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CINERGIA Revista Número II | Setembro 2012

CINERGIA 2

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Revista de cinema (versão definitiva)

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CINERGIARevista Número II | Setembro 2012

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por João Palhares

Há os filmes muito vistos mas poucodiscutidos e há os filmes pouco vistos masmuito discutidos. Sem me alongar muito nasconsequências disso, escrevo apenas que é oponto de partida para este segundo númeroda Cinergia. Se o blockbuster é amplamentevisto como idiota e infantil, há algum cine-ma português que é ignorado por batalhaspolíticas incessantes entre quem é pela cria-ção de uma “Indústria” e quem é pelo “cine-ma de autor” (aquele que vos escreve é pornenhum) e ao qual não é dada uma oportu-nidade por ser levado de arrasto nesse tur-bilhão de discussões. Mas bem, crie-se umaIndústria, há casos de sucesso para paísescom a nossa dimensão. Na Holanda e logono segundo filme (Turkish Del ight), PaulVerhoeven passou a barreira dos três mi-lhões de espectadores (qualquer coisa como25% da população). Em Portugal, umAvatar nem 10% do país leva às salas. Istosão tudo questões muito complicadas, quetêm que ver com políticas de distribuição, di-vulgação, cultura e sociedade, mas o que meparece simples é que é um paradoxo com-pleto o cinema pedir para ser comercial.Pedir para ser comercial... Em Portugal, ocinema é comercial por ser feito de determi-nada maneira, é só uma questão de causa ede simular formas. No resto do mundo é pordobrar ou triplicar os orçamentos, há causae efeito.. É que as coisas ou são ou não são,acho que aqui não há meios termos.

Voltando por um momento aostemas que fazem este número, há blockbustersque precisam de ser elogiados e analisadoscomo os filmes que são, porque nalgunscasos (mesmo que poucos) é um exercícioproveitoso. Pode haver labor criativo mesmo

no que se vende como tudo menos criativoou estimulante em campanhas banais. Senos anos 40 e 50, durante o código Hays,houve quem trabalhasse nas entrelinhas pelaidentidade e através dos géneros (western,musical, film-noir), no blockbuster há quemfaça o mesmo mas por outras razões (não éa censura política, é uma questão de di-nheiro e patrocinadores) e através doutrosgéneros (fantasia, ficção-científica e acção).E é assim que filmes como Gremlins, Pre -dato r , Al iens , Heat , entre outros, se pa-recem distinguir da mediocridadedominante. Mas como para tudo, é precisoo tempo e a paciência para reconhecer ovalor de quem faz certos blockbusters. Já “ocinema português escondido”, é o cinemaque passa lado das novas vagas, das batalhasjá referidas no primeiro parágrafo e da fé no“filme que vai salvar o cinema português”.Há muito engano nestas religiões e pratica--se o salvamento do cinema só com mais ci-nema, que também é preciso, mas sem dar aver o velho espólio a novas gerações comrestauros, re-lançamentos e edições emDVD. Há mais palestras sobre cinema na-cional em Portugal do que exibições dasobras de António Reis e MargaridaCordeiro, António Campos ou Jorge SilvaMelo. Mas estas coisas são melhor desen-volvidas nos capítulos respectivos, portantoadiante.

Entrevistámos, para este número,Manuel Mozos e Filipe Melo. A entrevista aFilipe Melo é antiga, data de 2010, masressuscitámo-la por parecer fazer algum sen-tido. E entrevistámos Manuel Mozos nos En-contros Cinematográficos da Guarda do anopassado, uma das ocasiões raras em que se

Editorial

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Edição número IISetembro 2012

Director: João Palhares

Paginação: Gonçalo Franco

Textos: Álvaro Martins, Anto nio

Lopes, Carlos Nata lio, EdmundoCadilha, Joao Lameira, Joao Palhares,Jose Bértolo, Luís Mendonc a,Manuela Penafria, Miguel Cunha, Ri-cardo Madeira, Rui Oliveira, SabrinaMarques e Vasco Medinas;

Entrevistas: António Lopes, Iúri Sil-vestre, Ivo Brito, João Palhares e RuiOliveira;

CINERGIA

Revisão: João Palhares

mostra cinema praticamente invisível(Xavier, Movimento das Coisas). Agrade-cemos desde já aos dois, a oportunidade.

No passado mês de Maio assistimos a doisacontecimentos que vão marcar os próximosmeses do cinema e da vida portuguesa: amorte de Fernando Lopes (a Cinemateca fez--lhe uma lindíssima homenagem, com belís-simos textos de quem o conhecia e admi-rava) e a projecção de excertos de filmesportugueses na Assembleia da Repúblicacomo forma de protesto aos cortes de 100%para o sector e ao adiamento da Nova Lei doCinema (Nova Lei, essa, que foi recente-mente aprovada).

Mas ninguém sabe como vai ser o futuro. Ostempos são outros e hoje só não faz um filmequem tem melhores formas de ocupar otempo, que a coisa agora é mais uma questãode triunfo da vontade sobre a disposição(mas claro que é melhor com subsídios). Osofícios do cinema e os da crítica têm queestar atentos às mudanças das plataformasde exibição e até ao próprio “fazer” dosfilmes. O cinema já não é só coisa que estejadependente de estreia em sala ou em festi-vais de cinema (se calhar nunca foi) ou dumaequipa gigantesca e agora merece outra pos-tura, para que não se perca no tempo. Temque haver uma procura pelos tesouros es-condidos destes tempos, mesmo que seja noVimeo, mesmo que seja em comunidades deTorrents, mesmo que seja no MUBI. Temque se criar uma responsabilidade conjuntaque consiga abarcar todas estas realidades epluralidades de exibição, alargá-la a círculoscríticos, políticas de subsídios, métodos derodagem, etc. É uma tristeza que a películaesteja a desaparecer mas é preciso aproveitaro máximo possível dessa realidade e quasecomo se se estivesse a coroar um novoherdeiro ao trono... (O cinema morreu, vivao cinema!)

Mais uma vez, e como no editorial da edição

anterior, deixo os meus agradecimentos aquem tornou possível este número: AfonsoBrito, Álvaro Martins, Ana Martins, An-tónio Lopes, Carlos Natálio, EdmundoCadilha, Filipe Melo, Gonçalo Franco, IvoBrito, Iúri Silvestre, João Lameira, José Bér-tolo, Luís Mendonça, Manel José, ManuelMozos, Manuela Penafria, Miguel Cunha,Ricardo Madeira, Rui Oliveira, Sabrina Mar-ques e Vasco Medinas, bem hajam.

Ilustrações: Afonso Brito (Págs.5/6, 16, 23, 29, 55, 72, 81 e 86),Ana Bartolomeu (Págs. 12, 18, 22 e75), Manel José (Capa, Índice, Págs.11, 26, 35/36, 66, 73/74 e Con-tra-Capa), João Palhares (Págs. 62 e64) e Jaime Fernandes (Pág. 45);

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Ajuda extraordinária à redacção: Luís

Mendonça e Sabrina Marques;

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01Editorial

Edição número IISetembro 2012

Índice

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05Elogio ao Blockbuster

11Textos

35O Cinema Português Escondido

45Textos

73Entrevistas

75Filipe Melo

81Manuel Mozos

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Elogio ao Blockbuster

O Tubarão, António LopesFirst Blood, Vasco Medinas

Aliens, Rui OliveiraPredator, Rui Oliveira

Batman Returns, João LameiraDie Hard: With a Vengeance, João Palhares

Heat, Ricardo MadeiraM:I-2, Luís Mendonça

Mission to Mars, Miguel Cunha

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Introdução

Blockbuster como termo, percorretodo o século XX, tanto usado no mundo doespectáculo para peças ou filmes de sucesso,como para foguetões ou armas de guerramaciças. Faz parte do espírito “explosivo”dos Estados Unidos da América, de armarsensacionalismo e um espectáculo um bo-cado por trás de tudo. Até aos anos 70,houve vários blockbusters, de Gone With theWind a Doc tor Zhivago , passando porGoing My Way, de Leo McCarey – cineastainjustamente esquecido – o que não houvefoi um mercado pensado exclusivamentepara eles (complexos comerciais, pipocas,coca-cola, pepsi, merchandising, etc, etc),coisa que passa a acontecer a partir de EasyRider , Love Stor y , The Gotfather e TheExorci st , que lançam os primeiros prenún-cios dessa possibilidade e Jaws de StevenSpielberg, filme que catapulta o blockbuster afenómeno.

A partir daqui, os estúdios es-tadunidenses passam a investir milhões dedólares não só na produção mas também nadivulgação de vários filmes por ano, na es-perança de se tornarem blockbusters.

Sem injustiças em demasia para comSpielberg, Lucas e John Landis (e às vezesapetece, pelo menos com os dois primeiros)talvez se possa dizer que a “idade de ouro”do blockbuster seja a que vai de 1985 a 2000,

Elogio ao Blockbuster

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por ser a altura em que cineastas comoJames Cameron, John McTiernan, Brian dePalma, Michael Mann ou Paul Verhoeven(entre outros) “tomam” Hollywood e sãopossíveis filmes como Terminator 2, Pred -ator , Mission: Imposs ib le, Heat e BasicInst inct , filmes que para além de seremsucessos retumbantes, são também palcos deobsessões pessoais (formais e temáticas) dosseus realizadores. A partir daí, a maior parte“sai de cena” - Brian de Palma com Missionto Mars , Verhoeven com Holl ow Man eJohn McTiernan com Basic (tendo McTier-nan sido o único a não fazer mais filmes) –e deixa de haver um núcleo pesado a dar“alma” ao blockbuster, sem por isso deixar dehaver filmes interessantes, esporadicamente,de 2000 a esta parte e nestes contextos deprodução.

“- Holy smoke! What was that?- Nothing.

- What do you mean, nothing? That thingamajing is the granddaddy of all blockbusters!”

Dab Dailey e Corinne Calvet em When Willie Comes Marching Home, de John Ford

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caso de Heaven' s Gate, o dito “filme ter-rível que acabou com as liberdades da “NovaHollywood”, parece paradigmático de umaincapacidade de estúdio (ou teimosia) emvender um filme. Ao longo de toda a pós--produção foi só uma questão de estabelecerlimites criativos e nunca de tentar percebero “como vou vender este filme?”. E a inca-pacidade da crítica em avaliar o filme.

O problema do controlo dos produtores (oudos studio heads) sobre os filmes não é novo,e muito poucos realizadores fazem o quequerem nestes casos, mas – há sempre um“mas” - isso não é sempre mau, ou melhordito, não é necessariamente mau. Se paramuitos casos, é um problema, para outros,se calhar é uma solução e uma benesse. Osfilmes, depois de terminados, teimam emfalar por eles próprios. E a verdade é quedezenas de realizadores usaram o sistema degéneros – ficção-científica, fantasia, policial,acção, aventura – para se manterem fiéis a sipróprios. E não será verdade que a maioriadesses filmes dos anos 80 são interessantespor haver esse conflito interno na produção?

Num contexto tão vasto de produçãoe com milhares de envolvidos, é difícil verdonde vem a autoria. Como é também difí-cil saber ao certo o que é a autoria, em qual-quer campo artístico. Neste em particular,saber exactamente o que é a “realização”,como a descrever, ao guião e às interpre-tações. Assumir estas dificuldades é oprimeiro passo para entrar a fundo nosfilmes. Mesmo quem não é controlado porprodutores não é exactamente livre e traba-lhar no mainstream americano - pelo turbi-lhão de problemas burocráticos e batalhaspor controlo das rédeas do filme que implica- se calhar impede os realizadores de lidarcom questões mais intrincadas.

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Censuras VáriasPode-se falar também de “intrusos”

ao esquema de produção como forma de e-xemplo (que é capaz de haver mais), nas pes-soas de Joe Dante e John Carpenter, quetêm grandes sucessos com Gremlins e Es -cape From NY e viram tudo do avesso comdesconstrucções fabulosas em Gremlins 2 eEscape From LA, as sequelas/remakes res-pectivas (e talvez superiores), filmes impor-tantíssimos para compreender um e outro eo próprio sistema, de como há entraves e im-pedimentos para dizer e mostrar certascoisas e de como é preciso trabalhar nas en-trelinhas para haver alguma identidade - algodo realizador - nos filmes. E aqui, todo o rea-lizador tem as suas batalhas, podendo con-tinuar ou dizer basta! James Cameron teveproblemas com The Abyss, depois de umaante-estreia que o forçou a ter de mudar ofinal do filme, McTiernan com The 13thWarrior , filme que lhe foi roubado literal-mente pelo guionista (Michael Crichton) epelos produtores, e John Carpenter com BigTrouble in Lit tle China , que o fez recon-siderar todo o sistema e voltar com dois ex-traordinários filmes de baixo-orçamento,Prince o f Darkness e They Live. Tim Bur-ton tem também a sua quota de problemascom as majors, particularmente com MarsAttacks !, cujo orçamento escalava a olhosvistos, deixando a produção e os estúdios emalvoroço e, por isso, sempre “em cima” dele.As Warners e as Paramounts deste mundo têmque prestar contas e fazer render tudo. Numfenómeno em cadeia e com parâmetros queninguém percebe muito bem (a saber, oporquê de um filme ser feito de determinadamaneira vá render mais, necessariamente),as liberdades fecham-se. Talvez fosse frutíferoconceder a possibilidade de certos filmesnão fazerem dinheiro possa ser culpa de pro-dutores e companhias, também. Ou de críti-cos. Ou de ninguém, que a culpa morresempre solteira, como se costuma dizer. O

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Palavras de Andrei Tarkovski, quedeixam perceber que os problemas de liber-dade na criação são sempre uma espada dedois gumes. Porque lidar com estas coisas étentar superar as próprias capacidades e co-nhecimentos até perceber que é impossível.E isto fica tudo documentado. Há quem tra-balhe constrangido por produtores e quemtrabalhe constrangido com a consciência(embora toda a gente seja constrangida com

a consciência naquilo que faz, há é maneirasdiferentes de lidar com isso). Se no primeirocaso se pode dizer que se tentou de tudopara que fosse doutra maneira, no segundose calhar não. Resta é permanecer sincerodurante todo o processo. Se o caminho édiferente (mas não tanto assim), o resultadoé sempre o mesmo: há um filme. Que temde respeitar algumas regras de estrutura e demontagem e que são sempre as mesmas.

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Um Filme é um FilmeÉ difícil – muito difícil – acreditar

nisto. Difícil porque nos impede de descul-par certas coisas e pôr realidades em diálogo.Porque as formas estão lá e há sensibilidadepara as avaliar. Difícil também porque écomo pegar no touro pelos cornos. Se se di-videm os filmes em campos (seja blockbusterou “cinema de autor” ou ficção-documen-tário) é porque se torna mais fácil avaliá-los,mas é também porque há uma incapacidadenossa em os comparar e em os querer olharde frente. Dois filmes de um só realizadorpodem ser mais diferentes entre si do queum blockbuster e um documentário.

Se se insiste nisto é porque há muitapreguiça argumentativa. Discursos iguais,“bases críticas” um bocado para tudo. Se éum blockbuster é o argumento e os actores,se é um filme de autor é a psicologia e osprémios, se é uma ficção é a realização e a fo-tografia, se é um documentário é a sociolo-gia e a cobertura. Confundem-seconstantemente os “discursos” com os “ob-jectos”. E os filmes, onde estão? Temos queser mais diferentes uns dos outros e pôr essadiferença em diálogo.

“Não consigo entender de modo algum o problema da ' l iberdade ' ou ' fal ta de l iberdade ' de um ar ti sta . Ele nunca é livre . A nenhum grupo de pessoas fa l ta mais l iberdade. Oart ista está preso ao seu dom, à sua vocação. Por outro lado, e le é l ivre para escolherentre e xpres sar o seu t alento da maneira mais p lena que cons egu ir, ou vender sua alma por t r inta moedas de pra ta. A f renét ica busca de Tosl toi , Dostoi evsk i e Gogol não fo i estimulada pela cons c iência que t inham da sua vocação e do papel que lhes estava dest inado? Também e st ou convencido de que nenhum ar t i s ta t rabalharia para cumprir sua missão espir i tual se soubesse que a sua obra nunca seria vista por al -guém. Ao me smo tempo, po r ém, s empre que est iver a t rabalhar, e le deve co locar um véu entre e le e as outras pessoas, para se proteger contra a abordagem de temas genéri -co s , vaz io s e t r iv iais . Porque a concret ização das poss ibi l idades cr ia t iva s deum ar ti s ta só pode ser obtida através da honest idade e s inceridade totais , al iadas àconsc iência de sua próp ria responsabi l idade para c om os outro s . "

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O que vale então a pena?O desafio é esse. Tentar descobrir o

que vale a pena. Não é nem pode ser igualpara toda a gente. O mainstream americanoestá cada vez mais abstracto, não há pontade “coesão” ou “forma”, mesmo, na maiorparte dos filmes (embora nos mostrem nestecapítulo que há quem consiga usar isso emseu favor). É coisa que se nota pouco (e destaparte não há muitas certezas, atenção!)porque é tudo rapidíssimo, passa-se a veloci-dade relâmpago, serve para distrair. Quantomais estímulos e bombardeamentos levar-mos nos sentidos, mais aptos estamos a dizerque “sim” às coisas, a acreditar que elaspegam minimamente. Se há toda uma panó-plia de nuvens de fumo a impedir-nos de veras falhas de discurso (personagens a entrar esair do nada, raccords inventados, falsos, in-consistências das mais variadíssimas ordens),nós não as vemos. Dir-se á que é o suspen-sion of disbelief, mas a coisa parece outra:preguiça e incompetência compensada com“estouros” de pirotecnia, os gimmicks da in-dústria...

Adiante, e porque se disse “na maiorparte dos filmes”, há então os blockbustersque valem a pena, os que se interessam peloque filmam e conseguem fazer deslizaralgum conteúdo pelos cantos. É possível dis-farçar política e inteligência com géneros?Houve vários filmes que nos disseram quesim, de First Blood a Starship Troopers. Écaracterística do blockbuster ser “pelo sistema”- é o que se diz -, não ter consciência oumoral própria, opinião, sobre o presente. Noentanto, as obras de Paul Verhoeven ou JoeDante (até Tim Burton) mostram-nos o con-trário. De resto, terem sido possíveis filmescomo Bas ic Inst inct ou Showg ir l s(!) noseio de uma indústria como a americana,talvez seja impressionante. O percurso doholandês, aliás, vem demonstrar que é pos-

sível manter um discurso estético coerente“prestando contas às majors”. Houve quemchamasse a isso “cinema de autor”.

Mas faz-se já tarde e pouco se disse.Venham então os filmes...

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Textos

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de Steven Spilberg (1975, 124’)

O realizador Steven Spielberg disse(e ainda diz) que O Tubarão foi um dosfilmes mais difíceis que teve de realizar. Fe-lizmente para ele, o filme tornou-se um dosmais gloriosos do género. O Tubarão é umfilme muito peculiar, não só pela suahistória, mas também pelo legado quedeixou à indústria e história do Cinema. Foium dos primeiros filmes a “quebrar” a bar-reira dos 9 dígitos relativamente às suas re-ceitas e foi também o filme que tornou aépoca de verão como o período do ano maisdominante para os blockbusters.

O filme O Tubarão conta-nos ahistória da ilha de Amity - um resort no atlân-tico norte - que é aterrorizada por um gigan-

tesco tubarão branco. O primeiro sinal dapresença deste animal terrível é o apareci-mento dos restos mortais de Chrissie Watkinsna praia, e é com a morte de Chrissie que ofilme começa, numa das mais lendáriascenas da história do cinema de terror. Apóso aparecimento do cadáver, o chefe da poli-cia Brody (Roy Scheider) insiste que sefechem as praias até ser capturado o tubarão,no entanto esse desejo é-lhe negado peloMayor Larry Vaughn (Murray Hamilton), que,juntamente com o resto dos comerciantes dailha, teme que a notícia de um ataque detubarão ameace os lucros do comércio locale dos negócios imobiliários.

Consequentemente, o tubarão ataca

O Tubarão (Jaws)

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novamente (e novamente) e é aqui que Brodydecide tomar acções e capturar definitiva-mente o animal, Brody junta-se ao oceanó-grafo Hooper (Richard Dreyfuss) que éenviado para a ilha como especialista emtubarões. Juntos, debatem-se com o tubarãoe com o Mayor Vaughn que continua a nãoquerer encerrar as praias. Brody e Hooperalugam um barco de Quint (Robert Shaw), omais temível e respeitável caçador detubarões de Amity: é com este trio quecomeça uma épica batalha entre o homem ea besta. No final, o tubarão é morto e apesarda explosão estar muito bem elaborada, oque mais nos prende é a música. Em vez deouvirmos uma música triunfante, damos pornós a ouvir uma sucessão de notas de pianocompletamente melancólicas, o que nós dáa impressão de que apesar de tudo a mortedo tubarão é um evento triste.

O capitão Quint é um dos maioresanti-heróis do cinema, é cómico eameaçador ao mesmo tempo: a mítica cenaem que nos conta a história do fatídico USSIndianapolis – onde ao longo de uma se-mana, enquanto esperavam ajuda, pelomenos 90 membros da marinha americanamorreram devido a ataques de tubarões – éuma das mais arrepiantes e inesquecíveis per-formances gravadas em película.

O Tubarão é o filme que iniciou acarreira de Spielberg e está entre os seus me-lhores trabalhos. Devido ao elevado númerode blockbusters de sucesso que Spielberg reali-zou é fácil esquecermos que é um realizadorcom um enorme talento artístico. No en-tanto, O Tubarão relembra-nos disso, otempo do filme é soberbo, a mistura entre acomédia e o terror é feita com enorme mes-tria e observamos que apesar do seu agradopelos efeitos especiais, não os sobrepõe à im-portância da história e das personagens.

Podemos afirmar que o aspecto maisbri-lhante deste filme aconteceu por aci-

dente. No inicio das rodagens, o tubarãomecânico ainda não funcionava perfeita-mente (e durante as rodagens nunca funcio-nou na sua totalidade) e devido ao apertadoorçamento e à pressão exercida pelos estú-dios, o realizador viu-se obrigado a usar ima-gens subjectivas, apresentando-nos assim oponto de vista do tubarão que em conjuntocom a famosa música de John Williams criaa ilusão da sua presença. O medo do espec-tador é assim amplificado pelo facto de quedurante a maior parte do filme, não con-seguimos ver o tubarão, criando um enormesuspense que culminará com o confrontoentre o homem e o animal no barco de pescado capitão Quint.

O Tubarão é um sucesso em quasetodos os níveis, é aterrorizante sem sergrotesco, é espectacular sem ser incredível,ao longo do filme passa-se por momentos deacção impressionantes, mas é o humor, aemoção e o desempenho dos actores (e rea-lizador) que torna este filme muito mais queum blockbuster. No entanto, apesar de ser umfilme magnífico, existe uma espécie decalamidade no seu legado, já que foi OTubarão que mostrou ao mundo que o ci-nema não é apenas um meio artístico, mastambém uma maneira muito eficiente defazer dinheiro.

