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Clínica Universitária de Medicina II
Doença Mista do Tecido Conjuntivo, Linfoma Não-Hodgkin e Amiloidose a Cadeias Leves: uma associação rara
Ina Garuta
JULHO’2018
Clínica Universitária de Medicina II
Doença Mista do Tecido Conjuntivo, Linfoma Não-Hodgkin e Amiloidose a Cadeias Leves: uma associação rara
Ina Garuta
Orientado por:
Doutora Maria Catarina Mota da Silva
JULHO’2018
3
Resumo
As doenças autoimunes sistémicas são cada vez mais reconhecidas como fatores de risco
para doença linfoproliferativa. A amiloidose a amilóide A (amiloidose AA) surge como
complicação de várias condições inflamatórias crónicas, nomeadamente doenças
autoimunes e linfoproliferativas. Contrariamente, a amiloidose a cadeias leves
(amiloidose AL) é uma complicação rara de doenças do tecido conectivo ou linfomas.
Apresenta-se um caso raro de amiloidose AL que ocorre no contexto de doença mista do
tecido conjuntivo e linfoma não-Hodgkin. Procede-se a uma breve revisão das diferentes
entidades e discute-se a possível relação etiopatogénica entre as mesmas.
Palavras-chave: doenças autoimunes sistémicas, doença mista do tecido conjuntivo,
linfoma não-Hodgkin, amiloidose a cadeias leves.
Abstract
Systemic autoimmune diseases are increasingly recognized as risk factors for
lymphoproliferative disease. Amyloid A amyloidosis (AA amyloidosis) appears as a
complication of various inflammatory chronic diseases, particularly autoimmune and
lymphoproliferative diseases. In contrast, amyloid light-chain amyloidosis (AL
amyloidosis) is a rare complication of connective tissue diseases or lymphomas. We
report a rare case of AL amyloidosis that occurs in the context of mixed connective tissue
disease and non-Hodgkin's lymphoma. The different entities are briefly reviewed and an
etiopathogenic relationship between them is discussed.
Keywords: systemic autoimmune diseases, mixed connective tissue disease, non-
Hodgkin's lymphoma, amyloid light-chain amyloidosis.
O Trabalho Final exprime a opinião do autor e não da FML.
4
Índice
Abreviaturas ............................................................................................................................ 5
Introdução ................................................................................................................................ 6
Caso Clínico ............................................................................................................................. 8
Discussão ................................................................................................................................ 10
Doença autoimune sistémica e distúrbios linfoproliferativos ............................................. 10
Doença mista do tecido conjuntivo e linfoma ..................................................................... 11
Doença mista do tecido conjuntivo e amiloidose ................................................................ 14
Linfoma não-Hodgkin e amiloidose .................................................................................... 15
Agradecimentos ..................................................................................................................... 17
Bibliografia ............................................................................................................................ 18
5
Abreviaturas
▪ Amiloidose AA – amiloidose a amilóide A
▪ Amiloidose AL – amiloidose a cadeias leves
▪ Amiloidose ALECT2 – amiloidose a proteína LECT2
▪ Amiloidose ATTR – amiloidose a transtirretina
▪ ANA – anticorpos anti-nucleares
▪ AR – artrite reumatóide
▪ DMTC – doença mista do tecido conjuntivo
▪ EBV – vírus Epstein-Barr
▪ Ig – imunoglobulina
▪ LDGCB – linfoma difuso de grandes células B
▪ LES – lúpus eritematoso sistémico
▪ Linfoma MALT – linfoma de tecido linfoide associado à mucosa
▪ LNH – linfoma não-Hodgkin
▪ MM – mieloma múltiplo
▪ MW – macroglobulinemia de Waldenstrom
▪ PCR – proteína C reactiva
▪ SAAF – síndrome dos anticorpos antifosfolipídicos
▪ SS – síndrome de Sjögren
▪ U1-RNP - ribonucleoproteína U1
6
Introdução
As doenças autoimunes sistémicas incluem um amplo espectro de doenças caracterizadas
por desregulação do sistema imunológico, dando origem à ativação de células imunes que
se dirigem contra diversos auto-antigénios e resultando em inflamação crónica e dano
multissistémico. São um grupo de distúrbios fascinantes, de patogénese complexa e
pouco clara, para os quais contribuem fatores genéticos, endócrinos e ambientais.
