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CLINT EASTWOOD — CLáSSICO E IMPLACáVEL São Paulo: 6—30 dez 2011. Brasília: 13 dez 2011—8 jan 2012

Clint Eastwood - Catálogo

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  • CLINT EASTWOOD CLSSICO E ImpLACvEL

    So Paulo: 630 dez 2011. Braslia: 13 dez 20118 jan 2012

  • O Centro Cultural Banco do Brasil procura, em sua programao audiovisual, possibilitar ao pblico um contato mais profundo com a obra de personas e realizadores significativos da histria do Cinema. A mostra Clint Eastwood Clssico e implacvel, apresentada pelo Ministrio da Cultura e Banco do Brasil, mais um exemplo nesta trajetria.

    Clint Eastwood iniciou sua carreira como ator em 1955, mas seu primeiro trabalho de grande repercusso foi em 1964, no clssico do gnero western spaghetti Por um punhado de dlares (Per un pugno de dollari), de Sergio Leone. Protagonizou, a partir de ento, diversos filmes que o imortalizaram como pistoleiro duro.

    Em 1971, Clint estreia na funo de diretor em Perversa paixo (Play Misty for Me). Esta carreira, na qual permanece em atividade, ficou caracterizada pelo rigor formal, pelo aprofundamento nas histrias e personagens e, sobretudo, pela coerncia em toda sua produo.

    com satisfao que o CCBB convida o pblico a acompanhar a maior retros-pectiva j realizada no pas sobre este cone do cinema exibio de 43 filmes, debate e publicao de um catlogo , contribuindo para a reflexo sobre a obra, viva e em andamento, deste ator e diretor.

    Centro Cultural Banco do Brasil

  • Clint, como todos se sentem vontade de o chamar, muito por conta da aproximao e envolvimento que seus personagens e seus filmes despertam, faz um cinema com uma marca prpria e especial. um autor que se formou na dinmica de Hollywood como uma espcie de guardio do cinema clssico no cinema contemporneo e guardio da prpria Amrica, mesmo que para question-la, sendo s vezes heri e s vezes anti-heri, s vezes policial e s vezes caubi, nem de todo mau, nem de todo bom, mas sempre em busca de algo que lhe essencial.

    Sua maestria reside em grande parte no fato de seus movimentos como diretor serem formados fundamentalmente pela mise en scne, por aquilo que essencialmente cinematogrfico. assim que seus planos e cenas se constroem. Entretanto, a ideia de um cinema de autor nunca foi muito bem associada ou aceita para sua obra, e por muito tempo esteve longe de ser unnime tanto no meio crtico quanto no acadmico, especialmente porque vrios dos seus filmes so criados a partir de uma certa iconografia e linguagem do cinema de estdio norte-americano.

    Mas, para alm dessa questo, h uma certa linha condutora que rege o caminho de suas histrias e de seus personagens, sempre em movimento, passando por questes (e emoes) como os encontros, os reencontros, os conflitos, a coragem, a violncia, a moral, a vida e a morte.

    Seu cinema nos traz sentimentos diferentes e que a princpio seriam vistos como contraditrios como amargura e afeto ou dureza e sensibilidade, e talvez este seja um de seus maiores trunfos. E essa associao est refletida na imagem que ele constri para si como diretor-ator, onde seus protagonistas esto integrados a uma ideia de transformao, em uma trajetria que at o momento soma 34 filmes lanados como diretor e 66 como ator.

    Assim, a mostra Clint Eastwood Clssico e implacvel foi idealizada a partir da vontade de pensar, mostrar e ver o Clint como diretor, ator e autor. Para isso montamos um panorama de 43 filmes, que se voltam tanto para a sua trajetria como diretor quanto para a de ator, mostrando influncias determinantes como as de Don Siegel e Sergio Leone.

    O que percebemos ao longo dessa jornada que o mais poderoso, e que fica de sua obra, a maneira como ele encanta o espectador atravs da sua preciso e rigor; e da aposta na densidade de diferentes histrias, fazendo um cinema apenas com o que necessrio, como um cavaleiro solitrio no tempo e no espao, como se fosse um filme, um filme para diferentes geraes.

    Gisella Cardoso, curadora

  • RIChARD SChICkEL

    O pERCuRSO INTEIRO

    6

    SRgIO ALpENDRE

    TRAJETRIA DE CLINT EASTWOOD

    44

    CLEbER EDuARDO

    ENTRE A LEI E A ORDEm

    58

    RIChARD pEA

    O CORpO Em quESTO

    66

    STphANE bOuquET

    CLINT FuCkINg EASTWOOD

    72

    NIkOLA mATEvSkI

    A ESCuRIDO DO hERI

    82

    INCIO ARAuJO

    um CINEASTA quASE CLSSICO

    90

    LuIz CARLOS OLIvEIRA JR.

    O hOmEm EASTWOODIANO

    98

    CALAC NOguEIRA

    A Luz E O TRAO110

    TATIANA mONASSA

    OuT OF ThE ShADOWS

    116

    FRANCIS vOgNER

    OS ESpECTROS DA CIvILIzAO

    122

    ThIAgO STIvALETTI

    SupERAO, CuLpA, SACRIFCIO

    130

  • EmmANuEL buRDEAu

    EASTWOOD FILhAS & FILhOS

    138

    mIChAEL hENRy WILSON ENTREvISTA CLINT EASTWOOD

    DIRECTED by148

    bRuNO ANDRADE

    LONgE DO CLASSICISmO

    168

    FERNANDO TOSTE

    EASTWOOD E A hERANA DE LEONE

    174

    gILbERTO SILvA JR.

    hAWkS-EASTWOOD184

    mARCELO mIRANDA

    JOhN FORD E CLINT EASTWOOD

    192

    NOTA SObRE A mALpASO

    200

    CLINT pOR CLINT204

    FILmES ExIbIDOS214

    FILmOgRAFIA COmpLETA

    236

  • RichaRd Schickel

    O pERCuRSO INTEIRO

    The Whole Ride, introduo da biografia Clint: A Retrospective (Sterling, 2010). Reproduzido com a autorizao do autor. Traduzido do ingls por Fabiana Comparato.

  • O percursO inteirO

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    1Gosto de ver Clint entrar num restaurante. Ou, esperedeixe--me aprimorar esta afirmao , gosto de no v-lo entrar num restaurante. Ele tem um certo orgulho pelo fato de conhecer as portas de servio de todos os sales de cerimnia de Los Angelessabe, entrar pela porta de trs, passar pela cozinha, subir as escadas de servio, achar o caminho at o salo prin-cipal, e l esperar de forma amigvel a apresentao do prmio que esteja sendo oferecido a ele. o mesmo com os restau-rantes; ele parece conhecer todas as portas de servio da cidade.

    Ento l est elesorrindo cordialmentepronto para comer seu prato de peixe, massa ou frango acompanhado de uma cerveja ou taa de vinho branco, e com uma longa, amigvel e despretensiosa conversa. A razo para todas essas tticas evasivas simplesevitar os paparazzi e a enxurrada de fs que geralmente o cercam. Ainda o deixa confuso que, com quase oitenta anos, ainda atraia tanta ateno. Ainda no se fartaram dele depois de tanto tempo?

    J estive com ele quando, apesar de todo o seu esforo, eles o rodearam. Geralmente, cortsconhece a maioria de vista , dando autgrafos, educadamente rejeitando os presentes (como antigas revistas em quadrinho da srie Couro cru / Rawhide1, pelas quais ele no tem nenhum interesse), e sempre em movi-mento at se ver livre. Por outro lado, ocasionalmente j o vi com raiva: Escutem, seus filhos da me, essa j a terceira vez que vejo vocs hoje. J chega.

    s vezes ele se torna proativo. Uma vez estvamos fazendo uma sesso de perguntas e respostas na Universidade de Los Angeles e o pegaram no estacionamento depois da nossa

    1 Rawhide, srie americana de western com oito temporadas do canal de tv cbs, exibida de 1959 a 1966.

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    apresentao. Ele se aproximou da sua mercedes impecvel, sinalizou para mim (amos almoar com um amigo) e partiu, com os fotgrafos em intensa perseguio. Isso algo que s vezes o diverte, dirigir em alta velocidade pelas ruas, vielas, estacionamentos, despistando os perseguidores. Ele chegou no almoo contando a divertida histria da sua astuta improvisao de tticas evasivas.

    O gosto de Clint por simplesmente aparecer nos lugares, sem aviso e sem explicao, foi por vezes refletido em filmes como O estranho sem nome (High Plains Drifter, 1973) e O cava-leiro solitrio (Pale Rider, 1985), nos quais ele fez aparies um pouco fantasmagricas (embora ele sempre tenha evitado identi-ficao direta com esse tipo). Mas no importa o filme, ele nunca foi f de tramas secundrias, especialmente para os seus perso-nagens. Ele tambm acredita que o pblico gosta de filmes com o final aberto. Mistrio resolvido mistrio esquecido; um mistrio sem soluo tem o potencial de assombrar por um longo tempo.

    Seu ar de bondoso mistrio , naturalmente, uma maneira de manter sua privacidade, embora, no caso de Clint, ajude tambm o fato de ter 1,92 metros, parecer (mesmo que equivo-cadamente) carregar uma arma Magnum 44, e estar armado com uma prontido eterna para se desviar de admiradores semipsi-cticos. Isso o mais puro Clint. Em qualquer ocasio, a no ser no Oscar, ele mesmo dirige para todos os lugares, sem segurana. E talvez seja por isso que tenha tantas casasseis da ltima vez que contei , todas (menos a de Los Angeles) em comuni-dades que tem real interesse em proteger o direito de ir e vir. Em Carmel, sua residncia principal, ele vai ao cinema com sua mulher e filhos como uma pessoa comum.

    O hbito da inquietude esteve entranhado nele desde cedo. Quando criana, sua famlia vagava do norte ao sul da costa leste enquanto seu pai procurava qualquer trabalho disponvel

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    durante a Depresso americana. Era uma famlia unida, fonte de seus principais valores, mas tambm foi difcil para Clintum menino tmido e nem sempre confortvel como o perptuo novo aluno da escola , e talvez essa tenha sido a fonte dos elementos bsicos de seus personagens: desde Por um punhado de dlares (Per un pugno de dollari, de Sergio Leone, 1964), seu primeiro western spaghetti, ele era o cara que simplesmente vagava pela cidade, encontrava pessoas oprimidas por algum tipo de mal, ajudava a colocar as coisas no lugar e depois partia sem explicao.

    Por outro lado, por natureza um homem disciplinado, mantendo ritmo e conduta imutveis durante os trinta e trs anos que o conheo. Suspeito que isso seja tambm produto da sua infncia, quando provavelmente sonhava com uma vida mais estabelecida, que os Eastwood no conseguiram conquistar at finalmente se enraizarem em Oakland, quando Clint j era adolescente. Straight strands [fios em linha reta] a expresso que usa ao falar de fazer filmeshistrias e personagens seguindo um caminho destinado, mesmo quando esse caminho seja, por um tempo, escondido do pblico. Ele tem muita f no destinona forma como discretamente reboca as pessoas.