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António Lopes

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de Ted Kotcheff (1982, 93’)

Num dia solarengo à beira de umlago rodeado por montanhas, um homempercorre uma estrada de terra. Veste umcasaco verde da tropa e ao ombro traz umsaco que se percebe ser do exército. Estehomem que, saberemos mais à frente, é umveterano da guerra do Vietname, dá pelonome que marcará várias gerações de heróiscinematográficos: John Rambo. Rambochega a um pequeno aglomerado de casas àbeira do referido lago e dirige-se a uma se-nhora que pendura a roupa na corda.Rambo, com um sorriso na cara (a única vezque Rambo sorri), pergunta à senhora porum colega de armas que pertencia ao seubatalhão, na respectiva guerra. A senhorarevela que esse homem morreu devido a umcancro provocado pelas armas químicas u-sadas na guerra do Vietname. Aqui temos aprimeira critica feita a esta guerra. Não só ossoldados vietnamitas foram mortos pelasarmas norte-americanas como os própriossoldados norte americanos sofreram omesmo destino. É nesta parte que o sem-blante de John Rambo muda, foi como se osonho do regresso ao seu país e toda a felici-dade que isso carregava tivesse sido desfeitopelo despertar da realidade. A guerra nãoacabou, ela continua nos EUA e dentro detodos aqueles que de lá voltaram.

A cena seguinte do filme introduz--nos o conflito do filme. Esta cena começacom Rambo a vaguear por uma estradanorte-americana. O tempo mudou, tornou--se cinzento, mais frio, e Rambo caminhacom um semblante carregado. Atravessauma placa de uma cidade que diz “Welcometo Hope”. De seguida é-nos apresentado oantagonista, o xerife da cidade que dá pelo

nome Teasle. O xerife sai da esquadra eentra no carro-patrulha. Rambo caminhapela entrada da cidade e cruza-se com Teasle.O xerife pergunta para onde Rambo vai,tecendo antes um comentário que deixa an-tever problemas: que Rambo, com o aspectoque tem, e com a bandeira norte-americanano casaco, veio ao sítio ideal para encontrarproblemas. Rambo entra no carro do xerifee seguem os dois pela cidade.

Dentro do carro, o xerife e Rambotêm o único dialogo que partilham durantetodo o filme, e aqui ficam completamentedefinidas as posições de cada personagem.Assim como o conflito do filme. Então sepor um lado temos o xerife, que representaa nação americana e que vê os veteranos daguerra do Vietname como assassinos,vagabundos, “Drifters”, por outro temosJohn Rambo, que representa aqueles quederam o sangue e suor por uma guerra in-ventada por aqueles que agora os odeiam eque ao regressarem ao seu país são tratadoscomo pragas. “You got some place I can eataround here?” pergunta Rambo ao xerife,que responde “There’s a diner about 30miles up the highway”. Rambo: “is there alaw against me getting something to eathere?” Xerife: “Yeah, me”. Rambo:” Why areyou pushing me, I haven’t done anything toyou”. Xerife:”First of all , you don’t ask thequestions around here, I do. Secondly, wedon't want guys like you in this town.Drifters. First thing you know we got awhole bunch of guys like you in this town.That’s why!”. O carro do xerife atravessa aponte e pára fora da cidade. Rambo sai docarro. O xerife volta para a cidade. Rambohesita por uns segundos entre seguir viagem

First Blood

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e voltar para a cidade. Se Rambo tivesse de-cidido seguir em frente e ignorado a provo-cação do Xerife daquela pequena cidade ahistória poderia ter sido toda diferente (ounão, Rambo teria encontrado outro Xerifeque o teria provocado). Bom, mas para inte-resse da ciência, Rambo volta para a cidadede “Hope”. O Xerife vê-o a voltar atrás peloretrovisor do carro e pára perto de Rambo,levando-o preso.

Na cena da esquadra, os adjuntos doxerife - homens arrogantes e preconceituosos- levam Rambo ao limite, fazendo-o recordarsituações de tortura que sofreu às mãos dosvietnamitas. Rambo “explode” e a maquinade guerra adormecida, acorda. Rambo fogeda esquadra, rouba uma moto e embrenha--se pelo mato. O xerife e os adjuntosperseguem Rambo com o auxilio de cães.Um dos adjuntos, por outro lado, segueRambo de helicóptero. Rambo acaba numprecipício sem hipóteses de voltar para tráspois o Xerife está a pressioná-lo pelo únicoponto de fuga possível. Rambo tenta descero precipício. O Adjunto do xerife de he-licóptero encontra Rambo a meio do precipí-cio e dispara sobre ele. O xerife ordena queo adjunto não o mate, quer Rambo vivo.Rambo atira-se do precipício para cima deuma árvore. O adjunto do xerife continua adisparar sobre Rambo com o intuito de omatar. Rambo, escondido atrás da árvorepara evitar os tiros, agarra uma pedra e atira--a contra o helicóptero. Com o impacto dapedra, o piloto da aeronave assusta-se e mexeo helicóptero, fazendo o adjunto do xerifedesequilibrar-se e cair da aeronave. O ad-junto morre no fundo do penhasco. Ramboanda até ao corpo e tira-lhe a arma e ocasaco. O xerife e os restantes adjuntos, a pé,avistam o corpo do adjunto no fundo dopenhasco e Rambo surge de mãos no ar apedir clemência. O xerife e os adjuntos dis-param sobre Rambo, que foge. “The guy isa war hero” soa via rádio. Aqui, chegam-nosinformações sobre quem é, realmente John

Rambo. Tanto para o espectador como paraos personagens. Segue-se uma cena ondevemos as capacidades de guerrilha deRambo, que derrota todos os homens que operseguem com relativa facilidade. Os aju-dantes e o xerife acabam por ser salvos enesta fase revela-se uma nova personagem, oCoronel Trautman, que recrutou, treinou ecomandou Rambo. O Coronel Trautmansente-se como um pai de Rambo. Porém,Trautman aparece para salvar aquela cidadedo poder destrutivo de Rambo. No final,Rambo desce da montanha para a cidadetrazendo destruição e caos para aquele calmopovoado. Como é de se esperar, nenhumdos polícias tem hipótese contra Rambo. De-pois de alvejar o xerife que se esconde na es-quadra, os homens da guarda nacionalcercam o local. Rambo prepara-se para lutarcontra eles mas surge Trautman. Rambo eTrautman têm uma conversa sobre a formacomo os veteranos são tratados nos EUA.Um herói de guerra especialista em qualquertipo de combate, responsável por milhões dedólares em equipamento militar, mas que noseu país nem para estacionar carros serve. Éexactamente com esta frase que Rambo sedesarma e volta a ser humano. Deixa de sera máquina de guerra que destrói uma cidadee volta a ser o mesmo homem que procuravacom esperança o seu companheiro de armas.Rambo entrega-se nos braços do CoronelTrautman e deixa escoar a raiva contida.

First Blood é um filme de acção. To-davia tem um fundo temático mais forte doque aparenta. Trata essencialmente o temados veteranos da guerra do Vietname, queeram vistos como marginais e assassinospelas pessoas que tentaram proteger. Masclaro que à parte de tudo isto, e volto a sub-linhar, Fi rst Blood é um filme de acção,onde nasce o herói mítico do cinema destegénero, John Rambo, um homem capaz dederrotar um regime político, de entrar noAfeganistão e capturar o Bin Laden (se aindafosse vivo). Digo mais: se tivessem o Rambo

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na altura da Segunda Grande Guerra,provavelmente não teriam criado o CapitãoAmérica. Vasco Medinas

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de James Cameron (1986, 137’)

No ano em que o nome de JamesCameron volta a estar nas salas de cinema,com a reposição de um dos seus maioressucessos de crítica e de bilheteira, Titanic,desta vez em 3D, e no mesmo ano em queestreia nas salas Prometheu s, o muitoaguardado regresso ao universo Ali en porRidley Scott, o criador da saga que se iniciouhá precisamente 33 anos atrás, nada maispertinente do que recordar e falar um poucoda obra que juntou o nome de JamesCameron a este universo da ficção científica.

James Cameron já tinha dado cartasem 1984 com o primeiro Terminator , filmeproduzido com um orçamento modestodados os padrões de Hollywood, mas queacabou por se tornar um êxito de bilheteirae filme de culto, lançando os seus actores erealizador para a ribalta. Dois anos maistarde, Cameron aceitou tomar o leme da se-quela do filme de Ridley Scott (Alien de1979). E revelou ser a opção certa, criandomais do que uma simples sequela, um filmebastante diferente do seu predecessor, numregisto de acção e espectáculo, com uma ver-tente dramática que mantém sempre pre-sente.

Ali ens, com o subtítulo português“O Reencontro Final” (que não seria o final,como sabemos) confirmaria Cameron comoum dos nomes maiores do cinema-espec-táculo de Hollywood das próximas décadas.

Neste 2º capítulo, vamos encontrara nossa heroína e única sobrevivente doprimeiro filme, Ripley (interpretada pelainigualável Sigourney Weaver) adormecidanum tubo criogénico, a ser encontrada e le-

vada de volta à Terra. Aí ela é confrontadacom o facto de já terem passado 57 anosdesde os acontecimentos na Nostromo, e debasicamente todos os familiares e amigos naTerra terem já morrido. O planeta LV-426,onde a forma de vida foi encontrada no 1ºfilme, está já colonizado por seres humanos,mas o contacto com a base dos colonos éperdido, e é pedido a Ripley que acompanheum esquadrão de elite (marines) para osguiar até lá e aconselhar no combate à letalforma de vida alienígena que ameaça a so-brevivência humana, e que apenas ela tãobem conhece.

Apenas 2 anos depois do sucesso doprimeiro Terminato r, Cameron conseguecriar um novo filme de culto para os fãs daficção científica e não só. Com um orça-mento consideravelmente maior (cerca de 19milhões de dólares), tem já meios para criardécors ambiciosos (o planeta LV-426 e todoo complexo da colónia), assim como veículose naves. Os efeitos especiais estavam numperíodo de grande revolução, e isso permitiucriar um filme mais ambicioso e espectacu-lar, tanto a nível da própria acção como dospróprios aliens (bastante realistas e credíveis,com os bonecos animatrónicos). Ainda hojevemos o filme e este não parece nada datadoa nível de efeitos visuais (a não ser um ououtro écran verde) e décors. Aliás, o filmeviria a ganhar 2 Óscares em 1987, para Me-lhores Efeitos Especiais e Melhores EfeitosSonoros. Algo a que os filmes de Cameronnão são alheios, já que todos os filmes querealizou desde Terminato r ganharam oÓscar de Melhores Efeitos Especiais, exceptoTrue Lies (1994).

Aliens

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Rui Oliveira

O filme consagrou Cameron comoum grande realizador do género, mas tam-bém a sua protagonista Sigourney Weaver(que já era uma actriz conhecida, com o 1ºAli en e Os Caça -Fantasmas), foi reco-nhecida como uma actriz de grande valor in-terpretativo, tendo sido nomeada em 1987para o Óscar de Melhor Actriz por estefilme, a primeira a ser nomeada para oprémio num filme do género. Para além darealização dinâmica e segura de Cameron eda qualidade do argumento, é mesmo a e-nergia e a garra da interpretação de Weaverque concede à sua personagem toda a forçae carisma que esta nos transmite, e pela qualnos faz ter grande empatia, tornando o filmeainda mais intenso e empolgante. O argu-mento permitiu também a Weaver criar umaheroína de acção com espessura dramática,com traumas, emoções e interesses, não seesgotando nas frases feitas e no desempenhofísico da personagem. Não precisamos depensar muito para lembrar que nos filmesde Cameron a personagem central é sempreuma mulher de armas, que assume o papelde herói no feminino, em torno da qual éconstruída a narrativa. A relação maternal eprotectora que Ripley estabelece com Newt,a menina orfã da colónia, é muito intensa ebem conseguida, tornando-se no cerne dahistória na recta final do filme. Quem con-

segue esquecer a famosa frase antes do con-fronto com a “Rainha” Alien, dentro domonta-cargas humanóide: “Get away fromher, you bitch!”?

Cameron gere a acção e o suspensecom mestria, presenteando-nos com umaobra que é mais que um filme de acção, e setorna uma verdadeira aventura/pesadelo re-cheada de momentos de grande intensidadedramática e terror, mantendo o espectadorna expectativa sobre o destino dos persona-gens principais até ao final. Os últimos 40minutos, a partir do confronto com a rainhaAlien são um non-stop de nervos numa cor-rida em contra-relógio.

Apesar de nesta sequela termos umregisto completamente diferente do filme deRidley Scott, que é sobretudo um filme deterror e suspense passado no espaço, estefilme bélico de grande espectáculo, nãodeixa de ser um marco no cinema de ficçãocientífica, e um dos melhores filmes daquadrilogia Alien, indispensável para qual-quer fã do género, e não só.

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de John McTiernan (1987, 107’)

De um dos maiores monstros/cria-turas da história do cinema fantástico con-temporâneo, para outro. Em 1987 JohnMcTiernan realiza este inteligente, trepi-dante e original thriller de ficção científica,com momentos de grande suspense e algumterror psicológico, cuja acção se passa emplena selva da América Central, com ArnoldSchwarzenegger como protagonista.

Aqui, McTiernan leva-nos para asselvas tropicais da América Central, de iní-cio aparentemente num simples filme deguerra sobre os conflitos entre governoamericano e terroristas. ArnoldSchwarzenegger (então no início de umapromissora carreira no género) interpreta opapel principal do Major “Dutch” Schaefer,líder do comando que é enviado numa mis-são de salvamento de elementos do governoamericano, cujo helicóptero foi abatido eraptados por terroristas refugiados no meioda selva. A missão rapidamente revela seruma fachada para outra missão da CIA en-volvendo tráfico de droga. A acompanhá-loestá um grupo de competentes actores se-cundários, que interpretam os diferentes ele-mentos da equipa. Na 1ª parte do filmeestamos perante uma banal fita de acção emque os americanos e traficantes se con-frontam, e os comandos acabam por destruiro acampamento inimigo, apercebendo-se deque a missão não passava de uma fachadapara salvar a face a um elemento corrupto daCIA. Mas a inflexão na história surgequando uma ameaça externa começa aperseguir e literalmente a ‘caçar’ um a um oselementos da equipa de comandos lideradapor Schwarzenegger. Ainda maior é a sur-presa quando percebemos que se trata de

vida extra-terrestre que visita o nosso planetajá há décadas (quiçá séculos), para empreen-der ‘caçadas’ ao homem, que fazem parte doritual de passagem à idade adulta dessamesma espécie.

A partir desse ponto, assistimos auma luta pela sobrevivência em ambientehostil (em plena selva tropical, longe da ci-vilização) desse grupo de homens, prepara-dos e treinados para combater outroshomens, mas não uma espécie extra-terrestrehabilitada de força e armamento tecnologi-camente superior ao nosso.

O realizador mostra neste filme a suaenorme capacidade para realizar com segu-rança e dinamismo sequências de acção es-pectaculares, e ao mesmo tempo dirigir comcompetência actores não muito conhecidos(à excepção de Schwarzenegger), mas convin-centes nos seus personagens, bem construí-dos e com alguma densidade dramática epsicológica. Aliás, essa lenta construção dostraços psicológicos de cada um deles aolongo do filme, vai-nos permitir, a nós espec-tadores, sentir o impacto da morte de cadaum quando surge o momento, já que co-nhecemos o seu background e percebemoso significado desses momentos para o restodo grupo.

Destaque, claro está, para os efeitosespeciais que valeram ao filme umanomeação para o Óscar nesta categoria, epara o trabalho feito com o extra-terrestrePredador, interpretado por Kevin Peter Hall(um actor afro-americano que se destacouprecisamente por interpretar o Predadorneste filme e na sequela de 1990), que teve

Predator

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de penar bastante para suportar o bem con-seguido, mas pesadíssimo e sufocante fato delátex criado pelos técnicos de efeitos especi-ais do filme.

McTiernan consegue também uma excelentegestão da intriga, mantendo o suspensesobre o que será que persegue os comandos(na 1ª parte), e mais tarde sobre quais serãoas motivações e verdadeiro aspecto doPredador (que usa um fato de combate)mesmo até ao final, num duelo devastadorentre protagonista e Predador. Como esque-cer o comentário de Schwarzenegger quando

retira a máscara ao Predador: “You're one uglymotherfucker!”.

Este foi o filme que lançou outro grandenome do cinema de grande acção e espec-táculo dos anos 80 e 90, John McTiernan, oqual no ano seguinte a Predador viria a diri-gir outro grande super-êxito deste género:Die Hard (“Assal to ao Arranha-Céus”em português).

Rui Oliveira

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de Tim Burton (1992, 126’)

No início da carreira, Tim Burtonera infalível: conseguiu uma série de filmestodos pelo menos muito bons — Beet le -juice, Edward Scissorhands, e Ed Wood —, passando incólume ao blockbuster, registoem que foi, se possível, ainda mais pessoal,que é como quem diz mais "autor" (segundoa teoria do dito). Os dois Batman que reali-zou — que se incluem facilmente nessa sériequase milagrosa — são profundamente seus,principalmente o segundo, Batman Re -turns, como procurarei defender. Adefinição de um cineasta como autor, atépela génese da teoria, tem tanto mais vali-dade quanto a sua obra é realizada sob apressão dos grandes estúdios (ou, no con-texto actual, no enquadramento de umagrande produção). Só nesse caso se torna e-vidente a marca de um verdadeiro autor,pois sobrevive a incontáveis interferências ex-ternas (quem arrisca muito dinheiro tentasempre pôr um dedo quando não o braço in-teiro).

Dá-me ideia que hoje, passados vinteanos sobre a estreia, seria impossível haveroutro Batman Returns , que, recorde-se, foimal recebido pela crítica, para além de nãoter atingido os lucros desejados (emborafosse dos filmes mais vistos de 1992);queixaram-se todos que havia pouco Batmanpara muitos vilões, que a história era confusae desnecessariamente complicada, que aforma ensombrava (às vezes, literalmente) oconteúdo. Quem tenha olhos de ver, nãopoderá refutar qualquer das acusações, to-davia, saberá que, em cinema, há coisas maisimportantes que o escorreito e o bem-fei-tinho. Aliás, o que sobressai de Batman Re -tu rns é o sentido de risco, de

experimentação numa obra para o grandepúblico, o que as precauções financeiras (evolte a sublinhar-se que filmes destes impli-cam um grande investimento) tendem a evi-tar.

Pegue-se nos Batman de ChristopherNolan — exactamente os mesmos problemas:argumentos fracos ou indulgentes (o iníciode Batman Begins, por exemplo, é extrema-mente maçudo). No entanto, granjeiam deuma larga estima do público e não só (têmboa cotação da crítica) que o segundo tomoda saga de Burton nunca teve (foi até com-parado ou considerado um prenúncio dosBatman de Schumacher). Posso estar a ver acoisa mal, mas a grande diferença estará noestilo. Nolan não tem estilo, ou, voltando àteoria de autor, não se lhe detecta qualquermarca distintiva (a não ser, talvez, a faltadela): filma tudo no mesmo registo "natura-lista" e "realista" que delicia os espectadorescontemporâneos (diga-se que, nalgumas se-quências de acção, até mal, falhando emprincípios básicos da linguagem cine-matográfica).

Pelo contrário, Burton aposta na es-tética expressionista que lhe é tão cara (noprimeiro, mais ligeiramente, mais próximodo film noir, o descendente americano doexpressionismo alemão; no segundo, desbra-gadamente) e que, paradoxalmente (pois éum fenómeno a posteriori), mais se associaao universo Batman. Não é por acaso que,em Batman Returns, anda por lá uma per-sonagem chamada Max Schreck (nome doactor que protagonizou Nosferatu de Mur-nau) ou que o prólogo é uma pequena curtamuda ou que se entra no filme pelo esgoto,

Batman Returns

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nem que os tons (numa fotografia a cores)são negríssimos, nem que Catwoman vesteo último modelo Saber Masoch em látex,nem que a cor-de-rosa saudação "hello there"se transforma no ominoso "hell here", nemque a história se passa, é fácil esquecer, naaltura do Natal, subvertendo as festividades.Nem será por acaso que no centro de tudoesteja uma noção tão romântica como oamor louco e impossível: Bruce Wayne (ex-traordinário Michael Keaton) e Selina Kyle(belíssima Michelle Pfeiffer) beijam-se de-baixo do azevinho; Catwoman quer matarBatman e este aniquilá-la — um amor que sóse consuma na destruição do outro. Faltaainda referir a veia bíblica da história comos filhos primogénitos (e o tema maisabrangente da paternidade) e a pequenasátira eleitoral à volta da candidatura a pre-sidente de câmara de Oswald Cobblepot,vulgo Penguin, entre os diversos motivos de

interesse.

Escreveu alguém que o maiorpecado no cinema é ser-se anódino. Nabatalha entre o cinema esdrúxulo e excessivoe o cinema correcto e bem posto, a vitóriade Nolan (que se deseja passageira, um ardos tempos) é, por isso, muito triste.

João Lameira,numa paragem do 28

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de John McTiernan (1995, 131’)

Dir-se á por aí que é falta de discer-nimento tentar defender os filmes da nossajuventude. E para muitos filmes será ver-dade. Mas não para este. E como defenderaquilo que nos parece que não precisa de de-fesa alguma? Não basta ver os primeirosplanos no genérico de Die Hard: With aVengeance para perceber que é coisa doutraliga e doutro arcabouço? Ou as várias se-quências, espalhadas pelo filme, para perce-ber que é obra séria? Pode ser que o seuestrondoso sucesso o tenha impedido de serapreciado pelo que é, mas parece-me im-provável.. A verdade é que o engenho de DieHard: With a Vengeance (para mim omelhor filme da trilogia Die Hard e tambémo melhor filme de McTiernan) está camu-flado, em camadas, e é difícil de encontrar.Mas o que custa a encontrar dá mais gosto eo meu respeito e admiração pelo filmecrescem a cada visualização.