A doença mista do tecido conjuntivo (DMTC) é uma de várias doenças autoimunes
sistémicas, caracterizada por autoanticorpos e células T que reagem com polipépidos da
ribonucleoproteína U1 (U1-RNP) do complexo spliceossoma. As manifestações clínicas
são variadas, com sobreposição de manifestações de lúpus eritematoso sistémico (LES),
esclerodermia, miopatia inflamatória e artrite reumatóide (AR) (1).
A associação entre doenças autoimunes sistémicas e distúrbios linfoproliferativos tem
sido amplamente reconhecida na literatura (2–5). Uma meta-análise dos estudos de coorte
que associaram LES, AR e Síndrome de Sjögren (SS) primário ao risco de linfoma não-
Hodgkin (LNH) entre 1974 e 2005 sugeriu alto risco de LNH no SS primário, risco
moderado no LES e inferior na AR (3). Numa revisão de 2002 incluindo 940 doentes com
linfomas malignos, as doenças autoimunes estavam associadas em 8.2% dos casos,
equivalendo a uma frequência 2 a 3 vezes superior ao normal (2). O SS foi o diagnóstico
mais frequentemente associado a LNH, documentando-se também elevada frequência de
psoríase, tiroidite, polimiosite, esclerodermia, AR, vasculites, conectivites indiferenciadas,
colite ulcerosa, hepatite autoimune, doença de Addison e anemia hemolítica autoimune
(2). A DMTC tem sido apenas ocasionalmente associada a desenvolvimento de linfoma
em case reports e pequenos coortes descritos na literatura.
O mecanismo da linfomagénese nas doenças autoimunes não é ainda suficientemente
claro (3). Têm sido sugeridos como factores etiopatogénicos relevantes para esta
associação a estimulação imunológica crónica característica dos processos autoimunes,
factores genéticos e ambientais partilhados e o papel dos fármacos utilizados no
tratamento da patologia autoimune (2,4). Em doentes com diferentes doenças autoimunes,
incluindo o SS, a AR e o LES, foram identificados na literatura diferentes determinantes
associados a maior risco de LNH, nomeadamente a gravidade da doença, a
activação/estimulação crónica de células B (ou T na doença celíaca e psoríase),
7
desregulação de subsets específicos de células T, perfis de citocinas e mecanismos anti-
apoptóticos (4).
A amiloidose é causada pela deposição extracelular anormal de proteínas com alterações
conformacionais e um formato descrito como folha β-pregueada, quer por produção
excessiva da proteína amiloidogénica wild-type, quer por proteólise desta num fragmento
amiloidogénico, provocando lesão tecidular e disfunção orgânica (6). As manifestações
clínicas dependem da proteína percursora, da sua distribuição pelos tecidos e da
quantidade de proteína depositada (7) e a amiloidose pode ser sistémica ou localizada
(6,8,9). A doença localizada ocorre em 10-20% dos casos, sendo mais frequente a forma
sistémica, com envolvimento renal, pulmonar, do tracto gastrointestinal, pele e coração
(8). As amiloidoses sistémicas mais frequentes são a amiloidose a cadeias leves
(amiloidose AL), amiloidose a transtirretina (amiloidose ATTR), amiloidose a proteína
LECT2 (amiloidose ALECT2) e amiloidose a amilóide A (amiloidose AA), responsáveis
por mais de 90% dos casos (6).
