjados num canto. Como não pôde averiguar com o senhor Fabien, que não atendia suas ligações,

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Bernis poderia ter algumas explicações para o intricado diário. Marc não entendeu até não entendê-lo, estava criptografado como todos os outros documentos que possuía. Mas este tinha uma cártula singular, Miguel. Folheou-o a esmo procurando a sua resposta.

–– De onde veio? Tiago se precipitou apontando para o documento de Bernardo

colocado em evidência no canto da mesa. Marc e Sarah achavam que ele estava tentando dizer algo, porém eles não captaram seu raciocínio, se é que havia um.

–– Do senhor Buchhand! –– e punha seu dedo gorduroso sobre as letras vermelhas que margeavam a carta de Bernardo com tipos móveis de uma máquina de escrever. –– Este também estava com ele?! –– uma pergunta ou confirmação?

Marc Bernis olhou de novo para as anotações de rodapé feitas pelos nazistas e não acreditou que, desde o princípio, estivera com a solução diante de seus olhos fechados. Não sabia muito bem alemão, mas confundir buchhändler, o livreiro de Paris com um...

–– Quem é este senhor Buchhand! –– Só um velho senhor que ajudou Sean... –– e Sarah pensava

nas histórias de guerra que ele contou. Ele era o tradutor? –– Contou que foi salvo por um soldado que abandonou o

exército na região de Arras e... –– procurava por um nome na contracapa do diário. –– que se chamava Nicklas Buchhand.

Marc se levantou caindo sobre a papelada, mergulhando as mãos que destroçavam as pilhas e montes que Sarah havia construído com esmero de um planejador urbano para arrancar uma folha de carta que trouxe da Noruega. –– “... não sei qual o destino dele, mas se eu falhar, sempre haverá um Nick para concluir a missão...” –– relendo mais vezes para não cometer o mesmo erro de deixar passar uma pista oculta por não saber decifrar línguas modernas.

Tiago se abraçava à comida espalhada pelo devaneio de Bernis que se afastava pensativo, com ares de quem iria arrebentar a porta de suas dobradiças à caça deste livreiro que todos pareciam conhecer, menos ele.

Porém Sarah impediu-o empurrando todos para suas cadeiras. –– Se ele soubesse de algo, não teria dado este documento. Se ele soubesse quem era o tradutor, não teria entregado a ele. –– e

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todos se viraram para o portador. E Sean ligeiramente se pôs em justificar: –– Nem pensem que eu sou o tradutor disto... no way!

–– Nã... Não! –– concordaram juntos. –– O senhor Fabien não está mais na cidade. –– respondeu

antecipadamente aos desejos dos curiosos. Uma boca recheada de migalhas assoprou farelos numa

suposição inconcebível para Marc. –– Mas por que vocês não perguntam para os fantasmas? –– Supondo que sua idéia seria absurda demais até mesmo para ele.

Seria possível? Se Mateus e Sean quisessem tentar, seria mesmo possível? E com estes olhares que pulavam de pessoa para pessoa, recaíram sobre os dois únicos voluntários para esta comissão diplomática. Matt e Sean balançavam a cabeça negativamente.

–– Para quem devemos perguntar? –– direcionando a interrogação para Tiago, Marc esperava descobrir o que ainda estava oculto por trás.

–– Não olhem para mim, nem sei se tem fantasmas por aqui. Sean concordou quando Mateus garantiu que estavam

sozinhos, não tinha nenhum espírito à espreita. Obedecendo aos psius dos índios que insistiam em seu anonimato, pois eles mereciam ouvir as teorias que tanto contribuíram em direcionar.

Mateus procurou direcionar as opções conforme lhe vinham à mente. –– Às divisões napoleônicas no Louvre...

–– Soldados da SS no convento-universidade... –– No aeródromo... –– lembrava Elene. –– Estes eram cavaleiros com armaduras. –– Não se esqueça dos gregos... –– acrescentava Sean. –– e os

paramédicos. –– Hum. Os índios não contam... E eles acenaram um não. –– E romanos?! –– era a vez de Marc. –– Eu vi um romano com um manto vermelho em duas

ocasiões... –– e Sean olhou cúmplice para Bernis. –– nos dois atentados no metrô da praça Monge e Saint-Michel. –– Se referindo ao que provocou a intervenção cirúrgica em Marc e ao que explodiu os subterrâneos centrais de Paris. Ainda dava calafrios quando recordava o olhar devassador da estátua cobrando um compromisso inimaginável.

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Marc percebeu a inutilidade deste exercício recorrendo a uma reclamação bem justificada. –– Se ao menos pudesse vê-los!

–– Na televisão tinham maquis em seus barretes, junto com os manifestantes destas revoltas estudantis que aconteceram a pouco tempo. –– complementava Sean para júbilo de Marc que abriu o jornal de grandes letras vazadas contra uma tarja anil e ainda solicitou um mapa urbano. Exemplar já bastante gasto que apresentava dados ultrapassados, mas serviria para o experimento.

–– O que acontece quando eles se reúnem em grande número? –– contundo a pergunta era feita diretamente para Mateus que demorou antes de.

–– O ar fica mais denso e frio, eu me sinto mal e muito mau. Exatamente como todos pressentimos ainda na saída do seu apartamento!

Sean completou –– Parece que todos se sentem assim, vendo ou não o que se passa... Muitas das vezes estão ocorrendo...

––... Manifestações de revolta, confrontos, enfim, as pessoas ficam afetadas por essa concentração de pensamentos contrários! –– finalizava Marc. Mateus ligava algumas situações em que o agrupamento de espíritos provocara discussões entre os vivos, mas sempre de pequena monta. Entretanto Sean advertiu que os alemães que invadiram o cordeliers penetraram em meio aos conflitos entre universitários insatisfeitos e policiais armados até os dentes. Onde houvesse dois ou mais espíritos impregnados de más intenções e algumas pessoas por perto, lá haveria um duelo. Quanto mais instigados eles forem, maior será os fatos, que começariam com habituais xingamentos e terminariam com armas em punho e agressão irrefreável.

No frontispício do periódico diário Le Figaro, as pistas se transformavam em contornos luminosos na carta geográfica da cidade, gerando um perímetro disforme. Greve e manifestações no Campus de Jussieu, um dos grandes teatros de enfrentamentos coletivos, os anti-CPE em contratos rasgados, bloqueavam o ingresso às universidades e ao instituto de física com uma montanha de entulho similar ao do ajuntamento de amianto arrancado de suas entranhas em polêmicas passadas.

O tumulto de alguns protestantes e católicos em presença do gótico santuário paroquial de Saint-Médard que já presenciou episódios mais cruentos do mesmo tópico, estavam em oposição

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às passeatas religiosas na mesquita de Paris contra os tributos aos franco-atiradores algerianos em sua campanha de resistência na derradeira grande guerra.

Tanto em espaços abertos como o Jardin des Plantes ou fechados como a praça de la Contrescarpe, havia baderneiros e vândalos destruindo tudo que tivesse em seu caminho. Gangues se entrechocavam sem razão e várias incursões policiais faziam rondas sem descanso. Na ménagerie, as feras do zoológico estavam transtornadas, parecendo pressentir movimentos muito estranhos, de seres animalizados.

No Ministério de Educação Nacional, paralisações dos sistemas informatizados, provocados por sabotagens virtuais, estavam provocando atrasos burocráticos nos processos. As barricadas políticas por toda a rua Soufflot recordavam as confusões de maio de 68, com embates entre prós, contras e guarda intervencionista diante do Panthéon. Pedras e paus e cartazes e bandeiras rubras se digladiavam com escudos e bombas lacrimogêneas.

Por todo o quinto arrondissement eclodia, de pequenos furtos até centenas de feridos dos entrechoques calorosos, coagidos pela massa espectral paralisada no campo. Até pacíficos arqueólogos disputavam as escavações das fundações da torre de la Tournelle que emergiram do afundamento de parte da rua des Fossés Saint-Bernard e o quai de la Tournelle, estagnando o fluxo rodoviário para a ponte de Sully e a estação de Austerlitz. A isso tudo, mais uma agressão racista na linha C do RER e voilà.

Os pontos marcados na carta tracejavam um perímetro não tão irregular que, de Saint-Médard, passando pelos demais pontos, até a Mesquita, formavam uma folha de três pétalas. Eles, em linhas pouco retilíneas, se cruzavam num campo arborizado adjacente à rua de Navarre que não tinha marcação ou denominação aparente no mapa inacabado e simplista, comercializado por oportunistas aos turistas ocasionais.

Por fim, um artigo fazia referência ao versado desastre no metrô da praça Monge e as reincidências dos problemas estruturais das reformas mal executadas por empresas gananciosas por aumentar lucros diante do ofuscamento administrativo da Régie. Como um caule que guiava os demais acontecimentos, talvez o primeiro que se tenha conhecimento da intervenção de

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fantasmas, outra linha isolada ligava o centro do desenho à praça. O gráfico garatujado lembrava uma folha de videira.

–– Isto é o que chamo de baita coincidência! –– confirmando em voz alta o que todos supunham. Esta sim era coincidência, mas a quantidade de acontecimentos, próximos entre si, descreveria um epicentro. Mas o que havia no meio da folha rabiscada por traços tortos?

–– As arenas?! –– gritou Elene que começava a entender. –– Só pode ser aí. –– E agora, como faremos? –– olhava promissor, Marc, para o

rosto lívido de Mateus que seria sua única alternativa viável. –– Sabe algo de latim?

–– Hum! –– suspirado junto por Mateus e Naxamuñaca. Todo o plano sintetizava em como enfiar Mateus no meio

destas hostes sem que desconfiassem que ele era um espião, muito menos que não falasse o idioma, menos ainda que fosse vivo. Pelo menos enquanto não fosse descoberto.

Quanto ao senhor Buchhand, este teria seu interrogatório assim que eles descobrissem o que estes invasores desejavam. Porque para destruir os manuscritos do códex mikhae ou tirar um deles do lance, bastava estalar os dedos e coisas inacreditáveis aconteceriam, sem explicações, se presumível.

Quanto ao que Mateus pensava a respeito de sua campanha sigilosa no campo inimigo, devia guardar só para ele. Sean jamais passaria desapercebido e Marc não saberia o que fazer andando às cegas ou tateando o ar. Contudo não resolveram como Mateus responderia às interpelações latinas ou de outra natureza que não fosse o bom e velho francês do século vinte e um.

–– E se usássemos intercomunicadores?! –– Tiago, de novo. –– Podemos fazer um teste... –– dava de ombros Marc, não

fazendo a menor ideia do que queria dizer. O resultado não seria garantido e só quando eles chegassem às

arenas de Lutèce saberiam se o estratagema funcionaria. E precisava funcionar inexoravelmente se Mateus quisesse sair, ainda ileso. Ou acabaria sendo prisioneiro, o que seria muito pior, além de estar morto.

Agora compreendia a fatídica citação. Capturado vivo ou morto.

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sete de dezembros.

Manhã auspiciosa quando as brumas envolventes camuflavam a assiduidade do skyline parisiense. Pontos isolados se destacavam pelas suas luzes baças que emolduravam janelas no céu. Como dizem, manhã para se esquecer de acordar, se esquecer de que existia um mundo e, sobretudo, se esquecer dos mortos.

Mas o que é imprescindível deve ser seguido de agilidade, não bastava serem só eficazes, precisavam ser eficientes também. E descobririam que os museus serviam para muitas coisas imprevisíveis. E, entre tantas, jamais pensariam em roubar suas antiguidades para se disfarçarem de fantasmas, mesmo que estas relíquias estivessem encaixotadas com muita naftalina e pouca aplicabilidade. Se não conseguissem, fariam uso de réplicas ou fantasias mal acabadas de aspecto mais jocoso do que autêntico.

Matt tomava a vestimenta de espião do século antepassado. De sobrecasaca escura com detalhes de dragonas vermelhas, cortada pela intersecção de faixas ao peito, experimentava isto com dificuldades extremas. Faixas que sustentavam um embornal e o fuzil de cano longo com gatilho aligeirado por um orifício que lembrava a forma de um coração. A calça, no mesmo tom, era presa por meiões que subiam até os joelhos com dezenas de botões prateados. Um casaco cinza e comprido e grosseiro cobria a indumentária que exigia um complemento que Mateus se negava em usar, o chapéu cilíndrico ornado por uma pluma solitária. Ou isto ou os incômodos bicornes ou os gorros de pele de urso. Acabou se decidindo por ficar sem, sob as golas levantadas que o

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protegeriam do vento e dos olhares mais impertinentes que suspeitassem de sua falsa imortalidade.

–– Será que vai dar certo? –– arriscava Elene, enquanto divisava Mateus acocorado diante da televisão, vendo cartoons. Ele se coçava muito e reclamava do cheiro horroroso que parecia provir do suor de seu último usuário secular.

Marc tinha receios que não queria partilhar, no entanto o que aconteceria caso Mateus fosse descoberto? O que alguns espíritos poderiam fazer, gritar buás em caretas melindrosas ou cantar cantilenas intoleráveis durante noites seguidas? Mexer em alguns objetos, escondendo-os em outro mundo? Bichos-papões? –– Com certeza. Não se preocupe. –– Ainda.

Mas Elene se prendia nos volteios e arremessos que presenciou no aeródromo; coisas sem explicação, caso não tivessem lhe explicado o ataque de catapultas, cavalos e espadas de um confronto que jamais presenciara. Estava sempre se contradizendo.

–– Você por aqui? Vai junto? –– Mateus se referia ao Arcanjo

que se aproximava cauteloso. –– Não posso, acabaria delatando suas intenções. Não sou

bem visto por eles. Mas por que está usando isto? –– Conveniência. Assim eu poderei me aproximar. –– Mas não eram legionários romanos? Mateus travou na resposta. –– Não são romanos? –– se

dirigindo a Marc que ajustava os intercomunicadores na lapela. –– Nem todos devem ser. Eles estão trabalhando juntos para

conseguir algo muito importante. Pelo menos um, de cada um dos exércitos vistos, deve ter um emissário.

–– E se não! –– Mateus tinha certeza absoluta de que as coisas não sairiam como planejavam. Era o que acontecia com planos cujas informações não eram precisas o suficiente.

E Marc repetia, em bom tom, para ele ter mais ânimo. –– Seja coerente. Se alguém falar contigo em outra língua, poderá contestar naquela que conhece e que condiz com o seu uniforme. Certo? –– apontando para o fraque com batidinhas no ombro.

–– E se eles entenderem que eu deveria falar em todos os idiomas? –– prevenido, Matt.

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–– Estamos aqui para te ajudar! Eu falo vários. –– pensando em quais não sabia e torcer para que não precisasse deles. Conhecia tantos que não precisaria se preocupar. Não mesmo.

Porém Sean sentia cheiro de tiro que saiu pela culatra, mesmo antes de acontecer algo suspeito. Havia um temor de que enfrentar esta legião fosse ousado demais. Qual a força que estes mercenários poderiam provocar num ato de represália?

E Jean parecia saber. –– Não sabem com que estão mexendo. Tenho um mau pressentimento.

–– Basta sermos mais cuidadosos. –– dizia Sean. –– Deve estar certo. É que eu odeio o dia sete de dezembro. E Mateus quis saber porquê. –– O dia da minha morte! E eles só queriam evitar que também tivessem que recordar

deste dia como o dia de suas. Bater na madeira não adiantaria. Todo o orquestramento contava com duas certezas, que eles

iriam até às arenas e, iriam interagir com fantasmas em intensas manobras de guerra. E Naxamuñaca sabia de mais uma, que eles estariam lidando com criaturas desconfiadas e vingativas que não tolerariam intromissões. E Guarini sabia de outra, que eles acabariam cometendo um erro, e seria letal. Matt não o convencia, mas os outros costumavam ser meio apáticos com minudências.

Somente Elene teria a maior de todas as certezas, sabia muito bem que Mateus habituava trocar as mãos pelos pés, ainda mais em casos tão estressantes.

–– Desta vez vai dar tudo certo... –– Mateus percebeu o olhar de dúvida de Elene, mas mesmo assim enfiou suas coisas no bolso e apressou a partida.

–– Eu só espero que tenha feito um briefing... –– afirmando sua impressão sempre acertada de que ele acabaria esquecendo de seguir o plano. Entretanto ninguém falava do improviso que, decisivamente, seria a nota em pauta durante toda confrontação face-a-face com o inimigo. Era o que Marc evitava explanar.

O que dava ao propósito, maior e intolerada imprecisão. –– Não quero me arrepender depois. –– Guarini afastava Sean

para uma confissão franca, porém indecisiva. –– Chega até aqui, garoto! Precisam saber o que estão enfrentando e, também, o que o conclave resolveu.

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Sean assentia em conluio. –– O conclave sabia da invasão quando realizaram a

assembleia no campo dos menires. Eles pretendiam, com os eventos posteriores, estabelecer uma linha de ação.

–– Pensei que vocês estivessem do nosso lado. –– E estamos. Mas o meio pelo qual talvez lhe pareça

impassibilidade. O garoto estava confuso e pretendia ilustrar o que estava

acontecendo, caso eles não tivessem percebido a gravidade. Eles só precisavam estender seus escudos ou improvisar um entrincheiramento de anjos guerreiros, como aquele que empunhou uma espada contra o demônio.

–– Nós não somos muito diferentes destes invasores. Só nos distinguimos pelo caráter. Não possuímos meios extraordinários para prever o rumo dos acontecimentos. E muito menos de intervir com a convicção ao qual somos alardeados. –– e o indiozinho tirava o corpo fora.

–– Por que não? –– Por causa dos débitos que geraríamos quando nos

rebaixássemos ao mesmo grau destas legiões implacáveis. Enfrentá-los nos custaria todo o esforço do bem em não agredir, seja quem for. Estes atos também não provocariam a transformação de atitude que gostaríamos que ocorresse aos rebelados. –– havia uma explicação, mas não tão boa. –– A não-intervenção foi unânime.

–– Então toda a defesa fica por nossa conta?! –– Suponho que não. –– e Guarini deu uma piscadela

conspiradora. –– Por fim, tivemos resoluções superiores para não nos intrometermos abertamente no conflito.

–– Eu não entendo! A invasão deve acontecer? –– e Sean acertou na mosca. Era questão de premeditação, alguém se aproveitaria da situação para gerar benefício. E o conclave obedeceria às tais ordens. O que Guarini omitiu desta confissão sugerida foi que um anjo de desmedida envergadura esteve presente à deliberação da reunião afirmando que, na hora apropriada, estaria presente nos eventos extremos. Sejam eles previsíveis ou não. Este ser angelical não era aguardado, tampouco a sua aparência infantil que, sob intensa luminosidade emanada, impediu-os de reconhecê-lo.

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Nunca, jamais; a legião jamais ocuparia as Terras Médias e não retrocederia ao covil do qual foram expulsos.

–– Nós não somos grupos de milícia, mas de resgate. Nossas cidades são como postos avançados de socorro, limítrofes a estas terras. Não intervimos na livre escolha dos homens, estejam eles vivos ou mortos. Pois sabemos que existem ligações entrelaçadas que perduram durante várias vidas.

–– Sei lá, mas vou lhe dar um voto de confiança. –– Sean tentava confiar em suas vozes interiores que berravam compromissos intuitivos. –– Afinal, vamos estar sozinhos.

–– Nunca estamos sós. Se precisar, improvise. –– tirando o corpo fora pela última vez. E sorriu imaginando. Suas suspeitas quanto à tentativa de incursão ao acampamento hostil eram todas temerosas, porém ele contava com um segredo respeitável que dava vantagem larga.

Contudo o garoto ainda não conseguia idear o que esta invasão poderia ocasionar à cidade e seus cidadãos, eram mundos tão distantes que seria como se soldados entrassem em corpo-a-corpo no meio de um festival de música erudita. Isto, sem que eles se dessem conta um do outro ou interferissem na continuidade dos eventos. Mas era muita suposição para um dia.

Precisavam do elemento surpresa. E o Peugeot corrompido demorou a pegar, em continuadas

fricções do motor de arranque. O trajeto matutino estava ameaçado pelo nevoeiro úmido que

cultivava gotas tremeluzentes sempre apartadas pelos limpadores cautelosos. Bem poucas pessoas apareciam diante do campo de visão limitado, o que dava a impressão de que estavam sozinhos, mesmo que, a poucos metros, uma muralha estável de madrugadores estivesse caminhando, vampirescos, para seus trabalhos tumulares. Dentro, um silêncio inconveniente aumentava a ansiedade.

–– Antes eu preciso saber o que vocês veem, só depois entramos. –– e este entra levou Mateus a engolir em seco, pressentindo que não havia plano, ou planos, seja o A, B ou C. A improvisação era o maior mérito de Marc, ele só necessitava ver. Porém ele não via. Em terra de cego...

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Desceram pela rua Monge, após cruzar a Cardinal Lemoine, detendo-se nas proximidades das arenas romanas do século primeiro. Marc amparava Mateus e os outros forçavam sua evasão do cubículo com impaciência. Apesar do dia ter clareado, a luz provinha de todas as direções, refletidas pela névoa densa que não dissipava.

Não havia vento e o ruído cotidiano estava apagado e bem longe, abafado pela pequena floresta que circundava as ruínas reconquistadas. Em 1860 pela Compagnie Générale des Omnibus que pretendia situar a garagem de seus tramways aí. Mesmo depois do término da rua Monge e, do desmantelamento das linhas de bondes, muitos mitos circulariam acerca das escavações da linha dez do metropolitano. Histórias de fantasmas.

Penetraram o monumento como reles invasores, observando movimentos inesperados pelo canto dos olhos, mas só importava as observações mais difíceis, que Sean sondaria pela retaguarda. Mateus o fazia pela frente, empurrado por Bernis. Elene e Tiago preenchiam o bolo de curiosos que ficariam quietos e inertes.

Sem um pio. As primeiras barreiras espirituais eram cerceadas de pesado

armamento de defesa, corroborando as suposições de Marc de que onde há fumaça, há fogo. E o fogo se confirmaria como um incêndio de grandes proporções. Tão logo o grosso da névoa se desmanchou, centenas de homens entorpecidos, reunidos por similaridade tecnológica, se aqueciam em fogueiras distribuídas.

Tacapes, clavas e lanças se opunham a flecha e espadas enquanto mosquetes e fuzis eram dispostos num mostruário improvisado. Sean fazia um resumo mais ameno para os escondidos nos arbustos. Se eles não foram descobertos, foi por causa dos distintos olheiros que evitaram duas patrulhas de reconhecimento. Um par de besteiros venezianos que falavam pelos cotovelos e, uma trinca de temíveis soldados austríacos com seus mosquetes empunhados, em miras aleatórias que arranharam o esconderijo por um triz.

O panorama descrito por Sean restringia a ação de Mateus a penetrar o território, atingindo o epicentro da arena onde havia uma ampla tenda de caserna. Homens mais destacados ou de patente visível penetravam sem barreiras e cerimônias.

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–– Se somente os oficiais superiores têm autorização é porque é o centro de planejamento da operação da invasão. –– explicava Marc aos sussurros. –– É lá que teremos a nossa resposta. –– óbvio para todos. Para Marc era a coisa mais absurda que tentava em sua vida dedicada à pesquisa científica e bem palpável.

E aplicava uma enormidade de medalhas e patentes militares à farda de Mateus que suava por antecipação. Sean percebeu a roubada em que seu amigo se metera. –– Não deve ser fácil. Vou dar um conselho: na dúvida, corra. Corra o máximo que puder.

–– Tranquilo, moleque. –– Ele não gostou da recomendação, contudo não iria ignorá-la de antemão. E com esta máxima deslizou um barranco e avançou até o limite das arquibancadas da arena populosa. Deu dois toques ao ouvido, aferindo o equipamento eletrônico. Do outro lado alguém confirmava ouvir o burburinho da soldadesca em parlatório espartano. Respirou fundo algumas vezes, se preparando para atravessar a multidão em agitação, sem resvalar. O ar esfriou consideravelmente em forte condensação que escapava por entre os dentes.

Respirou profundamente e seguiu para o que se tornaria prontamente o dia de sua morte.

–– Vocês me pagam! Quando eu voltar... Ninguém o havia prevenido para o intenso odor que

descobrira no largo ocupado pelos soldados do além-túmulo. Era como se estivessem se decompondo ainda. O aspecto, aprimorado pelo aumento dos pormenores aproximados, confirmava o cheiro de podridão. No conjunto absoluto, os fantasmas não estavam tão pavorosos, mas se ele ficasse prestando atenção nas pústulas e ferimentos jamais daria um passo adiante.

E se os fantasmas soubessem a diferença entre os sólidos e incorpóreos? Não haviam pensado neste pormenor. E estava segurando o passo, e o estômago, quando foi obrigado a recuar para escapulir de uma briga inapropriada entre dois brutos. Só se deu conta de que estava dentro, assim que girou os calcanhares e não viu uma rota de escape.

A circunstância fazia a coragem. E eles não pareciam se importar com o invasor. Conversas paralelas atrapalhavam a reprodução sonora de

Sean para Marc. Ele se esforçava para repetir o que ouvia com

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exatidão, porém o semblante de Marc indicava que a transmissão estava ruim. Era um telefone sem fio e sem nexo.

Aos poucos, Marc Bernis se familiarizava com as reproduções e esboçava umas traduções demoradamente repassadas. E Sean, de seus binóculos amador, sacado da mochila de arqueólogo de campo de Marc, aproveitava para aconselhar Mateus a parar de encarar os já desconfiados espíritos de porcos.

Um bocado de conterrâneos falecidos permitia que Mateus compartilhasse de alguns diálogos que tratavam de questões não-militares, totalmente egoístas em suas aspirações. Se existia algum motivo para estarem trabalhando juntos, deveriam escutar o que se tramava por trás da lona da barraca que estava a dois pulos de alcançar.

Mas o ingresso não seria tão simples. Os homens pareciam desconfiar das intenções de Mateus

seguindo-o com olhos deslumbrados. Ele estava inteiro demais. Roupas asseadas e pele rosada atraiam olhares. Uma pequena multidão já se deslocava em encalço perturbador, redemoinhando como um tornado em formação. Elene só conseguia perceber que Mateus andava em bailado burlesco, tentando evitar o contato com coisas intangíveis. Rebolava tanto que se ela estivesse com os mortos já teria reparado.

–– Eu e Tiago vamos para o carro! –– afirmava Elene que previa algo repentino.

–– Por quê? –– perguntavam os três. –– Plano de emergência. Vão por mim, precisamos de um. Marc assentiu, permitindo que Sean os escoltassem em

segurança até os muros. –– Matt, não se mexa. Já volto... –– o que provocaria angustiantes minutos de silêncio e pernas moles. E ele não podia responder em meio aos homens que apertavam o cerco.

Quando regressou para sua posição de telefonia imóvel, não encontrou o mesmo quadro de soldados estagnados em suas fogueiras insossas. Diversos contornavam ao redor de Mateus que não movia um músculo sequer. Travado pelo pânico crescente.

Talvez o plano de emergência fosse legal. Marc precisava de mais informações, mas o garoto estava

maquinando e não percebia os chamamentos e cutucões solicitantes. Bastou um olhar injurioso para que Marc recuasse, calado.

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–– Grite com eles! Você é um capitão. –– Sean fechava os olhos temendo que não funcionasse seu artifício.

O impacto destas palavras foi tão dramático que ele nem pensou no que disse. –– Saiam da frente! Bando de desocupados! Preparem-se para a guerra! –– a massa estancou estonteada. Um silêncio pior do que as inumeráveis conjecturas que sua mente cogitava. De ataques diretos e inexpugnáveis até uma fuga sem rota certeira. No entanto os fantasmas ergueram os braços em urras e lançaram o que tinham em mãos para o ar, festejando a possibilidade de entrarem em ação. Graças ao seu estado de alta patente se referir a possíveis retaliações, ninguém se aproximou de Mateus para apertos solidários. Eles ainda temiam certas hierarquias.

Podiam imaginar os ufas que ele guardava para si. A algazarra fizera com que Sean abrisse um dos olhos. Agora

precisavam pô-lo dentro. E lá ele estaria por contra própria, sem as observações e auxílios necessários, considerando a competência de atrair o azar. –– Entre! –– era a recomendação detalhada de como invadir a barraca bem guarnecida. Mateus estava com o pensamento alhures, mesmo que a solidez das inconsistências que o rodeavam fossem bem próximas.

Os guardiões, com automáticas na cintura e granadas presas num feixe do colete cáqui, retiravam seus capacetes camuflados procurando maços de cigarros que não existiam. Por hábito, eles já estiveram lá. Mas nos últimos noventa anos só tragavam quando um fumante passava perto, muito perto, para delírio de suas almas. Os desgraçados discorriam quando perceberam que eram vigiados por um capitão de aparência inexpressiva. Volveram em continência de pés juntos, em estalos seguidos de expressões de submissão. Os ventres marcados pelas lagartas de um tanque Matilda ficaram visíveis com a mancha de sangue estriada que parecia começar abaixo do abdômen de um e terminar no ombro do outro. Eles exoravam algo, mas Mateus não compreendia bem o que o boche queria num alemão extremamente bávaro.

O que Sean repetiu a Marc ocasionou um estalar de olhos surpreendidos pela aberração da comunicação. Ele podia não entender o que significavam aqueles sons, contudo parecia

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reconhecível. Enquanto isto as interpelações repetitivas continuavam.

–– Fique calmo... Ganhe algum tempo. E seus pensamentos escaparam pelos lábios sem perceber. ––

Ganhar tempo? –– e os homens se olharam, porém repetiram a frase incompreensível.

–– É uma senha, Marc? –– falava Sean, em dúvida. –– Não. Acho que eles só querem saber nome e designação... O soldado punha a mão sobre o coldre e renovava os gritos

com maior ênfase. Com a desordem, muitos se calaram para acompanhar a discussão momentaneamente cessada pelo silêncio do invasor não-identificado e de muitas condecorações. Antes que pudessem inventar um título imaginário, porém convincente, Mateus implementou um subterfúgio pela circunstância já inquietante. –– Deixem-me passar! –– com forte impressão de asco e superioridade mesquinha de um ator de terceira ordem. Parece que surtiu efeito imediato, ambos recuaram para o lado, dando acesso incondicional ao quartel general da legião. Esta era a senha.

–– Deve estar louco para sair daí. –– sussurrava Sean ao comunicador, com suas mãos tremendo. –– Mas não conte muito com a sorte.

E Sean ouviu um breve psiu. Dentro havia vários setores. Mulheres movimentavam peças simbólicas das forças de

invasão sobre um tabuleiro com as curvas e o relevo da cidade de Paris. Porções de armadas se posicionavam nos limites urbanos aguardando ordens. Ordens que deslocariam estas forças adiante, rompendo as muralhas inconscientes, rompendo o anel periférico que abraça a cidade. Sugando o limão.