Não é preciso pensar muito parareparar na semelhança dos nomes da perso-nagem principal e do realizador do filme -John Mclane e John McTiernan -, pode-seaté dizer que é o seu alter-ego. São os dois damesma cidade e foi a única personagem aque McTiernan voltou na sua obra. Istopouco quer dizer, mas como salta à vista con-vém fazer notar. Porque a verdade é que se oprimeiro filme da trilogia gira à volta deJohn Mclane (Bruce Willis), o segundo giraà volta de Simon Gruber (Jeremy Irons). Sobque perspectiva?, convém-me explicar: BruceWillis é a ameaça invisível do grupo de ter-roristas no primeiro filme e Jeremy Irons é aameaça invisível das forças de defesa dacidade de Nova Iorque, neste terceiro filme.Como o predador alienígena de Predato r,

como o grupo 8 de Basic e como o exércitomisterioso de The 13th Warrior. No fim,é tudo uma questão de tornar visível essa in-visibilidade e perceber as forças que a move.Em Die Hard: With a Vengeance , SimonGruber só aparece passados quarenta minu-tos no topo de um edifício para dizer “Theybought it”, no entanto só se torna visível parao espectador. Para John Mclane, para asforças policiais e para a câmara municipal dacidade, os seus desígnios continuam inde-cifráveis. Até se irem descobrindo, primeiropelo diálogo inocente de uma criança quediz por outras palavras que a cidade estácompletamente a descoberto e fragilizadapor não haver polícias num raio de centenasde metros (pelas ameaças de bomba deSimon, foram todos mobilizados para as es-colas primárias de Nova Iorque), depois porum frasco de aspirinas que denuncia o es-conderijo dos terroristas.

Mas há mais do que isto. Pense-senas grandes sinfonias urbanas do tempo domudo, que elogiavam a força da imagem erenunciavam a narrativa. O facto de DieHard: with a Vengeance ter narrativa (eestimulante) parece-me secundário. Acabapor ser só uma desculpa para documentar ossistemas de defesa de uma cidade enorme,de a percorrer de lés-a-lés com essa obsessão,do Harlem a Wall Street. Senão, repare-se nascenas na esquadra, na quantidade absurdade chamadas ao 911 (o nosso 112), em comose transita de umas coisas para as outras e,sobretudo, na montagem de apresentaçãodos vilões, que me parece sintomática das in-tenções do realizador. John McTiernan nãoé estranho nenhum a estas andanças, fre-quentou a cena experimental do cinema un-

Die Hard: With a Vengeance

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derground de Nova Iorque. No princípio dofilme, a câmara aparece reflectida numa car-rinha que passa na estrada e no tilt paraSimon Gruber, no telhado, ele aparece combinóculos para controlar a comoção urbanae dizer o já citado “They bought it”. É tudouma questão de luta pelo controlo do es-paço, seja pela câmara ou por Gruber. Aseguir, acabam-se os diálogos por 2o minu-tos, tirando os que são só descritivos, ecomeça-se a ouvir a música When JohnnyComes Marching Home enquanto Simon e ogrupo fazem o assalto aos cofres. Está tudoassente na ocupação do espaço, como jádisse, é desbravamento visual, cinematográ-fico acima de tudo, repare-se no jogo de luzesna apresentação de Katya (Sam Phillips), avilã silenciosa, com vermelhos prodigiosos eno jogo de perspectivas com as câmaras devigilância, antes da morte horrorosa do se-gurança.

Durante estes momentos, JohnMclane está com Moses (fabuloso Samuel L.Jackson) a resolver as adivinhas que Simonos obriga a resolver (que como já se sabe sãoum engodo para manter a sua invisibili-dade). Se há outro ingrediente para a fór-mula McTiernan e outra razão para DieHard: With a Vengeance ser tão prazerosode se ver (daqueles que se se apanha na tele-visão, é-se instantaneamente impulsionadoa ver), é a dinâmica Willis-L. Jackson. Co-nhecem-se por um acaso completo e estãosempre em conflito, brincando o mais quepodem com as tensões sociais e raciais queos separam (ver um filme de grande orça-mento explorar estes conflitos sem se refu-giar na chico-espertice e na demagogia é outrodos grandes trunfos de Die Hard: With aVengeance).

Filme sobre um polícia com umaressaca do tamanho do mundo, que só aquer curar e cuja cura acaba por resolvertambém o caso, filme que põe à prova asbases civilizacionais o quanto pode, passado

em vinte e quatro horas e concentrado nasrelações espaciais e temporais dum assaltomonumental aos cofres da cidade de NovaIorque, Die Hard: with a Vengeance é umdos melhores filmes dos anos 90 (emboranão seja grande elogio). Crença de poucagente para já, mas pode ser que o tempo nosacabe por dar razão...

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João Palhares

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de Michael Mann (1995, 170’)

Quando falamos no Blockbuster,falamos daquele filme que toda a gente pagapara ver, e quando dizemos toda a gente,falamos do maior numero de pessoas pos-sível e imaginário. Falamos daquele públicoque vai regularmente às salas, e que as enche,à espera de uma grande dose de entreteni-mento enquanto desfruta de um balde depipocas XXL.

Quem me dera que em 1995 eupudesse ter apreciado esta Masterpiece deMann no grande ecrã. Lembro-me perfeita-mente de quando o vi pela primeira vez e lhetorci o nariz pelo seu maior senão, o Tempo,mas... lá chegaremos, porque dei como ex-tremamente bem empregue esse tempo.

Quero acreditar que existe uma espé-cie de Panteão para todos os grandes filmes,e acredito que se tal coisa existe, Heat estarálá, certamente, entre todos os outros grandesnomes, lado a lado com os seus pais, avós eirmãos, iguais em género. É um filme queocupa uma posição de excelência no sem fimde filmes de Acção/Policial, talvez, dos últi-

mos 40 anos, disso não tenho dúvidas.

Como todos os seus semelhantes,tem aquela linha narrativa básica, a históriado Gato e do Rato que já todos conhecemosmas que curiosamente ainda nos faz parar eficar estatelados na cadeira, a sofrer e a es-perar por mais e mais, tal como esse ritmo“hollywoodesco” nos educou enquanto es-pectadores. A estória de um polícia bastantecompetente e determinado que procura umladrão e a sua equipa, que enchem as mes-mas medidas.

Mas, atenção! Não julguemos o livropela capa. Não escapando ao que é habitual,a estória não foge ao cliché, mas consegue,por vezes, escapar-se ao ritmo destrutor deHollywood, e a acção desce a um nível tãoprofundo quanto o silêncio das monstruosaspersonagens e actores lhe permite. Afinalsempre há uma alma num filme de acção.

Nunca será escusado mencionar ogrande elenco, nomeadamente os doisnomes mais sonantes, de De Niro e de Al Pa-

Heat

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cino que por mais curioso que pareça, quasenunca contracenam juntos durante os 152minutos de filme. É talvez graças a esta per-versidade de Mann, que as suas personagensse tornam tão especiais, por nunca chegar ahaver aquele momento de catarse meio ho-mossexual em que o bom e o mau se en-volvem numa luta tête à tête para resolvertoda a problemática, que cena após cena sevai intensificando.

Essa cena existe, mas de um modotão simples que nos deixa boquiabertos.Robert De Niro e Al Pacino contracenamjuntos, pela primeira vez na vida, em Heat,num longo diálogo, onde se insurgem umcontra o outro, e há uma alegria que ambosemanam, que me leva a crer que são maiseles próprios do que meras personagens.

O génio de Michael Mann não en-vereda por esses caminhos pecaminosos doaxiomático. Juntamente com a grande panó-plia de actores, conseguiu tornar o filmenuma obra de arte, meticulosamente contro-lada e completamente envolvente para o es-pectador. Procurou a saída dos fundos, masfoi por lá que teve mais glória, e talvez tenhasido essa fuga ao óbvio que criou este mons-tro inesquecível do género.

As suas quase três horas são um en-trave, e estão recheadas de clichés, claro queestão! Mas, vamos julgá-los como bonsclichés! Todos os pneus a chiar, as balas in-findáveis a voarem e a fazer buracos em cor-pos que tombam no asfalto podiam fazercom que Heat se afogasse nas suas própriastrivialidades, mas não o fazem.

Em suma, Heat é tudo o que nós,espectadores, vamos à procura quando en-tramos numa sala para ver um filme deAcção. Heat é um marco! Um must see paraqualquer fã do género, e de Cinema. Ricardo Madeira

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de John Woo (2000, 123’)

Antes de convencer Nyah a juntar-seà sua nova missão, Ethan Hunt tem de"bailar" com ela, não "corpo-a-corpo", mas"carro-contra-carro", numa perseguição nolimiar de um desfiladeiro mortífero; ele numBMW, ela num Audi. Jogo de sedução de al-tíssima cilindrada, com música flamenca, amesma que, poucas horas antes, por entre assaias esvoaçantes das bailarinas, pontuara asua primeira troca de olhares. Uma troca deolhares que não é bem o tradicional, muitohollywoodesco, "love at first sight", mas maisum "I dare you to fall in love with me". E, quemdiria, poucas horas depois - tudo é muitorápido num filme de Woo, todos nós sabe-mos -, lá estava ele encostado a ela, "metal-contra-metal", rodopiando, bailando, entrea vida e a morte, ao som da mesma músicaflamenca, sexy e viril. E o tal "fall in love"torna-se num "rescue you from falling...",quando Ethan Hunt, depois do pouco res-ponsável duelo de carros provocado pela bel-dade, lança o braço à fêmea em apuros. Elaestá "apanhada" por ele e, logo, ela aceitaráa sua missão, mesmo que esta seja como temmesmo de ser, isto é: nem mais nem menosdo que impossível.

"Tanto aparato para tão pouco?",questionará o espectador das lógicas absolu-tas e à prova de bala. Para tão pouco?, res-pondo eu. Hunt seduz Nyah e leva-a consigopara uma "missão impossível" - "tão pouco",meus meninos, só se pode alcançar comaparato. Aliás, o aparato em Woo, o Wooamericano e o Woo de Hong Kong, é coisapara ser levada muito a sério tanto quanto écoisa para se levar muito pouco a sério. O

leitor está confuso? Então vamos por partes.

Quando se atira do último andar(42.º, para sermos exactos) do arranha-céusonde estão instalados os laboratórios da Bio-cyte, Ethan Hunt não abre logo o pára-quedas, ele adorna o movimento com umpequeno e curto salto mortal. Antes detomar "de empréstimo" uma das motas quesão dirigidas contra si, Hunt põe uns es-tilosos óculos escuros no rosto. O sol estáforte, mas não assim tão forte. Todo o tipo deacrobacias que realiza em cima e até ao lado(!) da sua mota "tomada de empréstimo" éfogo de vista para uma plateia invisível ou fazparte do modo que Hunt encontrou para sedesembaraçar, com o máximo de eficiência,dos seus inimigos? O adorno (o salto moralou os óculos escuros) parece apontar para aprimeira hipótese, contudo, os stunts nessesembates motorizados são de uma precisão econsequência à prova de bala. Woo soube in-terpretar cineticamente a própria ideia con-tida no título de missão impossível: aqui,não é só a missão que representa uma impos-sibilidade, mas, antes de mais, são osnúmeros de acção que se alimentam dessaimpossibilidade. Porém, não é uma impossi-bilidade inutilmente "adornada". Há qual-quer coisa neste M:I -2 , como num FaceOff, como, até, a espaços, num The Kil ler,que parece ditar o seguinte: "Já que vamosparecer impossíveis, então vamos tambémser impossíveis. E já que vamos ser impos-síveis, então por que não fazê-lo com estilo?"E até aqui vai a, simultânea, seriedade e cri-ancice do cinema de Woo: let's play seriously.O mote do seu cinema é esse e resulta: é con-

Mission Impossible II

A acção impossível dos corpos e do rosto em M:I-2

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sistentemente de uma perfeita incongruên-cia, como quem se conduz ao abismo comum sorriso irónico nos lábios.

M:I-2 é um filme que faz a sínteseentre o Woo americano e o Woo de HongKong. Há o ballet das balas, a pé, de carro,de mota, de helicóptero, que reinterpreta, nadirecção dessa (caricatural) impossibilidademade in USA, filmes como Once a Thief,The Kil ler , Hard Boi led, mas também oamericaníssimo Face Of f . Os stunts emM:I-2, todos corajosamente assumidos pelopróprio Tom Cruise, são milimetricamentecoreografados, resistindo sempre à verosi-milhança ou à dimensão relativamente downto earth, por exemplo, muito vincada noprimeiro tomo da série, realizado por BrianDe Palma. Se De Palma é, por norma, al-guém que também faz gala em respondercom um "sorriso irónico nos lábios" aosclichés do cinema de Hollywood, a verdadeé que foi John Woo quem revelou tomates -e coração - para os dinamitar. Suspensão dadescrença? Não, pá, cada momento de action-ballet, de balas, de pontapés rotativos, emcima de uma moto, ao lado dela, ou no ar,em voos rasados por pombos vindos doscéus (vindos também da igreja de TheKil ler...); digo, cada cena de acção pretendeser a mais sonora e pirotécnica celebração daimpossibilidade dessa suspensão. Aliás,Woo dedica um festim de imagens kitsch eover the top a essa, lá está, impossibilidade.

M:I -2 é, por isso, um filme sobreilusões e enganos. E daí começar com a per-feita introdução ao nosso herói, ao seu rosto,pelo menos. É Hunt que começa por matar,friamente, um cientista russo que nosaparece "pintado" como o inocente. De re-pente, Hunt leva as mãos ao rosto e literal-mente arranca-o como se fosse uma máscara.Quem está por trás da cara de Hunt - não de-veria ser o próprio Cruise-actor? - não éHunt, é aquele que "pintamos" de imediatocomo "o vilão" da história: Sean Ambrose. A

partir deste momento, percebemos que emM:I -2 a noção de identidade é tão volátilquanto já o fora em Face Of f, filme quequer dizer literalmente "rosto para fora".Woo arranjou um artifício, o da máscara,para encenar a primeira de muitas ratoeirasque o filme nos irá reservar, sobretudo, parao fim...

Perto do ending oficial do filme, umending falso é orquestrado, coreografadopela câmara de Woo. Hunt é vilão nosprimeiros minutos e é morto por Sean nofim. Se nos fiarmos apenas nas aparências,podemos voltar a cair na ratoeira "(re)mon-tada" por Woo. Mas não: o vilão verdadeiro,que ganhava a vida a imitar o herói ver-dadeiro, foi ludibriado no fim. O feitiço vira--se contra o feiticeiro quando Ambrose seapercebe que não matou Hunt, mas o seu ca-panga número 1. Ethan Hunt pôs o seurosto nele (= face in), mascarou-o de EthanHunt e levou Sean Ambrose a eliminar o seu"braço direito". O dedo mindinho cortadodenuncia-o - uma clara referência a 39 De-graus de Hitchcock. Nesta altura, depois denovo bluff, à volta de tanta sofisticadametonímia do corpo (braço direito, dedo,rosto...), M:I -2 fecha o círculo e termina oseu jogo de ilusões com o espectador. Certo?Errado.

A perseguição final, com os taisnúmeros em cima e ao lado da mota, é a apo-teose de toda a impossibilidade de "MissãoImpossível". Muito concretamente, os nossosolhos - haverá um músculo ocular que se es-timule com tanta agitação cinética? - sãoatraídos pelo duelo derradeiro entre Am-brose e Hunt, que, de uma maneira peculiar,rimará visualmente com o "jogo de sedução"do início, desenrolado entre Hunt e Nyah,só que com a muito significativa diferençade aparecer carregado, sobrecarregado, desentimentalismo justiceiro. A justiça realiza--se, ritualisticamente, num motorizadofrente-a-frente que parece simular, não o tal

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bailado do começo, mas uma Justa Medieval- bem mais que um duelo de western. Não hálanças, mas há os corpos no seu lugar: Hunte Ambrose acabam por se tocar no arlançando-se, em pleno andamento, das suasmotos numa acrobacia verdadeiramente in-crível - e impossível. O corpo-a-corposeguinte é um despejar de ódio de parte aparte, mas sempre sem abdicar do seu poderornamental. Toda a luta neste filme de acçãoé luta performativa, os seus lutadores sãocoreografados como num bailado e, ao con-trário do que é habitual na maior parte dosfilmes americanos, as personagens compor-tam-se como performers, mesmo que o espec-táculo que protagonizam - excessivamenteadornado, acção sempre "com nota artística"- seja, no fim, destinado a uma audiência in-visível, de mortos - não são, por norma, osprimeiros espectadores destes espectáculosos vilões que levam a sova das suas vidasantes de cada um se despedir da sua? Nomundo do herói, não há nada para lá dessaaudiência invisível - bem, existimos nós... -,mas ele, mesmo sabendo disso, continua oseu show.

Luís Mendonça,CINEdrio

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de Brian de Palma (2000, 114’)

Não penso que Mission to Mars sepossa considerar um blockbuster, no entantotenho a certeza que foi feito de maneira acumprir esse alcance. Ou seja, sabendo quetinha o mundo como público. De Palmatomou como modelo 2001 de StanleyKubrick mas, no final, fica-lhe a dever muitopouco. E digo “fica-lhe a dever muito pouco”porque em todo o caso é um filme de Briande Palma e o ter sido feito para um “grandepúblico” ou parecer um remake (subversivo)de A Space Odissey , não apagam isso.

Os pr imeiros planos contêm já neles osassuntos e t emas de um f i lme.

Miss ion to Mars começa com olançamento de um foguete de brincar parao céu. A câmara desce e assistimos a umafesta que parece ser de despedida (há um car-taz, em segundo plano, que diz BON VOY-AGE MARS ONE!). Só nos são apresentadastodas as personagens no plano seguinte, maso primeiro já prenuncia o resto portantocentremo-nos nele: começa tudo na infância.Ser astronauta é sonho de criança, imaginarviagens pelos céus e pelo espaço, a aventurade tudo isso, porque só depois é que seprocura o dar significado às coisas; o amor.

Tema pilar de todo o filme que mais interes-sante é por não se limitar ao amor “matri-monial”, não, é também peloconhecimento, pelos amigos e pelo desco-nhecido.

É quando nos é apresentada a per-sonagem de Jim McConell que percebemosque Mission to Mars é também um filmesobre perda. Perda um bocado de tudo masde fé, principalmente. Fé essa que é restau-rada pelo cosmos. E quando assistimos aosalto temporal da caixa de areia onde brin-cam os miúdos para Marte, além de vermosque Mission to Mars é um filme sobre Jim,que este é o herói desta história, todas as ou-tras questões se conjugam. Ao pôr o pé naareia, Jim recorda que já sonhou ali, emmiúdo, com o espaço, que já teve uma mu-lher e que quer significado para as dúvidas.Que lhe falta qualquer coisa, que talvezMarte seja a resposta. É além disso a elipseque já 2001 tinha. Não tão longe no tempomas mais longe um bocado no espaço . Nofilme de Kubrick pode-se dizer tratar-se deuma questão histórica, no de De Palma umaquestão de estória. Quem quis (e quemainda quer) mal a este filme, disse que erauma versão light de 2001 e Solaris , eu digo

Mission to Mars

“What if that means something? The universe is not “chaos”, it's connection. Life reaches out for life.That's what we're born for, isn't it? To stand on a new world and look beyond it, to the next one. It'swho we are.”

Monólogo do Filme

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1 . De Palma fala também de Destinat ion Moon de Irving Pichel como inspiração para este filme.

2 . Se nos lembramos, em 2001 saltavam-se milhões de anos, de um osso no ar para uma estação espacial em

órbita do planeta Terra.

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que o filme dá forma ao que nos outros doisera envolto em enigmas. Fez-se o exercícionarrativo de forjar uma explicação para avida, mas se ela parece infantil ou ridículaisso só abona em favor do filme, além dodeslumbramento da descoberta estar lá e meparecer tão belo como o dos filmes deKubrick e Tarkovski.

Não é costume de quem estuda ecritica filmes querer aprofundar no queparece auto-explicar-se. Mas Mission toMars não se auto-explica. O final do filmeparece-me rodeado de mistérios. Porque Jimnão sabe para onde vai, é a fé que o move,foi o ter ouvido a mulher a dizer que tí-nhamos todos nascido para ir para ummundo novo e olhar além dele, para o pró-ximo. Ninguém sabe para onde foi ele e oderradeiro segredo foi-lhe reservado. Ououtra coisa. Ter Mission to Mars sidomuito enxovalhado por altura da estreia dizmais sobre nós do que sobre o filme, propri-amente. “Acreditar” não é muito coisa dostempos que correm, que ser deslumbradocom uma pepsi numa mão e pipocas naoutra não cai lá muito bem. Talvez. Masquem viu a alegria nas caras de Jim (GarySinise), Luke (Don Cheadle) e Terri (ConnieNielsen) no momento daquela revelação nãopode deixar de o fazer.

Have a great ride, Jim!

Miguel CunhaNo Princípio era o Verbo

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O CinemaPortuguêsEscondido

O Suspenso, Sabrina MarquesFilmar o quê e como?, Manuela Penafria

O Fauno das Montanhas (1926) de Manuel Luís Vieira, Edmundo CadilhaSobre a Dança dos Paroxismos, José Bértolo

O Pintor e a Cidade (1956) de Manoel de Oliveira, Ricardo MadeiraA Caça (1954) de Manoel de Oliveira, Ricardo MadeiraMudar de Vida (1966) de Paulo Rocha, Miguel Cunha

Jaime e a lucidez silenciosa, Carlos NatálioTrás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, Álvaro MartinsO Movimento das Coisas (1979-85) de Manuela Serra, João Bénard da Costa

À Flor do Mar (1986) de João César Monteiro, João LameiraXavier (1992) de Manuel Mozos, João Palhares

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IntroduçãoO que é o cinema português escon-

dido? Responde-se sem tentar responder,pelo menos para já, ao que é isso do cinemaportuguês, porque há muitas noções, ima-gens e ideias sobre a coisa. O cinema por-tuguês escondido é o cinema português quenão tem voz, ou tem muito pouca, os filmesque são silenciados por editoras e/ou políti-cas de distribuição e financiamento ou quese dizem deslocados no trajecto de um rea-lizador. Filmes que se perdem no tempo poruma razão ou outra, mas que ao contráriodo que se possa pensar, não são menos mar-cantes, nem se pode dizer que se o tempo ossilenciou é porque não valem a pena. Háfilmes que têm a teimosia de resistir aotempo e são re-descobertos, anos - mesmodécadas - depois de serem feitos. Há rea-lizadores que resistem à indiferença genera-lizada e continuam movidos pela paixão queos consome: a pulsão de fazer filmes.

O Cinema Português Escondido

Cinema português escondido será,então, como um baú num qualquer sótão,como a arca do Pessoa, como relíquias a quese tem de tirar o pó para se lhes ver o brilho.Há pouco interesse nisto da parte de quemmostra cinema em Portugal e há obras i-nacessíveis a assombrar a consciência de pro-dutores, exibidores, distribuidores eespectadores, obras que só vêm a luz do diaem situações muito especiais, às vezes emcópias danificadas pelos anos que têm emcima, talvez uma vez em cada cinco anos, emFestivais ou na Cinemateca. Quando acon-tece. Sem edições em DVD, sem exibiçõesna TV e sem excertos ou trailers noYouTube. Assim anda a memória colectivado espólio dos mais variados cineastas por-tugueses.