    No que ele tenha aparentado alguma vez para mim como um homem que um enigma para si mesmo. Ele sabe quem , e sabe o que representa para o mundo que sempre o observa. Mas ainda assim seu traje habitual camisa polo, cala de algodo e tnis, seu ritmo brando, sua expresso natural um sorriso tmido e vigilante. Uma vez um amigo nosso estava sendo questionado por jornalistas sobre um assunto qualquer e uns reprteres pediram a Clint um comentrio: Como voc quer que eu aja? ele perguntou ao nosso amigo, de forma inteli-gente ou burra?. E para ns era bvio que a segunda opo era a que Clint preferia. Meu palpite que vrios espertinhos de

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    Hollywood j foram embalados, se no seduzidos, pelo ar amiga-velmente questionador de Clint. Se nada mais, isso o diverte.

    E me diverte tambm. Ns nos conhecemos na casa de amigos em comum no vero de 1977, no muito depois da estreia de Josey Wales, o fora da lei (The Outlaw Josey Wales, 1976), filme que gosto muito e que rendeu crticas favorveis. Minha primeira impresso foi a de um homem composto, pensativo e sem nenhum interesse em dominar o ambiente. Ele escutou, contri-buiu confortavelmente com a conversa, e parecia interessado em conhecer um crtico de cinema, naqueles dias ainda um ser estranho para ele. Naquela poca, seus encontros formais com a imprensa no eram muito bons. Ele era tmido e, acho, de certa forma se sentia desconfortvel por no ter tido uma educao formal (com um semestre numa faculdade comunitria). Mas ele um homem que trabalha duro no que acredita ser suas defici-ncias, e se tornou, atravs dos anos, muito bom com entrevistas.

    Nos anos seguintes, almovamos juntos quando ele estava em Nova York ou eu em Los Angeles. Estas visitas nem sempre coin-cidiam com a estreia de um novo filme seuo que o fazia nico entre outros diretores, que apenas apareciam quando tinham um novo filme estreando, mas nunca em outros momentos. Para mim muito significativo que no me lembre de nada do que falamos nestes momentosnossos encontros sempre foram casuais desta maneira. Mas, que fique registrado, nos tornamos amigos.

    2O que mais me lembro daquela poca so os almoos em Los Angeles. Clint mantinha um carro velho, que de alguma forma escapou da destruio em algum de seus filmes, e gostava de ficar rodando com eleia de uma lanchonete que algum reco-mendara em algum bairro insalubre de la a um lugar de comida mexicana no interior do vale (naquela poca ele era menos

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    preocupado com a sua alimentao). Os balconistas e fregueses naturalmente o reconheciam, mas no expressam mais do que um arregalar de olhos, talvez um aceno de cabea. Acredito que sempre tenha existido certo reconhecimento tcito entre grande parte do seu pblico de que Clint um dos delesum homem da classe trabalhadora sem necessidade de evitar esta identi-dade. Ou que faa disso uma grande coisa.

    Em oposio, consigo pensar em apenas um filme, Corao de caador (White Hunter Black Heart, 1990), em que ele repre-sentou um homem contrrio a este tipo, e acho que essa regula-ridade que to reconfortante para o seu pblico. Voc tem um trabalho, voc faz o seu trabalhoe sorte a sua de ter um que seja mais interessante e recompensador que o meu. Sou apenas um cara que faz filmes, ele disse uma vez, e eles gostam desta ideia, especialmente porque ele famoso por faz-los com frugalidade, de forma eficiente, sem pretenses e sem tediosa autorreflexo.

    Clint encontrava-se num momento interessante da sua carreira quando fez Josey Wales. Os anos de aprendizque aconteceram em pequenas poresj haviam ficado h muito para trs. Mas no foram esquecidos, principalmente por ele mesmo. Olhando para trs ele reflete, frequentemente, que sendo alto, de cabelos cor de areia e tmido, no era exata-mente o tipo certo para o estrelato de acordo com as defini-es da poca. Protagonistas naqueles dias eram mais morenos, com modos mais autoritrios e mais abertamente romnticos. Sempre achei que Clint chegou sua eminncia presente muito antes do que praticamente qualquer um; no havia nada repen-tino em seu estrelato. Mas ele perseverou, cavando meios para sustentar a si e a sua mulher, Maggie, e foi recompensado com o seu longo papel como Rowdy Yates na srie televisiva O estranho sem nome, que por sua vez, o levou a fazer os westerns spaghetti, que talvez ainda no o tivessem tornado uma estrela,

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    mas em um forte candidato ao estrelato, transformando sua timidez natural em trao bem mais provocativo e irnico.

    Em 1976 fazia oito anos desde seu ltimo papel em um western spaghetti e ele j havia feito quinze filmes americanos, a maioria no estdio da Universal, onde estava ento sediado. Esses filmes incluram seus primeiros esforos de direo, o deliciosamente assustador Perversa paixo (Play Misty for Me, 1971), assim como o subestimado O estranho que ns amamos (The Beguiled, de Don Siegel, 1971), ambos estranhos, estudos obscuros do descuido sexual masculino e da vingana feminina contra o macho conquistador. Eles lhe rederam fora de reco-nhecimento na indstria.

    Mas Clint estava inquieto na Universaldizia que era por estar farto da intromisso dos carrinhos de excurso do estdio na sua vida, mas suspeito que o ambiente frio de fbrica do local tambm foi um fator determinante. Ento, quando seu amigo e advogado, Frank Wells, se tornou parte do time de administrao da difcil Warner Bros. (os outros eram o muito engraado e esperto John Calley e o antigo agente, Ted Ashley), ele demons-trou ser receptivo s aberturas. J havia trabalhado algumas vezes por l em seus anos como aprendiz e achou o local acolhedor. Ainda como criana adorava ir ao cinema e amava James Cagneyum tipo de ator destemido; que simplesmente sabia se entregare Bogart, especialmente pelos penteados pouco lisonjeadores de seus personagens em filmes como Seu ltimo refgio (High Sierra, de Raoul Walsh, 1941) e O tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, de John Huston, 1948).

    Mas o ponto principal era que a Warner Bros. j havia adquirido um roteiro que ele estava atrsPerseguidor impla-cvel (Dirty Harry, 1971). Clint era ento, sem dvida, uma estrela, mas Perseguidor implacvel o transformou numa

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    superestrelano h dvida sobre isso tambm, mesmo apesar de Pauline Kael lanar sua longa cruzada anti-Eastwood, criti-cando o filme como uma obra-prima fascista. Ele sempre disse nunca se incomodar com a controvrsia. O que o incomodava era ficar preso a uma imagem. Provavelmente seu pensamento, como disse a mim recentemente, era: Westerns me fizeram ser bem-sucedido, ento poderia apenas ter feito westerns. Dramas policiais me trouxeram sucesso; poderia simplesmente ter feito dramas policiais e encerrar por a. Poderia ter feito uma srie, receber um bom salrio, tomar umas cervejas e ter uma vida boa. Pausa. Mas isso no era o suficiente. Pessoalmente, no era o suficiente.

    Em particular, ele estava determinadobem antes de Perversa paixo (Play Misty for Me, 1971)a ser um diretor. Um ator, em suas prprias palavras, era apenas um compo-nente no processo de realizao de um filme. E ele via nesta profisso o potencial para o tdio. Muitos atores, ele diz, so simplesmente sugados por certo gnero e no querem mais fazer aquilo; ficam cansados de usar lencinhos de papel para proteger as golas dos figurinos.

    Implcito no galanteio, a Warner Bros. era a promessa de ter maior responsabilidade pelo seu prprio destino como diretor--produtor. No que isso fosse colocado de forma to clara. De fato ele apenas disse, Sem excurses, certo, e entrou. Foi uma negociao de um dia, ele disse sobre a mudana para o pequeno bangal espanholeternamente conhecido como The Taco Bellque j havia sido o camarim de Dolores Costello e o escritrio de Harry Warner e Steve McQueen. L ele passou estes muitos anossalvo por algumas demos de tinta e dois novos psteressem fazer praticamente nenhuma modificao no localdeixando de lado o hbito hollywoodiano de permitir s mulheres e namoradas redecorarem intensamente os escritrios.

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    Josey Wales foi o primeiro produto do novo acordo de Clint com a Warner. Como a maioria de seus filmes, este bastante enraizado na tradio do gnero; evidentemente um western. E o personagem-ttulo evidentemente um personagem de Eastwoodum solitrio taciturno vagando pelo ermo. Amarga-mente, desde que os saqueadores de fronteiras da Guerra Civil atearam fogo sua fazenda e mataram a sua famlia. Mas, aos poucose isso que torna o filme memorvel , uma famlia substituta se forma ao seu redorum lder indgena e uma misteriosa mulher indgena, uma mulher abandonada (represen-tada por Sondra Locke, cujo longo relacionamento com Clint se iniciou ali) e sua av, entre outros. Tem inclusive um cachorro perdido. Diante disto, um tropo Eastwood assume: eles so um bando carente e desorganizado que, por conta da sua ilimitada competncia nos caminhos do Oeste, ele organiza, se distan-ciando neste processo do seu jeito rabugento, eventualmente retornando ao seu eu original como uma figura paterna pacfica.

    Josey Wales um filme espaoso, calmo em seu desenvolvi-mento, mas com ao o suficiente para satisfazer os mais leais fs de Clint. E sua predileo por ele duradoura. Acho to bom quanto Os imperdoveis (Unforgiven, 1992), ele me disse uma vez. que talvez o timing tenha sido ruim, algumas pessoas provavelmente no estavam preparadas para ele. Por algumas pessoas ele quis dizer os crticos (o filme foi um sucesso de pblico), que ainda viam seus filmes com Leone como um exerccio de brutalidade, em vez de enxerg-los pelo que eramespirituosas reinvenes de um gnero desgastado , e ainda achavam que Harry Callahan extrapo-lava sua polidez. Eles costumavam, como sabemos, eventualmente a ceder. Enquanto isso, Clint retornava incessantemente ao tema central do filmeem obras diversas como Bronco Billy (1980) e O cavaleiro solitrio, e outras mais recentes como Menina de ouro (Million Dollar Baby, 2004) e Gran Torino (2008).

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    3Harry Callahan foi sua abordagem negativa em relao ao esprito bsico de famlia e amigos, um solitrio radical desde a morte da sua mulher, um workaholic que provavelmente tinha uma cerveja e um pedao velho de pizza na geladeira para quando retornasse, tarde da noite, para o seu apartamento sem alma. Clint insiste que foi por esse motivo que se aproximou do personagem, mais do que pela sua viso sobre a deciso do caso Miranda versus Arizona2 (e outros casos de tribunal que aumen-taram os direitos de criminosos s custas de suas vtimas). De certa forma, ele era como qualquer balconista de loja de conve-nincia, sem vida fora do seu trabalho insignificante. Exceto, claro, que o trabalho de Harry no era insignificante. Havia seus momentos laboriosos, mas tambm era intermitentemente excitante, e sua relao com a burocracia municipal de So Fran-cisco proporcionou muitos momentos de pegue esse trabalho e enfie, que ele promulgou ser a fantasia mais gratificante de parte do seu pblico.

    Vejo Perseguidor implacvelesplendidamente dirigido por Don Siegel, naquela poca o diretor que Clint sempre recorria e um mentor calorosamente receptivoe sua sequn- cia, Sem medo da morte (The Enforcer, de James Fargo, 1976)o filme no qual ele encontra brevemente o amor com a corpulenta, sincera e completamente adorvel Tyne Dalycomo filmes realmente srios e recompensadores na melhor tradio popu-lista, misturando questes humanas dolorosas com um formato

    2 Miranda Decision ou Miranda Versus Arizona foi uma deciso da Suprema Corte dos eua sobre os direitos das pessoas sob custdia policial. No caso de Miranda contra Arizona, em 1966, o Tribunal decidiu que, antes de interrogatrio policial, os suspeitos devem ser informados dos seus

    direitos de permanecer em silncio e consultar um advogado, e que qualquer coisa que disserem poder ser usada contra eles no tribunal. A deciso Miranda estabe-lece que um suspeito tem o direito de no se autoincriminar. [nt]

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    totalmente agradvel. Provavelmente fiz um ou dois a mais do que deveria, Clint admitiu mais tarde, mas os filmes eram sempre rentveis e faz-los era uma maneira de manter a sua confortvel relao com os chefes da Warner Bros.