Um esquadrão já havia arrombado e estava avançando precisamente para onde eles estavam. Mateus se controlava, em estado de pânico quase domado pela pressa em sair do covil.

Precisava se mexer. Um radialista nipônico ajustava uma aparelhagem de

comunicação, girando seus botões que guinchavam zumbidos ondulantes de ondas curtas tão indeterminadas quanto sua linguagem. O espaço era grande e comportava vários compartimentos, sendo que gritos torturantes provinham de um

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recinto de reuniões ainda em uso. Mateus precisava descobrir o que estava acontecendo. O que eles ganhariam com esta conquista absurda? Que cidade cairia aos seus pés? Quem seria conquistado, não havia ninguém! E quem valesse como troféu não percebia nada de estranho.

Só pela desordem! Sean e Marc aguardavam tensos. Contudo o garoto pressentiu

que deveriam se preparar para uma fuga a qualquer instante. –– Acho que deve retornar para o carro. –– frisava Sean, ao mesmo tempo em que determinava suas convicções de manter posição de observador. Marc até não podia concordar, mas o olhar de superioridade do garoto provocou uma retirada de argumentos que não teriam respaldos. Se ele não podia sequer ver seus inimigos, de que serviria! Com dicas, Sean sinalizou o melhor caminho para o exterior das arenas.

No outro extremo, Marc despencava incólume, batendo as mãos nas coxas para reduzir os danos com a escalada. A rua parecia desabitada, porém resolveu seguir táticas de guerrilha e avançar às escondidas, em posição de defesa contra nuvens e imaginativos espectros.

Mateus escutava tudo com crescentes dúvidas de sua sobrevivência. Foi a gota d’água para que o seu temor se transformasse em coragem, e sabedoria em burrice galopante. Adentrou o ambiente com alvoroço.

Na caserna não tinha muitos fantasmas, mas os que estavam impingindo um violento interrogatório passaram a encarar o recém chegado e não-convidado capitão além-mundo. Ondas de ansiedade se extinguiram quando retomaram o inquérito contra um cavaleiro de esplêndida armadura. Três homens se opunham fortemente às aclarações do cavalariano medievo que parecia ter mais força que seus inquisidores. Um nazista desesperado berrava salivas. Um americano despachado ouvia a tudo sem tomar partido, só preferências egoístas determinariam seu lado na questão. Um bonapartista parecia balançar entre um e outro argumento.

–– Traidor, suas convicções não devem interferir com o processo de retomada. Seus protegidos são nossos inimigos. –– cuspia herr Rommel.

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–– Não sou eu quem devo prestar contas dos exércitos que não progridem. –– respondia solene, o cavaleiro.

Sean conseguia escutar tudo com familiaridade não localizada pela sua memória. Uma voz denotava que já haviam se encontrado pessoalmente, mas quando?

–– Não nos interessamos por seu descendente intruso –– Então, por que estão se intrometendo nos meus assuntos? –– Desde que ele se meteu nos nossos... –– e o coronel

fincava sua bandeira. –– passou a ser um alvo. O capitão Mateus encostou-se ao umbral e manteve ares de

guarda costumeira. Com olhar perdido e corpo reto impôs seu profissionalismo militar de escolta regulamentar.

–– Por mim, tudo bem. Este anjo não passa de uma fábula. Estou retirando as minhas tropas. –– quase quinhentos mil homens que seguiam o cruzado. –– Meu compromisso está com minha família, muito acima da servidão a dragões fictícios.

Coronel Rommel ficava vermelho. –– Quando eles te encontrarem...

–– Eles já não existem mais! –– foi a afirmação do cavaleiro. –– Como não?! –– lançava-se à discussão, Davidson. –– Não percebem que eles não se apresentam a alguns anos?

Foram capturados pelo cordeiro. –– Nunca se deixariam ser pegos... –– É, de fato. Eles desistiram. Só estamos agindo porque

somos burros! –– finalizava brusco, para a surpresa dos generais. –– O último dos grandes dragões desapareceu há quase vinte anos. Quem governa os infernos são os feudos mais fortalecidos e seus senhores de guerra que roubaram o título de dragões.

Olhares vagos na penumbra garantiam que eles pensavam nas consequências deste acontecimento inusitado. Eles estavam tão cegos que não percebiam que eram seguidores das circunstâncias caóticas que amealharam para si. Seguiam desertores que foram clonados pela corrupção do sistema, cujo mito era mantido pela falácia de aproveitadores inescrupulosos como eles. Irmãos tão doentes quanto eles, que só tiveram a oportunidade que nem todos poderiam ter de ocupar o trono largado para proveito próprio. Tudo estava em ruínas, mas ninguém percebia o inevitável desmoronamento do reinado. A força que eles impunham ao fortalecimento do mal se devia unicamente ao desejo de cada um

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dos espíritos que atingiam o limite de suas forças contra um último assalto desesperado. Contra aqueles que lhes provocaram dores e sofrimentos. Contra suas mentes turbadas. Contra suas fraquezas. Contra sua vontade de perdoar e seguir em frente. Contra a intuição de que o fim se aproximava inexoravelmente.

Nunca mais seriam vítimas, se pudessem. Vingança. –– E quem está no comando? –– Sixderniers era o mais

abalado com o aviso que chegava tarde. Com ares aristocráticos, de babados ocultos em punhos largos de um casaco surrado, o capitão desembainhou seu florete em arranjo de autodefesa fria e sem partidarismo.

O cavalariano se apressou em definir a contenda. –– O orgulho que nos oblitera. Somos vítimas de nossa ignorância. –– e o coronel Rommel se negava a escutar o óbvio, mergulhado nas trevas de um mundo anulado. Até as suas verdades eram calcadas em falsidades de casas caiadas.

–– Isto é impossível! Eu saberia... –– estertorava o incorruptível coronel alemão. Sua arrogância era tamanha que, para preservar sua sanidade, ele teria que recusar o que ouvia. –– Lenffers, considere-se exilado.

Nem bem terminava a elucidação dos trevosos e o sargento Davidson evadia-se antecipadamente. Havia percebido o estado emocional dos comandantes fragmentar-se. Eles haviam tomado direções opostas e, se o desmascaramento do cavaleiro Lenffers provocaria a cisão da resolução estabelecida pelos dragões, a realidade aniquilada provocaria reações muito mais imprevisíveis e eminentes aos espíritos subservientes de seus homens, agora sem comando.

O coronel sentava-se à cabeceira da grande mesa, pensava em como reverter a calúnia que o cavaleiro havia encravado em suas convicções. Só podia ser um estratagema para tomar o poder absoluto. Estava impregnado com tantas falsas-verdades que acreditava ter razão em defender os interesses dos seus senhores. E quem não estava consigo, estava contra.

–– Está comigo? –– certificava-se com Sixderniers a sua lealdade.

Balançou a cabeça, presumido de sua arrogância quanto ao assunto, enquanto não fosse clareado ficaria com os dragões e

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com Rommel. Entretanto a força de ocupação dos dois não seria párea aos possíveis enfrentamentos de seus oponentes. Davidson iria recuar, esperando que o resultado do conflito pudesse ser mais bem aproveitado numa conquista particular.

Contudo não ficava claro para o capitão Sixderniers qual era o objetivo pelo qual Lenffers se unira aos exércitos de incursão. Estava contando que a ocupação das Terras Médias oportunizaria a expansão do poderio dos dragões e das vantagens àqueles que os serviam. Qual era o benefício que Lenffers buscava?

–– Meu caro capitão. Só busco o prazer de poder atormentar o meu algoz. Não passo de um espírito baixo e vil que se contenta com tão pouco. E vocês ainda me dificultam com tentativas fúteis de erradicar uns diários esquecidos até por Ele? –– apontava para o Alto. –– Querem eliminar Marc? Enquanto eu puder, evitarei que cheguem perto dos meus. Mesmo que ele esteja ao lado de nosso maior inimigo. E vocês só querem o caos antes do grande exílio.

–– Este expurgo não existe. –– o coronel ria. –– E os capelinos que aprisionamos, também não? –– Desta vez estaremos preparados e nos protegeremos com

vigor jamais presenciado. –– Não sei se é possível... O oficial japonês que ocupava a função de comunicação

estava parado diante dos três com uma mensagem pendendo de suas mãos trêmulas. Não sabia a quem entregar a autorização. Herr Rommel a tomou de súbito, assumindo o controle da operação de expulsão e ocupação de Paris. Eram sete horas e cinquenta e três minutos do dia sete de dezembro e, no bilhete havia poucas palavras: –– Nitaha Yama Nobora.

–– Tora, tora, tora. –– o coronel resumiu sua ação. E o cavalariano tomou a espada estendida sobre o tampo e

ajeitou-a na bainha de couro. Calçou as manoplas, amarrando-as com os dentes, e prendeu o elmo prateado sob o braço. Garatujou uma continência de sorriso convencido e despediu-se dos presentes. Não antes de ser interrompido pelo estridente aviso eletrônico que emanava do soldado imberbe que tentava disfarçar sua identificação mortal.

Além dos comandantes, mais alguns soldados se juntaram à comitiva com armas apontadas ao rapaz que acabava de desligar o

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seu aparelho telefônico. Ele sorria de braços estendidos enquanto o nome do Lucas desaparecia do monitor.

–– Quem é você? –– aplicava a pergunta o cavaleiro pronto para empalá-lo.

–– Um dos seus capitães, senhor. –– e repetia a mesma continência firme de quem se apresentava ao seu superior.

–– Temos um espião bem esperto! E Mateus retirou um crucifixo que apontou contra os

espíritos. Uma repentina calmaria diante da estranheza da tática fez com que o cavaleiro enchesse suas bochechas com uma gargalhada que escapou explosiva e incontida. Ele não se conteve e, num gesto imediato, tentou agarrar o crucifixo que pendia da mão estendida no espaço vazio.

Mateus com a aparência desnorteada de quem é capturado de forma insonhável, grita de dor quando mil agulhas geladas espetam seus dedos encurvados. O não-toque do fantasma era como um congelamento instantâneo que subia pelo braço provocando uma arritmia cardíaca aterrorizante. Porém o espanto maior seria expresso pelos espíritos de olhos saltados e sensações incoerentes. –– Ele ainda está vivo!

No ouvido, Sean continuava fora do ar. No mesmo instante, Marc esmurrava ofegante a porta do

automóvel, sinalizando com ombros arquejantes que o plano de emergência seria posto em prática com suposições bem definidas.

–– Por que não foge? –– Sean falava para si em voz alta. Um

ruído às suas costas levantou a suspeita de que não estava sozinho. Um par de botas nasceu ao lado.

Seus olhos subiram devagar até encontrar um rosto conhecido. O soldado já havia aparecido em outra ocasião. Também não tão agradável quanto esta. O rapaz, sujo de terra, abriu os lábios num grande arco de contentamento.

–– Não tivemos chance de conversar. –– iniciava o rapaz. –– Não era um bom momento... –– Sean se angustiava

pensando que agora também não seria. –– Sei que não é hora para, mas você...

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–– Estou encurralado, cara! –– soprava Mateus na esperança de receber uma saída celeste. O amigo pediu mais paciência. –– Paciência?! Estou nas mãos do diabo! O que pode valer a minha vida?

O coronel esbofeteou o tampo justificando as suas ações em atacar e eliminar seus problemas. O primeiro estava bem diante dele. –– Talvez os diários, quem sabe. –– respondia enquanto se aproximava do alvo com gosto.

O rapaz que parecia ter sobrevivido a um desmoronamento, se

bem que não devia ter sido salvo, já que estava morto há algumas décadas, precisava dizer algo com urgência. –– O túnel não foi terminado, mas fica muito próximo da sepultura no cordeliers.

–– Onde fica a entrada deste túnel? –– Sean se impacientava. –– Na rua do Pot de Fer existe uma passagem subterrânea

através da Escadaria Bonaparte, siga para leste até a Rede Concini. Fiz umas marcações para não se perder. –– Apesar da Rede Concini ser isolada dos demais túneis, uma abertura abaixo do Hotel de Nivernais, construído em 1607, permite a interligação dos sistemas subterrâneos mais antigos. Existem vários acessos, porém todos levam a labirintos sem saída ou mausoléus que se renovam.

–– Quais marcas? E antes que pudesse responder, uma solicitação angustiante

rompeu em seus ouvidos eletrônicos. O rapaz sumiu. Por mais que as impressões enganassem, o cavaleiro

reconheceu o rapaz com o crucifixo tomado de Marc como um amuleto para a situação. Uma relíquia de família que ele jamais se esqueceria. Embora as circunstâncias exigissem que ele tomasse novas providências.

–– Socorro, Sean! –– Corra! –– Estou preso! –– Oras, atravesse as paredes, elas são falsas. –– Assim como

suas impressões da realidade. Conseguiu sorrir antes de dar um passo para trás e se despedir dos fantasmas. Estava no exterior, seguro, ou quase.

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Todos os homens que compunham as divisões que se apressavam em se preparar para a batalha desmancharam suas posições equidistantes à caça de suas armas contra o invasor revelado pela aparição espectral e alarme de gritos.

–– Sixderniers, fique com as tropas. Tenho dívidas a quitar. Preciso compensar meu irmão. –– o cavaleiro acreditava que o irmão sofria séculos de purgatórios ocultos e que só terminariam quando concluísse seu pacto. Pacto que incluía exterminar e encarcerar o causador deste tormento. Partiu só.

Mateus estaria morto em breve, e depois seria capturado e enjaulado por aqueles monstros desfigurados. Tentaria atravessá-los?

Algo precipitado ecoou como uma bomba de brilho intenso que desmantelou alguns artefatos e lançou alguns espíritos para o chão, abrindo uma rota segura que Mateus não desperdiçou. Sean observava o rapaz correr como jamais pensou que conseguisse. Do meio da claridade, um legionário de manto escarlate acenou para que ele também corresse.

Mateus escalou as arquibancadas da arena, atropelando a vegetação densa que fustigava seu corpo e atrasava seu avanço. Mas mesmo assim conseguiu divisar Sean se erguendo em tentativa de acompanhá-lo na escapada. Não foi rápido o bastante, obrigando-o a puxar o garoto pela jaqueta zipada.

Ladearam as passagens ocupadas, arremessando-se contra a patrulha aturdida. Escapando dos arcabuzeiros que só conseguiram deixá-los momentaneamente surdos com os tiros grosseiros de suas armas.

Estavam perdendo terreno e resolveram escapulir do bosque jogando-se contra a alameda áspera que era mantida com barreiras fortemente defendidas. Levantaram-se arranhados e com o elemento-surpresa rumaram por uma pequena fenda na barreira que tentava se reagrupar depois de terem sido surpreendidos com o salto imprevisto no meio do agrupamento.

Uma comprovação breve de Sean advertia que os soldados se aproximavam vorazes, afunilando-se contra as muretas que continham a alameda com ímpeto de engoli-los numa onda de selvageria. Adiante, um portão de ferro era a esperança que diluía.

–– Contra o portão, vamos!

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Ele escancarou violentamente, rompendo seu cadeado enferrujado. Os dois caíram e rolaram para o meio da via. Estavam atordoados com a corrida e o pouco oxigênio que seus pulmões conseguiam absorver numa tentativa infatigável por recuperar o fôlego.

Não poderiam seguir para o veículo. Fileiras de arqueiros ingleses retesavam seus arcos em

movimento síncrono. Os cavaleiros montados se preparavam para descer o estandarte em sinal de ataque. A rua Navarre estava inacessível, então precisavam chegar até a rua Monge.

As flechas da vaga acertaram o asfalto, dilacerando-se. Os automóveis haviam parado num congestionamento sem

fim, buzinas definiam o caos. Não havia tempo para pensar. Sean se esquivou entre dois para-choques antes que se fechassem em suas pernas. Mateus escorregou pelo capô, ficando preso pelos apetrechos do seu casaco. Uma carroça ainda se posicionava a poucos metros. Militares da primeira guerra mundial removiam a lona que cobria uma metralhadora de canos giratórios.

Das opções que os fugitivos poderiam escolher, escolheram a pior. Rasgaram a armadilha e voaram para as longas escadarias que levava à rua Rollin, desabrigados dos primeiros tiros dados por um combatente que segurava um feixe de balas e girava uma manivela com sofreguidão. Os arqueiros de Hastings se juntavam à comitiva cruel.

No cul-de-sac afunilavam carros e edifícios numa expectativa interminável de seus sofrimentos. A plenos pulmões puseram-se em marcha pelo corredor apertado e indefensável. Homens armados chocavam-se contra as escadas em urros ameaçadores, tais como intensa maré contra os penedos da Normadia.

Algumas vans de entrega dificultavam a travessia, diminuindo a vantagem. O fragor da turba já denotava as formações de tiro. Atiradores da elite dos mosqueteiros se ajoelhavam preparando a mira de seus fuzis de cano longo. A salva de tiros atingiu vários carros, trincando vidros e amassando o metal. Vidraças de certas lojas racharam com os estilhaços invisíveis.

Não paravam por nada. Mateus e Sean só repensaram a estratégia de correr desesperados quando dois tanques surgiram ao final do beco, atropelando a passagem adiante. Com um giro lento

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posicionou a torre inteiramente para eles. O canhão estava fincado à aresta da construção que trincou com o disparo aguardado.

A argamassa e os tijolos desprendidos com o impacto despencaram sobre veículos estacionados. Carros que estavam na zona do tiro chocalharam, disparando alarmes sonoros, estourando vidros e piscando luzes. As pessoas se refugiavam intrigadas com o tremor inexplicável.

O segundo veículo blindado arremeteu suas lagartas pela viela, provocando o tombamento dos automóveis ainda intactos. A poeira levantada com o rompimento da estrutura se assentava divisando o reposicionamento dos canhões. O exército recuava em segurança, dando margem para as intervenções dos Panzers. Os dois estavam encurralados.

–– E agora? –– bufava Mateus. Sean olhou para os lados e decisivamente disse: –– Eles não

existem! Vamos transpor as blindagens como se fosse fumaça! –– mas Mateus não concordava. Contaram até três e aceleraram para os tanques em um contra-ataque kamikaze.

–– Eles estão vindo em nossa direção! –– gritava o operador que se esforçava em guinar as alavancas.

–– Recuem, depressa. –– um sinal de emergência coloria o interior com tonalidades alaranjadas. Todos corriam apressados, tentando evitar a colisão. Um vozerio desencontrado fazia com que os soldados se demorassem em retroceder suas máquinas. A ofensiva dos vivos provocou o disparo incontrolável de armas em punhos, mas nenhum dos tiros conseguiu evitar que fossem transpassados.

Mateus caiu ferido na alma. Este avanço ocasionou dores atrozes em seus músculos retesados. Sean estava menos abalado com o efeito de cruzar uma substância incorpórea com aglomerações emocionais imensuráveis, podiam não ser sólidos, mas mesmo a luz coagulada tinha sua substancialidade. Do mesmo modo que o desespero dos homens no bojo do monstro mecânico expressava dúvidas.

Todos estavam em estado de choque. O suficiente para que Sean conseguisse erguer o amigo de

seus espasmos de dor, taquicardia de sangue fervente e pressão craniana que faria os miolos, de qualquer um, saírem pelas orelhas. Os olhos vermelhos e lacrimejantes pediam armistício.

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Na contramão da Cardinal Lemoine alcançaram a praça de la Contrescarpe. Aves desavisadas deflagraram um voo grupal. Não era um beco sem saída, no entanto uma bifurcação com várias saídas. Qual eles deveriam tomar?

Um senhor acocorado à base do relógio de bronze sinalizava que se aproximassem. O estranho monge não falava nada e nem parecia que o tentaria, só apontava para uma plaqueta de madeira apodrecida que estava fincada no princípio da rua Descartes. Eles deveriam retornar?

–– Não. Talvez vocês descubram as antigas muralhas. À placa estava escrito: –– Porta Bordelle. –– subiram a rua

até o entroncamento. Sean estava tonto, ouvia nitidamente água correndo sob seus pés. De novo, não!

–– No way, man! Flutuações temporais estavam em caos. Várias sensações

pareciam atingi-los. Eventualmente, partes de um muro surgiam em vários estados de conservação e execução. Um fosso brigava com o asfalto consistente. Mateus percebeu o que o monge queria.

As hordas encontraram seu alvo, retomando a perseguição sem fim. Várias divisões belicosas se fixavam nas possíveis extremidades, e algumas avançavam para o norte para promover um cerco efetivo.

A imagem do canal parecia flutuar em seus olhos. Eram recordações, eram reminiscências do passado. Ao longe, a rua Cardinal Lemoine se transmutava na rua das Fossas Saint-Victor, que margeava o canal que sustentava as muralhas de Philippe Auguste. Conforme seu medo aumentava mais nítida se tornava a transformação. Mas não passava de ideias do passado.

–– Reforce estas lembranças, você consegue! –– pedia uma

voz invisível fixa em sua mente. Criar sanduíches e dinheiro era simples, achar vasos e objetos desaparecidos, questão de tato, mas...idealizar um muro alto e sólido!

Todo o esforço só seria conseguido com dificuldade. No primeiro tentame as margens do fosso escavado tornaram-se suficientemente reais, causando a queda de alguns soldados desavisados e confundidos. Percebendo a intervenção impensada, soldados próximos resolveram mergulhar rumo aos seus inimigos antes que fizessem o que tramavam. Contudo, a maioria dos

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combatentes se recusou a atacar, pelo menos até que terminassem os inexplicáveis eventos.

Sean suava apreensivo e acabava se desconcentrando quando antecipava a sua captura pelos guerreiros que estavam a poucos metros de alcançá-lo. –– Força, concentre-se, Sean! –– gritava Mateus tentando oferecer suporte a cada tentativa, o que parecia dar certo. Entretanto, nada parecia desviar seus pensamentos da inevitável captura. Mateus experimentou algo, como um ligeiro sopapo no rosto de Sean que estava ficando em fúrias.

Em instantes, com o subsídio de boa porção de temor, as proteções de pedra passaram a existir um ponto atrás dos dois, que perceberam a gafe e partiram apressados para o portão Bordelle. Transpuseram o canal através da simples ponte que findava ladeada por torreões de vigília.

Admirável arcabouço estava de portas escancaradas para desespero dos garotos. Sem fôlego não sabiam se mantinham o ritmo ou tentavam trancar os portões de madeiro graúdo e pesado. Suas mãos não faziam contato, com dedos que transpunham o maciço.

Repetidas levas de tiros arrancaram lascas da madeira e faíscas brilhantes das balas contra a impenetrável divisória de pedra. Um carretel de cordas rústicas que agarrava uma cadeia de gradeados permitiria que eles despencassem por fendas internas dentro da passagem da torre, impedindo o ingresso dos guerreiros. Todavia, o mecanismo só poderia ser destravado por mãos espirituais. Por mais que Sean tentasse, a lingueta de travamento não se mexia.

Estavam sem escudo. Mais uma vez e já sentia um formigamento quando seus

dedos delicadamente se fundiam ao engenho. Lanças zuniam e berros provocavam ecos pela abertura.

Só mais uma vez. Um estrondo seguido de cordas estiradas e as grades ferrosas

despencaram, evitando que os enfurecidos soldados os pegassem. Contudo ainda poderiam atingi-los pelos vãos inoportunos. O mecanismo estava interligado com o fechamento automático dos portões que, antes de selar hermeticamente, permitiu o incurso de uma única flecha certeira. Dentro da proteção o silêncio imperou. O vento abrasivo friccionava as bandeiras.

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Sean estava absorto e sem fôlego. Engolindo ar com ferocidade. –– Acabou, Matt! –– E nada de ouvir resposta. Mateus havia sido atingido pela flecha que o impedia de respirar. Não havia sangue e estava incrustada no peito, provocando dores espasmódicas. Pessoas que não viam a majestosa muralha erguida pelos desejos de um garoto se acercaram, receosas.

Como poderia ter acontecido? Mateus arriscava, em vão, extrair a seta. Sean se ajoelhou e tentou segurá-la, desta vez conseguiu. Com um puxão decisivo viu quando a haste rompeu a resistência e esfumaçou diante de si. No entanto o amigo parecia machucado.

Enquanto isso a força debelada urrava elevando seus desejos de vingança aos ensaios de escalar os altos muros parisienses. Sibilos do disparo de canhões terminaram numa chuva de fragmentos do que eram ameias, agora dilaceradas. Muita fumaça e fogo eram descortinados no horizonte dos passadiços da grande muralha que aguentavam a contenda com bravura.

Precisavam sair dali. Um carro parou. Era Marc.

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escalem o monte nitaha.

–– Eles agora querem você! O que quer que esteja fazendo, pare por um tempo. –– Sean advertia Marc depois de descrever tudo o que escutara. E ele não se importava. E que fábula é essa de que tem um benfeitor em meio aos deuses subterrâneos desta legião tenebrosa. Só de pensar a respeito, sentia arrepios.

Sem dúvida que era um antepassado, não gostava de pensar que era privilegiado por ser um Delènfer, ou do Inferno –– de l´Enfer –– como sugere a insígnia. Havia um complô secular, um aviador na Noruega confirmava a veracidade. Agora teria que lidar com um fantasma que tinha que protegê-lo e ao mesmo tempo cumprir os desígnios de eliminá-lo. Não devia ser uma decisão simples, mas, apesar de tudo, ele ainda intercedia por Marc Bernis. O cavaleiro priorizava a linhagem.

–– Pelo que entendi, eles só passaram a considerá-lo uma pedra no sapato quando se meteu nos negócios deles! –– Mateus dizia, recuperando-se do tsunami de flechas e tiros. –– O que eles querem é criar pânico.

–– Mas eu não estou impedindo que eles detonem com tudo. –– Mas alguém está. E... –– Como estou unido a ele. –– Mas quem? –– e ele correu os olhos pelos presentes. Ele precisava entender quem teria tal domínio, quem sabe os

manuscritos resolvessem a questão. Como concluir que ele seria perigoso se não fosse pelo fato de provocar a destruição da cadeia

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de comando destes falsos-deuses. Talvez os documentos mikhae descrevessem quem seria capaz de provocar tal episódio apocalíptico, assim como a cólera dos dragões ou da legião já sem autoridade que cingia a cidade. Será que eles romperiam os limites fictícios e causariam tumultos inexauríveis?

–– Quando eles atacarão? –– pinçava Marc. –– Não falavam sobre... Mas havia uma mensagem codificada

que não... –– Mateus forçava a memória para repeti-la a contento. –– Nitaha Yama Nobora? –– perguntava Sean no aguardo de

uma confirmação de olhares atravessados. Bernis sabia o que significava aquela citação em japonês, não

conhecia o idioma, contudo nunca se esqueceria de uma frase de cunho histórico. –– Tora, tora, tora. Ele respondeu assim?!

Concordaram com veemência. –– Pois a invasão já começou! –– e os exércitos avançavam

por todas as frentes, assim como a traiçoeira armada japonesa do pacífico fez com Pearl Harbor. Escalem o monte Nitaha era a ordem de ofensiva. E o tigre avançou.

Como um enxame de gafanhotos e escorpiões com rostos humanos, a grande hora se aproximava. Todavia não era hora para Marc ser herói, estava se preparando para escapar. Reunia seus documentos com pressa quando desconfiou que era vigiado por figuras intrigadas às suas costas. É claro que ele não poderia fazer nada. Então por que estavam encarando a atitude com desconfiança?

–– Não sou eu quem faço as regras. Eles deixaram bem claro, que se eu cruzar o caminho deles, serei morto?! –– achava estranho saber que a morte já não o assustava como antes, o medo era sobreviver à morte e ter que lidar com sequestradores de almas. Isso seria pior. –– Temos que estudar contra quem estamos lutando. Não estou certo?

Concordaram com receios. Como entender o caos, a desordem e o pânico! O Arcanjo havia dito, certa vez, que as situações violentas ficavam gravadas na recordação espiritual das criaturas envolvidas de forma tão marcante que arduamente seriam esquecidas. Guarini ainda acrescentaria que o tempo provocaria o aniquilamento da sanidade mental restante, criando seres descontrolados que teriam, como opção, concluir sua missão: reparação sobre todos os malefícios, sejam eles justos ou não.

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Em épocas recuadas, exílios forçados foram executados. Para todos, seres descontentes se revoltaram nos momentos finais. Duríssimas expiações tinham propósitos bem calculados e se leis achavam injustas, precisavam ver o que aconteceria sem elas. Estariam sem alternativas? No entanto, Sean raciocinava uma última escolha para o impasse. –– Tiago! Quer arrombar túmulos?

–– Só se for agora! –– mas não seria, como a conversa cochichada entre ouvidos interesseiros sugeria.

–– O dia transcorreu e quando o ocaso chegou trouxe uma onda

arrebatadora que preencheria o vácuo energético causado pela aglutinação de tantas criaturas renitentes no mal. Raios e trovões se digladiavam nos céus escurecidos pelos cúmulos noturnos. As explosões seguidas de claridade absorvente não deixavam a cidade desaparecer sob a privacidade da escuridão.

Uma noite de rufar de tambores que antecediam a batalha. Os reis esperavam o término dos primeiros embates realizados

no céu, para despejar seu furor em terra. Milhares de espíritos ensandecidos prosseguiam pelas avenidas de Paris em ritmo parco e defensivo. Todos os recintos tomados eram seguramente protegidos pelos tais absorvedores militares. As conquistas não eram comemoradas, estavam aficionados pela fantasia doentia de destruição. Destruição moral e ética dos concidadãos vivos.

Aonde fossem, não havia oposição nenhuma. Não havia rechaço. Não havia anjos. Aguaceiro torrencial tentava varrer os miasmas que se

condensavam com mais força do que ele era capaz de eliminar. A natureza estava descompensada. O transbordamento das mentalizações contraproducentes atraia intenções de extrapolar a lógica. Cidadãos se arriscavam em romper os limites do homem. Manifestações se preparavam para gerar tumultos. O medo acuado em selvageria explosiva.

Vítimas se uniam em julgamentos parciais e violentos. Roubos e atrocidades eram planejados sem temores. Criaturas fracas caiam. ––

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Amanheceriam as suas intenções de invadir túneis fantasmagóricos armados com lanternas e barras energéticas quando perceberam que a torrente que despencava em cascatas não daria trégua. Assim, quando olhou para o seu relógio de pulso, pela enésima vez, as gotas de chuva impediam que ele precisasse a hora com a exatidão.

Passar diante do edifício enclausurado se tornaria uma alternativa planejada com antecedência. Queria se certificar de que o senhor Buchhand havia sumido, sem deixar pistas. Tábuas e lonas encerravam a pequena e providencial livraria que havia sido fundada há quase sessenta anos. A rua do Pot de Fer parecia tão desinteressante quanto um balde de água fria que esfriava os seus intentos de se deparar com o senhor Fabien para uns esclarecimentos regados a um frugal café da manhã. Sua fome, de frio e roupas molhadas, agradeceria, mas não haveria convites daquelas portas bem chaveadas.

