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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE Cristina Leilane Azevedo Fernandes Cinefilia em Vitória da Conquista: Memórias de uma prática cinematográfica Vitória da Conquista, Bahia Janeiro de 2014

Cinefilia em Vitória da Conquista: Memórias de uma prática ... · Jorge Melquisedeque foi um verdadeiro aficionado por cinema, um “cinéfilo de ... tendo como fator preponderante

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE

Cristina Leilane Azevedo Fernandes

Cinefilia em Vitória da Conquista:

Memórias de uma prática cinematográfica

Vitória da Conquista, Bahia

Janeiro de 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE

Cristina Leilane Azevedo Fernandes

Cinefilia em Vitória da Conquista:

Memórias de uma prática cinematográfica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade,

como requisito parcial e obrigatório para obtenção

do título de Mestre em Memória: Linguagem e

Sociedade.

Orientadora: Profa. Dra. Milene de Cássia

Silveira Gusmão

Vitória da Conquista, Bahia

Janeiro de 2014

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Título em inglês: Cinephilia in Victory of Conquest: memoirs of a film practice.

Palavras-chave em inglês: Memory. Cinephilia. Trajectory.

Área de concentração: Multidisciplinaridade da Memória.

Titulação: Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade.

Banca Examinadora: Profa. Dra. Milene de Cássia Silveira Gusmão (orientadora), Profa. Dra.

Rosália Maria Duarte (membro titular), Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães (membro

titular), Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca-Silva (suplente), Profa. Dra. Maria Salete

Nery (suplente).

Data da Defesa: 28 de janeiro de 2014.

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e

Sociedade.

F3911c Fernandes, Cristina Leilane Azevedo. Cinefilia em Vitória da Conquista: memórias de uma prática

cinematográfica; orientador Milene de Cássia Silveira Gusmão- Vitória da Conquista, 2014. 140 f.

Dissertação (Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade). Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2014.

1. Memória. 2. Cinefilia. 3. Trajetória. I. Gusmão, Milene de Cássia Silveira. II. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. III. Título.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE

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Sabe aquele filme, que nós nunca conseguimos

esquecer?

Está em cartaz de novo naquele cinema.

Qual cinema? Aquele que se chamava Cine Ritz,

Cine Glória, Cine Conquista, depois Riviera, Cine Eldorado,

Cine Trianon, Cine Madrigal, depois Cine Clube Glauber Rocha,

depois Anecy Rocha, depois Janela Indiscreta, depois...

Aquele filme, quem diria, vai passar de novo.

Jorge Luiz Melquisedeque

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RESUMO

Na pesquisa ora empreendida analisamos as práticas de cinefilia em Vitória da Conquista,

Bahia, bem como os processos formativos em cinema, a saber, a constituição de um gosto,

desvelado por trajetórias de indivíduos que, articulados em uma rede estruturada no consumo

fílmico, contribuíram para a instituição dessas práticas. Para tanto, apresentamos questões

concernentes ao estudo das relações entre memória e cinema, bem como a postulação de um

corpus teórico que operacionalizou essa relação; nesse processo de análise apresentamos a

constituições de vidas e a inserção dos cinéfilos conquistenses no âmbito do cinema,

privilegiando a reconstrução da trajetória dos mesmos. Empenhamos-nos em observar quais

práticas de cinema foram forjadas em uma dada ambiência cultural. Partimos da premissa de

que a cinefilia faz parte da própria estrutura de percepção e da sensibilidade dos indivíduos e

de que não há um formato único de constituição da cinéfila, o que ocorre são apropriações e

potencialidades expressivas diferenciadas.

PALAVRAS-CHAVE

Memória. Cinefilia. Trajetória.

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ABSTRACT

In research undertaken now analyze the practices of cinephilia in Vitória da Conquista, Bahia ,

and the formative processes in film, namely the establishment of a taste , unveiled by

trajectories of individuals , articulated in a structured network in filmic consumption

contributed for the institution of such practices . Therefore, we present concerning the study of

the relationship between memory and cinema issues , as well as the postulation of a theoretical

corpus that operationalized this relationship , in which the process of analyzing the present

constitutions of lives and the insertion of conquistenses moviegoers under the cinema, focusing

on the reconstruction the trajectory of the same . We commit ourselves to observe practices

which movie were forged in a given cultural ambience . We assume that cinephilia is part of the

very structure of perception and awareness of individuals and that there is no single format

constitution of cinephile, which are differentiated appropriations and expressive potential

occurs.

KEYWORDS

Memory. Cinephilia. Trajectory.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 05

2 UMA DISCUSSÃO TEÓRICA 13

2.1 CINEFILIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E

CINEMA 13

2.2 ENCONTROS DE CINÉFILOS NO UNIVERSO CINEMATOGRÁFICO 27

2.3 PERCURSOS CINÉFILOS: DE SALVADOR PARA VITÓRIA DA CONQUISTA 41

3 ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS 56

3.1 ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS DE CINEFILIA EM VITÓRIA DA

CONQUISTA 56

3.2 JORGE LUIZ MELQUISEDEQUE: UMA AVENTURA CINEMATOGRÁFICA 56

3.3 ESMON PRIMO: PLASTICIDADE CINEMATOGRÁFICA 73

3.4 USINA DE IMAGENS: DA CINEFILIA PARA AS VÍDEOS LOCADORAS 88

3.4 COLECIONADORES DE IMAGENS: ENTRE FILMES E ÁLBUNS DE FIGURINHAS

99

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 114

REFERÊNCIAS 118

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1INTRODUÇÃO

“O gosto, em todas as esferas, só pode se formar

lentamente, pouco a pouco, passo a passo. Ele não

se ensina como dogma. No melhor dos casos, ele se

transmite se designa, mas só se pode constituir a

partir de uma frequentação assídua de uma coleção de

obras que precisam lentamente ser assimiladas.”

Alain Bergala

Tendo como objeto de investigação as práticas de cinefilia em Vitória da Conquista,

Sudoeste da Bahia, refletimos sobre o processo de formação de uma experiência artística

que tem como fio condutor o cinema, gerador e propagador de memórias. Não por acaso

essas memórias, vivenciadas em um fluxo constante e ininterrupto de imagens em

movimento, têm propiciado a determinados indivíduos a construção de um elo com

instâncias significativas de aprendizagem, instauradas como práticas sociais e incorporadas

por meio de uma frequentação às obras cinematográficas. Sob a ótica dessas práticas,

investigamos as ações resultantes das trajetórias desses indivíduos que foram capazes de

assimilar o gosto pela arte do cinema mediante um procedimento de transmissão,

constituindo-se como uma forma expressiva de vivenciar essa arte e que demarcou um

período considerável de suas vidas.

Sobre as condições nas quais se instituiu um modo de aprendizado, as práticas de

cinema comparecem amalgamadas na esfera de um gosto cultivado, movido por escolhas

distintas que envolvem recepção e apreciação da arte cinematográfica. Diante do impacto

que as imagens fílmicas produzem nos indivíduos, pensamos o cinema na cidade de Vitória

da Conquista, elucidando como se constituiu uma ambiência cultural em que alguns

conquistenses, amantes da Sétima Arte1, engendraram suas próprias condições de

assistir, exibir, produzir, colecionar, pesquisar, escrever, de recepcionar filmes, projetando-

os para além das telas, sob práticas e expressões no campo do cinema, atribuindo-lhes

sentido por meio de práticas de cinefilia. “A cinefilia é uma cultura fundada na visão e

compreensão das obras cinematográficas, é uma experiência estética, oriunda do amor pelo

1 No ano de 1912, o poeta, ensaísta, crítico, produtor cultural e intelectual italiano Riccioto Canudo.

Canudo via o início do século XX fadado a uma síntese da arte e das artes, ele propôs uma das várias

fórmulas vanguardistas dessa síntese, com o nome de “celebrismo”. Propôs também o seu Manifesto das

Sete Artes e Estética da Sétima Arte que o cinema fosse considerado como a sétima arte, aumentando a lista

precedente realizada por Friedrich Hegel. O referido manifesto foi publicado posteriormente em 1923 e

apresentou a seguinte listagem das artes: arquitetura, escultura, pintura, música, dança, poesia e cinema.

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cinema” (AUMONT, 2003, p. 12).

Ao expandir e ampliar as formas de apreciação dos elementos fílmicos, a cinefilia se

configura como uma prática social que não se vincula apenas as lições do olhar, mas

também a certos modelos de aprendizados instituídos pelo cinema. A dimensão constitutiva

da cinefilia, enquanto prática distinta, atualizada nas relações entre os indivíduos, é

instaurada por meio do amor pelo cinema e encontra-se imbricada por trajetórias sociais.

Considerando que a linguagem do cinema permite que se fale dela, que haja palavras

que a nomeie, relatos que a narre, discussões que a faça reviver – tudo isso se torna

necessário para que sua existência material seja fonte de conhecimento. “A tela de sua

projeção, primeira e única que conta, é mental: ela ocupa a cabeça dos que assistem aos

filmes para, em seguida, sonhar com eles, partilhar suas emoções, evocar sua memória,

praticar sua discussão, sua escrita” (BAECQUE, 2011, p.22).

O estudo dos elementos que compõem essa arte imagética que é o cinema,

permitiu analisar os processos que envolvem a cinefilia como prática e como distinção,

tecidas em salas de cinema, em espaços formativos cineclubistas, em empreendimentos

comerciais vinculados ao cinema, colecionando objetos de cinema, produzindo críticas

impressas e ou virtuais, em projetos e programas de exibições, mostras de cinema e

também produzindo filmes, assim, constituindo gostos e formas de pensar, de ser e de se

posicionar em contextos diferenciados do fazer humano.

Nesta perspectiva, o que apresentamos a seguir é o resultado de uma pesquisa

social, compreendendo-a como uma prática de sujeitos situados em lugares, estruturas e

processos sócio-históricos, e como uma atividade dotada de intenções e interesses que

foram se revelando na medida em que as relações de sentido foram se estabelecendo,

permitindo o desvelar dos processos socioculturais presentes em práticas diversificadas da

vida humana. De acordo com Inês Teixeira “a própria investigação da vida social – e

não apenas os objetos de estudo e sujeitos envolvidos na pesquisa – inscreve-se em

historicidades e temporalidades que contêm implicações de várias ordens, inclusive

políticas” (TEIXEIRA, 2011, p. 67). Diante desse pressuposto pesquisamos as práticas de

cinema em Vitória da Conquista, utilizando como aporte teórico uma abordagem à luz da

perspectiva da memória social, como incorporação de saberes presentes nos processos

sociais.

A pesquisa objetivou também a apresentação e análise de como as trajetórias

dos indivíduos envolvidos nas práticas de cinema em Vitória da Conquista, a saber,

Jorge Luiz Melquisedeque, Esmon Primo, Marcelo Lopes, Mônica Medina, Hélio Flores

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Filho e Sidicley Coelho Silva imprimiram à produção cinematográfica mecanismos de

construção de visões de mundo, de sociabilidade e subjetividades e contribuíram para a

reconstrução da memória dos processos sociais, históricos e culturais de formação em

cinema em Conquista, formações estas dispostas no que Norbert Elias denominou de

figurações, ou seja, o “conjunto das relações interdependentes que ligam os indivíduos

numa dada formação sócio-histórica” (ELIAS, 1994, p. 36).

No percurso da construção do nosso objeto de pesquisa algumas questões se

tornaram preponderantes: a primeira foi o impactante encontro com o vídeomaker Jorge

Luiz Melquisedeque. Ao conhecê-lo na década de 1990, esse produtor cultural, já atuava

com cinema e audiovisual; profissional de referência, conhecedor da relevância da arte

para a vida dos indivíduos e que conquistou um gosto diferenciado pelo cinema a partir

do que lhe foi transmitido desde tenra idade, perpassando por sua juventude e ao longo

dos anos foi se tornando uma prática, entrelaçando ambiência cultural e experiências

compartilhadas.

Além de ser um grande incentivador da produção artística em Vitória da Conquista,

Melquisedeque compartilhou com outros indivíduos esse gosto, referimo-nos então a um

legado sensível que foi se concretizando em uma série de ações e práticas cinéfilas,

cineclubistas e cinematográficas que influenciaram diversos indivíduos, promovendo uma

verdadeira ebulição no campo artístico local e regional.

Jorge Melquisedeque foi um verdadeiro aficionado por cinema, um “cinéfilo de

carteirinha”2, mediante a força e poder de sua inscrição nesse universo de imagens. Nas

palavras de Antonie Baecque, “[...] se o cinema é a metáfora das relações comunitárias no

século XX ocidental, a cinefilia seria sua versão clandestina, seu prolongamento individual

sob a forma de um ritual íntimo. A história pode apoderar-se dessa paixão?” (BAECQUE,

2011, p. 34). A paixão de Jorge Luís por cinema impulsionou junto com outros

indivíduos, a realização de mostras, seminários, cursos e oficinas, estabelecendo a arte

cinematográfica como possibilidade de transcendência artística, tendo como fator

preponderante para tais realizações a criação do Programa Janela Indiscreta Cine Vídeo, da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, no ano de 1992.

A segunda questão preponderante foi o partilhar de experiências com o Programa

Janela Indiscreta Cine-Vídeo. Em 2009 foi possível estabelecer uma parceria entre o

Programa Janela Indiscreta e a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista por meio da

2 A proposta de denominação como cinéfilo de carteirinha foi relatada pelo próprio Jorge Melquisedeque em

entrevista ainda não publicada, concedida a professora e pesquisadora Milene de Cássia Silveira Gusmão.

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Secretaria Municipal de Educação. Neste período, atuando como coordenadora

pedagógica da referida Secretaria, iniciamos esse trabalho conjuntamente com o Projeto O

que se aprende com cinema: saberes e fazeres na relação cinema-educação, criado pelo

Janela Indiscreta.

.

Foto 1: Cartaz do Projeto O que se aprende com o cinema

Fonte: www.uesb.br

Primando assim pela experiência desse Programa na realização de ações de cinema,

não só em Vitória da Conquista, mas em toda a região Sudoeste da Bahia foram

sistematizadas ações com uma programação diversificada para professores e alunos das

escolas municipais de Conquista, apresentando o cinema não só como entretenimento, mas

também como possibilidade de convergência entre diversos saberes, espaço de formação

estética, elaboração e apreensão de aprendizados.

Essas duas questões, o encontro com Jorge Melquisedeque e o Janela Indiscreta

contribuíram de maneira significativa para uma melhor percepção das contribuições da arte

cinematográfica em determinados espaços socioculturais, não só no que diz respeito a uma

compreensão formal, mas especialmente como ampliadora de sentidos e significados,

geradora de novas percepções e sensibilidades artísticas e sócio-afetivas. A partir, portanto,

desse enfoque, podemos considerar que determinados conhecimentos são mediados por

diversos tipos de experiências e a arte do cinema, por exemplo, pode ser um meio, uma

linguagem, um suporte material ou imaterial da memória, estruturando-se como processo

social de permanente aprendizado. Sob essa ótica é que realizamos o estudo em questão. De

acordo com Godard, “a arte não ensina, mas se encontra, se experimenta, se transmite por

outras vias além do discurso do saber, e às vezes mesmo sem qualquer discurso”

(GODARD apud BERGALA, 2008, p. 22).

Diante da constatação da existência de práticas de cinema na cidade de Vitória da

Conquista, formulamos três questionamentos que permitiram investigar essas práticas. A

primeira proposição diz respeito às condições de possibilidades que contribuíram para o

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surgimento e expansão dessas práticas, ou seja, qual a importância das mesmas para a

história sociocultural de Vitória da Conquista? A segunda indagação levantada no corpus

do trabalho refere-se à transmissão de saberes vinculados à arte cinematográfica e aos

processos sócio-afetivos que permitiram o legado dos mesmos, capazes de produzir

conhecimentos significativos, experiências singulares e que puderam ser partilhadas no

processo de construção de conhecimentos individuais e coletivos.

A terceira questão tratada nessa pesquisa toma as trajetórias dos indivíduos em suas

práticas de cinema objetivando compreender o início, a permanência e a expansão dessas

práticas na cidade de Vitória da Conquista. Dessa maneira, a partir das proposições

investigadas, apresentamos os processos sócio-históricos que contextualizaram essas práticas,

bem como elucidamos algumas condições de propagação das ações formativas em cinema

que se transformaram em práticas culturais duradouras, distintas, contribuindo, portanto para

a construção da memória do cinema em Conquista.

Nessa compreensão, três conceitos foram fundamentais para a pesquisa: cinefilia,

memória e trajetória, que articulados com seus respectivos pressupostos teóricos,

delinearam os aportes metodológicos que deram direção à pesquisa. Assim, buscamos

compreender a relação entre cinema e memória, as formas de constituição de práticas de

cinefilia na cidade de Conquista e analisamos as trajetórias de formação dos indivíduos

envolvidos nos processos de disseminação das práticas de cinema, quer unido aos processos

de aprendizagem, quer aos processos formativos. A questão da memória encontra-se

associada tanto a imagem em movimento quanto aos processos sociais que envolvem as

escolhas dos indivíduos, os gostos, a dedicação e apreciações estéticas, permitindo diálogos

e interlocuções com o pensamento social de seu tempo, o que o vincula a sua experiência de

vida em sociedade, ao conhecimento da história, à imagem em movimento e à memória.

Nessa medida, todos os instrumentos sociais de formação dos indivíduos

sedimentam-se nos movimentos e transformações sucessivas por qual passa esse indivíduo

em sociedade, organizando-se como habitus, esse sistema de disposições socialmente

constituídas que, “constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e

das ideologias características de um grupo de agentes (BOURDIEU, p.67, 1998). As marcas

distintivas desses indivíduos, as escolhas por vivenciar práticas de cinema em toda sua

intensidade, demarcaram gostos, traços que relacionados aos grupos sociais aos quais

pertencem, definem trajetórias comuns, percursos semelhantes e trajetórias.

Compreender, apresentar e analisar as trajetórias sociais dos indivíduos, amantes do

cinema tornou-se o objetivo primeiro do estudo em questão.

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Para esse fim, utilizamos documentos diversificados, examinados em acervos

públicos e particulares: jornais, revistas, documentos audiovisuais, publicações impressas e

eletrônicas que abordavam a produção cinematográfica no panorama conquistense. Além

das fontes escritas, outras informações puderam ser obtidas por meio de relatos orais, por

meio da aplicação de entrevistas, imprescindíveis na reconstituição das histórias de vida dos

cinéfilos aqui apresentados. Essa documentação foi complementada com outros documentos

que foram colocados a nossa disposição pelos indivíduos que compuseram o corpo

empírico da pesquisa. Na urdidura desse trabalho, também analisamos publicações

alternativas sobre cinema, além de produções acadêmicas relacionas ao objeto em questão.

A compilação e análise desse material com base em seu referencial teórico foram

primordiais para observarmos não só o documento, mas o contexto histórico em que ele

foi produzido. Ainda nos aspectos metodológicos, produzimos o registro imagético das

trajetórias que foram traçadas pelos indivíduos envolvidos nessa pesquisa, evidenciando

resultados e ou produções advindas dos percursos dos indivíduos e de suas práticas.

Os resultados da pesquisa realizada no período de março de 2012 a dezembro de 2013

encontram-se aqui apresentados em duas partes: a primeira diz respeito à conceituação do

objeto de estudo, a cinefilia, sistematizada por meio de uma revisão da literatura que trata

do tema, como o estudioso da cinefilia francesa, Antoine de Baecque. Nesse sentido,

expomos os processos de inserção e formação da cinefilia, sua contextualização no âmbito

mundial, particularmente a cinefilia francesa. No contexto nacional apresentamos uma

síntese histórica sobre o surgimento dos cineclubes no Brasil e as articulações entre o

cinéfilo Paulo Emílio Gomes Sales e o cinema francês; no cenário do cinema baiano,

mobilizamos as relações entre Walter da Silveira e o Clube de Cinema da Bahia e em

Vitória da Conquista, procuramos restaurar os vínculos entre os cinéfilos Pedro Bitencourt,

Fernando Martins, Jorge Luiz Melquisedeque e o Cine Clube Glauber Rocha, sendo que a

análise das trajetórias desses indivíduos, articulados com os espaços de difusão

cinematográfica, e prioritariamente por suas práticas de cinema, permitiu que pudéssemos

estabelecer uma rede de conexões possíveis, o perfazer de um elo de formações e

aprendizados em cinema. O principal fio condutor dessa pesquisa, a memória, constituiu

aqui como o que Cassirer denomina de “rede simbólica”, no sentido de um encadeamento

de nomeações que intermedia as pessoas entre si e com os elementos do universo físico

(CASSIRER, 2005, p.45-49). A constituição dessas práticas culturais, estruturadas em

rede de conexões, assegurou as interligações entre as trajetórias de vida e práticas de

cinema.

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A segunda etapa foi estruturada inicialmente com a apresentação da relação entre

o cinema e cidade de Vitória da Conquista, a exibição, produção e recepção fílmica, isto

atentando para o relato do historiador Rui Medeiros. Logo a seguir, apresentamos as

trajetórias dos cinéfilos Jorge Luíz Melquisedeque da Silva, participante do Cine Clube

Glauber Rocha e um dos idealizadores do Programa Janela Indiscreta Cine Vídeo – UESB,

sendo pertinente ressaltar que esse programa foi um propiciador de ações de cinema de

grande relevância para a difusão dessa arte no Sudoeste da Bahia. Outras trajetórias

apontadas em nosso trabalho foram as de Esmon Primo – também responsável pela criação

do Janela Indiscreta e idealizador da Mostra Cinema Conquista que já se encontra em sua 9ª

Edição; Hélio Flores Filho, proprietário da Locadora de Vídeos CANAL 3, situada em

Vitória da Conquista, Marcelo Lopes, cinéfilo que atuou por mais de dez anos no Janela

Indiscreta e atualmente encontra-se produzindo um documentário audiovisual, Mônica

Medina, amante do cinema, produtora audiovisual, atriz e atualmente professora do Curso

de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, e

Sidicley Coelho Silva, colecionador de filmes e estudante do Curso de Cinema e

Audiovisual da UESB.

Nesse sentido, analisamos as trajetórias desses cinéfilos no campo do cinema

objetivando entender as condições de possibilidade nas quais os mesmos se inseriram no

universo cinematográfico e projetaram suas existências o cinema como elemento primordial

em suas práticas cotidianas. Por fim, explicitamos que os estudos sobre a cinefilia em

Vitória da Conquista, em especial, sobre as trajetórias de formação dos cinéfilos acima

elencados e suas práticas, além de serem relevantes para a análise dos processos

formativos em cinema, possibilitaram a compreensão de como essas práticas se

constituíram ao longo de um percurso histórico e como foram capazes de expressar desejos

e pensamentos próprios, oferecendo ao público conquistense uma parte da história do cinema

de Vitória da Conquista.

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2 UMA DISCUSSÃO TEÓRICA

2.1 CINEFILIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E

CINEMA

A potencialidade das práticas de cinefilia no mundo contemporâneo dispõe uma

diversidade de formulações, portanto requer uma condução conceitual capaz de

introduzir um universo de questões que giram em torno desse termo. A depender de

como serão explicitadas essas formulações, elas podem identificar o funcionamento desse

termo e a posição do indivíduo nesse processo. Isto posto, cabe-nos tratar da inserção da

memória na apresentação e análise dos conceitos de cinefilia aqui empreendidos para

que possamos tomá-la como um dispositivo de análise social3.

Nos processos de formação pelo cinema a memória se apresenta imbricada com os

meios de produção de sentido, socialmente elaborados mediante práticas individuais e

coletivas e suas apropriações pelos sistemas de aprendizados. Como nos sugere a

pesquisadora Mariza Guerra de Andrade:

As relações entre memória e cinema – que não são poucas e não são rasas

– revelam a forte potência desse convívio ambíguo e provocador que

nutre formas de memória social com formas de saber e de arte como o

cinema. Argumenta ainda que as criações e as manifestações artísticas

compreendem uma “espécie de eco” por onde também passa a memória.

Esta, quando vem em excesso ou quando transborda, enfrenta o desafio

de outro campo que interroga e problematiza o seu discurso desmedido,

revelando a tarefa crítica de saberes ou mesmo o braço questionador da arte

que interpela a memória. (ANDRADE, 2012, p. 71).

Diante do exposto, presentificamos uma complexa e desafiadora relação entre cinema

e memória, o que requer um esforço na elucidação do que leva alguns indivíduos a se

tornarem cinéfilos, a construírem uma trajetória permeada por práticas singulares, seguindo

com uma determinada constância, um direcionamento alicerçado no encontro com a arte

cinematográfica, encontro este experienciados nos contextos socioculturais dos quais

fizeram parte e marcaram momentos essenciais de seus percursos de vidas. As questões que

tentamos responder ao relacionar memória e cinema, dizem respeito aos processos

relativos à memória que determinam as lembranças fílmicas e as inserem na construção

da vida dos indivíduos, nos processos formativos e na produção de conhecimento. As

3 É lícito ressaltarmos, que essa é apenas mais uma forma de operar a relação entre memória e cinefilia. Por

seu turno, existem outras possibilidades de articulações e postulações teóricas na abordagem com a memória.

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práticas culturais e a constituição estética de um gosto são concebidas como formas de

expressão de grupos ou de indivíduos, traduzidas por suas trajetórias. Os indivíduos

considerados cinéfilos, circunscritos em ambiências culturais específicas, apresentam em

suas trajetórias formas diferenciadas de contato com os filmes, de assistir, de assimilar, de

interpretar, de lembrar e de resignificar os conhecimentos advindos desse contato.

A cinefilia se configura na tecitura da memória, amalgamada pela trajetória dos

indivíduos que constituíram suas vidas por meio das práticas de cinema. Ao considerarmos

a instância formativa na qual essas práticas aconteceram compreendemos suas múltiplas

possibilidades de instauração expressiva. Tratamos então de aprendizados que se organizam

em uma rede de conhecimentos que são recordados, rememorados e reinventados por esses

indivíduos em um dado tempo histórico. Nesta compreensão, vincular concepções de

memória ás práticas de cinefilia – tais como as produções fílmicas, exibições,

comercialização, produções, estudos, escritas e coleções de filmes – tornam-se fundamental

para entender como ocorrem a transmissão de saberes, o compartilhar de lembranças por

meio de encontros e situações de aprendizagem.

Dentre as várias questões que são discutidas no campo da memória, tomamos um

encaminhamento de compreensão presente na multiplicidade de estudos que dialogam e

instituem uma vinculação entre cinema e memória concebendo-a e dotando-lhe de

significados que se reelaboram e se estruturam a partir de práticas sociais presentes em

uma dada sociedade. A memória, para a vida humana, apresenta-se como elemento

investigativo, dado seu potencial reflexivo. Os pesquisadores e investigadores de diversas

áreas foram instituindo conceitos, diante da emergência em explicar algo que remetia a

compreensão dos modos de ser e estar no mundo. A persistência na preocupação em

adentrar no campo da memória percorreu e percorre até o presente momento os saberes

das mais diversas vertentes do conhecimento.

Portanto, como necessidade premente da existência, a memória social estrutura a

vida das sociedades por meio da linguagem, que nos forma e informa nossas práticas

cotidianas, dotando-as de sentido e significado. Assim, no trato com a memória observamos

pesquisadores inclinados a investigar o seu poder enquanto processo social, e,

identificando-a historicamente dessa forma, a memória insere-se também como base

material e formativa dos indivíduos, como suporte às materialidades dos conhecimentos

possíveis.

Após alguns estudos do campo da memória, faz-se necessário explicitar que existiu

um leque conceitual sinuoso, dado a sua multimodalidade, de pesquisadores que debruçaram

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um olhar mais demorado sobre os estudos da memória. A memória, revisitada pelos

diversos campos disciplinares do conhecimento, convoca a uma incursão pelos fatos

narrados, as imagens guardadas, ao mesmo tempo em que informa que o percurso da vida é

aleatório, descontínuo, flexível às contingências que se impõem no cotidiano dos

indivíduos.

Dentre as várias questões discutidas sobre a memória, faz-se necessário um breve

percurso sobre sua freqüentação, da antiguidade ao mundo contemporâneo. Sob essa ótica, a

memória na Grécia antiga estava no campo do sagrado e encontrava-se sob a proteção da

deusa Mnemosyne, protetora das artes e da história (YATES, 2010). Ao adentrar no período

medieval as reflexões em torno da memória ganham um caráter filosófico, alicerçada na

tradição cristã, na qual Aurélio Agostinho é o primeiro estudioso a abordá-la de forma mais

aprofundada. Em sua obra Confissões, Agostinho apresenta os lugares de memória, que

apreendidos pela mnemotécnica, formam suas imagens e seus conteúdos (AGOSTINHO,

2002). “[...] Agostinho conferia à memória a honra suprema de ser um dos três poderes

da alma: Memória, Intelecto e Vontade, que são a imagem da Trindade no ser humano”

(YATES, 2007, p.71). Dessa forma torna-se fundamental ressaltar que a arte da memória

proveio da Idade Média. Suas raízes mais profundas estavam em um passado venerável. De

tais origens ela se propagou pelos séculos seguintes, ostentando a marca da religiosidade e

da filosofia, combinados com a particularidade da mnemotécnica que lhe foi impingida na

Idade Média

Acompanhando esse breve deslocamento histórico, o pensamento iluminista, ao

definir o sujeito como agente do conhecimento, traz considerações preponderantes para os

estudos da memória no século XVIII. Diante dessa postulação iluminista, o pensador

Immanuel Kant expõe a memória sob os ditames da razão e David Hume concebe a

memória como mecanismo do conhecimento, colocando-a entre o instinto e a educação. Na

segunda metade do século XIX e na primeira do século XX, o filosofo francês Henri

Bergson desenvolveu conceitos importantes sobre a memória, expondo as noções de

intencionalidade e de racionalidade. Nas palavras de Bergson, a crítica sobre o raciocínio,

visto desta forma, não tem valor probatório, ainda não é falso, porque se beneficia dessa

incontestável verdade de que a lembrança se transforma na medida em que atualiza

(BERGSON, 2006, p. 159).

Nos estudos empreendidos pelo sociólogo Maurice Halbwachs, evidenciou- se uma

nova concepção para a memória, que até então estava situada no campo do individualismo e

da subjetividade. Então, postulou que os mecanismos da lembrança e do esquecimento

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são constituídos nos entrelaçados de várias ações e reações, dentre essas questões, ocupa

lugar a memória coletiva como um fenômeno social, construída a partir da inserção no

grupo social e elaborada pelo sujeito, que articula o acervo de lembranças enraizadas na rede

de solidariedade de um grupo (HALBWACHS, 2006). Nos pressupostos teóricos do

historiador Pierre Nora a memória se apresenta como uma reconstrução do passado, calcada

no fluxo de emoções e vivência, e desse modo, cambiante de acordo com o momento atual,

sofrendo transformações e flutuações constantes (NORA, 1993). Somados a essas

concepções torna-se importante a contribuição do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Esse

teórico ajuda a entender como se dão os processos de incorporação e transmissão de

saberes que estão relacionados à memória, ultrapassando as discussões dicotômicas, tais

como indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo, matéria e espírito.

Nesse contexto, temos então nomes relevantes para os estudos no campo da memória

como o pesquisador Henry Bergson que dispôs a memória como portadora de durações

temporais, o que viabilizaria o lidar com as contingências da vida humana. O sociólogo

francês Maurice Halbwachs, que apresentou a concepção de que a memória coletiva é

um fenômeno social construída a partir da inserção dos indivíduos em um determinado

grupo, no qual articula o acervo de lembranças enraizadas na rede de solidariedade do

referido grupo (HALBWACHS, 2006). O historiador Pierre Nora apresentou a memória

como uma reconstrução do passado, colocada no fluxo de emoções e vivências, e desse modo,

cambiante de acordo com o momento atual, sofrendo transformações e flutuações constantes

(NORA, 1993).

Consciente do percurso adotado em nosso trabalho e diante do universo conceitual da

memória lançaremos nosso olhar para as estratégias, percursos e conceitos construídos pelo

sociólogo Pierre Bourdieu. Esse teórico nos ajudou a entender como se dão os processos de

incorporação e transmissão de saberes que estão relacionados à memória, permitindo

ultrapassar as discussões dicotômicas, tais como indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo,

matéria e espírito. Essa opção conceitual foi definida porque entendemos que as opções por

uma prática ou outra não são neutras ou naturalizadas. Isto é, são produtos de uma história

sociocultural, todas as escolhas feitas pelos indivíduos ou pré-disposições são resultado de

condições de socialização específicas que traduzem o pertencimento a uma dada estrutura

social. Nessa vinculação, os processos pertinentes ao aprendizado em cinema, responsáveis

por estabelecer interações objetivas e subjetivas entre os indivíduos inscritos em uma

dada estrutura social impõem a observância das posições que os grupos sociais ocupam.

O formato dessas interações é que permite a compreensão da simultaneidade de espaço e

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tempo e possibilita uma distribuição dos recursos e bens culturais e sociais acumulados nos

percursos das diferentes trajetórias de socialização pelas quais passam os indivíduos.

Nesse sentido, podemos verificar ainda que estritamente relacionada à categoria de

memória, está a de trajetória. O sociólogo francês Pierre Bourdieu propõe, então, que se

considere a “trajetória”, como uma série de posições sucessivamente ocupadas pelo agente

ou pelo grupo, em um espaço em devir e submetido a transformações incessantes. Vejamos,

em linhas gerais, o problema levantado pelo pesquisador francês e que, por extensão,

norteará nossos modos de análise:

A trajetória social define-se como a série das posições sucessivamente

ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em

espaços sucessivos, a mesma coisa valeria para uma instituição, da qual

há apenas história estrutural: a ilusão da constância do nominal consiste

em ignorar que o valor social de posições nominalmente inalteradas pode

diferir nos diferentes momentos da história própria do campo.

(BOURDIEU, 1996, p. 56).

Ao vislumbrarmos essa análise devemos levar em conta os acontecimentos

individuais como alocações e como deslocamentos no espaço social ou mais precisamente

nos estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes tipos de capital que

estão em jogo no campo considerado. Como nos sugere Bourdieu:

Não podemos compreender uma trajetória sem previamente construir os

estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou, ou seja, no

conjunto de relações objetivas que vincularam o agente ao conjunto dos

outros agentes envolvidos no mesmo campo e que se defrontaram no

mesmo espaço de possíveis. (BOURDIEU, 1996, p. 81-82).

À luz dessas reflexões observa-se que trajetórias distintas, imbuídas pelo poder

diferenciador de transmitir o gosto pelo cinema possibilitam maiores condições de decisão no

que se refere ao cinema, a transmissão, permanência e continuidade dessas práticas

cinematográficas. O partilhar dessas experiências duradouras possibilitam um exercício

constante e lapidar de percepção e experimentação estética resultante da ampliação do

olhar e da consolidação de uma competência para ver. Como nos apresenta a professora e

pesquisadora Rosália Duarte, Bourdieu definiu a “competência para ver” como “certa

disposição, valorizada socialmente, para analisar, compreender e apreciar qualquer história

contada em linguagem cinematográfica” (BOURDIEU apud Duarte, 2002, p.13).

Corroborando com esse entendimento, sublinhamos as palavras da pesquisadora Adriana

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Fresquet ao considerar os benefícios dos aprendizados em cinema:

Entendemos que o cinema pode se constituir em agente da educação que

possibilita uma aprendizagem estética, sensibilização da inteligência,

descobrimento de sensações, encontros, conhecimento e reconhecimentos

de diferentes mundos, ideias e culturas, estímulo para sonhar, desaprender o

que foi aprendido para se reaprender com os olhos livres, outras

possibilidades de viver. (FRESQUET, 2008, p. 07).

Ao analisarmos dessa forma observamos que as trajetórias de vida são narrativas de

acontecimentos que os indivíduos realizam apresentando suas ações e condições espaço

temporais, relatando aquilo que consideram relevantes. Os indivíduos selecionam os fatos

por um processo de busca de sentido e inter-relações que sejam compreensíveis para

outros indivíduos. De acordo com Bourdieu esses fatos conectados contam uma história de

vida que vai depender da posição do indivíduo em um determinado campo. Há então,

nesse conceito uma transposição de história de vida para trajetória de vida, que permeada por

eventos sucessivos, ou seja, posições que vão sendo ocupados em um dado campo de

conhecimento, o que é contado será relacionalmente determinado pela posição que os

indivíduos ocupam nesse campo. Bourdieu, enquanto pensador da trajetória individual e,

sobretudo, coletiva, expõe que a mesma “é comandada por intermédio das disposições

temporais, a percepção da posição ocupada no mundo social e a relação encantada e

desencantada com essa posição” (BOURDIEU, 2007, p. 425).

Diante dessas considerações relativas às possibilidades de aproximações

conceituais que envolvem memória e trajetória, e ao observar algumas ações de cinema

desenvolvidas em Vitória da Conquista, percebemos o aflorar de ações e práticas de

cinefilia que se instauraram na cidade e que permanecem reverberando no agir individual e

ou coletivo dos indivíduos pertencentes a essa ambiência. As trajetórias dos indivíduos

envolvidos nessas práticas apresentam um elo entre os elementos formativos em cinema

e a constituição de um gosto. Dessa forma, num processo de mediação, o efetivo

reconhecimento do grau de alcance espaço temporal dessas trajetórias contemplam uma

abordagem voltada para a compreensão de memória enquanto incorporação de saberes e

das relações de sentido que são construídas com a arte cinematográfica e suas

representações simbólicas e expressivas. Como argumenta Farias,

Os fatores que constrangem a lembrança dotam a memória do status de

dispositivo sócio psíquico de fundamental importância no tocante aos

exercícios de doar inteligibilidade às atitudes e seus cenários. De igual

maneira, o mesmo mecanismo cumpre importante tarefa na distribuição

básica à elaboração de novas experiências, as quais jogam um papel crucial

às tipificações e reconhecimentos que propiciam as rotinas diárias. A

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memória participa, neste sentido, das alternativas de integração simbólica e

estas repercutem sobre as especificas formulas de coordenação dos atos

historicamente internos a respectivos equilíbrios de poder nas dependências

mutuas entre pessoas. (FARIAS, 2011, p. 25).