A amiloidose a amilóide A (amiloidose AA), causada pela deposição de proteína de fase
aguda amilóide, surge habitualmente como complicação de doenças inflamatórias
crónicas, como a AR e doença inflamatória intestinal, estando ainda associada a infeções
crónicas como a tuberculose ou sífilis e a neoplasia sólidas e hematológicas (carcinoma
das células renais, LNH e, menos frequentemente, tumores vesicais e do estroma
gastrointestinal) (6,7,9). Nos países ocidentais, as doenças do foro autoimune são a causa
mais frequente de amiloidose AA e, inversamente, a amiloidose AA é a forma mais
comum de deposição patológica de amilóide neste grupo de doenças (9).
A amiloidose a cadeias leves (amiloidose AL) é causada pela deposição de fragmentos da
porção variável de cadeias leves de imunoglobulinas (Ig) monoclonais, devido a mutações
nas regiões variáveis das cadeias pesadas e leves destas (7). Pode ocorrer de forma
espontânea, estando frequentemente associada a distúrbios plasmocitários, como o mieloma
múltiplo (MM) ou a macroglobulinémia de Waldenstrom (MW) (10–13). Contrariamente
à amiloidose AA, é uma complicação rara de doenças do tecido conectivo ou linfomas.
Apresenta-se um caso de amiloidose AL no contexto de doença autoimune sistémica e
linfoma não-Hodgkin, uma associação rara levantando questões interessantes sobre o elo
etiopatogénico das diferentes entidades.
8
Caso Clínico
Apresenta-se o caso de uma mulher de 58 anos, leucodérmica, que inicia a partir dos 44
anos de idade quadro de astenia/cansaço fácil, alopécia, exantema malar e das zonas foto-
expostas, aftose oral recorrente, poliartrite simétrica de pequenas e médias articulações,
xerostomia e xeroftalmia, a que se associa subsequentemente fenómeno de Raynaud,
edema das mãos, esclerodactilia e poiquilodermia. Do estudo imunológico efectuado,
destacava-se de forma consistente anticorpos antinucleares (ANA) positivos com
titulação 1:640 com padrão mosqueado, anticorpos anti-dsDNA e anti-Sm discretamente
positivos e anticorpos anti-RNP-Sm e anti-RNP-70 francamente positivos. A
capilaroscopia ungueal realizada mostrava capilares dilatados, sugerindo overlap
syndrome ou doença mista do tecido conjuntivo. Admitido o diagnóstico de doença mista
do tecido conjuntivo, encontrava-se medicada com hidroxicloroquina 200 mg id, com
necessidade pontual de prednisolona em dose máxima de 20 mg id por flares cutâneos e
articulares ocasionais.
Aos 46 anos apresenta episódio de trombose venosa profunda femoro-popliteia esquerda,
com positividade para anticoagulante lúpico e subsequentemente anticorpos anti-
cardiolipina e anti-β2-glicoproteína. Assumido o diagnóstico de síndrome dos anticorpos
antifosfolipídicos (SAAF) secundário, encontrava-se anticoagulada desde então.
Aos 58 anos de idade e em aparente estabilidade clínica, apresenta-se na consulta com
quadro de adenomegálias nas regiões supraclavicular, axilar e inguinal direitas,
tumefacção na orofaringe com odinofagia, calafrios nocturnos e perda ponderal não
quantificada. À observação, tinha hipertrofia/tumefacção da orofaringe envolvendo a
amígdala e pilar amigdalino direitos, ulcerada, adenomegálias palpáveis nas regiões
supraclavicular, axilar e inguinal, com cerca de 3-4 cm, de consistência aumentada,
aderentes aos planos profundos, com restante exame sem alterações. Laboratorialmente,
apresentava Hb 13.8 g/dl, leucócitos 6120x106 com 4110x106 neutrófilos, 1610x106
linfócitos e 280x106 monócitos, plaquetas 193000x106, velocidade de sedimentação 23
mm/h, PCR 0.14 mg/dl, β2-microglobulina 5.38 mg/dl e hipogamaglobulinémia, sem
outras alterações. A tomografia computorizada toraco-abdomino-pélvica revelou massas
sólidas de sugestão ganglionar na área axilar direita com cerca de 5 x 4 cm, na região
supraclavicular direita com 4 x 3 cm e na região inguinal homolateral medindo cerca de
9
4 x 3 cm, adenopatia axilar à esquerda com cerca de 17 mm de menor eixo e no território
do tronco celíaco com 14 mm de menor eixo.