Seguiu adiante só parando para atravessar o Jardim de Luxemburgo com mais olhos do que haveria para àquelas horas matutinas e densamente encharcantes. Mais algumas centenas de metros e estaria na rua de Condé com o carrefour das ruas de l´Odéon e Monsieur Le Prince. Sean se encolhia numa marquise para se proteger dos respingos que escapavam por cima da calha sobrecarregada e entupida. Sua capa transparente parecia não dar conta do volume de água e que já cobria seus pés.

Era até difícil de ver se alguém se achegava sorrateiro. Por sorte, Tiago seria um pouco menor, porém, quem se atreveria a sair em meio àquela tempestade infatigável.

Muito cedo e não havia fantasmas no seu calcanhar. Os poucos, que divisou pelo caminho, estavam vigiando os

passos de Marc. Elene e Mateus cuidavam de escamotear os motivos pelo qual a doutora Mel deveria abandonar seus afazeres profissionais, que naqueles dias, já excediam o admissível, para fugir de alguns espíritos nada brincalhões. Não seria fácil.

Somente Tiago conseguiria escapulir sem chamar atenção. Para passar o tempo, Sean vasculhava os objetos em sua

mochila, certificando-se de que havia ferramentas e lanternas com pilhas mais que suficientes. Um esboço dos subterrâneos, que imprimiu da internet, seria mais que perfeito até que entrassem na zona não-mapeada. Que sinal ele encontraria para guiar-se no

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labirinto de túneis mal escavados? A operação de vasculhar o deixou sem proteção e só pressentiu companhia quando recuou a cabeça para fora da bagagem encharcada.

–– Não devia estar aqui! –– Não sabia se se referia a si ou a. –– Alguém tem que fazer algo. –– Sean já não esperava

consentimento. Guarini era a declaração aborrecida de quem estava de mãos

atadas. Além do mais, odiava chuva que não molhava e de desistir de uma boa briga. Mas a resolução era tão clara e límpida que um raio cegou-o em advertência.

–– O que está acontecendo? –– o garoto precisava de uma explicação. Manuscritos já não seriam suficientes.

–– São várias coisas diferentes, não há como uni-las. Nem sei ao certo todos os pormenores. –– o indiozinho iria concluir alguns dos pensamentos vigentes. –– A aglomeração da legião obedece a leis naturais; tudo que oprime, condensa e provoca a retomada do equilíbrio. Todos os envolvidos têm sua cota de transformação na ação. Causa e efeito, curumim.

–– E onde se encaixam os diários? –– No pretexto pelo qual Marc precisa de Miguel. Os

manuscritos foram o meio. –– Guarani percebeu que Sean não o compreendia. –– Ele acha que está caçando um códice, mas na verdade ele está muito perto de achar Miguel. Por isso os exércitos estão com medo de Marc. Bem, foi o que eu soube por aí.

–– Me fale sobre Miguel. Guarini não o conhecia de apertar as mãos, porém a sua

notoriedade lhe precedia desde tempos imemoriais, quase eternos. –– Que enfrentou os anjos caídos num combate que rendeu muitas lendas, a maioria absurdas. O arcanjo Miguel esteve presente em muitas situações em que se precisava de uma interferência mais direta. –– para não dizer, sair no braço.

–– E anjos fazem isso? –– Tecnicamente, não. Contudo existe uma história pouco

revelada sobre ele. Desde a crucificação não sabemos do seu paradeiro.

–– E anjos somem? –– Tecnicamente, não. –– o índio estendia a mão para frente,

tentando se distrair com uma goteira impalpável. –– Mas vocês

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conhecem toda a narrativa muito bem. –– referindo-se a Sean e sua comitiva de desbravadores dos mikhae.

Sean parecia buscar a história que mais se encaixava ao desaparecimento de anjos que não precisassem de um sistema de posicionamento global. Sem efeito. Conhecia muitas, porém poucas eram bíblicas o suficiente para passar pelo crivo.

O índio estava dando espaço para que ele percebesse com quem estava lidando. Arcanjos eram mais benévolos e disponíveis do que os santos de carne e osso o foram em algum período da história dos homens. Até mesmo São Francisco teve seus momentos de deslize diante dos lazarentos.

E o garoto não pretendia esgotar o tema, no entanto se perdia com a passagem de alguns estúpidos caminhantes que pareciam desconfiados de um menino que conversava a sós. De súbito recordou a historieta de São Lucas. –– Um dos anjos, a quem é como Deus, falou: continuarei o caminho. E Jesus lhe respondeu: guardará a palavra até que o Espírito da Verdade chegue; também esquecerá o passado até que esteja preparado. E o anjo perdia suas asas.

–– Exatamente onde eu queria chegar! São Miguel trocou suas asas pela vida mortal. –– ouviu um “estúpido” proveniente de Sean. –– E como mortalidade é sinônimo de re-encarnação, perdemos o seu rastro há muito tempo. –– para Sean, Guarini estava tagarelando demais. Quem poderia supor que um arcanjo desceria de tal categoria celestial para...

–– Para que ele faria isso? –– Naxamuñaca acha que os manuscritos devem abrir os

olhos da humanidade para a existência de vidas passadas e coisas assim. Existe um preparativo para a revelação. Eu já penso que Miguel não passa de um oportunista que tenta fazer o que cristo executou com êxito. É claro que a escala é bem menor.

–– Passar a mensagem do amor ao próximo? Heim! –– Não. Também, é claro. Mas a prioridade do Cristo era

salvar os decaídos, que por sua vez inclui quase toda a humanidade. Outros mensageiros já haviam plantado sementes de amor incondicional. Buda, por exemplo. Conhece-o? Seja qual for a teoria adequada, criará o colapso das crenças.

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Balançava a cabeça concorde. –– No way! Se o Príncipe das Trevas ou Diabo ou Satã ou Coisa-Ruim ou Capeta ou Demônio, não existe, por que tanto drama?

–– O indivíduo, não! A ideia, sim. Sempre haverá quem preencha a posição de senhor dos dragões. Assim como Satanás o fez por milênios até sair de cena como Lúcifer.

–– Não tem ninguém no cargo? Como gostava de frisar Guarini: –– Tecnicamente, não. Por

outro lado, também não sabemos qual é o objetivo dos espíritos maldosos. Sem um senhor, não há regras definidas. E nem perca o seu tempo achando que eles só são maus por causa de seus senhores...

–– Bem que desconfiava que cada um vai para onde quer! –– De acordo com o seu grilo falante. Suponho que tais

criaturas estejam se prendendo às profecias do fim dos tempos. –– Quais? –– Apocalipse. Profecias de Daniel. Os apócrifos. Os

gnósticos. Profecias dos calendários Maia e Egípcio. De Nostradamus a Edgar Cayce. Todos, e muitos outros, implicam na escalada do mal a um conflito final. –– o indiozinho não parecia preocupado com a realização destes presságios. –– Eles simplesmente não conseguem ver que isto terminará em um novo mundo, uma nova era.

Um garotinho abelhudo observava, através da vitrine da panificadora de seus pais, Sean dialogando com o ar. Com gestos de indisciplinada bisbilhotice puxava as saias de sua mãe para baixo. Mas ela não estava preocupada com garotos na chuva ou com o índio que o filho apontava com insistência. Luzes externas eram acesas destacando as promoções de pães e confeitos.

Os dois estavam silenciosos, admirando uma mãe em afagos e abraços calorosos. Estavam absorvidos pela aspiração de retornarem às suas famílias, assim como os suspiros que os entregavam.

–– Você parece ser o único que se importa. –– Não sou seu guardião, mas não acho justo te entregar aos

leões. Só não vou com vocês porque não suporto a ideia de ficar embaixo da terra. –– Guarini estremeceu com o pensamento fugaz. –– Enfim, todos temos defeitos para lapidar.

–– Não sei qual é o meu papel nisto tudo!

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–– Ninguém sabe. Quero dizer, sobre o acaso. –– Mas se você fosse teorizar...? –– feliz com a pergunta que

simplificava sua sagacidade em conseguir o que queria. –– Está muito além da minha capacidade de índio pouco

esclarecido. –– e piscou. –– Ainda nem sei como conseguiu erguer aquele torreão de pedras?! Por mais que as coisas pareçam acontecer aleatoriamente e em estado constante de emergência, não é assim. Tudo está bem planejado, apesar do que esteja vendo com seus próprios olhos. Tenha mais fé!

Suspirou temendo a blasfêmia.–– Sou especial?! –– Na... Não. Só que tem alguém te auxiliando. Só isso! –– no

entanto não era o que ele verdadeiramente refletia a respeito do garoto. Nem Tiago, que chegava a tempo de responder a mesma exclamação interrogativa. –– Nem que a vaca tussa e chova canivetes! –– Embora ele olhasse para cima temendo que mordesse a língua quando os canivetes suíços despencassem das janelas da relojoaria que servia de abrigo ao dilúvio. Explicar que a pergunta não era para ele seria uma perda de vocabulário e energia, por isso Sean só virou os olhos. Abismado com falta de percepção repetitiva de alguém que já devia ter se acostumado com os diálogos sobrenaturais.

Antes que Guarini desaparecesse, Sean apresentou um resumo de porquê eles ingressariam nos subterrâneos da cidade. O que o escavador alemão revelou teria que servir para descobrir o túmulo de Allan.

O objetivo era matar dois coelhos com uma só cajadada. Recuperar o tradutor que Marc comentava com aflição e tentar delinear o paradeiro de Allan, o vivo. Talvez tivesse alguma pista neste sentido, não obstante, achava bem improvável. Por certo, até mesmo o mensageiro de Jeanne já havia desistido do paradeiro. Contudo Sean pensava o que o índio queria dizer com revelação?

Tiago se preparava para abrir o bueiro com a ajuda de uma barra que tomou emprestada oportunadamente de um canto mal iluminado da alameda vicinal. Enquanto fazia força, Guarini ofereceu mais uma informação. –– Cuidado lá embaixo. Se precisar de socorro, chame por Labelius. Ele provavelmente não vai te ajudar, mas você pode tentar convencê-lo. Ele é um elemental e, como todos, eles são ingênuos e desconfiados...

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–– Hum! –– e Sean pensava na tal salamandra-de-fogo que costuma acompanhar o índio.

–– Os elementais de toda a natureza não são completamente espirituais. Mbaê só está com um pouco de medo da água. Mas fique tranquilo, estamos tramando um jeito de te proteger quando as coisas começarem a fugir do controle. –– piscou cúmplice.

–– E já não fugiu? O índio não esperou que eles penetrassem no fosso e

regressou para seus colaboradores. Naxamuñaca estava bastante satisfeito com o andamento dos planos repassados. Que não eram emergenciais ou improvisados. Tudo corria como esperado.

–– Terminamos o que havíamos prometido para ele. –– dizia Marie que se acercava dos dois com outras preocupações futuras. As grandes questões não passavam de miudezas para os acontecimentos sublimes que aguardavam. Séculos de incubação, só teriam sentido se o que acontecesse em poucas horas, desse muito certo. Contudo, com tantas ramificações, até mesmo o erro seria digno aos olhos dos anjos.

–– Conseguimos separar os principais senhores da legião das trevas, mas a que custo? –– complementava Naxamuñaca.

Guarini parecia ver com outros olhos. –– Ainda não perceberam que eles pediram por isto? –– e temia pelo fim. Naxamuñaca se abraçou ao indiozinho, querendo consolá-lo sem palavras. –– Quem sabe agora eu possa fazer algo.

Os três estavam pensando a mesma coisa, sem impedimentos estavam livres para agir. Mais um participante se acercava da comissão, era um monge bem conhecido entre eles. Atmatattva não aparecia havia meses, apesar de suas supostas intromissões nas ações de seus pupilos. Guarini era o único que não havia se surpreendido com a aparição não anunciada. Por hábito, o velho sorriu enquanto ajeitava as insistentes mantas costumeiramente presas aos pés. –– Podemos, sim. –– e piscou conivente ao índio que o substituía. E em ordens pensadas, partiram. Cada um tomando o seu rumo.

Os garotos desceram a espiral de metal, batendo os pés na

água torrente que corria para um ponto mais abaixo, nas entranhas da terra e pedras talhadas pela mão de coveiros, mineiros,

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religiosos em práticas divergentes, revoltosos de ideais contrários, eletricistas, bombeiros, e até para trens e carros. Paris possuía tantos buracos escorados que se cedessem a cidade toda afundaria inteira, como Atlântida. Sean jogou uma lanterna para que Tiago sondasse o fosso que se perdia na escuridão dos dois sentidos. Uma minhoca gigante poderia surgir de qualquer direção, precisava estar atento.

Teriam que seguir para leste. O silêncio só durou o tempo de se acostumarem com o

nervosismo que os escorregões ofereciam. Quando já dominavam o ambiente puderam se descontrair.

–– Quando vinha para cá, esbarrei com Andreu. Estava estranho. –– falava Tiago desviando de uns cabos soltos.

–– Estranho como? –– Dizia que uma tia – paranormal – pediu para que sua

família abandonasse a cidade... Não sei se ele acreditou, mas estavam se mudando com muita pressa. Era uma correria! –– inconformado.

–– E ele acredita nestas coisas? –– Sean estava sendo sarcástico com Tiago, que sempre agia com suspeitas acerca do que o amigo dizia a respeito dos fantasmas.

Tiago se aborreceu. –– Pior seria se não te questionasse! Depois eu acho que foi por causa do alerta de inundação que está previsto para os próximos dias?!

–– Ainda tem mais essa! O retilíneo percurso de curvas e guinadas não condiziam com

as representações do mapa, porém as sinalizações confirmavam que seguir por aquelas direções só representaria chegar ao sistema Concini. Em poucos minutos se esgueiravam por uma fenda abruptamente aberta e, que unia os sistemas de túneis supostamente autônomos. O aspecto acabado, de pedras alisadas e medidas mantidas, davam lugar a uma escavação grosseira com variações de altura e largura. Muitos pedregulhos soltos faziam com que os garotos derrapassem, ferindo as mãos contra as paredes irregulares. Neste ambiente a água da chuva descia com ferocidade para cavernas com lagos transitórios. Nestas antecâmaras as águas já atingiam os seus joelhos.

Fazia muito frio.

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Aqui o mapa se apagava, com insinuações tracejadas de que haveria mais vãos não-descobertos pela catalogação moderna. Os dois se olharam perdidos.

Apontaram seus feixes de luz para todas as arestas imperscrustadas que conseguiam alcançar com nitidez. Algumas pichações e símbolos eram percebidos, mas nada além do habitual. O que poderia ser uma pista não passava de uma tentativa germânica de catalogar os subterrâneos durante a ocupação nazista da segunda grande guerra. Vários emblemas advertiam que eles conseguiram chegar até aquele nível, como demonstra o número de identificação pintado por moldes vazados.

–– Viu algo diferente? –– perguntava Tiago. –– Além de estarmos brincando de goonies?! –– Aquela suástica não é igual às outras. –– e clareava o

emblema que estava invertido, com seu giro para a esquerda. –– Se me recordo bem, acho que é usada em templos orientais, como os budistas. –– com um sorriso maroto. –– Trabalho de escola!

Tentaram por aquele trajeto e acabaram encontrando outra cruz gamada com as mesmas características. Sob o desenho desbotado havia inscrições ranhuradas com a ponta de uma faca. Tiago traduziu o que consideraria uma blasfêmia às tentativas de caçadores de tesouro como eles planejavam parecer: sigam estes sinais. Por suposto, ele não confiava na inteligência apurada dos posteriores exploradores de túmulos. E quem saberia que há uma sepultura no fim do túnel? Os outros estavam mais preocupados com a luz no fim.

A terra sacudiu e estremeceu quando o metrô atravessou-lhes a passagem, por cima ou abaixo deles. Pequenos pedriscos rolaram, recordando-os da fragilidade da escavação. Alguns metros adiante o túnel era bruscamente invadido por colunas de pedras seculares que deviam sustentar catedrais espectrais. Catacumbas improvisadas apresentavam nichos ocos e teias inconvenientes. Muitas tubulações inadvertidamente cortavam a passagem.

–– Devíamos ter avisado alguém! –– Só se quiséssemos ser impedidos. –– Sean estava

estranhando a atitude do amigo. –– Está desistindo?! –– o que não era bem uma pergunta.

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Tiago só não queria fazer nada sem planejamento. Sem Mateus, Sean não poderia contar com mais ninguém para sondar o que tramavam os fantasmas. Se ele falhasse, quem esperaria que Mateus percorresse os mesmos passos? E sem Sean, Tiago jamais sairia deste labirinto. –– Não. Mas você está distante. Antes se preocupava com que os outros pensavam de você. Agora anda mais convencido do que nunca.

Convencido? E Sean já se aborrecia de testa franzida e boca trancada. –– No way! –– e parava para encará-lo com zanga.

–– Então me diga. O que está tentando fazer? –– Acabar com tudo, de uma vez por todas. –– Sozinho? –– Não. Por isso eu te trouxe junto. –– desta vez ele fez

questão de ser convencido. Até demais. –– O que seria de mim sem os seus conselhos? Heim?

O amigou bufou, indignado com a inconveniência das palavras. Embora tenha se dado conta de que Sean estava passando por situação altamente estressante. O que não o impedia de ser mais amigável, ou pelo menos mais humilde com os pobres mortais. –– Não quero te contradizer, mas está com pressa demais para impedir o fim do mundo! É evidente que não conseguiremos evitá-lo. –– olhava para si demonstrando a pouca capacidade de um garoto pré-adolescente de poucos músculos e nenhuma vantagem extrassensorial. –– Fomos chamados para a festa, embora não sejamos os anfitriões.

–– Sim, somos os palhaços que fazem bichos de balões. –– Não. É só egoísmo, orgulho besta. Ficou realmente perdido. –– Mas como! Tudo o que eu faço é

para evitar o constrangimento a todos que eu amo. Como eu posso ser egoísta se penso nos outros antes de mim mesmo?

–– É onde você se ilude. Quando pensa estar fazendo o mais sensato fechando-se em si, impedindo que os outros te protejam, é quando está sendo individualista. –– se fosse qualquer outro, Sean já estaria sobre o pescoço. –– Você é meu amigo, mas para não se expor acaba sendo egocêntrico, teme que seu mundo quebre. Não suporta que te contradigam e enquanto puder controlar as decisões...

–– Eu não sou nada, ninguém... –– Sean se defendia confuso com as insinuações diretas de Tiago.

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–– É disso que estou falando! Sim, neste mundo controlado que você criou você é um ninguém manipulador. O seu egoísmo está naquilo que conhece, sem surpresas. Basta ter que enfrentar os seus fantasmas, não está com medo que isso aconteça?

E Sean sentiu seu estômago pesando como se engolisse toda a terra acima de suas cabeças sem ajuda de um copo d’água. –– É por isso que estou assim. Se pudesse, fugia de tudo. Virava as costas para todos, sem pestanejar. Talvez no princípio eu até me sentisse melhor, mas não acabaria com a as noites mal dormidas de um compromisso que martela minha cabeça...

–– Que compromisso?! –– Não sei. Se soubesse já teria tirado da cabeça esta ideia

estapafúrdia de que precisam tanto de mim. –– e dizia isto com forte sentimento de perda, de pânico, de prostração. Um dejá vu que ecoava do passado, um temor de que tudo se repetisse. No entanto o quê?

–– Só você não quer acreditar, mas todos somos assim! Mas você pode ficar sossegado. Eu estou aqui para o que der e vier! –– buscava clarear o pensamento do amigo enquanto ajustava a lanterna para um facho mais amplo.

Talvez fosse tudo má impressão de um garoto tímido que começava a se sentir especial. Tiago achava que devia demolir o pedestal se quisesse descobrir o que estava acontecendo. Por hora podia dar o troco, se o quisesse. –– E o que me diz destes fantasmas logo atrás de você? –– buscando outras alternativas para uma desforra entre amigos.

Sean virou-se imediatamente e com o susto tropeçou e caiu levantando ondas concêntricas na água acumulada. Para onde quer que ele olhasse não havia nada. Tinha entendido o recado e sorriu, no entanto reverteria o jogo.

–– Como você sabia deles! Tiago se engasgou antes de inventar a sua tão convencida

resposta: –– Oras. Estamos em um cemitério. É obvio que haja espíritos, não é?! –– Se assustando diante da possibilidade de estar certo. Agarrou-se aos ombros de Sean com aquele olhar melindrado de quem estaria encurralado, suava sem medo. Porém Sean caiu na gargalhada diante da dúvida. –– Não tem nada? –– Tiago certificava-se diante da sua brincadeira supostamente falsa.

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–– Nem uma alma. –– mas ele sabia que Tiago poderia ter acertado no julgamento: poderia estar coalhado de fantasmas e poderia ser um convencido, sim. Contudo soube como eram suas assustadoras revelações de coisas que não se viam. Da próxima vez, teria mais tato.

––... Tenho sido seu amigo, e sempre o serei. –– frisava Tiago com convicção inabalável de quem se engasgava ao tentar dizer: sempre fui, tenho sido e serei seu amigo.

–– Esse é o meu medo! –– pressentia que a amizade lhe custaria algo. Por isso não queria perdê-lo de vista. De novo. Por sua vez sentia a tensão aumentar instintivamente. Talvez devesse desistir.

O bom amigo não permitiu que ele tomasse esta decisão, empurrando-o para frente. Para Tiago era inimaginável o que dois garotos poderiam fazer contra um exército de semivivos, sendo um até privado de visão. Sean agradeceu e ficaram rindo do acontecimento por todo o trajeto restante.

E caminharam por horas antes de se depararem com um beco sem fim, ou com fim, seja como for.

–– Vamos finalizar o túnel! –– precisava Tiago se agarrando a uma picareta embolorada.

–– Como você tem tanta certeza de que é aqui. Tiago pôs o foco de sua luminária sobre a certeza de um

esqueleto fardado, escorado sobre uma caixa de explosivos com a suástica apropriada. –– Ainda tem coisas que consigo ver melhor do que você. –– e impingia o primeiro bater. A sorte à espreita, dois ou três minutos de esforços e uma brecha se abriu. As pedras escorreram para dentro do salão contra um piso seco e inesperado.

Foi Sean quem inseriu a lanterna pela fenda procurando afiançar se estavam onde desejavam. As dimensões batiam, as cavidades seladas e lacradas também. Alguns equipamentos abandonados por Marc e Sarah repousavam sobre destroços que deviam levar ao refeitório do antigo convento franciscano.

Enormes blocos de pedras impediram que o teto desabasse com o desmoronamento do cordeliers, contudo a fragilidade da estrutura estava aparente com os constantes sons de acomodação do entulho que trancou algumas das passagens laterais. A água que estava acumulada parece ter cedido e recuado por uma das rachaduras do pavimento de mosaico.

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Com dificuldade conseguiu direcionar o facho para baixo, mas a operação foi interrompida com a brusca avalanche que o empurrou para o interior da cripta. Sua luz se apagou quando bateu com força sobre a laje da tumba secular.

Tiago se preparava para alumiar o ambiente, mas esfregaços e gemidos que indicavam uma luta corporal terminou por silenciá-lo. Estava sozinho e no escuro. Seus dedos passaram pelo baixo-relevo da lápide até uma fresta que permitia que seu braço entrasse. Vasculhou rápido, pois ouvia alguém se aproximando com cuidado. A respiração ofegante do invasor causava o tremor das pernas.

Queria gritar, no entanto se sentia vulnerável, por isso calou-se. Sem cerimônias, tateou sobre ossos e panos apodrecidos que lhe causavam asco, mas acabou encontrando o rolo de pergaminho. Pensava que não gostaria que um dia lhe enfiassem a mão pelas costelas como fazia com os restos mortais de outrem.

Seus olhos estavam dilatados ao extremo, tentando perceber vultos na penumbra de passos firmes. Só pode sacar o documento do ataúde e enfiá-lo sobre a jaqueta antes de ser atingido por alguma coisa dura.

Agora a escuridão era prolongada pelo seu desmaio. Estava desacordado por tanto tempo que seu corpo se

enrijecera. Cada agitação ocasionava dores e estertores imprevistos. A boca estava com gosto de cabo de guarda-chuva e quando conseguiu sentar ainda não enxergava nada. Estava um breu infernal.

Pôs a mão sobre a cabeça onde ainda doía. O sangue coagulado havia emplastado o cabelo, descendo pelo rosto até o canto de sua orelha direita. Não havia percebido a gravidade da ocasião. Sua mente só foi dar conta do acontecido quando pensou em Tiago. Procurou apalpar a esmo e descobriu que estava em outro lugar. O pavimento liso se estendia além de seus dedos doridos para todas as direções, partindo de si. Um vento cortante zunia como se atravessasse um grande salão desamparado.

Precisava ver, saber onde estava. Precisava ajudar Tiago. O atacante não devia estar por perto. O vento provocou um arrepio que o obrigou a agir. Voltava a

se esgueirar pela pavimentação encardida, calcando seu corpo

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para que não fosse surpreendido por quedas repentinas ou monstros peludos. Não progredira nem um metro quando tocou em algo solto que deslizou antes que pudesse capturá-lo pela ponta dos dedos ávidos. Parecia ser um aparelho portátil.

Quando o abriu, seu brilho esverdeado de um mostrador de cristal líquido clareou ao redor, descortinando paredes arqueadas de um ladrilho pichado e trincado. Estava em uma estação enclausurada nos subterrâneos do metropolitano parisiense. Uma das estações pouco rentáveis que desapareceram em 1939 e jamais seriam reavivadas, acontecimento este provocado pela grande guerra e suas reduções e condições.

Estava tão perdido que na confusão de pensamentos surgiu a repetição persistente de uma ideia. –– Labelius! Por favor.

Segundos angustiantes antes que ruídos arrastados e pesados ganhassem solidez. A primeira impressão era de que o agressor havia retornado, contudo o som estava bem perto e a claridade do aparelho não delatava ninguém. Somente quando direcionou o foco para baixo percebeu que era Labelius, um pequeno duende deformado que se parecia com um saco de pedras ou um senhor Cara-de-Batata mal humorado.

Como havia garantido Guarini, ele estava desconfiado do garoto e rondava-o tentando avaliar seu intento.

–– Guarini me disse que o senhor poderia me ajudar. –– ao ouvir o nome, o elemental encardido fez uma careta. –– Mas ele também deixou claro que não seria fácil... –– mais sussurrando para si do que com o propósito de convencer aquele ser.

–– E o que você quer, humano! –– o duende possuía uma voz grossa como se regurgitasse terra ao falar.

–– Onde estou? –– Nos buracos. Sean desconfiava que o pequeno ser era ingênuo, para não

dizer burro. –– Onde exatamente? –– e ele não responderia o óbvio. Não iria mais considerar Labelius como um auxílio e já se afastava fazendo uma varredura da plataforma. O duende ficara intrigado com o pouco caso que o garoto fazia dele.

–– Você me chamou. –– Desculpe-me. Pode voltar para... –– de onde havia vindo. –– Não conheço seu mundo, mas aqui eu sei tudo o que

acontece. –– Labelius tentava chamar a atenção de Sean.

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–– O que aconteceu com o meu amigo? O encaroçado duende olhou para os lados e assoprou as

palavras temendo que ao dizê-las seria repreendido. –– Foi levado por dois. O senhor dos dragões cujos corações atitam e o outro como você.

–– Um vivo? –– E dos pequenos. –– Aonde eles foram? –– temia que a resposta fosse buracos. –– Pisaram muito e ficaram com o pequeno francês da

chordae. Perto do anjo sem asas, mais eles ainda estão com os mesmos ossos. Aqui não é seguro. –– Enfim, ele não teria solucionado a incógnita, mas apresentou um esboço. Não ficou esperando que Sean retrucasse e na mesma moeda virou-se, desaparecendo na penumbra do qual nascera.

Sean voltava a ficar só. A umidade que trazia aromas de bolor e gases de

decomposição corroborava a pouca circulação de pessoas por estes cais de uma estação ignorada. Não havia identificação de inscrições ou placas descascadas que pudessem dar uma ideia de onde estava.

Beneficiado da feérica luminosidade que emanava de suas mãos, ergueu-se cambaleante, torcendo para que as escadarias de acesso estivessem lá. Algumas estações metroviárias jamais teriam suas aberturas construídas, tornando-se arapucas impenetráveis. Por sorte não era este o caso. Quem o desovara ali só estava tentando confundi-lo.

O celular definitivamente pertencia a Tiago, que não estava em nenhuma parte da plataforma alagada por gotejamentos constantes. Precisava examinar os trilhos, contudo a luz era anêmica demais para perscrutar o fundo da via metálica.

Deitou-se na borda esticando o máximo que pôde e se preparava para tomar posição em outro ângulo quando foi abruptamente arremessado para trás com o deslocamento de ar provocado pela passagem da composição férrea. O metrô havia chegado com tanta velocidade que Sean não percebeu sua aproximação. Por um triz, ou sorte, havia acabado de recuar seu braço do valo que se mostrou sem sinal de corpos ou viva alma. Um alívio depois da inexaurível explosão de seu coração que se

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negava a sossegar. Havia se esquecido de que as linhas ainda estavam ativas...

Estava sozinho e o horror tomou-lhe voraz. Aconteceram tantas adversidades que esta acabou sendo a gota d’água de um copo já transbordado. Seu estado de choque impedia-o de raciocinar com clareza.

Regressou para as escadas, se esforçando para não escorregar no limo amontoado. Tentativas seguidas e o entulho, de ferragens entortadas e mobiliário detonado que obstruía a passagem, cedeu abrindo um caminho difícil. O longo corredor oferecia crescentes pingos de suor de um medo incorrigível. Papelão e sacos podiam ocultar possíveis assassinos ou drogados que causariam mais estragos do que os fantasmas com que já se acostumara.

Passo ante passo e os ecos não passavam despercebidos. As caixas se mexiam em sombras sugestivas. Tentava ladear a imundície caminhando de costas para se certificar de estar só. E já havia cometido a grande falha ao ouvir um sibilar de respiração profunda em um ponto imediatamente colado à sua nuca. Girou os calcanhares puxando o corpo para o mais longe possível do homem barbudo que o encarava com graça pueril.

Enquanto ofegava preocupado com sua situação, o mendigo se sentava junto à parede do corredor em tão conhecida posição de pedinte de metrô. Só então algo lhe pareceu reconhecível.

O conhecia de outros becos. E num formidável inglês de flexões e inflexões londrinas o

mendigo se apresentou diante da surpresa estampada no rosto de Sean. –– Não há o que temer. –– olhava precavido para os lados.