No contexto formativo das práticas de cinefilia, a memória se faz presente no

encontro entre os indivíduos em uma dada ambiência cultural propiciada pelo cinema,

tanto nas escolhas de contemplação e apreciação fílmica, como na expansão dos mais

diferentes formatos de práticas cinematográficas, estas, vistas enquanto fonte de difusão

cultural, estética e prática social, experimentadas por indivíduos ou grupos de

indivíduos. Há, portanto, uma forma de relacionar cinema e memória que pode ser

pensada como resultado das relações entre os filmes assistidos e seus conteúdos, os

discursos produzidos, as ações geradas por experimentações, difundidas e amalgamadas

pela linguagem, pela memória e pelas trajetórias e práticas dos indivíduos que dela fazem

parte.

Norbert Elias, ao realizar seus estudos sobre os indivíduos e a sociedade, aborda

os limites e as formas de relação possíveis entre o homem e a sociedade à qual pertence,

entre a sua condição e as suas possibilidades, entre a vontade e os parâmetros sociais. Em

seu livro A sociedade dos Indivíduos, o sociólogo alemão deixa claro que a sociedade é

formada por indivíduos e entende que estes são constituintes da sociedade – ambos

inexoravelmente imbricados, não sendo possível considerá-los separadamente. Nessa

perspectiva, o reconhecimento dos espaços socioculturais nos quais as práticas de cinema se

encontram presentes, nos inclina a compreender que as trajetórias de formação e as relações

de sentido são construídas nos processos de apreensão/transmissão dos saberes relativos ao

cinema num dado contexto social.

Nesse sentido, nos assinala Elias, “as trajetórias sociais são como planos

emergindo em que há sensos de propósito que se entrecruzam, mas sem finalidade”

(ELIAS, 1994, p. 59). Portanto, os empreendimentos simples e individuais não ocorrem num

vazio de determinações sociais, nem são apenas funções de alguma espécie de necessidade

histórica coletiva e extrínseca. Dessa forma, enquanto Norbert Elias aborda a memória

como um saber incorporado, Pierre Bourdieu amplia essa reflexão, trazendo a compreensão

de como esse saber ocorre e determina sua disposição em campos práticos e

conhecimentos. Desta forma, as reflexões desenvolvidas nos diferentes campos ou

universos sociais nos sugerem o estabelecimento de instâncias de transmissão, visibilização

e legitimação de um fazer específico, que resulta nas distinções, mediante as posições, que

geram os habitus e ao mesmo tempo são geradas por eles. Assim, Bourdieu expõe que,

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O habitus retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição

em um estilo de vida, um conjunto de escolhas de pessoas, de bens e de

práticas, operando como “princípio de classificação, de visão e divisão,

de gostos diferentes”. Essas diferenças de bens, de práticas, de maneiras,

são constitutivas de sistemas simbólicos, com sua linguagem, seus

signos distintivos. (BOURDIEU, 1996, p. 22).

Seguindo as considerações apresentadas logo acima por Bourdieu, o habitus deve

ser pensado como sistema de disposições, socialmente constituídos que instauram o princípio

e práticas características de um grupo. O habitus organiza-se enquanto movimento interativo

entre dois ou mais sistemas relacionais, e esse movimento se completa com o processo de

interiorização de estruturas exteriores, ao passo que ao observarmos as práticas dos

indivíduos buscamos compreender como se relacionam habitus, práticas, trajetórias e

memórias.

À luz das abordagens feitas sobre as concepções de memória e de trajetória até

então apresentadas, partimos do pressuposto que constituir cinefilia é buscar entender a

maneira como as práticas de cinema comparecem enquanto possibilidade de reconstrução de

memórias, ou antes, “é destacá-la como elemento primordial da ascese cinematográfica,

partícipe dos processos socioculturais que impulsionaram um dos discursos artísticos que

marcou o século XX” (SOUZA, 2012, p. 56). Seria desse ponto de vista um discurso

imagético específico, uma maneira de elaborar modos de aprendizado em cinema que

se substancia nos formatos dados à cinefilia ao longo do referido século, criando outros

demarcadores estéticos para justificar sua existência no século atual. Como nos sugere

Baecque, “Se o cinema é a metáfora das relações comunitárias no século XX ocidental, a

cinefilia seria sua versão clandestina, seu prolongamento individual sob a forma de um

ritual íntimo” (BAECQUE, 2010, p. 34).

Etimologicamente, a cinefilia é o amor pelo cinema. O cinéfilo não é, no entanto

exatamente um amador erudito como o é, na maior parte do tempo, o amador de outras artes

(teatro, pintura, música, etc.). Nas palavras de Aumont, pode-se definir essa relação de duas

maneiras, da neurose do colecionador e do fetichista. Em uma vertente, sua paixão é

acumulativa, exclusivamente, terrorista; favorece o elitismo e o agrupamento em seitas

intolerantes (o cinema propôs alguns retratos de cinéfilos dessa espécie); em outra vertente,

“a cinefilia é uma cultura fundada na visão e na experiência estética, oriunda do amor da

arte cinematográfica, uma das versões do simples amor da arte. Assim, do ponto de

vista psicanalítico, pode-se considerar que a cinefilia está fundada na pulsão invocante. A

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relação com seu objeto vêm da fascinação”. (AUMONT, 2003, p. 12).

Nesse entendimento de cinefilia é relevante observar que, na atualidade, os modos de

criação, produção e exibição comparecem como resultados do rápido avanço tecnológico

que imprime à arte cinematográfica outros contornos, o que tem gerado dinâmicas diferentes

de entrada na cultura audiovisual, com finalidades que muitas vezes se prendem a desejos

que já podem ser realizados. Como nos sublinha Levy, um exemplo a ser destacado é:

A utilização da internet como possibilidade de acesso ao filme: o seu uso

tem aumentado consideravelmente os processos cognitivos, através do

acesso e uma riqueza de dados multimídia em tempo real, multiplicando

dessa forma nossa percepção e nossa memória. (LEVY, 2011, p. 19).

Deste modo, compreende-se essa predominância da imagem em movimento em um

contínuo que vai ganhando novas formatações em um breve espaço de tempo, compondo

em maior velocidade a essência da vida de determinados indivíduos, na condição

inicialmente de espetáculo de variedade, entretenimento ou para logo em seguida se

transformar em objeto de arte. Assim sendo, torna-se fundamental discernir como a

cinefilia se apresenta na atualidade, também incorporada a modos diferenciados de ser

cinéfilo em decorrência principalmente das infinitas possibilidades que as novas

tecnologias têm transportado para o olhar e o fazer cinema no século XXI.

Mobilizando, pois, o esforço em ampliar o universo de significados, urdidos na

cultura cinematográfica, tomou o conceito de cinefilia como uma forma de apreciação

artística, voltada para uma maneira peculiar de ver cinema. Isto, aliado ao desenvolvimento

de um gosto particular que permite ao indivíduo um ato de aproximação máxima com o

cinema, seus filmes, das percepções e sensações provocadas pelas imagens em movimento;

tudo isso aliado a uma plasticidade no seu modelo de produção e recepção. “A arte

cinematográfica, não é apenas técnica, mas todo o sistema que envolve o filme, o

público e a crítica, um processo de circulação de imagens onde se atuam os códigos

internalizados por todos os parceiros do jogo” (XAVIER, 2008, p. 176). Dessa maneira,

o entrelaçamento de práticas tecidas na cultura cinematográfica é capaz de instituir gostos

que são evocados como matriz de recepção da obra de arte, isto, numa luta constante de

afirmação, aliados ao prazer de ver os filmes, de criticá-los, submetê-los a análise das mais

diversas. São gostos individuais, expressos por meio das vias sensíveis da arte e da

imaginação criadora.

Nesse contexto, a cinefilia tomada como uma das expressões resultantes da

constituição de um gosto institui certos rituais realizados por indivíduos que ao longo

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de suas trajetórias empreenderam e empreendem esforços para alimentar a paixão pelo

cinema, ou antes, alimentaram um amor desmedido. Assim, Nogueira postula que:

No mundo do cinema, a cinefilia, além de significar gosto ou

interesse por filmes, está relacionado a atitudes de estudo e de

investimento intelectual. Nesse contexto, ser cinéfilo implica ter

alguma intimidade com a sétima arte, alguma leitura sobre cinema,

dos atores e certo conhecimento da técnica cinematográfica, dos

diretores, cinematografias, etc. (NOGUEIRA, 2010, p. 23).

No sentido exposto acima, observamos que nas trajetórias de vida a incorporação

de visões de mundo é redimensionada para práticas específicas. É no aprofundamento dos

demarcadores sociais desse amor muitas vezes incondicional pelo cinema, aliado às

práticas, que a palavra cinefilia ganha importância, estabelecendo para si características

específicas no processo de apreciação, veiculação e transmissão de um gosto. Torna-se

significativo lembrar que há uma tendência cada vez maior dos indivíduos em apreender o

cinema sob diversos ângulos, na medida em que o ato de assistir filmes vai assumindo

outros contornos e significados. Os processos de transformação e inovação nas estruturas

econômicas, as apropriações do capital e a mobilidade de consumo propiciado pelas

inovações no âmbito da indústria cinematográfica possibilitam às práticas de cinefilia

continuidades e rupturas, são tendências conceituais e práticas que gestadas em

determinada ambiência cultural, evidenciam uma multiplicação das concepções e atitudes

cinéfilas.

Nesse entendimento, a cinefilia ao longo da história foi se legitimando como

resultado de um ambiente de efervescência cultural, resultante do desejo de alguns indivíduos

em explorar a essência cinematográfica, transformando-a em entretenimento, paixão, estudo,

crítica e práticas. Como expõe Baecque,

O objeto histórico “cinefilia” oferece essa possibilidade de significação

com generosidade: a cinefilia é sem dúvida uma cultura construída em

torno do cinema, um cruzamento de práticas historicamente

contextualizadas, atitudes historicamente codificadas, tecidas em torno do

filme, de sua visão, de seu amor e de sua legitimação. (BAECQUE,

2011, p.39).

Ao se falar em cinefilia abordamos um espectador que se diferencia dos demais

espectadores. Desde os primórdios do cinema os filmes afetavam de alguma maneira em

especial esse espectador, e com o cinema sonoro não foi diferente, a existência de um

impacto psicológico diante de alguns filmes ou mesmo o desejo de assistí-los mais vezes

foi sempre visível. A cinefilia e o seu cerne conceitual envolvem múltiplos aspectos, talvez

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pela aproximação produzida pela presença de indivíduos fortemente marcados por esse

cenário de imagens em movimento. Pode-se inferir então, que o fenômeno da cinefilia é

algo mais complexo do que o simples apreciar de filmes, são espectadores que por um

processo de recepção intensa, trazem consigo a convicção de que realmente é no apreciar

desses filmes que se sentem realizados em um dos planos de suas experiências de vida.

Podemos pensar as práticas cinéfilas como campo de estudos e discussões que vão

oferecendo novas interpretações a essa linguagem artística no contexto social. Nessa

dimensão, tomamos inicialmente a cinefilia em uma projeção crescente de acesso,

disposição e consumo fílmico, implementados por recursos que são disponibilizados

globalmente pela indústria cinematográfica, entendendo as condições de captação e exibição

de imagens, demarcadas pela cultura das grandes exibições de filme e por meio das práticas

cineclubistas, alicerçando a simultaneidade de ações de cinema, dispostas em diferentes

tempos e espaços. Evidentemente uma abordagem global do cinema, enquanto experiência

estética e prática social, o mantém como momento singular do fazer humano e sua

existência material pode ser fonte renovada de conhecimento.

Portanto, a análise das trajetórias de cinéfilos permite adentrar nos procedimentos que

envolvem a cinefilia como prática cultural distinta, tecida pelos encontros e aprendizados

proporcionados pela cultura cineclubista, seus trânsitos e os percursos dos indivíduos que a

compuseram, a forma de pensar, de se expressar e se posicionar na sociedade, pois os

discursos sobre o amor pelo cinema, pelos filmes vistos e as discussões realizadas sobre

eles vão modelando práticas culturais diferenciadas. Diante disso, comentar os filmes

assistidos em cineclubes, cafés e espaços de arte, escrever sobre eles, colecioná-los,

comercializá-los e avivar a importância dessas práticas no cotidiano dos indivíduos se

tornou essencial para a difusão da cultura cinematográfica. Acerca disso, afirma Baecque,

Em outras palavras, é um amor irrestrito pela arte, um amor louco pelo

objeto artístico que não necessita a priori de razão para que possa existir, e

comentá-lo com freqüência é mantê-lo vivo e constante, numa espécie de

discurso apologético que o crente dirige a si próprio e que, se tem pelo

menos o efeito de redobrar a sua crença, pode também despertar e

chamar os outros à crença. (BAECQUE, 2011, p. 34).

Nesse entendimento, as práticas de cinefilia se estruturam a partir de um gosto, um

culto realizado por indivíduos situados em lugares, pertencentes a determinadas estruturas

sócioculturais e históricas. Mas também como uma atividade dotada de intenções e

interesses que podem se revelar na medida em que as relações entre os indivíduos vão

se estabelecendo e o ato de assistir filmes continuamente vai se organizando em uma

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cadeia produtiva, um relicário de imagens a serem guardadas, lembradas, reproduzidas e

reafirmadas por meio de ações de expansão. Alain Bergala, ao tratar do amor pelo cinema

expõe:

Todos os cinéfilos se recordam dos filmes que inscreveram em seus corpos

o amor pelo cinema. Esses filmes não têm necessariamente uma relação

direta com o cinema que viriam a apreciar mais tarde. [...] Parte de uma

construção biográfica de seleção e reconstruções das situações que foram

em algum momento de suas vidas vivenciadas e que marcam a possibilidade

também de ultrapassar essas vivências, boa ou não. (BERGALA, 2008, p.

59).

Dessa maneira, mesmo diante dos novos desafios que se impõem à produção, a

circulação e ao consumo da arte cinematográfica na atualidade, temos a permanência do

seu poder de renovação das práticas de cinefilia, seus aprendizados, aliados a um culto

singular de reverenciar imagens que impactam as trajetórias de determinados indivíduos.

Nas palavras de Bourdieu,

Os gostos efetivamente realizados dependem do estado do sistema dos

bens oferecidos, de modo que toda mudança do sistema de bens acarreta

uma mudança dos gostos; inversamente, qualquer mudança dos gostos

resultante de uma transformação das condições de existência e das

disposições correlatadas é de natureza a determinar, quase diretamente,

uma transformação do campo da produção, facilitando o sucesso, na luta

constitutiva deste campo, dos produtores mais bem preparados para produzir

as necessidades correspondentes às novas disposições (BOURDIEU, 1996,

p. 216).

Diante disso, no contexto de ampliação de gostos e referendando o enunciado de

Bourdieu, e ao examinarmos alguns dicionários especializados é possível encontrar cinefilia

como expressão maior da construção de um gosto, que muitas vezes se coloca como um

ritual realizado por indivíduos que ao longo de suas trajetórias alimentaram a paixão pelo

cinema. Nogueira comenta que,

No mundo do cinema, a cinefilia, além de significar gosto ou interesse

por filmes, está relacionada a atitudes de estudo e de investimento

intelectual. Nesse contexto, ser cinéfilo implica ter alguma intimidade com a

sétima arte, alguma leitura sobre cinema e um certo conhecimento da

técnica cinematográfica, dos diretores, cinematografias etc. (NOGUEIRA,

2010, p.19).

Na compreensão de cinefilia aqui explicitada, as trajetórias de alguns indivíduos

revelam a incorporação de visões de mundo que são construídas e redimensionadas no

aprofundamento dos demarcadores sociais desse amor pelo cinema. A palavra cinefilia

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ganha importância, estabelece para si características específicas no processo de

apreciação, veiculação e transmissão de aprendizados. Assim, os indivíduos manifestam

identificações diante da tela de cinema, proporcionando legitimidade às suas práticas

cotidianas, são expressões sócio-culturais, alicerçadas no prazer da visualização das

imagens fílmicas. Esse prazer reverbera tanto por meio da razão quanto das emoções,

dualisticamente se circunscrevem e se disciplinam, ultrapassando os limites determinados

pelo tempo.

As práticas cinéfilas vão se modificando como um fenômeno em expansão e em

decorrência das novas alternativas de estar no cinema, isso tem gerado uma interpretação

própria do poder de percepção do indivíduo cinéfilo. Ao reverter essas mudanças para o

efeito dos filmes assistidos, os indivíduos se mobilizam em torno da afetividade nos

encontros que vão se estabelecendo ao longo de suas trajetórias. As vivências culturais

desses indivíduos amantes do cinema encontram-se fortemente marcadas por memórias

fílmicas que interessam a elas com tamanha intensidade que não se desvinculam do seu ser

e estar no mundo. A percepção dessa intensidade afetiva é a força motriz que preenche de

significados a experiência do contato com o cinema; mediada por uma paixão, deixa de ser

apenas uma tendência passageira e passa a ser a própria partilha do indivíduo consigo

mesmo e com a sociedade na qual se encontra inserido.

Nessas circunstâncias, a imagem do cinéfilo tanto pode corresponder à possibilidade

de individualização dos grupos humanos em relação as suas escolhas, como pode

reafirmar o alto grau de compartilhamento que a arte cinematográfica pode provocar.

Com efeito, a cinefilia se caracteriza como um momento particular de amor pelo cinema e

se expressa principalmente em práticas sistemáticas objetivando a difusão irrestrita desse

amor por meio do reconhecimento de que só esse amor individualizado, por si só, não é

suficiente, exigindo-se um equacionamento coletivo dessas práticas. Daí a

legitimidade em rememorar as trajetórias dos indivíduos que buscaram experimentar essa

equação no coletivo, tornarem acessíveis a outros indivíduos a paixão internalizada pelo

cinema, resultante de um aprendizado contínuo do olhar. A aquisição de uma “competência

para ver” permite a outros indivíduos que também amem o cinema, que façam a passagem de

uma visão de mundo para outras visões imagéticas de outros mundos a serem

descobertos no contato com a arte cinematográfica.

2.2 ENCONTROS DE CINÉFILOS NO UNIVERSO CINEMATOGRÁFICO

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O movimento cinematográfico dos últimos 100 anos tem desvendado a força e ao

mesmo tempo as modificações que a cinefilia instaurou no universo do cinema. A despeito

da relevância assumida pelos cinéfilos nesse movimento, cumpre ressaltar que o cinema

considerado clássico foi absorvido pela experiência da cinefilia, ou seja, os grandes

cinemas do século XX, a exemplo do francês, o italiano, o inglês, sempre estiveram

ligados a uma produção e circulação fílmica, análises críticas com publicações em diversas

revistas de cinema publicadas em vários países.

O cinema clássico ganhou destaque nas primeiras décadas do século XX, se

desenvolveu como indústria principalmente em território americano, com destaque para

Hollywood, que nesse período produziu um cinema como entretenimento de massa. “O

aparecimento e a instalação definitiva do cinema falado, a consolidação do sistema industrial

maior, a de Hollywood, solidificam a situação, puxam-na para o lado de uma normatividade,

de essência clássica

– mas um clássico de massa” (AUMONT, 2008, p. 31). Esse cinema se afirmou

também com uma narrativa contínua, crescente, com início, meio e fim e o espectador

contava com o fácil entendimento da obra, esquecendo-se que o filme era parte de um

processo artístico e cinematográfico. Como afirma Lipovtsky, a despeito desse momento do

cinema,

A segunda fase, que põe em cena uma modernidade clássica, estende-se do

começo dos anos 1930 até os anos 1950: é a idade de ouro dos estúdios,

a época em que o cinema é o principal divertimento dos americanos, em

que ele se torna no mundo inteiro o lazer popular por exigência. Isso se

deve, antes de mais nada, à revolução técnica do cinema falado que,

desbancando rapidamente o cinema mudo, obriga os criadores, de início

reticentes diante do que temem vir a ser um simples teatro filmado, a

domesticar essa nova linguagem e a inventar para ela uma gramática.

(LIPOVTSKY, 2009, p.19).

Destacamos o fato de que a existência de uma atividade crítica sobre a produção

cinematográfica proporcionou à história do cinema um formato de registro que é

vivenciada pelos cinéfilos e evocada quando não se fazem presentes, favorecendo a

sucessão dessa prática crítica. Entrementes, não é possível falar em cinema sem remontar

as práticas advindas da cinefilia francesa, impar no seu formato e, sobretudo pelo alcance

de significação no âmbito mundial.

Nesse aspecto, o cinema francês tornou-se representante de um dos mais

reveladores movimentos culturais do século XX, originado de observações atentas à

produção, recepção e o exercício da crítica cinematográfica. Em um breve recorte

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cronológico, temos já na década de 1920 uma tentativa por parte dos intelectuais franceses

em legitimar o cinema como arte. A França, berço do cinematógrafo, também teve

participação importante na consolidação do cinema como arte e como cultura. Ainda nessa

década, “uma Avant-Garde que buscava escapar da forma narrativa tradicional deu novo

contorno ao modo de ser do cinema francês” (DUARTE, 2009, p. 27). Mas, “foi somente a

partir do final de 1940 que uma geração ávida por filmes conseguiu elevar o cinema a uma

posição antes impensável junto ao panorama das artes” (BAECQUE, 201, p. 39).

Ainda no período de 1940, observamos uma forte influência do Neorrealismo

Italiano, movimento cultural que surgiu na Itália sendo que suas maiores expressões são

demarcadas pelo cinema e tem como seus maiores representantes Roberto Rosselini,

Victorio de Sica e Luchino Visconti, fortemente influenciados pelo realismo poético

francês, movimento que se caracterizou pela utilização de elementos da realidade na ficção,

ganhando em alguns momentos um caráter documental. Diferentemente do cinema

tradicional, o neo-realismo italiano procurou representar aspectos sociais de um momento

histórico, prevalecendo uma ideologia estética, mas também política, sendo difundida por

seus realizadores no final da Segunda Guerra Mundial, durante o processo de libertação

do regime fascista e afirmando-se como movimento de resistência, teve como período mais

produtivo os anos de 1945 a 1948.

Como relatado anteriormente, durante o movimento estético do neo- realismo

italiano, a cinefilia teve seu desenvolvimento mais vigoroso demarcado pelos anos de 1950 a

1960, na França, por um grupo de jovens aficionados pelo prazer em assistir, analisar e

escrever sobre filmes; são diretores, atores, estudiosos e espectadores apaixonados pelos

filmes, que se debruçaram sobre toda uma cadeia receptiva de consumo que envolveu a

produção de filmes, enfim, sobre um movimento artístico que não vai se desvincular de um

aparato e de uma crítica de cinema, expansionista, difundida pela diversidade de artigos

publicados em revistas especializadas, de forma constante e vigorosa. A história do amor

pelo cinema e como ele se constituiu na cultura francesa, dos anos 1950 a 1960, revelou

uma maneira de amar o cinema que possibilitou o encontro de muitos jovens, reunidos por

meio de cineclubes e revistas de cinema, como a Cahiérs do Cinemá4, uma das mais

4 Revista mensal, fundada em abril de 1951, por André Bazin, Jacques Doniol-Valcrozs e LoDuca. Ela

acolheu várias correntes críticas, e algumas tiveram a preocupação teórica marcada: de 1954 a 1958 mais ou

menos, houve a “política dos autores”(Truffaut), e os debates que ela suscitou; de meados dos anos de 1960

ao início dos anos de 1970, a revista sofreu a influência da corrente estruturalista, que levou uma redação

inteiramente renovada a ser interessar, sucessivamente, pela crítica cinematográfica (Richard e Barthes),

pela semiologia em seu início (Metz), psicanálise lacaniana, enfim, pelo estrutualmarxismo de Authusser e de

seus discípulos; o engajamento político radical que veio a seguir afastou-se da pesquisa teórica. Na década de

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relevantes publicações de crítica cinematográfica. Alguns desses jovens ganharam

visibilidade na conquista de papel central no espaço cinematográfico por meio do

movimento da Nouvelle Vague, tais como “François Truffaut, Jean Luc Godard, Éric

Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol, indivíduos atuantes, unidos por práticas

similares, conseguiram instituir a cultura da cinefilia como prática alicerçada por uma visão

e uma integração do corpo e do olhar” (DUARTE, 2009, p. 27).

Foto 2: Revista nº 62 - Cahiérs Du Cinemá

Fonte: Cineclap.free.fr

Nesta dimensão constitutiva da cinefilia, observa-se que as formações humanas

direcionadas para o cinema asseguraram as idéias difundidas pela Nouvelle Vague, uma

tendência dominante em um período de intenso vigor de produção artística que contribuiu

para a constituição de uma crítica cinematográfica forte e ativa, permitindo sua expansão

mundial. Os diretores citados acima, antes mesmo de serem reconhecidos como expoentes

da Nouvelle Vague francesa, já haviam começado, desde o início dos anos 1950, a pensar e

escrever sobre cinema na revista-ícone Cahies Du Cinéma, ainda apenas como críticos. “As

reflexões desses jovens foram cruciais não só para sua formação cinematográfica, mas para o

cinema que cada um viria a realizar” (FIALHO, 2010, p.11).

Assim, assumindo uma importante fase para o cinema mundial, a critica

cinematográfica constitui “seguramente um dos modos mais fecundos do aprender a ver

cinéfilo” (BAECQUE, 2011 p.53). Além disso, para a cultura da cinefilia a Nouvelle Vague

1980, a revista difundiu novas abordagens importantes (Schefer, Deleuze, Legendre, Rancière), porém, sem

produzir ela própria uma abordagem original. Há uma década, a revista parece ter voltado de modo mais

frontal à sua primeira vocação, a crítica de filmes. (AUMONT, 2003, 29).

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se configura então em laboratório por excelência de uma estética do fragmento, da

“incorporação do acaso na filmagem, da polifonia narrativa e de uso de formas até então

atribuídas ao documentário, às artes visuais, ao ensaio e a literatura” (LIPOVETSKY, 2009, p.

14).

Tais práticas possibilitaram a criação de um número considerável de salas de

projeção e arquivos de pesquisa, a exemplo da Cinemateca Francesa

Desta forma, o cinema francês foi ocupando um espaço de visibilidade, propiciando

intensas discussões sobre essa cultura por parte de intelectuais das mais diversas áreas de

atuação. Como assevera Baecque,

A cinefilia, no início dos anos 1960, passa a ser uma verdadeira escola

paralela. Cerca de vinte periódicos de cinema surgem em uma década,

ampliando o público dos “gulosos óticos”. [...] A cinefilia, fundada em três

verdades – a sedução, o registro, a projeção – realmente foi adquirindo, aos

poucos, um lugar cativo na cultura francesa. (BAECQUE, 2011, p. 46).

A respeito de tais evidências, salientamos que essa paixão marcou toda uma geração

de intelectuais entre o fim da II Guerra Mundial e as revoluções contra culturais que

ocorreram em 1968, bem como seus desdobramentos, a saber, a reconstrução da própria

cultura francesa. De acordo com Baecque,

André Bazin, incansável animador da cena cultural, bem como crítico e

teórico de cinema, está no coração da cinefilia parisiense do pós-guerra.

Mas o que constitui a originalidade dessa cinefilia é, sem dúvida, o

discurso crítico que a acompanha. Os filmes são assistidos

incansavelmente, comentados da mesma forma, seus autores são

apresentados, pessoalmente ou por intermédio das primeiras filmologias

sérias que enxameiam as revistas e as numerosas fichas publicadas pelas

instituições cinéfilas que tentam matar uma insaciável sede de

conhecimento. Aliando a visão ao discurso, são, portanto os cineclubes

que aparecem como os desbravadores dessa cultura de cinema em plena

renovação. (BAECQUE, 2009, p.58).

Foto 3: Henri Langlois

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Fonte: www.travessacinematografica.com.br

Na esteira desse processo, o cinema tem papel preponderante: são centenas de

cineclubes abertos, principalmente em Paris, que já se apresentava como uma cidade

importante para a cinematografia mundial. Num certo sentido, essas ações ganharam também

uma dimensão institucional com a criação da Cinemateca Francesa, por Henri Langlois,

como já fora exposto, este era um indivíduo que gostava de exibir filme e desejava um

prolongamento da vida útil dos filmes assistidos, de todos os gêneros e formatos. Os

cinéfilos franceses tinham Langlois como referência para alicerçar e dar continuidade as

suas práticas. Apaixonado por cinema, Henri Langlois era um inveterado colecionador de

filmes, fundou uma espécie de cineclube para poder dar-se ao prazer de exibir as obras de

sua coleção, e que posteriormente se estruturaria a Cinemateca Francesa, uma das mais

importantes instituições culturais do mundo.

Foto 4: Cinemateca Francesa

Fonte: viajesaparis.org

Renomados cineastas franceses, nas décadas de 1950 e 1960 adquiriram boa parte de

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sua aprendizagem fílmica nas sessões realizadas na Cinemateca. Henri Langlois desde

criança apresentava uma intensa paixão por cinema e, na primeira oportunidade, foi à Paris,

berço do cinema, atuar como historiador, arquivista e preservador da memória

cinematográfica mundial. “Foi o seu trabalho na Cinemateca que alimentou e tornou

realidade a formação de uma geração de cinéfilos comprometidos em amar e dedicar-se

ao cinema” (XAVIER, 2001, p.57). Assim sendo, a arte de ver cinema revolucionou a forma

de se escrever sobre essa arte, difundindo essa prática de maneira irrestrita pelo mundo.

Daí ser possível dizer que há um cinema antes e um depois da Cahiers du Cinemá:

instaurando por um longo período, o desejo entre os jovens franceses em escrever também

sobre cinema e fazer crítica cinematográfica.

Isto posto, esclarecemos que, a partir de um determinado momento, em outros países,

surgiu também toda uma geração que pensou e demarcou o espaço da arte

cinematográfica como algo essencial em suas vidas: o desejo de se formar, de conquistar

algo que buscavam na tela foi elemento preponderante e ao mesmo tempo provocador no

definir de suas práticas, o que permitiu que toda uma geração se educasse e se

formasse, de forma independente, diferenciando-se dos espaços de aprendizagem, ou

seja, se legitimando enquanto cultura da época. Toda essa geração acabou expandindo uma

forma de cultura, pois se permitiram pensar o mundo e escrever sobre o modo como o

viam, criando uma nova cultura.

Nessa direção trilhada pela cinefilia francesa, podemos verificar como se deu o

surgimento do cinema, cineclubes e cinematecas no Brasil e como o surgimento destes

últimos contribuíram de forma exemplar para a constituição da cinefilia brasileira, que se

instaurou ao longo do século XX. Ao considerar as configurações da produção e exibição da

arte do cinema nas primeiras décadas do século XX, em um espaço temporal de avanço

crescente da indústria do cinema, parece-nos pertinente falar da formação de um público

apreciador, conhecedor e por que não produtor de filmes, em certa medida na tentativa de se

contrapor ao modelo hegemônico americano de se fazer cinema. Além do mais, essa é uma

reflexão fundamental para se compreender o cineclubismo e a cinefilia, qual seja a relação

entre a consolidação de uma forma de se conceber o cinema e o público que foi se vinculando

ao mesmo.

A preocupação com a história do cinema é um elemento marcante, destacando

um espírito de conciliação com todos os gêneros artísticos produzido no mundo. Desta

forma, a cinefilia no Brasil ganhou força no momento em determinados indivíduos

selecionaram experiências de cinema, imbuídos da vontade de encontrar

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motivos distintos para o valor da cinematografia produzida, sua crítica e

seus espaços de exibição.

O modelo de cineclube que se propagou por todo o mundo foi o do cineclube

francês, o qual deu origem ao termo cinefilia. Os cineclubes se espalharam pelo mundo,

transformando-se em espaços de saber, de ampla difusão da arte cinematográfica. A

América Latina, provavelmente, tem a experiência mais extensa e interessante fora da

Europa. A propagação do cineclubismo começou por volta dos anos 1930, mas é depois

da Segunda Guerra Mundial que teve seu maior impulso. Nesse contexto, a influência do

modelo francês de cineclube, foi de suma importância para a disseminação da cultura

cinematográfica em boa parte a América Latina.

A despeito dessa constatação, a história do cineclube no Brasil teve como marco

a criação do Chaplin Club5, em junho de 1928, no Rio de Janeiro. O Chaplin Club elaborou

estatutos e proporcionou ao público um funcionamento constante e coerente, influenciando

toda uma geração ligada ao cinema. Com a fundação deste cineclube, podemos observar

um início da atividade cineclubista no Brasil, pois só então haverá um movimento

sistemático de exibição e discussão de filmes, que consequentemente disseminou

uma cultura cinéfila no país.

No ano de 1940, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Lourival

Gomes Machado6

fundaram o Clube de Cinema de São Paulo. A iniciativa partiu do

meio acadêmico, da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, e está

intimamente ligada a um momento de grande agitação cultural na capital paulista.

Foto 5: Paulo Emílio Salles Gomes

5 No Brasil, o Chaplin Club tornou-se o paradigma daquele modelo de club de cinema surgido na França. É

considerado o primeiro cineclube a ser organizado no país e, num dado momento, passa a ser visto como mito de

origem da cultura cinematográfica no Brasil. Seus dois principais idealizadores, Octavio de Faria e Plinio

Susskind Rocha, também acabariam se transformando em referencias fundamentais para o movimento e para

os estudiosos e teóricos de cinema brasileiro. (QUENTAL, 2010, p.32). 6 Como sublinha Souza, “Os Cine Clubs ganham uma estrutura próxima ao modelo europeu – o conceito de

cineclubismo que se estabelece após a Segunda Guerra Mundial. As exibições no Club de Cinema de São Paulo

eram bem informais, aconteciam na Faculdade de filosofia e até mesmo na própria casa de Paulo Emílio, ou na

de Lourival Gomes Machado”. (SOUZA, 2002, p.140-149).

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Fonte: revistadecinema.com.uol.br

Além disso, vale salientar que com o fim do Estado Novo e o início do Populismo

Democrático, em 1946, o Clube de Cinema, após um curto tempo de inatividade, retomou

suas atividades, juntamente com uma série de cineclubes que surgiram por todo o país,

caracterizando-se então, de fato, como um movimento expressivo. Outro componente

fundamental para a ampliação desse movimento foi o papel desempenhado pela Igreja

Católica que, desde 1936, mantinha o Serviço de Informações Cinematográficas, de onde

eram divulgados boletins com as cotações morais dos filmes exibidos no Brasil.

Torna-se necessário ressaltar que a filiação brasileira à tradição francesa em

cinefilia se deu com as práticas cinéfilas de brasileiros que entraram em contato com essa

tradição e a difundiram no Brasil. De acordo com o pesquisador José Inácio de Melo

Souza, Paulo Emilio foi contratado em 1947 para representar o Clube de Cinema na

Europa e participou de uma programação em Cannes: o Congresso Internacional de

Cineclubes. A necessidade desse tipo de intercâmbio sempre esteve presente na mente dos

integrantes do Clube de Cinema de São Paulo. No parecer de Souza

Além dos contatos com entidades europeias, Paulo Emílio foi

intermediário para as compras de filmes na Cinemateca Francesa. É

quase certo que conhecesse o secretário-geral [Henri Langlois] da

Cinemateca Francesa desde antes da guerra. Em 1946-47 a amizade se

estreitou com a constante presença no Cercle Du Cinéma e, depois, no

7 Avenue de Messine, sede da Cinémathèque Française. Tornou-se sócio

da sociedade Amis de Ia Cinémathèque. Langlois tratava Paulo por “meu

amigo”. (SOUZA, 2002, p. 300).

Percebemos melhor as relações estabelecidas entre Paulo Emílio Sales, Henri

Langlois e o modelo francês de pensar e praticar o cinema quando nos atentamos para a

formação do acervo da Filmoteca do Museu de Arte Moderna, composto por três aspectos

cinematográficos: uma vertente clássica, formada por Paulo Emílio; uma de vanguarda,

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iniciada com a compra dos filmes por Maya Deren, e uma terceira, a de filmes de arte, de

forma a integrar o acervo tanto pcitórico quanto de imagens em movimento, para o qual

Paulo Emílio também deu a sua contribuição. Em 1949, o Clube de Cinema de São Paulo

uniu-se ao Museu de Arte Moderna - MAM, transformando-se em Filmoteca do MAM,

embrião da futura Cinemateca Brasileira. Na esteira desse processo, o movimento cultural

em torno do Clube de Cinema da Filmoteca estimulou intensamente o desenvolvimento do

cineclubismo no Brasil. Ratificando o crescimento desse movimento, o Museu de Arte de

São Paulo - MASP organizou em 1950 o Congresso Brasileiro de Cineclubes.

Foto 6: Cinemateca Brasileira

Fonte: culturadigital.br

Neste processo histórico a experiência brasileira seguiu este mesmo padrão, com

a presença de cineclubes nos anos de 1920 até a fundação da Cinemateca Brasileira, em

São Paulo, nos anos 1950, seguido da criação da Cinemateca do MAM no Rio de Janeiro.

Como nos apresenta Ismail Xavier,

Se a Cinemateca foi durante quase uma década o centro das preocupações

de Paulo Emílio isto não importou numa redução do pensamento ao miúdo

do cotidiano da instituição especializada. No horizonte intelectual sempre

esteve presente a ideia do uso contínuo do acervo acumulado. Para ele,

as imagens estavam lá, na área central da cidade ou no Parque do

Ibirapuera, para serem estudadas, para circularem como alimento

cultural, fazendo-a florescer. (SOUZA, 2002, p. 442).

Cinéfilo como poucos, Paulo Emílio Sales Gomes jamais se contentou em ser

simplesmente um espectador, pois, além de ter um papel preponderante na consolidação de

uma expressão cinematográfica no Brasil, ele transformou a Cinemateca em um espaço

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fundamental para a continuação das atividades cineclubistas e cinéfilas7. Em 1973, Paulo

Emílio Salles escreveu o clássico ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, no qual

fez um percurso histórico do cinema brasileiro, disposto a revelar uma dinâmica cultural de

grande interesse, porém sempre marcado pela mesma proposição: a do subdesenvolvimento.