    Como sabemos, esse um acordo feito com um aperto de mocom cada projeto acordado em seus prprios termos, embora Clint tipicamente avanava uma quantia substancial dos recursos em troca de um retorno pesado e imediato na parti-cipao da renda bruta. Uma recente biografia no autorizada descreve Clint no seu ttulo como um rebelde americano, que em essncia completamente sem sentido. Como muitas grandes carreiras cinematogrficas (pense em Alfred Hitchcock ou Howard Hawks), a sua baseada em manter relaes no rebeldes com os estdios.

    Ele trabalha de forma to rpida e frugal, que quase impossvel para o estdio perder dinheiro em seus filmes. Todavia, ele sempre diz aos executivos, como ele mesmo coloca: No vou te garantir um filme que v vender muito. A nica coisa que eu posso tentar fazer um filme do qual voc se orgulhe de ter seu logotipo logo no incio.

    Mas isso, no entanto, no o fim da questo. Se algum est colocando dinheiro para voc fazer um filme, no h motivo para ser desrespeitoso. Voc vai querer fazer o melhor que puder com as cenas. Mas isso no quer dizer que voc corte cenas s porque so caras demais, ele reflete. Mas pelo menos voc no desperdia nada. Voc no filma muita coisa que no v usar, ou refilma cenas porque as fez errado inicialmente. Em outras palavras, saiba o que quer fazer, faa de forma eficiente, e avance com confiana.

    Essa uma afirmao verdadeiramente radical. Pense nas resmas de reportagens que j leu atravs das dcadas sobre diretores e estdios que brigaram publicamente a respeito da

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    produo e apresentao de filmes, ou no nmero de filmes que j foram retirados das mos de seus autores e reeditados pelos estdios. Pense, tambm, em todas as histrias de custos excedentes legendrios e destruidores de carreiras, em filmes de Clepatra (Cleopatra, de Joseph L. Mankiewicz, 1963) a O portal do paraso (Heavens Gate, de Michael Cimino, 1980). Pense agora no cara que comprou todos os seus filmes anteci-padamente e os realizou abaixo do oramento. Depois pense sobre os 35 anos de Clint na Warner Bros.a relao mais longa de um ator-diretor com um nico estdio na histria dos filmes, uma que abrange um tero da histria deste meioe isto est fora de qualquer padro histrico estreito que utilizamos para acomodar nossa compreenso sobre o passado do cinema.

    4Nos primeiro anos de Warner Bros., ele praticamente nos carregava nas costas, disse John Calley, o que o fez ter uma confiana quase cega nos instintos de Clint. Na poca, o comentrio geral era que Clint e o estdio estavam operando no esquema um pra mim, um pra voc. Mas era um pouco mais complicado do que isso. Ou, talvez, devamos dizer que era um pouco menos calculado do que isso. Deixando de lado a maioria das sequncias de Dirty Harry e outros poucos filmes, Clint nunca foi de desenvolver ideias. Ele no era de perder muito tempo conhecendo roteiristas e repassando por verses e verses dos roteiros. Roteiros quase acabados tm uma tendncia a vagar em sua direo. Ele os l e rapida-mente toma sua decisono caso de Bronco Billy aconteceu enquanto estava aberto sobre a mesa de um assistente. Pensei que poderia dar chance para umas quatro ou cinco pginas, ele relembra, mas terminei de ler o roteiro inteiro ali mesmo naquela mesa. Imagino que se possa dizer que este era para

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    ele, no sentido de que o filme no fez muito dinheiro para o estdio e explorava de forma cmica o tema da construo de uma famlia que fora abordado em Josey Wales.

    J foi dito que o roteiro de Doido para brigar Louco para amar (Every Which Way But Loose, 1980) (este aquele no qual o personagem de Clint, Philo Beddoe, est sempre ao lado de Clyde, um orangotango) chegou a Clint com a esperana de que ele fosse repassar para o seu amigo, Burt Reynolds, que acabara de ter um sucesso de $100 milhes com Agarre-me se puderes (Smokey and the Bandit, de Hal Needham, 1977). Clint, no entanto, muito para a consternao do estdio e de todos os seus conselheiros mais prximos, pegou pra si. Penso que ele sentiu que era hora de zombar um pouco da sua imagem de macho. Calley foi praticamente o nico a apoi-lo. Se ele quer fazer um filme sobre um macaco, deixe ele fazer, ele recorda ter pensado. Se ele me dissesse para namorar um macaco, eu o faria. Havia uma sesso para o alto escalo do estdio, durante a qual as palavras impossvel de ser lanado foram murmuradas, com Calley discordando. Algum vai fazer muito dinheiro com esse filme, ele disse. E assim aconteceu. Foi o maior arrecadador bruto de Clint at aquele momento.

    Ento, um filme que no retrospecto lucrativo parecia ser um filme para eles foi, na verdade, um para ele. De fato, o filme que pode ter sido o melhor que ele fez no fim dos anos 1970 e incio dos anos 1980, AlcatrazFuga impossvel (Escape from Alcatraz, de Don Siegel, 1979), no foi feito na Warner Bros. O diretor Don Siegel controlou o roteiro de Richard Tuggle, e se desentendeu com a Warner Bros e, de certa forma, tambm com Clint. Tinha algo a ver com a subida de status de Clint desde que haviam feito seus primeiros cinco filmes juntos, e a sensao de Siegel de que sua relao, na qual ele sempre teve o papel de mentor, havia mudado. Isso foi resolvido com uma cerveja e um

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    sanducheClint frequentemente fala de Siegel e sempre com muito afeto , mas o filme foi feito na Paramount.

    Nos oito anos seguintes aps Josey Wales, Clint fez dez filmes, quase todos altamente divertidos, alguns um pouco excn-tricos, e a maioria grandes sucessos comerciais. De todos, apenas um, FirefoxRaposa de fogo (Firefox, 1982)que representava uma releitura do leve e aventureiro modo do antigo estilo de O desafio das guias (Where Eagles Dare, de Brian G. Hutton, 1968) , completamente desinteressante. Mas um deles, A ltima cano (Honkytonk Man, 1982), o mais barato e menos lucrativo dos dez filmes, merece ateno especial. um filme de poca, passado nos anos 1930, sobre um cantor de country alcolatra e tuberculoso chamado Red Stoval, que depois de uma vida passando o chapu em hospedarias, recebe uma oferta para fazer um teste para o Grand Ole Opry [o maior palco de msica country de Nashville]. Tendo o seu sobrinho de quatorze anos (muito bem representado pelo filho de Clint, Kyle) como motorista e conscincia, ele pega a estrada para Nashville. Eles passam por muitas situaes cmicas antes de chegarem ao destino final, onde um acesso de tosse durante sua apresentao no palco faz com que Red acabe com suas chances de sucesso (embora fique implcito no filme que as poucas msicas que ele chega a gravar lhe proporcionem um mnimo de imortalidade).

    O filme foi muito mal recebidoas pessoas no estavam preparadas para um Clint to anti-heroicoembora eu ainda goste muito. Mas essa no a questo. A questo que martela na mente de Clint a autodestruioum tema que reapa-receria seis anos mais tarde de forma mais sombria em Bird (1988). Verna Bloom, que representou a irm de Red em A ltima cano, uma vez me disse que ela achava que Red era o que Clint poderia ter sido se ele fosse um fracassoamvel, inquieto, capaz de fazer o bem sem que quase ningum

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    percebesse e com uma integridade em sua essncia visvel para poucos. Clint se pergunta: ser que esses homens tm tanto medo do fracasso que inconscientemente o deseje? Ou ser a possibilidade do sucesso que os amedronte?

    Seja qual for o caso, ele diz: Eu os sacudiria e diria, Ei, voc tem algo incrvel na sua vida, no destrua isso. Por outro lado, fatalista. Acreditae no somente em relao a msicos destrutivosque geralmente foras irresistveis e inexplicveis controlam as nossas vidas, e no importa quantas sacudidas bem intencionadas possam haver, no possvel mudar o caminho que escolhemos. Talvez seja por isso que ele no desenvolva filmes do incio. O destino coloca um roteiro no seu caminho, ele sente o seu valor e decide seguir com ele. Eu gosto da ideia de Bill Goldman: ningum sabe tudo.

    Perguntei se alguma vez ele j havia engatado em uma longa reflexo antes de embarcar num projeto. Ele vasculhou sua memria por algum tempo e depois disse que hesitou em esco-lher Na linha de fogo (In the Line of Fire, de Wolfgang Petersen, 1993). Gostou do roteiro mas, depois de ter acabado de dirigir e estrelar Os imperdoveis, no queria fazer essa dobradinha de novo. Props contratar um outro diretor (Wolfgang Petersencomo acabou acontecendo). Ento o acordo foi fechado. E quanto tempo durou esse processo? Ah, alguns dias.

    5No fim dos anos 1970 e incio dos anos 1980, Clint comeou a acumular rendas impressionantes, que so apenas um balano rudimentar das suas conquistas: us$ 1,8 bilhes de bilheteria nos Estados Unidos, us$ 2,3 bilhes no mundo, e ainda mais meio bilho em vendas de vdeos. Esses valores no contabi-lizam os lucros com filmes feitos fora da Warner Bros., nem com os direitos relacionados ou com as recentes rendas de Grand

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    Torino e Invictus (2009), o ltimo sendo provavelmente em termos de gastos e renda sua produo mais lucrativa.

    No que tenhamos alguma vez discutido algo to vulgar como dinheiro. Uma vez, mais de uma dcada atrs, ele admitiu que provavelmente j obtivera o suficiente para se retirar, apesar de que se afastar no era naquela poca, nem agora, uma ativi-dade prioritria na sua agenda. Na realidade, ele j expressou grande surpresa no porqu Billy Wilder e Frank Capra e outros grandes diretores terem desistido nos anos 1960. Claro, ele diz, eles fizeram alguns filmes ruins no fim de suas carreiras, mas, voc sabe, eles tambm tiveram alguns ruins ao longo do caminho quando ainda estavam no auge. Mas voc continua em frentecomo John Huston, fazendo bons filmes at o fim, mesmo numa cadeira de rodas e usando uma mscara de oxignio.

    No que algum espere ver Clintque talvez seja o homem mais em forma da sua idade no planetanessa condio. Em parte porque ele no um escritor-diretor. Escrever, espe-cialmente ao envelhecer, de certa forma a parte mais difcil de se fazer em um filme, por ser uma ferramenta emocional e no fsica. E mais importante de tudo, ele mantm sua vida profissional radicalmente focada, o que permite com que ele mantenha sua concentrao no passo a passo do processo de um filme, que se voc no se permitir distraes egostascomo fechar acordos, promoo de status, e ter fome de publicidade-, e deve ser, um processo relativamente direto. Este o segredo dos seus cronogramas sem atraso e abaixo do ora-mento. E, claro, o motivo pelo qual ele foi capaz de fazer tantos filmes em comparao com seus colegas.