–– Não estou com medo. –– mentia. –– Quem não tem medo de assombração! Agora não estava mais com medo, eram os vivos entocados na

escuridão que lhe preocupavam. –– Estou cumprindo um favor. E qual seria? –– Eles não são quem parecem! O seu amigo não pode

resolver os seus problemas por você. –– Quem? –– Dentro de você há grandes verdades adormecidas. No

entanto, o que deveria ser dito já não é mais possível. –– Como?

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–– Fui desautorizado há pouco. Mas eu devo dizer que tudo isto não diz respeito a você como supõe. Desta vez eles não querem você... ainda.

O mendigo se aproximou e buscou, com a mão em concha, sussurrar ao ouvido, contudo não completou a tentativa. Sorriu e piscou mostrando propositadamente a palma da mão que não usou. Balançava os dedos em despedida para recuar no escuro que o engoliu sem traços.

Seu torpor fora rompido com o fraco vozerio que emanava dos túneis. Como se milhares de urros se aproximassem das profundezas ou da superfície próxima, ficava difícil precisar.

Portas encadeadas eram destravadas com repetidos choques de uma barra de aço. O polímero reforçado simulava dificuldades que lhe atrasavam o progresso. Estava exaurido e continuava lutando para alcançar ar puro, não podia desistir do manuscrito. Por algum motivo isto não lhe fazia mais sentido, o compromisso que pensava ser com o códice ou os tais diários era, de fato, outro. Por mais estúpido que Sean se sentisse, nunca havia cogitado que a obrigação era para com seu amigo arrebatado.

Jogou-se contra a parede, deslizando suas costas até agachar-se no calçamento gélido. Tão logo, caiu num choro convulsivo, nervoso e confuso. Foi totalmente injusto, estava sacrificando um amigo que ainda continuava a apóia-lo, mesmo após tê-lo menosprezado com as façanhas de um admirável mundo novo.

Que papéis valeriam esta inversão de valores? Quais garantias eles teriam de que os diários de Miguel seriam críveis? No final, o que pesava era as conquistas e não as suposições de se.

Não podia desistir, rompeu a corrente da derradeira porta mal emborcada e uma chuva irreprimível abriu caminho à força, cobrindo o chão com uma lâmina de água refrescante. Procurou refúgio temporário enquanto a claridade fustigava seus olhos vermelhos.

O aparelho piscou. Um sinal de proximidade advertia que Mateus estaria por perto. Mas não era o suficiente para chamá-lo.

Teria que emergir no aguaceiro se realmente quisesse fazer uma ligação. Quando galgou as grades de proteção se deparou com o incrível e o absurdo.

–– No way!

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bandeiras fincadas.

Dias seguidos, muito banais, e esta naturalidade não era tão aparente como gostariam algumas pessoas. Os dias com aulas intermináveis haviam retornado, assim como os dias atarefados de muito trabalho acumulado. A neve se tornara, depois da ascensão de sucessivas ondas quentes marroquinas, um líquido depreciado que insistia em se acumular nos pontos menos adequados. Muitos transeuntes iriam se lembrar, seja pelos sapatos mergulhados em poças supostamente rasas ou pelo enxágue de espirros provocado por motoristas com o diabo no corpo.

Contudo, esta trégua de dias quase triviais, teria os seus dias contados. E este armistício, como em qualquer guerra, teria seus rebelados e suas quebras protocolares arguciosas. Neste caso, poucos saberiam e, se pudessem lutar contra, jamais seria permitido.

Dias de degelo não aplacaram os desígnios dos exércitos que se aproximavam da cidade, acampando em terras limítrofes além do cinturão periférico de Paris. Aguardavam ordens enquanto se adensavam em terrenos já urbanos, cuja demora incentivava a desconfiança e a rebeldia dos subordinados aborrecidos com a organização demasiada para seus espíritos inquietos.

Espíritos estes que só obedeciam, pois estava de acordo com os seus ideais, o empreendimento de trazer angústia e caos ao manifesto comportamento inabalável dos cidadãos dito civilizados. Pelo menos era o que eles imaginavam, porém a

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agitação que reverberava em seus corpos se devia aos choques provocados por compromissos não cumpridos ao fim de uma era.

Comportamento este que, nos últimos dias se transmutaria, desobstruindo a contenção social em prementes rachaduras, em anarquia de neanderthais modernos.

Não antes que uma torrencial tempestade de chuvas nada tropicais sobreviesse em cúmulos negros de raios e trovões atemorizantes. Se não havia coincidência, este aguaceiro tinha os seus agentes para despencar com tanta cólera naquele alvorecer demorado de megacongestionamentos.

Mateus era mais um, entre milhares de estressados, que estava trancado no trânsito intransitável do coração da cidade. Seus limpadores de para-brisa não davam conta do volume de água que insistia em retornar pelos bueiros sem vazão.

O rio ganhava volume a olhos vistos e o que ele podia fazer é tentar enxergar os pontos de luzes disformes à sua frente. Na maioria, vermelhos, de reflexos e intensidades variadas. Carros estagnados que andavam e freavam em arrastos milimétricos de muitos escapamentos e motores ativos.

Só se ouvia os limpadores guinchando e cuspindo o excesso de água sobre o mourejar de motores em giro morto.

Eles jamais atingiriam Moisselles dentro do prazo estipulado, assim como o restante dos automóveis que delineavam colunas sinuosas de faróis brancos na pista oposta e de sentido contrário. Porém Elene não se importava, desde que estivessem secos e aquecidos, continuaria fingindo ler um livro. Apesar de que ela procurava um meio de abordar outras questões, de curiosidade transbordante, com Mateus. E ele só fingia não querer discutir o assunto imaginando que Elene já havia deixado bem claro a sua repulsa sobre as tais questões. Total desatenção dos dois, que na verdade queriam, queriam muito.

–– Nunca vamos conseguir atravessar esta desordem. –– e falava isto considerando a chuva, as passeatas e manifestações planejadas para a avenida dos Champs-Elysées, os confrontos estudantis, as greves trabalhistas gerais e as revoltas e rebeliões nos subúrbios, além desta água que não parava de cair. Não conseguir persuadir a mãe se mostrara degradante, ainda mais quando teve que se declarar observador da natureza morta, ou

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seja, de fantasmas e congêneres. E Mateus batia com a testa no volante, aborrecido por ser um títere do caos de outrem.

Por distração, eles olhavam as várias pessoas que corriam diante do carro, atravessando a grossa lâmina de água, para chegar ao outro lado da avenida congestionada. Contornando os veículos com maestria de dançarinos em guarda-chuvas destroçados.

–– Então fale! –– e Elene não resistiu aos ataques de sua mente intrometida. A cada marcha que eles davam, Mateus falava, e ela mantinha um silêncio intrigante demais, enfim ela também falou. E estava inacreditavelmente cordata com as impressões do amigo. Suposições que precisaram de um bom tempo para serem digeridas, mas uma vez compreendidas, estava pronta para se intrometer.

–– Se eu não tivesse visto você sendo arremessado no vazio, por nada, por ninguém –– já considerando os fantasmas ––, não acreditaria em uma só palavra do que me disse. Ainda não sei se acredito. Como eu poderia?

Para Mateus não parecia o suficiente. –– Então está perdendo o seu tempo comigo. Se não houver provas, que garantia vai bastar para você?

–– As que eu puder avaliar, Matt! –– Assim você está restringindo suas crenças através de

conceitos falhos. Como não vê, todo o resto é boato. Elene pensava na réplica que ouvira e na qual teria que dar. ––

Conceitos falhos?! –– Se para você eu sou um louco de imaginação fértil. Para

mim você não passa de uma cega. E estamos quites. E ele estava certo, nem mesmo sua vontade de dar a última

palavra como sempre fazia, seja em questões idiotas ou complexas, impediu-a de se calar inconformada com a razão apresentada. Por isso o amor entre os dois se esfacelou.

A chuva parecia reduzir de intensidade, aclarando a paisagem depois que os vidros foram desembaçados com panos e ventilações forçadas. Entretanto a paisagem era sempre a mesma, pois haviam locomovido poucos metros. Estancados perto da avenida New York entre a ponte d’Iéna e os terraços do Palais de Chaillot. Visão sem obstáculos através da Torre Eiffel até o nebuloso perímetro da Escola Militar. Impotentes de recuar ou avançar, sua privilegiada paisagem foi se fechando com a

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movimentação de uma muralha de caminhões e veículos grandes e longos.

Um clique e o rádio era despertado com notícias desalentadoras: ––... o que provoca o rápido aumento do nível do rio Sena, decretando estado de alerta. Algumas áreas baixas já estão sendo evacuadas e os túneis interditados. A defesa civil não vai esperar que a água chegue aos joelhos do Zouave...

Em 1910, as águas do Sena atingiriam oito metros e sessenta e dois centímetros acima da cota de alerta da escala hidrométrica da ponte de Austerlitz, cobrindo os ombros da estátua do Zouave, que passa a maior parte do seu tempo em um dos pilares da ponte de l’Alma. Nos seus calcanhares, os canais eram fechados. Com as calças molhadas, as vias justafluviais eram obstruídas. Na cintura, a navegação era cessada e a linha C do RER submergida. Para chegar no pescoço, poucos se esqueceriam. Mas o africano Zouave passou a ser desconsiderado quando a nova ponte de l’Alma mudou-o de posição. Se houvesse outra cheia, a cidade não poderia dar de ombros.

E os motoristas começavam a se exasperar, buzinando desesperados por uma rota de fuga que não existia. Para completar a irritação de Mateus um cavalo esbarrou em sua porta recém reparada assustando-o. –– Mais cavalos! Quem sabe este policial saiba de alguma saída para o congestionamento. –– e depressa abria o vidro.

E Elene olhou para frente, os lados, se contorcionou para trás e não viu nenhuma guarda a cavalo. E Mateus descobriria que também não. Levantou a cabeça diante das botas do cavalariço prevendo que ele estaria ocupado em instruções com seu walkie talkie para as centrais de monitoramento do trânsito que também estariam de mãos atadas. As botas não diziam respeito à gendarmeria municipal, mas sim ao explorador espanhol de cavanhaque pontudo e elmo socado que gritava endemoniado para as escadarias do Chaillot. Fechou instantaneamente o vidro como se protegendo de meros ladrões oportunistas que atacavam veículos desamparados em engarrafamentos semelhantes. –– De novo, não!

O soldado cortou a dianteira do Peugeot imprimindo mais gritos, quando percebeu que era visto por Mateus com precisão.

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Por cortesia o cavaleiro respondeu: –– Saiga de la ciudad, hombre! –– e rumou para o rio, desaparecendo por completo.

A Elene desconfiava que havia acontecido algo que não podia desconsiderar. Se Mateus queria assustá-la, havia conseguido. O que pioraria a situação, para ela, seria a sinfonia de buzinas e alarmes disparados ao mesmo tempo, sem causa aparente. Aliás, havia uma causa nada ilusória no gigantesco braço metálico que se erguia implacável, abrindo-se para os céus da cidade, mas o movimento não havia terminado.

Mateus tentava acompanhar a estrutura através do para-brisa deformado pela água que escorria sem trégua, porém não se conteve e saiu. De início, os veículos engarrafados dificultavam sua observação de partes do estranho mecanismo, detendo-se na azáfama que provinha das escadarias do Palais de Chaillot e, onde vários soldados desciam em formações e destacamentos heterogêneos.

Tropas e divisões de destacamentos imortais tomavam de assalto os museus do homem e da marinha que constituíam os edifícios originais da exposição universal de 1937. O frontispício indagava contrassensos para os espectros de que tout homme crée sans le savoir, comme il respire.

Cuirassiers aparelhados com fuzis revolucionários em longas capas e elmos emplumados escoltavam a infantaria legionária de pilum e scutum oriunda da Armórica. Eram seguidos pela cavalaria de armaduras luzentes e cotas de malhas fragorosas, com suas pesadas espadas presas às placas do saiote, e estandartes heráldicos calcados entre as selas e as mãos liberadas. A infantaria mecanizada do exército prussiano contornava o edifício, avançando protegida por filas de metralhadoras rotativas que eram puxadas por animais. Caminhões de transporte do Afrika Korps faziam a escolta secundária, seguindo pelas avenidas do Jardim do Trocadéro junto à fonte de Varsóvia.

Uma cena inimaginável, que só teria maior impacto quando tanques Panzers e Shermans despencaram através das plataformas suspensas, comboiando seus aliados diretamente para os automóveis imobilizados que não antecipariam reação alguma.

Mateus estava petrificado com a onda de choque provocada com a colisão dos primeiros blindados contra os objetos sólidos, arrancando algumas árvores e destruindo postes que se

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deformaram com o peso deste vagalhão. Não pensou novamente e agiu o mais rápido que podia, forçando a maçaneta do seu carro para arrancar Elene instantes antes que o blindado o transpusesse, arrastando-o incólume uns bons centímetros de pneus freados. Vários veículos sacolejavam arrastados e os alarmes eram ativados por toda a extensão do congestionamento. Além destes sinais sutis, as esteiras dos blindados levantavam respingos da água empoçada sobre o asfalto.

Enquanto eles se desviavam dos tanques americanos, os demais veículos continuavam a balançar, puxados para a margem do rio. Pelo menos uma vez, Elene fora pega pelas lâminas das esteiras invisíveis, sentindo desconforto incompreensível. Alguns deslizaram para cima das grades, afugentando as pessoas de um ponto de ônibus abarrotado.

A debandada absoluta contava com um estímulo jamais previsto. Pelo que Mateus pôde pressentir, os corpos em fuga eram apoiados pela decisão conjunta de suas almas assombradas. Este movimento se alastrava como fogo ao vento e em poucas horas a cidade estaria plenamente evacuada incentivada pelo medo que sentiam em suas almas. Peito oprimido em angústia inexplicada, porém considerada.

Muitas pessoas gritavam desesperadas fugindo para longe, milhares atravessando as pontes para a margem esquerda da cidade –– rive gauche. Em sua vontade de explicar o inexplicável, pensavam que era uma enxurrada, eletrificada pelos cabos de energia e comunicações expostos pelo excesso de água.

Os blindados, como os soldados, seguiam na mesma direção, detendo sua marcha nos pontos do rio sem travessia, todavia começaram a se locomover para onde a garra de metal se desdobrara atingindo grande elevação e já encetava seu decesso com muitos estalos e gemidos peculiares de estruturas gigantescas postas em movimento.

Para que Mateus conseguisse ver do que se tratava, correu disparado pela avenida, entre os carros abandonados, o que o obrigava a bater as portas que lhe obstruíam a passagem. Mas o trajeto dificultava sua afobação, exigindo que ele subisse nos automóveis, saltando as capotas e caçambas com esforço redobrado. Os motoristas indiferentes ao pânico se entregavam a

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xingamentos encapsulados, pois ninguém ousava abrir as janelas durante aquele temporal.

Quando ele já se aproximava de um ângulo propício saltou sobre um furgão que lhe daria ingresso ao topo de um caminhão-cegonha de vários eixos. Ofegante, cuspia o excesso de água que acabava entrando pela boca escancarada. Diante de si, muitos braços desciam, não sincronizados, de veículos blindados lança-pontes, preparando as tropas para a iminente transposição do rio. Espantosa força criava pontes de cento e cinquenta metros de extensão que eram pouco visíveis em meio à solidez da chuva, ou da substancialidade das nuvens baixas.

Elene berrava conseguindo chegar mais perto, o que atraiu a atenção dele para a outra direção. As divisões que conseguiam transpor o rio por meio das pontes existentes estacionavam em acampamentos provisórios no campo de marte. Milhares de espíritos com inexpressivo semblante fincavam bandeiras pelo campo. Generais, capitães, centuriões, legionários, besteiros e arcabuzeiros, fuzileiros e granadeiros, soldados e marechais do mar. Lanças, canhões, espadas, granadas e mísseis, baionetas, trabucos, escudos, arcos e bestas. Cavalos, elefantes, caminhões e jipes, blindados e...

Compunham um grande exército, a legião, quando todos terminaram os variados deslocamentos e definiram os perímetros de ocupação, não haveria contraofensiva. O fôlego de Mateus terminava com o retorno ao chão e aos braços de Elene que o acompanhou até o automóvel, agora preso pela massa de veículos sobrepostos.

–– A invasão acaba de fincar sua bandeira de vitória, sem enfrentar resistência. –– e ele olhava a impressionante logística militar que surgia na esplanada ocupada.

–– Matt, precisamos sair daqui! –– estava apavorada, mas não era de fugir diante de reveses. Começava a aceitar que existiam outras verdades.

–– Bem que eu queria. –– de olhar fixo nos últimos homens que cruzavam a ponte que estava diante deles. Sem opção, molhados e arfantes, seguiram o mesmo trajeto da turba incorpórea, desviando dos carros vazios sobre a ponte d’Iéna. Apesar de sua perspicácia estar a mil, Mateus não percebeu quando três mastros com suas velas içadas cortaram-lhe o

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caminho com estrondo de um susto jamais previsto. Um bergantim lançava âncoras no cais de Branly com tripulação atarefada no desembarque de armamento. O rio corria violentamente tragando os baixios de alguns cais próximos.

O que o trouxe à realidade de sentidos reais foram as constantes vibrações de seu aparelho que indicavam chamadas não-atendidas. Antes que pudesse constatar, atendeu-o. –– Sim, ele está conosco. –– mentia Mateus para o senhor Patrick. –– Parta da cidade. Temos alguns alojamentos no aeródromo... Estamos todos indo para lá. –– Marc e Sarah deviam estar salvando o Louvre e...

Mateus precisava de tempo, pois, durante a ligação, uma segunda chamada estava sendo desviada. Distinguiu o número de Tiago, e onde ele estava, Sean também estaria. O sinal de proximidade piscava, indicando que eles estavam muito mais perto do que imaginava.

–– Cadê você, moleque? –– gritando com o falso-Tiago. Sean não conseguia responder, estava boquiaberto com a

imensidão de espíritos que ocupavam a esplanada do Champ de Mars. A estação que deixava para trás desembocava, na superfície, bem onde está a Escola Militar e a praça Joffre. Não sabia como havia atravessado a cidade pelo labirinto de túneis e catacumbas, mas estava aonde menos queria.

–– Sou eu, Sean. Preciso de você. Alguém sequestrou o seu irmão. –– a interrogação de onde estava ainda continuava. –– Estou na Escola Militar do Campo de Marte.

Mesmo surpreendido pelas palavras que ouvia em silêncio ajustou sua visão tentando visualizar o garoto através do campo que se alongava diante dele. Impossível alcançar esta distância. –– Estou indo até você!

–– Rápido, você nem imagina o que estou vendo! –– Tenho uma boa ideia. –– de um outro ângulo, e desligou. –– Como vamos atravessar estes... –– falava alto, justificando

a abordagem externa de ouvintes oportunos. –– Siga-me! –– e Elene socava Mateus num Land Rover

Discovery desocupado que ainda estava ligado, com limpadores enfurecidos e lanternas ávidas por alguma ação. A chuva levantava brumas que eram acompanhadas pelas luzes halógenas.

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Arremeteu-se contra os automóveis que impediam sua travessia. O para-choque de ferro destroçou os pequenos utilitários. Porém esta tática seria precária para percorrer as vias entupidas, contudo ela só precisava chegar até o fim da ponte.

Contou até três e acelerou o veículo off-road em direção à torre Eiffel, só parando quando a chuva reduziu sua queda pelas plataformas da torre. Mateus olhou através do teto-solar, admirando a intersecção das estruturas que constituíam as quatro pernas daquela gigantesca peça de xadrez. –– Quem disse que o x nunca marca o ponto desejado! –– voltava a rir das coincidências.

Os exércitos ainda não haviam se posicionado nas zonas centrais do largo de manobras. Aceleraram o carro pela última vez antes de se lançarem ao encontro dos combatentes.

O povaréu inarticulado foi pego de surpresa quando o carro voou sobre os primeiros acampamentos. Mateus pensou que ia surtar diante do vagalhão de desencarnados que se apressavam em fechar o cerco, imprimindo a diminuição da única trilha acessível até a praça Joffre. Como verdadeiros peões, os soldados se espargiram numa tentativa alucinada de fechar e impedir o cruzamento daqueles invasores.

–– Melhor correr mais! –– afiançava Mateus que percebia o afunilamento do corredor pelos soldados armados. Sua artilharia já estava ao alcance de suas inquietações.

Múltiplos explosivos eram arrojados por fundas mecânicas. Que, com violentos e arrasadores abalroamentos, alçaram a traseira do veículo que derrapou em um giro irrefreável, lançando barro através de alguns oponentes. Deslizara sem perder potência e velocidade, seguindo em seu trajeto de cascalhos após ligeiro desvio que lhes custaram o para-brisa dianteiro.

Um dos cavaleiros, com lança de justa, cortou lhes o caminho. Sua intenção era a de matar, entretanto a sua capacidade era a de trincar. Depois de mais dois atropelamentos o vidro estilhaçou deixando-se invadir pela água que fustigava os céus e a terra.

As manobras cegas para se desvencilhar de perseguidores sobrenaturais não diziam nada para Elene que estava esplêndida com a infração cometida ao detonar dois automóveis que a impedia de cortar a avenida Joseph Bouvard. Consigo levava

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alguns combatentes, agarrados ao chassi, que acabavam escorregando com as vibrações constantes.

Tomada de decisões eram confirmadas com o grau de pavor que ela presenciava em Mateus, que abria ou fechava seus dedos diante dos olhos conforme os nem-quero-ver. A imprevisibilidade, que não era compartilhada por ele, acabou pegando-o desprevenido quando uma grande árvore caiu. Não puderam desviar-se da colisão que os alçou aos galhos partidos.

Atordoada, tentava escapar da armadilha como um cão que puxa o graveto das mãos de seu dono. Entretanto as rodas giravam no mesmo lugar arrancando nacos do gramado e lama que poderia atolar. As luzes de ré pegaram os soldados despreparados.

Enquanto eles davam passos para trás, Elene experimentou modificar a tração e o veículo rompeu a resistência, recuando para trás com brusquidão de ramos partidos. Mateus demonstrava, de rosto pálido, que acabavam de entrar em outra escaramuça de muitos espectros sedentos por algum ardil.

Ela desceu o vidro para gritar no vazio, mas preferiu apontar o dedo médio para um aglomerado de arqueiros ingleses. Injúria impensável aos arqueiros que teriam os mesmos dedos arrancados em outras batalhas. Os guerreiros confundidos mantiveram-se acuados. E Mateus fechava os olhos de embaraço. Definitivamente ela passava a aceitar que fantasmas existiam. Só precisou pressionar o acelerador para retornar à alameda de cascalho que lhe convinha, no entanto Mateus não queria delatar as avalanches de fantasmas que se lançavam. Não antes de serem atingidos por uma bala de canhão que arrancou a roda posterior com aspecto de conservação mal executada.

Sean não queria acreditar. Os fantasmas tinham ganhado a

batalha e conseguiriam avalizar a sua supremacia com efeitos colaterais de um armamento indestrutível. Entretanto, as suas divagações teriam que esperar, pois o automóvel desgovernado se dirigia para ele. Só teve tempo de se jogar ao metrô antes de ver as grades protetoras arrancadas por um sobrevoo não-autorizado. Dentro de segundos o carro mergulhava para dentro, ficando estrangulado na abertura para os subterrâneos.

Quando Sean pôde espiar, percebeu que Mateus e Elene estavam bem, saindo das aberturas destruídas do Rover avariado.

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Três ou quatros bolas de pedra eram precipitadas por potentes lançadeiras. Eram elas que provocavam um sibilar de vento contra o ar aglutinado. Mateus rapidamente agarrou-se a Elene e submergiram para as entranhas da terra protegida.

Em instantes, o chão tremia com o impacto dos projéteis que acertaram objetos que se estilhaçaram em muitos fragmentos. Uma das rodas em chamas despencou para dentro do saguão que os abrigava como em uma trincheira de guerra.

–– Dentro em pouco, eles estarão aqui. –– Mateus parecia branco de apreensão. Ele só estava sem escolhas.

Não havia outra, teriam que descer para os túneis. Território de bestas e espíritos atordoados, e bem que lá em cima a situação não fosse muito diferente.

Sean começava a entender o receio de Guarini em adentrar buracos no subsolo. Se o inferno não fosse ali, poderia se candidatar.

–– O que aconteceu com Tiago? O que Sean poderia responder ao irmão? E a cidade ainda regurgitava a água não escoada que

submergia galerias escavadas e túneis clandestinos. Causando outros problemas adicionais.

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a repercussão.

Os canais internos se contorciam conforme os métodos e a dureza em que as pedras foram escavadas. Por horas, apalpando o breu sugestionável de uma galeria sem fim, acabaram num poço de iluminação natural que era inatingível, porém serviria de descanso para novas incursões nas vísceras quilométricas deste dragão destituído de sentimentos.

Estavam certos de que os inimigos não haviam perpetrado uma perseguição exaustiva, mas poderiam ter enviado batedores. Por precaução, acreditavam que sim.

–– O que houve com Tiago? Sean se pôs em posição de defesa, contudo não havia motivo

para tal. Levantou a cabeça e com um pouco de confiança declarou: –– Fomos atacados. Suponho que alguém nos atingiu com força antes que pudéssemos reagir. –– tocava o ferimento que havia sido limpo pela água da chuva. –– Não tenho a menor ideia de quem era. Só sei que não estava morto.

–– Como pode ter certeza? –– Elene se intrometeu. –– Por causa disto! –– e mostrou o pergaminho enrolado que

surrupiou do túmulo de Allan, já que o ferimento bem poderia ter sido causado tanto por vivos quanto pelos mortos. –– Se eles só queriam manter a ignorância dos homens por mais tempo, por que me deixariam com isto? –– atônito com tudo e todos. –– Muito provavelmente Tiago esteja nos procurando.

–– A não ser que este fantasma não estivesse interessado no manuscrito.

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Mateus não parecia convencido, nem Elene que tentava escalar as verticais limosas do poço de manutenção de uma rede de escoamento pluvial. Eles pareciam descontentes com as revelações inconclusivas. E Sean captou o gelo.

–– Vocês acham que eu queria que isto tivesse acontecido? Mateus falou pelo irmão. –– Se tivesse certeza de que era

preciso... Ele não sabia. –– Não era. –– mas se não tivesse tentado, o

preço seria a própria alma. Tudo em vão, todas as ideias supostamente coerentes se

tornaram palavras ao vento. Nenhuma das conclusões foram tão conclusivas assim. Nem sequer as intenções se mostraram proveitosas.

Tiago tinha que estar bem, por que estariam atrás dele? Infelizmente Labelius havia declarado que as intenções por trás da captura tinham um objetivo, pelo menos para um dos milhares de fantasmas presente nesta invasão sem lógica.

Não tinham como percorrer os milhares de quilômetros de túneis e brechas com esperança de que a cada recurvo se deparariam com Tiago. Mateus podia estar apreensivo em correr desabaladamente subterrâneos adentro, no entanto ainda conseguia raciocinar a inutilidade deste ato. Tanto faria se ele o fizesse na superfície ou abaixo.

Só precisava tirar uma dúvida. Quando descobriram uma saída, a cidade tentava manter

algum ritmo. Algumas lojas estavam abertas, várias pessoas se deslocavam atarefadas, contudo havia diferenças. Quem podia, preparava-se para a grande cheia que já estava prevista pelas horas de intensa chuva que não cessava. O céu parecia se contorcer em labaredas de espessas nuvens negras que tentavam rodopiar hipnóticas sobre eles. Uma onda de aflição os envolveu.

Tentou usar o telefone, sem sinal. Sem eletricidade. Mateus só queria seguir para o Hospital Val-de-Grâce. Se

Tiago tivesse escapado, teria procurado por alguém. E mães sempre se figuravam como porto seguro. E a doutora Mel era esse alguém que ninguém conseguiria mover de suas tarefas, com os pés encravados em seus compromissos humanitários.

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As portas do hospital estavam escancaradas para todos, o que literalmente acontecia. Todos que não puderam escapar das primeiras submersões se entrincheiraram nos atendimentos de socorro. E o hospital não comportava o caos que a breve e volumosa massa de seres provocou com a sua ocupação não-esperada. Todos os planejamentos para a eventualidade da cidade ser consumida pela morte de seus sistemas primários priorizava a disciplina dos serviços de emergência. Contudo, a desordem que provinha de todas as paragens, parecia idiotizar todo o planejamento bem calculado.

Os corredores estavam apinhados de gente ferida no corpo e em seus brios de perdas materiais. Uns até tentavam organizar um método, e em vão acabavam derrotados pela estupidez da massa desesperada que atropelava as parcas evoluções no sentido de recuperar o controle e a ordem. Muitos gritos e choros se chocavam com sirenes de ambulâncias e o pouso de helicópteros em maior número do que os helipontos suportariam. Enquanto Mateus arrisca-se em alcançar o balcão de informações, Elene se embrenhava pelas diminutas fissuras, abreviando a angustiosa suspeita. Só não estava pior porque muitos haviam se afastado de Paris durante as confusões da manhã.

A doutora Mel Göettees atendia a vários casos graves em uma sala sumariamente esterilizada. Sua especialidade passava a ser todas. Luzes que piscavam disfarçavam o vermelho do sangue dos pacientes. Elene precisava tentar um contato, porém não podia entrar. Bateu com insistência no vidro até que a médica se cansou da obstinação e voltou-se para olhar. –– Estão todos bem? Espero que Tiago e Lucas estejam com vocês.

Não era o que ela queria ouvir. A médica estava tão ocupada que Elene não traria novos problemas e replicou com uma grande e vistosa afirmação mentirosa. Soltou-se das pessoas, recuperando o ar livre. Mateus e Sean aguardavam debaixo de tendas montadas para a triagem.

–– Nada do Tiago... e ainda por cima precisamos resgatar o Lucas debaixo de suas cobertas. –– abatidos com a verdade de que teriam que seguir para duas direções distintas. Nunca que os encontrariam juntos, nem nos sonhos mais loucos.

Quais as alternativas? Mateus caiu sentado num banco que afundou seus pés no gramado encharcado do jardim entre o

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moderno edifício de quatro blocos fixos a uma centro triangular de formas inusitadas e a igreja cupular do Val-de-Grâce. Elene havia se proposto a agir e escapuliu sem revelar suas intenções, debaixo de uma pancada de chuva mais forte do que até então.

Sean teria que se entregar ao cansaço, mergulhando o banco na lama espessa observando um helicóptero pousar a poucos metros. –– O que nós deixamos escapar, o que eles querem com Tiago? –– retirando o excesso de água de seus cabelos enquanto notava outro helicóptero alçar voo detrás do majestoso edifício centenário que compunha o complexo do hospital militar.

–– Estão usando ele como isca. –– Mateus resolveu entrar no jogo. Mas não acreditava muito nesta ideia. Se os espíritos queriam algo com ele, seria por algo mais consistente. E o que poderia ter lógica em sequestrar um garoto? Será que deixaram passar algo? –– O que nós sabemos do pirralho?