Seguindo o entusiasmo propositivo na área da cinematografia brasileira Salles e

outros que comungavam da mesma concepção, foram os difusores de uma concepção de

cinefilia que se consolidou no Brasil entre jovens frequentadores de cinema do Rio de

Janeiro e São Paulo, entre o final dos anos 1950 e o início dos 1960. Temos, portanto,

uma breve recomposição de práticas cinéfilas e seus desdobramentos no Brasil, o que

nos auxilia compreender as razões pelas quais ela atravessou diferentes gerações de

espectadores e ainda se mantém viva em certas ambiências culturais.

Para referendar as colocações sobre a cinefilia e os processos de aprendizado em

cinema temos a pesquisa desenvolvida pela professora e pesquisadora Rosália Duarte.

Rosália Duarte é doutora em Educação pela PUC - Rio de Janeiro. Em sua tese de

doutorado intitulada Filmes, amigos e bares: a formação de cineastas na cidade do Rio de

Janeiro, na qual, analisa as condições sociais de produção dos profissionais de cinema, além,

de lançar seu olhar ao ambiente social e cultural que envolveu a socialização de

cineastas inscritos em um setor geracional específico.

Seu estudo validou a tessitura das formações cinéfilas, que na maioria dos casos

antecipam uma formação profissional específica em cinema, ressaltando o impacto de

uma aprendizagem empreendida por jovens brasileiros de várias gerações em cineclubes e

cinematecas, entre eles, críticos de cinema, cineastas consagrados, artistas, políticos e

militantes de organizações de esquerda. Assim, os clubes frequentados por esses cinéfilos

exibiam filmes proibidos pela censura ou títulos de menos interesse para o circuito

comercial. Conforme Duarte,

Os cineclubes foram, naquele contexto, uma instância importante de

socialização e de formação de público, além de ser o principal espaço onde

era oferecidos os poucos cursos profissionalizantes de cinema da época,

pois ainda não havia escolas de cinema. Nos anos 1960 e 1970, o

movimento cineclubista no Brasil era muito forte e disseminados pelos

grandes centros urbanos do país: havia o CEC (Centro de Estudos

7 Esse conceito de cinéfilo começou a ganhar corpo no Brasil, a partir de meados dos anos 1950, sob a

influencia direta dos cineclubes, das cinematecas e de uma importante revista de cinema, publicada na França,

chamada Cahiers du Cinéma. A maioria dos que viam, faziam ou viriam a fazer filmes nesse período deve

grande parte de sua formação aos “clubes cinema”, dos quais participavam ativamente, quer como

organizadores que como freqüentadores assíduos, e aos debates em torno de artigos publicados nos Cahiers

e no Jornal do Brasil (“bíblia” dos amantes de cinema daquele período). (DUARTE, 2009, p.64-65).

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Cinematográficos, da Faculdade Nacional de Filosofia- FNFi); o Cinema

de Arte de Salvador (organizado e mantido por alunos e ex-alunos do

Colégio Central da Bahia, entre eles, Glauber Rocha, um dos expoentes do

Cinema Novo); cineclubes ligados aos CPCs - Centros Populares de

Cultura da União Nacional dos Estudantes. Nessa época, a maioria das

entidades estudantis, secundaristas e/ou universitárias,mantinha um

cineclube em funcionamento regular. Havia, ainda, os que eram

mantidos pela Aliança Francesa e as cinematecas dos Museus de Arte

Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo. (DUARTE, 2009, p. 65).

A maneira de elaborar o aprendizado em cinema se substancia nos formatos que

a arte cinematográfica e seus desdobramentos como os cineclubes e a constituição da

cinefilia que se apresentam ao longo do século XX e como demarcam suas práticas no

século atual. Os cineclubes têm sua origem partilhada por formas de organização de

caráter democrático e principalmente participativo, estruturando-se enquanto espaços de

cinema associativos a partir de um processo sociocultural que não se desvincula da

própria memória do cinema. Portanto o cineclube pode ser conceituado como uma

associação responsável pela reunião de apreciadores de cinema objetivando exibição,

estudos e debates de filmes selecionados para tais fins.

Os cineclubes surgiram num momento específico, quando o cinema considerado

comercial não atendia mais aos anseios de um público exigente e passaram por um processo

evolutivo que foi assumindo formas diversas no processo de desenvolvimento cultural.

Ao considerar a riqueza da produção, exibição e recepção da arte cinematográfica nas

primeiras décadas do século XX em um espaço temporal de avanço industrial crescente,

evidenciamos a necessidade de formação de um público apreciador dessa arte em

constante expansão, isto, como contraponto ao modelo hegemônico americano de fazer

cinema. Como nos apresenta Giovvani Alves,

Da relação interativa do começo do cinema, entre o público e o filme, só o

cineclube preservou não apenas a oralidade (o debate), mas todo um

dispositivo ou protocolo de ações de apropriação crítica, indispensável

para a edificação de outro cinema: o cinema do público. O que importa

essencialmente na relação entre o público e o cinema, são as condições de

apropriação crítica e não o mero acesso aos filmes condição necessária,

mas insuficiente) que, por si, corresponde apenas à necessidade de criação

de plateias ou, em uma palavra: mercado. (ALVES, 2010, p 23.).

Seguindo as considerações que nos sugere a importância de uma relação crítica

entre o público distinto e o filme, podemos observar o surgimento de cineclubes além do

eixo Rio de Janeiro - São Paulo. A partir de então os cineclubes se consolidaram cada vez

mais, se expandindo para cidades como Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, entre outras

capitais do país. O clube de Cinema de Salvador teve papel fundamental na evolução do

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cineclubismo baiano, tanto nos seus aspectos de crítica, mas também de produção

cinematográfica. Diante disso, a partir de 1959 aconteceram as Jornadas de Cineclube, sendo

que a V Jornada foi realizada em Salvador, em 1965, permeada pelas discussões e

efervescências relativas ao Cinema Novo. Torna-se importante salientar a presença

marcante do cineasta conquistense Glauber Rocha nesse momento de demarcação estética

e política anunciada pelo movimento do Cinema Novo.

Foto 07: Logomarca do Clube de Cinema da Bahia

Fonte: ccb.jornadabahia.com

Não podemos nos furtar de falar de um importante condicionante histórico que

impactou o cinema brasileiro, qual seja a implantação da Ditadura Militar em 1964. O regime

militar instituiu um clima de limitação das liberdades básicas, como a de expressão, que

consequentemente, provocou rapidamente o fim do ciclo criativo que se convencionou

chamar de Cinema Novo. Mais que isso, a ditadura perseguiu e destruiu os grandes

movimentos sociais e de classe, prendendo direções, fechando entidades, proibindo

atividades culturais. Como forma de resistência à repressão, a Federação Nordeste de

Cineclubes reapareceu8

em 1973 e promoveu encontros intermediários na Jornada da

Bahia de Curta Metragem. No final dos anos 1970 os cineclubes se encontravam

presentes nos bairros e periferias das grandes cidades do país, procurando atender uma

demanda das mais diversas articulações associativas tais como, sindicatos, igrejas e

movimentos populares.

Além disso, identificamos que durante a Ditadura Militar, tínhamos uma feição

particular de cinefilia brasileira, pois em consonância com os modelos internacionais, foi

8 A Federação Nordeste de Cineclubes surge no ano de 1956, passa um período reativado e ressurge em 1976.

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traçado um paralelo bem definido com o nacionalismo cultural. O horizonte da liberação

nacional foi o pressuposto maior do Cinema Novo no período em voga, bem como de outros

movimentos culturais no Brasil e na América Latina, dentro de uma conjuntura internacional,

política e cultural que ensejava uma afirmação mais incisiva do conceito de nação como

referência. Na esfera do cinema, a emergência das cinematografias nacionais parecia ser um

passo inicial em direção a uma nova ordem mais pluralizada na produção e consumo de

filmes. Paulo Emílio Gomes comenta:

Quando um brasileiro do Sul procura refletir os acontecimentos baianos em

matéria de cinema dois nomes emergem espontaneamente: Walter da

Silveira e Glauber Rocha. Críticos de grande autoridade na cidade do

Salvador, ambos adquiriram renome nacional graças à colaboração em

jornais e revistas do Rio e de São Paulo e à presença marcante em

conclaves culturais. Acontece que a notoriedade, que poderia ter surgido de

circunstâncias fortuitas, corresponde ao papel preponderante de Walter da

Silveira e Glauber Rocha no Cinema Baiano. (GOMES, 1981, p.401).

Diante de toda ebulição por que passava a sociedade brasileira durante o regime

militar, em especial a juventude, o desenvolvimento dos cineclubes ocorreu principalmente

em universidades e escolas. Com o recrudescimento da ditadura, muitas manifestações

culturais foram extintas. O cineclubismo, representado nesse momento por uma juventude

bastante ativa, também sofreu as consequências desse recrudescimento, tendo sido suas

entidades fechadas ou proibidas. De acordo com a estudiosa do assunto Rosália Duarte,

[...] Os clubes de exibição de filmes tiveram um papel essencial na

institucionalização de outras formas de projeção de filmes no quadro

de uma política de promoção cultural do cinema, tanto na França como

na maioria dos países produtores e exibidores de filmes. (DUARTE, 2001,

p.90).

No auge da Ditadura Militar, mesmo com o esfacelamento cultural, o movimento

cineclubista começou a retomar suas atividades. Essa nova fase da atividade cineclubista no

Brasil ficou marcada pela ampla presença de cineclubes em quase todos os estados e nas

principais capitais do país, presentes em escolas e universidades. 9Os cineclubes se

mostraram como o lugar propício para essa prática, difundindo obras cinematográficas

que não Liberación, na Argentina tanto quanto na origem do movimento cinemanovista

brasileiro (entre outras cinematografias). “Embora esse tipo de visão começasse a perder

força no inicio dos anos 70, as ideias integrava, também, os anseios e projetos

9 A perspectiva de fazer do cinema um instrumento de transformação da realidade está na base do neo-realismo

italiano, da nouvelle vague francesa, do cinema cubano, do movimento que culminou no Cine.

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compartilhados pela geração que começava a conquistar seu espaço é um cinema “de

esquerda”, “contestador”, que “reflete sobre o Brasil” é recorrente nos depoimentos que

colhi”. (AUMONT, 2003 p. 45). tinham lugar na rede de exibição comercial. Compondo um

público expressivo, os frequentadores desses espaços de cinema amaram os filmes de

forma diferenciada, com uma força maior, algo essencial para suas próprias vidas. Um

dos grandes feitos da cinefilia foi a formação daqueles que fizeram parte dos cineclubes e

que assistiram aos filmes num gesto de intensa procura por encontrar nos filmes uma

vertente de uma emoção inesperada, um prazer imagético, mas também de realizar uma

operação intelectual representada pela produção crítica: de escrever sobre eles, amá-los de

maneira intensa.

2.3 PERCURSOS CINÉFILOS: DE SALVADOR PARA VITÓRIA DA CONQUISTA

Certificamo-nos que nos primeiros anos do século XX, em Salvador, o cinema era

exibido de maneira itinerante em feiras, barracões, teatros e palcos improvisados. Inserindo-

se na constelação da cinematografia desde em 1887, temos em Salvador, Bahia, o seu

mais antigo cinema, o Politeama. No ano seguinte surge o Cinema Lumière, e em fins do

mesmo ano funcionou o Cinema Edison. Podemos assinalar que da década de 1910 a década

de 1920, Salvador contou com uma ampliação constante das salas de cinema. Em meio ao

processo de desenvolvimento do cinema em Salvador torna-se de suma importância

destacar, ainda na década de 1940, o trabalho iniciado pelo reitor da Universidade Federal

da Bahia, criada em 1946, Edgar Santos, com a implantação do Ensino Superior das

Artes no Estado.

Em relação às práticas de cinema, a ambiência cultural soteropolitana proporcionou

experiências singulares, como a do Clube de Cinema da Bahia, criado por Walter da

Silveira juntamente com o juiz Carlos Coqueijo Costa, em 1950, este último não acreditava

num êxito inicial: várias tentativas de fundação tinham fracassado. Entretanto, desde a noite

da inauguração deste clube, a vitória marcou sua existência. Corroborando com nossa

argumentação, a professora e pesquisadora do tema, Milene Gusmão, nos informa a

respeito desse Cine Clube: “o órgão congregava cinéfilos para a exibição de filmes de arte

ou produções especiais, inspirado em modelos franceses, funcionava inicialmente para

associados” (GUSMÃO, 2007, p.18).

Em decorrência dos efeitos do nascimento do Clube de Cinema da Bahia, o ano de

1951 ficou na história do cinema brasileiro como um dos anos decisivos, pois marcou o

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nascimento de uma consistente cinematografia nacional. Até então, de acordo com Dias,

subestimava-se entre nós a importância estética e social do cinema: “os homens de

pensamento, os escritores em primeiro lugar, não haviam tomado ainda uma posição

lúcida diante de uma forma de expressão capaz de lhes permitir as mais vastas

possibilidades criadoras” (DIAS, 2006, p. 249, v.1). De extremada relevância para a

produção cinematográfica baiana, o Clube de Cinema da Bahia situou o cinema além das

questões comerciais e demonstrou seu valor para a cultura cinematográfica brasileira. Ainda

no ano de 1951, Dias assinala:

O Clube realizou o Primeiro Festival de Cinema da Bahia, além de ter sido a

mais organizada e selecionada exposição de filmes já havida no Brasil,

contou com a participação de onze países, e com a presença de cinco

das mais conhecidas e respeitadas personalidades do movimento

cinematográfico brasileiro (DIAS, 2006, p. 271, v.1).

A presença de Walter da Silveira à frente das atividades cineclubistas em Salvador

foi decisiva para o desenvolvimento do cinema na Bahia, pois, desencadeou outros

movimentos como a produção cinematográfica, inicialmente com o filme Redenção, de

Roberto Pires, primeiro longa-metragem de ficção realizado na Bahia, que estreou em

1959, no Cine Guarani, em Salvador. Glauber Rocha, no livro Revisão Crítica do

Cinema Brasileiro, fez questão de escrever: “Quem inventou o cinema na Bahia foi

Roberto Pires”. Gusmão ratificando nossa argumentação expõe,

O apelo de Glauber Rocha pelos jornais também explica uma

interdependência interessante nessas ambiências geradas pela dinâmica que

constituiu o cinema na cidade, a saber: a possibilidade que algumas

pessoas ligadas à promoção das artes e da cultura tinham em escrever nos

jornais. (GUSMÃO, 2007, p. 21).

Professor, crítico, escritor, advogado, defensor do cinema brasileiro, Walter da

Silveira foi um pesquisador atuante do cinema como arte e cultura, ele revolucionou as

ideias do cinema em nosso país, ao lado de Paulo Emílio Salles Gomes, Glauber Rocha,

Jean Claude Bernardet, entre outros. Como todo mestre autêntico, nos sugere Paulo Emilio

Sales,

Walter da Silveira teve discípulos simultaneamente negadores e criadores,

isto é, aqueles que, se insurgindo contra as ligações, na verdade

prolongam a obra do professor. É dessa dialética harmoniosa e vivificante

que surge Glauber Rocha, nascido do Cineclubismo para a crítica e daí

para a realização. (SALES, 1981, p.402).

Foto 8: Walter da Silveira

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44

Fonte: contracampo.com.br

Por meio das práticas cineclubistas criadas por Silveira, dos debates por ele

promovidos com a exibição de grandes filmes do cinema nacional e mundial, foi possível

que grandes cineastas se formassem e marcassem posição de destaque na produção e

crítica cinematográfica do país. Como assinala Dias, o seu discípulo mais ilustre, Glauber

Rocha, “aponta o professor como imprescindível em qualquer estudo cinematográfico. Sua

contribuição foi decisiva para o cinema nacional, que defendeu em todos os seus

artigos, ensaios, palestras e congressos” (DIAS, 2006, p. 267, v.4). Diante disso, a

estreita relação entre Walter da Silveira e Paulo Emílio Sales Gomes contribuiu efetivamente

para a difusão de práticas cinéfilas no Brasil nos moldes da tradição da cinefilia francesa.

Isto se tornou possível por meio do estabelecimento de uma cadeia de conexões

muito bem urdidas, primeiramente, Sales e suas relações com Langlois e as ações de

cinema na França, logo a seguir o encontro de Sales com o cinema baiano por meio de

Walter da Silveira, encontro este que ocorreu graças às participações desses cinéfilos nos

Congressos Nacionais de Cinema que aconteceram na Bahia10

. As ações empreendidas por

esses dois amantes da arte cinematográfica se disseminaram de modo a permitir que

também alguns conquistenses pudessem compartilhar dessas ações.

10

Algumas dessas pessoas, com era o caso de Fernando Martins e Pedro Bittencourt, já traziam em suas

vivências os aprendizados dos cineclubes em Salvador e no Rio de Janeiro. Fernando já havia frequentado

durante o período em que cursou faculdade, na capital baiana, o Clube de Cinema da Bahia, fundado por Walter

da Silveira e Carlos Coquijo Costa, em 1950. Pedro, também conquistense, apaixonado pelo cinema, deixou a

cidade natal em direção ao Rio de Janeiro para ser ator e produtor e, estando lá, foi frequentador assíduo do

Clube de Cinema do Museu de Arte Moderna e do Clube de Cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro. (GUSMÃO, 2201, p.61).

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Nas palavras de Sales, o significado de Walter da Silveira será maior do que a dos

companheiros de luta cultural de outros Estados, graças ao rumo surpreendente que

tomaram os acontecimentos em cinema na Bahia. O que estava havendo em Salvador

naquele momento em matéria de cinema se vinculou, com efeito, às atividades críticas

de Walter e ao Clube de Cinema fundado por ele. Confirmamos sua influência ao

verificar em toda parte diretores, argumentistas e, sobretudo críticos, que possuíam uma

formação impregnada pelo movimento da cultura cinematográfica baiana, que funcionou

como uma escola paralela de cinema. Somados a essa atuação, em Salvador verificamos,

ainda na primeira metade do século XX, no campo educacional, o desempenho de dois

personagens fundamentais, o primeiro diz respeito à Anísio Teixeira, ao liderar

nacionalmente o movimento da Escola Nova e o segundo se refere ao trabalho

desenvolvido por Edgar Santos à frente da Universidade Federal da Bahia. A respeito

disso, Gusmão expõe,

Percebe-se nessa rápida contextualização a tessitura da rede relacional

constituída pelos laços de consumo simbólico da qual Walter da Silveira

participou, tendo no âmbito das ações político-institucionais

compartilhando com Anísio Teixeira e Edgar Santos o desenvolvimento

de seus projetos no campo educacional, nos quais compareciam a

importância da arte para a constituição de espaços de sociabilidade

propiciadores de uma formação cultural marcada pelo senso estético e pelo

refinamento dos valores humanistas. (GUSMÃO, 2007, p.10).

O Clube de Cinema da Bahia convergiu para um papel mais amplo, seguindo o

exemplo dos cineclubes europeus. Não obstante, cumpriu uma função mais dinâmica,

franqueou o contato com a história e renovação da arte cinematográfica, sem o qual seria

impossível aos cineastas mais jovens uma percepção exata dos valores fílmicos. De acordo

com Dias,

Ainda que nos Estados brasileiros não evoluísse de igual modo a cultura

cinematográfica – ao Cineclube da Bahia, talvez se credite historicamente

haver sido o clima dentro do qual se gestou o cinema baiano, mais do

que tudo a grande figura jovem de Glauber Rocha - todos sentem que

sem federalizar- se não podem enfrentar os problemas contemporâneos do

cineclubismo. (DIAS, 2006, p.111, v.3).

Na transcorrer desse processo, durante os anos 1980, a atividade cinematográfica

na Bahia ficou agravada pela crise econômica nacional e internacional. Ocorreu um longo

período sem se realizar sequer um longa- metragem, salvo uma produção intermitente de

curtas e a realização das Jornadas anualmente, o cinema quase não aconteceu nesse período na

Bahia.

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A produção baiana conhecida como cinema de retomada cresceu em 2005, com

produções destinadas aos mais diversos públicos, nos mais variados locais de exibição e

partilhou entre os que fizeram dele o seu objeto de desejo e paixão estética e os que o

apreciavam como simples entretenimento, o cinema e a cinefilia mantiveram uma lógica

constitutiva nos diferentes contextos nos quais o cinema foi recepcionado, por diferentes

públicos e práticas de consumo social. Desta forma, a história dos cineclubes, desde o

início do século XX procurou reunir os que se interessavam pelo cinema, inserindo os

indivíduos em diferentes práticas cinéfilas e colocando-se como um campo privilegiado para

estudo da evolução da legitimidade estética do cinema. E Vitória da Conquista também se

encontrou presente nesse universo cinematográfico. Pautada nos argumentos supracitados,

desenvolveremos algumas considerações sobre as práticas de cinema em Vitória da

Conquista, bem como as condições de propagação das ações formativas cineclubistas e

cinéfilas.

De acordo com o livro de Mozart Tanajura Crônica de uma Cidade, o cinema

surgiu em Conquista em 1912 e o primeiro local de projeção, de propriedade do Sr. Jacinto

Sampaio, tinha o nome de Cinematógrafo. Os filmes eram mudos e tinham imagens quase

apagadas. A casa de exibição era um local murado, um galpão coberto de palhas de

coqueiros, o projetor era manual e o aparelho gerador de energia funcionava a carboreto.

Torna-se relevante ressaltar que com a contribuição dos jornais locais, a propagação dos

filmes era divulgada para o público conquistense, este composto por pessoas das mais

humildes aos mais ilustres da cidade e os ingressos variavam de um a dois mil réis para

adultos e a metade para os de menor idade. De acordo com Itamar Aguiar que observou os

relatos de Tanajura, “o anúncio das fitas a serem exibidas também era feito por garotos

que saíam ás ruas batendo latas e exibindo cartazes de artista, gritando que naquele dia

teria cinema e divulgando o preço dos ingressos” (AGUIAR, 2011, p. 29). Outros espaços

de exibição fílmica foram surgindo a partir de 1917 como o Cinema Jurandyr, Cine Iris,

Cinema Ideal, Cinema Odeon, Cine Conquista e Cine Eldorado.

Foto 9: Cine Eldorado - Lado Oeste da cidade de Vitória da Conquista

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Fonte: tabernadahistoriavc.com.br

O trabalho pioneiro da pesquisadora Milene de Cássia Silveira Gusmão apresentou a

preocupação em investigar as práticas de cinema em Conquista, revelando nos seus estudos

que o cinema comparece como espaço de convergências entre os indivíduos e estabelece

uma relação efetiva com a cidade. Essa relação permitiu que ocorresse em Conquista

uma circulação cultural com desdobramentos imprescindíveis para o que viria a se

equacionar como práticas de cinema.

Ao realizar sua pesquisa de Mestrado no ano de 2001, cujo objetivo era buscar

entender a importância do cinema no cotidiano das pessoas, no percurso dos grupos, as

mudanças de hábitos e consumo de cinema, Gusmão registrou em seu trabalho o interesse

pelo tema, demonstrando motivos visíveis para tal interesse, diante da força de um

quadro social impulsionado pela constância dessas práticas. A cidade, em sua potência,

respirou cinema, organizando sua cultura nesse tecido urbano marcada também pelo nome

de seu mais ilustre cineasta, Glauber Rocha, tornando-se pólo dinâmico de ações

cinematográficas.

Dessa forma, no processo de ampliação do que seria os primórdios do cinema, ou

seja, seu início alicerçado nos pequenos espaços de exibição que naquele momento histórico

foram possíveis. Gusmão construiu um olhar sob o cinema em Vitória da Conquista,

recuperando momentos tão caros à cidade, desde a chegada do primeiro cinematógrafo até a

criação do Programa Janela Indiscreta, Programa esse que privilegiou a difusão de

espaços de exibição com forte tendência para ampliação dos elementos formativos da

arte cinematográfica. Os amantes da sétima arte, os cinéfilos conquistenses transformam o

cinema em paixão e expressão de um gosto.

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Assim, as análises realizadas por Gusmão a despeito de como esses espaços de

cinema se estruturaram na cidade de Conquista introduzem um processo de valorização

crescente dessa arte, desvendando um conjunto de práticas que até então não havia sido

pesquisado, a exemplo desse período que poderíamos considerar de lacunar, os anos de

1912 a 1970, período em que não há registro de fontes que apontem a existência de ações

de cinema. Nesse sentido, a pesquisadora em questão investiga uma informação relativa ao

surgimento de um cineclube em Vitória da Conquista.

Dessa forma, a partir de rico acervo coletado no Arquivo Público Municipal,

Gusmão encontra uma reportagem que preenche esse período lacunar, que são as

publicações de Afrânio Amaral sobre a temática cinema, desenvolvendo assim um breve,

mas expressivo momento da presença do cinema nesta cidade. Este é apenas um exemplo

emblemático no qual podemos constatar a relevância dos estudos realizados por essa

pesquisadora. Mas contamos também com trabalhos posteriores, a exemplo de sua tese de

doutorado na qual procurou estabelecer diretrizes da expansão do cinema na Bahia,

particularmente em Salvador. Essa linha de estudo associada a pesquisa aqui apresentada

amplia as possibilidades de compreensão dos processos sócio históricos que envolvem a

população urbana conquistense, concebendo-a também como público aberto para um

novo cinema que se impõe, dispostos em uma ambiência cultural em que a sétima arte

expressa poder e visibilidade.

Assim, os estudos de Gusmão apresentam perspectivas de diversas ordens,

englobando o encontro da cidade com o cinema e o transitar de cinéfilos ávidos por espaços

exibidores. Observamos que os indivíduos que compõem a cidade circunscrevem-se como

um público centrado em suas relações com a arte cinematográfica e por um caminho

trilhado pela cinefilia, esses indivíduos são sensíveis as práticas sociais que mantém com

as imagens em movimento, estabelecendo nessa ordem um diálogo memorialístico e

eloquente com a cidade.

À luz dos estudos acima esclarecidos podemos retomar o ano de 1959, quando

Afrânio Amaral fez chegar a Vitória da Conquista, por meio do jornal O Conquistense, um

cineclube. Naquela época, o jornal dispunha de meia página para a coluna intitulada Cinema,

na qual Amaral, um conquistense que residia no Rio de Janeiro, publicava semanalmente

artigos sobre a arte cinematográfica. O primeiro deles intitulado “Um cineclube em Vitória

da Conquista?” tinha a seguinte apresentação do redator: o artigo, escrito em meia página,

responde logo na primeira linha à pergunta posta pelo titulo: “Sim. Um cineclube em

Conquista” (Gusmão, 2001, p.68). Nesse artigo, Amaral esclarece o que é um cineclube,

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as tendências vigentes, bem como aborda o desenvolvimento do cineclubismo no mundo.

Relata as dificuldades de acesso aos filmes produzidos pelo expressionismo alemão, pela

vanguarda francesa, o ciclo de documentários britânicos, o cinema americano da década de

1930 e o neo-realismo italiano do pós-guerra, evidenciando que não há equívocos em seu

artigo, realmente não há um cineclube funcionando em Conquista, mas há um interesse em se

propagar os conhecimentos em cinema.

Seguindo esse percurso histórico, temos então na década de 1970 em Conquista o

funcionamento de cinco salas de cinema: o Cine Riviera, o Cine Glória, o Eldorado, o

Madrigal e o Trianon, essas salas de cinema representaram o apogeu cultural do cinema na

cidade, funcionando regularmente com sessões diárias e lotação constante, demarcando um

cenário de consumo de filmes pela comunidade conquistense em que não havia

distinção de público, desde os moradores com menor poder aquisitivo até a circulação da elite

conquistense.

As práticas de cinema tais como a cinefilia e os cineclubes em Vitória da Conquista

tiveram início também na década de 1970, num momento de grande evidência da arte

cinematográfica na cidade. Foi quando surgiu o primeiro cineclube, constituindo-se como

espaço de convergência de gostos e sociabilidades, local de encontro dos apaixonados por

cinema. Então, surgiu em Vitória da Conquista, em 1975, por meio da iniciativa de um

grupo de pessoas interessadas em cinema. Um grupo de amigos, que tinha uma paixão

comum, o cinema, resolveu reunir-se e fundar um cineclube que teve no nome uma

homenagem ao conquistense famoso: Glauber Rocha. As sessões aconteciam,

semanalmente, em um dos cinemas existentes na cidade, sendo os filmes uma alternativa a

exibição comercial, com o objetivo de oferecer ao conquistense interessado em cinema a

possibilidade de assistir e discutir filmes que ficavam fora do circuito comercial, os

chamados, naquela época, filmes de arte. Segundo Gusmão,

A implantação do Clube de Cinema Glauber Rocha se deu a partir do

encontro de algumas pessoas muito interessadas em cinema, em que um

dos integrantes do grupo, Fernando Martins de Souza, já havia

frequentado, durante o período de Faculdade, o Clube de Cinema da

Bahia, em Salvador, onde fizera amizade com Guido Araújo e André

Setaro. Chegando a Conquista, Fernando sentiu a decadência dos cinemas,

que já funcionavam com dificuldades, e a falta de opção para se assistir um

bom filme. (GUSMÃO, 2001, p.45).

O encontro entre essas pessoas que fomentaram a criação do primeiro cineclube de

Vitória da Conquista foi decisivo para o desenvolvimento da arte cinematográfica na

cidade. Fernando Martins e Pedro Bittencourt possuíam uma experiência cinéfila ancorada

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em ações pontualmente determinadas por um contexto cultural aqui explicitado já, no

caso, as atividades cineclubistas realizadas por nomes como Paulo Emílio Sales e Walter da

Silveira.

Podemos, nesses termos, promover uma conexão de redes de ações em cinema que

foram se concretizando por meio de projetos nos quais a arte cinematográfica ganhou vigor

e por que não “adeptos”. Essa reflexão se torna pertinente quando nos remetemos às

concepções de cinefilia instauradas nesse trabalho, o cinéfilo promove seus rituais e dada

a intensidade de sua paixão é capaz de levar outros indivíduos a também apoderar-se

dela. Daí retomarmos o alto grau de compartilhamento que a cinefilia pode proporcionar. E

foi o que o grupo de Martins e Bitencourt realizou, promoveu a partilha, ampliando o

grupo de cinéfilos conquistenses que também contou com a participação de Jorge Luíz

Melquisedeque, Rui Medeiros, Albertina Vasconcelos, entre outros.

Em 1977, o Cineclube Glauber Rocha passou a chamar-se Anecy Rocha e neste

mesmo ano, de acordo com Milene Gusmão, o jornal conquistense O Fifó anuncia em

manchete “Retoma o cineclubismo em Vitória da Conquista”. O artigo informa sobre uma

segunda fase do cineclube em Conquista, fase esta em que buscou solucionar algumas

questões que não puderam ser resolvidas na fase anterior.

No ano de 1978, o cineclube passou a exibir os filmes na Faculdade de Formação de

Professores, não cobrava mais os ingressos, porque os filmes eram gratuitos, e as

instituições cediam os espaços. Nas palavras de Aguiar:

Nesse período de maior efervescência cultural criou-se também a Faculdade

de Formação de Professores de Vitória da Conquista - FFPVC, em cujas

instalações aconteceram algumas seções desse cine clube seguidas de

comentários dos filmes que eram exibidos. (AGUIAR, 2010, p.25).

No final da década de 1970, início dos anos 1980, o Cineclube Anecy Rocha

deixou de existir. No mesmo período de fechamento desse cineclube, iniciou-se a crise do

cinema em nível nacional que também atingiu Vitória da Conquista, quando as salas de

projeção foram fechadas, ficando apenas o Cine Glória e o Cine Madrigal, que ainda se

mantiveram em atividade por um tempo maior. A experiência do cineclube em Vitória da

Conquista, apesar de sua curta duração, foi importante para as pessoas que dela participaram.

Gusmão ressalta:

O trabalho realizado por cineclubistas em Vitória da Conquista, inicialmente

na década de 1970 e posteriormente nos anos 1990, com repercussões

importantes nos dias atuais, remonta a práticas de consumo

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cinematográfico ancoradas direta ou indiretamente no trabalho

desenvolvido por críticos como Paulo Emílio Salles Gomes, em São

Paulo, Walter da Silveira, em Salvador, Jacques do Prado Brandão e

Ciro Cerqueira, em Belo Horizonte, Plínio Sussekind Rocha e Alípio

Barros, no Rio de Janeiro, e Paulo Fontoura Gastal, em Porto Alegre, entre

os anos 1940 e 1960. Sem dúvida, esses antecedentes criaram condições

para a realização de encontros entre cinéfilos das diversas regiões do

país, que compartilhavam a percepção do cinema como manifestação

cultural, no tempo em que consideravam ser o consumo cinematográfico

um meio para viabilizar a manutenção ou a transformação de atitudes

humanas e de condutas cotidianas. (GUSMÃO, 2201, p.65).

No final de 1992 surgiu em Vitória da Conquista o Programa Janela Indiscreta

Cine – Vídeo, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, uma iniciativa de Jorge Luíz

Melquisedeque e Esmon Primo, motivados por uma paixão cinéfila, aliadas a saberes

incorporados nas experiências cineclubistas. Com o Janela reacendeu um olhar para a cultura

cinéfila, começaram a formar público, plateia crítica, como grande eixo de formação teórica

e intelectual de uma geração de conquistenses. O Janela passou a representar uma prática,

uma célula de difusão cinematográfica para toda a região Sudoeste da Bahia, reafirmando a

necessidade de um consumo consciente da obra cinematográfica. Esse Programa se tornou

indispensável para todo um grupo de indivíduos, amantes do cinema, que urgiam de um

consumo desalienador, uma possibilidade de se posicionar criticamente perante a sociedade.

Os idealizadores do Janela Indiscreta, Melquisedeque e Primo, trouxeram a

experiência do cinema-fórum e como novidade o comentário coletivo dos filmes que eram

exibidos semanalmente na universidade. Desse modo, o Janela tornou-se um centro gerador

das práticas de cinema na região. A respeito disso Gusmão expõe que “O Janela é filho da

experiência do Clube de Cinema Glauber Rocha, mas com outra característica, ele, de certo

modo, preencheu uma lacuna que a gente percebia que havia na experiência do

cineclube”. (GUSMÃO, 2001, p.61).

Jorge Luis Melquisedeque se colocou com maior relevância no espaço

cinematográfico conquistense com a criação do Janela Indiscreta. Esse Progrma estuturou-

se como prática de cinema propiciadora de um espaço de produção, exibição e discussões

sobre a arte cinematográfica e foi sendo fortalecida pelo desejo de que Conquista viesse a se

tornar a cidade do cinema. Isto, por meio da exibição de filmes nacionais e internacionais,

encontros, seminários, oficinas, cursos, lançamentos de livros e exposições vinculadas à

temática cinema.

Foto 10:Jorge Luiz Melquisedeque e Walter Sales

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Fonte: sintomadeculturablogspot.com.br

Os processos globalizantes de cultura deram um novo formato as salas de cinema,

consequentemente o público também foi se diversificando marcado primordialmente por um

controle, um domínio sob as salas de cinema. A economia global atingiu Conquista e foi

proporcionando um só modelo de cultura, de ver filmes, de fazer filmes, de senti-los,

estabelecendo para tanto um só ritmo narrativo. Entretanto, outras ações pela arte

cinematográfica, de menor ou maior intensidade, foram sendo realizadas em Vitória da

Conquista e a cidade foi se transformado em um espaço propício a práticas cinéfilas. É

possível que possua algo que lhes seja peculiar, o envolvimento afetivo de indivíduos a

exercer um papel dinamizador tanto na proposição como na continuidade dessas ações.

Em seus 21 anos de existência, o grupo responsável pelas ações desenvolvidas no

Janela Indiscreta tem contribuído, por meio de práticas sociais relacionadas ao cinema, para

o estabelecimento de uma configuração cultural para a cidade e tem promovido uma série de

atividades em cinema, tais como a Mostra Cinema Conquista, que já se encontra em seu

9º Ano e a Mostrinha Infantil de Cinema, em sua quarta edição, dentre outras várias ações.

Ao refletirmos sobre as práticas de cinema em Conquista constatamos que

efetivamente o trabalho realizado por cineclubistas em Vitória da Conquista, primeiro

nas décadas de 1970 e depois 1980 foram decisivos para a difusão das ações de cinema na

cidade. Como foi explicitado anteriormente, podemos articular as práticas de cinema ao

trabalho de alguns cinéfilos que construíram ações nas quais os encontros entre ao

amantes da sétima arte propagaram elementos formativos imprescindíveis para o

desenvolvimento do que viriam a ser construídas mais tarde. Na verdade, outras ações de

cinema foram sendo realizadas em Vitória da Conquista e a cidade foi se transformando em

um espaço favorável para a realização das mesmas. É possível que possua algo que

lhes seja peculiar, o envolvimento afetivo de indivíduos a exercer um papel dinamizador

tanto na proposição como na execução dessas ações.

Por fim, amantes do cinema criaram outras proposições reflexivas e alternativas

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a despeito das formas de dar continuidade e permanência à prática de assistir filmes. Nessa

direção, esse aporte sócio histórico vai ressoando por meio de uma diversidade de fontes

possibilitando a eminência de uma continuidade narrativa singular, feitas por aqueles

indivíduos tais como Jorge Melquisedeque, Esmon Primo, Helio Flores Filho e Sidcley

Coelho Silva, entre outros, que devotaram e devotam uma constância no assistir dos filmes e

uma necessidade quase que urgente de estudá-los, criticá-los e também produzí- los.

Diante das considerações a respeito da memória e ao observar as práticas de cinema

desenvolvidas em Vitória da Conquista, observamos que ocorreram ações e práticas de

cinefilia que permaneceram reverberando no agir individual e coletivo. As trajetórias

dos indivíduos envolvidos nessas práticas apresentaram um elo entre os elementos

formativos em cinema e a constituição de um gosto. No contexto formativo dessas práticas

e no encontro entre os indivíduos em uma dada ambiência cultural propiciada pelo cinema, as

escolhas de contemplação e apreciação fílmica e a expansão dos mais diferentes formatos

de práticas cinematográficas, se tornaram fonte de difusão cultural, estética e prática social.