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O Cinema Português tem uma identidade?Porventura não será importante (e

há exercícios muito mais proveitosos, comover - se as há - as ligações entre Oliveira eBresson ou Pedro Costa e Matt Johnson, ovocalista dos The The), mas há traços co-muns e pontes entre os primeiros trabalhosde Manoel de Oliveira, os “documentários”de António Reis e Margarida Cordeiro, oúnico filme de Manuela Serra, O Movi -mento das Coisas, e a obra de Pedro Costa,por exemplo, que não se esgotam nas fili-ações, inspirações e homenagens, é coisa detentar ir ao coração de um país e da sua iden-tidade. Que se há filmes portugueses que são

populares são estes, por se obcecarem com anoção e por deixarem documentadas aldeiase subúrbios, as comunidades, os seus ritos erituais. Mas se as semelhanças são só o pontode partida, as formas distanciam-se e as in-tenções tornam-se outras.

Se não basta a curiosidade de ver umPortugal totalmente diferente do actual (paraperceber a sua evolução, que foi rapidíssimae ainda não foi digerida por inteiro, demo-cracia incluída), e porque é de cinema queestamos a falar, não há só documentação(embora seja justo dizer que todo o grande

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temente no que se quer ver feito ou nosmodelos que se querem importar. O cinemanão se torna comercial por se fazer de deter-minada maneira (tem de ser, de facto, co-mercial; ou seja, tem que fazer dinheiro, nãodevia haver grandes dúvidas nisto) e o ci-nema de autor como se discute e pensa hojeem dia, não é de autor coisa nenhuma (temde haver uma procura, devia ser epíteto cus-toso de alcançar e não estar lá de partidacomo se fosse um género). Nestas teimas enestas batalhas, o destino de filmes como OMovimento das Coisas, de Manuela Serrae Xavier , de Manuel Mozos parecem reve-ladores do desinteresse do cinema em proldas “questões do cinema”. Um, o primeiro,não estreou, fez o circuito de festivais nosanos 80 com muita discrição, tendo aindaassim ganho alguns prémios (daqueles a quenão se dão grande importância porque nãosão numa estância balnear ou num teatro re-luzido a ouro), o outro, o segundo, primeirofilme de Manuel Mozos, estreou dez anos de-pois de ter sido rodado e três anos depois deQuando Troveja , segundo filme do rea-lizador, estrear.

Estreias pendentes por puro desin-teresse e preconceito de distribuidoras e go-vernos e não só estreias mas produçõesinteiras também. “Os pobres dos subsidia-dos”, dirá o povo jocosamente, “que chupamos dinheiros públicos até à medula”. A visãopanorâmica de tudo isto, será muito maiscomplicada, mas não é assunto para palcosdestes nem há conhecimento e sabedoriapara os tratar com a justeza que merecem.Resta ficar contente por ser às vezes possívelver filmes que apesar dos acidentes de pro-dução, foram acabados. No caso de ManuelaSerra e de O Movimento da s Coi sas , agrande custo. Depois de uma tentativafrustrada de fazer um segundo filme, aban-dona o cinema, pelo menos até agora.

cinema documenta, como nos salientouPedro Costa no número anterior), há ficção,também. Pelos dispositivos do cinema, os detentar encontrar uma linha narrativa nãonecessariamente lógica, mas emocional.Como é do campo do emocional ver o Ven-tura em contra-picado pelo Bairro dasFontainhas ou o Porto sobre constantes enovas perspectivas em O Pinto r e aCidade (dar-nos o visto por nunca visto,porque há sempre algo que nos escapa: notempo, numa viela, numa expressão) ou asacções, gestos e tempos dos aldeães, das pes-soas n' O Movimento das Coisa s (nessefilme - nesse documentário, ensaio - atroz-mente silenciado). Ou a absurdamente inad-jectivável sequência final deTrás -os -Montes...

E enquanto se discute o “cinemaportuguês” (já desde há 34 anos exactamenteda mesma maneira, desde o rescaldo deAmor de Perdição), a ponto da própria ex-pressão enojar um bocado toda a gente,deixa-se passar ao lado o que de bom se fazpor cá. É um acontecimento semestral, o da“discussão do cinema português”, deve terque ver com as estações, e como o calor ouo frio são demais para uma pessoa fazeroutra coisa, em jeito de ultimato e com todasas certezas do mundo, temos que escolherentre ser o país do Paulo Branco ou doAlexandre Valente. E enquanto se implora,porque sim, por que o cinema português sejacomercial ou se pede, às vezes também sóporque sim, mais subsídios (embora agoraseja da mais absoluta necessidade), fazem-sefilmes. Fosse isto motivo de regozijo na-cional, mas não é e nestes impasses entre abaixa-cultura e a alta-cultura, o que não tempretensão de se chamar cultura de espécie al-guma, passa despercebido.

E não é dizer que o único cinemafeito em Portugal que interessa, é o escon-dido, que não é, mas é esperar que se fale doque há, do que se faz, sem martelar incessan-

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As palavras são de João Mário Grilona Número Magazine (nº18). E lembra-nosque apesar de tudo, da vontade de determi-nadas esferas sociais em olhar para o lado eignorar (porque a televisão é que é o palcodas realidades), o cinema fixa certos tempos,movimentos e transições. Documenta. E nãohá como fugir a essa realização. Numa ten-tativa de fazer o sumário de um espírito eprocura comuns dos cineastas portugueses,cunhou-se o termo étnico, que é muitíssimoredutor. Diz-se que há uma “escola por-tuguesa”, que tem como precursores Douro,Faina Fluvial , de Manoel de Oliveira eMaria do Mar, de Jorge Leitão de Barros.Já antes tinha também havido Os Lobos, deRino Lupo, que caiu na invisibilidade abso-luta, mas que ia ao encontro dessa “escola”.O Cinema Novo abraçou esteticamente essesdois filmes e partiu para os seus própriosprojectos. E viu-se o cinema a sair para a fil-magem dos ritos e das tradições, a procurar

as ficções escondidas no litoral e no interior.António Campos, António Reis, MargaridaCardoso, Paulo Rocha, etc. Inserir Camposna “trupe” é irónico, porque talvez nãotenha havido cineasta mais independente eavesso a grupos que ele em Portugal... Talvezsó Pedro Costa.

O que possivelmente não encaixenestas designações (embora façam algumsentido) é que não há buscas que sejamiguais. Não é o mesmo quando Paulo Rochavai para o Furadouro ou o casal Reis-Cordeiro para o interior, para Trás-os-Montes. Até porque os fins não são osmesmos, há o lirismo quase romanesco dume a abstracção quase rudimentar dos outrosdois. É “este” e “oeste”, em mais do que umsó sentido. Uma coisa é uma coisa, outracoisa é outra coisa.

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“Nós saímos de um país sem imagem. A imagem do país que temos é muito const ruídapelo c inema. Há a consciência, em qualquer c ineasta português , que o c inema foi umaescola para muita gente e foi também uma maneira de f ixar um país que estava a des lo -car- se a uma velocidade inacreditável . Eu acho que i sso está f i lmado, acho que o cinemapor tuguês f ixou esse des locamento . E fo i capaz de f i lmar muita coisa ao mesmo tempo:um país muito longínquo no tempo, na História , etc . . Era tudo i sto e, s imultaneamente ,um país muito contemporâneo.”

Da DeslocaçãoDiz-se, para tentar simplificar as

coisas, que há objectos estranhos e desloca-dos na obra de vários realizadores. Diz-sequando não se gosta tanto desses filmescomo dos outros (a que parece sempre a jus-tificação mais saudável), quando não se querentrar a fundo nos porquês das coisas, ouquando simplesmente não se quer ver assemelhanças. Associa-se sempre Ford aoswesterns, quando a verdade é que só pertode um terço dos filmes que fez o são (e amaior parte foi feita de 1917 a 1919!). À Flôrdo Mar, como Veredas, são vistos como

deslocados na obra de João César Monteiro,por serem “bonitos”. Ver a coisa assim éachar que há só fealdade e indelicadezas natrilogia de Deus e nos alter-egos de Mon-teiro. Recordações da Casa Amarela é umcompêndio exemplar da herança artísticados últimos dois séculos, de Wagner a Mur-nau, passando por Dostoievski, o que não oimpede nem de ter beleza a entrar e a saircom tanta frequência como o mais sórdidonem de ser abertamente português. Da di-vertidíssima cena à noite nas varandasdaquele bairro lisboeta, talvez a mais “por-

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"política" - política pura e dura - para de-volver os filmes às pessoas, para tornar ahistória numa coisa viva.

Um dos grandes mistérios da obrade Manoel de Oliveira é a transição docu-mentário-ficção e a aparente disparidadeentre esses dois períodos. Há dois grandesintervalos na sua carreira, um de 14 anos (osque separam Aniki Bobó e O Pintor e aCidade) e outro de sete (os que vão de AsPinturas do meu irmão Júl io a O Passadoe o Presente, o filme que à superfície parecemarcar o início da forma e do pensamentoda sua obra) e uma espécie de revelação quemuda a sua concepção do cinema em OActo da Primavera, onde se diz já ecoaremas obsessões e temas de trabalhos futuros. Asreveses de tudo isto são a separação dos doisperíodos e os rótulos de “menores” ou “atípi-cas” a obras que se calhar até podem dialogarcom o resto. Deixo a palavra a José Bénardda Costa, que por sua vez as deixava a JoséManuel Costa: “(...) a aparente clareza doActo ocultava a sua máxima perturbação,demasiado inovadora para ser compreen-dida. Sucedia o inverso no críptico A Caçaem que a perturbação se sobrepunha àclareza, mas o processo era o mesmo e amesma a modernidade. Oliveira, como oDreyer de Ger trud, não estava “para trás”,estava demasiado à frente. Só a obra futurado cineasta permitiu descobrir esta evidência(...)”

Mas mesmo assim, talvez não se váainda suficientemente a fundo. Há um fossoentre o pré e o pós Amor de Perdição? Maisdo que político, estético? Como se filma umlivro? Como se povoa o décor, como se diz otexto? Oliveira disse que “a História mostraa evolução dos povos, das civilizações, dossentimentos, do gosto. A arte exibe a subs-tância dessas evoluções.” Ora, ele vai procu-rar essa substância a Camilo, a Bessa Luís, aRégio, a Pessoa, a Flaubert e propõe-nos umadocumentação dessa evolução, em filme.

tuguesa” da obra de Monteiro, à ressusci-tação imagética do hospício de Jaime , deAntónio Reis. A persona monteiriana ofuscaestes pormenores, o facto de Monteiro ser jáum Tarantino antes do tempo, só que umTarantino mais renascentista. Mas como épossível duvidar que quem realizou Um Pas-se i o com Johnny Guitar e orquestrou afinal e milagrosa sequência de Vai e Vempossa ter feito coisas belas?

A Manoel de Oliveira torce-se o nariza muitíssima coisa. Ser o cineasta mais dis-cutido em Portugal não o torna, de todo, nomais visto. Não há grande difusão nem se fazmuito por que haja, e era aqui que as tele-visões podiam ter algum papel. Sintoma daideia generalizada portuguesa em relação aocineasta (embora esteja a melhorar, a admi-ração e dedicação além-fronteiras ao estudoe compreensão da obra do cineasta forçaramisso) é a Grande Entrevista horrorosa con-duzida por Fátima Campos Correia, porocasião do 103º aniversário de Oliveira. Oque quer dizer, no fundo: nada sobre osfilmes, tudo sobre as ideias que rondam osfilmes e o homem como abutres (“porque éque os seus filmes são longos?”; “Foi auto-mobilista de competição, os seus filmes têmvelocidade?”, etc, tudo uma questão de ve-locidades, de lentidão, de choque, de pare-des, de muros e de incompreensão, deausteridade, quando a obra e a pessoa nãomerecem palavrões ferozes e violentosdesses). Mas como já se disse, estas coisasestão a melhorar e a RTP, para todos osefeitos, defende e representa uma estruturade programação completamente alienada darealidade (embora houvesse um tempo emque não era assim). “Cá fora”, mesmo quecom muita resistência, as paredes dissipam--se e escrevem-se livros, organizam-se catálo-gos. Faz-se um esforço por compreender.Claro que a compreensão não será muita senão se virem os filmes e talvez seja lamen-tável que se produzam calhamaços sobre ahistória do cinema português, sem fazer

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La ResistanceHá poucas dúvidas de que o cinema

português é mais discutido que visto e que édifícil distinguir o que é mais escondido doque não é. Prova disso é haver todos os anosum filme candidato a “salvador do cinemanacional”, que o mito do desejado (o putoSebastião) aplica-se a tudo e tem vontadeprópria. A variante social é o “melhores tem-pos virão”. Houve quem não quisesse salvarnada nem achasse que fosse preciso e mesmoassim deixasse obra feita. Os cineastas paraquem poucos quiseram olhar (com a cons-ciência de que é possível haver mais):

Rino Lupo : (1888-1934) Italiano nascidoem Roma e realizador de Os Lobos, filmeonde, segundo o já citado Bénard da Costa,“vivem os primeiros fantasmas do cinemaportuguês e afirma-se pela primeira vez, umimaginário específico dele”. Rino Lupo é umdos grandes vultos dos primórdios do ci-nema lusitano, mas só chega a Portugal em1921, depois de ter feito os primeiros filmesem Itália, na Rússia, de ter fundado uma a-cademia de cinema na Polónia (na altura aSegunda República Polaca), dirigido a revistaKinema e ter trabalhado na companhia Gau-mont, em França. No nosso país, realiza oitofilmes, entre os quais o já referido Os Lobose também Mulheres da Beira, que são vis-tos como os seus melhores filmes.

Manuel Luí s Viei ra : (1885-1952) Estecineasta e director de fotografia madeirensenascido a 21 de Junho de 1885 no Funchal,fundou a Empresa Cinegráfica Atlântida,que serviu como produtora de inúmeros dos

seus pequenos documentários sobre a ilhabem como produtora e distribuidora dassuas três ficções, A Calúnia , O Fauno dasMontanhas e Indige stão. Como directorde fotografia, trabalhou com Jorge Brum doCanto (n'A Dança dos Paroxismos), Leitãode Barros (Maria do Mar, Maria Papoi lae Camões) e António Lopes Ribeiro (Re-volução de Maio e Feitiço do Império).

Jo rg e Brum do Canto: (1910-1994) JorgeBrum do Canto nasce em Lisboa a 10 deFevereiro de 1910. Depois de um curso deDireiro inacabado, várias colaborações emrevistas de cinema (Kino, Cinéfilo e I-magem), um jornal (O Século) e um papelcomo actor em O Desconhecido, de RinoLupo, chega-lhe a oportunidade de realizarA Dança dos Paroxismos aos 19 anos,filme dedicado e inspirado no vanguardismofrancês. Seguem -se um projecto inacabado(Paisagem), alguns documentários e traba-lhos como assistente de realização. Em 1938filma A Canção da Terra, que lhe dá visi-bilidade e o permite realizar mais seis longas--metragens. Em 1953, abandona Lisboa efixa residência na ilha de Porto Santo, apare-cendo como actor em várias peças teatrais enuma série da RTP e realizando os seus qua-tro últimos filmes, de Retalhos da Vida deum Médico (1962) a O Crime de SimãoBolandas (1984).

António Campos : (1922-1999) “Não tenhonenhum filme nem nenhum cineasta queme sirva de referência. Fiz sempre aquilo queme apeteceu, que me pareceu melhor. Talvez

Que dá em contrastes, mas só aparentes, emfilmes como Franci sca (Camilo encontraBessa Luís) e Vale Abrãao (Madame Bovaryno Douro). É trabalho que precisa de serfeito? Que relação tem o cinema portuguêscom os seus escritores, com o que documen-

tou épocas e hábitos? É trabalho que mais al-guém faz com a preserverança e consistênciado nosso decano realizador? O que é que si-gnifica estrear em 2005 um filme chamadoO Quinto Império – Ontem como Hoje?

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nosso cinema e cuja presença se sente maispelos cineastas que os viram e as usaramcomo inspiração para os seus própriosfilmes, do que propriamente pela sua e-xistência, que é discreta em demasia e pormuitas razões. António Reis teve tambémpapéis em vários filmes, como Um AdeusPortuguês (João Botelho), O Barão de Al -tamira (Artur Semedo), Matar Saudades(Fernando Lopes) e Ter ra Fr ia (AntónioCampos). Morreu em 1991, em Lisboa.

António de Macedo : (1931), Alvo de umaretrospectiva este ano na Cinemateca, estecineasta lisboeta realizou um dos filmesberço do Cinema Novo, Domingo à Tarde.Por razões várias, sai das lides do cinema aospoucos. Chá For te com Limão foi a sua úl-tima longa-metragem (em 1993). A partir daítem escrito ensaios, romances e peças deteatro. Explicando o seu abandono do ci-nema, disse em entrevista que “houve umaespécie de conflito estético-cultural, o quelhe quiserem chamar, com os júris queatribuem os apoios financeiros para se fa-zerem filmes de fundo e que eram facilmentemanipuláveis. A verdade é que alguns mem-bros dos júris me disseram, mais tarde, queo meu tipo de cinema era “um cinema quenão interessava” — um cinema fantástico,um cinema “desligado das realidades”, umbocado fantasioso, e esse tipo de imaginárionão interessava para o cinema português. Epor isso comecei a ser censurado numregime onde, constitucionalmente, não hácensura”.

Ricardo Costa: (1940), Nascido emPeniche, a 25 de Janeiro de 1949, RicardoCosta estuda na Universidade de Lisboa (fa-culdade de letras), dando depois aulas no en-sino secundário, escrevendo também sobrecinema, literatura e teatro. Com o 25 deAbril, começa a fazer a cobertura dos acon-tecimentos políticos para a CBS e a ARD,cadeias televisivas norte-americana e alemã,respectivamente. Associa-se ao Grupo Zero,

porque trato de mim, da minha vida, até daminha educação, desde os cinco anos. Cons-truí a minha própria existência à minhacusta, não devo nada a ninguém.” Estas trêsfrases são do próprio António Campos,cineasta leiriense com um dos percursosmais singulares da história do nosso cinema,e deixam entrever o seu trabalho solitário,livre e contra a corrente. Nascido em 1922,António Campos realizou cinco longas-me-tragens e dezenas de curtas, trabalhando nosom, às vezes na montagem, escrevendo, pro-duzindo e financiando as suas obras. O seuúltimo filme, Terra Fria , é uma adaptaçãoda obra homónima de Ferreira de Castro. Oprimeiro, Vilarinho das Furnas, retrata aaldeia do mesmo nome antes de ser sub-mersa para sempre, por causa da construcçãode uma barragem. António Campos foi alvode uma retrospectiva em 2009, na terceiramostra Panorama. Morreu em 1999, naFigueira da Foz e a obra permanece quase i-nacessível ao grande público.

António Rei s e Margar ida Cordeiro :(1927 – 1991 e 1938), Casal de cineastas comuma das mais ricas e interessantes obras dopaís (e que deixou linhagem, pelo menos noPedro Costa da Casa de Lava e em VítorGonçalves). António Reis nasceu em Va-ladares (concelho de Vila Nova de Gaia) em1927 e Margarida Cordeiro em Mogadouro(distrito de Bragança) em 1938. Reis, antesde realizar Ja ime - obra a solo em queCordeiro é assistente de realização além dedar uma mão na montagem e no som – tra-balha com Manoel de Oliveira no Acto dePrimavera e com Paulo Rocha em Mudarde Vida , no primeiro como assistente de re-alização e no segundo como dialoguista. Nosanos 5o, escreve Poemas do Quotidiano, NovosPoemas do Quotidiano e associa-se aoCineclube do Porto, onde começa a traba-lhar em cinema na secção de cinema experi-mental. Nos anos 70 e 80, o casal realiza otríptico Trás -o s -Monte s, Ana e Rosa daAreia, obras essenciais para compreender o

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do qual fazem também parte, entre outros,João César Monteiro e Jorge Silva Melo.Entre os filmes que realizou, contam-se MauTempo , Marés e Mudança (1976) e Bru-mas (2003).

Manuela Ser ra : (1948) Manuela Serranasceu em Lisboa, a 31 de Maio de 1948. De-pois de abandonar um curso de psicologia eoutro de cinema na IAD, em Bruxelas, paratrabalhar com Rui Simões em Deus, Pá -tr ia , Autoridade (1975), funda a Coopera-tiva de Cinema VIRVER. Associada àCooperativa, trabalha como assistente de re-alização, argumentista, produtora e editoraem diversos projectos, sendo um deles BomPovo Por tuguê s, também de Rui Simões.Em 1981, deixa a Cooperativa para sededicar ao seu único projecto como rea-lizadora, O Movimento das Coisa s, aca-bando por abandonar o cinemadefinitivamente em 1991, depois de umatentativa de fazer um segundo projecto, quecai por terra. O que um filme como OMovimento das Coisas acaba por fixar eensinar em tempos como os nossos, é quenão há formas nem ritos-padrão, que a mon-tagem é uma força que cimenta o diálogo(entre os planos, entre a natureza e os movi-mentos, o rio e as tradições - as rotinas ru-rais) e que não há coisa como assumir asincertezas em relação a tudo isso – que sóassim é que nasce algo diferente, algo que seexprima como pessoal, intrinsecamente pes-soal. Mas transmissível.

Jo rg e Si l va Melo : (1948) Como RicardoCosta, Jorge Silva Melo também frequentoua Faculdade de Letras da Universidade deLisboa, tendo depois estudado Realização naLondon Film School com bolsa da Fun-dação Calouste Gulbenkian. Fundou oTeatro da Cornucópia com Luís Miguel Cin-tra, em 1973 e é autor de várias peças etraduções literárias, além de ter participadona cooperativa Grupo Zero. Realizou Pas -sagem ou a Meio Caminho, Agosto e An-

tónio, um Rapaz de Lisboa (entre outrosfilmes), co-escreveu Xavi er com ManuelMozos e O Desejado com Paulo Rocha, en-trando também como actor em filmes deJoão César Monteiro (Si lvest re; Quem es -pera por sapa tos de de funto morredescalço), Paulo Rocha (A I lha dosAmores), Manoel de Oliveira (Le Soul ie rde Satin), Vítor Gonçalves (Uma raparigano Verão), José Nascimento (Repórter X)e José Álvaro Morais (O Bobo). Fundou aArtistas Unidos e dirige-a desde 1995, ondeencena várias das suas peças.

Vítor Gonçalves: (1951), Vítor Gonçalvesé actualmente professor e director do depar-tamento de realização na ESTC, escola ondefoi aluno de António Reis. Açoriano deorigem, veio para Lisboa. Fundou com JoséBogalheiro a Trópico Filmes, que servirácomo produtora do seu primeiro filme, de1986, Uma Rapariga no Verão e tambémde O Sangue, de Pedro Costa.