–– Que ele sempre está conosco e... –– Nada de mais. –– agregava Mateus desesperançado. Se os fantasmas quisessem Sean, por que simplesmente não

ficaram com ele? Mas recordaram de algo. –– Quando estávamos no conclave nos disseram que o Tiago era tão importante para eles quanto para nós. Mas como?

Mateus não estava disposto a conjecturar sobre o que eles queriam dizer com isto. No entanto a resposta devia estar aí e fez um esforço. –– Ele estava envolvido com algo que eu não saiba, Sean? –– e a pergunta pegou-o despreparado, o que eles tinham deixado para trás? Desde que esta doidice começou não faziam outra coisa senão correr da legião de espíritos revoltosos. Não havia nada que Mateus não soubesse, com exceção...

Sean bateu estrepitosamente a mão contra a testa. –– No way! Algo que havia passado acabava de retomar seu rumo. –– Não estávamos procurando só o pergaminho, queríamos

pistas sobre Allan! –– E não conseguiram chegar até o túmulo? –– Sim, mas não era este Allan... –– e Sean arreganhou os

olhos como se entendesse o rapto, talvez Tiago tivesse descoberto um indício. Contudo, outra questão precisava ser explicada, por que Allan era tão valioso para os mortos?! –– Estávamos atrás do Allan de carne e osso.

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E ele abreviou uma narrativa dos encontros com o Mensageiro de Jeanne e suas investidas para descobrir o desaparecido portador do manuscrito. Desde a aparição repentina na unidade de terapia intensiva do hospital, passando pela perseguição pelo metrô, até a última conversa em seu quarto. Todas elas ocorreram sem a presença de mais alguém, somente os dois, sempre. E só havia outra pessoa que conhecia tão bem a história, e agora ele havia sumido dentro da terra muda. –– Por que o mensageiro quer tanto Allan? Será que ele não conseguiria achá-lo sozinho? Para que ele precisava de nós?

–– Tudo muito estranho! –– respondia ao apelo com dificuldade de digerir tantas informações sem respaldo.

–– Se soubéssemos quem tem os corações que atitam... –– bufou indignado.

Mateus puxou o comunicador do bolso detrás e se conectou ao servidor buscando referências a corações que atitassem em meio às falhas de conexão e baixa taxa de transferência em um local que ainda possuía antenas operacionais. Não havia tais corações, sendo que só podia confiar que, pelo menos, ficavam do lado esquerdo do peito, porém o verbo atitar apresentava uma incógnita com ares de já-vi-isto-antes. Mas onde? Enquanto Sean relia a explicação de letras miúdas para aquele atitar.

Atitar: soltar (a ave) grito agudo, quando assustada ou enfurecida. Vocábulo onomatopeico + ar. Sons produzidos por corvos, falcões e águias.

–– Corações atitam? Mateus se manifestou sem perceber: –– Corações não. Mas o

que está no peito, sim. –– e tentou falar com Marc Bernis que devia estar encaixotando suas pesquisas antes que elas fossem carreadas pelas águas.

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sorrisos falhos.

Marc ainda se afligia porque não havia digitalizado todos os documentos, exigindo dele esforços incansáveis e impensáveis para o empacotamento dos papéis que ainda enchiam vários armários transbordantes. Muitos haviam sido transferidos para a biblioteca nacional e a vários metros acima do nível mais absurdo cogitado para uma cheia secular, em uma câmara estanque e climaticamente controlada, onde pergaminhos e impressões gutemberguianas jamais seriam decompostas.

No entanto estes já estavam lá há algum tempo, conforme as solicitações burocráticas demandavam.

Enquanto ele depositava as pilhas a esmo, Sarah adequava-as às caixas, catalogando-as além do que consideraria um trabalho medíocre. Sua aptidão à perspicácia e ordem estava provisoriamente sendo dirigida pela intuição antecipada pelos prementes avisos de eminente incursão das águas barrentas que não respeitariam o peso da história dos calabouços do Louvre.

Estavam sincronizados, bailando os pacotes para a superfície, onde eram embarcados a salvo por Patrick. Em meio a tudo isto, um garoto rabiscava alheio a tudo e todos. Suas folhas já estavam todas desenhadas quando Marc depositou algumas fotografias por perto, correndo o risco de que fossem rasuradas, porém ele confiaria na divertida demonstração de um sorriso falho que Joshua retornava em cumplicidade.

Com a língua saindo pelo canto da boca, num esforço de impregnar o papel com as suas cores mais fortes, Jox nem se

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abalou quando o telefone tocou insistentemente antes que fosse tomado. Na agitação de caixotes espalhados e caminhos trancados, Marc se lançou sobre e adiante, arrancando o aparelho com força desmedida.

–– O que você pode me dizer sobre três pássaros? –– dizia Mateus sem cerimônias.

O inusitado pegou-o de chofre. –– Hã! Muitas coisas. –– respondeu enquanto se familiarizava com a voz, reconhecendo-a com facilidade. –– Como símbolo ou...

–– Se eles estivessem gravados no peitoral de uma couraça? Surpreso com a coincidência, Marc olhava seguramente para

a heráldica de sua linhagem genealógica, disposta junto aos quadros com as fotos de seu avô em expedições brancas e frias. –– Se preferir posso começar com o brasão da minha família... Com seus três alérions de prata que fazem alusão à Lorena. –– e esfregava os cabelos de Joshua que não se importava com o carinho.

–– O que são alérions? –– São estilizações de pequenas águias. Mateus continuava quieto, se os pássaros eram os mesmos

que Marc descrevia com precisão, então o cavaleiro que viu discutir com os senhores das trevas só poderia ser o guardião que jurava jamais deixar de proteger os seus. O cavaleiro que possuía corações que atitam, ou águias que atravessam o tórax de aço de sua armação de guerra, era um antepassado que gostava de atuar em duas frentes. Ora como senhor dos exércitos úmbrios, ora como um irmão mais velho, muito mais velho do que supunham.

Os dois continuavam a discutir mais referências que pudessem comprovar suas dúvidas quanto a isso ou aquilo. E Sean se retraia em pensamentos divergentes e confusos, pois parecia que os pássaros eram mais relevantes do que eles imaginariam. Mateus o reconhecera, mas onde ele teria visto o cavaleiro sem que Sean houvesse percebido? Procurava em sua memória algo que houvesse perdido, um evento, um dia em que ele teria visto seus pesadelos andando.

Antes que pudesse interromper o diálogo, Mateus apresentou a elucidação à incógnita que agitava Sean. Corações que atitam é o brasão deste antepassado de Marc, dos Delènfer. Mas também

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representava o quanto Sean fora estúpido. Os pássaros sempre estiveram diante do seu nariz.

E. –– Assim que terminarmos por aqui. –– respondia Mateus aos

apelos de que fossem até o museu e consequentemente para fora de Paris. Bernis queria rastrear as novas informações, contudo não estava preparado para o que escutaria. –– Preciso te dizer, estamos com o pergaminho-tradutor.

E antes que Marc pudesse realizar um sem-fim de questionamentos de comos e ses, fora abrupta e categoricamente desconectado. O aparelho zunia e chiava apático aos gritos de insaciável indagação. Ele depositou-o em profundo pesar.

Sua abstração provocada por pensamentos velozes não foi suficiente para desconcentrá-lo. Sua cabeça podia estar bem longe, todavia a situação era a mesma, a ponto de seus olhos o reconhecerem. Diante de si, o tradutor se apresentava tão nítido que as cores usadas não importavam. Outro sorriso zombador, falho, de um garoto que copiava letras soltas de um símile intraduzível.

Marc deixou-se cair estupefato com a simplicidade que crayons poderiam conferir a antigos documentos. Joshua continuava rasurando-os para o seu contentamento e dos dois pesquisadores que acabavam de levar uma rasteira de um garoto de cinco – seis – anos. Quando Patrick surgiu, tentando disfarçar que nada sabia dos garotos, com mais caixas vazias, encontrou-os chocados, para não dizer totalmente apalermados.

–– Ainda não compreendo! Por que alguém tão temível,

senhor destes exércitos intermináveis, se inquietaria com um só garoto? –– resmungava Mateus.

Sean também não sabia a resposta, no entanto teria que considerar que este ferino espírito não era muito diferente dos outros e talvez só quisesse fazer vingança com as próprias mãos. Ele podia não saber o que o cavaleiro queria com Tiago, mas agora ele sabia que o cavaleiro estava atrás de Allan. Então Tiago teria descoberto pistas que o levaria até...ou?

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–– Há alguma chance de que Tiago seja ele? –– falou tão alto que, ao ouvir suas próprias palavras, elas fizessem algum sentido. Por uma fração de segundo ele cogitou que fosse possível, e se ele chegou a esta conclusão, o cavaleiro também. Aliás, o senhor da legião, o cavaleiro da Lorena e o mensageiro eram tão semelhantes entre si. Pois que eles eram o mesmo.

E se um queria reparação era presumível que o outro também o quisesse. O mensageiro não queria localizar um ancestral amigo desaparecido através dos tempos, queria-o para sua desforra. E Sean o havia entregue de bandeja. E Mateus ainda aguardava que ele completasse a frase.

–– Temos mais um problema, cara! Tenho quase certeza de que ele acha que seu irmão é Allan!

–– Como? Por que ele estaria atrás... –– Não percebeu? Este cavaleiro é o mensageiro, era só um

disfarce para descobrir o que não conseguiria sem ajuda. –– Sean estava com taquicardia. –– Ele só necessitava que confirmássemos suas suspeitas.

–– Como ele poderia ter certeza de que... Sempre interrompido. –– Sou o culpado. Acabei avivando as

recordações que confirmariam as desconfianças do mensageiro. Ele deve ter percebido que eu conseguia reviver as memórias de quem... –– se referindo à capacidade de trazer à tona lembranças do passado. Em muitas ocasiões Tiago havia tocado-o, deflagrando as suas memórias pregressas, de vidas anteriores. Quando ele recordou que a mão havia sido perfurada por uma lança, atinou que os sonhos ou pesadelos não passavam de uma transferência de reminiscências dolorosas que impregnavam suas almas.

Então era isto? Tiago é Allan. E Allan foi o algoz do irmão do cavaleiro-mensageiro? Alguma coisa não estava se encaixando muito bem. Como aquele garoto linguarudo e descontraído poderia ter feito mal a alguém. Como tanta dor e sofrimento poderiam ter sido diluídos ou absorvidos por alguém como Tiago? Nem Sean achava imaginável suportá-los, no mínimo essa pessoa só poderia ser alguém retraído e amargurado. Decididamente não poderia ser Tiago, contudo tinha quem o considerasse.

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E quanto ao paradeiro de Tiago e do mensageiro? –– O que sabemos deste fantasma vingador? –– Mateus buscava alavancar algumas suposições e direções.

–– Eles estão com muitos ossos! –– Sean rememorava o que Labelius havia dito de forma incoerente, porém precisa. Ele só não gostava de charadas, se bem que não era uma.

–– Não me diz nada. Existem milhares de ossuários... –– Perto de algum anjo sem asas?! –– o mesmo do evangelho

de São Lucas? Deu de ombros. Não sabia o que queria dizer com isto. Suas

chances não haviam melhorado, nem uma consulta aos wwws aclarava o assunto. Um pouco mais longe, Elene se espremia entre os voluntários de uma tenda apinhada como se procurasse algo bem específico, porém não alcançava êxito, visto que um obeso frade ficava bisbilhotando seus passos. Religioso de poucos modos que se parecia com...

–– Se estas não esclarecem, o pequeno francês da chordae também não deve convir. –– já prostrados em estado mórbido e entregues à incapacidade de descobrir o esconderijo de Tiago. E onde raios fica Chordae?

–– Pelo contrário. –– Elene retornava exatamente a ponto de rebater a dúvida. –– Não faz muito tempo e uns garotos destruíram um antigo refeitório no Centro de Pesquisas Biológicas de...

–– Cordeliers! –– Sean saltava de repente. O frade, reconheceu-o finalmente. –– São os frades da Ordem de São Francisco que se cingiam com cordas. É cordoalha e não chordae. E Labelius contou que eles andaram muito e ficaram.

–– Não era um local, mas agora é. De todos, Elene era a mais perdida. Só apreendeu parte do

ocorrido quanto Mateus sussurrou o fato de que os tais garotos demolidores de patrimônios eram os mesmos garotos que agora eram o centro deste pandemônio entre mundos.

Tampouco ela parecia deslumbrada, aliás, estava começando a se acostumar com fantasmas e de ficar por fora do que realmente acontecia. E ainda pensava que Labelius era um majestoso espírito que os guiava para... e se soubesse que ele era horroroso, carrancudo, um disforme de olhar melindroso; um verdadeiro elemental da terra e que não falava lá muito claramente.

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Só teriam que voltar para onde tudo havia começado, a cripta não tão secreta dos cordeliers. Esgueirando-se pelos dutos Coccini até que os sinais do escavador indicassem a abertura recém aberta por Tiago. –– E quanto ao Lucas?

–– Ele que nos espere, antes temos que resolver como adiar o fim dos tempos. –– frisava Mateus, catando alguns objetos que estavam esparramados pelas tendas. Desde primeiros-socorros até equipamentos de emergência dos grupos de batedores que percorriam as áreas devastadas. No caos generalizado, surrupiou uma mochila recheada de utensílios, calçou botas de borracha e carregou os dois consigo, desviando de ruas e alamedas interditadas até a escadaria Bonaparte nas proximidades do Jardim de Luxemburgo e das primeiras ondas da enchente que submergia as margens do rio Sena.

As primeiras impressões eram desanimadoras, pois a água agitada já atingia os joelhos e estava fria de dentes tilintantes e músculos em espasmos intermináveis. Bastou alguma distância e o túnel secava misteriosamente. O pequeno lago interno desaparecera facilitando o percurso até a inscrição sinalizadora das portas do Inferno com sua suástica invertida que queria indicar o contrário. Sejam as portas do Inferno ou o caminho para o Paraíso, causavam a mesma angustiante sensação de imprevisibilidade. Mateus ainda conversava com Elene, contudo alguém se mantinha quieto, relembrando a conversa que tanto lhe amargurava. Estaria sendo egoísta? O que Tiago queria dizer com isto? O que ele poderia fazer para mudar?

–– Estava pensando no que o seu irmão havia me dito. Que eu sou egoísta em não permitir que os outros compartilhem das minhas esquisitices. Não sei se entendi!

–– Hum! Ele só estava evitando que acabasse como eu. –– Hã! –– Que, enquanto não se abrir, se ferir, não poderá seguir em

frente. Precisamos avançar, e só enfrentando os problemas é que seremos capazes de crescer. Perdi muito tempo sem respostas.

–– Sempre o achei tão seguro de si! –– disse ele. –– Seguro, mas ainda sem respostas. Preso pela cômoda

ignorância. Nunca rompi minhas barreiras. Fora delas não saberia me controlar ou agir.

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–– Foi o que ele me contou, preso em meu mundo. –– esta constatação só não doía muito porque ainda estava preocupado com o sequestro de Tiago.

–– Se estiver fazendo o certo, como poderá estar ferindo os outros? Acabou o tempo das complicações. Façamos aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem.

E estas palavras proféticas feriram e romperam a bolha de seu mundo interior, palavras que partilhavam de seu compromisso impronunciável que tentava chegar à tona. Quando ele surgisse talvez ele se lembrasse qual era o acordo que provocava suores frios e aflição exacerbada.

Era reflexo do que acabava de ouvir. Elene havia se deparado com os restos mortais de um soldado acocorado em nicho auspicioso com um grito não controlado. Enfim todos os calafrios e temores se restringiam a um pensamento: Ao passar, não teria mais retorno. E ondas de ansiedade comprovavam que sua alma sabia de algo que ele não percebia conscientemente.

Atravessar este buraco evidenciava que seus temores seriam colocados em agitação ininterrupta e acelerada e que Sean talvez não conseguisse impedi-la, mesmo que soubesse como. Sentia que parte do compromisso ser tão feroz e angustiantemente envolvente se dava pela sensação de que estava ameaçando derrubar a primeira peça do dominó ao passar para a câmara franciscana.

Mas se Guarini estava absolutamente certo de que tudo havia sido planejado, e não havia desespero ou improviso, a pergunta seria: planejado para o quê? –– My God! Onde fui me meter. –– E fez uma prece silenciosa para que fosse o final deste compromisso que estava impregnado em seus genes.

Seguiu adiante com coragem para terminar o que havia começado, ainda que não se lembrasse. Esgueirou-se pelo entulho que ainda não se consolidara, deslizando até a base instável dos pedregulhos que se espalhavam e rolavam para os cantos mais baixos. O som da água parecia vir de perto.

Levantou-se a tempo de ver Mateus surgindo através da greta, realizando o cavalheirismo de estear Elene para a travessia intricada. E eles estavam de costas quando Sean dançou o facho de luz ao redor, e fora surpreendido pelo ataque arrebatado de alguém que lhe acertara nos ombros com brutalidade passional.

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O alvoroço que a manobra ocasionou fez com que Mateus virasse a ponto de evitar ser atingido pela mesma arma, porém perdeu o equilíbrio, caindo pelo monte sem a lanterna que desaparecera sob os pedriscos. Outra vez Sean voltava a respirar ofegoso, aguardando que novas pancadas lhe atingissem.

Com a luminosidade focada a esmo na escuridão, procurava o seu verdugo que poderia atingi-lo sem que soubesse de onde. O nervosismo produzia movimentos rápidos e inexatos que acabavam produzindo fantasmas de sombras.

E não estava preparado para o furtivo ataque que se delineou diante de si assim que seu facho recaiu sobre ele, tampouco para o impacto de constatar quem era o agressor. Lucas, de olhos furiosos que deixavam escapar seu intuito instintivo, corria para Sean com seu skate em atitude de maça implacável contra o seu crânio protegido por braços erguidos.

Com repentina reação, até mais imprevisível do que Lucas desempenhava, Elene surgiu do breu que a camuflava para acertar um firme e providencial soco que atingiu o queixo do ensandecido garoto, levando-o a nocaute instantâneo.

Um silêncio demorado era seguido de várias respirações desencontradas quando Mateus conseguiu se aproximar dos dois ou três conforme observava a silhueta de um Lucas adormecido, emborcado junto de Sean como se descansasse oportunamente. Parecia sorrir.

–– O que ele estava fazendo? –– pergunta retórica que Elene tomava dos pensamentos de todos enquanto massageava os nós de seus dedos.

–– Não era Lucas quem... –– respondia à outra, Sean, que pressentiu que a fúria não pertencia a Lucas. Se alguém lhe tivesse dito que era possível, ele acreditaria que aquele não era o irmão de Tiago e Mateus.

Era a vez de Mateus. –– Quem mais está aqui! E sua dúvida teria resposta com a sequência de gargalhadas

medonhas que pareciam caminhar até onde eles estavam. Come-çaram a ouvir estranhos sons, roucos, graves e horrendos. Uma voz metálica, distorcida e parecendo muito distante parecia ecoar na mente, deixando transparecer pensamentos claros.

Somente Elene parecia chocada, seus olhos dilatados demons-travam que ela parecia ver um fantasma se materializar. Do semi-

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círculo, Sean e Mateus perceberam a nítida transformação em pavor, como se as fábulas do que ouvira se condensassem em verdades induvidosas.

Em breve eles se deparariam com a fonte das sinistras gargalhadas entrando no campo de luminosidade das lanternas que lhe davam a opacidade e a transparência de uma névoa viva e coagulada que era bem reconhecível por Sean. Apesar da fragilidade da constituição de seu corpo, ele ainda era imponente em sua armadura luzidia que refulgia os três pássaros talhados magistralmente na couraça argêntea.

Não parecia muito mais velho do que Mateus, mas o amargor de milênios havia deformado sua jovialidade em rudez conformada por incontrolável desejo de vingança. Domínio tão vicioso que lhe cegava substancialmente o quadro em que se encontrava. Só, em júbilo histérico, quase em êxtase.

Seu delírio extrapolava a tudo, até mesmo seu controle interior que estava claramente estraçalhado. O cavaleiro caminhava para junto dos quatro sem preocupações maiores. Entretanto Lucas estertorava como se fundindo à psique do espírito, como se ambos fossem um. As ondas do pensamento desencadeado pelo senhor das trevas estavam sendo captadas pelo garoto que ainda se debatia em sono profundo de um desmaio forçado. Elene acariciava-o procurando evadir-se da situação ao qual jamais se preparara.

–– Onde está Tiago! O espírito retornou à sua atitude de desdém e inflexibilidade,

erguendo impávido e orgulhoso olhar para Mateus. –– De onde jamais deveria ter saído. –– e parecia verificar as

profundezas do salão obscuro certificando-se. –– Esta é a sua casa. E o meu inferno.

Mateus olhava para baixo, para onde o cavaleiro dava a entender, para onde as letras fundas assinalavam a tumba de Allan. Em vão ele se agachou perscrutando o cerne desocupado da sepultura trincada. Tiago não estava ali. –– Mas o que meu irmão tem a ver com tudo isto?!

E estas palavras afetaram o fantasma de modo inusitado. –– Escapou de mim, várias vezes. Ele deixou que os infiéis

assassinassem Raphael.

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Que Raphael? Mateus parecia confuso, não obstante adiantou-se até ficar cara a cara com o mensageiro de quem Sean descrevera com certa compaixão. Como poderia ele ter se enganado? E o cavaleiro que fora Max pressentiu suas dúvidas com renovadas e insólitas impressões. Ele estava começando a se sentir acuado, preso por circunstâncias imprevistas.

Sean observou esta mudança. –– E se Tiago não fosse este Allan? Estaria disposto a causar a mesma dor que lhe causaram no passado? E o que Raphael pensa disto?

–– Nunca o re-encontrei. –– Quem é Raphael? –– perguntava Mateus já enraivecido. –– O seu irmão. Ele acha que foi Allan quem permitiu que o

matassem... –– Allan o matou! –– gritou em resposta. Com tato Sean apresentou os fatos enquanto Mateus se

distanciava à procura de Tiago. Quando se aproximou da caverna vislumbrou centenas de nichos tumulares selados por cártulas franciscanas, com nomenclaturas de quase-santos e pomposos religiosos de 700 anos. Levaria horas para descobrir se Tiago estaria sepultado em algum. Para piorar a situação, a água que descia para aquela cave era demasiadamente volumosa, subindo rápida, além da capacidade de escoamento das diversas fissuras existentes. Pequenos vórtices sugavam ruidosamente o líquido barrento que assustava os ratos para novas frestas.

–– Ele não tinha como lutar com a mão machucada! E mesmo assim enfrentou os homens de turbantes. E onde você estava? Heim! –– quem sentiu arrepios foi Sean desta vez.

Desconcertado, Max ainda refletia no que o menino enxerido havia aventado. E se ele estivesse enganado quanto à identidade de Tiago? Era impossível, ele mesmo havia presenciado as características que tanto afiançara suas suspeitas. –– A mão machucada estava bem marcada com sua cruz. –– ele temia dizer, mas acabou falando em voz alta. –– Cuja cicatriz marquei para a imortalidade com minha lança antes...

–– Antes de se vingar... Uma vez já não foi o suficiente? Este é o problema da vingança, ela nunca acaba. Fazer justiça exige disciplina e a vingança, por ser emocional, não extingue a dor... perpetua-a. Nunca encontrará paz enquanto não perdoar.

–– Não quero a paz. Eu sou legião. –– e não se convenceu.

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Elene não olhava para a manifestação fantasmagórica, concentrando-se nos espasmos que Lucas re-encetava em espaços cada vez menores de tempo. Ela descobriu que quando se acercava de seu corpo, ele parecia se aquietar, relaxando os músculos e voltando a dormitar. Abraçou-o firmemente.

Se ela estava concentrada em cuidar de Lucas, Mateus destruía os lacres das urnas com a força desesperada de seus punhos sangrando. A cada estocada seu ânimo esmaecia pela inutilidade do intento titânico. Estava sem ferramentas e exausto.

O cavaleiro resmungava. –– Raphael passava muito tempo com aquele...

Sean precisava agir. Mas foi Tiago quem se antecipou. Abruptamente novo espectro nebuloso se distinguia em

esforço de se tornar nítido. Em instantes ela ganhou contornos familiares que provocaram ligeira comoção em Mateus e Sean. No entanto, ela fora passageira, se Tiago eclodira no ar como fantasma, isso queria dizer que.

–– Está morto, chegamos tarde! –– para desespero de Mateus que se lançou de joelhos. Seus gritos de dor atingiram o cavaleiro com reconhecimento da sensação. Em algum momento do passado, que se perdera na memória, ele havia sentindo o mesmo sofrimento.

O que havia acontecido de errado! Porque não poderiam ter evitado o pior! Sean desconfiava que o compromisso havia sido quebrado. Com vergonha sentiu alívio quando a ansiedade tomou a forma de esperança. Sentia que tudo estava onde devia. Não sabia explicar.

Tiago se aproximou de Mateus exigindo compostura. Ele não parecia mais aquele garoto fanfarrão e atrapalhado, agia com segurança e estava determinado. Contornou o irmão e avançou sem encarar o amigo que estava perdido com a atitude. Tiago havia caminhado diretamente para Max, sem demonstrar medo ou rancor.

–– Termine o que começou! –– exigiu Tiago a Max. Mas o cavaleiro pressentiu que havia se enganado. Recuou

rapidamente, fugindo dos gritos de Mateus. Gritos que acordavam lembranças que haviam sido diluídas pelo tempo. A dor da perda que regressava com força. E ele percebeu que o desespero de

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Mateus jamais seria suficiente forte para que o atingisse com aquele impacto que provocava ânsias e temor. Estava com medo do garoto diante de si. A cada passo de Tiago, o mensageiro se afastava apavorado com a chance de que Deus havia lhe pregado uma peça.

Tiago esclarecia suas suposições que afloravam à alma amargurada: –– Tanto tempo desperdiçado, meu irmão!

Ninguém estava pronto para estas palavras, Sean era quem mais parecia absorto com a revelação de que o amigo estava completamente a par do que dizia. Mesmo para Max –– Quem é você? ––, que sabia a resposta. Tiago, ou Raphael, adiantou-se antes que o fantasma pudesse reagir e tomou suas mãos. Foi o suficiente para que Max tombasse em choro convulsivo, aceitando o reconhecimento que seu coração apreensivo já havia percebido.

Tiago olhava diretamente para Sean. –– Percebe que só éramos peças de nossos próprios

comprometimentos? Estamos onde exatamente gostaríamos de estar.

–– Mas eu não entendo!!! –– Precisava de mim, assim como eu de você. Trazê-lo até

nós não foi difícil. O orgulho de Max permitiu que o trouxéssemos até aqui para que ele visse... –– e não concluiu. Tiago estava se transformando, seu corpo se modificara, ficando semelhante a Raphael. Como num espelho, Sean percebeu que ambos eram idênticos, apesar das diferenças que caracterizariam a falta de perspicácia. Uma imitação renovada de Max, altiva e feliz. Como não havia percebido as semelhanças entre o mensageiro e o Raphael de seus sonhos?

–– Que ele visse o quê? –– e Raphael também não concluiu, revidando a pergunta com um sorriso.

Para Mateus nada fazia sentido, havia perdido o irmão e não conseguia reagir entregue em ódio que emanava de sua aura e atingia o fantasma do cavaleiro com ressonância. As dores atrozes que se misturavam ao ódio se mesclavam, desmantelando a pouca lucidez que ainda conservava. O trabalho de regeneração não estava concluído e corria perigo. –– Max, o seu ciúme não permitiu perceber que eu precisava ajudar Allan. Só porque ele não sabia se cuidar, não quer dizer que estava negligenciando o nosso amor fraterno. –– O mensageiro era atingido em seu âmago,

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exteriorizando as feridas de sua alma. Seu rosto se escondia atrás de sangue intumescido e seu corpo estava alvejado por flechas que rompiam sua armadura opaca e deteriorada. Sua cicatriz provocava lágrimas de sangue. A despeito de serem gêmeos, Raphael e Max não poderiam ser mais diferentes. –– Erigi o meu caminho enquanto conservou-se estagnado. Nunca estivemos tão longe e tão perto. –– e Raphael se abraçou ao alquebrado vingador que aceitou dolorosamente o fato.

Tiago retornou para Mateus que se ligava fortemente ao campo psíquico do agressor evitando que ele conseguisse vislumbrar a razão. –– Pare Mateus! Estas coisas tinham que ter acontecido...

–– Mas não precisava morrer! –– baixou a guarda por instantes. O que permitiriam que o mensageiro ouvisse parte da conversa.

–– Se não tivesse tentado, o preço teria sido a minha alma. Max precisava de mim. E nós precisaremos dele. –– Max se aproximava enquanto os laços de rancor se desmanchavam. –– Não é o momento de mais sofrimento. Sabemos o quanto isto pode durar... –– observando o cavaleiro prostrado que tentava clarear suas ideias mortas.

–– Vim te buscar! –– Tiago se voltava para Max. –– Estou cansado, eu vou para onde quiser me levar. Não antes de Raphael voltar a ser Tiago e fixar-se num

pensamento de se devia ou não... –– O que devemos fazer com a legião?

O mensageiro havia esquecido dos seus irmãos de infortúnio. Bastou esta interrogativa para que ele desfilasse toda sua justificativa já errônea. De seus lábios brotavam as mesmas palavras amargas de seres egoístas e orgulhosos de seu raciocínio. Os homens contaminaram o solo com pestilências desnecessárias, cultuaram a frugalidade de possuir mais e mais. E isto não era nada. O medo se espalharia sobre a terra e as incertezas disseminariam o pânico e o tormento entre as criaturas.

–– Como bem sabeis, a massa humana, embora se acredite livre para fazer o que deseja, na verdade torna-se a cada dia mais escrava de seus próprios instintos animais e, assim, presa fácil de desenvolvidas mentes do mal. São desequilibrados e indecisos, fracos e displicentes no viver. –– reconhecendo a sua apropriada

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classe de ser enfermo e culposo que promoveu esta condição de submissão e humilhação. Por pouco não se levou pela loucura de seu remorso quando percebeu que, naquele desatino, prejudicou tantos em sua desventura.

–– Ainda não nos disse o que fazer. E os exércitos acampados em Paris? –– Tiago soava enfático para que Max não perdesse o foco.

–– Não passam de uma leva de espíritos controláveis e persuadidos a fazer o que lhes digam. Hipnotizados pela força de vontade de seus donos. São muitos, porém agem pelas emoções doentias que se repetem em seus pensamentos fragmentados. –– parou por um tempo, concentrando-se em uma resposta que fosse efetiva contra os generais. –– Eles são alimentados pelo ambiente, existe uma simbiose entre vivos e mortos que garante as suas ações, ou vocês acham que eles conseguiriam o que planejam sozinhos? Aproveitem que a cidade está desocupada...