    Isso tambm tira a presso de filmes individuais. Se voc faz um nico filme a cada trs anos, ele rapidamente cai na categoria muito aguardado, aumentando as expectativas do estdio, da crtica e do pblico a um nvel muitas vezes impossvel de

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    satisfazer. Se voc faz um ou mais por ano, voc pode se dar ao luxo de dizer: Tudo bem, esse no saiu assim to bem. Sem problema. Mas o que voc acha deste novo?

    Uma vez ele desafiou Joe Hyams, o astuto e letrado vice--presidente da Warner Bros., que durante duas dcadas genial-mente planejou as relaes pblicas de Clint, a listar dez filmes de Clark Gable, tarefa que ele, naturalmente, no conseguiu cumprir. O ponto de Clint era demonstrar que, na era clssica do cinema, a ideia era se manter como uma presena inescapvel para o pblico, o que exigia uma certa fecundidade por parte da estrela. Ele acredita que eles eram capazes de tolerar com mais pacincia momentos de no estarem to maravilhosos do que momentos de ausncia perante o olhar do pblico.

    Ento, nos anos 1970 e incio dos anos 1980, ele se manteve ocupado. E como j deixei implcitocom exceo de AlcatrazFuga impossvelsempre gostei mais dos seus filmes pequenos e despretensiososcomo o do orangotango, Bronco Billy e A ltima cano; pois pareciam refletir o Clint que conheci atravs dos anos mais do que suas aventuras musculosas. Ento, em 1984, veio Um agente na corda bamba (Tightrope), ponto em que, como Hyams me disse certa vez, meu trabalho ficou muito mais fcil. Clint interpretou um detetive de Nova Orleans chamado Wes Block, que perseguia um assassino sexualmente pervertido-e descobria que, de forma bem mais branda, tambm possua alguns dos gostos ultrajantes do criminoso. Isso explicvelWes suportou um divrcio amargo, tinha a custodia dos filhos (um deles interpretado pela filha de Clint, Alison) e estava cheio de raiva contida em relao s mulheres. Esse problema se resolve de forma razoavelmente simples quando ele conhece a simptica assistente social (Geneviere Bujold). Mas, pelo menos, alguns crticos perceberam que, mesmo dentro das fronteiras dos filmes de gnero, Clint estava fazendo um personagem curioso.

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    Geralmente, nos filmes, o grande erro de um policial tortuoso (e eventualmente selvagem) parecido com o de Harry Callahan: propenso a utilizar fora excessiva em suas inves-tigaes para no algemar uma prostituta cama. Clint inter-preta Wes como um homem de considervel doura quando a escurido no se abate sobre ele; entendemos sua aberrao como sendo temporria. Mas, ainda assimquando foi que uma estrela chegou a tocar nesse tipo de escurido? Foi divertido de interpretar, Clint diz de forma moderada, notando que naquela poca Dirty Harry j era um pouco chato de fazer. Hyams, no entanto, era mais entusiasmado. Ele mostrou uma propaganda no The New York Review of Books [revista quinzenal de Nova York com artigos sobre literatura e cultura] citando extensiva-mente as excelentes crticas sobre o filme.

    Nos oito anos subsequentes, at Os imperdoveis, a fron-teira entre o trabalho de gnero de Clint e seus filmes mais abertamente ambiciosos ficou menos definida. Em O cavaleiro solitrio, por exemplo, ele era um pistoleiro cavalgando em direo ao socorro de famlias assediadas numa comunidade mineira. Mas ele tambm era, como somos levados a acreditar, um fantasma, embora um com gosto para usque e mulheres solitrias, e com a aparncia de um pregador itinerante, algo que no chamaramos de um ultraentusiasmado tema gospel. Em O destemido senhor da guerra (Heartbreak Ridge, 1986), ele um instrutor de recrutas da Marinha, jorrando obscenidades hilrias nas suas tropas, no entanto igualmente hilrio como o marido confuso que tenta reconquistar sua ex-mulher (Marsha Mason). Com esse objetivo ele revira revistas femininas que exaltam as virtudes do novo e sensvel homem. Alimentamos mutuamente um ao outro? ele indaga a Mason. Caramba, ela responde perfeitamente, pensei que estvamos casados.

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    6Estes filmesjunto com Bird e Corao de caadormarcam o incio dos questionamentos, mais ou menos conscientes, sobre a premissa comum da masculinidade americana.

    Tema que martelou em sua cabea por muito tempo. Quando era um jovem ator, participava de um programa de talentos na Universal, interpretando pequenos papis e estu-dando atuao. O estdio no estava procurando por atores, mas sim por estrelas em potencial. Com esse intuito, ele era constantemente aconselhado a atuar com coragem [em ingls a expresso utilizada era ballsy]. Expresso que at ento Clint alegava nunca ter escutado, nem mesmo durante os seus anos no servio militar. Entre na lanchonete do estdio como se fosse o dono, as pessoas diziam, e ele pensava, mas no sou o dono. Ou ento diziam, Entre e coloque o lugar abaixo, e ele pensava que no era exatamente isso que o roteiro pedia. Sempre achei que no era necessrio tomar uma plula para a masculinidade, ele diz e se recorda de quando conheceu o aposentado e invicto campeo dos pesos pesados, Rocky Marciano. Ele no tentou quebrar a minha mo ou algo do tipo. Foi um aperto de mo gentil, quase feminino. Ele no tinha que me mostrar nada: ele sabia quem era.

    Isto fruto de como Clint foi criado. Seu pai era uma pessoa muito gentil, sempre me ensinou a respeitar a minha me, a famlia significava muito para ele. Mas no era um frouxo. Era essecialmente o contrrio. Cresci perto de homens como ele, que nunca tiveram dvidas sobre si mesmos.

    Seria isso um cqd [como queramos demonstrar]? Penso que sim. Mas, talvez, com uma nota de rodap. Existe algo de descomplicado na maneira como os Eastwood cuidavam uns dos outros. Durante seus anos errantes, passaram, pelo menos economicamente, por apertos. E Clint provavelmente sentia

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    essa insegurana. E por isso, acredito eu, que os personagens de Clint quase sempre saam em socorro de famlias empobre-cidas mas sempre decentes, pessoas perplexas e prejudicadas pelo fracasso de seus sonhos. Acredito que seja por isso que seus modos sejam to modestos. Enquanto conversamos, ele lana um olhar sbrio sobre mim: No estamos atuando agora, ele diz. Estamos na vida normal. Ento seja um homem comum.

    Isso nos leva ao filme Bird e a atitude de Clint em relao a homens irregulares como Charlie Parker, que possui uma mistura ambgua de amor e impacincia. Ele certamente foi um heri para Clint durante sua adolescncia embalada por jazzsua famlia era musical, sua me foi sua primeira professora de piano, um homem fazendo coisas incrveis com o seu saxofone alto, mas tambm autodestrutivo. Ele complementa: S fico indignado quando algum destri seu prprio talento. Ele compara Charlie Parker a Art Tatum, que era quase 90% cego e superou sua defi-cincia tornando-se esse fabuloso gnio do piano. Bird no oferece explicao alguma sobre o crime de Parker. Apenas aceita tristemente. Se existe qualquer tipo de alegria neste filme obscuro, ela deriva da forma como o mundo de Parker retra-tado. Eles tocavam para si mesmos. Se voc quisesse escutar, tudo bem, mas se no quisesse, tudo bem tambm. No era um negcio de show bizz como a msica pop hoje em dia, com muitas luzes, figurinos e muitas coisas que so importantes para o show alm da msica. Eles s ficavam em p e se apresentavam. E esta , no resisto em comparar, a mesma atitude que vemos nos sets de Eastwoodbem-humorados, abertos, mas sempre calmamente se movimentando. (Clint nem sequer diz ao no incio de uma tomada ou corta ao fim; mais no estilo quando estiverem prontos no incio, okay no fim.)

    Bird foi recebido de forma respeitosa e, como Clint havia prevenido o estdio, no rendeu uma grande bilheteria. O

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    mesmo aconteceu com Corao de caador. Muitos reclamaram da tentativa de Clint de imitar o sotaque de John Huston, que foi na realidade bem honesto, mas um tanto desconcertante para os seus fs, que assistiam ao personagem John Wilson distrai-damente tentar dirigir o filme The African Queen, enquanto sua mente estava focada em matar elefantes. Isto , em grande parte, uma fico criada por Peter Viertel, o amigo de Huston que trabalhou no roteiro e escreveu um romance sobre essa experincia. Mas o que realmente perturbou as pessoas foi ver Clint interpretando um personagem contrrio ao seu tipo, como o elegante Huston focado em sua arma, nas mulheres e em bons jantares; e, claro, dedicado a matar um dos animais mais nobres do planeta.

    Como Wilson admite, mais do que um crime, um pecadoe o pecado em grande escala que interessa a Wilson. Ele tem a possibilidade de atirarmas erra, causando a morte do seu guia nativo. Ao final, ele visto afundado em sua cadeira de diretor, rodando a primeira cena de seu filme. Foi a simples covardia que o levou a runa? Ou a incapacidade, no fim, de reconhecer o seu pecado? O filme no revela. E Clint tampouco conta. Ele apenas faz uma breve observao de que nunca atirou em nada com vida e no entende o impulso que leva algum a fazer isso. Apenas sinto que eles tambm esto vivos aqui, ento por que atirar em algo que no precisamos para sobreviver? (Clint um conservador fiscal e propenso a queixas contra governos invasivos, mas em relao s questes sociais, do armamento ao direito ao aborto, ele liberalou talvez eu deva dizer, um libertrio no invasivo. Ele tambm tolera meu fumo exagerado e uma ou duas vezes j o convenci a tomar um Martini.)

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    7Esses filmes fizeram parte de um leve declnio na carreira de Clint quando ele se aproximava e entrava nos seus 60 anos (no discutiremos aqui Cadillac cor de rosa / Pink Cadillac, de Buddy Van Horn, 1989, RookieUm profissional do perigo / The Rookie, 1990, ou o ltimo Dirty Harry da sequncia, Dirty Harry na lista negra / The Dead Pool, de Buddy Van Horn, 1988). Ele coloca a culpa disso, em parte, na falta de roteiros bons e abertos ao mercado, e uma vez perguntei a ele se ficou preocupado com a sua carreira nesta poca. No, foi a resposta. Acredito que sempre haja algum disposto a investir em voc caso voc seja uma pessoa razoavelmente bem estabelecida. Veja Brando em seus ltimos anos.

    Mas ele sabia que tinha uma carta na manga. Ou como uma vez ele mesmo disse, Um lindo relgio de ouro no bolso. Que s vezes tiro para v-lo e lustr-lo um pouco. Estamos falando, naturalmente, de Os imperdoveis. Hoje em dia, a histria j bem conhecida: de como o roteiro, na poca disposio de Francis Coppola, havia sido entregue a Clint como uma amostra do trabalho de David Webb People, e como Clint o adquiriu depois que o tempo de Coppola expirou, e como ele ento decidiu sentar em cima do roteiro durante anos, porque, como ele mesmo disse, precisava estar um pouco mais velho para fazer o papel de William Munny, o heri atormentado; e talvez tambm, acredito eu, porque poderia lhe servir como garantia contra adversidades. Algumas pessoas mais prximas sabiam que ele possua esse roteiro e ocasionalmente se perguntavam impacientemente quando Clint ia se dedicar a ele. O momento chegou em 1991mas no sem um pequeno contratempo.