Manuel Mozos: (1959) Cineasta lisboeta.Estudou Montagem na Escola Superior deTeatro e Cinema, realizador de Xavier e 4Copas. (Entrevista e biografia alargada a par-tir da pág.84)

Sandro A gui lar : (1974) Licenciado emMontagem na ESTC e fundador da O Some a Fúria, Sandro Aguilar é talvez o rostomenos conhecido e discutido da produtora(por oposição a Miguel Gomes e João Nico-lau). Tem uma única longa-metragem até aomomento, A Zona de 2008, tendo feito al-gumas curtas, também. Foi produtor degrande parte dos projectos da O Som e aFúria, trabalhando como montador (ACara que Mereces, de Miguel Gomes) e câ-mara (Ruínas, de Manuel Mozos) noutrosprojectos.

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BIBLIOGRAFIA:

- COSTA, João Bénard da, HISTÓRIASDO CINEMA, Imprensa Nacional – Casada Moeda, 1991, Lisboa- FIGUEIREDO, Nuno Aníbal, Em defesade uma “ecologia” para o cinema português(ou questões levantadas pelo desapareci-mento de um ecossistema)- PENAFRIA, Manuela, O Paradigma doDocumentário: António Campos, Cineasta,Livros LabCom, 2009

BLOGS:

ANTÓNIO REIS(http://antonioreis.blogspot.pt/)

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Textos

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ou A involução do Cinema Português de 2012

A passada terça-feira marcou-se pelaida do realizador Fernando Lopes para umoutro lugar. Permanentemente confundindoa arte e a vida, um dos nomes centrais doNovo Cinema Português deixou alguns dostítulos mais importantes no percurso donosso cinema e as lembranças de um espíritosábio, que nunca escasseou em pontuar odiscurso com elogios aos nomes maiores queadmirou. Em Fernando Lopes, Provavel -mente - a conversa com João Lopes (2008)que a RTP2 exibiu - o realizador relembra outopismo da geração de sessenta (o necessáriofôlego que agrupou Fernando Lopes a PauloRocha, António de Macedo, Silva Melo,Seixas Santos, Campos ...) que dizia nãorever na relação da geração actual com ofazer cinema; No entanto, parece não havercá hoje outro horizonte do que a utopia. Ascertezas são nenhumas, e nunca como agorafoi tão necessário pensar o lugar do cinemaneste país cosido sobre si, que à época lavou

O Suspenso

os olhos com o estilo jovem, e que hojeparece esforçar-se por enterrar as artes de vez.

Não há como deixar de evocar ocompromisso de Fernando Lopes para coma RTP, que deve actualmente, por conse-quência, servir para reflectir a crise nacionalna concepção de serviço público de tele-visão. A noite de ontem, marcou-se na Ci-nemateca Portuguesa pela exibição deBelarmino (Fernando Lopes, 1964), por ex-celência o filme da memória colectiva. Desdeesse ano, relembrou José Manuel Costa,“passaram-se 48 anos, tantos os do regimeem que nasceu e em que foi um dos grandessinais de resistência. E a sessão de hoje, 5 deMaio de 2012, ocorre num contexto di-ficílimo, em que o léxico das conversas éoutra vez defesa, combate, união, em tornodeste cinema que aqui nos junta.”

“A primeira condição para se ser secretário de Estado da Cultura, neste país, é distinguir uma vaca deum boi. A seguir pode, às vezes, vir o resto: distinguir um livro de um livro, um quadro de um quadro,um filme de um filme. Quando, em suma, se começa a ter noção do peso intrínseco de cada coisa e acapacidade de estabelecer a reacção desse peso com o lugar que o produz, está-se apto a conceber astraves mestras de uma política cultural que não nos defraude tece à história da comunidade a que jul-gamos pertencer nem fraudulentamente nos situe face a ela.”

início da Carta Aberta contra o Secretário de Estado,de João César Monteiro, publicada no jornal Diário de Lisboa, a 22 de Julho de 1978

"Foi aquela coisa horrível chamada Cahiers du Cinéma, a desgraça do cinema europeu, que criou essafigura do cinema de autor”.

NICOLAU BREYNER, in Jornal Sol, 8 de Maio de 2012

E um Novo Cinema Novo?

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Filmes-Fantasma

Às cinco da tarde da passada quinta-feira, de novo se reuniu no S. Jorge para sediscutir a petição que por aí circula, assinadapor realizadores, produtores, actores, progra-madores, distribuidores, que evoca um “Ul-timato ao Governo”, assinalando o final doperíodo de cerca de três meses de discussãopública da nova Lei do Cinema - uma pro-posta pendente, bem acolhida pelos profis-sionais do Cinema - decidindo-se então umpedido de audiência ao primeiro-ministropara a semana. No texto, lêem-se factos. Dorelato - parti pris que submete o meu tom decomentário às miudezas do dissecar jornalís-tico, somente por parecer essencial a es-quematização numérica e factual destasituação sem precedentes! - cita-se uma “situ-ação dramática, com um corte de 100%, quenão tem paralelo em mais nenhum sector deactividade". A paralisação do sector, com afalta aos compromissos do ICA nas pro-duções financiadas para 2010 e 2011 e a faltade concurso em 2012 : “A produção denovos filmes está paralisada – e uma boaparte das empresas produtoras na iminênciade encerrar, atirando para o desemprego mi-lhares de pessoas – e a distribuição, os festi-vais, os cineclubes, a promoçãointernacional, sem quaisquer apoios”.

As exigências dos signatários são que“o Governo encontre uma solução deemergência para a situação de ruptura edescalabro financeiro do Instituto de Ci-

nema e que permita dotá-lo dos meios finan-ceiros necessários aos compromissos assu-midos com os produtores e aprovados entre2010 e 2011”; A homologação dos concursosde 2011 pelo secretário de Estado da Culturae a sua contratualização pelo Instituto; Quea “versão definitiva da nova Lei do Cinemaseja tornada pública de imediato e que o go-verno assuma um prazo para a sua aprovaçãoem Conselho de Ministros e posterior apre-sentação à Assembleia da República”; Quea nova lei consagre “as contribuições e inves-timentos de todas as empresas que operamno mercado do cinema e do audiovisual”; O“reforço do princípio da atribuição dos di-nheiros públicos de fomento do Cinema porconcursos públicos”.

É francamente irónica esta eminên-cia de que se afunde o cinema quando,como nunca, se parece erguer qualitativa-mente a olhos vistos (de tal modo, que aosolhos da crítica estrangeira pareça estar desaúde). Depois de décadas de não-reconcili-ação, o público português parece procuraros filmes que exteriormente se premeiam.Em conversa no Indie Lisboa, após a recenteexibição de Rafa (2012) de João Salaviza emsala esgotada, a curta que trouxe de Berlimo Urso de Ouro e que todos queriam ver,Salaviza encolhia os mesmos ombros dadúvida geral - sem Lei do Cinema, que con-tinuidade?

Este é o governo de todas as con-tradições, mas são várias as portas da respon-sabilidade. Lembre-se a aquisição, em 2010pela Zon-Lusomundo (ou pelo abafador,como assim a nomeava Manoel de Oliveira)de 90 filmes produzidos e comercializadospor Paulo Branco e 27 filmes do patrimónioda Tóbis, também comercializados pelo pro-dutor. Somando aos 45 filmes previamente

adquiridos (pelo Coronel Luis Silva, anteriordono da Lusomundo), tornou-se a principaldona do património do cinema português,antigo e contemporâneo (com obras de Ma-noel de Oliveira, João Botelho, Pedro Costa,João César Monteiro, Teresa Villaverde,Margarida Gil, João Mário Grilo, AntónioFerreira, Catarina Ruivo, Claúdia Tomaz,Edgar Pêra, Eduardo Guedes, Fernando

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Lopes, Ivo Ferreira, João Canijo, JoãoGuerra, Joaquim Pinto, Jorge Silva Melo,José Álvaro Morais, José Fonseca e Costa,José Nascimento, Luís Filipe Rocha, MarcoMartins, Mário Barroso, Raquel Freire, RitaAzevedo Gomes, Rosa Coutinho Cabral, Vi-cente Jorge Silva...). Filmes que, desde então,nunca mais se viram : “Quando se pede umfilme para um festival pedem fortunas, queé para não mexerem neles, e estão a esconderuma das coisas mais valiosas na arte por-tuguesa que é o cinema português, porquesão agentes comerciais do cinema ameri-cano". Lembra João Botelho, e para lhe darrazão basta consultar a agenda de uma das217 salas do monopólio ZON-Lusomundo,ou a programação dos canais da TVCabo,ou os filmes disponíveis para aluguer naZon-box. (Não há lugar nestas contas para osprodígios pimba Navarro-Vasconcelos-Breyner-Vieira, esse logro cujo financia-mento, vá se lá perceber como, ainda vaisendo comparticipado por este grupoeconómico, como se de cinema se tratasse...)

Num momento em que o tema daprivatização da RTP anda aos solavancos naagenda (exemplificando como as vistas cur-tas de Passos Coelho inevitavelmente tomamuma emissora televisiva por negócio, no qualo Estado se deve abster de intervir, elimi-nando a qualidade de serviço público da con-sideração...), se este grande agenteeconómico de vasta permeabilidade no mer-cado que é a Zon-Lusomundo, por uma vezse organizasse sob uma perspectiva artísticae não em busca de um suposto retorno fi-nanceiro imediato - por exemplo, num pro-jecto vagamente inspirado pela magníficacadeia televisiva ARTE? E se assim, não sóproporcionando ao público uma alternativade visionamento, solidificasse um novopalco para a visibilidade das obras apoiadas,com uma identidade própria e uma progra-mação efectivamente cuidada, de exibiçãotelevisiva e virtual?

A viagem em busca do Cinema Por-tuguês não acaba - há vários baús onde é pre-ciso volver. Lembramos O Movimento dasCoi sas o filme abandonado da ManuelaSerra (1985), inesquecível sessão de Novem-bro de 2011, na mais recente edição dos En-contros Cinematográficos da Guarda. Umaimportante mostra que soube descentralizara qualidade da exibição do seu macrocefa-lismo lisboeta, trazendo consigo outra pre-ciosidade - o acidentado e magnífico Xavier,de Manuel Mozos (1992), que eu sonho umdia ver editado do melhor formato possívelem DVD.

A questão dos direitos (de exibição,de autor, de produtor, de edição, de sabe-selá...), é mesmo um dos mais embaraçadosnovelos em que se paralisa toda a históriadeste cinema, e que, à medida que as ge-rações progridem - ao complicar-se entreburocracias e leis desajustadas aos dias dehoje - lhes vai amputando o direito de vir aconhecer certas coisas. Outros títulos por-tugueses, tantos, tão importantes e tão in-visíveis, os que permanecem engavetados nahistória, lá no ANIM. À espera. Por sorte,para quem é de Lisboa, vão podendo aindaser vistos amiúde numa sessão na BarataSalgueiro, quando a Cinemateca abre oscofres. (Uma Cinemateca, note-se, de au-ditórios renovados, jovens e presentes, longeda negligência do público de outros dias.) Éo caso de António Campos, o independentedocumentarista que filmou sem subsídios, ede quem pouco se vê regularmente. Em2009, a propósito da sua retrospectiva na 3ªmostra “Panorama”, uma notícia de jornallembrava como a Midas Filmes anunciaradois anos antes a intenção de editar a obraintegral do cineasta em DVD, mas que “oprojecto continua alegadamente à espera deluz verde da entidade detentora dos direitosdos filmes”. Outro caso conhecido de quaseinvisibilidade é o do importante cineasta An-tónio Reis, cujos direitos se encontram emposse da mulher e co-realizadora Margarida

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Eppur si Muove!

Cordeiro.

Já se sabe acerca das fraquezas na di-versidade de oferta em sala ou na televisão(em canais generalistas ou por cabo), ondeas programações discriteriosas indistinta-mente se entopem de filmes de hollywood deconsiderável orçamento e fraca qualidade. Jáse sabe que estes, investindo em máquinaspublicitárias esmagadoras, aí garantem aadesão das massas e as consequentes receitas,à custa da desinformação do seu público, in-sistindo numa padronização do estilo, nive-lado por baixo à semelhança da globalidadedos conteúdos audiovisuais.

Mas num cenário mais ou menospintado nos tons catastrofistas, com a re-volução digital, a internet surgiu para equili-brar o barco. Nunca como hoje - nem nageração dos Cahiers amarelos! - a cinefiliateve assim espaço para florescer, possível deacompanhar as nuances de cada gosto, de seexpandir ao passo de uma descoberta inin-terrupta, de gerar comunidades virtuais es-pecíficas, de descentrar a discussão, de dar aconhecer o mais submerso e mais raro. FilmStudies For Free, o título é de um grupo vir-tual de discussão em torno do cinema, masquase podia ser um slogan pronto a con-sagrar a essência da relação entre a cinefiliae a internet. É claro que a internet é, emprimeiro lugar, um encontro sem paralelocom o extensíssimo mercado internacionalde livros e DVDs especializados, incompara-velmente mais vasto do que a mais focadadas livrarias ou bibliotecas em Portugal. E seé verdade que a experiência presencial se dis-solve, que a atenção se subtrai perante a mul-tiplitude da difusão de imagens, o novoespectador, alheio a condicionantes tempo-rais e geográficas, pode tornar-se simultane-amente programador e crítico. Ocompartilhar de filmes é o primeiro al-

truísmo desta nova forma de viver a cinefilia,que dá a ver uma cópia do Trás -os -Montes(sem legendas, “ripada” de um VHS granu-lado, gravado da RTP2 em mil novecentos enoventa e tal), ao ávido japonês que anda adescobrir o cinema português através doKaragarga. Como eu, porventura, usarei amesma plataforma para descarregar certos tí-tulos japoneses de difícil acesso. É claro quealgumas destas práticas passarão muitas vezesao lado da lei, mas isso não é tão condenávelcomo a deterioração das exigências com aqualidade técnica da exibição, que melhorsaiba valorizar a obra em questão. E é aquique entra o papel crucial do restauro, daedição, da distribuição, e da descentralizaçãoprogramática anteriormente mencionados:para que os filmes que imperativamente pre-cisam de ser conhecidos, cheguem aos queos querem conhecer - se não no seu formatooriginal, da forma mais próxima possíveldisso.

A libertação dos meios de produção,que deu os primeiros passos com o acesso aovídeo, tem hoje um tremendo protagonismoface às limitações crescentes das entidadessubsidiárias. Na era em que todos somosmassivos produtores, consumidores e edi-tores de imagens, em que até a autonomiados mais pequenos gadgets capta com umaqualidade extraordinária, dispensaram-se câ-maras e equipamentos pesados, grandesequipas hierarquizadas, produções dis-pendiosas. (E, provavelmente, dispensam-setambém as escolas de cinema...) Em relaçãoa este contexto, o que dizer? O que ninguémtem muito interesse em dizer - seja porquesão cineastas pessoalmente beneficiados, sejaporque são críticos de cinema que não sãocineastas (como todos os com um mínimode visibilidade em Portugal, de momento...).

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Interessa dizer, que se não há dinheiro nestepaís para filmar em película, então já não sedevia filmar em película. E que, se a Lei doCinema chegar, como esperamos, quechegue consciente da época digital em quese encontra - que distribua os seus subsídiosmais equitativamente, apoiando um maiornúmero de projectos. Efectivamente, per-mitindo que quem deseja iniciar um per-curso no cinema, possa fazê-lo.

Neste ponto de estagnação, espera-separa um veloz amanhã o cumprimento dessapromessa em suspenso, a Lei da Cinema quetarda. E ainda de outro projecto animadorde Francisco José Viegas, que prevê a imple-mentação de um Plano Nacional do Ci-nema, a partir do ano lectivo 2013-2014, acompreender cem títulos chave da históriado cinema nos programas de ensino.

Até ver, contam-se zero faces de res-peito da parte deles. Eles, os direitistas maistortos de âmago que por cá andaram. Sejapara que direcção se olhe, todos à mercê dosdias e a traçar as figas, à espera do mínimovislumbre do que só pode ser - que isto sigapara melhor.

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Sabrina Marques, CZARADOX Lisboa, 6 de Maio de 2012

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Sobre o cinema de António CamposÉ já consensual, assumido e veri-

ficável que a possibilidade de todos e cadaum de nós fazer um filme deixou de ser ex-clusivo de grupos restritos. Fundamental-mente, esta possibilidade assenta no maioracesso aos meios tecnológicos porque, muitoclaramente, captar imagens e sons implicanecessariamente equipamento. A questãopois que se coloca é: filmar o quê e como? Aeste respeito, várias poderão ser as respostas,uma delas é ir ao passado do cinema. Nocaso português, António Campos (Leiria,1922 – Figueira da Foz, 1999) servirá comoexemplo, essencialmente por duas razões: 1)os seus filmes foram feitos com poucos re-cursos e 2) a sua filmografia não se restringea um género, fez documentários e ficções.

Desconfortável com um cinemaonde predomine a figura do produtor efortemente avesso a uma organização quepudesse afetar a sua liberdade, AntónioCampos encontra na abordagem documen-

Filmar o quê e como?

tal a possibilidade de um outro cinema maisarrojado, um “anticinema”, para usarmosuma expressão sua. O que interessa ao rea-lizador é uma outra forma de produção,mais pessoal e mais íntima no contacto comos intervenientes do filme e, também, comos espectadores. No contacto com os inter-venientes a falta de orçamento para um for-mato profissional (35 mm) - praticamentetoda a filmografia de Campos foi realizadano formato amador (8 ou 16 mm), umequipamento mais manejável e mais facil-mente transportável – tornou-se uma van-tagem porque lhe permitiu deslocar-se quasesempre sozinho e estabelecer um contato di-reto com as pessoas que queria filmar. O for-mato amador também permitiu exibiçõesfora do circuito comercial, em especial emCine Clubes - onde maioritariamente osseus filmes foram exibidos e debatidos,muitas vezes na sua presença. Campos tinhaassim um contato mais direto com o espec-tador.

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O que é que António Campos filmou?Campos optou por selecionar

temáticas que lhe eram próximas. No seuprimeiro filme O Rio Lis (1957), filma o rioque passa em Leiria, sua terra natal. Essefilme foi uma experimentação da suaprimeira câmara de filmar, o seu primeirocontacto com a realização cinematográfica eonde ensaia aproximações ao real. Nocenário natural, Campos encontrou o seulaboratório para exercitar a agilidade técnica.De um tema que lhe era geográfica e senti-mentalmente próximo passou a integrartemas que são próximos, quer a si, quer a

todo o povo português, ou seja, ao presente,àquilo que está a acontecer “aqui e agora”.Aquele que passou a ser o seu lema: filmar opresente, passou, também, a ser uma missãoa cumprir pelo cinema. Definido o seupropósito, Campos realiza os seus documen-tários maiores: A Almadraba Atune ira(1961), Vilarinho das Furnas (1971) eFa lámos de Rio de Onor (1971) assimcomo a sua mais emblemática ficção: A In-venção do Amor (1965). A AlmadrabaAtuneira é sobre aquela que foi a última al-madraba ou “companha” de pescadores de

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atum na Ilha da Abóbora, Algarve. É umfilme que presta homenagem ao árduo tra-balho destes pescadores e pouco depois dofilme estar concluído, o mar destruiu este ar-raial algarvio. Vilarinho das Furnas eFalámos de Rio de Onor são sobre duascomunidades agro-pastoris, no primeiroCampos desloca-se à aldeia minhota pararegistar a vida comunitária quando todos jásabiam que Vilarinho iria ficar submersa poruma barragem. Em Rio de Onor, na zona defronteira entre Portugal e Espanha, Camposfilma a vida comunitária e a origem dodesmembramento dessa vida, a emigração.A invenção do Amor é um filme de pendormodernista a que o próprio Camposchamou de “realidade subentendida”. Ofilme tem lugar num tempo e num espaçosobre os quais não nos é fornecida qualquer

indicação precisa, mas que facilmentepodemos identificar como sendo o doregime salazarista. A invenção do Amor ,baseado no emblemático poema homó-nimo, de 1961, do poeta natural de CaboVerde, Daniel Filipe é tão contemporâneo,representativo e atual na sua temática - poistrata de uma vivência do povo português quehaveria de se prolongar até abril de 1974 –quanto, por exemplo, Vilarinho das Fur -nas.

Em suma, os temas que motivaramCampos primam pela sua atualidade (o que,em grande medida, é correlativo de umapreservação da memória coletiva). Assim, fil-mar o presente é a expressão que melhor de-fine a sua conceção de cinema e queatravessa toda a sua filmografia.

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Como é que António Campos filmou?A respeito do “como” destacamos os

principais aspetos que caracterizam a suaatividade enquanto realizador, que decorreme se adequam à sua conceção de cinema.Campos filma o presente, com dignidade ejusteza, sem lamentações, nem recorrendo aqualquer tipo de demagogia, nem estimu-lando qualquer tipo de exotismo. Por exem-plo, nunca os cantares típicos são usadospara embelezar genéricos iniciais ou finaisou qualquer outro momento do filme. A e-xistirem, apenas aparecem sincronizadoscom a imagem.

A vida do povo português preencheue encheu o ecrã dos seus filmes, mas Cam-pos nunca cai no mero “postal ilustrado”,nem no mero exercício formal, nem naquiloa que podemos chamar de um “assalto aoreal” (ou seja, Campos afasta-se de um re-gisto “nu e cru” do real). Por exemplo, emVilarinho das Furnas é o Sr. Aníbal, queaparece logo no início do filme, quem nosconduz pela comunidade. Este filme é um

ato de resistência, solidário com os habi-tantes de uma aldeia irremediavelmenteameaçada pela construção de uma barragem.E aqui, o olhar de Campos não é de resistên-cia ao progresso, mas de um alerta para a suaviolência.

Apesar de muitos dos seus filmesterem como ponto de partida contosliterários, por exemplo, de Miguel Torga,Loureiro Botas ou Ferreira de Castro ou es-tudos antropológicos, Campos não abdicados recursos próprios ao cinema. A sua câ-mara é sinónimo de “olho humano”, ouseja, o que se pretende é uma sobreposiçãoentre o ecrã e o objeto filmado e os limitesdo quadro fecham, guardam e preservam oobjeto filmado para o espectador, aquele quepoderá olhar para o passado através dos seusfilmes. É uma câmara atenta a tudo o que arodeia, movimentando-se para absorver epreservar no ecrã o mundo de “hoje”. Comoo próprio Campos disse, os seus filmes pre-tendiam “tornar sólido um presente onde o

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futuro se possa articular”, por isso, a sua mis-são de filmar o presente constitui-se comofundo moral do cinema. Assim, em Cam-pos, o espaço fílmico é um espaço de per-manência. No filme Um Teso iro (1958),aquele que o próprio Campos considera, defacto, o seu primeiro filme, a protagonistaentra em campo num primeiro plano e nosdois planos imediatamente a seguir é apre-sentada já dentro de campo. Este procedi-mento de deixar que elementos entrem emcampo e aí permaneçam, vai manifestar-seem toda a sua filmografia.