Não era o que eles queriam ouvir. –– Agora eu preciso levá-lo comigo. Devem se preparar para

a batalha. –– certificando-se de que Sean houvesse entendido. –– Logo estarei com vocês.

–– E você já sabia de tudo? De Raphael... –– falava Sean para Tiago, com novos olhos.

O garoto sorriu. –– Todos sabíamos, mas agora eu estou livre. Também se recordará, há uma grande verdade dentro de você. –– e antes que Sean pudesse se manifestar. –– Estava com saudades de você meu velho amigo.

O garoto acompanhado de seu outrora irmão, bastante combalido pela verdade, efetuava a despedida com um menear suave e direto. Havia certeza e tristeza.

Mateus não pôde impedi-lo. –– É um adeus? –– Por enquanto sim! Eu precisava resgatar Max. –– e Tiago

desaparecia com o mensageiro. Não haveria alusões aos manuscritos ou supostas teorias ocultas. O mal estava simplesmente lutando.

O mal queria só uma tentativa para manter o que era seu. E que todo o resto desaparecesse. E com ele, Deus.

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somos todos culpados.

Consternados pelo que ocorreu na penumbra de uma cripta obscura, galgavam os últimos vãos antes de recuperarem o ar puro. Mateus caminhava arrastado, com um Lucas em seus ombros que parecia reclamar e gemer num pesadelo permanente. Tudo estava cinza, ainda mais que transparecesse esse tom.

–– Poucas coisas parecem certas. –– disse Elene. –– Por que diz isto? –– Sean gostou que ela se pronunciasse. –– Porque perdi minhas convicções. Não percebo mais a

realidade das coisas. Jamais poderei estar certa sobre... Sean já ria baixinho. –– Este é o nosso erro. Achamos

demais. Mas pode ficar tranquila, nossa intuição, ou algo além da nossa consciência tenta equilibrar o jogo. É como se soubéssemos, mesmo sem saber.

Porém não a convenceu, e ainda tentava se satisfazer. –– Acha que Mateus vai se recuperar logo?

Ele realmente não sabia, contudo sentia que o pior ainda não havia passado. Havia todas aquelas hostes, como eles as enfrentariam? Elene se dispersava em seus próprios axiomas.

Sean aproveitava a oportunidade para avaliar Mateus melhor. –– É tão difícil quanto responder à minha. –– ela buscava

palavras que pudessem resumir uma particularidade do comportamento de Matt, complementando-se a si.

–– Quer dizer que... –– Nada disso. –– percebendo o caminho pelo qual o garoto

ia. –– Ele é um dilema. Consegue ser dois em um. Em alguns

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momentos ele está totalmente introspectivo, como em profunda meditação. Em outros ele age além de suas próprias forças.

–– Varia entre extremos. –– Sean conhecia esta sensação. Entre o silêncio e a explosão de pensamentos.

–– Quando resolve fazer algo ele realmente termina o que começa. Não há meio de impedi-lo.

E Sean estava imaginando o que aconteceria se Mateus não conseguisse terminar algo. Muito possivelmente era o que acontecia enquanto transportava Lucas com parcimônia.

Seu ferimento voltava a latejar provocando paradas constantes para um autoexame improvisado na sombra. Elene puxou-o para o foco de sua lanterna e vistoriou o hematoma, alheia aos protestos do garoto que gemia. Rasgou um pedaço de pano e molhou-o numa poça que suspeitava límpida antes de efetuar uma limpeza forçada do rosto imundo. Com a mão livre segurava firmemente o queixo que bailava aos movimentos precisos. Sean fazia careta a cada raspagem mais enérgica. O que causava as dores era o cabelo seco e coagulado em volta do corte já fechado.

–– Assim vai demorar! –– ela reclamava dos gemidos e do desaparecimento de Mateus e Lucas alguns metros adiante. E Elene não se achava tão abalada com tudo o que aconteceu, pelo menos era o que supunha, mas não pôde conter uma sensação ditada pela circunstância. Parou o que estava fazendo e olhou para Sean com outros olhos e seu coração imediatamente disparou.

O que havia acontecido para as coisas mudarem de visão? Ficou tanto tempo admirando Sean que ele desconfiou que algo havia verdadeiramente despertado entre os dois. Ele não perdeu tempo, desvencilhou-se das mãos generosas e, com a desculpa de que Mateus já se achava longe, acelerou o passo, encabulado.

Ela o olhava certa de que o garoto havia se transformado, como se houvesse perdido sua natureza ingênua, como se sua infância jamais pudesse ser recuperada. Ele tentava não pensar, não era o momento, contudo sentiu certa palpitação que causava durável atordoamento de pernas bambas e imprecisas.

Sua face enrubesceu-se. Tão logo alcançaram a superfície insurrecionada, que era

fustigada por ventos colossais e granizo espesso, Guarini se apresentara mudo e cerimonioso. Mateus parecia apático e passou

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adiante com o propósito de evitá-lo a todo custo. O indiozinho advertiu silencioso para que Sean fosse falar com Mateus. –– Aonde vai?

–– Para casa. Tenho que encarar o que houve. –– bastante grosso e impassível.

–– Os exércitos... Temos que fazer algo imediatamente, não acha?!

Num estouro Mateus empurrou-o com força. Seus olhos estavam vermelhos com a raiva destilada pela mitigação do acontecido. Não se perdoava por ter fracassado com Tiago e não perdoava Sean por tê-lo conduzido para o patíbulo.

E Sean não parecia seguro de poder agir, aceitava abertamente a culpa pela morte de Tiago. Lembre-se, há uma grande verdade dentro de você. Que verdade? Parecia ouvir dentro de sua cabeça. Tentou trazer Mateus para si mais uma vez.

Com novo empurrão recebeu uma ressoante bofetada que o jogou para junto de Elene. Sean sentiu que iria desmoronar em si. Culpa, remorso, raiva e... Precisava reavivar suas recordações se quisesse compreender sua aflição sem fundo.

Assim como era levado pelo torvelinho de sensações, Mateus precisava revidar. Largou Lucas apressadamente aos cuidados de Elene e partiu para cima de Sean como nunca o fizera antes. Pegou o garoto, não tão compassivo, pelo cangote e se preparava para socar seu rosto, porém não conseguia forças e abandonou a atitude. Ambos estavam exaustos sem que tivesse acontecido uma luta. E ambos soluçavam amargurados debaixo da chuva interminável.

Tomavam consciência de que não haviam culpados. Circunstâncias desconhecidas, dívidas de um passado remoto

que os tornariam integrantes destes eventos catastróficos. Eles se abraçaram comovidos pela dor da perda ainda tão recente e nada digerida. Para Sean, rememorar estas emoções, livrou-o do imenso peso que carregava em suas costas por séculos, já que não pôde salvar Raphael. E quem ele fôra regressava para a sua memória em frações pouco compreensíveis.

–– Não desconfiava de que eram tão apegados. –– Guarini

tentava apressá-los de modo tão pouco desembaraçado. O que provocaria o riso dos dois, ainda caídos no meio do asfalto,

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atingidos pela chuva ilimitada. Ergueram-se revigorados, mas ainda estavam sem diretrizes. –– Sigam-me!

O trajeto seria longo e as pernas queriam trégua. Mateus observou os veículos estacionados e selecionou um aleatoriamente antes de se lançar irracional. Investiu com violência, esperando que o vidro espatifasse, entretanto a tentativa seria seguidamente refeita antes que Guarini mostrasse o seixo solto que executaria, sem dúvida, o objetivo. As águas atingiam poucos centímetros de desconfortável caminhar.

E a cidade estava absurdamente silenciosa até que, com a quebra brusca, o veículo começasse a buzinar e piscar suas luzes de advertência obrigando o índio a interceder diante da pouca argúcia de Mateus. Com um assobio agudo e célere surgiu a solução que se esgueirava pelas fachadas protegidas dos respingos furtivos. A boitatá deslizava corcoveando, dando a impressão de que sua claridade natural se estendia pelo percurso que deixava num rastro mais do que luminescente. Num último salto levantou vapor enquanto se abrigava dentro do carro que logo após se emudecia.

Assumiram o interior como se estivessem atrasados para o compromisso, Mateus puxava vários fios do painel esperando que recordasse o método de furto mais eficiente.

–– Bem, tudo aqui me parece elétrico! –– Guarini se aconchegava no esplêndido banco traseiro de couro bege aguardando o momento de sua atuação, no entanto não tinham tempo para mais brincadeiras. –– Pega, Mbaê!

O veículo roncou e as portas se fecharam, a pequena salamandra havia acionado os sistemas eletrônicos com suas faculdades impressionantes. Ela se rejubilava.

Elene ficaria com Lucas, protegidos sob o toldo enquanto eles agiam. Ela acenou concordando, não poderia ajudar numa guerra onde os inimigos não eram visíveis e provavelmente invencíveis. Agora ela poderia chorar escondida. Lucas parecia dormir como um anjo.

O índio corria tão rápido à frente que eles não conseguiam

alcançá-lo. E esta era a finalidade de Guarini que não queria falar e dar tempo para que a legião começasse a expandir seus tentáculos para fora do campo de marte. Sua parada seria

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interrompida pelo amontoado de carros mortos em congestionamento perene. Adentraram até onde podiam antes de abandonar o último bastião de segurança. E o carro se camuflava em meio àquele cemitério de aço.

Guarini não perdia o ritmo, saltando entre os automóveis repudiados durante a evacuação da cidade. Entrementes, ele desacelerava o passo quando percebia que eles haviam parado para respirar fundo. Puxando ar com rapidez, encurvados pelo cansaço que causava taquicardia e leve tontura. Mas nada comparado com o que sentiriam quando vislumbrassem a esplanada com seus mórbidos seres que vagavam escravizados pela invigilância de suas almas. Não estavam sendo afetados pelos excessos de seus corpos deteriorados, contudo pela onda energética que emanava daquela aglomeração de muitos milhares de espíritos maléficos.

–– No way! –– Oh! Sim. –– rebatia Guarini que procurava um meio deles

poderem ver todo o exército em ação. O telhado da Escola Militar serviria como base de operações. Protegidos pela cúpula dos olhares indesejados enquanto poderiam admirar os primeiros sinais de uma conquista bizarra. Um trovejar duradouro silenciou os ruídos do turbilhão fantasmagórico.

Eles propunham se organizar em blocos de manobras marciais. Milhões de ferrenhos soldados teciam as suas posições de batalha em detrimento de sua hegemonia declarada. Ademais, Mateus parecia pouco convencido de que ainda teriam alguma vantagem quando Tiago se encostou sorrateiro, trazendo gritos assustados.

–– Parece que viu fantasma! –– apesar da situação, Tiago não pôde evitar a oportunidade mordaz. –– Temos pouquíssimo tempo, Guarini. Já notificou os guardiões de que precisaremos de todos os grupos de assistência?

–– Sim. Ainda que. –– Então seremos menos do que o previsto. –– Tiago agia

com desenvoltura e vocabulário que transparecia outros conhecimentos. Ele estava estranha e plenamente a par do quê estava se passando.

E virou-se para os viventes que não entendiam nada. –– Gostaria que vocês começassem o espetáculo.

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E Mateus e Sean se olharam intrigados com o apelo. Tiago ergueu os ombros. –– E então? Antes que pudessem indagar o que poderia ser esta

intervenção, os exércitos começaram a se movimentar aos gritos de seus generais ensandecidos. Rommel urrava palavras de poder hipnótico com sua mão erguida como outrora. Sua declaração beirava a comoção de seus soldados que elevavam as suas armas. As bandeiras tremulavam suas insígnias de dor, plantadas pelo sangue e mantidas pelo medo. O coronel repetia e repercutia a mesma fórmula que levou impérios a submeter nações.

O capitão Sixderniers obedecia. Herr Rommel queria o poder e o conhecimento dos dragões,

mas estava muito longe de consegui-lo. Estava muito longe de compreender os desígnios dos senhores do mal. Os demais não sabiam o que queriam, controlados por sentimentos baixos e movidos pela soberba de se acharem maiores, melhores, tal qual os pensamentos dos vivos que vagavam pela esfera etérea e realimentavam tais sentimentos. Todos somos culpados.

A aglutinação de seus ideais deturpados conseguia adensar a atmosfera que os cercavam, os objetos que foram abandonados pelos parisienses chegavam a flutuar sem padrão. Sustentados por força grosseira e pesada daqueles espíritos.

Ao que parecia, a flâmula solitária, com seu simbolismo de liberdade, igualdade e fraternidade, estava condenada a ser engolida e olvidada pela avalanche luciferina. O odor pútrido e as sombras de fuligem percorriam as ruas limítrofes como uma doença que percorre as artérias. Não iriam contaminar o mundo com sua vaga de desespero e martírio desmedida. Todos teriam que ser submetidos à Lei.

Chegou a Hora do Basta. –– Precisamos de vocês. –– Que podemos fazer sem um plano! –– gritou Mateus. –– Quem lhe disse que isto não foi muito bem planejado! ––

achava-se no direito de falar, Sean, que se virou para Tiago que concordou com um sorriso breve antes de serem interrompidos.

Um cavaleiro tresloucado invadia o campo em galope infatigável para o animal do qual dependia, investia violentamente contra a anca do cavalo que entrou pelo eixo do largo gritando ensurdecedor: –– Eles estão chegando, os casacos vermelhos

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estão chegando! –– e o soldado americano delatava a chegada da comitiva de contenção. O fantasma abria o eixo até o veículo blindado que dava sustentação à verborragia do coronel promovido a imperador. A chuva despencava com ímpeto que levantava uma névoa aterrorizante de uma muralha esbranquiçada. Os últimos parisienses escapavam atemorizados com a devastação das águas.

–– De quantos homens estamos falando? –– perguntou Sean. A torre Eiffel desaparecia, sendo suavemente absorvida. O

céu rodopiava negro. Fortes ventos sacudiam as árvores. –– Poucos, bem poucos... –– frisava Tiago que esperava a

intromissão de Guarini. De repente a dilatação dos soldados draconianos parecia ter se

extinguido, os espectros pulsavam e retrocediam ao seu ponto de aglomeração no campo de marte. Milhares de almas aturdidas pareciam fugir de algo. De todas as ruas que irradiavam daquele platô nasceram frentes de limitação. Eram os guardiões de muitas tribos espirituais envolvidas com o progresso da humanidade em muitas outras regiões do planeta. Ashantis negros davam passagem aos iroqueses e navajos que rechaçavam o que pareciam ser confederados. Outros, como os sioux e os maias, davam suporte às investidas dos últimos dos moicanos convocados. Os índios xavantes eram aconselhados pelo cacique Thuerê a manter uma linha de segurança intransponível em torno dos exércitos de ocupação. O avanço lento, porém irremovível dos indígenas, foi observado por Naxamuñaca e seus co-autores com integridade.

Seminoles cercaram os Mariners em uma área alagadiça do vergel contíguo à torre de ferro. Não havia bons ou maus exércitos, só aqueles que escolheriam os lados numa batalha. E toda guerra teria heróis e vilões em ambos.

No entanto, os homens da legião se posicionavam para atacá-los, assim que foram descobertos pela delação do inimigo. O que eles precisariam para ganhar tempo? Pressentindo tais pensamentos o indiozinho Guarini se manifestou. –– Dê-nos uma posição privilegiada e rechaçaremos o combate!

Era isso, eles precisavam de uma vantagem estratégica, mas qual? –– As muralhas de Philippe Auguste! –– antecipou Mateus. Contudo as tentativas não lograram êxito, era demasiado

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complexo, pois jamais haviam sido erguidas naquele campo em nenhum momento da história. Teriam que ser criadas do nada, sem o suporte de reminiscências etéricas. Eram só dois garotos contra uma maré de espíritos obscuros.

–– Simplifique! –– falava o Arcanjo que se revelava como reforço inexpressivo. –– Morros. Crie morros como os em Waterloo! Colinas, massas de terra cobertas de grama, muitas colinas... –– repetindo Bonaparte e Wellington.

–– Não consigo, não sozinho. E os homens que estavam ao seu lado começaram a

concentrar as suas energias num só objetivo. E as sinuosidades e contornos translúcidos ganharam forma e expressão. Um amálgama de verdejantes elevações se infiltrava nas construções existentes, fundindo-se. A concentração destes elementos seria forte suficiente para trincar alguns edifícios que seriam desmantelados pela força do rio. Havia um silêncio imprevisto que estancou as ações de expansão de Rommel.

O silêncio seria quebrado pelos adversários benfeitores. Tambores e percussões ritmadas nasciam além do horizonte das cristas dos morros plasmados. Batiam nervosos, acelerando os corações dos presentes. Uma marcha gaulesa era acrescida das gaitas de foles.

Antes que fossem surpreendidos pelos inimigos, a legião adiantava a marcha dos carniceiros, soltando-os de suas coleiras. Os homens se agachavam, alimentando suas armas. Os trabucos e canhões estavam sendo recolocados e as cordas eram puxadas em coro. Faltava muito pouco para iniciar o combate.

Guarini finalmente se intrometera. –– Eis nossos irmãos! Naxamuñaca, imponente em sua capa de alvo esplendor,

estava escoltado de um homem à romana, no ponto mais alto daquela posição idealizada. Ergueu a mão e o exército surgiu sobre as montanhas com suas lanças e bastões de persuasão. Eram as doze legiões.

Holofernes e os seus sintagmas davam um passo adiante e precipitavam a ação da legião satânica, que mesmo atingida em seus ânimos, ainda respirava aliviada pelo número superior de soldados e elementos-surpresa que guardavam além do nevoeiro.

Sem que pudessem movimentar suas tropas, a legião cuspiu as bolas de fogo. Um longo canhão de ferro fundido, ornamentado

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com relevos neoclássicos, recuou de ímpeto contra os soldados de uma guarnição naval em terra. O disparo sincronizado criava uma linha de impacto que impossibilitaria que os anjos não fossem atingidos.

Naxamuñaca ergueu sua mão pela última vez e os projéteis bateram contra uma parede translúcida criada pelos seus desejos. Até então tais homens não desconfiaram que estavam presos por um escudo maior. Por um tempo os fantasmas se aquietaram em visível espanto e incompreensão. –– Não estamos em uma guerra. Eles não sabem, mas não passam de poucos revoltosos. –– o índio se dirigia para Sean.

–– Seres de Xibalba! –– pronunciou com veemência para a legião. –– Hoje serão julgados pelos seus crimes contra a humanidade! Vocês vieram em nome de uma ordem destituída, para defenderem uma causa que já foi vencida pelo próprio filho de Deus.

–– O que está havendo? –– Mateus se dirigia a Sean e Tiago ao mesmo tempo.

–– O desmantelamento dos baluartes do mal. –– sussurro de Jean que estava espantado com o que advinha.

Os soldados aguardavam. –– Não se aflijam por demais, pois estão livres para escolher o tipo de política que quiserem adotar a partir de agora. –– Naxamuñaca observava a turba estagnada enquanto os generais e seus capitães gritavam ordens. –– Não serão feitos prisioneiros de guerra nem servos ou escravos, como estão acostumados a ver entre os seus superiores das regiões infernais. Nada, absolutamente nada irá impedir que o progresso espiritual chegue aos povos do mundo.

Num impulso de raiva, Sixderniers e os seus homens soltam as feras que galgam velozmente contra o grande índio que ainda estava com a palma de sua mão levantada. Com um movimento suave ele cerra-a atingindo os animais com força indefinível. Os seres caem e se contorcem, recuperando suas formas humanas que haviam sido manipuladas por espíritos malignos com o propósito de se tornarem os cães de guarda dos demônios.

A mão se abriu e os céus se abriram afastando o caos e a escuridão que se adensava. A névoa se dissipava e os contornos da torre regressavam. O vale surgia plenamente.

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Antes que pudessem perceber, seguidos estrondos explodiram além dos arcos metálicos com muita fumaça e fogo. Projéteis zuniam de quatros bocas giratórias que saiam das brumas provocadas. Erraram o ângulo.

O barulho do mecanismo que movia os canos dos canhões de duas torres de artilharia que estavam fundeadas no rio Sena chamou a atenção dos garotos. A embarcação colossal estava trancada pelas apertadas margens dos cais, impedindo a visão do Palais de Chaillot e da Defense mais além.

A suástica desenhada à proa recordava-os de que os fantasmas se prepararam com esmero. A nau capitânia renascia imponente diante da surpresa dos garotos. Numerosos tanques faziam linhas de avanço secundário. Os primeiros seriam os soldados munidos de espadas, lanças, metralhadoras e fuzis. Montados em seus cavalos ou seus veículos de assalto. O couraçado Bismarck ressoava as sirenes antes da detonação.

–– Onde fui amarrar o meu cavalo! –– reclamava Mateus. E os guardiões atacaram. Com orações suspeitas. Sixderniers avançava com a espada alinhada para os corações

dos capitães da ofensiva e dos garotos dos manuscritos. O romano se aproximou de Tiago, olhando para Sean com

curiosidade. –– Chegou a hora! –– Tiago segurou a mão do homem que desprendeu o manto escarlate e ambos esperaram a aproximação dos primeiros embates. –– Cadê o seu irmão?

Mateus se preparava para seguir até os dois quando, detrás dele, ergueu-se quem legitimamente esperavam. Tiago apontava para Max que caminhava resoluto para a frente de batalha. Havia adquirido um novo fulgor, sua armadura emanava luz avigorada pelos anseios dos seres superiores que procuravam incentivar a transformação interna do cavaleiro. Este seria o trunfo.

Os soldados, muitos, pertenceram às hordas do antigo senhor e que se arregimentaram com as demais quando ficaram órfãos. Sixderniers e Rommel se encarregariam de tomá-los para si. Contudo não estavam prontos para a visão daquele ser decaído.

–– Ainda não estou seguro. Não mereço esta confiança! –– Max se pronunciava temeroso de seu remorso.

–– Tem a oportunidade de reverter todo o mal que fez, com o bem. Ou prefere sofrer até que seu débito seja extinto? –– se pronunciava Gaius com uma sobrancelha arqueada.

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Contudo seria Tiago quem o convenceria. –– Oras. Por séculos eu tento me aproximar de você, mas a sua dor não permitia o amor. Estava cego de raiva. Estas criaturas precisam saber que é possível ser feliz. –– estava sendo criança.

–– Como ser feliz quando lhes fizeram sofrer tanto? –– Depois que tudo terminou? Por que estendê-lo? Não

seriam culpados de fazer o mesmo? O que ganham se tornando maus?

Max readquiriu ânimo e decidiu responder por seus erros prosseguindo para a turba estática. O capitão Sixderniers parecia assustado com a aparição e, entre suas opções, preferiu aquela ditada pela cólera quando disparou seu corcel contra o indefeso traidor. O mensageiro de Jeanne não sabia que sua nova condição emanava energias do qual ignorava a fonte.

Rommel parecia ofegar apreensivo diante da investida solitária de seu aliado de guerra. Todo o esforço de ofensiva parecia estagnado em seu torpor. Muitos fantasmas haviam recuado em suas prerrogativas e ideais. O colérico se afastava da proteção de seus batalhões para entrar em terreno neutro com a intenção de liquidar o problema antes que a coesão dos espíritos dominados fugisse ao controle.

A prioridade dos guardiões era evitar o confronto, transformando o campo de guerra em palco de paz. Nenhuma arma feriria aqueles seres doentes que precisavam de cuidados morais. Os guardiões implementaram o plano cuja idealização havia sido prevista por milênios e cantada em profecias e prometida por seus cristos. Os últimos filetes de água cessavam, trazendo o odor primaveril das árvores que floriam em uma outra dimensão. Entretanto era uma mutação sutil, os espectros ainda não diluíram as suas intenções de conquista geradas pelos dragões.

Tiago se afastava para encontrar Holofernes de joelhos em posição de reverência, ou porque precisava se aproximar dos cochichos secretos do garoto. O grego logo após concordava, levantando o seu olhar para onde Mateus e Sean estavam protegidos da linha de enfrentamentos. Distante, Tiago também piscaria e apontaria os dedos antes de seus sonoros tsc. Gaius notava Sean com importância redobrada, pois que ele não entendia toda aquela atenção dos espíritos que cochichavam assim

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que o viam, e seguiu adiante com Tiago segurando sua mão depois de uma rápida corrida entre ele e o grego.

–– Eu estarei esperando vocês lá. –– berrava Tiago preferencialmente a Mateus. Por alguns instantes, Sean viu um tênue cordão prateado se estendendo de Tiago.

Max já se preparava para ser atingido pela loucura do capitão quando este parou abruptamente, atingido pela arma mais eficaz de todas, o arrependimento. Sua mente foi invadida pelas recordações do passado. De todo o mal consciente e aquele obliterado. Dos amores daqueles que desapareceram de seu convívio. Daqueles que amará pela eternidade. Onde estarão? O choque de emoções condensadas num único momento provocou a sua derrota, tombando inerte no campo de combate.

Desmaiou diante da verdade. Os soldados que tentavam executar suas ordens pareciam sem

forças e recuaram. Abriam espaço porque o cavaleiro passava. Logo atrás, algumas dezenas de metros, vinham o legionário romano e o garoto.

Ninguém tentava nada. Entre os exércitos, em campo liberado para os entraves de

uma luta sem trégua, espaço entre opostos, palco das manobras de uma guerra iminente, era ocupado por luzes que coagulavam. Tais espectros ganhavam forma como se fossem reflexos de um espelho disforme. As hordas ínferas eram clonadas por símiles que sorriam. Milhares de homens eram confrontados pelo reflexo do passado. Eles estavam felizes, eles eram o que de melhor sobrevinha de suas almas. Recordavam os melhores dias, os mais prósperos dias de uma vida distante.

Para desespero do coronel acuado que gritava impropérios e ordens diretas de avanço. Porém até ele era atingido pelas emoções de um passado que tentava a todo custo esquecer. Tentava se concentrara em seu ódio, porém não iria conseguir manter a razão.

O cavaleiro estava a poucos metros do coronel-rei e antes que ele fosse desferido pelo golpe fatal, Max falou: –– Como eu disse, os dragões nada podem. Ninguém virá te socorrer nesta batalha perdida. Desista e siga adiante. Todos estão a ponto de dar um salto evolutivo, para tanto devem conhecer a si mesmos. Não

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serão mais toleradas a rebeldia e a escravidão, ainda temos tempo de reparar o mal que fizemos. Venha conosco!

–– Jamais! –– e seu último ato traria a explosão de suas energias controladoras. Os fantasmas da legião responderam com todas as suas forças. E foram obstruídos pelo ato de transformação de seus pares jubilosos. Eles foram substituídos por outras verdades. Ficaram paralisados diante daqueles que amaram e retornavam para abraçá-los ao término de suas lutas internas. Estavam ali para dizer que não foram esquecidos. Uma menina de camisola desprendeu-se da proteção dos guardiões e caminhou para um soldado que soltou sua carabina e caiu em pranto. –– Estou tão exausto, minha filha!

–– Eu já sabia, papai! –– e a entrega se repetiu como fogo rasteiro que consumia aqueles homens enfermiços. Muitos guardiões choravam comovidos.

Tiago e Gaius já estavam no ponto médio daquela aglomeração quando uma intensa luz rompeu o céu e atingiu o couraçado que terminava de posicionar suas torres de disparo. A energia desestruturou a nave de combate, absorvendo aquela matéria abissal. Pois a onda atravessou-a consumindo o mecanismo numa implosão de brilho insuportável. E antes que o feixe se expandisse engolindo a legião, Sean viu Tiago desaparecer. –– O que houve com Tiago?

–– Somente a força desprendida pelos vivos poderia destruir as obras dos espíritos maldosos. –– resumia Jean.

–– Quer dizer que ele ainda está vivo? –– Mateus não esperou a resposta e se afastava ligeiro para os túneis de Cordeliers. Antes que Sean o acompanhasse, pôde ver os soldados sendo socorridos e resgatados pelos guardiões. A luz que os envolveu havia sumido, levando todas as armas e veículos que tiveram suas estruturas dilaceradas por forças incomensuráveis. Aqueles que ainda não estavam preparados eram libertados. Estes espalhariam a verdade entre os seres abnegados aos senhores das Terras Baixas.

–– Este exército não passa de um grupo avançado capaz de se libertarem da escravidão dos seus senhores. Porém estamos em meio de bilhões de almas menos suscetíveis, que neste exato momento chegam aqui. –– Naxamuñaca queria que Sean soubesse o que teriam que enfrentar.

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–– Mas o senhor é o líder. Tio Xaxá riu-se. –– Desta incumbência, sim. Hum. Eis que

prevalece a experiência e o respeito. Mesmo assim não possuo todas os elementos que gostaria, não é curumim? –– e piscou de modo a gerar mais desconfiança.

–– O que está querendo insinuar... –– o bom índio se afastava sem mais explicações.

Tudo se estagnava. Um silêncio inimaginável cobriu as redondezas, as águas se encrespavam movido por ventos raros.

Abria-se uma clareira luminosa onde Max se destacava no oceano de seres entorpecidos que foram anestesiados pelas forças superiores. Diante de si, a energia se reuniu dando forma a uma pessoa que resplandecia sua condição angelical. Uma explosão de ar varreu o largo recuando a água em ondas concêntricas. Sem que ele percebesse, sempre fora o mensageiro de Jeanne, mesmo que as insinuações tivessem sido criadas para gerar um personagem. A padroeira dos franceses, com sua flor-de-lis bordada à carapaça de ouro, viria buscar Max depois de longas trevas.

Ele jamais acreditaria que a bela donzela de Orleans estava diante de si, oferecendo sua mão. Nem o mais luminar presente estava preparado para a aparição de elevada envergadura. Enfim, não estavam sozinhos. Os índios paravam seus afazeres para prestar reverência à santa que emanava todo o seu amor. Todos estavam agradecidos.

Ato contínuo, dois focos imprecisos se fixaram nos generais adormecidos, levando-os para além. As nuvens nervosas voltavam a se reagrupar, impetuosamente.

–– Obrigado! –– surgia Gaius ajoelhado diante de Sean. –– Pelo o quê? –– Dentro de pouco descobrirá que o que aconteceu hoje será

um marco. Para mim, no entanto, uma consumação. Logo devo seguir para Lugdunum para iniciar a propagação da verdade. Será uma longa batalha em curto espaço de tempo antes que...

Entristecido e cabisbaixo. –– Agora eu entendo. Sean se considerava estúpido por não conseguir captar o que

todos estavam insinuando. O romano, também notório por ser Longinus, continuou. –– Vai! Ajude Mateus com Tiago.

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O garoto se propunha a obedecê-lo quando: –– Por que todos estão de olho em mim? –– sem esperar que fizesse sentido.