Há, portanto, uma forma de relacionar cinema e memória que é pensada como resultado das

relações entre os filmes assistidos e seus conteúdos, seus discursos produzidos, suas ações

geradas por experimentações e expressões difundidas e sistematizadas por meio da

linguagem cinematográfica.

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3 ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS

3.1 ENTRE TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS DE CINEFILIA EM VITÓRIA DA

CONQUISTA: A PRESENÇA DO CINEMA NA CIDADE

Vitória da Conquista é um município do estado da Bahia e sua população, conforme o

Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estatísticas IBGE, em 2013 consta de 336.990 habitantes,

o que a torna a terceira maior cidade do estado e do interior do Nordeste juntamente com

Caruaru, excetuando-se as regiões metropolitanas. Ao remontar a origem do Arraial da

Conquista verificamos que esta se encontra relacionada à busca de ouro, à introdução da

atividade pecuária e ao próprio interesse da metrópole portuguesa em criar um aglomerado

urbano entre a região litorânea e o interior do Sertão. Portanto, integra-se à expansão do

ciclo de colonização dos fins do século XVIII. Em 1840 o Arraial da Conquista foi elevado

a Vila e Freguesia, passando a se denominar Imperial Vila da Vitória, com território

desmembrado do município de Caetité. Em 1943 recebe o nome de para Vitória da

Conquista. Seguindo esse contexto histórico, a partir final dos anos de 1980 o município

realça sua característica de polo de serviços em diversas áreas. Mas o que irá demarcar um

projeto expansionista para a cidade de Conquista será o setor educacional, um dos

principais eixos de desenvolvimento deste setor. Inicialmente, a abertura do Ginásio do

Padre Palmeira formou os professores que consolidaram a Escola Normal e o Centro

Integrado Navarro de Brito, além das primeiras escolas privadas criadas no Município que

deram um impulso diferenciado para a educação oferecida na região Sudoeste.

A abertura da Faculdade de Formação de Professores, em 1969, respondeu à

demanda regional por profissionais melhor qualificados para o exercício do magistério.

Dessa forma, a partir da década e 1990, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

expandiu o número de cursos oferecidos. Também nessa década, surgiram três instituições

privadas de ensino superior, a Faculdade de Ciência e Tecnologia – FTC, a Faculdade

Juvêncio Terra e a Faculdade Independente do Nordeste. Enfatizamos que a cidade de

Conquista também se destaca por possuir um setor educacional privilegiado, formado

por excelentes escolas conveniadas com as melhores redes de ensino do país. E é nesse

contexto de expansão econômica, educacional e principalmente cultural que podemos abordar

alguns aspectos da história do cinema na cidade. Nessa perspectiva, podemos então realizar

dois direcionamentos, um que diz respeito a história do cinema em Conquista, por meio de

preciosas informações registradas em entrevista com o historiador Rui Medeiros, e nessa

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mesma trilha histórica também apresentar algumas informações relativas à produção

cinematográfica conquistense, como uma das redes de relações que envolvem as práticas de

cinefilia em Conquista. Nesse sentido, a busca de uma observação um pouco mais atenta

da presença do cinema na cidade permitiu uma melhor compreensão das práticas de

cinefilia que preencheram um campo significativo e expansionista da arte

cinematográfica, projetando para a trajetória dos amantes do cinema o efetivo entendimento

de como as práticas cinéfilas se estruturam e se incorporaram ao cotidiano da cidade.

Foto 11: Jornal A Conquista - 1930

Fonte: Arquivo Particular Rui Medeiros

O historiador Rui Hermann Medeiros expõe que é possível constatar um grande

cultivo do cinema em Conquista, uma verdadeira atração dos conquistenses pelo

cinema, mesmo não havendo uma área específica de produção de cinematográfica. Vitória da

Conquista foi uma das primeiras cidades do Brasil a ter cinema, já na República Velha,

período iniciado com o governo de Getúlio Vargas que se estender da Proclamação da

República até a Revolução de 1930, os conquistenses já tinham cinema e essa cidade não

deixou de ter essa arte durante todo século XX.

Foto 12: Jornal A Conquista - 1954

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Fonte: Arquivo Particular Rui Medeiros

O cinema se estabeleceu em Conquista por volta de 1912, algumas salas de

cinema foram sendo instaladas, como é o caso do Cine Iris, depois Cine Conquista, Cine

Riviera, alguns da salas foram alternando o nome e com o passar do tempo foram se

estabelecendo outras salas de como o Cine Vitória, Cine Glória, Cine Madrigal e o Cine

Eldorado. Houve um momento em que havia quatro cinemas funcionando de maneira

simultânea em Conquista, que nesse período era uma cidade relativamente pequena, o

público conquistense já demonstrava certo apego do público conquistense pelo cinema.

Nesse contexto, o cinema atraia multidões em Conquista, havia filas enormes nas portas

das salas de cinema para assistirem aos filmes que se encontravam em cartaz, a exemplo

das chanchadas que foi um fenômeno da década de 1970, os chamados na época de

filmes pornográficos, ou supostamente eróticos, e o Cine Glória teve grande relevância

na exibição desses filmes. Rui Medeiros coloca que,

Às vezes a fila para comprar o ingresso e entrar no cinema, no caso o Cine

Conquista ia daqui até a catedral, até a porta do cinema, até a bilheteria

do cinema. Por exemplo, os filmes de Mazzaropi, os filmes de Zé Trindade,

os filmes de Selente Continero tinham assim uma aceitação enorme e iam

muitas pessoas no cinema. Os grandes filmes de faroeste, geralmente eram

exibidos em três sessões, mas às vezes eles prolongavam até mais de

três sessões, começavam a exibir mais cedo e ia até a noite, sessões assim

contínuas, em datas especiais. Um filme como Paixão e Morte de Jesus

Cristo passava na Semana Santa, tinha bilheteria assegurada, porque muita

gente deixava de assistir por falta de espaço, as pessoas iam, ficavam na fila,

às vezes esperando

sessões inteiras para entrar no cinema.11

Medeiros relata que já na década de 1960 do século passado a cidade de Conquista

foi responsável pela produção de dois filmes que entraram inclusive em circuito nacional:

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O Tropeiro, de Aécio Andrade11

,

produzido e dirigido por Osaná Rocha, primo de Glauber Rocha, e Juventude sem

Amanhã, também de Osaná Rocha. Alguns empresários locais

começaram a criar salas de cinema, o que foi verificável até a década de 1970. O Tropeiro

foi gravado em Conquista, com suas locações maiores e mais demarcadoras, na Vila de

Iguá. De acordo com o historiador Medeiros, restam hoje 05 latas de filme 35 mm, das 08

latas que o compõe. Atualmente elas se encontram no laboratório do Iglu, no Rio de Janeiro

e existem comentários que no Museu do Cinema, em Paris, encontra-se integralmente a

cópia do filme O tropeiro. O poeta Erathóstenes Menezes participou desse filme,

considerado o primeiro longa metragem filmado em Conquista, em 1964. Medeiros expõe:

Outro aspecto considerado por Medeiros é a presença de uma crítica impressa de cinema em

Conquista na década de 1950. Você abre o jornal O Combate, abre o jornal O

Conquistense, você encontra crítica de cinema bem posta, uma crítica com fundamento, uma

boa crítica de filmes aqui em Conquista.

Além das comédias, das chanchadas, dos filmes de carnaval, eram superproduções

como Bem Hur, Os Dez Mandamentos, filmes que possuíam uma freqüência

extraordinária, movimentavam toda a cidade, as pessoas se deslocavam cedo para

assegurarem um lugar e assistir o filme em cartaz. Filmes como os de Hitchcock, que

possuíam uma grande aceitação por parte do público. Mas independentemente desse filmes e

desse diretor de cinema em específico, outros filmes também tinham a bilheteria assegurada.

Medeiro relata que com a chegada da televisão e com a locação de filmes, o cinema de rua

ficou difícil sustentar os gastos referentes ás salas de cinema que acabaram entrando em

decadência. Surgiu o DVD que era muito caro, depois se instalou uma locadora em

11

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada. Aécio Andrade é

natural de Vitória da Conquista, nasceu em 1951 e tem no filme Entardecer das Ilusões seu quinto filme de

longa metragem. Apesar de não ser um cineasta conhecido, tem no seu primeiro filme O tropeiro o marco

inicial da produção cinematográfica conquistense. Andrade iniciou seu trabalho no cinema como ator do

filme Juventude sem Amanhã, trabalhou depois como argumentista, roteirista e diretor. De acordo com o

relato de Aramis Millarch Aécio participou de mais de 60 filmes, dentre eles curtas metragens, longa

metragens e vídeos institucionais e publicitários. Assim, ale de O Tropeiro e Cruzada da Esperança,

filmados na Bahia, em 1972 produziu A volta pela estrada da violência. O filme O tropeiro coloca-se no

cenário cultural como o primeiro longa metragem filmado em Conquista, realizado em 1964 e conta com

Mozart Cintra, Elizabeth Imperial, Carlos Aquino, Jurema Penna, Mozael Silveira. Direção de arte de

Agnaldo Siri Azevedo, diretor, trilha sonora de grande Remo Usai. A montagem é de Calazans Neto e a

fotografia é de Waldemar Lima, o mesmo iluminador de Deus e o diabo na terra do sol do cineasta Glauber

Rocha. O tropeiro é um longa-metragem de 35mm, produzido no ano de 1964, em Salvador e lançado na cidade

do Rio de Janeiro. . É um drama produzido por Osana Socrates de Araújo Almeida, teve como Companhia

Distribuidora a União Cinematográfica Brasileira S.A., sob a direção de Aécio Andrade.

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Conquista, e depois outras também foram se instalando, os filmes em Vídeo Home System

- VHS sendo comercializados nas ruas, passando então por um processo de democratização.

Logo, teríamos a diminuição do próprio valor dos filmes e esse processo foi algo

gradativo, modificando o modo de alguns cinéfilos de se relacionar com o cinema.

Dessa forma, de acordo com Rui Medeiros, os cinemas de Vitória da Conquista

foram fechando e na década de 1970 já era possível perceber o reflexo do fechamento

das salas de cinema, principalmente no que se refere a qualidade dos filmes que eram

exibidos, que não estimulava o público a frequentar as salas que ainda se encontravam

abertas. Nesse momento de insatisfação aos filmes que eram exibidos surge o Cine Clube

Glauber Rocha. Segundo Medeiros,

Com a participação de Fernando Martins, Jorge Melquidedeque, Carlos

Jeová, Ana Ubirajara, Pedro Bitencourt, Ana Isabel Macedo, eu próprio,

várias pessoas se uniram para formar o Clube de Cinema, mas não houve

um entendimento imediato quanto ao nome do cineclube porque na

década de 1970 Glauber Rocha começou a se aproximar da ditadura militar,

e isso era muito comprometedor, e não só isso, declarações que ele deu

favoráveis a política da ditadura milita, a sua relação com João Paulo dos

Reis Veloso, sob fundamento que Veloso era um cinéfilo, um homens

comprometido com o cinema e não sabemos por que dessas declarações

de Glauber, não se por oportunismo ou por mudança de visão política, de

ideologia. O certo é que ele fez alguns comentários favoráveis aos

militares, inclusive um deles, como Golbery Couto Silva, por isso as

pessoas não aceitavam o nome de Glauber Rocha, então Pedro Bittencourt

sugeriu que o cineclube se chamasse Aneci Rocha.12

Nesse contexto, o clube de cinema alugava o espaço do Cine Madrigal, trazia os

filmes para Conquista e apresentava uma ou duas sessões por mês daqueles filmes que

eram considerados de arte. Nas palavras de Medeiros, cinema de arte era um conceito

difícil de entender, pois verificavam que havia as superproduções voltadas para os grandes

ganhos econômicas, mas havia também produções cinematográficas bem elaboradas, mais

estudas quanto ao script, à direção, a autoria dos filmes, ao desempenho dos artistas, a

exemplo dos filmes de Truffaut, de diretores como Eisenstein, produções estas

classificadas como cinema de arte, mesmo aqueles que eram considerados filmes de

propaganda como Outrubro, produzido em 1928. Outubro é um filme que trata do intenso

processo revolucionário da Rússia desde 1917 até a tomada do poder pelos bolcheviques.

O país passou do governo provisório de Kerensky, instaurado depois do regime czarista,

12

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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para as primeiras vitórias de Lênin e seus seguidores, até quando ele foi preso em julho. No

final de outubro, os bolcheviques entraram em cena, em dez dias que abalaram o

mundo.

Portanto, os filmes eram considerados de arte pela maestria de sua execução a

exemplo também dos filmes do realismo italiano.

Foto 13: Jornal Fifó - 1977

Fonte: Jornal Fifó

Fonte: Arquivo Particular Rui Medeiros

Outro aspecto demarcador da presença do cinema em vitória da Conquista refere-

se a produção crítica, havia uma crítica impressa como no Jornal de Conquista na década

de 1950, no jornal Fifó, da década de 1970, no qual encontramos textos críticos de cinema

de autoria de Fernando Martins, uma crítica bem elaborada, de quem conhece cinema e se

encontra muito bem informado. Temos, portanto esse aspecto que as pessoas tinham

necessidade de expressar seus pensamentos sobre determinados filmes e a participação

nos cineclubes e por meio da produção crítica pode satisfazer essa necessidade. Esse modelo

de produção cinematográfica foi sendo garantido durante algum tempo na cidade de

Conquista para por meio de um cineclube.

Depois de cada exibição havia palestra, se promovia um debate, foi uma experiência

interessante, mas já com uma tendência de ser esvaziada principalmente em

conseqüência dos novos meios de se fazer cinema, os novos suportes, como o VHS e

depois o DVD. O cineclube era composto por pessoas jovens reunidas, jovens interessados

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em cinema de arte, os que provocavam grande emoção nos seus espectadores ao ponto de

sentirem a necessidade de falar, discutir e de se escrever sobre eles.

Relevante também para a expansão do cinema em Conquista foi o fato da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia ter criado um serviço audiovisual e

produzido pequenos documentários; primeiro produzindo documentários sobre a própria

trajetória das ações da UESB, e de acordo com Medeiros,

Uma produção invejável, produção muito grande que se deve muito a

Gileno Paiva, o iniciador disso e Jorge Luis Melquisedeque. Gileno foi um

batalhador, com plena condições técnicas de produzir vídeos e Jorge Luiz

que chegou a produzir alguns documentários interessantes como Sarampo,

com Sonia Rodrigues, um trabalho sobre o Poço Escuro, Barra Grande,

acho que é o primeiro documentário conquistense com aspecto de

documentário de cinema lindíssimo, já com a estética do cinema e outros

que foram surgindo depois13

.

A criação do Curso de Cinema e Audiovisual da UESB, de acordo com Medeiros

está dentro desse contexto da grande afeição e do esforço conjunto de conquistenses

apaixonados pela arte cinematográfica, assim Conquista pode vir a se tornar um Pólo de

Cinema, mesmo sabendo que hoje as exigências são muito grandes e sabe-se que os grandes

agenciadores, e financiadores estão nas grandes capitais do país. A Prefeitura de Vitória

da Conquista ainda não tem como arcar com os altíssimos custos de uma produção

cinematográfica, mesmo uma pequena produção de custo baixo para uma realidade

conquistense.

Com a participação da UESB nas chamadas Semana Glauber Rocha e as Mostras de

Cinema que ocorreram nas décadas de 1990, nas quais foram exibidos vários filmes,

inclusive os de Glauber Rocha com a presença de dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber,

Conquista teve a oportunidade de receber documentos de Lúcia Rocha e que trazia uns

documentos, cartazes e se discutia a obra de Glauber que ficou durante algum tempo

obscurecida, poucas pessoas tinham acesso a essa obra, a década de 1960 tinha conhecido,

mas a década de 1980 não, década de 1990 também não poucas pessoas conheciam,

passou a debater Glauber Rocha, livros como a de Ivana Bentes que foi lançado aqui,

apresentado as cartas de Glauber, com a sua biografia pesquisada por ela aqui em

Conquista.

A idealização da Mostra Cinema Conquista foi fundamental para que as atividades

de cinema em Conquista mantivessem certa constância. Nessa Mostra a Prefeitura de

13

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Conquista tem participado, conjuntamente com o idealizador da Mostra, Esmon Primo, a

captar recursos públicos para realização desse evento. Outro fato de suma importância

para a cidade foi o apoio da Prefeitura durante as filmagens do filme Central do Brasil em

Conquista; a prefeitura pagou hospedagem da equipe técnica e de atores, essa informação

apareceu nos crédito do filme e ajudou a divulgar a cidade e sua relação com o cinema.

Temos então uma linha histórica, menos cronológica, mais que revela aspectos da

produção, aspecto vinculados á recepção dos filmes, da própria arquitetura da cidade, e

principalmente dos indivíduos que se tornaram os protagonistas de muitas dessas ações,

As salas de cinema de Conquista, com exceção do Cine Vitória, conhecido como

Cine Poeira foi um cinema que se especializou em filmes de faroeste acompanhados de

seriados que apresentavam um cinema recortado, ou seja, em que as últimas cenas

terminavam realmente com o mocinho em uma situação de perigo e o espectador ficava

preso ao filmes, ficavam uma semana esperando para assistirem o resultado da cena anterior.

Rui Medeiros relata também que o Cine Vitória funcionou onde estava a

pouco tempo atrás a Radio Clube, prédio do Casal Julião que foi reformado na

década de 1960 e que ficou fechado um período depois voltou a funcionar, era um cinema

pequeno em relação aos outros como por exemplo o Cine Iris, da década de 1940, depois se

transformou em Cine Conquista e depois Riviera, o cinema Eldorado, mas era uma grande

sala para a realidade de Conquista. O Cine Gloria ficava entre essas duas salas de

projeção, e finalmente no bairro Brasil o cinema Trianon que foi concebido para ser um

cinema especificamente para lançamento de filmes, era um cinema grande e confortável.

Atualmente os cinemas foram ocupados por igrejas; as igrejas se tornaram ocupantes das

grandes salas de cinema de Conquista, o Cine Gloria é o templo da igreja Universal e

outros que reciclaram para outras atividades, o Cine Riviera é o espaço das Lojas

Insinuantes, o Eldorado, na BR Rio Bahia tem uma empresa comercial, o Cine Vitória é

um escritório de advocacia, assim esses espaços foram ganhando novas funções.

Hoje Conquista possui salas de cinema no Shopping Conquista Sul, com um fluxo e

público diferenciado. Medeiros relata que frequenta pouco essas salas e o último filme

que assistiu o filme O diabo veste prata. Mas, os filmes que são exibidos nessas salas, a sua

maior parte apresenta as soluções fáceis do cinema americano objetivando vender a

realização dos sonhos de uma maneira muito fácil. Nas palavras de Medeiros, o que se

tem no cinema do shopping não é um cinema que instiga como a inventividade que

caracteriza os filmes de Alfred Hitchcock, esse diretor foi criticado durante muito tempo

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e havia os que achavam que o que ele produzia tinha grande valor algum, mas quando

você foram percebendo a forma como ele conduzia o script, como lapidava o olhar do

espectador, como explorava esse olhar e a motivação dessa fixação do olhar, a

combinação com a música e os momento culminantes com um ímpeto maior de som e

intensidade de imagens, é essa junção de elementos que fazem com que os filmes sejam

instigantes.

Outro aspecto a ser considerado na relação da cidade de Conquista com o cinema foi

a presença dos colecionadores de fitas de filmes de 35 mm, na verdade, segundo Medeiros,

eram pequenas partes do rolo dos filmes; quando o rolo quebrava as pessoas emendavam e

colavam, ou cortavam mesmo com o objetivo de vender ou presentear alguém. E aqui em

Conquista tínhamos colecionadores fanáticos de álbuns de fitas, como o Sr. Flick e o Sr.

Melquisedeque Xavier do Nascimento, que era fanático por cinema, alguns

colecionadores tinham vários cadernos preenchidos com pedaços de fita de filmes, outras

tinham um caderninho menor, outros maiores, este era um hobby comum entre os amantes

do cinema, quando os chamados cinema de rua ainda estavam funcionando. Outros

vários álbuns foram surgindo e também outros colecionam, algo que era de suma

importância para o cinema da cidade, mas que marcou a vida de muitos cinéfilos

conquistenses. Medeiros revela,

Eu mesmo conheci a coleção de Melquisedeque e me impressionou não

se sabe onde estão esses álbuns, a família não sabe, em Conquista esse ato

de colecionar partes da fita dos filmes era algo muito presente na vida dos

apaixonados por cinema.14

Como já exposto acima, os moradores de Conquista, pela primeira vez, presenciaram

o fazer de um filme, no ano 1961, cujo roteiro trata de uma das mais importantes

atividades tradições do lugar, praticamente extinta, o tropeirismo que manteve o

abastecimento da Cidade desde a sua origem até os anos 1930, quando começaram a surgir

as estradas e os caminhões. Ainda no que diz respeito ao fazer filmes merece destaque a

produção do diretor Idalino Lima15

, popularmente conhecido por Gaguinho, Gildásio

14

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada. 15

Idalino Lima, mais conhecido como Gaguinho foi um cineasta amador, natural de Vitória da Conquista,

Bahia. Em sua trajetória com o cinema atuou em seus próprios filmes, assumindo o personagem Tonis Lima.

Produziu vários filmes, dentre eles encontram-se O defensor do Brejo, um protesto contra o projeto de construir

uma barragem que alagaria o bairro de Campinhos, em Conquista, e outros filmes como Matar por amor,

Reduto da Vingança, e Em cemitério não se planta andu, planta-se defunto, este último uma reação contra

o ato profano de uma plantação de andu no cemitério dos Campinhos, um filme em defesa e respeito aos

mortos. Irreverente, Lima creditava profundamente no valor de sua produção cinematográfica tanto que par isso

vendeu seus bens para produizir filmes. A sua produção contou com a colaboração do cinéfilo Jorge

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Leite16

, e mais recentemente, George Neri17

. Como um grande incentivador da cultura local

e amante do cinema nacional, Guilherme se mostrou bastante empolgado com o projeto,

relembrando a época em que parte do filme “Central do Brasil” foi gravada na cidade,

com total apoio logístico do seu governo na ocasião. Guilherme Menezes afirmou que

Vitória de Conquista tem uma história com a sétima arte. A gente viu a

emoção de Walter Sales, quando veio filmar Central do Brasil, por estar na

terra de Glauber Rocha. Na visão dele, a cidade foi muito receptiva, a partir

da Prefeitura que forneceu todo o apoio logístico. Um filme como o que

vocês estão produzindo vai incentivar muita gente que está estudando a

linguagem universal do cinema.

Essas novas produções contribuem para que mais indivíduos se apaixonem por

cinema, além de preservar uma identidade cinematográfica para a cidade Conquista,

referenciada pelo nome de Glauber Rocha, mas também projetada para outros países

como um espaço no qual as práticas de cinema se modificam e se expandem em um

processo sócio histórico contínuo. Como um grande incentivador da cultura local e amante

do cinema nacional, a gestão de Menezes apoiou logisticamente o filme Central do

Brasil que foi gravada na cidade, como exposto acima, e evidencia em suas práticas

gestoras sua receptividade ao cinema, a emoção dos indivíduos envolvidos com o

cinema, a exemplo de Walter Sales, emoção essa presenciada durante a estadia desse

cineasta em Conquista, quando da filmagem de Central do Brasil, principalmente por

estar na terra de Glauber Rocha. Toda essa receptividade tem incentivado as ações de

cinema, os estudos e pesquisas na área, demonstrando que Vitória da Conquista tem uma

história com a sétima arte.

Melquisedeque e do ator e diretor Gildázio Leite. A Rede Globo de Televisão chegou a produzir uma

vinheta no programa Fantástico, produzida por Maurício Kubrusly, para exibir no programa Me Leva Brasil. Foi

entrevistado por Jô Soares no seu talk show. 16

17

Gildásio Leite tem sua história de vida marcada pelo teatro e pelo cinema, formado na Escola de

Teatro da Universidade Federal da Bahia nos anos 1960 ele, juntamente com SôniLeite e seus filhos

Gabriela, João Gabriel compõem um núcleo familiar de artistas conquistenses que projetaram suas

vidas nos espaços e trânsitos da arte, incluindo o cinema. Gildásio escreveu roteiros de longa metragem, mas

começou sua vida artística fazendo teatro porque idealizava, sonhava em fazer cinema desde a juventude.

Assistiu muitos filmes no Cine Glória e no Cine Conquista. O primeiro filme no qual trabalhou foi um filme

italiano de Thomás Milliam, da Fama Filmes, um filme sobre o cangaço. De acordo com relato de Leite esse

filme foi exibido no Cine Glória, em Conquista, e era anunciado “com artista conquistense”. O filme era

segundo Leite, um Bang Bang Nordestry, foi seu primeiro filme e tinha como título A Rebelião dos

Brutos, pois na época não poderia ser registrado no Brasil como O Cangaceiro. Leite possui uma cópia do

filme em italiano e a cópia dublada se encontra no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Gildásio

Leite participou de outros filmes na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo; filmes baianos que foram premiados

em festivais nacionais, como o de Brasília, no Festival de Gramado, no Rio Grande do Sul. Participou do

filme Central do Brasil, um filme que revigorou a produção cinematográfica nacional. 17

George Neri é diretor de cinema, natural de Vitória da Conquista, Bahia, é graduado em Comunicação

Social, com habilitação em Hipermídias, tem especialização em Cinema, Expressão e Análise. Neri

comparece no cenário contemporâneo da cinematografia baiana como o idealizado do filme Tragédia do

Tamanduá, que foi exibido no Festival de Cinema de Cannes em 2012.

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3.2 JORGE LUIZ MELQUISEDEQUE: UMA AVENTURA CINEMATOGRÁFICA

O caminho do cinema são todos os caminhos.

Glauber Rocha

Doze anos após a morte de Jorge Luiz Melquidedeque os cinéfilos conquistenses

contemporâneos ainda fazem questionamentos, indagam sobre a relevância de sua trajetória

para as práticas de cinema que foram se constituindo no cenário cultural conquistense ao

longo de mais de duas décadas. Nesse momento rememoramos todo um legado de

aprendizado em cinema partindo do pressuposto de que as trajetórias dos indivíduos vão

se construindo pelas veias da memória, demarcadas por seus enunciadores de um processo

formativo desencadeado pelo amor ao cinema. Daí a relevância do reconhecimento das

vias, dos espaços sócio-afetivos nos quais transitou, organizando novos sentidos para o

cinema.

Foto 14: Jorge Luis Melquisedeque

Fonte:Arquivo Digital Marcelo Lopes

A relação entre trajetória e seu elementos constitutivos é criteriosa, mas ao mesmo

tempo é permeada pela subjetividade. Ao olhar com maior proximidade determinadas

trajetórias, nos deparamos com um pulsar diferenciado, é um olhar que se volta

para as histórias de vida, revelam os indivíduos e suas práticas nos múltiplos aspectos

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presentes na memória e que participam do processo de construção das trajetórias, a

memória está imbricada com as trajetórias e pode ser vista como uma operação consciente,

estruturada no presente. Segundo Wickham,

O nosso conhecimento, tanto passado como do presente, é construído

sobre ideias e evocações na mente presente: não pode ser mais fiel do que

as ideias e evocações sobre as quais se constrói. A confiança que temos na

memória é limitada pela possibilidade de uma nova experiência ou ideias

melhores a contradizerem, tenhamos ou não consciência disso, o que tem

valor na memória não é sua capacidade de providenciar um fundamento

inabalável do conhecimento, mas, simplesmente, a sua capacidade de nos

manter á tona da água. (WICKHAM, 2003, p. 40).

Ao relatar tal operação, involuntariamente as memórias comparecem como

suporte, como modelos de estruturas de aprendizados. Uma trajetória descrita requer

expressividade, não é apenas uma mera construção cognitiva ou um procedimento que

pretende fazer o indivíduo ou grupo de indivíduos reviverem, mas é a possibilidade de

experienciar novamente a duração de suas existências.

Pensando nos processos de formação como práticas geradoras de memória há um

grande eixo de formação teórica e intelectual que se instaura no ambiente cinematográfico,

revelando várias nuances das formações em cinema, seus profissionais, incentivadores e

produtores culturais. A célula de difusão do aprendizado em cinema parte do indivíduo

que se apaixona por essa arte e tem a capacidade de reunir pessoas em torno dela para

discutir ideias, maneiras de expressão em espaços públicos de exibição, mas também espaços

de reflexão político-cultural que compreendem as demandas culturais desses espaços

planejados para tal fim, formam um público organizado, autônomo e independente, são

indivíduos reunidos, capazes de lidar com a cadeia produtiva que envolve a arte

cinematográfica.

Ao elencar algumas questões a serem resolvidas pela trama da memória nos damos

conta de que a vida acaba e as trajetórias dos indivíduos continuam servindo aos mais

diversos propósitos, alguns deles nobres e sublimes. Ao abordar uma trajetória por meio

do registro escrito, ocorre um processo de legitimação da mesma que acompanha os

critérios sobre o que expor, como expor, muitas vezes obedecendo a um código da ética.

A memória então comparece no relato que iniciaremos agora como tudo que nos afeta, nos

toca, nos provoca, nos dá ânimo. O relato da trajetória de um indivíduo supera a própria

vida e morte e escrevê-la é a mais clara evidência de que a vida desse indivíduo

permanecerá. Essa escrita, esse registro é uma necessidade de todos os povos e sociedades,

são narrativas familiares que vão difundindo, conformando o que é esse ser e vem

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justamente selar a idéia de que existe uma unidade na multiplicidade de fatos

memorialísticos narrados.

O interessante aqui não é encontrar na trajetória somente o indivíduo, mas as

relações que ele estabeleceu com o seu próprio tempo e trazer à tona a trajetória de quem já

não está mais entre nós, é trazer indícios, fragmentos que vão constituir um quebra cabeça,

um labirinto discursivo proporcionado pela memória. Isto também traz uma grande

inquietação, dada a própria dificuldade em entrar em tempos diferentes, realizar os

necessários distanciamentos, ou melhor, pedir licença para tal entrada para que possamos

dar uma natureza diferenciada a mesma, dar um suporte material no qual possamos inferir

outros relatos, outras trajetórias próximas que nos remetam às práticas de cinefilia.

Segundo Xavier,

O consumo cinéfilo posiciona o prazer da realidade e do olhar interior,

como modo de filtrar e se portar dentro de um lugar de imagem. A cinefilia

é uma maneira de se inserir e de se portar diante desta falta de direção,

um incômodo com a realidade que convoca o pensamento, “uma aliada

importante das inquietações geradas por variadas formas de resistência à

racionalização, à ordem econômica, ao domínio da ciência, ao senso

comum administrado pela mídia”. (XAVIER, 2007, p. 21).

Portanto, a questão temporal aqui é vivenciada e pode se misturar ao tempo central

da vida do indivíduo e as imagens relatadas conduzem as informações para que tenhamos

referência sobre essas imagens. Outra questão difícil no relato de trajetórias são os juízos

que delas podemos fazer, pois queira ou não, há uma pulsação da memória que em alguns

momentos se tornam seu próprio eixo condutor. Por isso torna-se necessário defender um

ponto de vista, não de forma incipiente, mas construir uma narrativa seguindo as trilhas das

experiências de vida do indivíduo.

Assim, tomando o cinema como um grande investimento humano, a trajetória de

Jorge Luís Melquisedeque se apresenta com as marcas do cinéfilo clássico, aquele que toma

essa arte para si como fonte de amor e aprendizado a ser explorada continuamente, uma

paixão de tamanha intensidade que permite mapearmos suas práticas, perceber suas

mudanças e continuidades, desta forma podemos tomá-lo como referência. Relatamos aqui

como Jorge Luís transmitiu seus conhecimentos e como, em condições específicas, se

destacou nos seus fazeres humanos, a sua trajetória faz sentido no campo no qual foi

forjado, o cinema. Segundo Jorge Luiz,

[...] O mais interessante é que essa memória do cinema persiste como

uma tatuagem no corpo, uma assinatura indelével. Um sinal que só pode

ser visto a olho nu se for de muito perto. Como registro, documento,

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monumento vivo que mexeu profundamente com a vida das pessoas e que,

ao contrário do que normalmente acontece, quanto mais tempo passa,

quanto mais tempo, mais fica viva, intensa, imensa. (Entrevista

concedida por Jorge Melquisedeque ao Jornal da Semana, 2000, p.12).

Como exposto anteriormente, em 1912, Conquista vivenciou a primeira exibição

cinematográfica, ainda num espaço improvisado e desde então, a sétima arte cairia no

gosto da cidade, sendo a principal atividade de entretenimento da população entre as

décadas de 1940 e 1980. Na década de 1970, por exemplo, a cidade chegou a contar com

cinco salas de exibição funcionando ao mesmo tempo e com sessões sempre lotadas.

Vitória da Conquista respirou cinema durante a década de 1990 com tamanha intensidade que

fortaleceu a cidade como espaço da cultura cinematográfica. Segundo Melquisedeque,

Começou a surgir em Vitória da Conquista o interesse de algumas pessoas

de se reunirem para ver filmes mais qualificados, filmes de arte, como

se dizia na época, numa experiência de cineclubismo. E, claro que,

naturalmente, onde eu ouvia falar de cinema, me despertava um interesse

muito grande. [...] E foi nesse contato com o cineclube, na época, que

inicialmente chamou Glauber Rocha, que eu comecei a ver filmes de

outros realizadores, não só do cinema americano, grandes filmes, e

comecei a ver que o cinema tinha outra configuração, que não era

simplesmente aquela de a gente sentar numa sala de cinema pra ver

filmes e depois ir embora para casa. (Fragmento de entrevista realizada

por Milene Gusmão, 2001, p.45).

Ostentando eventos e criando espaços que serviam de resposta às demandas de um

público diversificado e exigente, o cinema era uma dessas atividades que ganharam imenso

valor na cidade. É nessa ambiência cultural, instaurada temporalmente da década de 1980 a

1990 que o nome de Jorge se incorporará às práticas de cinema em Vitória da Conquista.

Foto 15: Jorge Melquisedeque

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Fonte : Acervo Digital Marcelo Lopes

E não é só a prática de assistir a filmes e se sociabilizar nos espaços de exibição que

fazem parte da história e da memória do cinema em Conquista. Sem dúvida, esta cidade

tem elementos especiais para as coisas de cinema, que também povoam a mente de quem

quer fazer. São diversos exemplos, desde Glauber Rocha, ilustre filho da terra, que marca

nos seus filmes memórias da infância na cidade, perpassando pela instauração de

cineclubes, os indivíduos que a compuseram, até a atualidade com o Curso de Cinema e

Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Conforme expõe Jorge Luiz

Melquesedeque:

Em qualquer lugar civilizado do mundo, só o fato de Conquista ser a terra

natal de Glauber, que, não por acaso é reconhecido internacionalmente como

um dos grandes cineastas do mundo, já bastaria por si só para gerar uma

série de empreendimentos e eventos que relacionassem a pessoa e a

cidade, despertando o interesse público e privado, criando uma via de aceso

permanente para sua obra, exemplo, abrindo caminho para o turismo

cultural. (Fragmento de entrevista concedia a Milene em 2001, p. 96).

Ao lidar com trajetórias que aproximam as pessoas da cidade com o cinema,

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temos profícuos resultados, gostos instituídos pela iniciativa de amantes da sétima arte,

nos encontros que aconteciam no Clube de Cinema Glauber Rocha, posteriormente Clube

de Cinema Anecy Rocha, que funcionou de 1975 até 1980. Foi a primeira experiência

cineclubista de Conquista da qual Melquisedeque participou. Conforme depoimento de Jorge

Luiz:

Foi no cineclube que tive a oportunidade de ver filmes que deixavam a

gente fora do ar, porque eram filmes que trabalhavam outras temáticas,

outras linguagens, outra forma de narra, formas pouco usuais, diferente

daquilo que estávamos habituados. Diferente daquela alienação do cinema

americano, cinema comercial americano. Foi ai que entrei em contato com

grandes diretores cinematográficos mundiais e vi pela primeira vez um

filme de Glauber Rocha. Sabíamos que Glauber era um cineasta

conquistense, mas só com o cineclube pudemos assistir a um filme dele.

(GUSMÃO, p. 90, 2001).

Nascido em Vitória da Conquista, Bahia, no dia 23 de abril de 1953, Jorge Luiz

Melquideque começou a frequentar muito cedo o mundo do cinema. Ainda na juventude,

percorreu algumas cidades circunvizinhas juntamente com o seu pai levando algumas

exibições fílmicas para essas cidades. A experiência com o cinema marcou a sua vida

ainda na infância, quando era frequentador dos cinemas da cidade, um encantamento que

herdou da família. Melquisedeque afirma,

Meu primeiro contato com o cinema, especificamente, se deu na década

de 1960, aqui em Vitória da Conquista, e eu posso dizer que isso criou

um impacto enorme em minha vida. Era criança ainda, naquela época, e já

tinha uma imaginação muito fértil de produzir imagens, codificar esse

sonho acordado, de ver coisas na minha cabeça. (GUSMÃO, 2011, p. 59).

Nesse contexto, com a troca realizada por seu pai, de sua própria casa por uma sala

de cinema na cidade de Planalto, Bahia, Melquisedeque, seu pai e mais um tio seu

começaram a fazer sessões itinerantes pela região sudoeste, com dois projetores móveis de 16

milímetros, período em que, para Jorge, ele viveu uma “aventura cinematográfica”, pois

teve a oportunidade de acompanhar e partilhar com seu pai dessa aventura.

Melquisedeque expõe que:

Todo final de semana eu ficava naquela ansiedade, esperando chegar ao

final de semana para poder ir ao cinema de Planalto, abrir o cinema, vender

ingresso na bilheteria, ir para a sala de projeção ver a projeção do filme.