    Clint pensou que talvez algumas revises no texto seriam pertinentes, e People disse tudo bem. Ele s estava ansioso para v-lo feito por estar a tanto tempo engavetado. Ento,

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    comecei a escrever e escrever, mexendo, mudando coisas. E de repente percebi que estava estragando tudo. Ento telefonei para ele e disse, Esquea o que eu disse. Vou simplesmente filmar do jeito que era. Estou matando o texto com melhorias. Foi o primeiro roteiro de um filme de Eastwood que li antes de ser realizado e me lembro de dizer-lhe: Bom, se voc no o estragar, ser sua obra-prima.

    Nessa poca eu estava morando em Los Angeles, Clint havia feito a narrao de um documentrio meu, e acabamos nos encontrando com mais frequncia. Indiquei a Joe Hyams que eu gostaria de fazer um filme sobre a nova produo de Clintcoisa que ele nunca havia apoiado antes. Mas no incio daquele ano minha mulher faleceu subitamente e, embora Clint e eu nunca tenhamos falado sobre isso, sempre acreditei que ele aprovou essa ideia porque achou que eu precisava de uma mudana, uma distrao da minha dor. Sempre fui silencio-samente grato por esse gesto, e trabalhar no interior do oeste canadense acabou sendo uma tima experincia de recuperao para mim; e meu pequeno filme acabou se saindo bem. Assim como, claro, Os imperdoveis.

    Ningum esperava. Clint interpretou de forma comedida, e escalou atores conhecidosGene Hackman, Morgan Freeman, Richard Harrispara coestrelar com ele, fato que no era de seu costume. Mas me recordo que no pr-lanamento do filme o Los Angeles Times brevemente se referiu ao filme como um western rotineiro e caracterizou Clint como a estrela deca-dente da Warner. Ahn ahnos tais espertinhos da imprensa autoritariamente espalhando informaes falsas.

    No h necessidade de reprisar aqui o incrvel sucesso de crtica e pblico de Os imperdoveis, embora acredite que at Clint tenha se surpreendido com o alvoroo do Oscar. Uma vez ele havia dito a Hyams que acreditava que nunca iria se sair

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    muito bem com a Academia. Ele era, como acreditava, populista demais para o gosto burgus da instituio. O que comprova apenas que, considerando que este filme afinal ganhou os Oscars de melhor filme e melhor diretor, e quantas vezes depois seus filmes estiveram na mira da Academia, Clint no um profeta infalvel.

    Os imperdoveis certamente um estudo sobre duas defi-nies da masculinidade. O Xerife Daggett de Gene Hackman um duro homem da lei que controla uma cidade com rdeas curtascom controle total de armamento e sadismo descontro-lado. Tenho um ou dois amigos de direita que acreditam que este personagem o heri do filme. O William Munny de Clint por vezes um pistoleiro (J matei tudo que anda ou rasteja), um vivo que acredita que sua falecida mulher o endireitou (No sou mais daquele jeito), mas que est desesperado para receber a recompensa oferecida pela morte de dois caubis que reta-lham uma prostitua em meio a uma balbrdia em um bordel. Ele precisa do dinheiro para salvar seus filhos da pobreza. Por conta do seu passado, e possivelmente de sua vida atual, na sua alma culpada ele no se sente muito melhor do que Daggett.

    Mas se Os imperdoveis fosse apenas isso, no seria nada alm de um western acima da mdia. O que o distingue a forma inexplicvel como o destino move seus personagens. Os caubis canalhas afinal no so o mal encarnado; so apenas uma dupla de garotos estpidos e embriagados. O melhor amigo de Munny, Ned (Morgan Freeman), incapaz de matar um deles quando chegado o momento. O autodenominado Schofield Kid, esquen-tado e fanfarro, que sempre os acompanha, na realidade mope e intil em tiroteios. Se Daggett no tivesse chicoteado Ned at a morte ao captur-lo, talvez o confronto final e mortal entre Mannet e Daggett no tivesse acontecido. Mas esse fato oferece a Munny motivos letaisno se trata mais de uma

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    questo de dinheiro. E isso tudo sem mencionar as enriquece-doras tramas e personagens secundrioso grandiloquente English Bob de Richard Harris, surrado at ficar inconsciente e expulso da cidade, e um romancista comum (Saul Rubinek), representando a crescente cultura da celebridade do fim do sculo xix, que escreve um livro (The Duke of Death) sobre as exploraes fraudulentas de Bob. Existe todo um mundo fron-teirioque mais ricamente detalhado em Big Whiskey, a cidade de fronteiras brutas localizada numa encosta, do que em qualquer outro western que conheo. E o destino que move William Munny cegamente atravs dela. disso que gosto em histrias, filmes e peas, quando o destino te domina de uma maneira que voc est totalmente despreparado. Este sempre o elemento dramtico mais intrigante.

    Os imperdoveis foi um momento de virada para Clint, embora eu nunca tenha ouvido ele falar desta maneira. Isso lhe deu o direito de se levar a srio, de ser abertamente ambicioso em sua escolha de material. No que nos anos seguintes ele tenha ignorado totalmente filmes diretamente de gnero (Poder absoluto / Absolute Power, 1997, Dvida de sangue / Blood Work, 2002). Nem que todos os seus filmes mais ambiciosos (Meia--noite no jardim do bem e do mal / Midnight in the Garden of Good and Evil, 1997) tenham sido sempre bem-sucedidos. Mas durante os ltimos 17 anos ele se envolveu com materiais que, apesar de ainda tratarem de suas questes mais centrais, foram trabalhados de forma mais obscura e sria.

    Na linha de fogo, que sucedeu imediatamente Os imper-doveis, um filme repleto de suspense, mas prazeroso e linda-mente popular. O agente do servio secreto interpretado por Clint estava comeando a bufar enquanto trotava acompa-nhando a limusine presidencial. E atormentado pelo fato de que poderia ter levado a bala, que atingiu jfk em Dallas, no lugar

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    dele, mas no o fez. Uma das coisas mais notveis sobre a atual carreira de Clint que ele sempre interpretou papis da sua prpria idade e sempre deixa transparecer que possivelmente seus joelhos doem um pouco quando se levanta de manhassim como o de qualquer um.

    Ele fez uma dzia de filmes desde ento, dos quais pelo menos sete so grandes filmes. Neste perodo, ele tambm resiste a uma separao muito pblica do seu longo relaciona-mento com Sondra Lockedurante a qual ele apareceu (uma nica vez) taciturno e raivoso, o que causou um breve desenten-dimento com a geralmente amorosa imprensa. Mas, logo aps, casou com a bela e animada Dina Ruiz, encontrando, ao que parece, uma felicidade descomplicada que nunca havia encon-trado por completo no passado.

    Em meados dos anos 1990, iniciei, com sua bno, uma biografia sobre ele. Foi para mim, uma experincia muito agra-dvelsentados, enquanto a noite caa nossa volta, o gravador ligado, enquanto Clint procurava sinceramente se recordar de sua vida. Em geral mantnhamos apenas uma ou duas lmpadas acessas a meia-luz. Seus filmes so quase sempre um pouco escurosos olhos de Clint no aceitam bem luzes muito fortes-e, com exceo dos campos de golfe, ele prefere que sua vida tenha tambm esse tipo de iluminao. Mas a palavra de ordem para descrever essas entrevistas sinceridade.

    Se me pedissem para descrever Clint em uma palavra, a minha escolha seria diligente. Se ele se compromete com algoseja um filme, uma apresentao pblica, um jantar , ele cumpre esse compromisso, sejam quais forem as distraes e inconvenincias que possam surgir. Ele no , como j devem ter percebido, um homem dado a inventar desculpas.

    Um bom exemplo provavelmente Um mundo perfeito (A Perfect World, 1993), o filme que sucedeu Na linha de fogo.

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    Que acabou tendo resultados de crtica e comerciais um pouco frustrantes nos eua, no entanto, Clint se prende crena de que este um filme muito bom. Robert Butch Haynes, um fugitivo da priso, muito bem interpretado por Kevin Costner, pega um pequeno menino chamado Phillip Buz Perry (T. J. Lowther) como refm e, escapando de uma perseguio policial (liderada por Clint no papel de um policial montado do Texas chamado Red Garnett), criam um vnculo. Haynes um homem bem-humorado, com um lado sombrio e violento, o menino foi abandonado pelo pai e teve negados quase todos os prazeres normais de uma criana (incluindo o Natal) pela prpria me, que, embora amorosa, era crist fundamentalista. Butch descon-trai o menino, e o menino, com sua doura e inocncia, faz de Butch um ser humano mais responsvelmesmo que ele no possa escapar de um trgico destino.

    No que Robert Kincaid possa evitar um arrependimento romntico em As pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995). As pessoas se perguntam por que Clint se deu ao trabalho de filmar a adaptao do romance de Robert James Waller, um romance criticamente desprezado e insanamente popular. Mas Clint viu algo de muito interessante no breve encontro entre o seu fotgrafo divagante e a mulher modera-damente e ainda assim comicamente inquieta de Meryl Streep. No acho que ele estivesse atrs de donas de casa no centro da Amrica, ele diz a respeito de Kincaid. O destino que de certa forma o leva neste caminho. Suponhamos que Kincaid tivesse virado para a esquerda em vez de direita na sua busca pelas pontes cobertas de epnimos e acabasse em outra fazenda. Suponhamos que o marido e os filhos estivessem em casa quando ele se aproximou da entrada. Suponhamos, em parti-cular, que Clint e Steven Spielberg, que era o produtor execu-tivo, tivessem pedido uma pequena mudana no roteiro para

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    que Francesca fosse um pouco mais ativa, mais cmplice em suas prprias sedues, do que no livro.

    Visitei a locao de As pontes em Winterset, Iowa, e dos vrios sets de Eastwood que j observei esse era um dos mais alegres. Streep e ele estavam curtindo uma relao muito amigvel e de respeito mtuo. O filme no era tecnicamente difcil e ela gostava do ritmo rpido de ClintQuase sempre prefiro a primeira leitura a qualquer coisa que faamos depoisento isso era o paraso para ela. Ela j havia trabalhado com outros atores-diretores, e Clint depois se lembraria dela dizendo que eles nunca paravam de dirigir, nem mesmo quando estavam em cenaera um pequeno cintilar no olho quando olhavam para ela de forma diferente da que o personagem faria. Ela achou que eu consegui fazer essa alternncia bastante bem.

    A imprensa no viu nada disso. Focaram no cara duro que estava interpretando seu primeiro papel abertamente romntico. E no fato de que ele chegou a derramar algumas lgrimas na tela. Tudo muito no Clint.