A permanência em campo irá cen-trar a atenção de Campos no enquadra-mento e composição dos planos. Dentro decampo, os elementos são apresentados demodo equilibrado numa composição consti-tuída por uma figura e o seu fundo (a pro-fundidade de campo é a de um primeiro esegundo planos). Quanto ao enquadra-mento, os elementos encontram-se, maiori-tariamente, centrados. São estes, noessencial, os aspetos que enformam o“como” que Campos colocou em prática.

António Campos é aqui apresentadocomo um exemplo de como o cinema se constitui em projeto ao mesmo tempo artís-tico e pessoal. É um exemplo a seguir? Não.Ao contrário do que se costuma dizer, os e-xemplos não são para ser seguidos. Peranteos exemplos deverá ser adotada uma atitudeadequada à contemporaneidade; lançarsobre eles gestos que caracterizam a atualprodução artística, tais como: combinar, re-combinar, conjugar, fragmentar, reformular,ajustar, confrontar, religar, reciclar; emsuma, ter os exemplos (que em sentidoalargado significa conhecer o passado do ci-nema) apenas como pontos de referência esobre eles construir o presente e o futuro.

Manuela PenafriaProfessora na UBI/Dept. de Comunicação e Artes

(texto sob o Novo Acordo Ortográfico)

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(1926), de Manuel Luís Vieira

Fosse apenas isso e não teríamosmais que os presentes banais que cada um,ao seu jeito, faz. Que o tempo, por sua vez,desfaz. Mas deu-nos este presente sem futuroque tanto tempo passado, nunca deixa de serpresente. Se o movimento é a vitória do es-paço sobre o tempo; Se a acção é a vitória davida sobre o movimento, o cinema é a vitóriada memória sobre a acção.

Quando a ideia de verdade sai domundo fático, quando da dedicação de umhomem resultam 45 minutos da vida deoutro, inserindo, à força, a memória de ou-tros tais, quando isto acontece, o que temosnão é obra de qualquer outra índole, é ciên-cia o que se faz.

O Cinema nunca deixou opropósito científico porque foi criado, aprova disso, uma daquelas algures perdida,é O Fauno das Montanhas . É umamáquina do tempo. Uma ilustração, um re-trato geográfico e psicológico. Uma expe-dição, não só a uma Madeira perdida eselvagem, mas a uma psique ainda mais im-penetrável. Uma descoberta, uma cura paraa memória.

Ainda assim, o mais interessante deO fauno das montanhas é a visão fratalque contém, tão relevante e desprezada: Seo filme se propõe a uma viagem de um pai euma filha ao interior recôndito de um paíse nele se encontraram, nós propômo-nos, en-quanto espectadores, a uma viagem para des-cobrir as personagens. E aquilo quedescobrimos é um país. E naquilo que

O Fauno das Montanhas

procuramos encontramo-nos, sempre naprocura, sempre nós próprios, mais pe-quenos a cada passo, descobrindo-nos tam-bém na paisagem que abarca oenquadramento, até ao universo negro forada luz que molda o filme, sempre mais pe-quenos, até nós próprios e aí recomeçamos.

É este colocar em perspectiva, filmar,que faz O Fauno das montanhas. Entra-senum túnel, como quem entra na mente Hu-mana. Entra-se na mente da personagemfeminina como quem entra num túnel, poretapas. Primeiro o sonho acordado, a expec-tativa. Depois o pesadelo, os desejos e osmedos inconscientes. Depois a realidade devolta, a consciência, a luz e a resolução.

Quando Jinny atravessa a gruta,atravessam-lhe os mais tenebrosos receios, éuma cultura passada, moral e religiosa o quelhe causa a aflição, não a natureza escondidano breu. É a sua sexualidade exposta, omedo do homem simples, de desejos sim-ples, a imaginação e a volúpia juntas em faus-tosas danças. O pesadelo de Jinny com ohomem simples que tomou por fauno numaagressão ao seu pai significa que o seu receionão a afectava a ela directamente, mas ao seupai: ele: a ciência, decência, a sociedademoderna, a família, a moral.

O mais importante no filme é o queele esconde, o que ele diz por outraspalavras... Diz-nos que é sempre, tudo, umaquestão de ângulos e escalas. Também aHistória se encontra, nos encontra e segue oseu caminho. O que há de mais remoto e

Tivesse o cinema apenas nos dado o sonho, mas deu-nos também a realidade...

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profundo está perdido algures em nós. Aforma e o conteúdo em harmonia, a matériae o espírito; pais de um filho pródigo,porque em devir constante: O Cinema.

Edmundo Cadilha

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O primeiro intertítulo não só mostrao título do filme como precisa a sua origem:«filme português», imprecisando, em simultâ-neo, a data: «1929-1930». Segue-se um planocom um travelling que passeia, nervoso, porcéu e árvores, seguindo-lhe sobreposiçõesdas mesmas em negativo (confluência deduas dimensões [no mínimo], como emNosferatu). Estas imagens serão repetidasno final do filme, e por isso sabemos tratar--se de imagens em câmara subjectiva quesimulam o olhar de um homem que morre,o que legitima a ideia de que todo o filmeque se segue será visto em diferido, porqueactivado por um dispositivo de memória(naturalmente, não fiável) de um homemmoribundo (o termo paroxismo no títuloparece corroborar esta leitura, se o lermoscomo «os últimos momentos da vida»). O su-ficiente para se dizer que este é um dosprimeiros filmes da história do cinema a terna sua base uma diegese totalmente em flash-back.

No entanto, apesar dos possíveisproblemas narratológicos, A Dança dosParoxismos não é um filme que confortavel-mente assente no paradigma do cinema nar-rativo, e para isto aponta a escolha daspalavras no intertítulo seguinte: «Ensaio vi-sual de Jorge Brum do Canto»: numa alturaem que o privilégio que o cinema mudohavia dado ao trabalho da imagem se viaameaçado pelo estabelecimento do somcomo processo essencial à prática do cinema,o filme de Brum do Canto assume-se comoensaio sobre as imagens (um ensaio que partedos interstícios das próprias imagens sobreas quais pretende reflectir), isto é, sobre apossibilidade de trabalhar o visual em ci-nema.

Sobre A Dança dos ParoxismosA fotografia, diz-nos o genérico, é

«cuidada por Manuel Luiz Vieira», comoquem diz que a imagem, aqui, não ilustra,antes produz. E, por fim, o gesto decisivo dese filiar a uma estética específica: «A MarcelL’Herbier, o creador de “Eldorado” e de “Odefunto Pascal”».

A Dança (das formas) desenrola-sede modo solto, rumo a um caminhoaparentemente incerto, e, embora o para-digma seja o da primeira vanguarda francesa,o filme de Brum do Canto talvez acabe porfalhar na articulação entre a espessura doreal e a irrealidade fantasmagórica da i-magem cinematográfica que os vanguardis-tas franceses tão bem faziam. A Dança dosParoxismos nunca consegue ser um poèmecinégraphique (como os de Dimitri Kirsanoff),embora tal dificilmente se possa apontarcomo defeito a um filme que se assume,desde o seu início, como um «ensaio».Dispondo, então, dos termos que elepróprio sugere, dir-se-ia que, como filme en-saístico (sobre o cinema de L’Herbier et al.),funciona nomeadamente na eficaz articu-lação de toda a gramática formal exploradapelos realizadores da 1ª vanguarda. No en-tanto, estes fantasmas nunca se insinuampara lá (/cá) da sua origem mecânica, que osinumaniza (L’Herbier) até ao ponto datransparência. No experimentalismo técnicode L’Herbier insinua-se a tessitura do real;no de Brum do Canto não há real, porqueo filme se esgota em exercício de autofagiacinematográfica. Para filme sobre os paroxis-mos de um condenado à morte, revela-se,porventura, demasiado indolor.

Apesar disto, nada justificaria o si-lenciamento (por invisibilidade) que foi im-

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posto a A Dança dos Paroxismos, um dosprimeiros exemplos de muito bom cinemaauto-reflexivo em Portugal.

José Bértolo,Nitrato lírico

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(1956), de Manoel de Oliveira

Muitas vezes é definido como umfilme documental; e sim, tem algo de simplese de verdadeiro que lhe pode conferir essaconotação, mas pelo contrário, O Pintor ea Cidade pode ser tudo, tudo menos umdocumentário sobre a cidade do Porto. Étalvez um devaneio, um percorrer da cidadepelos olhos dos próprios, Pintor e Rea-lizador.

Magotes, crianças, o vapor dasmáquinas, as pontes, a civilização e ele, oPintor. Quase um retornar refrescante aoCinema de Douro Faina Fluvial, às ideiasde Ruttmann, acompanhadas por essa sim-biose deliciosa, por esse paralelismo i-nevitável entre a pintura e o Cinema.

A exaltação da era moderna, bas-tante evidente nas imagens e esse saudo-sismo que irrompe das conexões entrefachadas de prédios novos, que rasgam comcor os céus da cidade, e as velhas paredesgraníticas de edifícios e monumentos quepontilham abundantemente a cinzentacidade do Porto. Metrópole que tinha nasveias essa sociedade fabril que em tempos lhedeu vida. Operários, centenas deles, entrame saem, numa azafama urbana por entre aqual o olho observador do Cineasta e doPintor, abraçados, se imiscuem de forma tãopura.

O que nos é pedido enquanto espec-tadores, é que nos deixemos levar pela mãoe nos deixemos arrastar por esse infindávelmundo de comparações entre formas e coresque muito ficam a dever à beleza nestasfeições. É o poder do tempo, da montagem,das imagens que respiram e descontextua-

O Pintor e a Cidade

lizam o objecto, atingindo o ponto em quenos fazem ver que o que é belo por vezes estácolado na nossa testa.

Peca, sim, talvez por não fazer trans-parecer a sua ideia Mãe de uma forma maissegura e transparente. Não obstante, ajustaposição das formas de arte e da óbvianecessidade da mesma por parte de ambosos artistas, as suas cores esbatidas (em ambosos casos) e os seus enquadramentos desafi-antes acompanhados por uma banda sonoraque não passa despercebida, tornam-nanuma obra de um invulgar interesse, con-ferindo-lhe assim um lugar cimeiro, tanto nacinematografia do autor como no que dizrespeito ao panorama do Cinema Portuguêsdentro destes moldes.

Ricardo Madeira

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(1964), de Manoel de Oliveira

Por um lado, A Caça é uma obraque vinga pela sua simplicidade narrativa,que não poderia ser mais simples e directa,tanto em termos cinematográficos como emtermos de exposição diegética no seu todo.No entanto, o reverso da medalha é o maisinteressante, sempre.

Feita durante o período da ditadurasalazarista, é um murro na mesa, pela calada.Não foram a falta de apoio e a censura àperna que fizeram Oliveira baixar os braços.Depois de uns longos três anos de espera,consegue finalmente rodar a tão desejadacurta metragem. Se tivesse de usar uma, e sóuma, palavra para definir "A Caça", talvezessa palavra fosse Parábola.

Acompanhamos a jornada de doisamigos, jovens, que decidem ir caçar, sem aespingarda que o Pai de um deles se recusa aemprestar a dois rapazolas daqueles. Cami-nham pelas ruas daquela localidade, e aísomos entregues ao génio de Oliveira quesalpica a tela com planos de génio, pequenasmetáforas surreais e subversivas que nos in-dicam qual a verdadeira direcção a seguir nomeio deste pequeno trilho de filme.

Creio que tudo começa a fazer maior

A Caça

sentido quando um dos rapazes olha fixa-mente uma estátua que está claramente pro-tegida por umas altas grades e por umagrande ave negra. O fruto proibido! O desejodo Zé Povinho, todo ele interdito pela mãonegra do regime Salazarista.

Assim, mesmo sem a espingarda, osdois jovens decidem deambular pelas zonasde caça, onde têm conversas, que têm im-pressas em si próprias essa indelével quanti-dade de deliciosa repugna ao regime. Nosentretantos, dá-se o momento alto da acção;um dos Jovens cai num poço de lama ecomeça a afundar-se, lentamente. O seuamigo, esse, enche o peito de ar e corre até àaldeia em busca de ajuda. Consegue reuniralguns transeuntes que se deslocam ao locale que tentam fazer uma espécie de correntehumana para que consigam tirar o jovem dopoço de lama.

Aqui, surge uma das mais caricatassituações que dizem respeito ao filme em si.Os homens, todos de mãos dadas, puxam egritam, esforçam-se para conseguirem ajudaro rapaz, mas, não se entendem. Uma mãoque escorrega, um braço que fraqueja, umque pragueja com este, outro com aquele, erapidamente se esquecem do pobre rapaz.

A mão! A mão! A mão !

Grita o maneta enquanto o mancebo se continua a afundar nas águas lutulentas.

Era assim, com esta espécie de aviso,que terminava a versão original da pequenaobra. Mas a censura, de forma infeliz, exigeque se crie um final alternativo que exalte aentreajuda e que culmine no salvamento

heróico do rapaz através da força da união edo entendimento entre os camaradas queformam a corrente humana.

Este não é um filme sobre dois ra-

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pazes que vão à caça, e dita o terrível ensejodeste nosso Portugal, que não há, certa-mente, melhor altura para se ver ou reverum filme destes. Um tesouro obrigatóriodesse Lusitano Cinema perdido.

Ricardo Madeira

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(1966), de Paulo Rocha

Mudar de Vida

Mudar de Vida é o segundo filmede Paulo Rocha. Podia ter sido o primeiro,porque era um projecto já antigo mas quenão aconteceu, na altura. Só uns anos maistarde, depois de estrear Verdes Anos, é quetomou forma. Portanto talvez não façagrande sentido falar na transição oriental nacarreira de Rocha em Mudar de Vida, nãosó por isso mas também porque a admiraçãopelo oriente era já antiga e em Verdes Anosse calhar até já se sente. Mas como é deMudar de Vida que aqui nos ocupamos,ocupemo-nos disso mesmo. Para acabar coma questão, a paisagem do filme é capaz denos remeter para o “oriente” e há uma cons-ciência disso por trás da câmara (ler “naforma de enquadrar”). Os barcos no rio, avegetação, a neblina. Enfim, pode-se tam-bém dizer que o próprio conflito remetepara, por exemplo, um Ugetsu Mono -gatari. Para Sunrise ou City Girl, também,que são “ocidente”. Mas como é injusto paraeste filme entrar em comparações destas (enem por serem dois dos maiores artistas doséc. XX, mais por Mizoguchi e Murnauterem na altura desses filmes as formas re-solvidas, era já um olhar sereno sobre ascoisas; Rocha começava, ainda, o olhar erajovem) escrevo sobre o que ele conta (e contatanta coisa).

Adelino regressa à terra natal depoisde anos sem dar ou ouvir notícias. O tempopermite que “os seus” façam as suas vidas,que a sua prometida, Júlia, se torne sua cu-

nhada, que o mar avance sobre a areia esobre as casas e que ele pouco reconheça doFuradouro. Depois de se habituar à mu-dança, transita, e a paisagem acompanha-o(repararão que a primeira metade do filme é“mar” e a segunda, “rio”, que Adelino per-corre muito discretamente essa transição,além de chegar a dizer “eu dantes gostava domar e agora gosto do rio”, a dada altura nofilme). Paulo Rocha disse que o mote dofilme foi registar esse mundo antes de desa-parecer e a transição está registada e coladaàs personagens como dispositivo cénico. Seo mar varreu as memórias, é preciso procu-rar outras – é preciso mudar de vida - e aí entraAlbertina, a aparição angelical do filme (anjoda guarda, salvação, fabulosa Isabel Ruth).Cruzam destinos numa capela, pormenorque não me parece inocente, ele lá para me-ditar e ela para pilhar as esmolas. Se é eleque começa a tentar corrigir a conduta dela,é ela que acaba por o salvar (ou é um salva-mento mútuo), e ao tentar compreendê-laenterra o resto, esquece Júlia, esquece o Fu-radouro. Ela, que não compreende juras deamor e, ele, escravo eterno da paixão, sen-tem-se seduzidos pela diferença, pela barreiradas ideologias e das vidas que levam. Ela, amodernidade, ele, o passado. Os lindíssimosencontros na cabana de palha, a teimosiados dois, as discussões, os desatinos e as más--línguas. O final que os encerra, com o alíviode poder sobreviver, apesar de tudo. Risosde resignação? Talvez... se calhar é precisoviver mais uns anos para perceber se sim ou

He said come wander with me, love. Come wander with me...Away from this sad world.. Come wander with me...

Bonnie Beecher, em Come Wander with me, canção e episódio da Twilight Zone

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se não.

Tentada foi a génese dos aconteci-mentos e das intenções do filme, pela minhaparte. Só que há mais coisas, porque nem sóde forças naturais se alimenta o filme. Quedizer dos rituais quase em cumprimentofúnebre? Das pescas, das cantigas e das mar-chas que parecem feitas com um grandepesar e uma grande saudade? E do interlúdiomusical que leva Júlia a perder os sentidos,quase arrebatamento de culpa e angústia.Pode ser que o filme não dê muitas respostasmas diz-nos, pelo menos, que os tempos jáforam assim, que já houve homens que lu-tavam contra a Natureza com os braços. Des-protegidos. Homens que ganhavam só parao pão e que continuavam. Que é agora o Fu-radouro? Mudar de Vida parece uma an-tologia de últimos momentos: para o amor,para a pesca, para as tradições e para a vida.Um monumento à sagacidade e agudeza detoda esta gente. Despeço-me, deixando doispoemas que me parecem fazer algum sen-tido, um do Man'yoshu e outro do Kokinshu(duas antologias poéticas japonesas):

Miguel Cunha,No Princípio era o verbo

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“If this were a worldin which there were no such thingas false promises,how great would be my delightas I listened to your words”

“I long for a wayto recapture bygone times,to see the palaceof which I but hear rumorsnoisy as a rushing stream”

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Jaime e a lucidez silenciosa

Nietzsche, a propósito do seu con-ceito de intempestivo, disse-nos que porsobre os grandes eventos barulhentos da li-nearidade histórica existem pequenos acon-tecimentos silenciosos que ecoam nas suastraseiras. Esta “justaposição” é a presença dopoético sobre o histórico. Ao olhar o corpode filmes de António Reis e MargaridaCordeiro apetece dizer que estes são a per-feita ilustração desse “silêncio”, dessa poesiavisual que nunca deixou de se manter nasombra para que a história do cinema por-tuguês pudesse fazer ainda mais sentido. Emparticular a média-metragem Jaime (1974),o primeiro filme rodado em película dosdois, enceta um movimento frágil e deli-cado, que nunca viria a deixar os autores eque usa as imagens e os sons para essa pas-sagem operada entre o espaço físico, da na-tureza, e o espaço mental, poético, ancestral.Ao contrário de outros “eventos silenciosos”,como o foram a estranheza e a brevidade deRimbaud e Kafka na literatura, ou da ener-gia vitalista de Jean Vigo no próprio cinema,a arte de António Reis e Margarida Cordeirobate-se por uma outra energia do íntegro ehonesto na relação do cinema com a reali-dade.

A grande “luta” com um filme comoJaime reside sobretudo na procura de novaspistas para um grande mistério que a obracontém e que não se deixa apenas explicarnum perfeito domínio da linguagem cine-matográfica. Esta acontece no interior deuma premissa que tenta documentar a vidade um homem que passou mais de trintaanos no Hospital Miguel Bombarda, e fá-loa partir dos lugares mentais que aquele criouatravés da sua arte. Se a busca de uma“pureza” do género documental, nodomínio do retrato de alguém, pode dizer-se

que se faz na luta entre fixar imagens quetentem fazer justiça a essa fluidez inter-minável de ausências de sentido (o únicosentido justo e completo do humano), An-tónio Reis viu como ponto de partida lógicouma dupla ausência. Jaime evoca umaprimeira ausência factual, a morte do pa-ciente, do homem, do artista. “Oito vezesJaime morreu já cá”. E a viúva, que ainda ochama, fá-lo para nós, “mal empregadohomem, mal empregada senhora”. Contraessa ausência inexorável, o cineasta trabalhauma outra: a ausência de sentido que Jaimefazia para a sociedade, essa transmutada nosseus escritos e pinturas em que o artista tra-balhava a sua própria “desidentidade”:“Neñgueñ. Soieu”. São essas “fotografias deobscuridade”, trabalhadas por Jaime a seubel-prazer, que nos abrem o contacto entreo mistério da sua arte e o nosso rótulo dasua insanidade.

Essas ausências que referimos per-mitem a António Reis explorar simultanea-mente o impressionismo, a “consciência damatéria e do espaço” e o expressionismo dosseus estados mentais (como explica JoséManuel Costa no texto que escreveu sobre ofilme para a Cinemateca Portuguesa), sendoque é a ficcionalização das formas e do soma partir das obras de Jaime aquilo que per-mite a evocação quase-biográfica do homemausente. Evocação feita entre duas fo-tografias que abrem e fecham o filme. Assim,o evento silencioso que é Jaime, a sua poe-ticidade, está sobretudo nessa forma de cons-truir e instruir o real pela subjectivizaçãopura, de conceber o registo documentaldepurado através da intervenção criativa,transformadora. Nesse vai-vem, AntónioReis deixa ver o seu universo em que se fun-dam as raízes profundamente antropológi-

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cas, científicas, do espaço onde coloca a câ-mara e a lógica organizadora e dialéctica dasua montagem, com os sons e imagens “en-tredevorando-se”, como aliás disse na célebreentrevista dada a César Monteiro para aCinéfilo em 74. Essa dupla partição do ima-ginário de Ja ime começa com os planosmudos, em íris, a revelar um olhar simul-taneamente curioso e de “pudor estético”sobre o pátio exterior do hospital. Dessa ob-servação de outros pacientes, nas suas pre-senças e sombras, mas também das linhasredondas da fonte central ou do própriopátio circular panóptico, Reis migra para oexterior e para o som e para o espaço ondeviveu ainda em liberdade Jaime. Esse espaçode texturas naturais, de riachos, de camposde flores, de composições de uma naturezamorta misteriosa (como é o famoso planodas maçãs e da máquina de costura ou doguarda.chuva aberto sobre o milho) são o es-paço físico de onde emana a interioridadeartística de Jaime. Dos retratos que “tambémhão-de morrer” visita-se a textura das redes,das frases, as linhas de zeros, a linha dosmontes e os inúmeros olhares, abismados,expectantes, de um ou mais corpos. A câ-mara de Reis está sempre entre mundos, a

Carlos Natálio,Ordet.

desfazer a metáfora, o símbolo e a buscar alimpidez das formas, de um passado ruraltornado tela e frase.