Aí, passei a viver o cinema por dentro, como uma experiência muito

pessoa. Depois, começamos a deslocar essa coisa da exibição de filmes

para outras localidades, outros municípios que não tinham cinema.

(GUSMÃO, 2011, p. 60).

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É justamente aí que podemos nos certificar que essa aventura, conduzida pelo

olhar de um cinéfilo, um apaixonado por cinema, criador de um roteiro repleto de lições de

cinema, trouxe impactos relevantes para a sua vida. Seu talento e dedicação às artes

despontaram desde cedo. Poeta, cronista, contista, publicitário, diretor e produtor de teatro,

cantor, roteirista, videomaker, cinéfilo, um articulado agitador cultural. Esteve presente

no planejamento e execução de atividades culturais, transitando com facilidade pelas artes

visuais, teatro, música, literatura e cinema. A amplitude de percepção do universo que o

cercava transformou-o em referência para as artes em Conquista. Jorge relata:

O meu primeiro contato com o mundo das artes foi com a música e

isso durou até os 16 anos. posteriormente me interessei pela literatura, me

tornando um leitor voraz, e depois comecei a produzir alguns textos tanto de

prosa como de poesia. Da literatura eu parti para o teatro, onde

trabalhamos com grupos experimentais, com peças que marcaram época.

Nós tivemos a oportunidade de realizar em Conquista a peça Morte e

Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que foi um marco na

experiência cultural de minha vida. (Entrevista concedida ao Jornal da

Semana, 2000, p.12).

Temos então uma profusão de imagens da participação de Jorge Luiz na cultura

conquistense. O movimento literário foi um deles, que emerge na década de 1970 e é

conhecida e divulgada com a denominação de Geração Mimeógrafo. Nesse período,

Melquisedeque demonstrou sua inventividade poética e difundiu o que mais tarde viria a

se chamada de poesia marginal. Jorge Luiz propagou, pela primeira vez, a poesia marginal

na cidade, até então um estilo literário desconhecido, quando este tipo de produção literária

estava à margem do circuito editorial estabelecido. A geração mimeógrafo também se

expressou por meio da música, do cinema e da dramaturgia, sendo a sua produção poética a

mais lembrada, possivelmente por ser aquela mais adequada às restrições de suporte

impostas pela página mimeografada daquele período. Mequisedeque naquele momento já

trazia em suas práticas fortes indicativos de que algo diferenciado poderia ocorrer algo

estava a ser projetado como instrumento de motivação das práticas que viriam a fazer parte

de sua vida. Observemos o que relata Vivaldo Leão, personagem que fez parte de uma

distinta estruturação de fazeres e gostos, juntamente com Esmon Primo, eles formaram

uma tríade geradora de interações significativas com a arte que se produzia na cidade de

Conquista até então. Nesse Sentido, a despeito das práticas cotidianas de Melquideseque,

Leão esclarece:

Quando eu fui morar na casa de Jorge era arte pura porque quando eu

fui morar com ele eu já havia ouvido falar dele, queria conhecer pelo

que ele fazia na cidade, então quando a gente se encontrou assim eu acho

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que cinco meses depois a gente tava morando junto e ai o que acontece

eu só via ele montando revista, escrevendo texto, ele falando de cinema,

na prateleira dele tinha muitos livros de cinema de Glauber Rocha de

Hitchcock, era leitor [...] ele tinha caixas e caixas de coleção de livros

ligados a questão de cinema, envolvida a questão espiritual da Índia

da China, livros Zen, Sidarta... agora era aquele cara, leu já tava na

memória.18

(Fragmento de entrevista realizada com Vivaldo Leão – Sabiá).

Possuidor de um talento artístico multifacetado e uma voz marcante podemos

considerar Jorge Luiz, estruturou sua vida na produção, difusão e circulação de atividades

culturais diversificadas, diríamos de aprendiz para fixação de um olhar de mestre, sempre

aberto para as vias sensíveis promulgadas pelas imagens em movimento. Em seu percurso

pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, foi seu primeiro funcionário,

quando essa instituição ainda era Faculdade de Formação de Professores de Vitória da

Conquista - FFPVC, e funcionava no antigo Ginásio de Conquista, em 1973. Nesse espaço

de formação acadêmica, mais também permeado pela arte, Melquisedeque foi um dos

organizadores da Semana de Cultura Regional da FFPVC e na década de 1980 criou o

Projeto Universitário, objetivando a execução de um torneio cultural no qual a

comunidade universitária e a conquistense estivessem presentes. Melquisedeque coloca,

Depois disso fui sincronizando as diversas linguagens. O que eu faço hoje

é um trabalho que mistura a produção de textos com a imagem, com a

própria música. Eu diria que minha experiência cultural hoje é uma

soma de toda essa trajetória pela qual passei. (Fragmento de entrevista com

Jorge Luiz Melquisedeque concedida ao Jornal da Semana, 2000, p.12).

Torna-se pertinente destacar que ainda na referida década, Melquisedeque iniciou um

circuito de produção de vídeos na UESB, e pela qualidade dos mesmos, muitos foram

premiados nacionalmente. Como elemento incentivador, essas premiações permitiram a

criação da Produtora Universitária de Vídeo da UESB – PROVÍDEO e considerando seu

trabalho em ascensão na PROVÍDEO, criou o telejornal Programa Tela Viva, da UESB. A

respeito dessa questão Renato Fernandes expõe:

Jorge amava ver filme, de cinema a gente não conversava muito, não

tinha muito pra falar de cinema, eu não conhecia muito, a gente falava

daquilo que a gente conhecia, produtora de vídeo e TV, de cinema vai ser

mais tarde que ai a casa cai pra gente. Ele tinha paixão por cinema,

adorava filmes, as vezes eu ia até na casa de Jorge pegar filmes porque

todo dia a vida dele era em locadora, enchia a sacolinha e ia assistir

filme, as vezes virava a noite, era o tempo todo assistindo filme, era aquele

cinéfilo de carteirinha, conhecia tudo quanto era filme, tanto é que

18

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013 e ainda não publicada.

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assim eu gostava muito de filme de ação e Jorge sempre fazia pra mim

uma listinha de filmes, ó já sei o que você gosta, ai eu dizia Jorge eu

só gosto de sangue espirrando pela parede agora filme bom, filme que

deixa o cara louco ai ele pegava os filmes mais cruéis que tinha e dava a

lista pra mim, então assim a gente conversava muito de cinema,

comentava a produção, rapaz que cena, mas aquela coisa toda não tinha

muita idéia de como era porque até então ninguém nunca tinha participado

de um set de cinema, de ver como que é. 19

(Renato Fernandes).

Melquisedeque também se destacou como um dos pioneiros do Marketing

Político em Vitória da Conquista produziu várias campanhas políticas para a Televisão local

e regional, marcando um período de expressivo telejornalismo em Vitória da Conquista. Em

1983, ele e a jornalista Sônia Maria Rodrigues da Mota, filha do dramaturgo Nelson

Rodrigues, tiveram uma intensa produção de vídeos, tanto para atender a uma demanda

comercial tanto para satisfazer uma necessidade premente de experimentação. E narra Jorge

Luiz:

Eu sempre tive uma curiosidade muito grande de ver filmes e também de

tentar produzi-los. Então comecei a sonhar com a realização de um filme.

Mas isso era tudo muita fantasia. Depois, com a democratização do

audiovisual, com o advento dos videocassetes e das câmeras domésticas,

comecei a trabalhar na produção de alguns documentários de forma

independente. Em colaboração com Sônia Mota, quando fiz parte da

pesquisa e produção, elaboramos um vídeo e ganhamos um prêmio num

festival de vídeos sobre a terra, realizado pela Unicamp de São Paulo. Foi

daí que começamos realmente a trabalhar com produção de vídeos.

(Entrevista concedida por Melquisedeque ao Jornal da Semana, 2000,

p.12).

A partir daí, certificamo-nos que um olhar treinado foi se sobressaindo, ocupando

outros lugares, outros pontos de indexação com o elemento artístico. O Programa Tela Viva

era um telejornal que fazia uma retrospectiva dos principais fatos e acontecimentos da

Universidade na semana. Segundo Melquisedeque,

A produtora Universitária de Vídeo é uma referência não só para a

universidade da Bahia, como também para outras universidades brasileiras,

por conta dos projetos que desenvolvemos aqui. Nós temos um projeto

de comunicação videográfica, o Tela Viva, que é a produção de um

telejornal semanal, que já entrou no ar em circuito interno aqui na

universidade, tivemos dois anos de experiência via Embratel por antena

parabólica, transmitido para todo o Brasil e alguns países da América

Latina. Agora iremos transmitir o programa via TV Cabrália para uma

região aqui do interior da Bahia. Outro projeto que foi elaborado em

paralelo ao Tela Viva foi o Janela Indiscreta Cine Vídeo Uesb, que é um

projeto ligado a cinema. Já tem oito anos de existência e p Janela

19

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Indiscreta é o projeto que mais tem irradiado para a Bahia e também para

outros nacionais essa coisa de cinema. (Entrevista concedia por

Melquisedeque ao Jornal da Semana, 2000, p.12).

Como foi exposto anteriormente, em 1992, Jorge Luiz Melquisedeque, criou, junto

com Esmon Primo, o Projeto Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, que mais tarde viria a

se tornar um Programa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Esse Projeto,

mesmo não se caracterizando como um cineclube instituído, sempre desenvolveu e

continua desenvolvendo atividades de caráter cineclubistas. Com o slogan “Para ver, ouvir

e falar de cinema”, o Janela Indiscreta realiza não só exibições semanais na UESB, mas

também várias outras atividades ligadas ao cinema e audiovisual, em diversos espaços

sociais, em Vitória da Conquista e outras cidades da Bahia, tendo chegado até a outros

estados como referência em difusão, formação e pesquisas na área cinematográfica.

Foto16: Logomarca do Programa Janela Indiscreta

Fonte: www.uesb.br

Nesse entendimento de ampliação das ações de cinema promovidas pelo Janela

Indiscreta, consideramos também a companhia marcante de Renato Fernandes, cinegrafista

que Melquisedeque respeitava preferencialmente por sua dedicação em aprender e fazer,

isto foi lhe possibilitando se sobressair nos momentos de definir e selecionar imagens.

Jorge creditou no trabalho desenvolvido por Renato as melhores imagens captadas por um

profissional da área. Nesses termos, Fernandes assinala aquilo que mais intriga

Melquisedeque: as condições nas quais as ações do Janela eram realizadas. E narra:

O que eu achava o maior barato era o seguinte hoje em dia você chega

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na internet copia e cola um texto que você quer de um filme, antes você

recortava, tirava Xerox e ia montando a revista, são detalhes que Esmon

vai te dar, de se adequar ao tamanho, dos recortes de tudo, da divisão

da letra, tinha as fontes diferentes era uma confusão velho, então Jorge

sempre participava desse processo e a gente sempre participou junto,

então era assim produzindo vídeo, cuidando do janela e dessa parte do

audiovisual.20

(Renato Fernandes).

Os princípios norteadores que perfazem a trajetória de Melquisedeque também

instituem a memória enquanto linguagem, mantendo uma relação dialógica entre os fatos

narrados e os indivíduos envolvidos nos mesmos. Assim, damos ênfase a algo que foi

enunciado por todos os envolvidos na pesquisa quando discorrem sobre um dos fatos

mais marcantes na vida de Melquisedeque, uma espécie de divisor de águas, se é que

podemos dizer assim, fato que trouxe implicações de outras ordens, reflexivas e práticas:

a efetiva participação de Jorge Melquisedeque nas gravações do filme Central do Brasil, de

Walter Sales Junior, que ocorreram em Vitória da Conquista. Após essa experiência,

Melquisedeque transferiu para o cinema uma outra perspectiva de criação e principalmente

de produção, reinventou um outro prisma inventivo e criativo.

Foto 17: Jorge Luiz Melquisedeque e Fernanda Montenegro, durante as

filmagens de Central do Brasil, em Vitória da Conquista – Ba.

Fonte: sintomadecultura.blogspot.com

E, diante de todo esse fomento à sétima arte, conduzido pelo Janela Indiscreta,

20

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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não podemos deixar de fazer referência a implantação do curso de graduação em Cinema e

Audiovisual na UESB, que veio a dar um maior impulso às ações de cinema na cidade e

na região. Dessa forma, o Janela Indiscreta se apresentou como um dinamizador das

práticas de cinema em Conquista, transformando totalmente a relação entre os indivíduos e o

cinema.

As exibições e ações desenvolvidas pelo Janela Indiscreta reconstruíram uma

identidade própria para a cidade e o cinema, isto partindo de indivíduos que possuíam um

gosto, muitas vezes iniciado na infância, a dar continuidade a esse gosto. Nesse sentido, o

Janela se interpõe como prática de cinema propiciadora de um espaço de produção,

exibição e discussões sobre a sétima arte, sendo constantemente fortalecido por meio do

desejo embrião de tornar Conquista a cidade do cinema por meio da exibições de filmes

nacionais e internacionais, encontros, seminário, oficinas, curso, lançamentos de livros e

exposições, todas essas ações relacionadas ao cinema.

Não podemos falar do Janela Indiscreta sem nos reportamos a dois indivíduos

que se inscreveram em todo o processo de construção do Janela, Vivaldo Leão e Esmon

Primo. Jorge Melquisedeque confiava muito no trabalho deles, principalmente quando havia

uma demanda maior de trabalho, ele respeitava muito o trabalho de quem estava ao seu

lado, isto favorecia o sucesso na execução das ações que realizavam, além de possuir uma

força e a forma como se relacionava com os que estavam próximos dele.

Não por acaso, Jorge Luiz via o cinema como algo que deveria levar o público a

inúmeras experiências da ordem do sensível. Movido por uma crença e um desejo como este

Mequisedeque desenvolveu uma percepção distinta do fazer e apreciar cinema, não só um

olhar mais sensível, mas a criação, desde a infância, de uma célula mãe, um espaço de

viabilização de sonhos. Sua influência foi tamanha para o desenvolvimento do cinema que

grande parte das ações ganham um maior sentido quando nos reportamos ao seu nome.

Ele conta parte de sua história:

Mais tarde comecei trabalhar com o que eu realmente sou apaixonado,

que é o cinema. Passei a minha juventude inteira vendo filmes, e depois,

com a chegada do videocassete, comecei a ver filmes em casa, e sempre

fiquei ligado a esse mundo do cinema. (Entrevista com Jorge

Melquisedeque, concedida ao Jornal da Semana, 2000, p.12).

Durante os anos que promoveu as atividades de cinema na cidade de Conquista,

especialmente na década de 1990 percebíamos que por meio da constância de suas

práticas, um turbilhão de possibilidades criativas e inventivas surgiam na mente de

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Melquisedeque, que viria a se refletir no seu desejo incessante de produzir arte, divulgar,

gerar ações de cinema, como as Mostras Temáticas de Cinema, as produções de

documentários, a promoção de encontros e seminários com a participação de estudiosos e

diretores de cinema. O seu amor pela arte cinematográfica se tornou referência pra o que

viria a ser produzido em arte na cidade de Vitória da Conquista. Seu autodidatismo gerou

frutos e abriu-lhe as portas do universo cinematográfico. Melquisedeque influenciou

decisivamente a vida de muitos artistas conquistenses, tamanha era a admiração que muitos

indivíduos nutriam pela sua capacidade de pensar a arte em uma dimensão para além do seu

processo criativo. Em entrevista, Jorge Luiz expõe:

A partir da prática social de cinema dos cinéfilos conquistenses, pude

perceber como o cinema circula, como é recebido, compreendido e

manejado de maneiras diversas pelos membros de diferentes comunidades,

em contextos distintos. (GUSMÃO, 2001, p. 107).

Sua grande paixão foi o cinema, marca de uma distintiva sensibilidade, visível a

cada nova ação proposta a ser executada. Afirmava com ação o lema que ele defendia, foi

respeitado por todos os artistas de conquista e era constantemente procurado por eles para

que opinasse sobre a arte que estavam produzindo ou iriam produzir, discutindo e

elaborando projetos artísticos. Sua principal escola foi o cinema, as exibições e o

retorno que conseguiu ao promover a difusão dessa arte no Planalto da Conquista. Leão

comenta que:

Jorge era apaixonado por cinema, eu morei com Jorge um ano e uns oito

meses mais ou menos, todo dia depois do jantar ele não via novela ele

deixava o pessoal dele ver a novela, ai depois que acabasse essa

programação ele me chamava ou automaticamente ele botava lá um filme

todo dia ele via filme eu não sei como ele conseguia era demais e outra

coisa de acordo com a necessidade que a pessoa tava passando ele falava

assim você não precisa assistir tal filme. 21

(Vivaldo Leão).

Foto 18: Jorge Luiz Melquisedeque

21 21

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada

.

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Fonte:sintomadecultura.blogspot.com

Movido pelo amor à Sétima Arte, pautou-se na experiência em cinema que dividiu

com seu pai. Olhar a e trajetória de Melquisedeque é oportunizar que a mesma seja

revisitada também por outros olhares, por estudiosos e apreciadores de cinema. Jorge

Luiz conseguiu produzir ao longo de sua trajetória um movimento cinematográfico

revolucionário para o momento ao estabelecer novas formas de fazer cinema na cidade de

Conquista, e por que não, de fazer arte. E narra,

[...] Quando menino, o filme era para mim uma porta de entrada para um

mundo secreto e ambíguo que misturava de tal modo realidade e fantasia

que não dava para divisar os limites de um e de outro, tal a força e o

impacto que procurava sobre os meus tradicionais sentidos. Assim, com

todas as implicações que essa declaração possa causar, cinema era quase

igreja. Uma arquitetura que eu conhecia de olhos fechados, de cor e

salteado, de contar as placas do forro, lâmpadas, palavras de letreiros, filas

de cadeiras e outros detalhes mais. “Êta matemática besta, meu Deus!”.

Mas ajudava a passar o tempo até chegar a bendita hora do filme. (Revista

Eletrônica Moviola. Edição Especial. Janeiro de 2003, p. 59-61).

Sempre gostou de adotar preceitos inovadores, propondo e elaborando ações de

ampliação do olhar por meio do campo artístico do cinema. Sua forma de interagir com

a arte contribuiu para a formação de muitos indivíduos que mais a frente iriam escolher o

cinema como fonte inesgotável de saber, como profissão, ou como apreciadores de cinema

pelo simples e puro prazer estético. De acordo com Melquisedeque,

Ser cinéfilo é se interessar por tudo que envolve a questão do cinema. Eu

costumo dizer que é dormir cinema, comer cinema, acordar cinema, sonhar

cinema, respirar cinema. Então, eu, praticamente, tenho a atenção muito

voltada para essa coisa do cinema, para ler revistar especializadas e

livros técnicos sobre cinema, artigos de jornais que comentem os filmes,

os festivais, as premiações, sobre as novas realizações. As pessoas, que

se consideram cinéfilas, são muito bem informadas sobre o mundo

cinematográfico. (GUSMÃO, 2001, p. 107).

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Mas, se lidar com cinema era um esforço para a época em que Melquisedeque

viajava com o seu pai, era também uma novidade apaixonante que infundia nas suas práticas

o impulso da infância habitada por imagens em movimento, seus sentimentos mais

profundos, seus anseios e descobertas. Não demoraria para que seu caminho convergisse

apenas para a arte cinematográfica pois encontrava-se mais que interessado em fazer e

divulgar o cinema, ir além da abstração, mas uma linguagem a ser compartilhada com os

amigos e com toda a comunidade. Melquisedeque expõe ainda que:

Eu posso dizer que o cinema me ajuda e me leva a pensar muito sobre

certos aspectos da realidade, da minha prática pessoal; eu posso dizer

que, da mesma forma que eu leio livro, que me traz novos conhecimentos e

possibilita uma visão crítica do mundo, o cinema traz a mesma coisa,

possibilita leituras. (GUSMÃO, 2001, p. 117).

O caminho escolhido por Melquisedeque permitiu-lhe por em prática todo o seu

talento, lançando um olhar sobre si próprio, demonstrando como lidar com as imagens em

movimento e nos convidando a conhecer e participar de alguns de seus projetos mais

inusitados. Apaixonado pelo que fazia, Jorge Luiz demonstrou que amar o cinema e

difundir esse amor era essencial para sua vida. A cinefilia potencializa formações e Jorge

apresentou uma trajetória de construção de olhares cinéfilos, feita por fora do processo, já

que Conquista não dispunha de uma escola formativa em cinema; percebemos um gosto

alicerçado na técnica do consumo e no encontro de indivíduos apaixonados pelo cinema.

Esse ativista cultural, em seus 48 anos de vida, trilhou os caminhos do

audiovisual, da música, da literatura e ainda pela publicidade. Sua trajetória tem as marcas

das diversas homenagens que referendam sua trajetória no cinema: encontros, nomes de

rua, dedicações relativas a sua trajetória. Melquisedeque se expressou subjetivamente, mas

se inseriu no mundo do cinema concretamente, articulando práticas socioculturais no

tempo em que viveu. Sua experiência cinéfila e sua capacidade de gerar formações foi

expressiva. Podemos dizer que essa é uma trajetória qualificada e distintiva na qual foram

mobilizados esforços de contato permanente com o experimento artístico cinematográfico.

Vivaldo Leão esclarece que:

A energia de Jorge Luís estava presente, ele conseguia tocar, sentir e

convencer a pessoa a ir então não era só a tela, só a imagem e porque

naquela época tinha o videocassete, era modernidade, tinha gente que

tinha, eu me lembro que chegava na locadora eram 5, 6 fitas no final

de semana era assim, hoje tudo bem tem a pirataria, baixa na internet

eu comprava muito filme ai, hoje minha filha me ensinou, eu assisto filme

na internet tem os legendados e os não legendados mas como a gente

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gosta a gente assiste.22

(Vivaldo Leão).

As práticas cinéfilas de Melquisedeque, estruturadas primeiramente em pensamentos,

depois como linguagem, mobilizam determinadas lembranças que foram incorporadas ao

longo de sua vida, e que são expostas num processo de catarse, no que demos conta de

revelar, reelaborando-as num ato reflexivo e prático do campo cinematográfico. Exposta

esta memória como fluxo de vida, compreendemos os processos formativos, os espaço

de instituição da cinefilia e como as práticas distintivas e distintas estão presentes em

Conquista.

3.3 ESMON PRIMO: PLASTICIDADE CINEMATOGRÁFICA

No contexto atual da pesquisa aqui empreitada, os estudos da memória apontam cada

vez mais para a ideia de que o cinema como arte nos remete a formas de lembranças e que

os registros de imagens em movimento feitos pela memória não trazem uma totalidade do

lembrado, mas compõe quadros de memória. Esses quadros de memória, tecidos por

imagens, não são diferente e remete-nos à memória dos indivíduos que tem a sua história de

vida ancorada nas práticas de cinema.

Objetivando compreender melhor a relação de Esmon Primo com o cinema

necessitamos percorrer suas lembranças, atentando para o relato de como ocorreu seu

encontro com o cinema e as influências mais significativas experienciadas juntamente com

seu irmão Edísio, carregadas de afetividade. Assim, ao percorrer os caminhos traçados

pela memória de Esmon Primo, observamos que três momentos foram marcantes em sua

vida, sendo que os mesmos se encontram interligados por vívidas recordações.

Primeiramente a ida à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 1987, na

qual ele comparece como um anônimo expectador, mas impactado pelo formato do evento

e por tudo que conseguiu vislumbrar durante a edição na qual esteve presente e segundo, o

encontro com Jorge Luiz Melquisedeque e sua efetiva participação na criação do Programa

Janela Indiscreta Cine Vídeo- UESB. E finalmente a terceira questão, a idealização e

execução da Mostra Cinema Conquista que se encontra em sua 10ª edição. A Mostra Cinema

Conquista se realiza em Vitória da Conquista, Bahia, e Primo é o idealizador e

coordenador do evento.

Inicialmente abordaremos neste relato a Mostra Internacional de Cinema como forma

22

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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primeira de compreensão do impacto de um evento em cinema na vida de Esmon Primo.

Logo em seguida, percorreremos a sua trajetória de vida, atentando especialmente para a

sua formação. E por fim, apresentaremos algumas considerações sobre os espaços de

convergência das práticas de cinema as quais Esmon Primo vivenciou.

Ao focalizarmos a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo temos formatado

um festival de cinema que ocorre anualmente na cidade de São Paulo, é um evento

cultural sem fins lucrativos, realizada pela Associação Brasileira Mostra Internacional

de Cinema – ABMIC, sendo outubro o mês oficial de sua realização. A Mostra foi

criada no ano de 1977, pelo crítico de cinema Leon Cakoff que inicialmente resolveu

celebrar os 30 anos do Museu de Arte de São Paulo - MASP. Leon Cakoff era o

programador de cinema do museu e organizou exibições de filmes estrangeiros inéditos

dos anos 1970. Essas exibições tiveram uma boa audiência, evidenciando a necessidade

de disseminação da cultura cinematográfica na cidade de São Paulo. A Mostra teve um

começo difícil, as condições eram precárias, o Museu de Arte de São Paulo não possuía um

bom projetor e o acesso aos filmes não era fácil. A primeira edição da Mostra foi

realizada com um projetor emprestado pelo Instituto Goethe e os filmes estrangeiros

chegavam com a ajuda das embaixadas no Brasil e ainda enfrentavam a censura.

É preciso acrescentar que nas primeiras edições da Mostra de São Paulo o

Brasil encontrava-se sob a ditadura militar, o que fez com que as primeiras sete

edições tivessem muitas dificuldades em razão da censura imposta pelo regime. Desligada

do MASP no ano de 1984, a mostra desafiou a censura instaurando um processo contra a

União, reivindicando o direito de apresentar os filmes selecionados diretamente ao público,

sem censura prévia. A Mostra ganhou o processo contra a União, mas apesar de estar no

último ano da ditadura, 1984, sua programação pública foi suspensa na primeira

semana de sua 8ª edição. A interrupção durou quatro dias, tempo necessário para que os

censores do Ministério da Justiça, chefiado por Ibrahim Abi Ackel, assistissem a todos os

filmes da programação da Mostra. Esse fato repercutiu mundo afora e criou um impasse já

para a edição seguinte da Mostra, apesar do processo de redemocratização que o país vinha

passando com o fim do Regime Militar.

A Mostra começou como um evento realizado exclusivamente pelo MASP e hoje

conta com várias salas de exibição pela cidade, na qual são exibidos mais de 300 filmes

e é reconhecida pela crítica cinematográfica como o maior espaço de visibilidade no

Brasil para o cinema mundial. Durante a Mostra é possível conhecer produções do cinema

mundial, o que revela a sua importância, sua diversidade e principalmente sua influência

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sobre uma geração de cineastas brasileiros que frequentaram e se formaram nesse evento,

isto nas décadas de 1980 e 1990, e que mais tarde viriam a ser chamados de “filhos da

Mostra”.

Durante suas edições iniciais, a Mostra contou não só com uma abrangência nas

exibições fílmicas, mas também com a presença de vários cineastas brasileiros e

convidados internacionais, entre eles, Pedro Almodóvar, Abbas Kiraostami, Quentin

Tarantino, Wim Wenders, entre outros. Com a morte de Leon Cakoff, fundador, organizador

e diretor do evento, a produtora Renata de Almeida assumiu a direção do evento.

A Mostra Internacional de Cinema também iria impactar a vida de alguns indivíduos

como Esmon Primo, provocando um reverberar de práticas de cinema alicerçadas no formato

dessa Mostra. Baiano de Jequié, Primo nasceu no ano de 1957 e é o caçula de uma família

numerosa de 11 irmãos. Seu pai morreu muito jovem e deixou uma prole imensa para que a

mãe e os próprios filhos cuidassem uns dos outros e, como toda família nordestina passou

por dificuldades. Em 1966 a família foi para São Paulo em busca de uma vida melhor,

momento em que os irmãos mais velhos já se encontravam trabalhando nesta cidade.

Esmon Primo relatou que sua família saiu da cidade de Ibirataia e foi morar em

Jequié, ambos municípios baianos. Em Jequié ele morou muito próximo do Cine Auditório

e ao buscar lembranças do cinema nesse momento de sua vida Esmon Primo conta que

quando tinha oito anos de idade, seu irmão Edísio, que era muito habilidoso e já gostava

de cinema, produzia em madeira várias peças em miniatura e fazia também os cineminhas

de madeira, a casa do cinema em miniatura, e colocava uma lente para poder brincar. De

acordo com sua narrativa, Primo reitera essa perspectiva de proximidade com o cinema ao

colocar que:

Enquanto os outros meninos colecionavam figurinhas, ele colecionava fita

de cinema, eu me lembro muito bem, ele guardava as fitinhas com maior

carinho, tipo slide, era como se fosse um projetor de slide, mas feito em

formato de cinema ele, colocava ali as fitinhas, não me lembro se ele

juntava os quadrinhos pra contar a história no final como algumas pessoas

falavam, eu lembro que ele colecionava fitas de cinema, que ele ia lá pro

projeto São Luís como o menino do Cinema Paradise, o Totó, então ele

ficava no pé dos projecionistas e conseguia as fitas que ele gostava como

Sara Montiel, os cowboys todos, ele cortava e colocava no papelzinho tipo

como se faz em slide e aí ele construía a casinha do cinema sem o teto,

botava a lente, luz e botava a fitinha pra ampliar ai trocava e ele brincava. 24

(Esmon Primo).

Esse relato comparece apenas como uma das formas de se relacionar com o cinema,

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isso até ir morar em São Paulo com sua família. Nessas circunstâncias, a vida do próprio

indivíduo é tomada como memória, como trajetória de formação humana, o indivíduo

fala de si e a memória vai se estruturando nos processos formativos como matéria

prima da imaginação e essa, parte constituinte dessa existência humana. No período de 1966

a 1976, já em São Paulo, Esmon Primo expõe que seu irmão Edísio adorava cinema, e seu

irmão mais velho, que segundo Esmon, era um artista plástico maravilhoso, era envolvido

com a cultura, com a arte da música e do teatro, ele levava a cultura para casa, as informações

culturais, a exemplo dos discos dos Beatles, dos Rolling Stones.

Lidamos então com os desafios proporcionados pelo contato com as imagens em

movimento e seu impacto na formação dos indivíduos. Diante desse desafio torna-se

necessário relembrar as experiências de vida, pois o gosto pelas imagens fílmicas não se

explicam por si só, mas tem a capacidade de dizer quem somos. Nessa perspectiva, Esmon

ressalta,

Foi muito marcante e esse filme que está passando hoje, O ano em que

meus pais saíram de férias parece demais comigo porque eu tinha

exatamente em 1970 eu tinha 13 anos e é a idade do menino que relata no

filme. O Edilso sim ia ao cinema, era invocado com Marlon Brando, John

Wayne, em abril de 1970 todo mundo se uniu pra comprar a televisão pra

assistir a Copa que é exatamente o que relata o filme, então tem muito a ver

com isso, compramos o ABC a Voz de Ouro, aquela de madeira que tem

uma coisa côncava e ai foi uma festa e ai os baianos ficavam quase 24

horas grudados na frente da televisão.23

(Esmon Primo).

Ao se reportar para o ano de 1976, já com a televisão em casa, Primo conta que

assistia em preto e branco os seriados, as seções especiais de cinema da TV

Bandeirantes, o Cine Mistério, e segundo relata, muito tempo depois é que foi perceber

a importância dos filmes tais como Frakenstein. Então começou a prestar atenção nos

atores como Bores Karloff, Viccent Price, filmes de faroeste e admirava Gary Cooper. Havia

também as seções noturnas, nas quais assistia filmes juntamente com seus irmãos

homens, compravam pipoca e ficavam até tarde da madrugada assistindo filmes.

A abertura de horizontes para novas perspectivas do que pode ser lembrado aos

poucos vai se alicerçando em práticas, permitindo a continuidade da narrativa de Esmon

Primo que nos conta sobre seu encontro com o cinema. Segundo ele, esse enlace se deu

primeiramente no compartilhar de suas experiências com seu irmão Edísio, que ia muito

ao cinema e quando um pouco mais adulto, assistindo aos filmes exibidos na televisão.

Nos revelou também que eles tinham uma prima chamada Flor de Nice, ela trabalhou mais

23

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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de 10 anos no bilheteria do Cine Windson. A fala de Esmon traz um modo inicial de se

perceber em um espaço de cinema e ele discorre sobre essa experiência:

O Cine Windson de São Paulo ficava na Av. São João, maravilhoso, uma

lembrança que tenho é que os três filmes de Roberto Carlos, Roberto

Carlos em ritmo de aventura, Roberto Carlos e o diamante cor de rosa e

Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora, esses três filmes ela pegava

eu e meus irmãos mais novos e levava pra ver.[...] Foram os filmes que fui

assistir no cinemão mesmo. A bilheteria era caríssima, mas ela nos levava

como primos. Eu me lembro muito bem do acolchoado do piso, o

carpete era tão grosso que a gente se sentia na lua.24

(Esmon Primo).

Essas palavras, em primeira instância, vão traçando os caminhos de uma

aproximação com o cinema, um olhar em formação. No ano de 1977 a família de Esmon

volta para Salvador, depois Jequié, momento em que começou a trabalhar. Nos anos de 1977

a 1981 trabalhou com desenho técnico em várias empresas, pois tinha habilidade para

desenhar e havia feito um curso por correspondência de desenho arquitetônico. Nesse

período frequentou algumas seções de cinema na Sala Walter da Silveira, em Salvador. No

ano de 1982 começou a trabalhar na Secretaria de Agricultura do Estado da Bahia. Com a

morte de sua mãe em 1983, Gil Novais, que trabalhava na mesma Secretaria que ele, o

convidou para morar em Vitória da Conquista. Foi quando conhece Jorge Luiz

Melquisedeque, que o levou para trabalhar na Universidade Estadual do Sudoeste da

Bahia. Gil Novais nessa época já trabalhava com teatro, assim conheceu Gildásio Leite que

também era artista de teatro e estava com uma peça em cartaz em Conquista, Os órfãos de

Jânio, juntamente com a atriz Mônica Medina, então Primo produziu os desenhos para

os cartazes dessa peça.

Pensando a memória como algo dinâmico e vivo, que dispõe de encontros entre os

indivíduos, chegamos ao momento em que Esmon Primo se aproximou de Jorge Luiz

Melquisedeque: o ano é de 1984 e temos Primo fazendo agronomia na UESB, curso que

ele abandonou mais tarde. Quando se encontrou mais próximo de Jorge, eles realizaram

alguns projetos culturais, a exemplo do Projeto Universitário de 1985 e 1986. Esse projeto

era resultado da junção das gincanas culturais que aconteciam da UESB. Segundo Primo,

estavam envolvidos na produção desses eventos culturais ele, Jorge Luiz e Vivaldo Leão.

Sabemos também, a partir do relato de Primo que nos anos iniciais em que morou em

Vitória da Conquista ele começou a ver filmes no Cine Madrigal. Mas, ao nos colocar

diante de certas formações, percebemos que elas são mediadas por diversos encontros e

partilhas entre indivíduos, no caso de Primo, isso se realizou por meio do encontro com

24

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Jorge Luiz e as lembranças desses relatos são processos de permanente aprendizado. Diante

dessa colocação, torna-se importante ressaltar o relato abaixo feito por Primo,

Mas eu posso dizer que marcante pra mim foi em 1987, eu fui a Mostra

Internacional de Cinema em São Paulo, tenho guardado até hoje os

folhetins, foi quando me chamou atenção de ter um papelzinho, uma

folhinha, o fato das pessoas irem ao local e receberem o papelzinho,

isso me chamou muito a atenção, depois eu fui a várias outras, mas a

primeira foi a que me marcou foi em 1987. Durante essa Mostra eu ia a

umas palestras e um filme marcante que eu assisti e inclusive nós

passamos a semana passada no Janela Indiscreta foi Asas do Desejo, eu vi

na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vi novinho, estreando, me

abalou, me chocou profundamente.25

(Esmon Primo).

Em 1988 Esmon Primo começou a colecionar coisas de cinema influenciado por

Edísio, seu irmão, que já colecionava O Folhetim, um encarte cultural que vinha com o

jornal A Folha de São Paulo e que trazia crítica de cinema; depois colecionou Mais.

Dessa forma, Primo começou a comprar O Folhetim, e até hoje possui esta coleção, depois

começou também a colecionar Mais. A intensidade com que seu irmão se vinculou ao

cinema e logo depois Primo, que também passou a ser um colecionador de coisas de cinema,

é fruto de uma relação afetiva, mas também formativa, que foi se constituindo no

ambiente familiar.

Foto 19: FOLHETIM, (06/02/1983) traz textos sobre os atores imaginários/MAIS (de

08/03/1992) discute o feminismo.

Fonte:www1.folha.com.br

Em 1987, Primo firmou seu interesse pelo cinema, começou a ler os textos da

25

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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jornalista Ivana Bentes, que já era uma pessoa da área do cinema. Nesse mesmo ano ele

começou a colecionar um jornal chamado Tabu com os textos publicados por essa jornalista

e dez anos depois de iniciar sua coleção, Esmon trouxe Ivana Bentes à Conquista para um

evento promovido pelo Programa Janela Indiscreta.

Nesse contexto, Primo narra que em 1989, já trabalhando próximo a Jorge e

Sabiá, juntos deram apoio logístico à Guido Araújo quando ele veio à Conquista para

inaugurar um projetor de cinema de 35 mm objetivando promover a Mostra de Cinema

Glauber Rocha. Assim, eles produziram o folhetim da Mostra, Jorge Luiz escreveu um

texto para esse folhetim. Nessa Mostra foram exibidos os filmes Deus e o Diabo na Terra

do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, este evento era uma ação da

Fundação Cultural do Estado da Bahia. A inauguração do projetor aconteceu no Centro de

Cultura e segundo Esmon, após essa exibição, o projetor nunca mais abriu suas lentes,

infelizmente o projetor se auto desfez por falta de uso.