–– Se não fosse por ti, a legião nunca se precipitaria. –– Sou o chamariz, então? –– Não. É amigo do planejador...

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compromisso.

Dentro em pouco a tempestade desandava a despencar sobre todos, com a mesma fúria que uma traineira sofreria numa tormenta em alto-mar. Por mais que as coagulações deletérias tivessem sido destruídas, a fonte dos pensamentos deturpados e envenenados, não.

Era necessário que as águas lavassem o ambiente destes miasmas condensados e acumulados pelos seres humanos que existiam na cidade. Suas mentes angustiosas seriam responsáveis pelo acúmulo de toneladas de pensamentos negativos. E estes pela perpetuação dos enfrentamentos entre irmãos.

As águas trariam a estabilização. E elas avançavam acima das margens, desmantelando as obras

destas formas-pensamentos espalhadas. Um símile de paragens infectas pela estupidez do ser humano, onde drogas e vícios eram perpetuados, seriam apagadas. O ser ignorante de suas necessidades lamentava a perda de seus bens, porém eram ofertadas novas oportunidades de restabelecer os ideais do bem. Trabalho, educação e respeito só seriam plenos com amor.

Os elementais da natureza acorriam no auxílio desta purificação astral, delineando espectros de luzes e sombras que muitos se lembrariam depois da catástrofe. –– Eu juro que vi luzes no céu! Juro... –– diriam muitos.

Muitos espíritos fugiam dos guardiões, se espalhando pelas

imediações do campo de marte. Eventualmente Sean era

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surpreendido por fantasmas tão chocados quanto ele. Estes encontros acabavam atrasando-o.

Mateus havia desaparecido. Precisava chegar até lá. Para onde olhasse, só encontrava barreiras e uma longa

distância a percorrer. Algumas gangues saqueavam e se digladiavam nas imediações de ruelas obscuras e suspeitas. De algumas janelas mal cerradas, cortinas tremulavam fustigadas pela ventania exagerada.

–– Eles não precisam de mim! –– Como pode dizer isto? –– era Guarini que se aproximava

sorrateiro em posição de guarda-costas. –– Seria imprudente se deixasse tudo acabar assim.

E ele pensou: –– Assim como? –– Fizemos a nossa parte. E o seu compromisso? Sean girou encarando-o com pseudorraiva incontida –– Então

me diga qual é essa obrigação, porque eu já desisti de descobrir qual seria...

Guarini parecia mais assustado do que o normal, o garoto ainda não havia se lembrado. Talvez a pressa fosse realmente inimiga da perfeição. O que Naxamuñaca e Marie pretendiam acelerando os eventos que culminariam com este singelo combate e que daria princípio aos mais inimagináveis conflitos entre o bem e o mal!

Quem seria este garoto? –– Bom, não faço ideia. Porém, pelo pouco que sabemos, é

primordial que se recorde do compromisso. Todos os guardiões parecem concordar quanto... –– e o indiozinho parecia escolher as palavras com cuidado. –– ao fato de que será você a enfrentar a maior das batalhas.

–– Quando? –– Hum. Muito em breve. –– para angústia dos dois. E se calaram. Um só queria saber o que estava

invariavelmente acontecendo sem que pudesse lutar contra. Outro se assombrava diante do desmesurado campo que emanava daquele moleque, pois era evidente que ele seria muito mais significante do que o guia quase-tibetano que o apresentara ao mundo dos loucos por confusão. E Guarini sabia o quanto aquele monge era respeitável. Poucos conseguiam iluminar uma casa com suas boas intenções, aquele menino, cujo passado era uma

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incógnita aos guardiões do bem, conseguiria acender um quarteirão inteiro. Quem seria ele?

Um estalo desanuviaria seus objetivos imediatos. Das profundezas do solo, um som rouco rosnava e escapava pelas aberturas do metrô. O carro destruído ainda estava fincado na entrada da estação Champ de Mars como havia sido deixado por Elene. A água, que atingia alguns dedos, escorria rápida para o seu interior em cascatas artificiais. Ondas concêntricas ainda emanavam do epicentro do grande choque energético que desintegrou o couraçado bélico, lavando o campo com marolas discretas.

–– Quer se arriscar? –– perguntava Sean para o índio que se entregou ao cansaço. Se ele queria compensar, teria que deixar o medo de lado.

Sean deslizou pelo carro, atravessando o metal retorcido antes de derrapar sobre o capô liso e cair de costas no piso azulejado do saguão. O guia já estava dentro, com seu farolete, clareando os vãos mais suspeitos. Começaram a descer alguns degraus quando novos estalos romperam com os ladrilhos trincados voando sobre eles.

Não passava da pressão da água forçando fissuras pela terra, era o que desconfiavam. Quando chegaram à plataforma, que corria como um caudaloso rio, ficaram à espera de que uma solução viesse boiando até eles.

–– Como você espera alcançar Mateus? Sean sorriu de modo a deixar Guarini com mais receio. ––

Quem disse que iríamos até ele? –– e o indiozinho parecia mais amedrontado do que jamais estivera em vida ou após ela.

–– O compromisso me chama até aqui. –– e demonstrava estar a par do assunto. Seus olhos faiscavam misteriosos.

Do escuro que refulgia as luzes do farolete contra a água, uma silhueta se mexeu furtivamente em direção a Sean. De todas as suposições que ainda lhe restavam, nenhuma poderia prepará-lo para o conflito que se amoldava.

A criatura das sombras virou-se para Guarini que recuou diante da ferocidade de suas energias. Não era capaz de manter a sua integridade diante desta força maligna, que mesmo aprisionada em seus calabouços vibratórios, conseguia locomover-se próximo à superfície cegante.

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–– Sou um dos antigos sete senhores. Nós não seremos esmagados sob os seus pés e nem afugentados pela sua espada de fogo. Muito menos cumpriremos as palavras dos profetas.

O ser enegrecido pelas emanações negativas deixava transparecer as suas intenções pelo aspecto ao qual se apresentava. Ser esquálido e cinzento, quase um escamífero, trajando uma peça escorrida de trapos esvoaçantes que parecia viva. Pele craqueada e olhos fundos que transmitiam sua ambição.

–– E o que o senhor deseja? –– sincero. –– Que se mantenha longe dos meus reinos. –– É disso que estamos falando? –– ele tinha certeza que não

era isto. –– Você acha que somos seres vulgares, vingativos e

determinados a fazer o acerto de contas, como os fantasmas que costuma observar? –– falou a voz da autoridade demoníaca como num contínuo plágio de suas verdades pervertidas. –– Será que só conhecem tais criaturas cuja natureza não difere muito da de vocês? Impossível que não possam ir mais além em suas observações e perceber que existimos muito antes de vocês.

Conquanto Sean se mantivesse seguro de que estava protegido por Guarini, talvez o draconiano não o ferisse. Mesmo que ele não desconfiasse que o índio estava preso a grilhões imponderáveis.

–– O que eu fiz para você? O espectro liberou sua cólera que ecoou pelas paredes curvas,

rompendo a estrutura superficial, destruindo o revestimento como se uma criatura estrangulasse o túnel deteriorado. Vários pedaços caíram muito perto de Sean que se deixou atingir por lascas de azulejos. De seu rosto escorria sangue dos arranhões múltiplos.

–– Como pode sangrar? –– quem o senhor supunha que o garoto fosse? E recuou sobressaltado com o ferimento. Jamais pensou que mandariam uma criança mortal contra eles...

–– Pois estou vivo! E quero continuar assim. E o que você ganha em manter o poder, o governo, a submissão de milhares de espíritos aprisionados pela sua força de vontade? O domínio?!

–– E este é o meu reino. Por sua vez, o que tem a me oferecer? A existência fugaz pelo esquecimento, forçado por este corpo frágil?

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Sean disse pausadamente para que as palavras formassem frases coerentes: –– Eu não posso oferecer nada. Mal compreendo as coisas que estão acontecendo. Mas posso dizer que não vejo vantagem em ter tanto controle sobre os outros. Se eu supus direito, os seus subordinados já estão se rebelando contra vocês.

–– Apenas uma questão de tempo para que eles recuperem a razão. Os dragões já foram suplantados por sua audácia.

–– Que razão! Você ensinou-os a ser como os dragões. Agora eles querem mais. Aprenderam a manipular as criaturas inferiores e adquirir o gosto pela ganância desenfreada. Querem ser como os pais... Eles não temem, agora querem provocar o medo.

Por um instante a criatura se calou em pensamentos divergentes. Seu desejo era terminar com o adversário que jamais pensou poder sangrar. –– Como sempre, vamos suprimir os rebeldes.

–– Posso ver. Muitos acabam sendo resgatados pelos guardiões para alívio dos senhores do mal. Contudo eu posso dizer quais são as vantagens de manter o domínio de seus reinos. –– o ser parecia acossado. –– Controlar bilhões de entidades sob o jugo da dor e do sofrimento traz consequências. O temor, a angústia, o desgaste são as tais vantagens. Vocês vivem transtornados com o fato de que, a qualquer momento, possam ser contra-atacados pelos filhos amargurados. Basta que a verdade...

E o menino percebeu o que o ser queria com o imediato afastamento de seus reinos. Ele temia que seus escravos fossem atingidos pela verdade. Que divisassem a felicidade. Estavam todos cansados. Bastava um sinal e a estrutura de domínio se desmantelaria. Este era o temor deste ser. Todo o seu poder se restringia à cadeia de comando.

–– Não sou mau. Julga-se amadurecido para me fazer ver a verdade de vocês como a única ou o ponto de vista que defende como o melhor para todos, inclusive para mim... Venho de um passado longínquo, contudo guardo a clareza desde a época em que a sua humanidade ainda estava mergulhada no barbarismo. Represento uma constelação de poder diferente da sua, cuja política é radicalmente divergente daquela que lhes é familiar.

Aquele do qual faço parte, luta para sobreviver, tanto quanto o de vocês. Ainda domino e impero.

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–– O que realmente espera com isso? –– Guarini se intromete. –– O seu egoísmo... Daí deriva todo o mal. Em todos os vícios, no fundo há egoísmo. Devemos combatê-lo?

A criatura não soube responder. Ela estava enfraquecida e seu orgulho não permitia ver com

clareza que suas tentativas milenares de evitar que seu reino fosse tomado estava alimentando a extinção de seu domínio. A chama do egoísmo não precisava ser atingida pelas luzes do alto, bastava seu combustível escassear e ela implodiria. No entanto não antes de causar o caos e estertores de seus últimos suspiros.

Sean aprofundou o duelo moral: –– Nem perca tempo, enquanto der importância à personalidade ele continuará só.

Guarini não era tão sábio quanto supunham seus protegidos e avançou contra a sombra com a intenção de resguardar Sean de um combate perdido. Tamanha estupidez só seria compensada pelo intuito de fazer o bem. Não obstante, ele seria anulado antes que conseguisse arranhar a armadura negra que se desdobrava em filetes escuros que se esgueiravam pela pavimentação.

–– Vocês não podem nada. Pela lei do retorno eu estou com a superioridade. Eu conheço o seu compromisso.

Era justamente o que Sean aguardava que a criatura dissesse: –– Tenho que te dizer que este já não é mais o meu compromisso. Tenho outro muito melhor. –– e sorriu sarcasticamente. Nem Guarini, nem o Senhor do Mal, faziam a menor ideia do que o garoto estava falando. Porém o indiozinho pôde vislumbrar quem legitimamente era Sean, boquiaberto diante da revelação de seu equívoco. Como ele poderia ter se esquecido dele?

O magno capítulo desde que Daniel o profetizou.

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o menor e o maior.

A fé é igual para todos. Move-se. Nos novos canais da rua de Rivoli, uma frenética e persistente

máquina tentava ganhar vida rateando. Um alongado e temeroso tempo que se anuviou com seu ronco ensurdecedor. Os vários faróis acendiam de súbito.

–– Sugiro que procuremos Sean! –– Patrick se mostrava preocupado em demasia quando encarou os passageiros ocupados com os fotogramas do tal códice do Joshua.

Todos os três se voltaram surpresos. Sua expressão direcionada para Sarah estava declaradamente

solicitando uma boa intervenção a seu favor. –– Não está sendo um pouco pai demais? –– respondia Sarah sem delongas.

–– E eu que pensava que mães possuíssem um sexto sentido quanto aos filhos... –– havia certa indignação. Seu olhar queimava diante da falta de perspicácia quanto ao fato declarado de que estava preocupadíssimo com o filho. Pegou um objeto preso ao painel e jogou-o para a esposa confusa.

–– Para que esta bússola? –– Posso até ter um sexto sentido, mas não estou a par de suas

sutilezas. Então me diga para onde ir! E ela ficou admirada com a tenacidade do marido e fez um

esforço para resgatar o status de mãe zelosa. –– Para lá, depois do obelisco. –– e atravessariam a ponte submersa até o campo de marte. Sarah ainda tinha uma boa intuição latente.

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Para Marc, toda a discussão passava despercebida enquanto combinava as cópias dos documentos num fichário bastante considerável. Incluía os recentes rabiscos de Joshua em meio aos supostos diagramas de suas tentativas inteiramente errôneas. Algumas anotações de possibilidades aplicáveis seriam resguardadas.

Todavia o herói que conseguiria descriptografar textos tão elaborados teria que essencialmente ter menos de seis anos, senão seria dificílimo ver a simplicidade do código.

–– Queria saber como você conseguiu ver isto! –– e apontava as interpretações do códex ao pequeno e menor dos três. Joshua fez o que pôde, esquadrinhou detidamente seus pais e respondeu conforme sua condição permitia: balançou os ombros em resplandecente divertimento.

Contra a luz, as transparências rasuradas pelo garoto eram constantemente relidas, como querendo acreditar no que estava diante de si. E reproduziu um gesto que Sean adorava repetir sempre que necessário, um forte tapa na testa.

É verdade que o original documento estava em grego, ou só os caracteres eram gregos, mas as compilações sublinhadas permitiram criar um novo escrito em letras latinas num texto contínuo, sem separações ou pontuações. Joshua se concentrou nesta ininterrupta sopa de letras. Simplesmente substituiu de forma aleatória alguns V´s por U´s e J´s por I´s, sem uma regra definida, apenas sendo criança que brinca com algo lúdico. Separou as letras conforme surgiam palavras reconhecíveis em sua língua e a citação tornou-se lógica.

Surpreendentemente simples. Contudo não respondia à maior de suas dúvidas, quem

poderia escrever em francês no século primeiro da era cristã, usando um alfabeto de outrem? Os limites da França sequer existiam sob a administração do império romano da Gália.

Uma observação sumária dos demais documentos excluía o uso do mesmo sistema. Um profundo suspiro alertou Jox.

–– Sean está bem, com um velho, velho, amigo! –– intrometia-se Jox nas discussões dos pais e nas elucubrações de Marc. –– Precisam ter mais fé nele, oras!

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Águas que transbordavam corriam desabaladamente onde houvesse níveis inferiores. Todos os caminhos subterrâneos eram reclamados por líquido tão hostil. Túneis eram sufocados e toda a cidade era estrangulada pela indefensável armada. Aos poucos, as luzes eram desligadas, deixando a metrópole entregue à tecnologia dos homens das cavernas. O dia escurecia atrás das grossas camadas de nuvens.

As galerias evacuadas do museu eram ocupadas pela invasão da água lamacenta que jorrava como espetaculosa queda-d'água ao saguão central do Louvre piramidal. A ferocidade carregava alguns objetos abandonados para o ponto mais baixo daquela estrutura escavada. Os fossos do ancestral castelo monarquial sorviam, do mesmo modo, seu antigo posto defensivo. Mas todos haviam fugido quando as águas lavaram os poucos papéis deixados para trás.

O amor que liberta. O percurso se transformara em corredeiras subterrâneas que

se precipitavam contra as paredes pontiagudas com brutalidade, obrigando Mateus a reduzir seu avanço enquanto se apoiava em gretas firmes e buscava respirar. Quando ele foi cuspido para dentro da cripta franciscana, um redemoinho afastou-o de onde Tiago estaria sepultado. Havia muita espuma e a escuridão dificultava suas tentativas de firmar seu corpo contra os nichos sepulcrais. –– Não vou desistir, Tiago! Está me ouvindo?!

Seus dedos tateavam fissuras que se esfacelaram com a força da água. E esta ação decidida dependia da rapidez, pois se aumentasse a abertura, a água, que já estava acima da cabeça de Mateus, invadiria o acanhado espaço onde Tiago sobrevivia. A lanterna, presa ao pulso por uma improvisada amarração, debatia-se ineficiente de sua atuação, girando nervosamente conforme a água circulava na antecâmara do ossuário beatificado.

Tentou em muitas rachaduras, escavando-as com a ponta dos dedos, por vezes conseguia romper o lacre e todo o estuque desmanchava. Porém nem todos os nichos se abriam, explodindo bolhas de ar através das fendas mortais. Cada vez que isto acontecia, Mateus ficava apavorado e se apressava em irromper a

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câmara já não tão estanque. Nem todas respondiam aos esforços desesperados. Temia que Tiago estivesse preso em uma dessas.

Prosseguia escavando a argamassa quando repentinamente abriu-se num vão que tragou sua mão. Sua reação era de retirar o mais rápido possível sua mão desta circunstância, no entanto alguém se agarrou a ele. O medo instantâneo levou-o a sentir vergonha. Tiago balançava os dedos para fora do buraco.

Ambos tinham pressa. Em pouco tempo estariam sem ar. O desespero aumentava quando ele não conseguia forçar a

abertura. Tiago estava firmemente agarrado ao pulso do irmão que puxava com todas as suas forças a pedra. Firmou os pés contra a parede e tomou fôlego antes de se abaixar e dar tudo de si. Num primeiro movimento, um dos pés trincou a laje de outro túmulo, perdendo um pouco do equilíbrio.

De sua boca escapava todo o ar em gritos surdos. A água gelada se misturava às suas lágrimas quentes. Com Lucas envolto em seu casaco impermeável, Elene se

afligia internamente com sensações divergentes e fortes. Para se acalmar, abraçou-se ao garoto desmaiado tentando recuperar um pouco de sua confiança abalada. Tudo a sua volta dormia em silêncio de poucas gotas que disfarçavam a solidão. A chuva desaparecera tão loucamente quanto surgira e, o céu se abria em manchas lilases e alaranjadas de um pôr-de-sol em suspense.

–– O que está acontecendo? Lucas acordava trepidante. –– Como você está? –– Não muito bem. –– esfregava o queixo dolorido. –– Acho

que andei me descuidando... –– se referindo aos exageros do esporte.

Provavelmente ele não se lembrava de nada, melhor assim. –– O Tiago! –– deu um grito. –– Ele precisa de mim. Eu sinto

que ele está em perigo. Elene percebera que não passava de um espasmo de seu

subconsciente. –– Mas onde? –– e ele não saberia responder. Talvez Lucas jamais soubesse que o matou. Pelo menos, ele não saberia por ela. Abraçaram-se feridos. Não haveria remorso, só os resquícios de um amor acima de toda maldade já suplantada.

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Refugiaram-se num bolsão de ar que se deslocou para a

abóbada de entulhos do calabouço de Cordeliers. Por um instante cogitavam recuperar as forças para tentar atravessar o túnel até outra seção respirável. Seria um longo percurso e um tanto mais convidativo assim que o ritmo de elevação ditasse a falta de opções. Eles se olharam e em silêncio concordaram.

Tiago estava ferido, seu pescoço devia ter sido duramente atingido pelo irmão ensandecido. –– Como vim parar aqui? –– esfregando o inchaço com a ponta dos dedos.

Mateus se assustou diante da dúvida e apressou-se em sintetizar tudo em uma única explicação: –– Foi atacado... por um fantasma!

–– Só me lembro de chegar aqui com Sean e... Melhor assim, sem lembranças. Quisera Mateus tivesse essa

alternativa. Entretanto teria outra, não menos desejada. A água descia lentamente, sendo absorvida pelas fissuras do piso rompido. O escoamento não cessaria durante dias, mas já era provável caminhar para fora daquele buraco da caveira.

Antes de partir, Tiago abraçou o irmão e chorou agradecido. –– Sabe que te amo! –– sussurrou Mateus. –– Perdão se te magoei. –– pensou Mateus. A caridade que é fraternal apesar de que... Poucos saberiam interpretar tais emoções. –– Tenho que te dizer que este já não é mais o meu

compromisso. Tenho outro muito melhor. –– e Sean sorriu sarcasticamente para o senhor do mal.

Que combate prevaleceria, qual o meio que se venceria aquele sistema falido de uma política acima do amor? Os falsos-profetas daqueles tempos seriam os alicerces da sociedade consumida. Políticos que se comprazem em seu poder, cientistas com a voz da razão e do orgulho de seus feitos do amanhã. Religiosos que pregam Deus como produto de seus medos.

Mídias que dizem como o mundo globalizado deve ser e não é.

A luta de classes que se consome numa escalada voraz aos prazeres de seus sentidos materialistas. Ter o melhor, ser o maior.

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E aqueles que não se enquadram? Serão a maioria entorpecida e esperançosa dessa humanidade que se dilacera para atingir o ápice do seu intelecto individualista e implosivo? Quem responde pela caridade?

–– Me entrego à sua lei! E ajoelhou-se submisso aos pés do senhor dos impérios

abissais. De cabeça caída entregou-se à ordem dominante. Não esperava nada além do fim do conflito e estirou o braço esquerdo para que fosse levado ao cárcere.

Guarini não podia acreditar que a besta vencera. Entretanto não se sentia derrotado, não se combate com as

mesmas armas do inimigo. Se for para lutar contra o mal, será com as suas armas de não-agressão. Sentando-se em parcimônia inesgotável como Gandhi, cuidando em resignação como Maria ou ensinando ao mundo como os iluminados avatares; gota a gota. O tempo não seria problema.

Não podia acreditar, a criatura não queria demonstrar a sua pusilanimidade que acabava deixando escapar em movimentos nervosos quando apertou sua mão em torno do braço do garoto. Sua força impresumível feriu-o profundamente, materializando forte aperto que dilatou as veias. O fluxo interrompido forçou o sangue a romper as células da pele, escorrendo pelos poros. Na palma desta mão, duas grandes artérias que se entrecruzavam, se deformaram permanentemente. Sean chorava de dor.

O ser ergueu-o no ar como um troféu inestimável, sem resistência. Mesmo que estivesse intrigado com o ato, consumia-se em júbilo. Bastava que o garoto morresse e ele estaria irremediavelmente sob seu domínio. Nos calabouços mais profundos daquele planeta prisão.

–– Como você chama este novo compromisso? –– não pôde se conter de curiosidade diante do quadro. Ele estava subjugado...

–– Eu só desejo que você se recorde do seu passado. Neste instante o senhor das trevas tenta em vão largar o

garoto que pressente que muito do que tais seres eram se devia a um sistemático e conveniente esquecimento manipulado. Amnésia favoravelmente manipulada a seu favor, obliterando emoções e recordações que poderiam enfraquecê-lo. Eram justamente tais elementos que Sean supunha primordiais à transformação e fortalecimento do espírito imortal.

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Diante dos olhos vidrados, Sean diz antes que: –– Não o faço por mim ou por um Deus que não reconhece. Por você.

Para evitar o que o garoto pretendia, expandiu sua energia, rompendo com a ligação que os jogou para extremos opostos do cais. Guarini se aproveitou da agitação e tentou carregar Sean. Suas tentativas seriam infrutíferas, os braços atravessavam o corpo sólido sem resistência. Como aquele ser conseguiu?

O índio não poderia fazer nada além de manter alguma proteção antes que Sean pudesse se recuperar e fugir. –– Não preciso fugir. –– respondeu ao pensamento, distraindo-o inapropriadamente.

Com um rugido, Guarini se virou muito tarde para impedir o impulso do senhor que lançou a espada luminosa contra os inimigos dispersos com a surpresa do ataque. Ele não queria mais falar.

O gume ondulante da arma raspou o dorso do índio acertando Sean no coração. –– Um vestígio de minha última guerra. –– resfolegava aturdido o mal. Uma espada de dois gumes, que provocava dores à vitima e ao agressor. O conflito entre anjos e dragões.

Sean cuspia sangue por causa do ferimento daquela arma que São Miguel abandonara fincado àquela criatura derrotada e expulsa do paraíso. Por mais que Guarini tentasse empunhar a espada, ela se encontrava num estado vibracional impossível de alcançar. A luz negra de crispas avermelhadas que a delineava foi sendo absorvida, tornando-a tão sólida quanto era possível para os mortais. Morreria em breve momentos e eles não podiam crer que era verdade. Eles sabiam que era quase impossível. Sean era alguém que podia mudar o seu destino, dizia a si, Guarini.

O truculento veículo russo Kamaz, de coração robusto, que

ainda era de Patrick, tentava se desvencilhar das carcaças esquecidas de vários automóveis. Atravessar a ponte submersa se mostrou um desafio aos nervos. Só podiam ver duas linhas que deviam ser os parapeitos da estrutura. As fortes luzes adicionais permitiam, por vezes, enxergar através da água, auxiliando-os na travessia. A correnteza espargia a água com força suficiente para galgar o caminhão e passar por cima sem resistência.

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–– Nunca mais ouçam as minhas intuições! –– gritava Patrick por cima do ruído crepitante. Contudo ele refaria a exclamação como se estivesse com uma faca fincada ao peito. –– Não me deixem esquecer que elas sempre estão certas... –– corrigindo-se diante da ansiedade que o consumia. Sarah concordava com impressões muito parecidas.

Enfim a passagem se obstruía com uma parede de carros justapostos. Marc percebeu que poderia ajudar. Ajustou o equipamento de alpinismo, que sempre estava no inventário de equipamentos essenciais de uma competição sem fronteiras e, com cordas e presilhas evadiu-se das tentativas e negativas pela abertura desobstruída. Enganchou-se nas formas do transporte, com fortes nós, e deslizou cauteloso para o guincho. Com alguns metros de cabo enrolado em seus ombros saltou estrategicamente entre dois carros que pareciam bem presos e atravessou a parede de aço para prender o gancho em torno de um poste firme de ferro fundido, restos do século dezenove. Ofereceu o polegar por entre o braço que tentava reduzir a luminosidade dos fachos brancos.

O som angustiante do motor retesou o cabo, dilacerando partes dos carros, arrancando para-choques e espelhos antes que o mamute sobrelevasse uma de suas rodas dianteiras. Esta escalada obedecia à posição angular e provocou o seu erguimento acima de dois metros. Quando o centro de gravidade mudou abruptamente, o caminhão despencou sobre a água, gerando ondas que quase engoliram Marc. Um verdadeiro Paris-Dacar submarino. Estavam entrando no Invalides, depois de deixar a ponte de la Concorde em sua impertinente solidez, e seguiam pelas ruas mais trafegáveis. Seguindo o inexplicável sexto sentido.

Os quatro e abatidos rumavam a esmo, olhando para o céu

que se obscurecia com o entardecer daquele dia interminável. Elene e Mateus não haviam se recuperado do abatimento físico.

Quando Tiago evadiu-se do bueiro que estava marcado por uma placa rochosa como o caminho que conduzia às escadarias, Elene sentiu seu coração sair pela boca. Invariavelmente, com forças restauradas, precisava comunicar Matt. Tempo para que o seu pensamento fosse substituído pela alegria de vê-lo surgir atravessando a abertura. O seu abraço só seria compreendido por

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ele. –– Como soube! –– Ela se referia à sobrevivência de Tiago. No entanto ele não tinha mais como e caiu de joelhos.

Por algum motivo subconsciente à sua vontade, assim que se recobrara do desgaste, decidiu retornar ao campo de marte. Não precisava discutir, todos estavam concordes.

–– Eles parecem não se lembrar de nada! –– Melhor assim! –– Mateus gostaria de conversar com Tiago

sobre os acontecimentos de sua quase-morte, porém seria melhor que as coisas continuassem como estavam. Quando fosse o momento, ele se recordaria de Raphael e Max. O dia escurecia rapidamente e as primeiras estrelas surgiam límpidas num céu entreaberto.

–– Quando a gente vê tantas coisas espantosas, espera que milagres aconteçam... –– Mateus resmungava sua constante falta de sorte.

Com o lusco-fusco foram surpreendidos por fortes luzes que vinham em sua direção, anunciando um resgate inusitado. O ronco russo cessou para se ouvir. –– Onde está o Sean! –– todos sabiam, no fundo, que talvez a resposta fosse chegar tarde.

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renascendo das cinzas.

O espectro confiante de sua invulnerabilidade sente algo se dilacerar em sua sutil coesão incorpórea. No tentame de absorver o oponente, levando-o ao encapsulamento do espírito, ou à psicose que lhe daria acesso a uma mente perturbada, não desconfiou da capacidade do garoto em rechaçar os mais poderosos elementos de subjugação que constituía a sua faculdade milenar.

Assim como acabara sendo exilado aqui, por um contágio que provocou a queda dos anjos, outro germe era absorvido pelo corpo adensado do senhor do mal. Esta virose ignorada se entranhava nos pensamentos da criatura, provocando espasmos de consciência e liberava as zonas das memórias arquivadas.

Obviamente não o extinguiria, apesar disso, traria um pouco da razão negligenciada desde o primeiro contágio, que em batalha épica, provocara a expulsão para setores corrompidos onde eles seriam lapidados pelo processo de amor e sublimação dolorosa. Bilhões de seres já haviam se recuperado e retornavam ao convívio de seus irmãos. Mas alguns ainda tentavam se manter aquartelados nos confins do universo.

Queriam ser como deuses e supunham que só conseguiriam quando alcançassem a sublime escravidão e controle dos seres obedientes. Nunca cogitaram que para serem deuses deveriam se unir e assim expandir exponencialmente sua atração pacífica e solidária com todos os seres.

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E por amor, eram livres para fazerem suas escolhas. Entretanto as suas ações acumulavam débitos para os quais interferiam pesadamente naqueles que ainda não conseguiam manifestar os seus desejos de escolhas. Chegou o momento decisivo de serem libertados e agirem conforme as oportunidades que um mundo novo exigia.

Guarini deu pouca, ou quase nenhuma, circunspeção ao acovardamento do anjo decaído que estertorava diante dos quadros vívidos daquilo que pareciam lembranças divergentes de sua condição desvirtuada. Toda a sua concentração se restringia em como salvar Sean de seu ferimento. Não obstante as suas súplicas, ninguém o ouviria dentro daquela bolha energética que começava a desmantelar-se, assim como o ser que a plasmara. A luta interior se atribuía a dois sintomas, o remorso galopante e desejos cada vez mais incoerentes e opostos. O desejo de manter o seu domínio contra o desejo de regressar ao seu progresso junto daqueles que seguiram os seus caminhos à união cósmica. Domínio contra um passeio em família. Domínio contra a descoberta de algo novo. O domínio contra a felicidade sem limites.