Nessa viagem, Jaime, o “louco-são”,artista prisioneiro, que sabia do “oficio” demeter os homens nas estrelas, constrói ocineasta Reis. E Reis agradece-lhe, fazendodo seu ensaio uma homenagem à lucidezpairante de um homem que “nada sabia”.Mas o seu percurso comum prolonga-se.Ambos passaram da escrita à imagem. Masenquanto a escrita de Jaime se foi tornandoilegível e visual, a passagem de Reis da poesiaao cinema nunca abandonou uma profundacrença: a de que o verdadeiro objectivo dasua arte estava menos na fiabilidade de umatecnologia e mais na revelação privada dosseres na sua relação com a terra. É essa reve-lação-libertação que, ao ser trazida a umhomem como Jaime, é também sinal de umalibertação maior. A de um povo também ele“louco”, também ele encerrado num regime,então, prestes a ceder.

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(1976), de António Reis e Margarida Cordeiro

Trás-os-Montes

Trás -os -Montes, objecto tão puro etão rudimentar quanto o mais remoto dossítios desse Nordeste Transmontano queReis e Cordeiro quiseram documentar écoisa bruta, por lapidar, cinema que nasceda exposição do objecto e do recriar dumtempo perdido e distante, cinema que nasceda sua crueza e da sua mitificação, da recusada total documentação e ficção, ou seja,duma certa fusão nesses dois géneros quenão aceita totalmente quer o real quer aficção. O que Reis e Cordeiro expõem sãoos ritos duma região oculta do nosso Portu-gal, ritos esquecidos e “engavetados” na cul-tura transmontana, coisas de outrora a queos cineastas dedicaram, como diria LeitãoRamos, “um dos olhares mais rigorosos e co-moventes jamais lançados sobre essa terra”,um olhar lírico e apaixonado em busca domito e do imaginário do homem transmon-tano de outrora, em busca duma honesti-dade e dum telurismo da região que nãoexiste mais. Coisa que foge à narrativa (e aofolclore) em busca do irromper da culturapopular de Trás-os-Montes como principalpropósito, do recriar simbólico, alegórico eantropológico dessa mesma cultura, dosritos, do primitivismo e das paisagens e mo-numentos ancestrais transmontanos que

hoje em dia cada vez mais se vãodesvanecendo. Procura-se o passado numamistura com o presente, procura-se o ima-ginário numa mistura com o real. Monu-mento à vida, monumento ao povo,homenagem à terra.

Fora de qualquer embelezamento vi-sual ou sonoro (a que o som muito seprocurou recriar ancestralmente) e fora dequalquer contexto comercial, filmado porentre os montes e aldeias transmontanas,Trás -o s -Montes procura se movimentarnesse meio entre a ficção e o documental,mas sobretudo, bem assente na “rudimenta-rização” dum cinema cru e estéril de qual-quer atractivo visual ou narrativo sócomparável ao cinema de Paradjanov tantona estética como na veia simbólica ealegórica que brota. Arte das artes cine-matográficas que procura documentar e evo-car memórias ancestrais de tradições, usos ecostumes dum Nordeste Transmontano dis-

“Posso dizer-te que jamais filmámos com um camponês, uma criançaou um velho, sem que nos tivéssemos tornado seu companheiro ouamigo. Isto pareceu-nos um ponto essencial para que pudéssemos

trabalhar e para que as máquinas não levantassem problemas.Quando começámos a filmar com eles, a câmara era já uma espécie

de pequeno animal, como um brinquedo ou um aparelho de cozinha,que não metia medo.”

António Reis in Martins, 1993, p. 45.

Álvaro Martins,Preto e Branco

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(Manuela Serra, 1979-85)

A filmes como O Movimento dasCoisas costuma aplicar-se a designação “doc-umentário”. É despropositado, nesta“folha”, retomar a discussão acerca de taldesignação e do que separa ou não separa,enquanto objecto fílmico, o documentárioda ficção. Mas também não adianta iludir aquestão classificativa e acrescentar lugares co-muns do género dos que afirmam que todaa ficção é documento e todo o documentoficção. Porque O Movimento das Coisasse situa na região indefinida onde essasquestões podem e devem ser postas sem asreduzir a chavões.

Para exemplificar apenas com filmesportugueses recentes, pode ser grande a ten-tação de aproximar O Movimento dasCoisas das obras de António Reis e Mar-garida Cordeiro, particularmente Trá s -os -Montes e Ana . A meu ver, não há maiorcontra-senso. Não apenas por uma questãoqualitativa (se muitos são os méritos deManuela Serra, há uma enorme distânciaentre tais méritos e a grandeza atingida porAntónio Reis e Margarida Cordeiro) mas so-bretudo porque a raiz do filme que vamosver, o seu imaginário e o seu fantástico, sãode ordem completamente diferentes.

Se comecei por uma comparação in-grata a Manuela Serra, não foi para apoucar(mesmo relativamente) o seu filme, masporque essa comparação tem sido exercidanoutros textos sobre esta obra prejudicandoa sua compreensão e o seu alcance. Atrásusei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Nãofoi por acaso. Ao rigor que preside aos regres-sos originais e originados de António Reis eMargarida Cordeiro, opõe-se em O Movi -

O Movimento das Coisas

mento das Coisas uma indefinição que lhedá grande parte do seu interesse e o singu-lariza não só em relação à via única - e ini-mitável - desses cineastas, como a singularizaem relação a outras obras que podem, àprimeira vista, ser aproximada desta, comosão os casos dos belos filmes de AntónioCampos ou de Philippe Constantini.

O Movimento das Coisa s não énem pretende ser uma gesta mítica, comonão é nem pretende ser um documentárioetnográfico ou antológico. Reparar-se-á quea aldeia onde o filme se passa nunca é situ-ada. Lanheses é um nome que só aparece nogenérico final, nos agradecimentos da au-tora. Qualquer português identificará aaldeia, situando-a no norte de Portugal, masa imprecisão geográfica, ou a indefinição,para usar um termo mais apropriado, existedesde o inicio do filme. Não sabemos bemaonde estamos e nunca saberemos porquerazão a realizadora nos levou até ali.Aparentemente, é uma aldeia igual a tantasoutras, onde coexistem ritmos ancestraiscom influências da emigração, aldeia ondepredominam as mulheres, mas onde o tra-balho destas não é exclusivo e as marcas deincipiente industria se começam a fazer sen-tir. Mas, desde a belíssima abertura, com orio, as névoas, os juncos e a câmara, muitolentamente, a descobrir-nos a povoação, sen-timos que há uma relação física entre o olharda câmara e o que esta nos dá a ver, como seaquele espaço, aparentemente indefinido,fosse também o único espaço possível para acorporização do imaginário contemplativode Manuela Serra.

Essa mesma indefinição entre os di-

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versos materiais é uma constante que atra-vessa o que o filme nos vai dando a ver, comgrande demora e certeira beleza. O filme nãonos conta uma história (a família que oatravessa jamais é portadora de qualquerficção ou qualquer verdade); o filme não ilus-tra o quotidiano de uma aldeia (as imagensdo quotidiano mais ofuscam a narração doque a esclarecem); o filme não está ao serviçode qualquer causa (em vão procuraremos vernele leituras políticas, sociais ou etnográfi-cas); o filme não segue o ritmo exterior tem-poral (género, um dia na vida de uma aldeia,ou o ciclo de estações). Podia continuar asenumerações, respondendo sempre pela ne-gativa. E, no entanto, tudo isso lá está(história, quotidiano, causa, tempo, espaço)mas lá está no mesmo modo indefinido comque penetramos na comunidade. Numa lín-gua literária, diríamos que a realizadoranunca utiliza artigos definidos, mas optasempre pelos artigos indefinidos. Comoestes “artigos” se articulam a uma matériacorrecta (aparentemente despida de qual-quer metafísica) a conjugação é estranhís-sima e impõe, desde o inicio, um singularperturbação.

O exemplo flagrante do que estou adizer é o uso da montagem. Aparentemente,a inserção de sequências alheias ao queparece centrar a atenção da realizadora(pense-se nomeadamente, na sequência dojantar da família ou na sequência da igreja)não tem qualquer nexo, parecendo arbi-trárias e retirando a duração necessária aosplanos:

Mas, com maior atenção, vamos des-cobrir que o uso de montagem da cineasta éprecisamente uma interrogação à mon-tagem, como se Manuela Serra, a cada mo-mento, pusesse em causa essa própria noção,substituindo-a pela noção de colagem e re-unindo um todo os diferentes materiais quevai dando a ver.

Essa utilização específica é particular-mente impressionante naquele que é, paramim, o mais belo momento do filme. Refiro--me a sequência da igreja. O plano começapor nos mostrar a imagem de Cristo no altar-mor e, depois, vai lentamente descobrindoo padre, o altar e a assistência. Contra-planoe, do ponto de vista do altar, vemos a as-sistência e a porta da igreja aberta contra umcéu nocturno e azulíssimo. Tudo nos leva asupor que estamos numa missa nocturna,até que, lentamente e após novas inserçõesdas imagens "leit-motif" do campo, do rio edas névoas, voltamos à igreja, com uma luzdiferente, como se muito tempo se tivessepassado e os personagens permanecessemfixos naquele ritual, tal arrancados a qual-quer tempo Preciso como a imagem deCristo que a câmara nos dá em pormenor.Quando as pessoas saem da igreja é dia(crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesasas luzes da Igreja, como se a noite se projec-tasse de interior desta para o exterior, numsinal contrário ao da iluminação inicial.

Exemplos deste género multiplicam--se no filme, sempre por fragmentos, comose no houvesse outro movimento senãoaquele do que o título da Obra nos fala. Eesses fragmentos, e esses movimentos, sãotanto visuais como sonoros. Ouvimos boca-dos de diálogos que, em si mesmos, parecemsempre esparsos e insignificantes. Mas o somcom que ficamos é o da flauta da belamúsica de José Mário Branco, tão obsessivoe tão embalador como o plano visual do rioque passa junto a aldeia.

Tudo flui e tudo flui indefinida-mente nesta obra que voga vagamente. Mastudo flui em torno desses pontos de susten-tação que são, paradoxalmente, os pontos dereferência mais imateriais deste filme: a pai-sagem ritual e o som da flauta, que guiamdo princípio ao fim no nosso olhar.

O Movimento das Coisas é, simul-

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Texto de João Bénard da Costa,In Folhas da Cinemateca

taneamente, um filme extremamente mate-rialista e extremamente abstracto. Os doistermos não são inconciliáveis. Só que para onão serem é preciso uma determinável visãoe é essa visão que dá coerência a este filmedisperso e o transforma numa obra una,com surpreendente lógica e surpreendentesrimas.

CINEMATECA PORTUGUESA - 90ANOS DE CINEMA PORTUGUÊS - IN-ÉDITOS DOS ANOS 80 - 29 de Dezembrode 1986

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(1986), de João César Monteiro

Num dos extras da caixa de DVDscom a obra completa de João César Mon-teiro lançada após a sua morte, Vítor SilvaTavares, amigo e editor dos livros do rea-lizador na & etc, diz não gostar de À Flor doMar. Mais, considera-o o filme menos ca-racterístico do cineasta, demasiadamentebonito e no qual falta a veia de provocador(socorro-me da minha memória, que paracitações é muito fraca).

João Bénard da Costa diz, noutroextra da mesma caixa, que, na obra de CésarMonteiro, o sórdido e o sublime são indis-sociáveis e que a adversativa que muitos críti-cos usam para descrever a obra do realizador("é porco, mas depois é capaz de grandebeleza" e vice-versa) não faz sentido. No en-tanto, em À Flo r do Mar, obra de que opróprio gostava muito, há bem mais sublimedo que sordidez.

À Flor do Mar é o último filme deCésar Monteiro antes de Recordações daCasa Amarela , ou seja, antes do "nasci-mento" de João de Deus, personagem que,com algumas variações, há-de marcar a obrado realizador daí para a frente e fixar-secomo a imagem definitiva na mente detodos. Talvez seja uma das razões por que étão esquecido, quando não desprezado.Outra, com certeza, será o facto de só tertido direito a exibição comercial dez anos de-pois de ter sido feito.

Porém, nada disto interessa perantea beleza das imagens, azulíssimas de mar,amarelíssimas de Verão, que escorrem emlongos e lentos travellings (a fotografia é deAcácio de Almeida, julgo que na última vez

À Flor do Mar

que trabalhou com César Monteiro); o sabordas referências literárias e cinematográficas(o Robert Jordan, herói de Hemingway; oNew York Herald Tribune, jornal de Go-dard; o Roberto, nome de Rossellini); adoçura e a paz de um Algarve paradisíaco,antes de ser esventrado pela construção de-senfreada e as hordas de turistas; as suavespaixões entre terroristas e viúvas, entre ter-roristas e adolescentes; a Teresa Villaverdecom a cara borrada; a Laura Morantedeitada na praia; a Manuela de Freitas,figura tutelar, de cigarro à banda; o peixe aser arranjado pela Senhora Amélia; o geladona esplanada; o barco a passar lá em baixo,quando as luzes se apagam na casa, no úl-timo plano.

Toda esta paz, melancólica é certo,só é perturbada na sequência dos assaltantes(pois nem a história de assassinatos e cons-pirações políticos abala muito a situação), naqual um tal de Stravoguine (prefiguração deJoão de Deus) parte umas coisas e desarrumaa estante dos livros. É o único momento emque o provocador, na pele de César Mon-teiro, comparece. De resto, o espectador éapanhado e deixa-se estar no transe do sub-lime. É preciso coragem para se fazer algo tãobonito e singelo. César Monteiro não ovoltaria a fazer. Não assim. Embora gostemuito do que veio depois, terei sempresaudades daquele Verão no Algarve.

João Lameira,numa Paragem do 28

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(1992), de Manuel Mozos

Xavier

“Can you imagine being lit up by some hot shells?Imagine being tossed around and put in jail,Imagine life when you can't get from under.”

Snoop Dogg, em Imagine de The Blue Carpet Treatment

Não se deu nem se pensou o sufi-ciente num lugar para Xavie r no cinemaportuguês devido ao seu tempo de gestação- é um filme de 1992 a estrear em 2002. Nãodevia importar, não devia querer dizer nada,tudo isso. Podia-se pensar se um filme quenão estreia na “sua” década pode influenciaro resto, se pode pairar nas consciências pelasua não-existência de dez anos, se resolve umembate de gerações de cinema, se confirmaque é possível um verdadeiro trabalho de ac-tores por este lados, se impõe Pedro Hestnescomo personificação suprema da “saudade”ou como mito quase deanesco, de uma juven-tude revoltada e sedenta de sangue, quando“sangue” é “vida”. Mas faz-se pouco disso epor muitas razões, sendo a principal a suaquase total invisibilidade.

Xav ier retrata uma Lisboa assom-brada, um passado e uma infância que nãoacabam no seu tempo e que regressam aodestino da personagem principal do filme.Retrata uma sede tocante de existir, quasecomo acto de resistência. Contra tudo, cons-ciência, remorsos, família, amigos, amores,negócios, estratagemas, dinheiro. Das con-versas que estruturam uma amizade, em te-lhados da capital, de quanto ela respira e dequanto o filme a documenta. Das viagens deuma vida, dos dias e meses que nos transfor-mam, as bases e consequências dum turningpoint que poucas voltas dá, mas que deuquantas lhe foi possível. Os ponteiros não

param e os dias passam, cem minutos deconvivência e amor em contra-relógio, emcontra-vivência. Por ser difícil. Mas por valera pena exactamente por isso. “There was anaughty boy. A naughty boy was he. He could notstay home, he could not quiet be”. Havia Xavier.E Xavier é o quanto se paga por ser assim,que não é uma escolha. Por não tentar asaída fácil e tentar curar as feridas ir-reparáveis, tentar abordar as pessoas em actode desespero calmo. Em surdina. A melan-colia doce disto tudo...

É só este sentimento dominante –diria quase que a tonalidade - que me vem àmemória, que é muito traiçoeira. Vi-o háuns meses sabendo que era oportunidadeúnica e acabo por esquecer grande parte,passados uns meses. Depois, olvidadas já assituações e os pormenores da plot do filme,salvo pequenas parcelas, ouço os versos doSnoop Dogg em epígrafe e vêm-me à cabeçaos passeios do Pedro Hestnes pela capital edo negrume daquilo tudo, sem perceberbem porquê. Primeiro, penso que se o ci-nema é como a música, é porque ambos,música e filme, estão na mesma tonalidade,mas isso é a reacção emotiva, irracional. De-pois, que é uma questão de luta (struggle), dotal acto de desespero, que é uma questão deser do bairro e de subir como se pode, amuito custo, de que tenho a arrogância depensar que, sim, compreendo isso, quandonão tenho a mais pequena ideia. “Imagine

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life when you can't get from under”.. Mas tam-bém não é isso e inclino-me mais para o re-gresso nostálgico às raízes. Que andamostodos uma vida inteira a tentar regressar acasa ou à infância, a herança narrativa maisantiga de todas, mas talvez a que mais coisastenha que se lhe diga, por estar muito alémda narrativa. Muito que se lhe diga. “We maybe through with the past, but the past is neverthrough with us”. “Prender” no tempo, complanos ou notas, aquele momento (ou mo-mentos)-chave em que uma pessoa seapercebe de si, do “eu”, com todas as liçõese arrependimentos documentados e se tornaadulta. Lições sinceras e que têm que custara aprender. A todos, sem excepção...

Mas porque é de cinema e deXavier que tenho que falar, elogio o laborde Manuel Mozos nos dois pontos que menão largaram mesmo passados meses:

1. O amor aos actores e ao que eles podemdar (e aqui dão). A Pedro Hestnes é escusadotecer elogios que nunca bastariam. Vêem-seactores e actrizes que se reconhecem de no-velas e doutros filmes e a luz é diferente, nãoparecem os mesmos. Nunca se viu ou ouviu

Sandra Faleiro como aqui se vê e ouve(porque não lhe é dada a oportunidade). Étocante e revelador. Realização é um tra-balho de espera e paciência, de fé e resistên-cia.

2. A cena terrível da morte da mãe quevemos “só” nos olhos e na reacção de Xaviere a montagem elíptica de toda essa cena.Prova de que há um realizador que praticaum jogo justo e limpo com o espectador,sem ilusões ou aparatos que ofusquem opensamento e a experiência de ver um filme,que confia e respeita a nossa inteligência. Atal coisa que nos faz duvidar da nossa invisi-bilidade e do nosso conforto no processo.Somos nós que vemos os filmes ou são osfilmes que nos vêem a nós? É que o confortoé só deles, não mudam um frame que sejaao longo dos anos. Nós é que mudamos...

Que faríamos se conhecêssemos umXavier? Se calhar já conhecemos... se calharjá somos...

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João Palhares

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EntrevistasFilipe Melo, por João Palhares, António Lopes, Iúri Silvestre, Ivo Brito e Rui Oliveira

Manuel Mozos, por João Palhares

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Filipe MeloFilipe Melo nasceu a 13 de Setembro

de 1977, em Lisboa. É músico de profissãoque tem como hobby o cinema e a banda-de-senhada. E se I ' l l See You In My Dreamsé o seu trabalho mais conhecido (mas emque não é creditado como realizador), talvezseja O Mundo Cati ta a sua melhor obranas andanças do audio-visual, a mini-sériecom o mentor dos Irmãos Catita e dos EnaPá 2000, Manuel João Vieira. Foi para o ar

na RTP2, há coisa de três anos, com algumsecretismo, mas encantou quem a viu. Eramos dias e noites de Vieira contados em seisepisódios, numa tentativa de perceber quemele era. Se se acaba por não perceber, por serimpossível, fica a personagem e a música, osbares, os concertos e as consultas no den-tista, o jogo das vacas, as coisas favoritas, PhilMendrix, João Didelet, Karley Aida e...Sofia.

EntrevistaJoão Palhares: Estás satisfeito com o resul-tado final e a adesão ao livro Dog Men-donça? E, já agora, que papel tiveram asredes sociais na divulgação?

Filipe Melo: Ora bem, eu posso dizer quedas diversas coisas que tenho feito ao longodos tempos, este livro é capaz de ser o quemais se aproxima da ideia inicial, portantoestou muito contente. É provavelmente aúnica coisa que se voltasse atrás não teriafeito nada diferente, o que é bom. A grandevantagem em relação aos filmes é quequando sai alguma coisa mal pode-se fazeroutra vez. Em relação à adesão ainda é umbocado cedo para saber, eu sei que a editorafez uma tiragem um bocadinho ambiciosapara uma bd, mas este livro que tenho aquifoi impresso hoje de manhã e é um exemplarda segunda edição. Eles avisaram-me que eutinha de esperar pela tarde até pegar nele,porque tinha de secar. Então eu estou con-tente, porque se fizeram mais 700 isso émuito bom. Significa que as pessoas estão acomprar – muita gente que normalmentenão compra banda-desenhada.

As redes sociais têm sido uma ajuda impres-

cindível na divulgação do livro, porquetemos conseguido chegar ao público quenormalmente nos segue por causa dosfilmes. Eu tenho esta produtora que sechama “O Pato Profissional” - que tem umpato – e, de facto, nós sempre que temosuma novidade pômos no Facebook, e as pes-soas põem “gosto” mesmo que depois nãocomprem o livro. E isso tem-nos ajudado achegar a mais pessoas, o que é sempre bom.

JP: O projecto começou por ser pensadopara filme. O que é que aconteceu entre-tanto, foi propositado ou por falta de meios?

FM: Não foi por falta de meios, na realidadehouve duas possibilidades reais de fazer umfilme. Houve dois produtores que queriamtornar isto uma realidade, e chegou-se a falarnuma fase de concretização, mas só que nasreuniões eu começava a pensar na concretiza-ção do filme e não estava a conseguir veraquilo, não estava a conseguir ver. Talveztambém por falta de meios, mas mais queisso, por alguma falha de comunicação ouassim, a melhor maneira de contar a históriaia ser assim. Portanto, isto não é um planob, isto não é um filme que se transformou

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numa banda-desenhada, é uma história quesempre quis ser uma banda desenhada, sóque eu estava enganado no início..

JP: Referencias o Big Troubl e in L it t leChina. O Carpenter foi um cineasta impor-tante para ti?

FM: Eu posso dizer que o primeiro filme doCarpenter que eu vi no cinema foi oPríncipe das Trevas. Isso significa que eucomecei a ver filmes do Carpenter muitojovem, muito jovem mesmo. E obviamenteque qualquer pessoa que goste de cinemafantástico tem que referenciar e reverenciaro Carpenter.

JP: Ou que goste do cinema em geral..

FM: Claro, porque não há dúvida nenhumaque o Carpenter é um dos grandes. O que éque tu achas do Carpenter?

JP: Eu adoro Carpenter.

FM: Qual é o teu filme preferido do Carpen-ter?

JP: Por acaso é o Príncipe das Trevas ..

FM: Gostas mais do Príncipe das Trevasou do Nevoeiro?

JP: O Nevoeiro também é... lá está, não con-sigo escolher, é muito difícil.. bem, já esta-mos fora do guião da entrevista.. Mas queachaste do Escape From LA , já agora?