Ao investigar os mecanismos de formação em cinema e sua reverberação em

práticas, atentamos para o que se transmite e o que é transmitido entre os indivíduos

envolvidos em ambiências culturais distintas, isto nos remete a uma forma de consumo

simbólico e ao estabelecimento de um gosto que vai se revelando na maneira como esses

indivíduos mobilizam determinados saberes.

Nessa perspectiva de formação, Primo contou que em 1989, Jorge Luiz criou a

primeira agência de publicidade de Vitória da Conquista e o chamou para participar da

Produtora de Vídeo VTV, e é justamente quando começou a aprender a trabalhar com

produção audiovisual, por meio da proximidade com Melquisedeque, foi se envolvendo

com o cinema, produzindo alguns vídeos documentários nos anos de 1989, 1990.

A partir dessas experiências de produção, os aprendizados em cinema foram se

desenvolvendo com maior intensidade. Em 1991 Jorge Luiz e Gileno Paiva conversaram

com o então reitor da UESB, Pedro Gusmão e a Gerente de Extensão, Milene Gusmão,

que ainda hoje reafirma seu diálogo com as práticas de cinema que veio fomentando

desde a criação do Programa Janela Indiscreta, juntos essas pessoas construíram a Diretoria

de Recursos Audiovisuais - DITORA, antes denominada de Subgerência Técnica

Operacional de Recursos Audiovisuais – STORA. Nesse encaminhamento, produziram

alguns vídeos institucionais, a exemplo do vídeo chamado Extensão na UESB, mas Jorge

Melquisedeque, de acordo com Primo já vinha produzindo alguns vídeos com Sônia Mota

e Bira Mota, a exemplo do vídeo Chacina de Sarampo.

No ano de 1999, Primo conta que a UESB comprou a primeira ilha de edição com

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todo equipamento para a produtora de vídeo da universidade, a PROVÍDEO, que tinha

Jorge Luiz como coordenador de produção de vídeo e Esmon como editor de vídeo e

nesse período produziram muitos vídeos institucionais e culturais na cidade. Nas palavras de

Primo,

Jorge já tinha uma experiência de cineclube a muito tempo e eu tinha aquela

história das Mostras de Cinema. Vendo como as pessoas faziam as

Mostras, aí fui me interessando e também me envolvendo com as

atividades culturais que tinham na cidade, assim me envolvi com música,

teatro. Eu ficava nesse meio não só na produção cultural da cidade, mas

começando a me envolver nessa produção de vídeo, almejando alguma

coisa nesse lance de cinema em função da coisa de Glauber. E a gente

começa a conversar sobre isso, que Glauber não tinha um cinema que

pudesse ser diferenciado, então fomos construindo essa ideia de

criação do Janela Indiscreta.26

(Esmon Primo).

Assim, compreendemos que já havia uma formação em curso, os sentidos e a

sensibilidade foram se organizando por meio do contato com as imagens em movimento.

Primo relata que em 1992, quando aconteceu o PROLER Módulo Zero eles já estavam com

uma equipe de audiovisual da UESB e nessa época exibiam o que se produzia nos

televisores espalhados pelos campi da universidade, nos pátios da UESB de Itapetinga e

Jequié, faziam jornalismo sem mesmo existir o curso, mas essas práticas já apontavam

para um futuro próximo que foi a criação da TV Universitária- TVU.

Foto 20: Exposição em 9ª Mostra de Cinema Conquista

Fonte: WWW.UESB.BR

Especialmente neste evento do PROLER Módulo Zero aconteceu a primeira exibição

26

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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de filmes com comentário, feito por uma pessoa de Brasília, amiga da professora da UESB,

Ana Isabel, que comentou o filme Estranho no Ninho. Primo relatou que um momento

interessante foi o da produção do vídeo desse PROLER. Nesse ano de 1992, Jorge Luiz

estava envolvido com a campanha política, então Primo e Valério, funcionários da

UESB, produziram o vídeo. Esmom Primo ressalta que ele gostou muito desse momento,

pois se envolveu muito com essa produção. Em maio de 1992 Jorge Luiz convenceu

Gileno Paiva e Pedro Gusmão a comprar um telão, e Esmon foi buscar em São Paulo e este

telão já veio com esse sentido, para exibição de filmes, pois para exibir melhor era

necessário ampliar as imagens dos filmes que seriam projetados no Proler. Nas palavras de

Esmon,

Eu acho que antes de estrear o Janela em 1992 a gente fez a edição de

um vídeo especial sobre o Proler, então fui aprendendo todas essas

etapas da produção de audiovisual, ás vezes pegava na câmera, mas não

gostava muito, até hoje não gosto. Gosto de olhar e saber o que é uma

boa imagem e fui aprendendo a ter esse olhar. Renato, assim como eu, é

autodidata, mais foi tendo uma noção muito boa, eu e Jorge Luiz

adorávamos as imagens de Renato: ele compõe o tema que você quer

muito bem enquadrado, o olhar foi se formando.27

(Esmon Primo).

Nessa parceria de criação e produção, Esmon Primo e Jorge Melquisedeque,

produziram clipes poemas, e de acordo com Esmon este foi mais um momento interessante

que eles produziram juntos e que um dos clipes poemas que tem a participação da professora

Lana Sheila, despertou a atenção de uma pessoa muitos anos depois, e ela comentou

que o vídeo parecia com os vídeos de Pina Bausch. E Primo fez a seguinte reflexão:

Jorge tinha uma concepção artística muito boa e muito referencial

porque ele já tinha lido tudo e opinava, ele acreditava muito em mim

também, confiava em mim, e muita gente queria ser consultada por ele,

ser ouvida e ai ele saia na casinha ao lado pra atender as pessoas.28

(Esmon

Primo).

Retomando algumas colocações expostas anteriormente neste trabalho,

particularmente a respeito da criação do Programa Janela Indiscreta, Esmon Primo conta

que ele tem certeza de como surge o nome do Programa, uma lembrança que aparece

como desafio e ao mesmo tempo como ponto de coesão entre os fatos lembrados, isto

porque a experiência com o cinema é capaz de reter quadros de memória, podendo haver

uma memória em curso, com negação ou avivamento de outras memórias. E no avivar da

sua memória Primo conta,

27

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada. 28

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Uma coisa eu tenho certeza foi o momento em que rolou o nome, eu e

Jorge Luiz estávamos andando em direção à Pracinha do Gil e

encontramos numa mesinha de bar Zélia Chequer, Zélia Saldanha e

Fernando Martins, ai a gente fala pra eles que iriamos colocar em

prática o projeto [...] Lá na pracinha do Gil não tínhamos nome, o

nome saiu dali, de um desses três e a gente convidou Zélia Saldanha para

comentar o filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.29

(Esmon Primo).

Dessa forma, aconteceu a primeira exibição fílmica do Janela Indiscreta. Esmon relata

que eles montaram a folhinha Zero, ele tinha um livro que seu irmão Edísio lhe deu,

Hitchcock- Truffaut- Entrevistas, então foi folheando o livro e xerocando algumas folhas

para depois fazer uma colagem e os textos foram batidos na máquina de datilografar, as

letras eram diminuídas na xerox e recortadas para se adequarem ao formato que se

mantém até hoje. Assim, nasce o Janela Indiscreta em 27 de novembro de 1992, com o

formato que Esmon havia sugerido: um folhetim para entregar as pessoas como ele havia

presenciado em 1987, quando esteve na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,

folhetim este que ele guarda até hoje. O único diferencial foi o texto crítico que eles

acrescentaram ao folhetim, inclusive a inclusão de alguns texto da revista Tabu da qual tirou

xerox dos textos de Ivana Bentes para construir as folhinhas de cinema.

Com relação à curadoria dos filmes a serem exibidos no Janela, Esmon e Jorge Luiz

faziam juntos, criaram também as Mostras Temáticas, a exemplo da Mostra Xô Vietnã em

alusão a um texto de Ivana Bentes. A média de público era de 100 pessoas todas as

sextas feiras, eles faziam o convite às pessoas da comunidade e conseguiam manter um

público constante.

Foto 21: Esmon Primo

29

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Fonte: www.uesb.br

Atualmente, Esmon possui duas ou três fitas com comentários que foram feitos dos

filmes exibidos no Janela, com nomes como Zélia Saldanha, Padre Baldate, Ayrsom

Heráclito, Rui Medeiros, Zé Raimundo, Milton Camargo entre outros. E Esmon

acrescentou em sua narrativa que alguns filmes a serem exibidos eles assistiam antes,

principalmente Jorge Luiz, que era um cinéfilo inveterado, outros eles se concentravam na

leitura de textos críticos sobre os mesmos, sobre a sua importância no mundo do cinema,

assim havia todo um cuidado dentro do contexto nos qual estavam inseridos. A esse

respeito, Esmon expõe os filmes que mais lhe impactaram como espectador:

Um filme que me impactou muito foi Asas de Desejo, quando assisti de

1987 e por ter assistido ele no momento em que estava sendo lançado,

que foi em São Paulo na Mostra de Cinema, agora foi exibido no Janela

Indiscreta. Mas são muitos filmes, falo do filme e do prazer que dava a

gente também de proporcionar isso a outras pessoas, você tem

Caravággio que foi o terceiro filme que a gente botou no Janela, outro que

achei que foi fantástico foi O Baile, depois você tem Priscila, a Rainha o

Deserto que teve um comentário fantástico do professor Marcelo Moreira,

ele fez uma performance pra comentar o filme, ele e a professora Graziele

Novato, ele entra vestido de gueixa, de tamanco de madeira, sendo

escoltado por dois rapazes de vestidos de dregs, com aqueles penachos

abanando e o povo ria achando tudo maravilhoso.30

(Esmon Primo).

E, nessa ambiência, temos por suposto que é desafiador levar cinema de qualidade

para um determinado público. A Mostra Cinema Conquista surgiu em 2004 e suas duas

primeiras edições aconteceram no Cine Madrigal. Contudo, para a comunidade conquistense

30

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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a Mostra se apresentou como formadora de público: disseminou a produção

cinematográfica brasileira, ao mesmo tempo em que dinamizou a cultura regional. É uma

ação que ganhou imenso valor ao longo de dez anos de realização.

Foto 22: Logomarca da Mostra Cinema Conquista

Fonte: www.uesb.br

A produção, exibição e discussão da Sétima Arte foi sendo fortalecido ao longo dos

anos, ampliando suas ações e se consolidando como mais um forte evento de cinema no

país, principalmente por promover exibições de filmes nacionais e internacionais,

encontros, seminário, oficinas e cursos. Ao refletirmos sobre alguns aspectos vinculados a

relação de proximidade que se estabeleceu entre os indivíduos da cidade com o cinema

percebemos a existência de um gosto que remonta as ações realizadas pelo Programa Janela

Indiscreta. O programa expõe e debate produções cinematográficas e estimula o gosto pela

sétima arte com exibições de filmes de sucessos nacionais e internacionais. É

fundamental não perder de vista que a Mostra Cinema Conquista constituiu-se nessa

ambiência proporcionada pelo Janela Indiscreta.

Assim, a Mostra organiza-se em um formato de exibição de filmes de longa

metragem e curta metragem que primam pela autoria, pela experimentação, pela

linguagem cinematográfica. Observando com olhar de espectador contundente que tem

acompanhado as ações de cinema na cidade percebemos que não se trata somente de

exibições de filmes, mas de uma prática que remete à socialização e a formação de um

gosto, o prazer de compartilhar com outros indivíduos os espaços de exibição que fazem

parte desse evento.

Ao relatarmos aqui a trajetória de Esmon Primo, especialmente a constituição de

seu vínculo inicial com o cinema, perpassando pelo seu encontro com Jorge Luiz até seu

posicionamento como criador e executor da Mostra Cinema Conquista, buscamos

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evidenciar a intensidade desse olhar e dessa práticas, ao mesmo tempo em que

evidenciamos como o poder da imagem em movimento nos remete à formações sensíveis,

abrindo outras vias de assimilação da arte cinematográfica.

Assim, pensar o cinema como prática formativa é buscar compreender como os

indivíduos vivenciaram essa experiência. As informações relatadas por Esmon Primo se

colocam como fonte inesgotável de saberes, são trajetórias como estas que promovem

maiores possibilidades de discussão e reflexão sobre as práticas realizadas. Entendemos que

este relato faz parte de um elo de contribuições, de encontros entre indivíduos com o

cinema e essas contribuições se colocam como pertinentes, pois produzem memórias ao

mesmo tempo em que promovem a valorização da imagem em movimento como

conhecimento inesgotável.

3.4 MARCELO LOPES

Foto 23: Marcelo Lopes

Fonte: sintomadecultura.blogspot.br

A produção cinematográfica brasileira hoje vive uma situação peculiar, há

convergências de inspirações propícias para a inserção do ato criativo, gerando propostas e

produções de grande relevância para o cenário do cinema nacional. Alguns profissionais têm

a capacidade de ampliar o conhecimento, convertendo-o em inspiração para a

realização de trabalhos consistentes. Atualmente no Brasil contamos com um público

receptivo aos bons lançamentos, que tem consciência do seu poder de acesso aos

recursos necessários para usufruir das Leis de âmbito Federal de Incentivo ao Audiovisual. O

cinema brasileiro persiste em ser indústria, e x p a n d i r t a m b é m n e s s a

d i m e n s ã o , é uma forma de resistência de quase meio século em tentativas bem

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sucedidas no campo da arte cinematográfica, mas ainda não se consolidou como economia.

Importa assinalar que reconhecer as condições sociais nas quais o cinema emerge não

significa recusar a ideia da essencialidade da arte na sua melhor expressão, as imagens em

movimento ainda permanecem com a essencialidade que lhe deram origem.

Nesse contexto de possibilidades da expansão cinematográfica encontramos com o

cinéfilo Marcelo Lopes. Lopes, 40 anos, nasceu em Vitória da Conquista, Bahia, historiador

formado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, com Especialização em

Educação, Memória e Cultura – UESB. Lopes é um artista múltiplo, e dentre suas

frequentações e experimentações n o campo d o c i n e m a e das artes plásticas e visuais,

encont ra -se a tualmente p roduz indo o documentário Contra o Veneno Peçonhento

do Cão Danado, uma produção do projeto Memórias da Cultura Popular, realizado pelo

Instituto Mandacaru de Inclusão Sociocultural, em parceria com diversas instituições

locais.

Contra o Veneno Peçonhento do Cão Danado é uma produção que tem por objetivo

o registro de saberes populares, pautados nos mais diversos temas da história cotidiana. Numa

linha de narrativas relacionadas a guerra e a violência, disputas de poder político e mitos

populares, o curta metragem de Lopes tem como meta tornar evidente um universo

histórico e mágico que vem se perdendo na contraposição do campo com a urbanização

dos nossos dias. Este roteiro foi aprovado pelo Edital Setorial e Audiovisual de 2012, do

Governo do Estado da Bahia, por meio da Secretaria de Cultura, Secretaria da Fazenda e

Fundo de Cultura da Bahia – FCBA.

Foto 24: Cartaz do documentário Contra o veneno

peçonhentodo cão danado

Fonte: sintomadecultura.blogspot.br

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O Documentário Contra o Veneno Peçonhento do Cão Danado propõe registrar a

prática popular conhecida como o “Santo Lenho”. Um ato simbólico de proteção

sobrenatural que “fecha o corpo” do praticante. Uma tradição pouco divulgada em

manifestações públicas, só conhecida por seus iniciados, mas divulgada pela população por

meio de relatos e “causos” curiosos.

E é a partir de um espaço constante e prazeroso de vivências com o cinema, entre

elas o espaço d e f r e q u e n t a ç ã o e p r o d u ç ã o que percorreremos a trajetória de

Marcelo Lopes pelo universo do cinema. Nas palavras de Lopes, relatadas em entrevista,

toda a sua vida foi marcada pela imagem, desenhista desde os quatro anos de idade,

sempre interpretou o mundo por meio das imagens. Foi ao cinema pela primeira vez aos sete

anos de idade, na cidade de Goiás, onde residiu por um período de sua vida. Relatou que

recentemente uma amiga sua postou uma foto na internet em que se encontra com os

amigos do colégio, com uma reprodução da imagem do Oscar na mão, um bonequinho

nos moldes do obje to que representa o Oscar , ficou feliz ao rever a foto e

relembrar suas vivências e experimentos com o cinema. Lopes sempre desenhou muito,

assistiu muito filme, leu e estudou muito sobre cinema, isto para entender o filme, entender

a história do cinema, se aproximar ao máximo desse universo.

Foto 25: Animação - Marcelo Lopes

Fonte: Arquivo Pessoal– Marcelo Lopes

Sua experiência mais marcante com o cinema foi o t r a b a l h o q u e

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94

r e a l i z o u no Programa Janela Indiscreta. Chegou ao Programa por já conhecer Jorge

Melquisedeque, coordenador do Janela, nos espaços de publicidade nos quais ambos

trabalhavam, Lopes com desenho e publicidade, e Melquisedeque com produção de

vídeos. Esse conhecimento, o encontro de Jorge e Lopes proporcionou a sua ida para o Janela.

Além da publicidade, Lopes pertencia também ao meio artístico conquistense, fazia teatro

com o artista plástico Ayrson Heráclito e o escritor e jornalista Moisés Maltta durante os

anos de 1990, produzia franzines com ilustrações suas e era iniciado nos espaços de cinema.

Antes de começar a trabalhar formalmente no Janela Indiscreta Marcelo Lopes já estava

atuando como colaborador. Em 1994, quando ingressou no no curso de história da UESB,

fez uma seleção para estagiários, passou e começou a trabalhar no Projeto Tela Viva, se

aproximando ainda mais ainda do Janela Indiscreta. Na UESB teve a oportunidade de

realizar muitos projetos na área das artes juntamente com os historiadores Caio Cesar e

Elton Quadros. Produziram juntos um fanzine denominado A Cachumba Desceu e a

revista de poesia Mercúrio. De acordo com Lopes, a experiência de trabalhar em um

projeto institucional que discutia cinema de maneira ampla, como o vínculo entre cinema

e aprendizagem, formações em cinema, possibilitou que essa arte se tornasse imprescindível

para ele, pois só assistir aos filmes não bastava, tinha necessidade de estudar, discutir,

precisava conhecer a história do cinema, buscar uma forma de aproximar o cinema da

vida de outras pessoas, para que elas também pudessem ter um contato mais sensível

com esse mundo de imagens em movimento. Assim, nesse período algumas pessoas em

Conquista começaram a buscar cinema e audiovisual, terem um contato mais próximo

com o cinema, irem além da perspectiva do cinema como diversão: s e g u n d o L o p e s

e l e s desejavam estudar 24 quadros por segundo a câmera escura. E prossegue seu relato,

Isso me fez lembrar que quando eu tinha 8 anos em Goiás, um tempo muito

quente, o quarto de minha mães era dividido no meio e eu passava o

tempo todo lá vendo o povo passar do lado de fora por meio de um buraco

que tinha na porta e ficava ali várias horas observando aquela luz entrando

e projetando as pessoas de cabeça para baixo e dando notícias da rua, eu

guardei isso, quando juntei isso tudo mais a sensibilidade para desenhar,

pude compreender um pouco dessa minha paixão pelo cinema.31

Após a conclusão dos estudos referentes ao segundo grau, Lopes leu muita

literatura e com muita intensidade, foi nesse momento começou a escrever seus

próprios roteiros para suas histórias em quadrinhos, então desenhava e escrevia seus

próprios quadrinhos. Este processo era compreendido como um caminho possível para o

31

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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cinema. Foi um período em que assistiu muitos filmes no Janela Indiscreta. E relata,

[...] eu vi muito filme interessante no Janela, por conta do Janela alguns

diretores que eu conhecia e que não conhecia, pude também ajudar a

pensar as ações de cinema, nas exibições e trabalhar na coordenação era

um exercício, uma possibilidade de estar próximo ao cinema; então não

era só assistir, era estar próximo de quem produzia, quem realizava, quem

estudava, de diretores, de críticos e cineastas. 32

O material que foi produzido pelo grupo de pessoas que trabalhavam no Programa do

Janela sobre as locações do filme Central do Brasil que aconteceram em Vitória da

Conquista foi recuperado quando o Janela fez 10 anos de existência, material esse que

foi feito em VHS continha textos de Jorge Melquisedeque sobre essas locações, então

Lopes copiou, digitalizou e postou na internet essas imagens para que as pessoas tivessem

acesso a elas redimensionado a importância dessas imagens no processo de

compartilhamento. E expôs mais algumas informações sobre esse momento da filmagem de

Central do Brasil:

Naquela época foi o primeiro momento de Melquideseque em um sete de

filmagem e para mim e para muita gente, aquele momento era

emblemático para a história do cinema brasileiro, nos estávamos aqui e a

gente estava lá no set de filmagens. Um tempo em que o cinema precisava

ser retomado33

.

Nesse período Lopes acompanhava as produções realizadas pelo Janela na mesa de

edição e antes de acompanharem as filmagens de Central do Brasil ele já tinha aprendido a

editar, pois o meio digital facilitava muito o trabalho. A logomarca do Janela foi Marcelo

Lopes quem criou, antes tinha as fotos de Glauber Rocha, depois a imagem de Glauber foi

retirada e deixaram só as mãos e o artista plástico Edmilson Santana fez um selo

comemorativo para os vinte anos do Janela Indiscreta.

Assim produziu algumas animações e pequenas vinhetas para o Janela e para o Tela

Viva, tudo ainda muito artesanal, na ilha de edição da UESB, onde não havia a inda uma

mesa de registro para filmar. Segundo Marcelo Lopes, o desenho era pregado em um canto

da sala e o cinegrafista Renato Fernandes ia captando as imagens, quadro a quadro, não

havia disparador, era tudo artesanal. E narra seu encontro com Valter Salles e Valter

Carvalho, instante em que puderam abordar abordam a produção de curtas metragens em

animação no Brasil:

32

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada. 33

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Tivemos um momento com Valter Salles e Valter Carvalho e em uma

salinha ao lado da ilha de edição em que ficamos uma tarde toda

conversando sobre cinema de animação e Carvalho me falou de um dos

maiores animadores e conhecedores de cinema de animação, ele já

conhecia muita coisa de animação e falou-me de Marcos Magalhães.34

Foto 26: Marcelo Lopes, Jorge Melquisedeque e Valter Salles

Fonte: Arquivo Pessoal – Marcelo Lopes

Marcelo Lopes trabalhou no Programa Tela Viva produzindo e fazendo pautas

semanais que naquele momento para ele era de grande responsabilidade. Segundo Lopes,

Melquisedeque tinha um projeto de produzir o documentário Das inquietações do defunto

novo, ele havia escrito o roteiro. Jorge tinha muitos trabalhos escritos, mas não havia

apoio para produção, existia uma distância

muito grande entre o que era vídeo e o que era cinema: o suporte, a linguagem de

televisão estava ali no Tela Viva, mas ainda não era cinema.

Foto 28: Filme: Indiana Jones:

Ilustração de Marcelo Lopes

34

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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Fonte:Arquivo pessoal de Marcelo Lopes

No relato de Lopes, a vontade de fazer cinema sempre esteve presente, todas as

pessoas que passaram pelo Janela I n d i s c r e t a continuaram de alguma forma

produzindo cinema ou buscando algum caminho de proximidade com o cinema. E mais,

[...] fomos estimulado pelo Janela, eu lembro que fomos em um mercado

cultural em uma época e fui falar do Janela, foi o primeiro momento que

nós sistematizamos os trabalhos e tivemos a real dimensão do que era o

Janela Indiscreta, e sempre foi assim, muitas ações e muita intensidade

na realização das mesmas.35

De acordo com Lopes, Jorge Melquisedeque teve papel fundamental no processo de

continuidade das ações caráter formativas juntamente com as pessoas que passavam pelo

Janela, ele era uma figura referencial, um talento que escondia seu dom de cantar, os seus

discos, mas levava seu trabalho muito a sério, e este trabalho era compartilhado, era um

encontro com o cinema no dia a dia dessas pessoas de uma forma muito inicial, mas que

trazia alegria e prazer para quem integrava os grupos que naquele momento estavam

envolvidos com cinema em Vitória da Conquista.

Passei dez anos no Janela trabalhando com Jorge, o conheci quando

trabalhava com publicidade, ele incentiva tudo que produzíamos e tinha o

poder de jogar o potencial da pessoa para frente. Estimulava isso também

no cinema. Aprendemos a fazer projetos nessa época, a gente escreveu a

Mostra Mais Amado de Cinema, e tivemos alguns percalços por ainda

estarmos aprendendo a fazer esses projetos.36

35

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada. 36

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada

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Retomando o início desse relato, Marcelo Lopes escreveu o projeto para a filmagem

do Santo Lenho, história que recortou de uma conversa com Vivaldo Leão, trata da história

oral, da cultura ora e já possui quase 60 horas de gravação de áudio. Sua equipe de

produção percorreu várias localidades para gravar, mas expõe que não é fácil, é

necessário ser forte e tem como exemplo o diretor de cinema George Neri, que tem uma

linha de trabalho bem definida. Segundo Lopes, ele se dedica exclusivamente ao cinema,

possui uma formação em cinema. Ao comentar sobre a produção de Neri, Lopes fala

também sobre o trabalho em cinema da família Leite: Paulo, Gildásio, Sônia, João Gabriel

e Gabriela, eles estão relacionados com o teatro e o cinema a muito tempo, eram até bem

recente os únicos artistas que estavam envolvidos com a produção cinematográfica, pois

tirando o mercado publicitário e o trabalho de vídeo da UESB, a família leite era quem

trabalhavam com cinema.

De acordo com Lopes, hoje temos dois motivadores para produção audiovisual:

primeiro, o avanço da tecnologia que tornou possível fazer cinema e segundo, a formação

das pessoas interessadas em fazer cinema, aliadas a viabilidade financeira das produções.

Antes tinhamos os filmes em VHS que eram locados em lojas especializadas e

dificilmente vinham com o making off do filme, hoje todos os vídeos já vem com o

makyng off, contribuindo para a formação, o configurar de um outro processo de

aprendizagem para as pessoas interessadas em cinema. Outra questão importante

salientada por Marcelo Lopes foi a implantação do curso de comunicação na UESB, a

criação do Programa Janela Indiscreta, o curso de cinema e audiovisual, tornando

possível a produção de cinema em Vitória da Conquista, o que tornou essa cidade um

lugar de referência em cinema no interior da Bahia. E mais,

[...] poucos lugares tem um grau tão sensível e tão afinado com o cinema

como Conquista para discutir cinema por conta das experiências que

existem aqui, com a possibilidade de discutir cinema de uma forma muito

reflexiva, estão discutindo cinema em todas as áreas do conhecimento.37

Sob o olhar atento de um apaixonado por cinema Lopes coloca que existe uma

demanda de produção muito forte em Conquista, mas que sempre foi dificultada pelas

condições de produção, este foi o caso de vários artistas que saíram de Conquista em

busca dessas condições. Hoje em dia tudo se encontra mais acessível produzir cinema.

Observa-se também, nas palavras de Lopes, uma migração hoje em dia dos grandes atores

do cinema para televisão, alguns fazendo minisséries e outros que saem das minisséries para

37

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada.

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o cinema ou vice versa, como Morgan Freeman e David Rofman que transitam de uma

forma muito fácil, mas competente. Produzir cinema visualizando todas as suas

possibilidades criativas deixou de ser algo tão distante. O suporte dos filmes modificou as

instâncias produtivas e Lopes relata:

Com o filme em suporte digital você pode exibir em grandes festivais

como George Neri exibiu A tragédia do Tamanduá. Então o suporte

material das entrevistas que estou realizando, de pessoas comuns,

desconhecidas e outras de renome nacional e internacional como Geraldo

Sarno, Saulo Laranjeira, João Ubaldo Ribeiro, mas todas elas falam da

mesma coisa.

E uma forma que ele escolher se expressar, ele tem essa coisa do incentivado,

essa chancela é interessante, é incentivado, você não tem um mercado autônomo para

isso, e tem uma coisa que você tem que pensar se você tem um conteúdo legal, eu aprendi

roteiro fazendo, mas como eu discuto cinema essa linguagem o tempo todo e consigo ver

todo o processo para que seja bom para mim e bom para as pessoas que vão assistir e um

currículo que te ajuda a produzir o próximo, e esse era o pensamento de Jorge, eu mandei o

e-mail para Ubaldo e ele me retornou com um e mais inteiramente, eu consegui entrevista

com Saulo Laranjeira com muita dificuldade para conseguir gravar, e não adiante ficar

nervoso, te que ir lá e fazer. Marcelo Lopes participou de todo o processo de filmagem de

Central do Brasil que ocorreram em Conquista.

3.5 MÔNICA MEDINA: DO VÉU TEATRAL À ESFINGE DE ROTEIRISTA

Foto 29: Mônica Medina

Fonte: Arquivo Pessoal - Mônica Medina

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O passado e o presente não designam dois movimentos sucessivos, mas

dois elementos que coexistem, um que é presente, e que não cessa de

passar, outro que é passado, e que não cessa de ser, mas para os quais

todos os presentes passam [...]. Em outros termos, cada presente reenvia-se a

si mesmo como passado [...].(VASCONCELOS, 2006, p.23 apud

DELEUZE, 1966, p.54-55).

Mônica Medina Santos Almeida Neves nasceu em Itambé, Bahia, morou em Vitória

da Conquista durante muitos anos e atualmente é professora do Curso de Cinema e

Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Licenciada em Desenho e

Plástica pela Universidade Federal da Bahia, possui especialização em Psicopedagogia e

experiência na área de Artes, com ênfase em artes visuais. Como cinéfila inveterada e

colecionadora de revistas de cinema, atuou e atua na área de cinema/vídeo, desenvolveu

trabalhos relevantes para a produção baiana, com o recebimento de premiações

nacionais e participações em mostras internacionais, a exemplo dos vídeos Olhos de

Lince, que angariou o 1º lugar - Prêmio aquisição melhor direção e melhor vídeo ficção

- Centro Cultural Dennemann e Oeste, com o 2º lugar- Prêmio Fundação Cultural da Bahia,

exibido no festival de Tókio. Possui o seu roteiro cinematográfico Outono registrado na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Evidenciamos que a obra dessa artista tem recebido críticas relevantes tanto relativas

a sua produção em cinema quanto em artes visuais, a exemplo de artigos publicados pela

mídia impressa em colunas de arte de importantes jornais de circulação nacional, com

autorias de críticos e artistas renomados como Walter Salles (Folha de São Paulo,

02/04/98) Matilde Matos (A tarde 20/07/94), Justino Marinho (A Tarde, 14/07/94). Seu

trabalho de criação plástica e audiovisual tem sido objeto de pesquisa e investigação

científica de muitos estudiosos baianos, a exemplo do trabalho monográfico (strictu sensu),

Os Artistas Plásticos e Performance na cidade de Salvador: um percurso histórico

performático, da autoria de José Mário Peixoto Santos, disponível em

www.bilbiotecadigital.ufba.br. Vem atuando na área de educação desde 1987 quer seja

nos ateliês de arte, p r o d u t o r a s d e v í d e o , galerias, museus, quer seja em centro

de ensino médio e técnico e ensino superior. Percorrer essa trajetória é rememorar,

Em outras palavras, enfim, as lembranças pessoais, exatamente localizadas e

cuja série desenharia o curso de nossa existência passada, constituem,

reunidas, o último e mais amplo invólucro de nossa memória.

Essencialmente fugazes, só se materializam por acaso, seja porque uma

determinação acidental precisa de nossa postura corporal as atraia, seja

porque a própria indeterminação dessa postura deixa o campo livre para o

capricho de sua manifestação [...]. (BERGSON, 2006, p.59).

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Ao relatar a sua trajetória de Monica Medina com o cinema, expor as experiências de

vida coletadas em entrevista, podemos perceber a dimensão de proximidade que a arte ganha

em seu relato, pois sua relação com o cinema e as artes plásticas perpassam a sua memória

com extremada nitidez. Nas palavras de Medina, a sua proximidade com o cinema, o seu

interesse e paixão arte tem a ver com suas memórias, com as suas memórias de sua família,

pois seu pai e seus familiares sempre gostaram de arte, de cinema. Desde criança queria

fazer cinema, porque acreditava que o cinema aglutinava todas as artes e nessa época nem

mesmo sabia o que eram todas as artes. No início dos anos de 1970 seu pai e sua família

tinham o hábito da leitura de jornais e revistas, hábito que já era do pai de seu pai. Então,

Medina lia o Jornal A Tarde e no domingo seu pai comprava a Folha de São Paulo. Seu

interesse maior na Folha de São Paulo era sobre os filmes que eram lançados e as

notícias sobre os grandes artistas do cinema, ela era apaixonada pelas fotos desses

artistas. Alguns filmes que estavam em cartaz ela assistia na Rede Globo de Televisão, na

Sessão da Tarde que nesse período exibia os grandes filmes de Hollywood e os filmes da

Chanchada Brasileira, com a part icipação de Grande Otelo e Oscarito. Assim, ia ao

cinema todos os domingos e durante a semana assis t ia os f i lmes na TV.

Já nas sessões da tarde e da noite, quando passava grandes filmes, sua mãe ficava

com ela para assistir. Ao nos darmos conta do relato de tais fatos podemos vinvulá-los a

seguinte colocação de Bergson,

Trata-se de recuperar uma lembrança, de evocar um período de nossa

história? Temos consciência de um ato sui generis pelo qual nos

afastamos do presente para nos recolocarmos, primeiro no passado em geral

e depois numa certa região do passado, trabalho de tenteios, análogo ao

ajuste de um aparelho fotográfico. Mas nossa lembrança continua em

estado virtual; dispomo-nos assim apenas a recebê-la adotando a atitude

apropriada. Pouco a pouco, ela aparece como uma névoa que se

condensasse; de virtual, passa ao estado atual; e, à medida que seus

contornos vão se desenhando e sua superfície vai ganhando cor tende a

imitar a percepção. Mas permanece atada ao passado por suas raízes

profundas e, se, depois de realizada, não se ressentisse de sua virtualidade

original, se, ao mesmo tempo e m que um estado presente, não fosse

algo que contrasta com o presente, nunca a reconheceríamos como

lembrança [...]. (BERGSON, 2006, p.48-49).

Em 1974, seu tio Toteles Correia de Melo, que era escrivão de Vitória da

Conquista, por ser cardíaco foi convalescer na fazenda do pai de Medina, na fazenda Barra

da Jibóia, em Itambé. Por ser um intelectual ele levou muitos livros para a fazenda, então ela

lia e alguns livros ainda não conseguia entender, mas lia porque gostava de ler, ela e seu

primo Atreves Maciel, hoje estudioso do cinema e da filosofia. Além de levar livros, seu tio

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levou também jornais de 1917 e dos anos de 1920, com notícias de Grande Otelo com uma

foto sua aos 17 anos de idade, quando ele começa a fazer teatro de Vaudeville e Music

Hall no Rio de Janeiro. Medina relata que a memória é algo que a move. Seu tio

também tinha todas as revistas O Cruzeiro desde e a revista Fatos e Foto. No folhear

dessas revistas podia ler notícias sobre as filmagens de E o Vento Levou e se recorda:

[...] ainda não tinham escolhido a atriz principal, fizeram na época teste

com várias grandes atrizes de Hollywood inclusive Katherine Brown, Bette

Davis, Paulete Goldar, mas não escolhiam quem iria interpretar a

personagem de de Scarlatt O’hara em E o Vento Levou. Na revista dos

anos de 1930 li sobre quando a Vivien Leigh casa-se com o Laurencio

Olivier, grande ator de teatro e cinema da época e vem da Inglaterra.

Vivien Leigh era uma inglesa de 25 anos, que vem para Estados Unidos

para fazer o teste para o filme e a escolheram para o papel de Scarlett

O’Hara. Então eu li aquilo como se o filme não tivesse acontecido ainda. 38

Torna-se importante salientar como as imagens e notícias veiculadas por essas revistas

e jornais impactaram a vida de Mônica Medina, a freqüência com que lia e acompanhava

a vida dos grandes astros do cinema. Medina tinha a leitura dessas revistas como uma

necessidade primordial, colecionava-as, amava lê-las e lia sobre os filmes que iam

acontecer, via os comercias das atrizes famosas, aprendia muito lendo notícias de cinema

e livros de literatura. Sempre gostou de literatura, teatro, artes plásticas e cinema e música

só pra ouvir. Isso era seu mundo, não queria fazer outra coisa na vida a não ser viver o

mundo das artes.

Monica Medina começou a descobrir a pintura em 1976 quando residia na cidade de

Itambé – Bahia. Desde criança tinha especial atração pelo desenho, queria aprender a fazer o

retrato dos astros e estrelas do cinema que estavam estampados nas revistas, mas também

estava ligada ao teatro, atuando como atriz e produzindo textos teatrais. Quando foi morar na

Casa dos Artístas de Conquista, em Salvador, no final dos anos 1980, ela já colecionava as

revistas Cinemim, Galeria das Artes e Grandes Artistas. A Cinemim continha todas as

informações sobre o mundo do cinema.

38

Fragmento de entrevista realizada pela autora em dezembro de 2013, ainda não publicada

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Foto 30: Revista Cinemim Nº 12- 5ª Série- Dezembro/1984-Ebal

Fonte: produto.mercadolivre.com.br

No ano de 1983, já residindo em Vitória da Conquista, apresentou sua pintura ao

público conquistense por meio de uma exposição coletiva de artes visuais. Acompanhando

o teatro e a pintura, Medina também produziu vídeos, uma paixão que a acompanha em

consonância pela sua paixão pelo cinema. Essas artes são estudadas e pesquisadas

constantemente por Medina, assim os seus projetos seguem uma linha teórico racional que

remete as produções.