As biópsias das adenopatias supraclavicular e axilar direitas e da amígdala direita
revelaram linfoma difuso de grandes células B (LDGCB), de tipo não centro germinativo,
vírus Epstein-Barr (EBV) negativo. O mielograma mostrou medula normocelular, sem
desvio da relação mielóide/eritróide, com linfócitos e plasmócitos em número normal
(respectivamente, 10% e 2% da celularidade total) e sem células atípicas. A biopsia óssea
não mostrou infiltração por linfoma. Dado o diagnóstico de linfoma difuso de grandes
células B, a doente iniciou quimioterapia com rituximab, ciclofosfamida, doxorrubicina,
vincristina e prednisolona, tendo cumprido seis ciclos com resposta completa.
Durante a investigação clínica e estadiamento, foi requisitada endoscopia digestiva alta
que revelou gastrite antral com bulboduodenite. Inesperadamente, as biópsias foram
positivas para substância amilóide não-AA. A biópsia da gordura abdominal revelou raras
fibras sugestivas de amilóide. A imunofixação sérica revelou presença de ligeira banda
nas cadeias pesadas IgG com correspondente banda nas cadeias leves lambda e a
imunofixação urinária detectou proteinúria de Bence Jones. Neste contexto, considerou-
se a hipótese de amiloidose AL. Realizou ecocardiograma transtorácico que mostrou
ventrículo esquerdo espessado, de aspecto infiltrativo, e a ressonância magnética cardíaca
confirmou cardiomiopatia infiltrativa. Embora não tenham sido realizadas biópsias renal
ou do miocárdio (devido a anticoagulação), foi assumido o diagnóstico de amiloidose AL
no contexto de doença autoimmune sistémica e distúrbio linfoproliferativo e foi iniciada
terapêutica com bortezomib, que cumpriu durante cinco ciclos, com remissão completa
da doença.
10
Discussão
Doença autoimune sistémica e distúrbios linfoproliferativos
A evidência associando doenças autoimunes sistémicas como o SS, o LES e a AR a um
risco aumentado de doença linfoproliferativa tem sido crescente (2–4,14). Desde a
publicação inicial por Frayha et al que tem sido bem documentada a associação entre SS
e linfoma, sendo o SS considerado a coincidência clássica de fenómenos autoimunes e
malignidade, sobretudo de linfomas B indolentes (2,15). Metade dos doentes com SS
desenvolvem distúrbios sistémicos associados a vários autoanticorpos, sobretudo anti-
Ro/SS-A e anti-La/SS-B, com infiltração linfocítica multiorgânica durante a progressão
da doença e desenvolvimento de linfoma maligno em 5% dos casos de SS (14). É, como
tal, considerado um distúrbio linfoagresssivo que começa com infiltração linfocítica
glandular policlonal e pode evoluir para proliferação oligo ou monoclonal de células B,
resultando em linfoma (14).
Numa análise conjunta de 2008 que incluiu 12 estudos caso-controlo e 29 493
participantes, foi demonstrado um risco aumentado de linfomas da zona marginal,
sobretudo do tecido linfóide associado à mucosa (MALT), e linfoma difuso de grandes
células B (LDGCB), no LES e SS (4). Neste estudo, verificou-se a associação entre LES
e LNH em doentes com aparecimento mais tardio de LES (>39 anos) e o dobro do risco
nos casos com mais de 10 anos de doença (4). Uma meta-análise dos estudos de coorte
que associaram LES, AR e SS primário ao risco de LNH entre 1974 e 2005, sugeriu alto
risco de LNH no SS primário, risco moderado no LES e inferior na AR (3).