FM: O Escape From LA é uma boa piada,tal como o Gremlins II é uma boa piada.Quer dizer, é um fantasma do que é o origi-nal.. Mas posso dizer que gostamos tanto doCarpenter que numa página da nossa banda-desenhada, o protagonista tem na parede doseu quarto o poster do The Thing, que é in-discutivelmente o melhor filme de terror daHistória. Mas, essencialmente, o Escape

From LA é um remake do primeiro a gozar,o que não deixa de ter a sua graça..

JP: Foi o John Landis que fez o prefácio àtua bd, podes-nos dizer como é que o abor-daste e qual foi a reacção dele ao livro?

FM: Ok, eu conheci o John Landis num fes-tival de terror de Lisboa, que é o MotelX. Eusou amigo de infância de alguns membrosda organização e, então, este ano eu estavalá a re-lançar o I ' ll See You in My Dreams,numa edição feita por eles e na festa deencerramento eu estava no S. Jorge e sorteeium dos dvd's do filme a quem soubesse dizercomo é que se chamava o produto capilar dofilme Um Príncipe em Nova Iorque. A res-posta era Soul Glo. Ora bem, entre o públicoestava o grande, grande realizador, semdúvida nenhuma o melhor realizador de ci-nema da história, o John Landis, e depois,no final do festival, houve um jantar, em queeu dei por mim e estava frente a frente como John Landis e com o Stuart Gordon.Então, foi incrível estar a ver cada um delesa discutir os projectos que vão fazer a seguire estar a fazer perguntas sobre os filmes deum e doutro. Isso foi muito incrível, muitoincrível. E então eu tinha três pranchas e, defacto, ele percebeu que eu gostava muito dosfilmes dele, que sou um apaixonado poraquele género e acho que ele foi muito im-portante. Então mostrei-lhe algumas pran-chas e disse-lhe que era um abuso pedir-lheisso mas que queria que ele escrevesse umprefácio e disse que ele tinha a obrigação deo escrever porque grande parte das coisasque aqui estão foram inventadas por ele. Oure-inventadas por ele e por isso é que en-traram no meu imaginário. Eu nunca penseique ele fosse escrever, mas um dia recebo ummail, depois de lhe ter enviado a banda de-senhada completa em pdf e ele disse que gos-tou muito e escreveu um prefácio. E estouaqui a ver e, de facto, é verdade, é bonito.Faz com que tenha valido a pena, já.

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JP: Como é que foi para ti e para os outrosenvolvidos trabalhar à distância?

FM: Foi muito fácil. Teve um problema sérioque é a diferença de horário que a dada al-tura foi de cinco horas. Eu muitas vezeschegava a casa de um dia cheio de trabalho(chegava a casa às onze da noite) e ligava-lhee tinha que estar a trabalhar com ele até àsquatro, cinco da manhã para me levantar nodia seguinte, às nove. Então, tive aí uma faseque andava um bocadinho trocado dehorários. Mas a partir do momento em quese está a trabalhar com boas pessoas, comamigos, a comunicação torna-se muito fácil.Nunca tivemos propriamente discussões de“isto deve ser assim ou assado”, estávamostodos a ir na mesma direcção e muitas vezesas discussões eram sobre como conseguirmelhorar algo, nunca sobre como conseguirmudar numa direcção oposta à dos outros.Foi fácil. Nesse sentido foi um trabalho fácil.

JP: A curta I ' l l Se e You in My Dreamsdeu-te alguma visibilidade. Isso permitiu-teconcretizar projectos mais facilmente?

FM: É um bocadinho difícil responder a issoporque de alguma forma eu sinto sempreque é muito difícil, que todos aqueles pro-blemas que surgiram quando eu comecei afazer a curta continuam a existir, continuo ater as mesmas inseguranças, continuo a teralguma dificuldade a fazer com que algumaspessoas me atendam o telefone ou me levema sério, continuo a ter problemas em arran-jar formas de tornar reais os projectos. Mastambém não quero parecer amargo, o I ' l lSee You in My Dreams trouxe-me, acimade tudo e muito mais do que condições parafazer novas coisas, boas memórias. Portanto,eu diria que é sempre um percurso muito in-grato mas ao mesmo tempo é o que eu maisgosto de fazer. Mas não vejo que as coisasfiquem muito mais fáceis do que eram...

JP: Foste hacker. Como é que isso se mani-

festou no que fazes no cinema e na música?

FM: Bem, não há nenhuma relação directa.A única coisa que eu posso dizer é que o in-teresse que eu tinha por computadores,nessa altura, foi transferido para a música edepois para os filmes. Isto é, tentar levar al-guma coisa até às últimas consequências, sebem que essa primeira experiência não teveassim muito bom resultado. Mas foi mais doque tudo uma tentativa de melhorar nal-guma coisa. Continua a ser o mesmo princí-pio que aplico às outras coisas. Aprender emelhorar.

JP: O que é que achas que as novas tecnolo-gias podem acrescentar ao cinema, hoje emdia?

FM: Ora, estamos numa era em queprovavelmente o cinema vai mudar radical-mente com a história das três dimensões jáserem mais naturais e não precisarmos deóculos da Tv Guia. Então, o cinema podedar um passo gigante e eu acho que todas asinovações tecnológicas serão bem-vindas,sempre. Se nós aplicarmos o mesmo princí-pio à escrita, por exemplo: hoje em dia todaa gente escreve no computador, já ninguémescreve à mão e não sei quê. Conclusão, oque eu acho é que tudo o que é tecnológico,ajuda, se o que estiver por trás for criativo ehumano. As máquinas nunca vão substituiras pessoas.

JP: Música, cinema, banda-desenhada.. Oque é que vem a seguir? Já tens novos projec-tos?

FM: Eu ultimamente tenho tido muita an-siedade por causa da música, porque comotenho feito muita coisa diferente acabo pornão conseguir dedicar-me seriamente à coisaque eu mais gosto, que é tocar piano. Então,na verdade, sou capaz de desaparecer daslides do fantástico, dos filmes e da banda-de-senhada durante um tempo até que se justi-

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fique o regresso. Para isso, não poderá serqualquer coisa que apareça por acaso, teráde ser algo que eu tenha realmente vontadede fazer. Até lá, estarei a tocar por aqui e porali.

JP: Como é que consegue sobreviver umaprodutora em Portugal sem subsídios?

FM: A nossa produtora sobrevive de peque-nas coisas. Primeiro, nós não temos es-critório. Tínhamos um escritório e deixámosde o ter porque não justificava ter aquele en-cargo. Outra coisa que nós fazemos é traba-lhar sem receber da produtora, nós termos aprodutora é mais um símbolo da nossa de-dicação a uma causa que é tentar fazer al-guma coisa de interessante no panorama dofantástico... Nós estamos interessados emtrabalhar em teatro, em música, em filmes ena banda-desenhada. É isso que nos inte-ressa. Não posso dizer que sejamos milio-nários, não temos muito dinheiro, masfazemos o que gostamos e quando uma pes-soa faz isso, acaba sempre por sobreviver.

JP: O terror e a bd são apostas um bocadoarriscadas em Portugal. É o caminho quequeres seguir?

FM: Suponho que todas as áreas em que eume movo são um bocadinho direccionadaspara minorias, não é? Não há assim muita,muita gente a gostar de cinema fantástico oude terror. Há alguma, mas ainda continua aser considerada uma minoria, não é?

JP: Pois, aqui em Portugal, pelo menos, achoque é assim..

FM: Claro, eu acho que não é injusto dizerisso.. E, na música, o jazz não é propria-mente uma música de massas.. e, então, eufui-me habituando um bocadinho a isso, queé, eu não procuro propriamente reconheci-mento nem nada disso. A única coisa que euquero é continuar a fazer estas coisinhas que

vou fazendo de vez em quando, que é tocara música que gosto, fazer estes projectos queeu gosto mesmo e tentar sobreviver disso.Uma pessoa não está a fazer coisas para ga-nhar dinheiro... fazer as coisas que se gosta!

JP: Se tivesses tido formação profissional decinema antes de fazer o I ' l l See you in MyDreams, como seria o filme? Melhor? Dife-rente?

FM: Ok, a educação em determinada áreatem um lado muito bom e um lado muitomau. Obviamente que qualquer tipo de for-mação estimula muito a criatividade de umapessoa, mas por outro lado há muita genteque, quando está num estabelecimento deensino, acredita que só isso fará com que apessoa aprenda e na verdade deve ser tudoum processo de auto-didactismo em que apessoa vai ter que aprender a fazer, fazendo.Eu acredito que quanto mais formação umapessoa tiver numa determinada área, em teo-ria melhor será. Só que muitas vezes o queacontece é que, com isso, vem também umasérie de pressões psicológicas que fazem comque essa pessoa não tenha tanto à vontade,como se fosse um amador, para fazer ascoisas. Cria um certo medo, um certo receio.Eu falo por mim. Muitas vezes consigo fazermuito mais facilmente filmes ou banda-de-senhada porque não tive qualquer formaçãoe então tento fazer as coisas o melhor queposso, mas por exemplo na música, sinto opeso da responsabilidade sempre que gravoum disco - “tem de ser bom, tem de ser bom”- e a prova disso é que eu não gravo um discohá cinco anos. Então começa-se a criaraquela ansiedade. Mas eu acredito sincera-mente que uma pessoa deve tentar aprender,quer seja numa escola quer seja por suaconta e depois obviamente, tem que tentaraplicar isso sem se deixar assombrar pelapressão da exigência.

JP: Achas o mundo catita?

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FM: Eu acho que o mundo é completa-mente catita, com os bons e os maus mo-mentos que também existem na série detelevisão. A palavra “catita” engloba muitossentimentos diferentes, não é? Se isto fossetudo alegre e bonito, a verdade é que depoisnão tinha profundidade nenhuma.

JP: É verdade.

FILMOGRAFIA

como realizadorUm Mundo Catita - série de tv (2008)

como argumentistaUm Mundo Catita – série de tv (2008)I'll See You in My Dreams (2003)

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Entrevistado por João Palhares, An-tónio Lopes, Iúri Silvestre, Ivo Brito e

Rui Oliveira.

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Manuel MozosManuel Mozos nasceu a 6 de Junho

de 1959, em Lisboa. Apaixonado pelo ci-nema desde muito cedo (como nos diz nestaentrevista), especializa-se em Montagem naEscola Superior de Teatro e Cinema e acabapor realizar o seu primeiro filme (Um Passo,Outro Passo e Depois . ..) sob a alçada deFernando Lopes, que na altura trabalhava naRTP. Três anos depois vem Xav ier , filmenuclear da sua obra e do cinema português.Resgatando o herói dilacerado de O Sangue(Pedro Hestsnes, esse grande, grande actorportuguês), Mozos conduz-nos por uma Lis-boa nem muito diferente da de Os VerdesAnos nem muito distante da de A Cançãode Lisboa . E num sopro, parece aglomerarcoisas inconciliáveis, resolver uma data deequívocos e preconceitos estéticos e políticose fazer a cidade respirar das alegrias e tris-tezas que por ela pairam e velam. Sob ocorpo e alma de Xavier. Xavier, talvez filme-síntese das novas e velhas vagas e novas e ve-lhas noções de cinema que foram marcandode uma forma ou outra este nosso pequenopaís (que era uma postura e procura queJoão César Monteiro mantinha também nosseus filmes). Nesta que é outra das preocu-pações de Mozos também como arquivistada ANIM e como documentarista. Provadisso são vários dos seus documentários, deOlhar o Cinema Por tuguês a Ruínas. Res-gatar memórias dispersas, reuni-las e plantá--las no presente com a esperança que secolham no futuro, um dia...

Em 2006, Mozos realiza 4 Copas(que só estreia em 2008), filme que terminao seu quadrado ficcional (Um Passo, OutroPasso e Depo is . . ., Xavier e Quando Tro-veja são os outros três, para já). 4 Copas éobra que não mereceu a descrição da sua es-treia mas não é só obra que não mereceu a

descrição da sua estreia, como defenderamos críticos que na altura simpatizaram como filme (poucos, por sinal). Aquele micro-cosmos familiar, cuja narrativa é próxima danovela – e na altura confundiu-se muito in-justamente com isso mesmo, uma novela -,parte só desse princípio porque o labor éoutro, totalmente. E nesta altura, em que secelebra Sangue do Meu Sangue pela repre-sentação do Portugal pequenino (o portugalsem P grande), esqueceu-se ou não se quisver que o filme de Mozos saiu antes. E é sómesmo uma questão de anterioridade queaqui se aponta, mais nada, a qualidade e ascomparações são outra história. 4 Copasdocumentava a luta de uma adolescente pormanter o casamento do pai com a madrasta.A coisa desenrolava-se e Diana, com as suascriancices belíssimas, entrava no mundoadulto. E é na desenvoltura que está o se-gredo todo, nas conversas antológicas com avizinha amiga, no monte como símbolo-chave de toda a narrativa e no trabalhoformidável com os actores. E se o cinema deManuel Mozos tem um só plano lindíssimo(não é verdade, não é verdade!), é o de Dianano topo da montanha, com as suas conquis-tas pequenas mas maiores que a soma dassuas partes, que a projectam como umsonho da nossa consciência. Das nossaspróprias derrotas e conquistas.

E o que são Xavier e 4 Copassenão dedicatórias fervorosas aos seus ac-tores principais? A Hestnes e Rita Martins.De quanto cinema recente se pode dizer omesmo? Sem quantificar, que é mesquinho,talvez não o suficiente...

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EntrevistaJoão Palhares: Qual foi o momento em quepercebeu que queria ser cineasta? Foi algumfilme, algum realizador, vários, ou foi algumacoisa exterior ao cinema?

Manuel Mozos: Bom, isso por acaso foi umpouco fortuito, ou seja, gostava muito de ci-nema e era um espectador muito assíduo decinema (e ainda sou) desde muito cedo,graças à minha mãe que me levava ao ci-nema. Depois, na adolescência, com osmeus amigos, mas nunca pensei em ser rea-lizador. Ainda estava na faculdade, emHistória, e trabalhava também e houve umacaso que me fez ir ao Conservatório - porcausa da minha irmã, para inscrever a minhairmã em aulas de ballet - e vi um anúncio quehavia concurso para concorrer à escola decinema. E pronto, concorri, passei as provas,entrei na escola e aí vi que sim, poderia virum dia a ser realizador. E embora tenha tra-balhado em várias áreas de cinema, sobre-tudo anotação e assistente de realização, aminha área-chave era a montagem - eu tra-balhei durante muitos anos em montagem -e ao contrário de alguns colegas meus que apartir do momento em que terminaram a es-cola começaram a concorrer aos concursosdo Instituto de cinema, eu ainda andei umtempo antes de me atrever a concorrer comum projecto meu. Pronto, e um dia lá me de-cidi, embora o meu primeiro filme, o UmPasso, Outro Passo e Depois .. ., não tenhasido produzido através de um concurso doInstituto, mas sim porque foi um convite doFernando Lopes, na altura estava à frentedas produções externas da RTP e que tinhaum projecto, do qual ele também estava àfrente, e que ele achava que poderia ter con-tinuidade. Esse primeiro projecto, chamadoFados, com dez realizadores: seis da “casa”(dos quadros da RTP) e quatro exterioresque, no caso, eram o Vítor Gonçalves, oJoaquim Leitão e o José Nascimento e a

Cristina Alsa. No ano seguinte, ele propôs afeitura de quatro filmes sendo um realizadorda RTP e três de fora. A diferença é que asdo ano anterior já eram de realizadores quetinham feito um filme, excepto o caso daCristina Alsa, que tinha feito três, mas cur-tas-metragens – os outros três é que tinhamfeito longas-metragens. No nosso caso, querdo Luís Alvarães, do Pedro Ruivo e eu,éramos técnicos (eles eram sobretudo assis-tentes de realização, e eu também era, mas aminha área era mais a montagem) mas ele(Fernando Lopes) sabia do interesse de qual-quer um de nós em vir a fazer filmes e abriu--nos, digamos que as portas, para fazermoscada um de nós o seu primeiro filme.

JP: Nos filmes que vi, usa muito o fado nabanda-sonora. É para enaltecer um bocadoas vidas das personagens ou é outra coisa?

MM: Não, tem a ver com isso, é por causadas personagens, tem a ver também com umoutro aspecto, digamos, que é eu consideraro fado uma música própria de Portugal e deLisboa, em particular (e não só). E, portanto,não achar propriamente importante. Se issopara mim faz sentido para o filme... parapoder utilizar o fado nos filmes que faça eache que a utilização dos fados faça sentidopara a própria narrativa e para a construcçãode alguns personagens..

JP: Sobre o Xavi er . Porque é que estreouquando estreou e porque é que estreoucomo estreou? Quer dizer, teve uma estreiaum bocado discreta, não foi?

MM: Sim, foi. Todos os meus filmes tiveramestreias bastante discretas, digamos. Qual-quer um. No caso do Xavier...

JP: É que é um intervalo de 12 anos entre arodagem e a estreia..

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MM: E não só. É que não é só a questão daestreia, o filme só foi terminado onze anosdepois da rodagem. Houve problemas deprodução e de gestão do produtor original eno último dia de rodagem interrompeu-setudo e ficaram duas cenas do filme porserem rodadas e eu achava que aquilo seriauma coisa que se resolveria com brevidade.Não foi o caso, com o material que eu tinha,graças a algumas pessoas que me ajudaramnesse sentido de eu poder ter, digamos, umaprimeira montagem, em bruto, e sem grandetrabalho em termos de, por exemplo, desom. Só podiam utilizar o som captado du-rante a rodagem, sem música, sem trabalhosde montagem sonora e de mistura. Tal comona imagem, não estava feita em étalonnage e,mesmo os planos, estavam um bocado porlargo, não cortados.. mas era a maneira deeu poder mostrar o filme a eventuais produ-tores que tivessem fé no filme, para que euo pudesse concluir. Pronto, durou os anosque durou até que mais ou menos em... porvolta de 1998, o Paulo Rocha decidiu pegarna produção do filme e permitir assim quese concluísse. Claro que a coisa não.. umacoisa é a intenção e outra coisa é a prática,por isso há este hiato entre 98 e 2002, quefoi quando realmente acabei o filme e houvea posterior estreia. Obviamente que como éum filme que teve esses problemas todos enão havia também verbas para poder fazeruma campanha noutro sentido, de pro-moção do filme, é um objecto um bocadoanacrónico. Um bocado fora do tempo..

JP: Pois, que é um filme essencialmentedaquela época..

MM: É, isso também não favoreceu a estreiado filme.

JP: Trabalha na Cinemateca.

MM: Sim.

JP: No restauro de...

MM: Eu trabalho para a Cinemateca, nãona Cinemateca a sede, em Lisboa, mas naANIM, o Arquivo Nacional das Imagens emMovimento, que é um sector da Cine-mateca.

JP: Em que medida é que isso se reflecte noseu trabalho? Mesmo o ficcional.

MM: Quer dizer, reflecte-se na medida emque eu tenho um acesso muito razoável, di-gamos, ao visionamento de filmes. Sobre-tudo filmes portugueses. E o meu trabalhoé o de identificar materiais e depois issoentra na base de dados e os materiais de cadafilme são organizados. Tem essa grande van-tagem, que é a possibilidade de ver muitosfilmes no meu trabalho. Por outro lado, ofacto de eu ser funcionário da Cinemateca,também me permite ir à Cinemateca, àssessões normais, e ver mais filmes, ainda.

JP: Partilha da ideia que os realizadores doCinema Novo tinham e têm das comédiasfeitas durante o Estado Novo? Pergunto istoporque quer-me parecer que tem algum ca-rinho por esses filmes. Usa um excertosonoro do Grande Elias, acho eu, no Ruí -nas e mesmo algumas situações no Xavierremetem um bocado para isso. Posso estarenganado, mas..

MM: Não, há alguma verdade nisso. Éassim, eu tenho uma opinião sobre o cinemaportuguês em geral e obviamente tenho asminhas preferências - os filmes portuguesesque eu prefiro ou que acho mais impor-tantes ou mais interessantes. Mas o facto deconhecer os filmes faz-me ter algum carinho,algum respeito, por qualquer época do ci-nema português. Se calhar a atitude que osrealizadores do chamado Cinema Novopoderiam ter - ou podem, não só esses, masos realizadores mais recentes que partilhamda mesma opinião - que não gostam dessesfilmes, pronto, e eu respeito o gosto de cada

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um.. Eu não partilho desse antagonismosobre esses filmes e julgo que, dalgum modo,nas ficções em particular, provavelmente háalgumas proximidades com alguns filmes nosentido, por exemplo, da localização - a vidadesses filmes passa-se em bairros típicos deLisboa, famílias de classe-baixa-média. Nogeral. E eu, se calhar, também trabalho nessazona. Em relação aos cineastas do CinemaNovo, o que eu sinto é que para eles a ati-tude seria diferente da minha (ou de rea-lizadores da minha geração e mais novos,ainda) Eles...

JP: Tinham que ser consistentes com a rup-tura...

MM: E no fundo havia ali uma clivagementre os realizadores da velha guarda e osnovos realizadores, naquela época.

JP: Se calhar até é possível que gostassem dealguns filmes.

MM: Eu conheço alguns que hoje em diasão capazes de reconhecer que gostavam dealguns desses filmes. Não são todos, obvia-mente, mas vários deles gostam de algunsdesses filmes. Por outro lado, eles tambémtêm para além desse lado de corte de ge-rações, razões políticas. Isso vai-se ate-nuando. Nós - digo nós, gente da minhaidade – não tivemos que fazer essa clivagemcom a geração anterior como eles tiveram.

JP: Acha que qualquer realizador tem a obri-gação de falar sobre o presente? Sobre o es-tado das coisas?

MM: Obrigação, acho que não. Agora, ob-viamente que pode.. eu julgo que é mais fácilfalar – falar e não só falar – por causa dosmeios que implica, fazer um filme contem-porâneo do que o chamado filme de época.Em termos de ter que procurar automóveis,guarda- roupa, adereços de época A, B ou C.Num certo tipo de cinema, nas opções de al-

guns realizadores, eu percebo que haja umaemergência sobre o retratar, denunciar oucomentar, quanto mais não seja, a suaprópria época, através quer da ficção quer dodocumentário.

Entrevistado por João Palhares

FILMOGRAFIA

Ruínas (2009)Aldina Duarte – Princesa Prometida (2009)4 Copas (2008)Diva (2007)Olhar o Cinema Português (2006)Sobre o Mar (2003)António Pinho Vargas – Notas de um Compositor(2002)Erupção (2001)Crescei e Multiplicai-vos (2000)Censura: Alguns Cortes (1999)...Quando Troveja (1999)José Cardoso Pires – Diário de Bordo (1998)Cinema Português? (1997)Solitarium (1996)Lisboa no Cinema – um Ponto de Vista (1994)Xavier (1992)Um Passo, Outro Passo e Depois... (1989)

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CINERGIARevista Número II | Setembro 2012