Mas, seu grande sonho era fazer um filme, participar da produção de um filme. Nas

palavras de Medina, em 1985, seu primo Alterives Macedo fez um curso de roteiro de

cinema e ganhou um prêmio que era para produzir em 16 milímetros um curta metragem:

chamava-se A Nova Canaã. Medina e suas tias ajudaram a fazer os vestidos das beatas do

filme. Em Janeiro de 1985, ela e sua irmã Flor de Nice foram para Salvador para

atuarem no filme de Macedo. Filmaram na Catinga do Moura, em Jacobina, onde

encontra-se uma mina de ouro. No ônibus em que foram para essa localidade estavam o

d i r e t o r d e c i n e m a Edgar Navarro, Fafá Pimentel e o fotógrafo Vitor Dinis, que

nesse período já fazia documentários em curta metragem. Alterives produziu e dirigiu esse

filme com muito dinheiro investido. Elias esclarece que,

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[...] no estágio atual do conhecimento, chegamos ao ponto de reconhecer

que as experiências afetivas e as fantasias dos indivíduos não são

arbitrárias – que têm uma estrutura e dinâmica próprias.

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Aprendemos a perceber que essas experiências e fantasias individuais,

num estágio primitivo da vida, podem influenciar profundamente a

moldagem dos afetos e a conduta em etapas posteriores [...] (ELIAS, 2000,

p.37).

Medina estudou e leu muitos roteiros, queria fazer dramaturgia, ficção e

documentário, para tanto era imprescindível que assistisse muitos filmes e se dedicasse

seriamente a um processo de estudo e pesquisa ininterrupto, mantendo-se firme no desejo de

produzir cinema . Em 1993, em Salvador, na casa de Vitor Diniz e fazendo faculdade de

Desenho e Artes na Universidade Federal da Bahia - UFBA, resolveu escrever um roteiro

para a Bienal do Recôncavo: Olhos de Lince. Preocupada com a miséria, com a dor, o

descaso, a memória e com a falta de ternura e delicadeza na vida das pessoas, escreveu

esse roteiro e filmou com a ajuda de Esmon Primo e Ayrson Heráclito e ganhou o

segundo lugar na premiação da Bienal. Em 1999, Medina produziu com o apoio da UESB o

vídeo Outono que aborda a decadência e renovação da vida dos seres humanos nesse

Planeta. Essas lembranças são fortemente marcadas por um processo de atualização.

Bergsom coloca que,

Imaginar não é lembrar. Uma lembrança, à medida que se atualiza,

sem dúvida tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira,

e a imagem pura e simples não me remeterá ao passado a menos que tenha

sido de fato no passado que eu a tenha ido buscar, seguindo assim o

progresso contínuo que a levou da obscuridade para a luz. (BERGSOM,

2006. p.49).

Momento marcante para Medina foi quando ela e Marcos Primo, seu assistente de

produção, foram para o Rio de Janeiro. Walter Sales ficou encantado com o documentário

Outono, achou lindo o desenho do filme. Infelizmente acabou não filmando as histórias.

Depois desse roteiro fez outros trabalhos, perfazendo um total de 05 longas metragens em

documentário. Todos os seus trabalhos ela escreve, produz, dirige e edita com a mediação

preponderante das frequentação estética aos filmes, que alimentam suas produções. Medina

dedicou cinco anos ao seu filme Outono que acabou não sendo filmado, então voltou a

pintar telas e comercializá-las angariar fundos para filmar sem precisar de ajuda. Passou

então um tempo em São Paulo ministrando aulas de desenho e arte. No momento, atuando

como professora do Curso de Cinema da UESB encontra- se filmando O Espelho de Vênus

e Aflição.

Mônica Medina, no período em que algumas cenas do filme Central do Brasil

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106

foram filmadas em Vitória da Conquista teve a oportunidade de conhecer Walter Sales, o que

possibilitou que ele também conhecesse seu trabalho em audiovisual. Na Folha de São

Paulo de 2 de abril de 1998 o diretor Walter Sales em entrevista especial para a Folha.

Na pré-estreia de Central do Brasil realizada em diversos pontos do país,

pude encontrar cineastas com projetos tão íntegros e radicais quanto o de

Karin. Como Edgar Navarro e o belíssio O homem que não dormia projeto

que espera 20 anos para ser filmado. Ou Mônica Medina, roteirista de

grande originalidade de vitória da Conquista. A exemplo de Mário Peixoto,

podem não ganhar festivais ou competir no Oscar. Mas talvez possam

mais: fazer filmes com o grau de permanência de Limite. Filmes

radicalmente instigantes, inovadores, que dão vontade de fazer mais

cinema. )Parte da entrevista de Walter Salles).

Em correspondência de apreciação do trabalho de Medina Salles narra seu encontro

com a mesma, o contato com seus vídeos, afirmando que ficou profundamente impactado

com a densidade temática de seu trabalho, como exposto em imagem de FAX abaixo:

Foto 31: Fax Símile de Valter Sales à Mônica Medina

Fonte: Arquivo Pessoal – Mônica Medina

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O cinema de autor é uma tradição e continuará como uma escola de pesquisa e

renovação da linguagem é uma alternativa que alguns cineastas buscam uma saída para a

criação de trabalhos ausentes no mercado. O cinema de autor traz em seu bojo filmes

excelentes, com numerosos prêmios, nacionais e internacionais. D e a c o r d o c o m

Gustavo Dall – O conceito de indústria cinematográfica foi forjado em Hollywwod nos

anos de 1920 com os grandes estúdios. O que dá escala econômica a esta indústria é o

comercio exercido nas grandes salas onde se dá o consumo e pelos distribuidores que a

alimentam. Aí se cria a indústria, a produção, ou melhor ao sistema inteiro: produção,

distribuição e exibição nas grandes salas onde se dá o consumo e pelos distribuidores que a

alimentam. Aí se cria a indústria, a produção, ou melhor ao sistema inteiro: produção,

distribuição e exibição.

O país vive um momento singular de produção cinematográfica, tanto para seus

realizadores como para seu publico. O momento é precioso para que possamos compreender

as experiências do passado e do presente e nos perguntarmos sobre a sociedade do cinema

do futuro, assim temos Instituto Nacional do Cinema, a Embrafime, o Conselho Nacional de

Cinema.

Sem a imaginação criadora o mundo da arte não pode libertar o homem de suas

limitações. A possibilidade de criar uma experiência humana mais satisfatória depende

dessa imaginação criadora. O surgimento do cinema é uma representação, um espetáculo

pago, no qual o filme na tela se revela e é revelado a esse espectador que comprou seu

ingresso para que tivesse acesso a esse espetáculo. Podemos considerar também em

alguns países como o Brasil onde o nascimento do cinema é a filmagem. A produção

desenvolve-se juntamente com a ampliação e consolidação de um circuito exibidor.

3.6 USINA DE IMAGENS: DA CINEFILIA PARA AS VÍDEOLOCADORAS

Chegarei assim ao campo e aos vastos

palácios da memória, onde se encontram os

inúmeros tesouros de imagens de todos os

gêneros, trazidas pela

percepção.

Santo Agostinho

Em um momento especial de final de tarde, depois de alguns encontros marcados, foi

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possível encontrar com Hélio Flores Filho e manter um diálogo sobre sua relação com o

cinema, conhecer um pouco do seu percurso como cinéfilo e ao mesmo tempo como

proprietário do CANAL 3, locadora de vídeo de referência na cidade de Vitória da

Conquista, principalmente por conter em seu catálogo desde os filmes considerados clássicos

do cinema até os últimos lançamentos do mercado cinematográfico e também por ser uma

das últimas locadoras que tem enfrentado o processo avassalador de fechamento dessas

lojas. O CANAL 3 se apresentou como um local motivador para se falar da experiência

de Hélio Flores com o cinema. Ao longo desse encontro ele buscou apresentar, por meio de

seu relato, as várias posições assumidas no espaço da cinefilia, partindo de uma quase

devoção praticada na infância, perpassando por seu encantamento com os filmes e seu

consumo, até seu depoimento a respeito dos processos comerciais imbricadas na gestão de

uma vídeo locadora. Hélio Ferraz Santos Flores Filho tem 33 anos, atua como psicólogo a 3

anos e meio e também como bancário. Nesse ínterim, também assume o papel de

proprietário da CANAL 3 Vídeo Locadora, empreendimento que tem mais de doze anos de

existência em Vitória da Conquista. Estudou Comunicação Social na Universidade Estadual

do Sudoeste da Bahia, mas abandonou o curso no quinto semestre para tomar posse no

Banco do Brasil, aos 19 anos.

O impacto emocional propiciado pelo ato constante de assistir filmes pode levar

alguns indivíduos a intensificar seus processos afetivos muito mais do que normalmente se

pensa, conferindo a esse ato um elo para uma provável formação cinéfila. Partindo desse

pressuposto, uma investigação sobre a força da imagem em movimento diante das práticas

geradas no contato com o cinema, permite compreender o poder dessa arte, algo que pode ir

além do local de exibição dos filmes ou do público que o assiste e adentrar-se nas escolhas

individuais, impregnando partes de toda uma vida. Nessas circunstâncias, quando se trata de

abordar o posicionamento de um cinéfilo em determinados espaço e formatos de acesso aos

filmes, isso se torna essencial. Tendo como referência essa paixão, o que vai se constituir

como vínculo entre a cultura cinematográfica é traduzido por um universo de desejos

próprios, anunciados pelas práticas de cinema nas quais se encontra mergulhados.

Nessa combinação de cinema e desejo se alicerçam a constituição de um gosto,

manifesto em rememorações, tornando o amor por essa arte único e ao mesmo tempo

universal. Uma das razões para essa continuidade se encontra na revitalização que o próprio

cinema inspira, somados a habilidade distinta que o cinéfilo adquire para o ver, prática que

permanece e se impõe em uma infinidade de matizes: são ações individuais, ampliadas no

coletivo por meio de aprendizagens e experiências de vida.

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As formas de lidar com a imagem se transformaram significativamente durante a

década de 1990. Na medida em que a essa transformação veio acoplada a exibição de

filmes e seu acesso, as consequências foram bem maiores: as mudanças provocadas

principalmente pela evolução das novas tecnologias vinculadas à captação de imagens

foram alterando toda uma cadeia produtiva relacionada às vídeos locadoras em todo o

mundo. Em vários lugares, tais como os Estados Unidos, a Inglaterra e países da Europa, e

mais tarde o Brasil, abriram suas lojas que tinham como objeto comercial o aluguel de

filmes.

Pautada neste formato de produção, observa-se que com o passar do tempo os

suportes de registro fílmico foram se modificando, favorecendo o surgimento de novas

formas de assistí-los em casa, provocando uma diferenciação no seu acesso e ao

mesmo tempo um enfraquecimento comercial das vídeo locadoras que necessitam a todo o

momento passar por processos de adaptação tecnológica, reafirmando assim a exigência

de uma reestruturação no formato das mesmas no Brasil e no mundo. Nogueira esclarece

que:

Ao descrever a sala de cinema quase como um templo, Sontag a eleva ao

único lugar onde filmes poderiam ser verdadeiramente apreciados, ambiente

no qual os cinéfilos honrariam seu objeto de culto; um culto entre

estranhos, imersos em escuridão quase hipnótica, hábil em “sequestrar” o

olhar do qual o cinema é digno e, assim, não ter sua atenção

desrespeitada. Á primeira vista, a observação de Sontag faz sentido, mas

não exatamente pelo argumento da atenção, e sim pelo tradicionalismo da

sala de cinema. (NOGUEIRA, 2012, p. 515).

Não são recentes as discussões referentes ao fim das vídeolocadoras, mas essa

questão vai além da simples adequação dos meios audiovisuais às convenções estabelecidas

pelo acelerado avanço tecnológico. A internet, diante da utilização dos diversos suportes já

criados para exibição de filmes, entra como fator decisivo de alteração, pronta para instaurar

uma nova maneira dos indivíduos se comportarem diante da tecnologia digital, além de

considerar como fatores importantes de modificação no modo de acessar os filmes, a

saber, a inclusão de outros meios de acesso ao cinema que vão imediatamente se vincular a

práticas tais como a pirataria e o download de filmes. “A internet tem aumentado

consideravelmente nossos processos cognitivos individuais e coletivos, através do acesso a

uma riqueza de dados multimídia em tempo real, multiplicando dessa forma nossa percepção

e nossa memória”. (LEVY, 2011, p. 19).

Com isso, as mudanças propiciadas pelo advento das novas tecnologias à indústria

cinematográfica começaram a apontar diferentes tendências para os produtos ofertados nas

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locadoras. Enquanto a maioria das lojas de locação de filmes foi fechada, diversas empresas

investiram na internet, criando estratégias de envio de filmes pelos correios, modificando

hábitos próprios também dos apaixonados pelo cinema. Dessa maneira, apresentou-se

como oponente das locadoras de vídeo locadoras também televisão a cabo, mesmo

considerando que uma pequena parcela da população tem acesso a esse bem de consumo,

outra importante parcela não terá acesso, ou terá, mas com qualidade inferior.

Diante de tantos aparatos tecnológicos subvertendo uma ordem que ora fora

instaurada pelo aluguel de filmes em espaços formalizados, alguns estudiosos do assunto

apontam que uma nova tecnologia digital pode ser também a salvação do sistema de locação

de filmes. Assim, temos no mercado recentemente os discos Blue Ray ou HD-DVD, uma

nova formatação de DVD que pode armazenar uma quantidade maior de informações.

Atualmente é possível encomendar filmes sem sair de casa, existem as locadoras

virtuais, na qual o cliente pode assistir ao filme quando quiser, e não apenas no horário

determinado pela emissora, contando inclusive com os mesmos recursos do DVD. Até

mesmo as vendas de DVDs nas locadoras estão ameaçadas, ainda mais porque o próprio

comprador, um navegador em potencial dos sites especializados em cinema, pode baixar

um arquivo digital pela internet, disseminando a tendência de uma diminuição nos preços

dos mesmos.

Desse modo, o advento dos DVDs, Blu-rays, home theaters e o desenvolvimento

de grandes TVs de plasma e LCD atingem os desejos cinéfilos justamente por aproximar o

espectador dessa experiência, não nos mesmos moldes instituídos anteriormente pela

cinefilia clássica; contudo, é a exclusividade da sala de cinema e seus espaços de

sociabilidade, projeção para o qual foi planejada. Nas palavras de Ferreira:

A partir do momento que se esboçam gerações que, desde cedo,

tiveram contato direto, de modo intuitivo e autodidata, com o

ciberespaço, que nasceram numa sociedade onde a televisão e os

aparelhos domésticos de reprodução audiovisual já estavam estabilizados,

que cresceram em meio aos joysticks e cartuchos durante a popularização

dos videogames – o que naturalmente as aproximou das mídias digitais,

novidades tecnológicas e de toda lógica de convergência -, surgem

também novas maneiras de interação e de veiculação de conhecimento

entre o individuo e os outros indivíduos, entre o individuo e o mundo e

especialmente entre o individuo e o seu próprio consumo. (FERREIRA,

2011, p. 34).

O ver filmes no cinema, como nos primórdios das exibições, constituía- se um ato

de legitimação. Diretores de cinema admirados são, portanto, dignos de serem vistos em tela

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grande, de terem toda sua grandeza explorada. “Os cinéfilos podem agora priorizar a própria

experiência de assistir em relação ao que assistir, pois aprimoram suas escolhas com um

grau maior de velocidade e aproximação dos filmes, fazendo incursões antes

inimagináveis” (NOGUEIRA, 2012, p. 37).

As locadoras que ainda resistem a tudo isso ainda têm de enfrentar as máquinas de

aluguel que se encontram instaladas em alguns espaços comerciais, sendo que aquelas que

conseguirem enfrentar esses períodos de mudanças constantes poderão dar continuidade aos

seus negócios. Diante do exposto é possível fazer um paralelo entre o fechamento da

maior parte das salas de cinema e cineclubes e algum tempo depois, das vídeolocadoras,

isso considerando uma nova organização de ambas em escala mundial, um processo que

pode conferir à arte cinematográfica rápidas evoluções no seu modo de ser e se apresentar

na sociedade. Nos últimos anos, no terreno das práticas significantes designadas pela

rubrica geral da media art, começam a se delinear algumas características estruturais e

determinados modos construtivos que parecem marcar, de maneira cada vez mais nítida, as

formas expressivas de lidar com a arte do cinema deste final de século.

Tais formas estão sendo definidas, em primeiro lugar, pela inserção de tecnologias

da informação na produção, na distribuição e no consumo de bens audiovisuais e, em

segundo lugar, pelos progressos no terreno das telecomunicações, com o consequente

estreitamento do tempo e do espaço em que se move o homem contemporâneo.

Nesse contexto, várias gerações de cinéfilos se alimentaram dos filmes vistos nos

espaços chamados simplesmente de cinema, e até mesmo por meio dos filmes exibidos pela

televisão brasileira desde a década de 1980. Assim também, uma geração de cinéfilos se

formou em torno inicialmente das salas de cinema, dos cineclubes e especificamente por

meio das locações de filmes.

Em Vitória da Conquista, essa formação também vai ocorrer, pois assistir aos

filmes preferidos, na condição de locados, e além do mais no conforto de casa, assistir

mais de uma vez, pensar as cenas, revê-las, eram práticas prementes, mesmo que com

datas e horários marcados para devolução dos mesmos. É fato que conversar sobre os

últimos lançamentos e pedir indicação de filmes aos funcionários das locadoras é um

hábito que na atualidade tem diminuído substancialmente.

Com relação à cidade de Conquista tem-se ainda como ponto de referência para

encontro dos amantes do cinema, não descartando a possibilidade de se instaurar também

como espaço de convivência, a Locadora CANAL 03, que como já foi dito, tem como

proprietário Hélio Flores.

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Ao registrar esse relato concedido em entrevista por Flores Filho torna- se

necessário retomar o que foi exposto logo acima – solicitar a alguém sugestão de filmes

para locar é uma atitude cada vez mais rara, mas ao mesmo tempo é algo que vai

percorrer com intensidade a trajetória do cinéfilo

Hélio Flores. As imagens evocadas em seu depoimento são inicialmente

cronológicas, mas vestígios de memória ao longo de sua fala trazem rememorações que

se misturam e se encontram em uma única temporalidade, e as lembranças se misturam.

“As diferentes experiências do esquecimento que o cotidiano nos oferece não são

suficientes para nos dar uma ideia precisa das incidências do esquecimento sobre nossa

vida e da influencia exercida sobre nosso aparelho cognitivo e emotivo” (WEINRICH,

2001, p.11).

Assim, tomando a memória como mediação, Hélio Filho conta que quando criança,

ele e sua irmã iam aos finais de semana com o pai em locadora de vídeos. O pai

então pedia que escolhessem até três filmes para locar; na realidade esta era uma prática

frequente. Durante alguns anos esse procedimento se tornou mais intenso, ao ponto de

chegar a um determinado período em que o próprio Helio Flores, por já ter assistido

inúmeros filmes, era solicitado pelos clientes para opinar sobre os filmes mais

interessantes para locação.

Dessa maneira, conta que acabava sugerindo, claro, aqueles de sua preferência e

até mesmo de dizer para que não levassem o filme que escolheram, isto por já ter assistido

e possuir um critério próprio de seleção e julgamento estético dos mesmos. Hélio Flores

sustenta em seu depoimento que sua admiração pelo cinema foi se constituindo em

condições específicas, favorecida por um certo modo de olhar os filmes, que foi se

diferenciando nos seus aspectos estéticos, mas também na constituição e legitimação de

um gosto. Na verdade, ele continuou não só assistir os filmes que escolhia, mas assistir

alguns mais de uma vez, a buscar outras locadoras, revista e livros que tivessem o cinema

como temática. Como afirma Nogueira,

A cinefilia demonstra uma capacidade de continuidade, de atualização,

tirando proveito das novas mídias e, com elas, das novas formas de acesso

aos filmes. Se os cinéfilos franceses cresceram em meio a uma leva de

obras liberadas no pós- guerra e tinham nos cineclubes, cinematecas e

salas de cinema a grande janela para a linguagem cinematográfica,

atualmente o filme já se encontra na televisão e no computador,

digitalizado e virtualizado, seu conteúdo imaterializado. O cinéfilo, quem

diria, mas também as novas materialidades para ver. (NOGUEIRA, 2012,

p. 45).

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Seguindo essa trajetória, relata que durante boa parte de sua infância e juventude

esteve literalmente assistindo filmes, eram dias e noites alimentando esse gosto. Impregnado

por essa ambiência Hélio Flores também conta que passou um bom período de sua vida

indo à Salvador com frequência só para assistir filmes durante o dia, uma sessão após a

outra e à noite retornava para Vitória da Conquista. Esse fato é exposto com muito

entusiasmo e alegria, como a celebrar um instante cinéfilo que parece não ser possível a

ninguém violá-lo; era preciso apossar-se do tempo da tela, dos filmes que eram exibidos e

levá-los consigo.

Foto15: Hélio Flores Filho

Fonte: www.uesb.br

Nesse sentido, ao considerar a possibilidade de certa distinção no olhar cinéfilo de

Hélio Flores, sua evocação às práticas de cinema sugerem condições específicas de

internalização desse. No seu relato fica explicitado que para ele cinema e vida encontram-

se numa mesma dimensão. Para tanto, basta compreender o que o movia e o move a ir

anualmente à Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que este ano de 2014 vai para

a 38ª edição. Com entusiasmo conta sobre esse período em que passa uma semana inteira

assistindo os melhores filmes que são exibidos, sem desvanecer a vontade e o prazer de ali

estar, permanece numa certa vigilância criteriosa aos filmes a serem assistidos; se começar a

assistir a um filme e não gostar passa para outra sessão, pois o evento apresenta vários

espaços de exibição, que funcionam concomitantemente.

[...] chega uma momento em que a lembrança assim reduzida se encaixa

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tão bem na percepção presente que não se saberia dizer onde termina a

percepção e onde começa a lembrança. Nesse momento preciso, a

memória, em vez de fazer aparecer e desaparecer caprichosamente suas

representações, regula- se pelos detalhes dos movimentos corporais.

(BERGSON, 2006, p.59).

A busca por dar continuidade ao seu depoimento, de atribuir-lhe sentido, comparece

como uma consequência quase natural que diz muito de sua forma de ser cinéfilo, pois o

cinema está na centralidade de sua fala. Hoje, mesmo exercendo outra profissão, tem a

locadora como porto, espaço de convergência de um gosto que se encontra impregnado em

seu ser.

O seu tempo de dedicação ao cinema agora é um pouco menor, mas não deixa de

estar o mais próximo possível de tudo que se relaciona a ele, principalmente pela paixão

que nutre por essa arte. Hélio Flores, ao falar sobre a aquisição e compartilhamento de um

espaço comercial no qual pode unir trabalho e prazer, a vídeo locadora, demonstra o

cuidado e a necessidade de manter-se atualizado em relação aos novos formatos de

apreciação de filmes, que permitem também uma reordenação no pensar e agir diante das

práticas de cinema, isto considerando as locadoras recolocadas no mercado, podendo

vislumbrar novas identidades.

Diante da problemática imposta para as locadoras de vídeo por meio das novas mídias

Hélio Filho não expõe uma opinião formada, mas sabe da necessidade de estar atento a

tudo isso e procura atender seus clientes da melhor forma possível, ainda sugerindo ou

indicando filmes que já assistiu e que fazem parte de suas escolhas e preferências,

compartilhando com os mesmos as suas vivências em cinema, rememorando os tempos da

sua infância, ou mesmo tornando-as presente no adulto que ali se encontra.

Em um certo sentido, na perspectiva de Flores, o seu primeiro enfoque no presente

estágio de experiência com o cinema é a compreensão das imagens, mais a frente, o código

estético do filme, seu gênero, diretores, atores, etc. e depois o poder da imagem em relação

ao seu próprio limite de ser permeável, de perpassar a memória e a imaginação, pois parece

evidenciar em seu relato que não há como voltar atrás, “desassistir” os filmes ou deixar de

gostar deles. Em momento algum da sua fala ele se coloca como um especialista em

cinema, mas como um apaixonado pelos filmes que tenham densidade e conteúdo,

demarcando um olhar treinado para o melhor, para o que mais trouxer intensidade

emocional nos diversos estágios das imagens em movimento.

O Programa Janela Indiscreta, criado para disseminação da arte e voltado para a

cultura cinematográfica fez toda diferença na formação de uma geração de cinéfilos. E ao

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narrar sobre os inúmeros espaços de acesso ao cinema em Vitória da Conquista, destaca

entre elas o Programa janela Indiscreta Cine Vídeo UESB. A ida ao cinema, nas suas

lembranças ficou a das sessões de cinema no Cine Madrigal, mas não com muita constância.

Hélio Flores sugere que o cinema não pode ser apenas um mero mecanismo de

exibição, mas um elo de provocação incessante, e indaga o que existe além da imagem,

talvez um olhar informado, uma refinação no ato de ver. É possível perceber em sua fala

um prolongamento da experiência propiciada inicialmente pelo pai, mas que ganha vida

própria e se efetiva na memória, práticas próprias que crescem juntas no seu modo de

experienciar o cinema na atualidade. Para Venâncio,

A memória é sempre vivida, seja física ou afetivamente, e desaparecendo o

grupo ao qual pertencíamos no momento em que vivemos determinadas

lembranças, tendem a desaparecer também; para salvá-las do esquecimento é

preciso escrevê-las. Desse modo, é preciso compreender o pertencimento

grupal como essencialmente afetivo, ou seja, situações vividas tornam-se

memória quando nos sentíamos ou nos sentimos parte daquele grupo.

(VENÂNCIO, 2008, p. 43).

Verifica-se na narrativa desse cinéfilo, proprietário singular de uma locadora de

vídeos, uma vitalidade que é possível ser confirmada na presença do relato de outros

cinéfilos que se dispõem a contar seus percursos em cinema, evidenciando que essa

forma de ver filme se torna uma experiência coletiva e se consagra nos mais diferentes

formatos: ganha um caráter comercial, na satisfação de alguns desejos que ficaram guardados

na memória, e também desvendar os filmes e suas usinas de imagens de maneira especial.

Sob esse ponto de vista, o cinema se apresenta para Hélio Flores como um universo de

informações e aprendizados, dos mais antigos aos mais atuais, levando-o a uma busca

incessante por algo que possa preencher uma vontade de esclarecimento íntimo, não

declarado, ou traduzido por certo, na ordem ou na dimensão de um gosto constituído.

Ao observar o relato de Hélio Flores, inferimos que seu pai também gostava de

filmes, ou creditava que à arte cinematográfica possuia um significado especial para seus

filhos. Em alguns trechos de sua narrativa Hélio Filho conta que o ato de assistir filmes em

casa ficava restrito a presença dele e da irmã, mas pode ser que seu pai tenha compartilhado

com eles algum dos filmes locados. Essas possibilidades evidenciam a motivação que ele

traz para colocar-se como dono locadora, espaço de comercialização de filmes, mas ao

mesmo tempo também espaço de projeção para a continuidade de um gosto iniciado na

infância e seu prolongamento na idade adulta. Para Halbwachs,

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[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas

pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós

estivemos envolvidos, e com objetivos que só nós vimos. É porque, em

realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam

lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e

em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem [...] Para que

nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que elas nos

tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de

concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato

entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser

reconstituída sobre um fundamento comum. (HALBWACHS, 2004. p.26-

34).

O que fica fortemente registrado nesse relato é que o cinema para Hélio Flores Filho

comparece para perguntar a ele mesmo o que existe além da imagem, que o filme

produz na percepção dos indivíduos. Assim, neste relato encontramos um olhar cinéfilo,

informado, uma refinação no ato de ver filmes perpassados por um gosto que se instaura

por meio de um vínculo afetivo, podendo continuamente satisfazer algo que ficou

guardado na memória desse cinéfilo: a capacidade de viver algo marcante por meio das

imagens projetadas nas telas, assistir aos filmes prediletos, um gosto especial a ser

continuamente compartilhado. São telas vivas impulsionadas pela emoção.

Nessa dimensão, partimos do pressuposto de que a linguagem e os valores

acordados entre os indivíduos em seus espaços edificam um saber comum e legítimo, ao

estabelecer ligação entre esses valores que entendemos por conhecimento. Assim, a

linguagem artística, seus ritos, crenças e os arquivos vinculados a ela compõem parte

significativa da subjetividade humana. As práticas em torno do lembrar e esquecer nos

oferece a exterioridade simbólica da memória, responsável por fundar e situar o indivíduo em

seu espaço e seu tempo.

3.7 COLECIONADORES DE IMAGENS: ENTRE FILMES E ÁLBUNS DE FIGURINHAS

“Eu nunca guardei rebanhos, Mas é

como se os guardasse. Minha alma é

como um pastor, Conhece o vento e o

sol

E anda pela mão das Estações A seguir

e a olhar.”

Alberto Caeiro

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Como fica manifesto no registro do presente depoimento aqui disposto e tomando

como referência percursos de cinefilia em Vitória da Conquista, a Coleção Preciosa, uma

coleção de objetos de cinema que pertenceram a Willy Flick reaviva práticas cinéfilas que

podem ser vinculadas a outras práticas, como o ato de colecionar filmes e álbuns de

figurinhas de personagens do cinema mundial. Para tanto, observamos como ocorrem os

processos de aprendizado que informam essas práticas de consumo sensível, eleitas por

indivíduos que se esforçam cotidianamente para guardar e cuidar de objetos relacionados

ao cinema. É o caso do relato do cinéfilo Sidicley Coelho Silva, que possui mais de

quatro mil filmes guardados, separados em caixas específicas; as do filmes originais e as

das cópias. Essa coleção aponta algumas possibilidades de compreender as condições

nas quais foram instituídas frações significativas da trajetória de Silva, especialmente no que

diz respeito ao seu aprendizado por meio da prática de colecionador de imagens fílmicas.

Ao realizar algumas considerações sobre o poder do ato de guardar objetos de

cinema, por parte de alguns indivíduos, recorremos a memória dos cinéfilos que construíram

sua narrativa individual em Vitória da Conquista e são personagens de uma trama alicerçada

pela prática de colecionar. Assim, nos deparamos com o percurso empreendido por Willy

Flick, relatado no trabalho final de mestrado de Milene Gusmão (2001), no qual expõe a

trajetória de Flick e sua prática cinéfila, prática esta que o conduz durante toda sua vida

para a constituição de um acervo que veio a ser chamado de Coleção Preciosa. De acordo

com a Enciclopédia Einaldi,

Uma coleção pode constituir-se como conjuntos de objetos naturais ou

artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das

atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial e expostos ao

olhar, acumulam-se com efeito nas tumbas e nos templos, nos palácios dos

reis e nas residências de particulares. (ENCICLOPÉDIA EINAUDI, 1984,

p. 53).

As imagens em movimento faziam parte do cotidiano do Sr. Flick, que foi capturado

pelo cinema quando criança, pois começou sua coleção mais ou menos aos onze anos de

idade. Como demonstra Gusmão,

A Colação Preciosa de Seu Flick possui um acervo de vários objetos,

todos relacionados a cinema, entre eles, cartazes de divulgação dos filmes,

álbuns de fotogramas, filmes em película e em vídeo, livros, revistas,

jornais, projetores de 16 a 35 mm, cartas: tudo isso colecionado durante

52 anos de sua vida. Muitos objetos, muitas caixas com inúmeros

cartazes, fotografias, muitos filmes, um acervo bastante considerável

organizado de forma sistemática e caprichosa, inclusive, identificada por

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carimbo ou selo como: Coleção Preciosa. (GUSMÃO, 2001, p. 99).

O fato é que os indivíduos colecionam os mais diversos objetos em todo o mundo. O

ato de colecionar pode se estruturar apenas como uma forma de entretenimento, mas

também promover um encontro com colecionadores que possuem um olhar mais atento e

instigante sobre os objetos colecionados, se tornando fundadoras de saberes a serem

compartilhados. A respeito da Coleção Preciosa, Itamar Pereira Aguiar expõe,

Além das salas de projeção, surgiram por aqui grandes paixões pela

sétima arte, profissionais bilheteiros, crianças anunciadores de filmes em

cartaz, vendedores de pipoca, projetadores de filmes personagens tipo

Cinema Paradiso, como o cinéfilo senhor E.W. Flick que durante muitos

anos colecionou cartazes em tamanho grande de filmes como O Siciliano

e Conta Comigo dirigido por Rob Reiner, organizou vários cadernos com

fotogramas, recortes de película dos vários filmes que assistiu ao longo

dos nos, aos quais de nominou de Coleção Preciosa, de fato verdadeiras

preciosidades. Ele confeccionou ainda, um catálogo com cartazes dos

filmes projetados no período de 1962 até 1987, nos Cine Glória, Cine

Teatro Conquista, Cine Teatro Itambé, Cine Ritz, Cine Teatro Brumado e

Cine Madrigal. Além de tudo isso, da Coleção Preciosa consta um

catálogo de Filmes de 16 mm: Sonoros Falados em Português, Edição

1965, Impresso e Publicado no Brasil pelo Serviço de Divulgação e

Relações Culturais dos Estados Unidos da América. (Educação, Gestão e

Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ISNN 2179-9636, Ano

1, numero 2, p. 08-junho de 2011. www.faceq.edu.br/regs).

Foto 16: Albúm de Figurinhas de ídolos do cinema

Fonte: blogspot.com

Apesar das poucas observações feitas, ainda que provisórias, pode- mos já

entrever a unidade, salientar o elemento comum a todos estes objetos, tão numerosos e

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heteróclitos, que são acumulados pelas pessoas privadas e pelos estabelecimentos públicos.

Santos expõe,

[...] o fim da tradição oral e o surgimento da escrita também apontam a

perda de transmissão de conhecimento e valores entre gerações. A

memória, que é transmitida por textos, objetos, pedras, edifícios e

máquinas, embora dê a impressão de preservar o passado em sua

totalidade, reproduz apenas parte do que foi vivenciado anteriormente.

(SANTOS, 2003, p.19).

Há na história oficial e na nova historiografia uma série de relatos sobre esse ato de

colecionar. Em diversos momentos da vida humana encontramos indivíduos preocupados

em guardar, armazenar objetos, de modo a preservá- los. Talvez, sem esta preocupação não

se teria hoje um conhecimento acumulado sobre o passado. Torna-se nítido que o ato de

colecionar álbuns de figurinhas e filmes pode ser um hábito de infância ou surgir em outras

fases da existência e por meio da coleção desses álbuns conhecemos e articulamos

imagens de temas diversificados, inclusive aquelas ligadas ao universo cinematográfico.

No relato abaixo evidenciamos a riqueza produtiva das imagens guardadas nos objetos e na

memória dos seus apreciadores:

O rei estava armado com todas as peças, sobre um corcel branco; e

tinha um cavalo coberto de veludo de cor azul, salpicado de flores de lis de

ouro cinzeladas. E à sua frente, o seu primeiro escudeiro montado num

corcel coberto de fino pano decorado com escaravelhos de ouro. E havia

quatro corcéis todos iguais entre si com três cavaleiros e escudeiro todos

armados; e os enfeites dos corcéis eram semelhantes aos de escudeiro; o

escudeiro do rei levava, sobre um bastão, o elmo da armadura do rei, e em

cima uma coroa de ouro: no meio, sobre o penacho, uma grande flor de lis

coberta de ouro fino menos precioso; e o seu rei de armas à frente levava a

sua cota muito rica de veludo azul com três flores de lis bordados a ouro

fino cinzeladas (EINAUDI, 1984, p. 73).

Diante de tal profusão de imagens de objetos raros da antiguidade, parece-nos

de fato pertinente falar sobre como o acelerado advento das novas tecnologias da

comunicação e dos modernos meios de entretenimento irão proporcionar aos indivíduos,

no século atual, outras matrizes ritualísticas no ato de guardar imagens e objetos, oferecendo

uma diversidade de produtos industrializados de diferentes estirpes e funções, inclusive

produtos que incitam a prática do colecionar, o que parece não ser uma atividade extinta.

Não se pode deixar de constatar o fascínio que esta prática exerce sobre os indivíduos, pois é

incontável o número desses indivíduos que já passaram ou passam por uma experiência

colecionista: todos colecionam algo, mesmo que não percebam, sempre guardam objetos.

Foto 17: Kley Silva

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Fonte

No caso dos álbuns de figurinhas, ao manipular imagens, ao fixá-las no álbum, o

colecionador vê e revê a sua ação duplicada, um espelhamento imagético que pode se

aninhar na fragilidade e na força da memória. Com isto, há uma memorização da imagem

representada, na qual podemos estabelecer um paralelo com o surgimento da arte da

mnemotécnica, fazer uma alusão ao poeta da Grécia Antiga, Sinônides de Ceos, que

identificava as figuras-imagens dos corpos esmagados em uma trágica festa, criando assim

a arte da mnemotécnica; também se vincula a ação cognitiva que se encontra na ordem da

atenção e da plasticidade em reter elementos visuais, despertadas por algo que seja

importante para quem lembra ou é lembrado. Lembranças essas em constante ebulição, se

modificando,

[...] a mudança está por toda parte, mas em profundidade; nós a

localizamos aqui e acolá, mas na superfície; e constituímos assim corpos

ao mesmo tempo estáveis quanto a suas qualidades e móveis quanto a

suas posições, uma simples mudança de lugar contraindo em si, a nossos

olhos, a transformação universal. (BERGSON, 2006, p.89).

Assim, certificamo-nos que os objetos que se encontram em lugares dedicados ao

culto, e em particular as imagens – pintadas ou esculpidas – dos deuses ou dos santos,

desempenham o mesmo papel: com efeito, representam seres normalmente invisíveis, que

vivem para além da fronteira que separa o profano do sagrado; as imagens representam

tais seres reproduzindo-lhes os supostos traços numa superfície plana ou a três dimensões,

e isto permite ao espectador associar um nome, talvez até a história de uma vida. A adoção

de um plano sistemático ou não para se formar uma coleção, estruturá-la, implica em

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raciocinar, criar, imaginar, pesquisar, estudar e observar regras. Assim, analisamos como

uma ação voltada para esse ato introduz um conjunto de tarefas ligadas à análise e

síntese, desenvolvendo aptidões e aumentado a capacidade de aquisição de novos

conhecimentos com a consequente elaboração e expressão das mesmas.