Apesar da clara associação entre patologia autoimune sistémica e doença
linfoproliferativa, cada vez mais enfatizada na literatura, o mecanismo de linfomagénese
nas doenças autoimunes não é ainda claro (3). Os factores identificados como
contribuindo maioritariamente para o desenvolvimento de linfoma em doentes com
patologia auto-imune incluem a gravidade da doença, a activação ou estimulação crónica
de células B e o estadio inflamatório, bem como o perfil de citocinas, desregulação de
células T e resistência apoptótica (4). São vários os aspectos fisiopatológicos partilhados
entre doenças autoimunes sistémicas e distúrbios linfoproliferativos, como a desregulação
da apoptose, com menor expressão do ligando apoptótico fas e sobre-expressão do anti-
11
apoptótico bcl-2, a expansão de células CD5+, policlonal nas doenças autoimunes e
monoclonal no linfoma, e alterações de padrões de citocinas, que se traduzem
ultimamente em terapêuticas citostática e imunossupressora partilhadas (corticóides,
ciclofosfamida, metotrexato, entre outros) (2).
Doença mista do tecido conjuntivo e linfoma
A DMTC foi descrita pela primeira vez há décadas como uma síndrome de overlap
partilhando características de LES, esclerose sistémica e polimiosite/dermatomiosite,
com título elevado do autoanticorpo anti-U1 RNP. Dada a larga diversidade de
manifestações descritas, o seu reconhecimento como entidade clínica distinta gerou
controvérsia durante largo período (16).
É uma doença rara, com poucos casos relatados; segundo um estudo Norueguês de 2011,
na população estudada tinha uma prevalência de 3.8 em 100 mil adultos e incidência anual
de 2.1 casos por milhão, com surgimento em média aos 31.9 anos de idade e maior
frequência no sexo feminino (75% dos casos) (17).
Existem vários critérios de classificação descritos para DMTC (1,16,17). Nas figuras 1 e
2 constam os critérios de diagnóstico de Alarcón-Segovia e de Kasukawa. Os primeiros
são os mais utilizados, abrangendo 5 manifestações clínicas, além do estudo imunológico,
com uma sensibilidade inferior a 90% e uma especificidade superior a 98% quando 3 ou
mais critérios clínicos estão presentes, juntamente com anticorpos anti-RNP (1,17).
Figura 1: Critérios de Alarcón-Segovia para diagnóstico de DMTC (17).
12
Figura 2: Critérios de Kasukawa para diagnóstico de DMTC (17).
As manifestações clínicas, variadas, incluem rash malar, alopécia, fenómeno de Raynaud,
edema dos dedos ou mãos, artralgia com ou sem artrite, refluxo ou dismotilidade
esofágica, acroesclerose (i.e., esclerodactilia), miosite, envolvimento pulmonar, anemia,
leucopénia, entre outros (figura 3) (1). Embora muitos doentes mantenham o quadro
característico de overlap, a doença pode evoluir para uma conectivite diferente com
fenótipo específico, como o LES (18).
13
Figura 3: Características clínicas, imunológicas e genéticas da DMTC (1).
Apesar da associação descrita entre doenças autoimunes sistémicas e distúrbios
linfoproliferativos, são raros os relatos de linfoma na DMTC, tendo o primeiro caso de
DMTC e linfoma sido descrito por Frayha et al (15,19). Foi reportado subsequentemente,
por McLeish et al, o caso de um doente com DMTC que desenvolve um linfoma nodular
esclerosante, com remissão completa de ambos sob quimioterapia combinada e
recorrência posterior de doença autoimune em actividade e recorrência subclínica de
linfoma (15). A baixa prevalência da doença, com escassos dados epidemiológicos, e o
reconhecimento tardio da entidade como clinicamente distinta e de respectivos critérios
de classificação internacionais consensuais, condiciona o número reduzido de case
reports e de coortes na literatura onde a associação possa ser estabelecida (20).