Com um gesto inesperado, suave e decisivo, Sean tomou o braço do indiozinho que jamais evidenciara tal fenômeno. Desdobrado de seu corpo físico, o garoto usou os pés como alavanca para soltar a espada de seu dorso adormecido. E a arma ganhou novos contornos de um brilho alvo e insuportável aos olhos das criaturas caladas nos vãos negros dos limites de um reino fragmentado. Apontou-a para Melkireshah, –– o príncipe das trevas, pois assim era o seu nome –– comprimido como uma mancha disforme, e a lâmina avivou-se ondulando flamas que agitaram ondas que expulsaram os demais vampiros do séquito do senhor dos exércitos do mal. O império refulgiava-se em seu antro nos abismos inescrutáveis.

E a criatura apagou-se levando as brumas de uma luminosidade parca e variável. O som foi reduzido a um silencioso breu. Por um instante ficaram inertes até que a espada iluminasse o espaço liberado. O ser não havia sido destruído, somente repelido enquanto ele era consumido pela derrota momentânea.

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–– A revolução começa nas entranhas da Terra! –– Sean ditava o primeiro estágio daquele ajuste de contas. Um Labelius ambicioso se jogou ao buraco mais próximo, assustado com a contenda. –– Não me sinto muito bem. –– reiterava o garoto para Guarini que estava absorto consigo.

–– Pois é o fim de um bom garoto. –– o índio disfarçava o seu espanto.

–– Ainda não. –– voltou a ocupar o seu corpo combalido para renascer com tosses e sangue cuspido. Seu exame do ferimento demonstrou a Guarini que o sabre cicatrizara-a quando sua vibração ascendeu. –– Corrijo-me, o bom garoto morreu.

Sua finalidade era fornecer sua nova realidade ao índio que viu. Que viu quem Sean realmente é.

Entre mais tosses, ele se levantou, apoiando se com dificuldade no entulho que se acumulava por todos os cantos. Um dos braços, que estava preso à espada ondulante, ainda não se acoplara ao corpo físico, deflagrando uma situação estranha com um menino de três braços e desconcertado.

–– Posso te ajudar com isso? –– e Guarini retirou a arma e forçou a junção dos corpos. O braço dormente era devidamente movimentado tentando recuperar sua circulação. Milhões de agulhadas surgiam enquanto abria e fechava os dedos que não obedeciam. –– Está doendo?

–– O que dói é saber quem não sou mais! –– e ganhava uma convicção irrevogável que lhe dava mais seriedade.

–– Não me preocuparia, com o tempo saberá fundir as identidades que começam vir à tona. –– disse Guarini diante de suas dúvidas se suportaria algo parecido.

–– Hei, não sou mais o mesmo que era. E você também. Vi em seus olhos. –– um abatimento entristeceu-o como se o passado tivesse trazendo um pressentimento inacabável. –– Mas não posso deixar que eles saibam. –– gesticulando a palma da mão desfigurada.

–– Eles saberão. –– Ao seu tempo eles descobrirão quem sou e... –– Temo que eles já não te olharão mais como uma criança. Sean não parecia acreditar, porém já não era mais. Quanto

mais ele vislumbrava as artérias insufladas, ficava claro que Joshua estaria sendo constantemente comunicado destes

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acontecimentos. Mas por quem? Existia um rígido código de defesa. Não tinha certeza, todavia o compromisso que sentia por Tiago, ou mesmo Marc, encobria este sentimento mais forte e angustiante. Como ele mesmo disse, ao seu tempo ele descobria a verdade.

Por hora ele ocultaria o que sua mão queria pronunciar. –– Enfim, quem venceu este combate? O garoto pôde sorrir, depois de tanta incompreensão seria a

sua vez de tomar as rédeas. –– Sempre seremos nós. Nunca haverá batalhas. –– sentado para recuperar as forças.

Guarini não parecia presunçoso, apalpando o seu ferimento depois de já estar morto a décadas. –– Não parece tão fácil como você quer me fazer acreditar! Todos estão se lançando contra nós.

–– Mas ao seu tempo, até você compreenderá. –– o garoto já não estava preso aos seus medos ou àquilo que sua existência presente admitia. Caminhou estonteante até a providencial escadaria da estação abandonada e ouviu a voz sussurrante do mendigo. Finos regatos de água continuavam a descer pelos degraus e se estendiam até seus pés. Agradeceu o recado e pousou os olhos na palma esquerda estendida ao invisível. Rasgou um trapo de seu casaco úmido e cerrou-a de olhares curiosos e indesejosos. Apesar de ter se recuperado da morte, trazia grande quantidade de sangue embebido em seu corpo dolorido.

O indiozinho percebia que estava falando com outra pessoa e aproveitou para entendê-lo. Sean ainda era o mesmo, porém estava diferente e era presumível que transparecesse em sua face amadurecida.

–– Afinal, por que está aqui? –– Guarini se precipitava. –– Atrás de uma virtude. Supus que o amor, o respeito e a

razão eram suficientes por si só. –– segurava a pequena cruz de madeira que adotou como um amuleto sem mágica.

–– E ela não está dentro destas virtudes? –– Acreditava que sim. Podemos respeitar e amar as pessoas,

porém a compaixão advém de um sentimento maior. Está além do que o homem conhece por amor. –– E ainda hoje, podia ser mascarada por um falso sentimento de identificação com o sofrimento de outrem, quando não passa efetivamente de um reflexo de nossas próprias dores projetadas. Era muito fácil se enganar.

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–– Como descobriu isto? –– Da pior maneira possível. –– ele não queria concluir. O índio cedeu e se calou conformado, não iria forçar ninguém

a enfrentar os seus demônios. O que quer que fosse Sean, teria que dizer, se quisesse seguir

adiante. –– Houve um tempo em que requeri esta compaixão, desesperado por me fazer escutar, enquanto presenciava a incompreensível e dolorosa revelação desta virtude. –– respirou fundo. –– Existem coisas que não compreendemos, outras nos ferem como flechas, mas todas deveriam nos guiar e fortalecer. Confesso que temi o obscuro, e também conspícuo, ato de compaixão de Jesus para com seus imoladores.

Desta vez finalizou: –– Quanto aos meus demônios, sinto te dizer que eles acabam de ser vencidos. –– e abraçou o amigo.

Não era mais o corpo físico que ditava as impressões de seu espírito. Sean recobrou as faculdades que deveriam ser priorizadas pela alma imortal, inda que de forma simplória.

–– Vem comigo? O índio ficara entorpecido, sua expressão de medo indicava

que ele não o seguiria. Sean nada faria para forçá-lo, contudo devia sua amizade ao não desconfiado guarda-costas. –– Fiz tudo o que me era possível para não te envolver neste dilema. Até hoje não desconfiava o que tais recordações provocariam em você.

Tudo retrocedia a ser secreto. O garoto precisava de muito mais tempo para absorver as suas

reminiscências na ordem e na medida de sua compreensão. Neste instante a sua personalidade flutuava entre as impressões de algumas vidas pregressas que precisavam se adaptar às necessidades e desejos de um pré-adolescente ávido por música, namoros e videogames. Estava difícil conciliar-se.

A ascensão à superfície foi penosa, considerando o longo e exaustivo dia que tragou suas energias de reserva e além. Do lado de fora, com o fim da torrente celestial, as águas barrentas retrocediam lentamente aos seus leitos habituais. Demoraria dias antes que alguém pudesse voltar a contemplar a cidade-luz em sua urgente ostentação natalina lavada pela enxurrada. Em Alforville, comportas cerradas, as nuvens desapareciam, ofertando um céu iluminado pelas mais brilhantes estrelas jamais vistas desde a revolução industrial.

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Ao fim do trajeto, Holofernes e alguns de seus homens isolavam o metrô fechado aos possíveis curiosos. As tais resoluções assopradas de Tiago foram confirmadas por uma piscadela sorridente de um soldado sempre austero. –– Por Deus que percorreria os reinos de Hécate sem os devidos condutos...–– E recuaram desaparecendo nas névoas da noite regressiva. Terminaram com suas obrigações.

Naxamuñaca e Gaius ficaram aparentes. Sean deixou-se acomodar junto das grades retorcidas,

repousando o seu cansaço sem se importar com protocolos ou reverências que existiam. De fato estava desmontando de dores e fraquezas latejantes que o impedia de ser mais cortês com os dois. Mas eles não pareciam se importar.

Abriram espaço para que um soldado alemão, oculto em seu embaraço, se acercasse do garoto. Seu olhar medroso e desconfiado para aqueles seres dignos provocou um ligeiro e forçado riso de Sean, que a cada manifestação de gargalhadas, seguia-se tosses cavalares.

–– Dê-a para ele, Guarini! O rapaz se sentiu nas alturas com a entrega daquela arma. ––

E o que eu faço com ela? –– Guarde-a onde você me deixou! –– o mirrado soldado

ajustou seus óculos não compreendendo a questão. Por pouco quase deixou a sua falta de perspicácia alongar o diálogo noite adentro. –– Na conexão dos mortos em Montparnasse? Ah! Sim...

Concordou se refazendo da posição incomôda que afligia os seus músculos tensos. Estava dando nova oportunidade ao suplicante alemão para recuperar a sua tranquilidade depois de algumas décadas de aflição por não ter conseguido terminar o túnel que supostamente salvaria Marc e Sarah? Que fosse.

Partiu alegre, como uma criança agraciada por um presente tão ansiado. Enrolou o prêmio entre o casaco pardo e recuou trombando com Gaius. Ele seria seu guardião na incumbência de depositar aquele troféu junto de uma sepultura não rematada, tomada de um religioso temente a Santo Exupério durante os conturbados anos pós-guerra. Sobre a lápide daquele sarcófago de pedra desgastada, uma folha esculpida às presas desfigurava o acabamento primoroso feito por artesãos antes das grandes pestes.

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A espada extraviada, cantada em muitas pretensas lendas apócrifas e alfarrábios desconstruidos pela perpetuação humana, surpreendia Naxamuñaca que conjeturava tudo saber. Na silenciosa bonança de uma noite inimaginável, toma a palavra assim que Gaius some, carregando o soldado consigo.

–– Hum. Muito bem! Terei que me contentar com as minhas impressões do que aconteceu há pouco. –– não via nenhuma manifestação em seu auxílio, e continuou sem elas. –– Realmente não importa as explicações. As minhas obrigações restringem-se ao planejamento destes socorros. Hum. Cada vez mais espíritos libertos solicitam a nossa presença. Estamos sobrecarregados.

–– É muito pouco considerando que estas guerras alegóricas não chegam nem perto das atrocidades que acontecem do lado de cá. –– Naxamuñaca pressentiu que Sean mudara.

–– As mortes sempre se perpetuaram sem respeito pela vida... –– E vai piorar. –– o garoto afirmava, não profetizava. –– Afinal, nada de extraordinário aconteceu. Não vimos

nenhuma das leis serem quebradas. Hum. –– tio Xaxá precisava esclarecer o que viria.

Sean tirou sarro do comentário. –– Ninguém voou e nem os mortos puderam se furtar de suas limitações. Por enquanto nada de extraordinário, certo?

O grande índio, em seus trajes de combate e muitas penas, cedeu diante do mutismo e meneou em retirada. Guarini já o acompanhava quando ouviu Sean gracejar a esmo.

–– Tenho uma confissão. Por mais que eu tenha que conviver

com as velhas memórias que renascem, gosto de ser um garoto. –– Até pouco tempo, você era este garoto! Muitas dúvidas teriam que ser aclaradas e Guarini regressou

até Sean para aplacar pelo menos uma. –– Como penetrou nos escudos do senhor das trevas?

–– Preciso de mais tempo para te responder. Mas seu corpo estava deteriorado muito antes que eu arriscasse... –– o que Guarini diria se soubesse que ele não tinha nada com a contaminação. –– Você estará bem?

–– Como você mesmo disse: Ao seu tempo...

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Encontrou-se só. Sean precisava acreditar que nunca mais estaria só. Jamais

estaria só. A escuridão atacada por acanhada luminosidade de uma lua crescente delineava muitos objetos, mesmo que ele não reconhecesse quais eram. Um fio prateado corria pela borda dos edifícios calados e das árvores desfolhadas. Inconfundível, a torre apontava para as estrelas cintilantes que coalhavam a via-láctea que parecia equilibrada pela estrutura como um móbile bizarro.

Ao som de leves e frias rajadas de vento, se entregou ao cansaço. Primeiro se sentou com as pernas cruzadas para deixar-se tombar com os braços sob a nuca numa divagação desregrada de sua mente ocupada à força. Não conseguiria manter quem era por mais tempo.

O sistema climático cedia diante das frentes frias que rompiam o mar báltico rumo ao continente. Em poucas horas a água involuta poderia ser contida pelo congelamento inclemente. E as nuvens saarianas dispersas pelos ventos cortantes provenientes do norte desapiedado. A cidade em ruínas de velhas moradias decadentes acordaria em estado de solidariedade com muitas doações e voluntários dispostos a re-erguê-la. Mas mesmo assim as pessoas seriam atingidas por angústias jamais sentidas de uma sensação que teimava diluir. As águas seriam os primeiros indícios dessas incertezas que viriam para ficar.

Não muito longe, passos remexiam as águas. Girou a cabeça buscando quem. –– A fusão de identidades, sabia que você não estaria pronto.

–– um velho em mantos apertados ajeitou-se diante de Sean. Daquela distância o homem parecia um monge indiano. Ele agradeceu o acerto com um ufa bem pronunciado e frouxo.

–– Pode fazer algo por mim? –– nem se mexeu. –– Depende muito do que você pretende. Só estava pensando

em fazer companhia. –– Apenas gostaria muito de ter asas... –– Elas não existem, sabe muito bem. Sean reconheceu-o de quando recomendou abrigar-se na

imaginária muralha forjada durante a fuga das Arenas, sentiu um arrepio. –– Afinal, quem é você?

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–– Um tolo guardião. Sou Atmatattva. –– Sean não caiu. –– Por seu semblante, vejo que gostaria de se esquecer de tudo por que passou, e não falo só de hoje. Quer voltar a ser só um menino.

–– Hum. Prossiga. –– Sean se entregava ao estranho. O monge procurou sentar sobre o gradeado, equilibrando-se

com maestria. –– Posso reduzir o ritmo em que as memórias vêm. Melhor, condicioná-las a certas ideias-chaves que as deflagrariam no momento propício.

Quais seriam estes momentos, perguntava-se Sean atormentado com o propício. Apostando nesta tática, já considerava propício como precipício. Fechou os olhos pesados, tentando afugentar aquele monge de seu poleiro.

Perdeu um bom tempo fingindo dormir. Só abriu um dos olhos para bisbilhotar sua indignação encarando-o placidamente tal como se mantia, empoleirada como uma ave de rapina.

–– Tudo tinha que acontecer exatamente agora? Fungou e se aproximou do garoto com a expressão mais dura

e ajuizada que possuía. –– É que só percebeu agora. Estas recordações já estavam surgindo muito antes de Melkireshah aparecer. É provável que não tenha percebido até que precisasse objetar sobre coisas ignoradas por você. Pelo visto se surpreendeu quando as mais absurdas respostas passaram a existir.

Sean mostrou interesse. –– Os seus amigos perceberam a transformação, ou ninguém

te chamou de convencido e distante? É só uma das fases da fusão, fique calmo que logo passa.

Quis retrucar, e com o indicador começou a desfilar suas desculpas. –– Primeiro, tive que aguentar os fantasmas. –– na sequência estirou cada um dos dedos encurvados conforme a precisão. –– Após, com pavor de enfiarem agulhas no meu cérebro, quase entrei em coma. E aí os fantasmas começaram a ajudar os vivos, complicando mais ainda as minhas supostas ideias sobre uma morte com ou sem paraíso.

O velhote seguia com os hãs e huns enquanto se acabavam os dedos de Sean.

–– Surras e perseguições de mortos. E vivos. Então aparece Marc e os diários e o meu diário. Tumbas, evangelhos, papéis que ninguém sabe para que servem. –– agora tinha uma leve ideia do que seriam os documentos. –– E como fui me esquecer dos índios!

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Faltaram dedos para seguir sua confissão. –– Até mesmo confundir Tiago com Allan eu consegui! Não queria ver o óbvio...

O não tão religioso monge lutava contra a túnica que vivia se descascando para baixo de seus pés trôpegos. Passou a mão no queixo como se o depoimento fosse justo, mas: –– Por mais que tenhamos a nítida impressão de que estas coisas são reais, nestes tempos conturbados, lá no fundo você sabe que ainda é o medo que lança estas desculpas esfarrapadas. –– esfarrapadas! Sean dedicou um pouco de sua antipatia à questão. –– Não se pode ignorar a verdade. Ela pode ser esquecida, convenientemente esquecida, até mesmo quando ela passa a ser vista. Existe um espírito maior do que nós e que age dentro de nossas predisposições em fazer o bem. Você sabia onde se meteu quando se desfez em desculpas para esta obrigação. –– inconclusivo.

–– Nunca pensei que o mundo estaria tão preso! –– Talvez um dia tenhamos o suficiente para mudar o mundo.

Mesmo que todos continuem pensando que os diários trarão o futuro. –– não precisavam disto. –– Milhares de mequetrefes profetas já o fizeram com certos toques apocalípticos.

Afinal o garoto compreendia alguns pormenores ignorados por Marc e que o faria levantar os cabelos de arrepio. Como ele havia dito, muito já se falou do futuro. –– Assim sendo venho para resgatar o meu passado!

–– Ele é a chave para aquilo que deve ser visto, ou revisto. –– No way! –– um sestro que sobrevive heroicamente. –– Do processo dependia um meio para que você pudesse

romper as travas de suas reminiscências e para isto participou inconscientemente deste pequeno espetáculo que presenciou no campo de guerra. Questão de esmiuçar os resultados.

Para quê? Pensava. –– Quer dizer que toda esta encenação tinha um propósito? Qual?

Atmatattva não precisava responder. –– Não cai uma folha da árvore sem que o Pai o permita. –– e o garoto entendeu que tudo havia sido tão bem planejado que qualquer atitude sua contra seria descaso para com as oportunidades almejadas.

–– Como não tenho outra alternativa! O que preciso fazer quanto às memórias que não cessam?

–– Não pense em nada, clareie sua mente das...

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–– Dificílimo. –– apontava para a sua cabeça que pelejava contra o enxame de pensamentos que aportavam sem trégua nem descanso.

–– Cante um mantra. Sem inspiração, não se concentrava na música rouca e

monótona que o lama citava. –– Os seus sonhos dilacerados, não deixem que prejudiquem a sua concentração. –– Grato pela deixa, começou a se empolgar com seu mantra pessoal para adolescentes de ouvidos surdos.

I walk a lonely road The only one that I have ever known Don't know where it goes But it's home to me and I walk alone I walk this empty street On the Boulevard of Broken Dreams Where the city sleeps and I'm the only one and I walk alone I walk alone I walk alone Aos poucos, a vida ressurgia das janelas descerradas que

assumiam o conforto daqueles que, corajosamente se abriam ao anoitecer plácido. Muitos foram despertos por uma canção que conseguia ecoar e atingir grande alcance, atacando ruelas ou boulevards com a eficácia de ouvidos afinados. Dias verdes apontavam o futuro. Não antes do fim.

–– Aguardo profundamente que, assim que precisemos, possa defender-nos no combate, filho.

Contudo ele dormia profundamente entregue aos seus sonhos. Deitado no horto encharcado não acordou quando a

madrugada fantasiosa fora rasgada pelo motor infernal do veículo que esquadrinhava os planos com seus olhos de luzes ofuscantes.

O facho descobriu-o de sua intimidade.

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o olho atrás.

A madrugada após a tempestade dilacerou a imantação deletéria que havia se acumulado com o estresse de pessoas invigilantes. Brandamente a cidade, com ares campesinos, era tragada pela lerda aproximação de seres escondidos. Aos poucos, certos de que as águas recuavam abaixo de um céu esplêndido, foram tomando as vias contíguas em caráter de esperança. Nunca Paris enfrentou tal fúria de uma natureza impulsiva. E Zouave precisou botar suas barbas de molho.

Mal o mamute alcançou suas fronteiras, Patrick saltava desajeitado para cair de cócoras perto de Sean. Os segundos de diferença fez com que Sarah se emudecesse espantada. –– Ele está bem? –– Patrick não respondia, chocado com a situação.

–– E então? –– ela temia chegar perto e descobrir que... –– Sim, acho que sim. –– e os dois ficaram um tempo

admirando o filho dormir como um anjo, ressonando inabalável. –– Parece que as coisas não vão bem! –– Mateus tentava

captar algo. Porém Marc apontou para uma maleta designada pela cruz vermelha e as serpentes de Hipócrates.

–– Enquanto ela estiver aqui, não se atormente. Espalhados pela cabine estendida do veículo, dormiam Lucas,

Tiago e Joshua. Elene tentava, a todo custo, permanecer desperta na expectativa que soubessem como Sean estava. A sua preocupação não era visível, mas intrínseca ao anseio angustiante.

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Mateus aproveitou o silêncio –– O que descobriu de novo? –– O seu pergaminho –– salvo em um saco hermético –– não

é o documento-tradutor que poderia elucidar estes. –– e ergueu seu fichário compacto que continha representações de cada um dos mikhae descobertos. –– Pelo menos consegui ler um.

Joshua fingia dormir e abriu descaradamente um dos seus olhos por detrás de um abrigo conveniente. Um sussurro repetia o que um outro índio havia dito meses atrás: –– Não é bom escutar atrás da porta, não é? –– Jox sorriu pouco se importando.

–– Quando eu achava que estava mais perto de compreender,

já não... –– Marc pedia socorro. E de súbito, Patrick carregava o garoto desmaiado para

dentro. Mateus não poderia socorrê-lo, a sua parte nesta aventura se restringia em correr, evitar, salvar e se abismar com o que os fantasmas eram capazes de cumprir. Ele, de sua parte, só percebeu que adviria uma grande batalha entre o bem e o mal quando foi posto no meio deste caos. E mesmo assim não ficou muito claro o pretexto pelo qual os exércitos resolveram vir até este ponto.

Por Marc, as suas imprecisões, muitas cronológicas, eram relativas ao códice, e o que poderia ser tão extraordinário a ponto de precisar ser liquidado por espíritos? Se não fosse a espectral intervenção do cavaleiro com parentesco com os Delènfer, ou seja, Lenffers como no manifesto dos cruzados ou por ser puramente um emissário dos Infernos, um de l´enfers. Talvez a história fosse bem outra e os tais documentos não passariam de folhas –– e pedras e madeiras –– encerradas nas gavetas e armários de museus e antiquários.

–– Acha possível que alguém possa voltar no tempo? –– Marc ainda não compreendia o que Joshua havia rasurado com grandes letras coloridas.

–– Tem a ver com esta fotografia? –– pegava o papel rabiscado com surpresa indisfarçável e compreensível diante da pergunta. –– Não poderia ser outra coisa?

–– Eu até consideraria a ideia de re-encarnação. –– mas ele não estaria sendo correto consigo. –– Mas como explicar que o texto está escrito em nossa língua? Renascimentos ao contrário?

O pouco tempo não permitiu que ele estendesse a tradução para todo o escrito que figurava no verso do suposto evangelho de

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São Lucas. Amostragem de carbono 14 e análise da escrita confirmavam que o pergaminho enrolado pertencia ao século primeiro. E a sua conservação excepcional se devia, aos últimos setecentos anos, ao clima seco e gelado de um cubículo arquitetado ao norte da Rússia. Sua origem foi traçada desde as Cruzadas, até que os cavaleiros teutônicos expulsos a perdessem numa batalha no Lago Peipus para os russos de Novgorod. Entre os espólios, dois mercantes vikings fariam o traslado deste rolo até seu último refúgio nestes quase oitocentos anos antes de, por insinuação de uma carta enigmática e empoeirada entre os livros contábeis de uma Antioquia devastada pelas ondas de conquistadores, cair em suas mãos, literalmente.

Um ano após, os demais documentos com a folha da uva começaram a surgir atropeladamente, correlacionando-os com o adendo no verso do pergaminho achado em Arkhangelsk. Disfarçados nas entrelinhas das mais variadas publicações científicas ou em aquisições intrusas dos mais distantes museus espalhados pelo Velho Mundo. Ninguém percebeu que eles apresentavam dois pontos em comum, o símbolo e a incapacidade de serem traduzidos. Principalmente porque eles foram redigidos em lugares e tempos diferentes, incluídos em culturas tão espaçadas em suas origens que não havia como relacioná-los.

Mas todos eram posteriores ao evangelho de Lucano, São Lucas. E todos eram impossíveis de serem descriptografados. Nenhuma das línguas vigentes no período em questão de cada documento descoberto. Comprovadamente do período afixado.

Se não fosse pelo professor Hodgson-Crookes e a carta de Bernardo, jamais teria prosseguido com suas pesquisas e, talvez, centenas de provas dos mikhae teriam como destino, o arquivo-morto do Louvre. Cordeliers reavivaria a questão, perto de localizar a segunda parte da carta de Bernardo. O mesmo Bernardo que definiriam como companheiro de Francesco Bernardone às campanhas cruzadas dos anos 1200.

Nem uma, nem outra, as cartas secionadas de Bernardo teriam a resposta às incompreensões linguísticas do códex. Não era um complemento com os códigos de tradução, contudo confirmava que um médico de campanha possuía um manuscrito que trazia uma folha de videira ao cabeçalho.

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A pista esfriou e uma trama paralela se descortinava, um aviador desenterrado das neves norueguesas trazia uma verdade inconveniente. Sua morte prematura não impediu que forças invisíveis e solidárias concluíssem a sua missão. Marc ainda se afligia com a referência ao seu avô e, só depois, reprisaria os arrepios quando um diário apontado por Tiago reuniria os fatos de que: um Nick comentado na carta do aviador, seria o Nicklas Buchhand do diário e; uma anotação datilografada na primeira carta de Bernardo, em alemão, não era livreiro –– Buchhändler.

Suposições ajudam, contudo neste caso seriam obstáculos. Confiar nas habilidades, sem a devida certeza, traria mais dificuldades ao já complicado enigma do códex mikhae. Bastava ele ter consultado um simplório dicionário escolar e as buscas por um Buchhand em Paris seriam concluídas com uma averiguação das Pages Jaunes. Enfim, existiam forças ocultas que traçavam outros caminhos.

E o diário de um tal Nicklas Buchhand seria esquecido temporariamente enquanto todos tentavam sobreviver à cólera da natureza e dos espíritos revoltosos. Das Arenas até a enchente, não tiveram um minuto sequer de descanso.

Agora Marc e Mateus podiam admirar a estranha guinada na história de um documento que receberia finalmente o nome original. De Códex Mikhae para Diários de Miguel, São Miguel Arcanjo empalando o dragão.

O que estava escrito no reverso do evangelho de São Lucas já era espantoso, para não dizer impossível de acreditar. A tinta e o estilo das letras eram significantemente posteriores, bem uns cem anos adiante. Uma inserção apropriada ao documento, ao evangelho, e que uns rabiscos ingênuos tornariam perceptíveis.

Marc tomou a compilação e a releu enquanto Patrick depositava Sean num catre desmontável. Em seguida o mamute soltava fumaça pelas ventas e buscava refúgio nas florestas ao norte. O senhor Daurat cedia o alojamento do aeródromo e nada os impediria de chegar ao destino. A cidade madrugava com muitas barreiras de controle e várias equipes de socorros. Aos poucos as luzes voltavam a ser acesas na periferia da metrópole fazendo com que um halo luminoso contornasse o horizonte urbano.

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Atravessando o anel periférico de Paris, deixaram a última das barreiras com a habitual movimentação dos homens que removiam os cavaletes estroboscópicos para a passagem do caminhão. Gesticulavam nervosos para que eles se apressassem. Adiante uma placa indicava a direção livre e desimpedida para Saint-Denis.

Patrick acenou aos estranhos funcionários que usavam coletes uniformizados dos vigili del fuoco. Estava muito cansado para se importar com as esquisitices de uma visão desfocada pelo sono.

Procurou se adiantar. O silêncio de estradas vazias, reforçado pelo monótono

deslocamento do veículo que não variava o seu cadenciado, embalando-os em fantasias, fez com que os garotos continuassem dormindo. O que teria acontecido com Sean? Todos queriam perguntar.

Preso em suas conjecturas, por fim Mateus abre a boca e volta a fechá-la seguidamente antes de se decidir em redarguir à questão de Marc. –– Faz tempo que deixei de entender o que anda acontecendo. Mas você tem certeza de que quer continuar?

–– Leu direito? –– Hum. Hum. –– confirmava assustado, repassando o texto

pela enésima vez. –– não pode ser coincidência? –– sabia que Marc responderia não.

A versão improvisada por Joshua era novamente aberta. As luzes de cortesia incidiam diretamente sobre o crayon. Marc não queria se adiantar, no entanto estava preocupado com o impacto que os documentos causariam. O evangelho seria confirmado pelos fragmentos dos mikhae e estes pelo evangelho. Talvez aquela última aquisição, surrupiada de Cordeliers, fosse a chave para a mensagem que mikhae apresentava. Existia outro mundo com outras percepções da realidade. Existiam novas histórias para a humanidade e os anjos decaídos.

Afinal não estavam sós. Sean se mexeu na cama e abriu um sorriso sem acordar. Mateus queria ouvi-lo novamente. Marc falou em voz alta. –– Eu sou Mikhae, filho adotado pelo coração reto de Loukás

de Antioquia. Tinha quinze anos quando morri pela primeira vez. –– arrepiava-se impronunciável.

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Sou Mikhae, filho adotado pelo coração reto de Loukás de Antioquia. Tinha quinze anos quando morri pela primeira vez. E terminarei os meus dias quando estas palavras forem lidas no amanhã peculiar de nossas vidas. Quando for convocado para resgatar meus compromissos para com o mestre que me acolheu nos derradeiros espasmos de sua ascensão iluminada. Nem sempre serei conhecido e com o tempo poderei até esquecer quem sou. Portanto, serei conciso em escrever tais memórias que promoverão a prova irrefutável de que nosso reino não é deste mundo. Siga-me e me encontrará mais perto do que supõe, legatário. Após quatro dias Marc, ao se olhar no espelho enquanto se

barbeava, por fim reconheceria o legatário –– o sucessor. O códice estava espalhado pela cama desarrumada enquanto o creme despencava no chão cintilante.

Em seu peito a cruz devolvida pela imposição de Sean mexia com suas emoções. Ninguém se pronunciava. Um silêncio por demais doloroso.

–– Eu sou o legatário?! Mikhae estava falando para mim? Em sua cabeça imaginou escutar. –– No way! E mesmo dizendo o contrário, Sean afirmava. Postado ao umbral da porta escancarada. Sorria cúmplice.

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