As coleções, simples ou ostentativas, possuem características em comum: o valor

inestimável dado por seus proprietários, que retém em si o mesmo objetivo, a mesma

paixão, a mesma importância, o seu aspecto cultural e, principalmente, um tipo de

gratificação proporcionada pelos objetos colecionados. Os responsáveis pela produção e

circulação das imagens em movimento, enquanto produtos a serem consumidos, também

criam estratégias de conservação, reprodução e consumo de produtos autoreferenciais.

Nessa dimensão, preservar, salvaguardar os filmes e todos os documentos relacionados a

ele, produzem a necessidade de arquivamento e guarda de diferentes ordens. São

questões que estão imbricadas tanto nas práticas culturais, como na economia globalizada.

Os indivíduos que compõem um acervo cinematográfico, uma coleção, podem tencionar

ações distintivas em relação ao ato de salvaguardar tais objetos.

Foto 18: Kley Silva

Fonte:

Importa então enfatizar que a criação de um universo fílmico próprio por um

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colecionador é um processo delicado, mas que proporciona um encontro de sensibilidades, no

qual o colecionador se vê diante de um contrato imagético proposto pelo cinema. O cinéfilo

que anseia pela composição estética, pensa o cinema como uma arte de encontro e a coleção

pode fazer parte de um sistema subjetivo, cujos objetos estão abstraídos de sua utilidade

inicial, mantendo uma conexão sensível direta com esses indivíduos.

Ao visitar a trajetória de Sidicley Coelho Silva, ou Kley, como prefere ser chamado,

protagonista discursivo de suas próprias coleções, observamos o exibir de um gosto

particularizado pelo que ele considera o melhor do cinema, provocando o ressoar de uma

tênue fronteira entre os gostos que também estarão presentes em outras práticas

constitutivas da cinefilia em Vitória da Conquista tais como a do Sr. Flick. Os álbuns que

podem entrelaçar a trama de uma possível transmissividade de um gosto denominam-se Os

mil que fizeram o Cinema, da Editora Abril, pertencente a Kley, e Astros e Estrelas do

Cinema Mundial, colecionado por seu pai, o senhor Elias Gomes da Silva. Cabe aqui o

seguinte questionamento: o que leva os indivíduos a se aventurarem nessa fascinante,

difícil e sábia arte de colecionar?

O desafio de ouvir um relato que reverbera na condição de um olhar sobre a

cinefilia em Vitória da Conquista, se inscreve nesse espaço geográfico e permite apreendê-la

em sua complexidade, pois não se trata de uma escuta ocasional. Essas condições,

historicizadas ou memorialísticas são modificadas na medida em que se sobressai um novo

entrecruzamento de enunciados e práticas colecionistas, aqui, pensadas por meio de

entrevistas e registros de imagens. Sidicley Coelho Silva nasceu em dezembro de 1973

na cidade de Vitória da Conquista, Bahia e aos dez anos de idade assistiu pela primeira vez

o clássico E o Vento Levou, que o faria gostar de cinema. Tinham o hábito ficar mais em casa

lendo e assistindo filmes, no qual gostava de anotar o que havia assistido; acompanhava as

revistas e publicações sobre cinema para ficar por dentro do que estava sendo lançado na

área da Sétima Arte. Trabalhou como cadastrador imobiliário, como desenhista e cartazista

entre outras profissões. Sempre gostou de comentar sobre cinema e literatura na internet e

entre os amigos. Segundo ele não perdeu a oportunidade de se ingressar no curso

superior de Cinema e Audiovisual da Uesb. Cinéfilo assumido assistiu a todos os

vencedores do Oscar de melhor filme, sempre está pesquisando sobre a história do

cinema, onde procura estudar principalmente os clássicos, porque pra ele, são os clássicos

que precisam ser descobertos pela nova geração de cinéfilos.

Ao buscarmos auxílio na literatura de um escritor como Jorge Luis Borges para

compreendermos a dimensão de algo tão íntimo como as escolhas que fazemos para

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alimentar o tempo e um gosto instaurado, depreendemos dessa busca a urgência em

compreendermos os problemas formulados pelo conhecimento humano, em especial a

maneira de lidar com o tempo em que utilizamos no culto às nossas escolhas e

preferências, bem como a internalizão de nossas próprias verdades. Essas questões

atravessam todas as áreas do conhecimento e encontra poderoso intercessor na literatura

borgiana.

Nessa vertente reflexiva, em seu Elogio de La sombra, Jorge Luís Borges fala do

guardián de los libros como aquele que custodia em sua torre, sala de visitas ou

consultas, o concerto e o desconcerto do mundo. Incorporando-se como guardião da

arte, o colecionador seleciona obras que cifram e decifram o mundo através de linhas, cores,

texturas e materiais. Kley e seu pai talvez guardem o mundo, a matéria dos sonhos fílmicos,

ou vice-versa. Sim, é possível encontrar indivíduos que colecionam sonhos, sombras,

memórias, cavalos, automóveis e até mesmo pesadelos. Outros guardam livros, filmes,

álbuns de figurinhas e obras de arte. Dessa forma, palavras e olhares inquietantes do

cinéfilo Kley, e de seu pai, seu Elias Gomes da Silva, reiteram uma visão de múltiplos

mundos que se encontram alicerçados na potência da imagem e no grau de significação e

pertencimento de uma ambiência proporcionada pelo cinema.

É tentador refletir sobre o que impulsiona uma incursão pela memória desses

entrevistados: percebe-se que, ao narrar, há uma pulsação atemporal nas escolhas pelos

filmes a serem citados, nas opiniões expostas a respeito dos mesmos, o que permite a

compreensão de um gosto compartilhado por pai e filho, a partir do instante em que há um

pensar insistente e sistemático sobre os filmes assistidos, a ambiência cultural na qual as

imagens dos filmes, conectados com as imagens dos álbuns de figurinhas são

acomodadas na memória, guardadas e lembradas com cuidado e dedicação.

Os objetos colecionados por Kley, os filmes e os álbuns de figurinhas, como em

uma profusão de imagens percebidas e captadas, incorporam-se às suas memórias em um

estado de contemplação, são aprendizagens ancoradas na afetividade, em seleções

construídas a partir de um fazer estético ou não, isto, constituído por meio de uma

necessidade em guardar o que se considera mais precioso, tecendo um elo significativo das

práticas cinéfilas em Conquista. O que realmente importa é a função e é esta que se

exprime nos caracteres observáveis que definem a coleção Notamos que tanto a

utilidade como o significado pressupõem um observador, porque não são senão relações

que, por intermédio dos objetos, os indivíduos ou grupos mantêm com os seus

ambientes visíveis ou invisíveis.

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À luz dessas práticas de cinefilia, ancoradas no colecionismo, construímos sentidos,

reconstituímos trajetórias. Para tanto, chamamos a atenção para a importância das coleções

de Kley, também ao fato de seu pai gostar de cinema, e mais, levá-lo também a gostar,

proporcionando no tempo presente uma confluência de gostos em guardar os objetos

fílmicos, isto, movidos por uma pura e dual paixão, na sua essência jamais alienadora, mas

necessária como o respirar, como o prolongamento de um prazer vital. O alimentar

desse gosto compõe uma proposta reflexiva reveladora de uma essencial intimidade

entre eles, presentificada no ato de assistir, discutir e escolher filmes para guardar,

principalmente na cumplicidade que nutrem ao enunciar a paixão pelo cinema.

Há na narrativa de Kley todo um rigor discursivo ao tratar do cinema como algo

sacro, de indubitável importância no seu cotidiano familiar e que não deve ser profanado,

revelando um cuidado e uma vontade quase que urgente em ocupar todos os espaços de

seu tempo na apreciação dos filmes colecionados. O jovem cinéfilo e seu pai, repartem

entre si uma amor instituído, traçado nos contornos propiciados por um ambiente no qual o

cinema é uma chave mestra de convivência e aprendizados, ambos organizados e unidos

pela arte cinematográfica.

Diante desse pressuposto, as afetividades, infiltradas nos relatos proferidos por

Kley, referenciam os filmes guardados e se referenciam como indivíduos portadores de

um conhecimento compartilhado. A partir dos filmes assistidos e guardados é que eles

vão criando um mundo de símbolos, de códigos próprios ao pronunciarem o nome de

atores e atrizes, ou citar as cenas dos mesmos, falar dos espaços e tempos ou até mesmo no

eleger de quais filmes já assistiram ou voltarão a assistir; situações em que se reconhecem

na instância do pensar e do agir do campo cinematográfico.

Pai e Filho vão se adequando aos novos artefatos e produtos viabilizadores de

captação de imagens que lhes vão sendo apresentados, como processo de continuidade na

percepção e apreciação de imagens, que construídas na perspectiva das escolhas pessoais,

assumem o compromisso de salvaguardar memórias fílmicas. Ao compreender os

processos que dão origem ao ato de colecionar, ancorado em seus enunciados, instaura-se

também um cerimonial na arte de guardar. O cineasta chileno Alejandro Jodorowsky expõe

que a melhor forma de rezar é realizar um filme, para que a imaginação se concretize em

imagens. Nessa dimensão, impalpáveis são as imagem fílmicas, os objetos no museu da

memória de Kley e Elias, que incorporam saberes e os retém em uma coleção própria, talvez

fonte de culto e oração existencial. Segundo Bourdieu,

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Os gostos efetivamente realizados dependem do estado do sistema dos

bens oferecidos, de modo de toda mudança do sistema de bens acarreta

uma mudança de gostos; inversamente, qualquer mudança dos gostos

resultantes de uma transformação das condições de existência e das

disposições correlatas é de natureza a determinar, quase diretamente, uma

transformação do campo da produção, facilitando o sucesso, na luta

constitutiva deste campo, dos produtores mais bem preparados para

produzir as necessidades às novas disposições (BOURDIEU, 1996, p.

216).

Ao fazer parte de determinados grupos os indivíduos se aproximam objetivando

passar às novas gerações as experiências que permitem a continuidade de certas práticas de

cinema. Nessa perspectiva, para Kley, essa experiência inicia-se no momento do gestar da

transmissão de um gosto, construído por um único filme ou por milhares de filmes, nos

dois casos se apresentam carregados de fortes representações, que dizem respeito a

sociabilidades. Os relatos de Kley revelam o transmitir de um sentimento, uma emoção

conectada com as imagens em movimento. A apreciação de um determinado filme vai além

da mera curiosidade, ultrapassando a camada mais fina do entretenimento e parte para o

encontro com outras formas de sensibilidade, impondo-se um refletir e um agir diante do

que foi assistido, no caso, o cuidado e o prazer em guardar as imagens vislumbradas nas

telas, faz com que o cinema, no seu fazer-se, se torne um depositório de memórias a se

equilibrar nos olhares cinéfilos, nos espaço da abstração, morada primeira da arte. É exatamente o

fato de o gosto se dirigir para certos objetos e não para outros, de se interessar por isto e não

por aquilo, de determinadas obras serem fonte de prazer, que deve ser explicado.

Os álbuns de figurinhas e os filmes, ao serem colecionados, transformam sua

essência em experiências de vida, imprimindo nesses objetos de contemplação o projetar da

imaginação criadora e a vitalidade em cuidar das coleções que ganham contornos

diferenciados. No estabelecer de sentidos e reconstituir de trajetórias de cinéfilos

conquistense como Kley Silva torna-se pertinente inferir que no ato de colecionar, de

apreciar imagens emblemáticas, prevalece a tríade guardar- cuidar- aprender com os objetos

colecionados.

Nesse âmbito, o colecionador se apresenta impregnado por uma prática de consumo

sensível, eleita por indivíduos que demonstram prazer em guardar, como a fazer uma

inscrição na pedra e reavivá-la quando do seu apagamento, tornando-a necessidade e

vontade, definindo o que cada um considera relevante no mundo do cinema e,

particularmente, criando suas próprias condições de possibilidades de se tornar um

colecionador de imagens.

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3.8 PRÁTICAS CINÉFILAS EM VITÓRIA DA CONQUISTA: UMA

POSSIBILIDADE DE ANÁLISE

A presente pesquisa procurou demonstrar que é possível tratar do objeto cinefilia em

Vitoria da Conquista, partindo de um esforço em investigar as práticas cinéfilas por meio

do relato das trajetórias de cinéfilos que demarcaram suas vidas no encontro com o

cinema. Nessa medida investigativa, nos debruçarmos sobre os depoimentos de cinéfilos,

obtidos por meio de entrevistas e coleta de materiais, tais como fotos, documentos,

relatórios, os quais foram decisivos, sobretudo pela forma como puderam recompor vestígios

de memória, a intensidade do ato de lembrar revigoraram o percurso dessas práticas. As

entrevistas realizadas se tornaram seguramente o trabalho mais prazeroso no transcorrer da

pesquisa e o entrecruzamento com os textos teóricos permitiram analisar as práticas de

cinéfila em Conquista com a aproximação de peculiar de um neófito imbuído da vontade de

construir um relato pautado na memória social, mas com o grau de distanciamento

imprescindível a escrita do texto científico.

O estudou sobre a cinefilia na cidade de Conquista aqui apresentados pode ser

considerado como uma possibilidade de compreensão da memória não só como atributo

exclusivamente da consciência humana, mas podendo ser pensada a partir dos elos sociais

existentes entre indivíduos, constituídos no passado ou no presente, isto, nos certificando

da potencialidade na constituição dos gostos e na determinação de práticas sustentadas de

forma individualizada ou coletivamente sobre pensamentos e atitudes vinculadas a arte do

cinema. Elias expõe,

Esses exemplos devem ser suficientes para indicar a maneira básica como

a estrutura da pessoa singular se relaciona com as outras pessoas e, por

conseguinte, com a vida grupal. [...] o exame da relação entre indivíduo e

sociedade continuará sendo necessariamente unilateral e estéril se for

conduzido apenas com respeito à situação atual – e, portanto, subordinado

a questões e ideais da atualidade [...]. (ELIAS, 1994, p.142).

Dessa forma, esse estudo pode responder as principais questões expostas no processo

da pesquisa sobre a presença de práticas de cinefilia em Vitória da Conquista, i s to por

meio da compreensão das trajetórias dos indivíduos que percorreram os caminhos do

cinema como constituição de um gosto e práticas sociais, envolvidos como processos

interativos que interconectam formas individuais de se relacionar com o cinema,

especialmente as que são capazes de redimensionar passado e presente. Nesse sentido, em

um contexto em que os vínculos entre indivíduo apresentam-se dicotômicas, e por vezes

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conflitantes, percebemos que o ato de lembrar dos cinéfilos pesquisados encontra-se

carregado de predisposições para o agir não só dualisticamente, mas encaminhar-se para

práticas reflexivas com resultados conflitantes ou não, de como os indivíduos se ligam uns

aos outros numa sociedade a partir de um determinado fazer.. Nas palavras de Jorge

Vasconcelos,

[...] a virtualidade da memória, ou seja, o salto do passado que se contrai e

se distende para o presente leva-nos a compreender a dimensão

propriamente ontológica do homem e por que não dizer: somos homens

porque lembramos. Mas não simplesmente lembramos. Somos a

possibilidade ativa da construção de afetos, que, para se atualizarem,

fazem, necessariamente, o caminho das lembranças. Somos imagens de

lembranças e lembranças de imagens. Somos o próprio fluxo do devir.

(VASCONCELOS, 2006, p.23-24).

Algo que se tornou evidente no processo da pesquisa diz respeito a constituição

familiar, o modo como se encontra articulados os indivíduos que tiveram suas vivências

em cinema consolidadas no espaço familiar. O gosto pelo cinema foi estruturado

inicialmente nesse espaço familiar, o que foi possível observar na investigação das práticas

coletivas instauradas nos relatos dos cinéfilos de Conquista, isto por meio do estudo empírico

das formas como as famílias se organizavam, os interesses comuns, as formas de

trabalho e as disposições presentes em cada um dos espaços familiares expostos, mesmo que

de forma sucinta, há um demarcar expressivo da proximidade com o cinema assumida

diante de seus grupos. Nas palavras de Norbert Elias,

[...] depende largamente do ponto de vista em que ele nasce e cresce nessa

lei humana, das funções e da situação de seus pais e, em consonância

com isso, da escolarização que recebe. Também isso, esse passado, está

diretamente presente em cada uma das pessoas que se movem

apressadamente no bulício da cidade (ELIAS, 1994, p.21).

O indivíduo estabelece ao longo de sua trajetória um círculo de relações familiares,

de amigos, ligam-se uns aos outros numa pluralidade de saberes e fazeres, isto é, numa

sociedade que muitas vezes o impele ao consumo de determinados bens, a constituir

gostos, que muitas vezes independe de sua inserção ou não nos espaços nos quais esse

gosto seja conceitual, ele cria suas próprias estratégias e modo de vida ou nível de vida, o

que independe de suas motivações ou determinações sociais. Nessa perspectiva de análise,

os estudos sobre a memória social p r e s e n t e n e s s e ambiente familiar pode ser

compreendido ao observarmos questões que perpassam tanto a subjetividade dos

indivíduos, m a s t a m b é m as ações mais sistemáticas, as apreciações sobre as atividades

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cinematográficas e as múltiplas formas de difusão e recepção por parte desses indivíduos,

estruturadas em práticas sociais que ocuparam e ocupam esferas simbólicas e práticas de

suas vidas. As escolhas, os valores acordados, as práticas de consumo cultural remetem

esses indivíduos a um passado repleto de significados, o que permite propagar o futuro num

contínuo de ações e práticas que tenham sentido para eles e para a sociedade da qual fazem

parte.

Vale explicitar que o interesse dessa pesquisa residiu não só no burilar dos relatos

advindos das entrevistas com cinéfilos conquistenses, mas na observação das trajetórias

estruturadas em rede relacional e merecedora de um maior enfoque, principalmente no que

diz respeito ao papel da família na legitimação das relação geradoras do que pode

impulsionar os indivíduos ao encontro o cinema. Assim, foi possível construir

uma rede de relações em funcionamento espaço temporal, organizadas na constituição de

um gosto, alicerçadas em práticas de cinema, que podem revelar momentos significativos

para o campo cinematográfico no Brasil, especialmente na Bahia, sem negar a existência

dessas práticas em outros estados brasileiros, mas na certeza de que o fenômeno da cinefilia

ganhou configurações expressivas no contexto conquistense. As prática cinéfilas

compareceram aqui como atividade cultural privilegiada, dada suas formatações individuais

no plano das histórias de vida dos cinéfilos que se encontram e muitas vezes dialogam.

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A palavra cinefilia, insistentemente expressa neste trabalho, apresentou-se como

uma necessidade fortemente impressa nas trajetórias aqui analisadas. Essas trajetórias

deslocaram nosso olhar para certos rituais de cinema, circunscritos em uma dada

temporalidade, que se multiplicaram em uma cadeia receptiva, constituída por cineclubes,

crítica cinematográfica, estudos, coleções, comercialização e exibição fílmica,

prolongando uma experiência permeada pelo olhar, pela fala, pelo estudo e pela escrita:

são rememorações que conferem ao cinema um lugar de memória. As práticas de cinema em

Conquista viabilizaram uma rede significativa de indivíduos preocupados não só em

alimentar um gosto, mas por uma vontade de compartilhar a constituição de memórias

( social e individual), nas quais as vivências em cinema expressaram-se em aprendizados, em

formações culturais.

Ao tratar da cinefilia em Conquista, abordamos um sistema organizado que

engendrado por ações, formou e informou indivíduos, determinando lugares e

sentimentos instauradores de uma cultura em cinema. Tratamos então de indivíduos

que se formaram, que engendraram ações, formou-se e formaram públicos para a arte

cinematográfica em Conquista, destemeram sentimentos instaurados por uma estética

forte e vinculada aos hábitos de toda uma sociedade.

Podemos então explicitar que a abordagem das práticas de cinefilia aqui tratadas

instauraram uma das muitas vertentes interpretativas de rede organizada de habitus

gestados em um tempo sócio histórico. Elias expõe que,

[...] esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que

constitui o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais

um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade. Dessa maneira,

alguma coisa brota da linguagem comum que o indivíduo compartilha

com outros e que é, certamente, um componente do habitus social –

um estilo mais ou menos individual, algo que poderia ser chamado de grafia

individual inconfundível que brota da escrita social. O conceito de habitus

permite-nos introduzir os fenômenos sociais no campo da investigação

científica, que antes lhes era inacessível [...]. (ELIAS, 1994, p.150).

Podemos desse modo, expressar que as práticas surgem livres de qualquer amarra,

mas que reunidas em um ambiente analítico, transformam seus significados a posteriori,

esse tecido analítico, validado nas complexidades constituídas na trajetória de vida dos

cinéfilos aqui apresentados, provocaram mudanças no olhar para a cultura do cinema. Elias

expõe,

Os modelos das configurações, dos padrões ou estruturas sociais podem ser

tão precisos e fidedignos quanto os resultados da mensuração

quantitativa de fatores ou variáveis isolados. O que lhes falta é o caráter

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ilusoriamente conclusivo das inferências baseadas unicamente na análise

quantitativa, que muitas vezes são confundidas com a exatidão. Tal como

as hipóteses e teorias em geral, eles representam ampliações, progressos ou

aperfeiçoamentos do reservatório de conhecimentos existentes, mas não

podem ter a pretensão de ser um marco final absoluto na busca do saber,

marco este que, tal como a pedra filosofal, não existe. Os modelos e os

resultados das pesquisas de configurações fazem parte de um processo, de

um campo crescente de investigação. À luz de cujo desenvolvimento

estão eles mesmos sujeitos a revisões, críticas e aperfeiçoamentos, fruto

de novas investigações (ELIAS, 2000. p.57).

O entrecruzamento das práticas de cinefilia perfazem caminhos para o

conhecimento, sugerindo assim um espaço a ser explorado, ver filmes, colecionar,

comercializar, estudar, escrever sobre eles, discutir e exibir convocam outros indivíduos a

inteligibilidade do objeto de cinefilia, relevante instrumento de instituição de saberes. Não

é tão somente um culto, mas culto como se evidencia nos relatos aqui rememorados, mas

uma proposta de vida, o cerne de um sistema maior que o próprio contato com as

imagens em movimento, mas seu impacto reivindicada a todo momento uma fusão entre

vida socialmente instituída e a cultura do cinema, aprendizagem e formação e acumulação de

saberes.

As trajetórias elencadas nesse estudo são de cinéfilos, aprendizes de cinema situados

em um ambiente artístico cultural, filosófico e ou universitária, envolvidos pela literatura,

a música, o teatro, o desenho e as artes plásticas e visuais que perfazem um grupo de

entusiastas a se movimentaram por espaços de sociabilidade, que inventaram uma forma de

se relacionar com o cinema a altura de amor que lhes dedicaram. O que se evidencia é

que as trajetórias de vida dos cinéfilos enfocados e seus aprendizados são inseparáveis de

suas vidas e de seus momentos de consumo e praticas cinéfilas. A cidade de Conquista se

tem um mérito, é o de ter a capacidade de reunir espectadores, cinéfilos e artistas cada vez

mais ávidos pela arte do cinema.

Não tratamos aqui de deslocar uma análise biográfica dos cinéfilos, mais sim do que

é fundamental, a afirmação de suas posições enquanto amantes dos filmes, um amor

indissolúvel, o estabelecimento seleto de diretores, filmes, cenas e falas de atores e atrizes.

O cinema assim visto coloca-se como arte moderna excelência e o filme não é seu produto

final, é o princípio da incitação ao ato cinéfilo, princípio das subjetividades transmutados em

práticas.

Assim, temos o espírito criativo de Monica Medina sua lógica inventiva e produtiva

nos remente a convicção dessa artista ímpar, que converteu sua história de vida a arte e

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a produção cinematográfica. A força de Jorge Melquisedeque situa-se no entrecruzamento

das práticas de cinéfila em Conquista, indivíduo que seguiu seu próprio caminho de

encontro com o cinema, pode ser o personagem principal de sua trajetória de

compartilhamento, foi um defensor da livre criação artística. Marcelo Lopes criou para

si a liberdade do cinéfilo sintonizado com a produção de cinema, aquele indivíduo que

deseja registrar a consciência do mundo, uma trilha essencial para o estabelecimento de

um crítico e um produtor de cinema de estética jovem, encontro com imagens, palavras,

metáforas e relatos suscetíveis de contemplar as imagens revisitadas pela memória. Apoiado

nas práticas de cinefilia, Hélio Flores introduz um tratamento cultural ao cinema e o aplica

ao próprio âmbito comercial do cinema. Sua locadora para os cinéfilos conquistenses

tornou-se durante um bom período o epicentro dos amantes do cinema. Seu espaço comercial

formou o l h a r e s num ritual de refinamento compreensivo das obras cinematográficas,

sensível a cenas diretores, certos conteúdos fílmicos construiu e compartilhou essa

profundidade de aprender por meio do cinema, viver cinema e alicerçou seus fundamentos

teóricos do seu modo de pensar e agir, sempre de forma compartilhada. Mônica Medina é

um das amantes do cinema que aprendeu a produzí-los pelo prisma da convivência com

as artes plásticas e visuais, as telas, os corpos pautados os gestos teatros, os atores atrizes

e seus fetiches expostos nas revistas de cinema. Por essas visões ela projeta suas imagens e

memórias recompostas.

Esmon Primo em suas praticas de cinema simboliza um modo de intervenção no

meio artístico que se formata vigorosamente nas mostras de cinema, não exibições que

congregam pessoas afins, reúne um conjunto de obras e uma constelação de apaixonados

pelo cinema. Primo encontra-se sempre pronto a descobrir novas fórmulas, outros

interlocutores, novos filmes que valorizem e a corresponda a densidade de seu vínculo com o

cinema.

Nesse sentido, esse trabalho demarca especiações fílmicas que se incorporam a vida

dos cinéfilos conquistenses, eles souberam transmitir um cuidado no olhar, admiram o

cinema e alicerçaram suas práticas num trabalho consumado no tempo e espaço, todos eles

insistiram no poder da sétima arte ao assimilar sua força imaginativa. Cada um dos filmes

vistos por esses cinéfilos, muitos deles fazendo parte de toda uma vida tornaram-se

arcabouço de conhecimentos e práticas: ao apresentar suas trajetórias apresentadas também

um momento singular da história do cinema em Conquista.

As práticas de cinéfila comparecem no cenário conquistense como vetores ativos de

mobilização individual e coletiva, uma célula de aprendizagem, formação em rede de

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consumo em cinema. Nesse contexto, o Programa Janela Indiscreta tem marcado diversos

momentos da historia da cinefilia em Conquista, não apenas por formatar um modelo de

cinema- fórum, cinema comentado, com suas folhinhas de cinema, mas também por

acolher aqueles se inscreveram especificamente nesse gosto, elegeram a estética do cinema,

expandido a vontade desses cinéfilos que frequentaram as sessões promovidas pelo Janela

Indiscreta em se aproximar ao máximo dos mecanismo de construção da produção

ritualística que envolvia o universo cinematográfico. Alguns cinéfilos possuem sua

formação no consumo sistemático de filmes, mas uniram o gosto ao exercício da cinéfila

nos moldes adequados a um determinado, ou melhor, manifestas no percurso de suas

trajetórias.

A reescrita das trajetórias de vida desses cinéfilos permitiu o engendrar da arte

fílmica com as relações socioafetivas vivenciadas principalmente no ambiente familiar,

somadas as práticas dedicadas ao cinema, foram anos de suas vidas, como se tivessem

sempre estado ali, sentados nas primeiras filas das salas de cinema, dos cineclubes, dos

seus lares, guiados pelos grandes diretores, por estudiosos do cinema e saíssem desses

espaços sempre proclamando a necessidade de escolherem outros modos de fazer a vida,

de reinventá-la para outros indivíduos. Com profundidade, cada cinéfilo a sua maneiras,

traçaram para si uma nova escrita cinematográfica, o que atraiu colaboradores, outros

cinéfilos, seguidores fieis, dispostos a acompanhar essa nova escrita. Desse modo essa

reescrita de parte da cinefilia presente em Vitória da Conquista, a pesquisa possibilitou

a liberdade de pensar nessas questões de forma contundente por meio da experimentação,

uma escola paralela permeada por freqüentações dos mais diversos tipos de filmes, da sua

profundidade dos filmes, os termos usuais da cinematografia, estudiosos e defensores da

arte do cinema. O cinema proporcionou vontade e procura pela compreensão de uma

linguagem que se consolidou em formação em aprendizado.

Os olhares desses cinéfilos para a arte do cinema conseguiram conjugar práticas,

realizações necessárias ao seu tempo, introduzindo, cada um do seu modo de ser e fazer

um pensamento integrado aos filmes que assistiram, possibilitando a outros indivíduos a

dar continuidade na construção de uma cultura cinéfila com referências distintas e

distintivas. Suas trajetórias foram movidas por percepções particularizadas do ato de

assistir filmes, mas os sonhos, sem duvida assinalaram uma consciência também de tão

de compartilhar de promover e produzir o melhor. A maneira como trabalharam para

disseminar a cultura para inspirar outros cinéfilos verificamos que em suas praticas todas as

ações foram preparadas cuidadosamente ou ainda se encontram em preparação, numa

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fabricação mental de seus próprios materiais cinematográficos, de falar e rever os seu

filmes prediletos e sempre inesgotáveis, esse é um traço presente na fala e universo,

praticaram um exercício bem sucedido, dado o trabalho que cada um empreendeu ou as

escolhas que fez A convicção desses cinéfilos esteve ancorada em suas ações de

colecionar, comercializar, inventariar, classificar, pesquisar e compreender os filmes que

assistiram. Na verdade, cada um deles inaugurou em Conquista maneiras diferenciadas de

criar uma cultura cinéfila, fundando um gosto sempre contextualizado por novas práticas de

cinema, em diferentes constituindo caminhos e alternativas para que as imagens

permanecessem em movimento.

Suas práticas foram reveladoras de gostos, pois permitiram dialogar de igual para

igual com tantas outras experiências cinéfilos presentes nos pais. Praticaram um cinema

pessoal e social, forjando ligações de cinema, com métodos específicos defenderam,

sobretudo, o conhecimento a possibilidade de realização, contribuindo para educar o olho do

espectador, dotando também a cidade de outros olhares , espectadores, escolas, etc. o poder

de reescrever a historia do cinema, a habilidade técnica, a emotividade no jogo das

revelações conferiram a esses cinéfilos posições humanizada diante da arte, convictos da

razão de suas existências no e com o cinema. Mas, essas palavras finalizadoras objetivam

primeiramente perpassar a memória de uma época, momentos em que os filmes eram vistos,

revistos, programado, em uma extensão de consumo desse filmes de forma coletiva, foram

encontros autênticos, permeados por textos, cartas, entrevista, formado de cinema, mostras,

exposições, encontros determinantes Langlois, Jorge Melquisedeque, Esmon Primo, Mônica

Medina, Marcelo Lopes, Valter Rodrigues, Hélio Flores Filho e Sidicley Silva, marcaram

suas trajetórias pelo amor ao cinema, defenderam com paixão suas práticas. A sensibilidade

para a cinefilia instituiu lugares de memória, apresentamos aqui relatos de aprendizado: a

cinéfila como uma escola, com suas salas de exibição, conferindo significação aos seus

atos, são indivíduos que aceitaram para si uma concepção própria para se relacionar com

o cinema, encontraram um objeto para amar e defender, comprovando com maestria a

qualidade e a as condições de possibilidade de interação provocadas por esse amor ao

cinema.

Por fim, o trabalho entreve as práticas cinéfilas no em uma ampliação do olhar sobre

os novos formatos de acesso fílmico, resignificando trajetórias de vida, transformando os

modelos habituais de se relacionar com o cinema, nos ajudando a compreender uma nova

ordem de se educar pelo olhar. As possibilidades que se abrem a partir das discussões

aqui apresentadas se colocam na ordem dos estudos sobre a cinéfila, campo fértil,

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sobretudo por adentrar em um ambiente cultural em que a arte é solicitada como expressão

não só uma visão da indústria cultural, mas como operação decisiva na solicitação a

renovação da sensibilidade, são aprendizagens formativas que vão sendo disseminadas

em Vitória da Conquista ao longo do século XX e início do século XXI que ajudaram a

criar as condições para a composição da história do Cinema em Conquista.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as práticas de cinefilia em Vitória da Conquista tentamos responder

algumas questões que puderam ser elucidadas por meio da apresentação das trajetórias dos

indivíduos envolvidos na constituição dessas práticas. Essa análise foi fundamental para

compreendermos o que confere aos cinéfilos um caráter distintivo, instituído por uma

freqüentação às imagens fílmicas e amalgamado por seus fazeres cotidianos, tornando as

práticas de cinefilia imprescindíveis na duração espaço temporal e na dimensão sócio afetiva

no percurso de suas existências.

Após decompor questões pertinentes aos pressupostos teóricos que anelam memória

e cinema apresentarmos uma revisão da literatura instauradora das concepções de

cinefilia, expomos o relato das trajetórias de vida de indivíduos amantes do cinema,

examinamos os seus constitutivos individuais e coletivos, indicando maneiras de

interligação entre esses indivíduos que compuseram o cenário do cinema conquistense.

Assim, observamos que o estabelecimento de redes relacionais nas mais diversas

situações de vida foram responsáveis por estruturar formas de aprendizado em cinema,

construíram conhecimentos e ancoram os indivíduos a expressões relativas às imagens em

movimento. As escolhas que os fizeram permanecer vinculados ao cinema permeiam os

domínios da memória e, impulsionados pela paixão por essa arte, foram investidos de

poder, levaram outros indivíduos às suas matrizes referenciais promulgadas por esse

universo de imagens em movimento.

O que se apresentou neste estudo, foram trajetórias qualificadas e práticas de cinema,

que sob condições favoráveis de existência, revelaram a predominância da constituição de

gostos. Não podemos excluir a possibilidade de existir um olhar centrado em práticas

cinéfilas individualizadas, mas estamos tratando de trajetórias de vida que construíram suas

ações conectadas com as memórias das imagens frequentadas e os vínculos projetados

para além dessa individualização. Tratamos de um fluxo pequeno de indivíduos, mas com

dimensões necessárias para o desenvolvimento desse trabalho. Nesses termos, o fluxo de

vida desses indivíduos ganhou dimensões maiores ao considerarmos as condições de

possibilidades nas quais as práticas desenvolvidas por eles foram organizadas.

Nesse sentido, podemos pensar as trajetórias de vida entrelaçadas por um

ordenamento social, o que permitiu aos indivíduos certa mobilidade na ambiência

cultural da qual fizeram parte e certo devotamento aos saberes incorporados, mediados

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pelo amor ao cinema. As configurações sociais, urdidas pela trama da memória, explicitam

as interdependências na motivação das escolhas das trajetórias que aqui percorremos,

remetendo-nos ao entendimento de um pertencimento sociocultural. Compreendido assim

como ambiente distintivo, os cinéfilos conquistenses focalizados nessa pesquisa

extrapolaram os gostos e viabilizaram maneiras de expressão, difusoras de suas práticas.

Nesse contexto, expomos no espaço narrativo dessas trajetórias as ações

empreendidas, dispostas não somente em um universo de subjetivações, mas ensejadas

por corpos móveis, aneladas em articulações possíveis, produzindo assim uma

compreensão globalizante dos fazeres cotidianos, mas também contemplando a

especificidade dos gostos constituídos, dos processos formativos inseridos em dinâmicas e

estratégias individualizadas. Percebemos então que a tecitura contemporânea das práticas de

cinefilia, reveladora da construção de uma cadeia de relações entre os indivíduos e o

compartilhar de saberes socialmente elaborados foi responsáveis por uma dinâmica de

aprendizado no qual as formações ocorreram por meio de vivencias e incorporação de

conhecimentos.

Os cinéfilos conquistenses encontram-se vinculados a outros indivíduos que tiveram

suas vidas impactadas pelo cinema, o que possibilitou a instauração de um tipo de

aprendizado reordenado em uma rede de conhecimentos que são recordados,

rememorados e reinventados por esses indivíduos em um dado tempo histórico. Nesta

compreensão, vincular concepções de memória às práticas de cinefilia tornou-se

fundamental para entender como ocorrem à transmissão de saberes, o compartilhar de

lembranças fílmicas por meio de encontros e situações de aprendizagem.

Dessa forma, a temática apresentada nesse estudo, além de ser relevante para os

estudos em cinema, permitiu o entendimento de como as práticas de cinefilia se

constituíram na cultura conquistense, como foram e são expressas ações, afetos, desejos e

pensamentos de uma geração de cinéfilos, construindo uma parte da história do cinema do

Planalto da Conquista. As práticas de cinefilia compareceram como tema de renovado

interesse na atualidade, evidenciando uma significativa possibilidade de compreensão dos

percursos que possibilitaram aos indivíduos desenvolverem essas práticas.

A partir desse enfoque, compreendemos que não há um formato único de

constituição da cinefilia, o que ocorre são apropriações diferenciadas, desejáveis por esses

indivíduos apreciadores e envolvidos com práticas de cinema, nas quais verificamos

potencialidades formativas e propagação de ações em cinema e disseminação dessa arte

na região sudoeste da Bahia. Sendo assim, a posição assumida nesta pesquisa pode se somar

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com o trabalho de outros pesquisadores que se debruçam sobre objetivos de estudo

análogos; as análises aqui empreendidas podem favorecer a formulação de outras

interpretações, ou mesmo provocar mudanças em alguns pressupostos iniciais.

Cabe salientar que ao tomar aqui as práticas de cinefilia como objeto de estudo

desvelamos algumas condições de existência de configurações de práticas de cinema e suas

implicações, seu impacto nos diversos espaços sociais, na vida dos indivíduos,

especialmente aqueles que experimentam essas ações com maior intensidade. Por fim,

enquanto a arte cinematográfica nos remete a produção, exibições de imagens em

movimento, em um processo de frequentação se particularizam e se diferenciam em suas

práticas, reelaborando uma identidade, uma cadeia produtiva de consumo. Dada essa

proposição, o poder de pertencimento a um espaço artístico universal como o cinema é

merecedor de destaque na constituição da memória das práticas de cinema em Conquista.

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