14
Doença mista do tecido conjuntivo e amiloidose
A amiloidose é causada pela deposição extracelular anormal de proteínas com alterações
conformacionais e um formato descrito como folha β-pregueada, quer por produção
excessiva da proteína amiloidogénica wild-type, quer por proteólise desta num fragmento
amiloidogénico, ou por mutações hereditárias ou adquiridas, provocando lesão tecidual e
disfunção orgânica. Foram identificadas mais de 30 proteínas causadoras (6). As
manifestações clínicas dependem da proteína percursora, da sua distribuição pelos tecidos
e da quantidade de proteína depositada (7). A doença localizada ocorre em 10-20% dos
casos, sendo mais frequente a forma sistémica, com envolvimento renal, pulmonar, do
tracto gastrointestinal, pele e coração (8). As amiloidoses sistémicas mais frequentes são
a amiloidose AL, amiloidose ATTR, amiloidose ALECT2 e amiloidose AA, responsáveis
por mais de 90% dos casos (6).
A amiloidose AA resulta da deposição tecidual de fragmentos de uma proteína de fase
aguda, amilóide A, produzida em situações de inflamação crónica ou recorrente (21).
Infecções crónicas, como tuberculose, foram consideradas das causas mais frequentes.
Neoplasia sólidas e hematológicas (carcinoma das células renais, linfoma não-Hodgkin
e, menos frequentemente, tumores vesicais e do estroma gastrointestinal) estão também
na origem desta forma de amiloidose (6,9). Entre as doenças autoimunes, a AR tem sido
reconhecida como uma das principais causas, constituindo o alelo gama no gene serum
amyloid A (SAA 1) na AR um factor de risco para amiloidose AA (22). Um estudo de
2010, com 16 doentes portugueses com amiloidose secundária a doenças reumáticas
inflamatórias, verificou que 68.8% tinham AR, sobretudo mulheres (81.2%), com
identificação em média 13,5 anos após o diagnóstico da doença inflamatória primária, e
tendo como principal manifestação o envolvimento renal, com alta taxa de complicações
gastrointestinais e neurológicas associadas (21). Também é reconhecido que na DMTC
este tipo de amiloidose pode ocorrer, sobretudo nas fases precoces da doença, apesar dos
escassos case reports descritos na literatura (22).
A amiloidose AL é causada pela deposição das regiões variáveis de cadeias leves (kappa
ou lambda) de uma imunoglobulina produzida por proliferação plasmocitária, com o tipo
lambda em 75% dos casos (13,23). Este distúrbio clonal de células B pode ser idiopático
ou estar associado a mieloma múltiplo (MM) ou macroglobulinémia de Waldenstrom
(MW) (7,10–13). Pode restringir-se a uma área localizada, sem risco de envolvimento
15
sistémico, ou apresentar-se como doença sistémica com envolvimento de órgão variado
(6,7). Dependendo dos órgãos envolvidos, as manifestações clínicas podem ser variadas,
chamando particular atenção a proteinúria, a cardiomiopatia, a hepatomegália, a
neuropatia, os sintomas gastrointestinais e musculoesqueléticos (9).
Na amiloidose AA, o tratamento é dirigido ao distúrbio infeccioso ou inflamatório
subjacente, e na Amiloidose AL, à discrasia de plasmócitos subjacente, com vista à
eliminação da proteína monoclonal e ao clone plasmocitário (6,7). Apesar do prognóstico
desfavorável da amiloidose AL, o arsenal terapêutico disponível expandiu-se muito nos
últimos anos, desde a associação de melfalano e prednisona como recurso único usado
em 1977 até aos esquemas terapêuticos mais recentes com altas doses de melfalano e
transplante autólogo de células estaminais ou com os novos agentes como a lenalidomida
e o bortezomibe (7,10,12). A extensão do envolvimento cardíaco continua a ser o
determinante major do outcome na amiloidose AL (8,24).