    8Clint parecia estar brevemente, pelo menos, um pouco menos ambicioso na sua escolha por materiais na virada do sculo, se contentando com filmes de gnero (Poder absoluto, Cowboys do espao / Space Cowboys, 2000, Dvida de sangue). Existe, no entanto, uma exceo, Crime verdadeiro (True Crime, 1999). um filme de gnero, uma histria de jornal, com Clint apare-cendo como um reprter tipicamente displicente do Oakland Tribune. Voc conhece o tipoum bbado, mulherengo (entre suas conquistas est a mulher do seu editor chefe), um homem no meio de uma separao complicada. Um dia ele desig-nado para fazer uma matria sobre um homem que est para ser executado naquela mesma noite por assassinato na cidade

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    de San Quentin. Algo sobre a situao no cheira bem. Frank Beechum (Isaiah Washington) obviamente um homem decente, e sua mulher (Lisa Gay Hamilton) e a filha Gail (Penny Bae Bridges) esto em estado comovente de profunda angstia ao fazerem a ltima visita no corredor da morte. Voc poderia argumentar que o enredo, que envolve uma corrida maluca por novas evidncias enquanto o prisioneiro se aproxima dos seus ltimos momentos, antiquado (lembra, mais do que qual-quer coisa, uma verso moderna da histria de D. W. Griffith de 1916, Intolerncia / Intolerance). Mas os Beechum so uma famlia passando por apertos, no melhor estilo Eastwood, preci-sando de salvamento, tentando manter um ar de normalidade em meio a circunstncias completamente anormais. A pequena menina perde seu giz de cera verde, que usava para terminar um desenho para o seu pai, e toda a equipe da priso, retratada com muita humanidade, sai sua procura. Quando, por fim, ela levada para fora da priso, o seu desespero e desamparo so muito comoventes (a atriz mirim havia batido com o queixo na hora do almoo, e Clint, vendo que ela estava chateada mas no exatamente com dor, se aproveitou da sua condio para capturar um momento de surpreendente intensidade).

    No quero dar muita importncia ao que permanece essen-cialmente um filme de gnero. Por outro lado, como muitos outros filmes de Eastwood na forma como combina o humor do cotidiano com um intenso suspense. E, mais importante, na fora de suas sequncias na priso ele transcende as normas de atuao de um filme de gnero. Talvez fosse um pressgio dos grandes filmes que o preocupariam na primeira dcada do sculo xxi. Defensavelmente, a maior srie de grandes sucessos da histria do cinema e ainda mais impressionantepara os outros, no para Clintpelo fato do seu diretor ter completado 70 anos nos anos 2000.

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    Sobre meninos e lobos (Mystic River, 2003), Menina de ouro, Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, 2006), Gran Torinoso todos muito bons, possivelmente grandes filmes (o tempo ser, como sempre, o julgador disso); com A conquista da honra (Flags of Our Fathers, 2006) e A troca (Changeling, 2008) sendo muito impressionantes tambm. Quase todos tiveram sucesso financeiro e de crtica, vrios tiveram boa repercusso no perodo das premiaes (com Menina de ouro ganhando o Oscar de melhor filme e melhor diretor, assim como o Oscar de melhor atriz para Hilary Swank e de melhor ator coadjuvante para Morgan Freeman).

    Podemos arriscar algumas generalizaes. Deixando os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial de lado, o restante dos filmes, de uma maneira ou outra, tratam de questes familiares. Sobre meninos e lobos o mais complexo de todostalvez o filme mais psicologicamente complexo de Clint. Ele inicia com trs meninos brincando na rua. Um deles sequestrado e abusado sexualmente, sua vida arruinada mesmo antes de comear (ele interpretado quando adulto por Tim Robbins, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante pela eloqun- cia inarticulada do seu trabalho). Os outros dois rapazes revelaram-se, o primeiro, um pequeno trapaceiro (Sean Penn, tambm um rico merecedor do Oscar) tentando se endireitar, e o outro, um atormentado detetive policial aparentemente tranquilo (Kevin Bacon), que assume o caso quando a filha do ltimo assassinada. A atuao raivosa de Penn, duplamente altiva e sutil, maravilhosa, justamente louvada e reveren-ciada na poca. Se Clint , como observamos, obcecado pelos caminhos do destino, ento este o mais detalhado traado dos seus efeitos misteriososrefletido em mais pessoas do que nos trs protagonistas de Sobre meninos e lobos, e durante mais tempo do que o filme cobre. E o filme termina em um tom

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    nem to triunfante. Termina, de fato, com uma morte errada e sem punio, com as vidas dos sobreviventes de certa forma seguindo seus caminhos desconhecidos.

    Mas vamos pausar por um momento para notar que com uma exceoA conquista da honra (que possui um subtexto de outro tipo) , todos esses ltimos filmes terminam com um tom trgicopor vezes ressonantes. Menina de ouro (mal compre-endido como um filme de boxe pela Warner Bros., que se recusou, assim como com Sobre meninos e lobos, a apoiar total-mente aquilo que Clint via como uma histria de amor de pai e filha) termina com a boxeadora de Hilary Swank em estado vegetativo e seu sofrido pai substituto fazendo a eutansia nela. Cartas de Iwo Jima termina com praticamente um exrcito destrudo. A troca termina com a inconsolvel me interpretada por Angelina Jolie incapaz de encontrar o seu filho sequestrado. Gran Torino termina com o Walt Kowalski interpretado por Clint se sacrificando pelos vizinhos imigrantes, que relutante-mente acaba amando. No acho que precisemos acrescentar que quase todos estes filmes tambm lidam com famlias, ou seus simulacros, sob presses devastadoras de um tipo ou de outro.

    Mas penso, sim, que devemos somar alguns brilhos aos precedentes:

    sobre gnero: Esses filmes podem ser compreendidos (ou mal compreendidos) como exerccios de gnero. Em certo nvel, Sobre meninos e lobos seguramenteum filme de assassinato. Podemos talvez reconhecer que, de sua maneira, Menina de ouro , ok, um filme de boxe, especialmente na sua representao da dilapidada academia de Frankie Dunn, com seus frequentadores no muito promissores e o jeito duro de Frankie. Cartas de Iwo Jima , com certeza, um filme de guerra, enquanto A troca encontra-se na no desconhecida

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    veia dos filmes de crianas desaparecidas. Walt Kowalski de Gran Torino um tipo reconhecvelo velho imprprio, que de forma irritada observa o mundo passar frente do seu olhar reprovador. Mas isso no diz muito. Como observamos, quase todos os filmes de Clint tm traos de gneros, independente-mente dos temas que possam ter. A diferena agora que eles tambm carregam o peso da idade de Clint, da sua autoridade duramente conquistada. Quem hoje em dia duvidaria da sua seriedade? Ou deixaria de reconhecer seu direito de comentar sobre grandes assuntos? Quem hoje em dia poderia nomear outro diretor americano com recorde semelhante e indiscutvel em tratar de assuntos sbrios de formas to altamente palatveis maior parte do pblico?

    sobre ideias: Vamos tratar do assunto da eutansia em Menina de ouro. Clint um adepto do secularismo, e foi, acredito eu, durante toda a sua vida; e seus filmes por vezes retrataram clrigos de maneira pouco heroica. Mas, como ele me disse uma vez, no possua nenhum desejo de se converter em pblico pelo direito de morrer de maneira desesperanada. Mas, hones-tamente, como muitas pessoas, no senti nada disso no filme, tamanha a lgica e firmeza da forma como a morte por miseri-crdia foi costurada na narrativa, que tratava inicialmente de um homem separado de sua filha, e de uma mulher separada de sua famlia, que encontram alguns meses de alegria em um mundo marginalizado. Esse foi um caso de uma inevitabilidade trgica superando a ideologia.

    sobre o persistente sonho de dirty harry: Entre os fs mais hardcore de Clint existe um quase cmico desejo por um ltimo filme de Dirty Harry. Fs dizem isso a ele. Eles at disseram isso para mim. Clint e eu rimos algumas vezes sobre esse desejo

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    curioso. Imaginamos Harry ganhando a vida com dificuldade como segurana em meio expediente. Uma noite uns marginais invadem o armazm. Harry pega sua arma e sai em perseguio. Ao que, como Clint mesmo disse, Splatl vai Dirty Harry. Mas existia, mesmo entre os crticos, um desejo de ver Walt Kowalski em Gran Torino como um clone de Dirty Harry. Clint meramente sorri diante dessa ideia: Dirty Harry provavel-mente teria resolvido a situao bem mais cedo. Ebomteria lidado com a situao de forma um pouco diferente. Alm disso, Clint est cada vez mais determinado em duas questes. Uma o seu desejo de no mais atuar em filmes que dirige um trabalho exaustivo e ele saiu da filmagem de Gran Torino mais cansado do que previu (em grande parte, suponho, porque seu elenco era quase que exclusivamente de atores amadores, o que exigiu mais ateno na direo do que ele antecipara). E depois existe o seu desejo resoluto de sempre interpretar papis da sua prpria idade. Como ele mesmo diz, no existem muitos papis para homens da sua idade, no importa o quanto esteja bem para a idade. Posso imagin-lo fazendo pequenas partici-paes em suas prprias produes ou, talvez, em outras. Mas suspeito que Walt tenha sido o seu ltimo papel. Lembrem-se, esse o homem que nunca fez outro western desde Os imperdo-veis, porque, como ele mesmo colocou, no tinha mais nada a dizer nesse formato.

    sobre o senso de dever: O filme mais singular da ltima dcada da produo de Clint , em minha opinio, Cartas de Iwo Jima, porque possui, de forma disfarada, a qualidade mais central da sua naturezaseu senso de dever. O interesse do pblico e da imprensa era direcionado ao fato dele ter feito o filme pratica-mente simultneo a A conquista da honra, pegando at mesmo algumas tomadas de Cartas para utilizar em A conquista, fato

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    que passou quase despercebido. No sem precedente que um diretor faa dois filmes desta maneira, mas bastante raro. sem precedente para um diretor americano fazer um filme de guerra que retrate um antigo inimigo de forma solidria. Ele se sentiu atrado pelo assunto por curiosidade e porque um pequeno volume de cartas enviadas para casa pelos soldados japoneses que lutaram em Iwo Jima chamou sua ateno. Alm disso, tambm, o roteiro um tanto especulativo de Iris Yamashita, que estava fazendo a pesquisa para o roteiro de Paul Haggis de A conquista, superou as expectativas de Clint. Mas penso que o que mais interessou Clint foi o personagem prin-cipal, o general japons em comando, Tadamichi Kuribayashi (Ken Watanabe). Colocando de forma simplificada, ele era um homem no estilo de Clint. Com motivos para acreditar que foi designado para a tarefa sem esperana de defender Iwo Jima como um tipo de punio pela sua emancipao do Exrcito Imperial Japons. Ele foi tambm um homem que passou algum tempo na Amrica antes da guerra, admirava o esprito de l, e pensava que entrar em guerra contra os Estados Unidos era uma pssima ideia. No filme ele est o tempo todo armado com um revolver Colt 45 com um cabo de prola, dado a ele por oficiais americanos.

    Mas o ponto principal sobre Kuribayashi que ele sabe que sua causa no tem esperana; ele acredita que vai morrer em Iwo Jima. Mas ir morrer tentando, montando uma defesa imagi-nria contra a oposio de muitos de seus oficiais. Ele tambm morrer como um tipo de humanitrio. Em seu grande livro, The Rape of Nanking, Iris Chang argumenta que as enormes crueldades que o exrcito japons infligiu em seus inimigos e sua populao civil foi o resultado direto das crueldades praticadas neles pelos seus prprios oficiais. Kuribayashi no aceita nada disso. Talvez ele seja o personagem com o destino mais trgico

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    da filmografia de Clint, que, como podemos ver, focou durante os ltimos anos quase que exclusivamente em figuras como ele. Fazendo o filme, Clint (incitado por Watanabe) revisou leve-mente o roteiro; ele providenciou que o suicdio do general, aps a perda da batalha, no acontecesse com o ritual da espada. Em vez dissoe aqui existe uma amarga, mas no enfatizada, ironiaele usa o seu revlver americano para se matar.

    9 possvel que Clint acredite que o senso de dever leve inevita-velmente a um desespero obscuro? Acredito que no. Sua prpria vida contradiz essa noo. Mas uma vez estvamos falando sobre seus primeiros e frustrantes anos como ator, quando ele era apenas um menino magrinho de Oakland usando botas corre-tivas, e me fez pensar sobre a distncia quase infinita que ele percorreu. Seria fcil para ele culpar seus fracassos iniciais na tpica cegueira hollywoodiana, na tendncia de se acreditar em qualquer que seja a sabedoria, at queSplat!

    Mas ainda assim, tenho que admitir que Clint das antigas. Ele comeou a atuar em filmes em 1955, ainda sem atrair muita ateno, e embora o seu papel em Couro Cru, em 217 epis-dios entre 1958 e 1965, lhe tenha trazido alguma segurana, era apenas um programa agradvel e no imperdvel. De fato, a presena afvel de Clint se tornou a principal atrao do programasobretudo para jovens mulheres, pblico que em geral no era muito ligado em westerns na tv. Mesmo assim, era difcil imaginar William Munny ou Wes Block ou Frankie Dunn no futuro desse jovem. E os filmes de Sergio Leone? Sim, eles implicavam uma presena mais obscura e poderosa. Mas ainda assim, westerns italianos eram para aqueles levemente desgas-tados ou para os no to promissores. Clint permanece como a nica grande estrela que eles j produziram.

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    Ento, sua carreira subsequente contou com grande deter-minaohabilidosamente disfarada pelo seu ritmo vagaroso, por sua averso em se gabar e por sua recusa em profetizar grande sucesso para as suas produes por vir. Ele se mostra para mim como tendo se rendido ao poder inescrutvel do destinosim, do destino.

    Minha biografia do Clint foi publicada em 1996, e ele aceitou fazer uma pequena publicidade comigo em Nova York. Nossa grande apario foi patrocinada pela instituio cultural da Rua 92, St. ymha, e aconteceu numa grande e lotada sinagoga no Upper West Side. Fizemos uma agradvel sesso de perguntas e respostas com a estudiosa de cinema Jeanine Basinger, e depois fomos agen-dados para uma noite de autgrafos. Nada muito elaborado, foi o que disse meu editor, apenas um pequeno queijos e vinhos.

    Com certeza. Fomos escoltados por um jardim de infncia localizado em um poro at chegar s mesas empilhadas de livros atrs de portas fechadas. Do outro lado ouvamos o que seria o burburinho de uma amontoada multido, desconforta-velmente esperando nas escadas. No havia qualquer segurana alm dos dois assessores de imprensa. Quando as portas abriram fomos confrontados pela multido, em um clima quase intimi-dador. Muitos estavam l para comprar livros autografados, mas alguns estavam armados com psteres e canetas especiais que fazem com que livros autografados paream mais autnticos quando vendidos na internet. Nem os queijos nem os vinhos estavam em evidnciaapenas uma vaga hostilidade. Com esse nvel de fanatismo, o qual nunca havia visto antes, raiva e adorao andam em muito equilbrio.

    Demorou uma tensa hora para satisfazer os desejos de todos e, enquanto estvamos sendo acompanhados de volta pelo jardim de infncia para ir embora, eu disse a Clint, Uau, isso foi um pouco assustador.

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    , ele disse. Voc percebeu aquele cara? Quando ele colocou a mo no bolso, eu no sabia exatamente o que ele ia sacar dali.

    Mencionei que eu j havia estado em sua companhia algumas vezes quando foi confrontado por multides, mas nunca havia visto o que havamos acabado de encontrar.

    , ele disse, enquanto caminhava. Mas quando voc se compromete, voc se compromete com o percurso inteiro.

    Seu tom no mudou. Mas senti que ele havia me concedido uma lio de vida. Uma que me guiou por um percurso mais longo do que ele, ou qualquer um, poderia ter antecipadoe que ainda no terminou. E samos para um belo jantar.

    Richard Schickel documentarista, crtico e historiador de cinema. Escreveu 37 livros, foi ganhador do Guggenheim Fellowship e de inmeros prmios por sua contribuio a histria do cinema. Crtico das revistas Life e Time durante 43 anos, agora contribui com crticas cinematogrficas para a revista eletrnica Truthdig.

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    Interiormente, aproximo-me de cada novo personagem de uma maneira distinta. Isto tambm acontece com a srie Dirty Harry. Enquanto preparava uma das sequncias, me proibi de ver o primeiro novamente. At mesmo Dirty Harry mudou em catorze anos. Mudou, assim como eu mudei. No queria chegar ao ponto de imitar a mim mesmo. Clint Eastwood

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    A presenA de eAstwoodUm ator como Clint Eastwood constri, pela fora de sua presena em cena, uma imagem especfica, ou, como muitos crticos j disseram, uma persona cinematogrfica muito forte. Essa persona pode ser atenuada, reforada e at mesmo comba-tida, revelando uma outra, ou, se preferirem, uma variao. Com a percepo de que a persona comporta as mudanas trazidas pelo tempo e por toda a complexidade da natu-reza humana, notamos que o homem duro e taciturno que Eastwood representou tantas vezes na tela pode se metamorfo-sear num homem sensvel e viajado, como o Robert Kincaid de As pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995), que pode ter conhecido o mundo inteiro, mas se apaixona por uma simples imigrante italiana que vive com sua famlia ameri-cana em Iowa. Pode tambm ser mulherengo como o Steve Everett de Crime verdadeiro (True Crime, 1999), personagem que no hesita em dormir com a mulher do chefe; violento como o Dirty Harry de cinco longas, entre 1971 e 1988; silen-cioso como o cavaleiro misterioso de O estranho sem nome (High Plains Drifter, 1973); beberro e irresponsvel como o cantor fracassado de A ltima cano (Honkytonk Man, 1982); ou mesmo um simplrio vendedor de sapatos disfar-ado de cowboy, como o personagem ttulo de Bronco Billy (1980). Esse homem, contudo, ser sempre Clint Eastwood, com a mesma maneira de franzir a testa, comprimir os olhos e cerrar os dentes quando est contrariado, e o mesmo olhar penetrante ou fulminante, seja qual for a construo de seu personagem. Da mesma forma, James Stewart em cena era sempre James Stewart (no por acaso, outro ator com olhar), e o mesmo podemos dizer de Jerry Lewis, Robert Mitchum, e at mesmo de Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger. So atores que imprimem um estilo, uma certa maneira de agir e

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    de se comportar, e dentre os quais Eastwood parece ser o que comporta o maior nmero de variaes.

    Tais variaes foram mais ou menos pensadas durante diversos pontos de sua trajetria. Aps os trs filmes que fez sob a direo de Sergio Leone, com os quais ganhou a reputao de homem sem nome, Eastwood voltou aos eua disposto a superar sua ligao automtica com o western spaghetti. Temia ficar marcado por um s tipo de personagem, e por isso optou por papis diferentes: um msico em Os aventureiros do ouro (Paint Your Wagon, de Joshua Logan, 1969) e um soldado perdedor em Os guerreiros pilantras (Kellys Heroes, de Brian G. Hutton, 1970). Paralelamente, alimentou o tipo duro, desta vez americana, acrescido tambm de um lado mais mulherengo, em filmes dirigidos por Don Siegel: um xerife do Oeste que vai para a cidade grande perseguir um criminoso em Meu nome Coogan (Coogans Bluff, 1968); um mercenrio que se envolve com os revolucionrios juaristas no Mxico em Os abutres tm fome (Two Mules for Sister Sara, 1970); um soldado sulista ferido e resgatado por alunas de um internato que acaba sendo vtima de sua prpria capacidade de seduo em O estranho que ns amamos (The Beguiled, 1971); e o famoso detetive justiceiro em Perseguidor implacvel (Dirty Harry, 1971).

    Essa disposio para a mudana permite a afirmao feita pelo crtico americano Dave Kehr de que Eastwood exercitou--se, em sua carreira, numa poltica de alternncia, raramente repetindo um tom, um personagem, ou um gnero em dois filmes seguidos1. So mesmo raras tais repeties. Podemos at destac-las. Aps Perseguidor implacvel, Eastwood fez Joe Kidd (de John Sturges, 1972) e, logo depois, dirigiu O estranho sem nome. So dois westerns em sequncia. Ao terceiro longa de Dirty Harry, Sem medo da morte (The Enforcer, de James Fargo, 1976), seguiu-se um outro policial, Rota suicida (The Gauntlet,

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    1977). Do mesmo modo, Eastwood dirigiu o quarto episdio da srie Dirty Harry, Impacto fulminante (Sudden Impact, 1983), e logo em seguida chamou Richard Tuggle (que j havia escrito o roteiro do filme) para dirigi-lo em outro policial, Um agente na corda bamba (Tightrope, 1984), no qual faz novamente um personagem solitrio (assim como Dirty Harry). H ainda um terceiro policial, ambientado nos anos 1930: Cidade ardente (City Heat, de Richard Benjamin, 1984), mas neste o tom suavizado por ingredientes cmicos e pela presena sarcstica de Burt Reynolds, com o qual Eastwood contracena. A alter-nncia, contudo, parece ser a regra, como podemos atestar observando sua longa filmografia, que costuma ser tambm dividida por temas, como o fez o crtico e historiador de cinema Howard Hughes em seu livro Aim for the heart2 ao separar os personagens e a obra de Eastwood em sete partes, cada uma representada por um grupo de filmes que dirigiu, produziu ou em que atuou: os westerns, os policiais, os amantes, as comdias, os dramas, os thrillers e os filmes de guerra.3

    A mudana mais sensvel veio em meados dos anos 1990, e confundiu boa parte da crtica, sobretudo aquela que no acom-panhava de perto sua obra. Em Na linha de fogo (In the Line of Fire, de Wolfgang Petersen, 1993), Eastwood chora. E esse choro causou comoo na poca. Eastwood interpreta um segurana do presidente que se apaixona por uma policial (Rene Russo). Dois anos depois, em As pontes de Madison, o ator, diretor e

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    1 kehr, Dave. Eastwood noir. Texto dispo-nvel em www.pbs.org/wnet/ameri-canmasters/episodes/clint-eastwood/eastwood-noir/582/

    2 hughes, Howard. Aim for the heart. I.B. Tauris, 2009. Hughes justifica o ttulo de seu livro, uma fala de Por um punhado de dlares (Per un pugno de dollari, de Sergio

    Leone, 1964), escrevendo que os melhores filmes de Eastwood lidam com assuntos do corao.

    3 Os ttulos de captulos misturam, propo-sitalmente, gneros com qualificaes de personagens: the westerns, the cops, the lovers, the comedies, the dramas, the thril-lers, the war movies.

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    produtor vai alm, confundindo ainda mais os crticos. Mostra--se como um homem disposto a sacrificar a vida de aventuras e viagens por uma nica mulher, interpretada por uma inacredi-tvel Meryl Streep. Revela, segundo o crtico canadense John H. Foote, algo nunca antes visto em um personagem seu: vulne-rabilidade4. H, porm, um equvoco em sua sentena, j que vemos vulnerabilidade em diversos personagens anteriores (no dono de circo prestes a falir em Bronco Billy, no protago-nista que teme o passado tanto quanto os agentes russos em FirefoxRaposa de fogo / Firefox, 1982, no cantor que desper-diou diversas chances de sucesso e agora est morrendo de tuberculose em A ltima cano, e no prprio choro de Na linha de fogo). O engano de Foote , portanto, mais um exemplo do esquecimento de outros tipos maculados construdos por Eastwood durante sua carreira.