Da pesquisa efectuada na literatura, não foi encontrada nenhuma associação ente DMTC
e amiloidose AL. De forma interessante, existem alguns casos pontuais descrevendo a
ocorrência de amiloidose AL em doentes com SS, com envolvimento de predomínio
cardíaco e pulmonar pela proteína amilóide, antecipando-se que a activação plasmocitária
marcada nesta e noutras doenças inflamatórias pode, excepcionalmente, fazer surgir clone
plasmocitário monoclonal responsável pela associação (25–27).
Linfoma não-Hodgkin e amiloidose
Apesar de frequentemente associada a distúrbios plasmocitários primários como o MM e
a MW, a amiloidose AL secundária a linfoma não-Hodgkin é muito raramente descrita
na literatura (8,10–12,28). Nos raros case reports encontrados, destaca-se como distúrbio
linfoproliferativo primário o linfoma linfoplasmocítico, a leucemia linfocítica crónica e o
linfoma do tipo MALT (8,10–12). Destaca-se, pela pertinência para o caso descrito, um
case report de 2002 apresentando um doente com SS que desenvolve um linfoma MALT
pulmonar e deposição de amiloide AL no tecido linfóide, encontrando-se cadeias leves
monoclonais tanto no linfoma como nos depósitos de amilóide, sugerindo fortemente
produção de proteína amilóide pelo linfoma (14).
16
Os doentes com amiloidose AL secundária a linfomas parecem ter características
diferentes daqueles com amiloidose AL associada a discrasias plasmocítárias típicas:
geralmente são doentes mais velhos, com envolvimento multisistémico pela amiloidose
(pulmão, gânglios linfáticos e sistema nervoso periférico), com isotipo da proteína
monoclonal circulante mais frequentemente IgM e restrição a cadeias leves lambda
(8,10,11).
A amiloidose AL associada a linfoma pode ser, distintamente, peritumoral ou sistémica,
sem ocorrência de conversão de uma forma noutra. Na amiloidose peritumoral, a proteína
amilóide é depositada na proximidade imediata das células malignas e, na forma
sistémica, à distância do linfoma subjacente (11). Nos casos descritos de LNH com
amiloidose peritumoral, descrevem-se níveis vestigiais ou indetectáveis da proteína
monoclonal, envolvimento de um único órgão (pulmão ou tecido mole), linfoma do
subtipo MALT subjacente e um curso mais indolente, sendo os doentes pouco afectados
ou assintomáticos durante o seguimento, sob tratamento reduzido ou nulo (11). Por outro
lado, os casos de LNH com amiloidose sistémica, apresentam altos níveis de proteína
monoclonal, deposição amilóide multiorgânica (não apenas pulmonar e nos tecidos moles
mas também infiltração cardíaca e do sistema nervoso), sobretudo linfoma
linfoplasmocítico e sobrevivência curta (mediana de 11 a 49 meses descrita na literatura)/
pior outcome (11).
Em conclusão, apresenta-se um caso de amiloidose AL no contexto de doença autoimune
sistémica e linfoma não-Hodgkin. Esta associação rara enfatiza a possibilidade da
activação linfocitária e plasmocitária marcada poder fazer surgir, na evolução destas
doenças, clone monoclonal responsável por produção e deposição de cadeias leves.
17
Agradecimentos
Ao Professor Rui Victorino, por ter aceitado que a tese fosse associada à Clínica
Universitária de Medicina II, indicando um orientador adequado para a mesma.
À Doutora Catarina Mota, orientadora desta tese, pela compreensão que demonstrou face
às limitações sentidas durante a realização da mesma, pelo tempo que dedicou à sua
correcção e organização, pela ajuda indispensável e disponibilidade em todos os
momentos, apesar das suas várias solicitações profissionais.
Aos meus pais, “professores” de sempre, que me proporcionam o ambiente que a
aprendizagem exige; e que me tentam transmitir, sobretudo pelo seu exemplo, o que à
ética, ao amor, respeito, integridade e demais valores diz respeito.
18
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