    As aproximaes e distanciamentos do estilo carrancudo e solitrio com o qual ficou mais famoso, como vimos, foram muitas, e culminam num personagem que contm mais apro-ximaes do que distanciamentos (embora os tenha tambm): o Walt Kowalski de Gran Torino (2008). Vemos um homem macho, preconceituoso e arredio (sobretudo no incio do filme, quando acaba de ficar vivo), que vai se revelando extrema-mente sensvel e disposto a superar os prprios preconceitos; e que v com tristeza sua gerao sendo ultrapassada e subju-gada por uma outra, de jovens mal-educados (o desprezo com que olha para os netos na igreja impagvel) e arruaceiros violentos (a gangue que aterroriza os vizinhos Hmong). um personagem que carrega anos de vivncia nas costas, mas est doente, em seus ltimos dias de vida. Serve-se da proximidade da morte para realizar um grande feito, um dos maiores do panteo de personagens eastwoodianos: salvar uma famlia da ameaa constante da violncia. Se, para o crtico francs

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    Bernard Benoliel, Kowalski mesmo uma verso envelhecida de Dirty Harry, que insiste em apontar sua Magnum imaginria para os indesejveis, para Richard Schickel (crtico, jornalista e bigrafo de Eastwood), Kowalski uma inspirao para pessoas de sua idade. O sonho americano, diz Schickel, est composto de muitos sonhos, dos quais o ltimo, maior e mais difcil de se realizar o de viver a velhice sendo til.5 Kowalski, esse providencial veterano de guerra, possibilitou famlia Hmong uma vida digna e longe de problemas, uma vida em paz. Foi, conforme apontou Schickel, inspirador. Seria o ltimo perso-nagem interpretado por Eastwood, como ele prprio sinalizou? bem possvel que sim, e seria coerente com sua trajetria.

    Kowalski carrega consigo um pouco de vrios dos perso-nagens que Clint eternizou no cinema. H certamente muito de Dirty Harry, j envelhecido e aposentado, mas ainda intolerante com quem sai da linha. O jornalista rebelde e empenhado de Crime verdadeiro tambm uma referncia, pois tal personagem move mundos para salvar da injeo letal um falso culpado de um crime, da mesma maneira que Kowalski se empenha para salvar a famlia ameaada pela gangue do bairro. E o caador obstinado de Corao de caador (White Hunter Black Heart, 1990) est em Kowalski, assim como o briguento fanfarro Philo Beddoe, de Doido para brigar Louco para amar (Every Which Way But Loose, de James Fargo, 1978), pelo tipo de humor que existe no pendor de ambos os personagens para a briga e para o enfrentamento, embora sejam dois homens hedonistase nesse sentido no terem tanta ligao com o protagonista de Gran Torino. Podemos lembrar ainda do protagonista de Josey Wales, o fora da lei (The Outlaw Josey Wales, 1976), que arregimenta

    4 foote, John H. Clint Eastwood: evolution of a filmmaker. Greenwood Publishing Group, 2009.

    5 schickel, Richard. Clint Eastwood: una retrospectiva. Blume, 2010.

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    uma famlia de desvalidos meio que por acidente, da mesma maneira que Kowalski adota os Hmong (mais parecidos com ele do que os que tem seu prprio sangue); do pastor de O cavaleiro solitrio (Pale Rider, 1985), duro e solidrio, que no hesita em defender a famlia que adotou; alm do sargento duro de O destemido senhor da guerra (Heartbreak Ridge, 1986), homem que lamenta os novos cdigos de batalha e que, como Kowalski, veterano da Guerra da Coreia. H ainda os homens manchados e assombrados por um passado obscuro, casos do Will Munny de Os imperdoveis (Unforgiven, 1992), do Mitchell Gant de Firefox e do Frankie Dunn de Menina de ouro (Million Dollar Baby, 2004), personagem que compartilha com Kowalski a mesma desconfiana com a igreja catlica. Kowalski, enfim, um personagem arquetpico da construo da persona cinemato-grfica de Eastwood.

    Suas trajetrias, como ator ou diretor, se cruzam no deno-minador comum que essa persona cinematogrfica criada com esmero e certas contradies, reforada em alguns filmes, combatida em outros, mas sempre guardando alguma linha de coerncia com seu ator/autor, sensvel s mudanas trazidas pelo passar dos anos (dos personagens, como de Eastwood), a cada nuance explorada nos diferentes momentos de sua obra. uma carreira exemplar, uma histria de cinema de limpidez e coerncia incrveis, que vale a pena acompanhar com ateno.

    A consolidAo de suA personAlidAde cinemAtogrficAA estreia de Eastwood na direo um contraponto dos mais interessantes ao esteretipo de homem msculo, misterioso e de poucas palavras que ainda era forte no incio dos anos 1970. Com Perversa paixo (Play Misty for Me, 1971), o jogo muda, e esse homem, um dj de cidade pequena (Carmel), vtima de uma mulher possessiva e perigosa, da mesma maneira que em

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    O estranho que ns amamos, lanado no mesmo ano, o soldado ianque ferido vtima das fogosas moradoras de um internato feminino. Lanado um ms antes de Perseguidor implacvel, Perversa paixo nos mostra o cineasta j com pleno domnio do ritmo, capaz de construir trs personagens marcantes no mesmo ano, dirigir um deles, e de manter coerentemente tudo sob controle.

    Seu segundo filme como diretor um trabalho soturno, que refora a imagem anterior do homem sem nome e revela certa ousadia. O estranho sem nome, que o crtico Michael Henry Wilson chamou de alegoria barroca que destri todas as regras do western clssico6, mostra a irretocvel construo de uma atmosfera tenebrosa beira de um lago paradisaco. Neste filme, a direo elegante de Eastwood, devedora tanto do western psicolgico dos anos 1960 quanto do western spaghetti e do cinema intimista de Antonioni e Bergman, explora os siln-cios, as msicas experimentais e os jogos de olhares, que deixam o espectador com a sensao de que pode perder um detalhe importante se no estiver concentrado. Ao mesmo tempo, passa tambm a impresso de que o tempo parou para os caprichos desse estranho e fantasmtico personagem, que deseja vingar--se de uma cidade inteira, bem como de trs bandidos que acabaram de sair da cadeia. Esse estranho tem tendncias revo-lucionrias. Conclama os covardes moradores a pegar em armas, nomeia um ano desprezado por todos como xerife e prefeito ao mesmo tempo e seduz as duas mulheres que ousaram enfrent--lo. O plano final antolgico, com o cavaleiro sem nome sumindo no deserto, enquanto uma placa (que na verdade uma lpide) diz tanto sobre seu passado quanto os dois sombrios

    6 wilson, Michael Henry. Eastwood on Eastwood. Cahiers du cinma, 2010.

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    flashbacks que invadem a narrativa. Seria esse estranho o irmo do xerife assassinado, ou, numa leitura mais rica, o seu prprio fantasma? O pblico decide, conforme disse o diretor em entre-vistas da poca (a mesma dvida do pblico iria voltar em um personagem semelhante, ainda que bem menos soturno, o pastor de O cavaleiro solitrio).

    Aps O estranho sem nome, Eastwood, cada vez com maior prestgio, arriscou-se em aventuras bem ou malsucedidas. Do primeiro caso, temos como exemplo o belo Interldio de amor (Breezy, 1973primeiro filme que Clint dirigiu sem atuar), que mostra o romance de um homem de meia-idade (William Holden) com uma adolescente (Kay Lenz). Do segundo, Esca-lado para morrer (The Eiger Sanction, 1975), uma aventura caprichosa sobre uma montanha difcil de ser escalada, em que o diretor no soube levar a cabo a obsesso do heri. A primeira obra-prima dirigida por Eastwood um western: Josey Wales, o fora da lei (The Outlaw Josey Wales, 1976), seu quinto longa--metragem. Philip Kaufman desenvolveu o roteiro e havia come-ado a dirigir o filme sob a produo de Eastwood, mas os dois se desentenderam e Kaufman foi demitido, numa deciso que at hoje Eastwood lamenta ter sido inevitvel. Com tintas impres-sionistas, sobretudo no incio, Josey Wales, o fora da lei retorna Guerra Civil Americana, mesmo perodo em que se passava uma outra obra-prima, O estranho que ns amamos. Josey Wales um rebelde confederado que no aceita se entregar aos ianques, e por isso perseguido pelos oficiais sulistas que negociaram a rendio. No caminho, envolve-se com uma trupe improvvel, formando uma famlia por afinidade, que so sempre mais fortes nos filmes de Eastwood do que as famlias de sangue (como acontece com o Walt Kowalski de Gran Torino).

    Eastwood iria dirigir mais dois westerns, o elogiado O cavaleiro solitrio e Os imperdoveis, um dos filmes mais ricos e

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    tocantes do gnero, premiado com quatro Oscar: melhor filme, diretor, ator coadjuvante (Gene Hackman) e montagem (Joel Cox).

    No mesmo ano de O estranho sem nome, surge um novo contraponto imagem de macho, desta vez mais sutil, mas em um personagem inesperado: o detetive Harry Callahan, em sua segunda encarnao. Em Magnum 44 (Magnum Force, 1973), escrito por John Milius e Michael Cimino para direo de Ted Post (que j havia dirigido o astro em A marca da forca / Hang Em High, 1968, e em vrios episdios da srie da srie Couro cru / Rawhide, 1959-1966), Harry, o sujo, combate um grupo de policiais que forma um esquadro da morte para dar conta dos bandidos que a lei no consegue punir. No seria esse o policial que muitos chamavam de fascista, que procurava fazer justia a seu modo? Teria o detetive de mtodos sujos amadurecido? Harry Callahan voltaria em mais trs filmes, nos quais fica claro que seu problema maior no tanto a lei, mas a burocracia (sempre um mal, l como c). O melhor deles provavelmente Sem medo da morte, em que o detetive recebe uma parceira, o que desafia suas noes de incompatibilidade entre a fora poli-cial e as mulheres. Em Impacto fulminante, Eastwood dirige pela primeira vez uma histria com o detetive, e o faz com as mesmas tintas sombrias em que Siegel tinha mergulhado a estreia do personagem. Desta vez, ele defende a mulher que se vinga dos estupradores de sua irm (e dela tambm). Aceita a justia por conta prpria porque se viu apaixonado pela vingadora. um longa bem melhor que o ltimo da srie, Dirty Harry na lista negra (The Dead Pool, de Buddy Van Horn, 1988), do qual se destaca apenas a sequncia de perseguio com um carrinho movido a controle remoto. Mas o que importa que mesmo nessa srie, retratando um personagem aparentemente machista e violento, Eastwood revela matizes que o distanciam de persona-gens mais maniquestas, como o de Charles Bronson em Desejo

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    de matar (Death Wish, de Michael Winner, 1974) ou o de Bruce Willis em Duro de matar (Die Hard, de John McTiernan, 1988).

    Vale lembrar ainda, j que voltamos a falar das nuances de sua persona na tela, do pacato e apaixonado artista circense que Eastwood criou em Bronco Billy (1980) e do cantor decadente e alcolatra to bem personificado por ele em A ltima cano, dois grandes filmes modestos, dos quais Eastwood se orgulha bastante. O segundo provavelmente est entre os cinco melhores que dirigiu, e revela tambm seu lado musical, j explorado em Os aventureiros do ouroe