19
<b>1. INTRODUÇÃO</b> Nos últimos anos, a Física tem nos apontado que, sob a aparente diversidade, o Universo formou-se a partir de uma matéria única. Para os gregos antigos era chaos, a matéria primordial da qual tudo se originou pela intervenção de Eros. Os alquimistas de todas as épocas chamam-na Matéria-Prima, representada pelo ouroboros – uma serpente mordendo a própria cauda –, símbolo hermético da continuidade das transformações graduais da matéria e do iniciado na Grande Arte. A questão sobre a origem do Universo consome anos de estudos e exaustivas investigações por parte dos cientistas e se constitui em um dos campos mais especializados da cosmologia, contudo, tal conhecimento, sob um ponto de vista mais próximo ao das nossas necessidades, não interfere nem modifica nossas curtas existências. Nossa imaginação não é capaz de se reportar a um tempo tão distante, portanto vazio de qualquer significado. Então, qual o sentido de tais estudos por parte da Ciência que se caracteriza por um método fundado na objetividade e racionalidade? Por que esse conhecimento transcende a esfera do domínio científico e fascina a tantos? Outro assunto que instiga a mente dos estudiosos é o da constituição da matéria. Por algum tempo, água, terra, fogo ou ar pareciam ser respostas satisfatórias para alguns; para outros, tudo era formado por átomos. Entretanto no final do último século, novos olhares para as velhas dúvidas tornaram- se necessários e os físicos realizaram um sonho dos antigos gregos, a sugestão de que, sob a diversidade das aparências, o mundo é uma só substância. Por mais aceitável que esta descoberta possa ser para os filósofos, é profundamente penosa para os cientistas, por não compreenderem a natureza desta substância. Se a substância quântica é tudo o que existe e se não entendemos esta substância, nossa ignorância é completa (Herbert, 1989). Estas perguntas talvez ocultem outra, mais secreta: o Universo é fruto do acaso ou há algum indício de que ele surgiu da vontade de um Ser supremo que dirige todas as coisas? Desde as épocas mais remotas, o homem procura

Ciência, Mito e Religião.doc II

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo

Citation preview

III

1. INTRODUONos ltimos anos, a Fsica tem nos apontado que, sob a aparente diversidade, o Universo formou-se a partir de uma matria nica. Para os gregos antigos era chaos, a matria primordial da qual tudo se originou pela interveno de Eros. Os alquimistas de todas as pocas chamam-na Matria-Prima, representada pelo ouroboros uma serpente mordendo a prpria cauda , smbolo hermtico da continuidade das transformaes graduais da matria e do iniciado na Grande Arte.

A questo sobre a origem do Universo consome anos de estudos e exaustivas investigaes por parte dos cientistas e se constitui em um dos campos mais especializados da cosmologia, contudo, tal conhecimento, sob um ponto de vista mais prximo ao das nossas necessidades, no interfere nem modifica nossas curtas existncias. Nossa imaginao no capaz de se reportar a um tempo to distante, portanto vazio de qualquer significado. Ento, qual o sentido de tais estudos por parte da Cincia que se caracteriza por um mtodo fundado na objetividade e racionalidade? Por que esse conhecimento transcende a esfera do domnio cientfico e fascina a tantos?

Outro assunto que instiga a mente dos estudiosos o da constituio da matria. Por algum tempo, gua, terra, fogo ou ar pareciam ser respostas satisfatrias para alguns; para outros, tudo era formado por tomos. Entretanto no final do ltimo sculo, novos olhares para as velhas dvidas tornaram-se necessrios e os fsicos realizaram um sonho dos antigos gregos, a sugesto de que, sob a diversidade das aparncias, o mundo uma s substncia. Por mais aceitvel que esta descoberta possa ser para os filsofos, profundamente penosa para os cientistas, por no compreenderem a natureza desta substncia. Se a substncia quntica tudo o que existe e se no entendemos esta substncia, nossa ignorncia completa (Herbert, 1989).

Estas perguntas talvez ocultem outra, mais secreta: o Universo fruto do acaso ou h algum indcio de que ele surgiu da vontade de um Ser supremo que dirige todas as coisas? Desde as pocas mais remotas, o homem procura conhecer sua origem e o seu fim. Tal necessidade, a de buscar um sentido, como significado e direo, para sua vida bem como para a existncia do Universo, encontra-se nos mitos de criao de todas as sociedades.

Diferentemente da linguagem analtica e racional da cincia moderna, os mitos so expressos em uma linguagem analgica e simblica que permite as conexes, as significaes, as associaes, a afetividade, e a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da existncia. No entanto, a prpria Cincia a ela recorre quando lana mo de expresses como seleo natural, big bang, leis da natureza. Assim, quando um cientista se prope a responder com teorias questes que se relacionam com sentido da vida humana invade, mesmo que no tenha conscincia, o campo do mito interessante notar que foi no bojo da Cincia, tida como essencialmente racionalista e objetiva, que as noes de complementaridade, interdependncia e subjetividade, inerentes linguagem simblica, ressurgiram, especialmente dentro da mecnica quntica e da teoria da relatividade. Sem poder abrir mo daquilo que a sustenta sua diviso disciplinar, a organizao, suas normas e os seus limites a Cincia comeou, recentemente, a incluir em sua perspectiva esses valores, dela excludos para se constituir. A partir da, passamos a considerar o Universo como uma teia de eventos, levando em conta todas as suas interfaces: a imagem do Universo como uma mquina tem sido substituda pela de um todo interconectado, dinmico, cujas partes tm de ser entendidas como padres de um processo csmico (Capra, 2001).Em que pese muitos ainda acreditarem que h um fosso intransponvel entre os mitos religiosos e a Cincia, ambos se estruturaram na mesma necessidade, a de explicitar e conferir um sentido vida humana. A busca e a sistematizao do saber parecem ter motivado nossa espcie desde seu aparecimento, e cada sociedade, desde cedo, tentou organizar um conjunto de explicaes para justificar os mistrios da natureza, da vida e da morte, expressando-os no que chamamos de mitos.

A religio e a filosofia tornaram-se meios importantes para significar a vida individual e social. A arte continua a revelar aspectos do inconsciente e da situao humana. A Cincia, tomada como um conjunto ordenado de conceitos e tcnicas, que visa compreenso do mundo e suas relaes, mais uma linguagem, um instrumento desta busca. No entanto, no mundo ocidental, adquiriu um carter hegemnico, com a pretenso de ser seu nico critrio.

A cincia moderna no a nica explicao possvel da realidade e no h sequer uma razo cientfica para consider-la melhor que as explicaes alternativas da metafsica, da astrologia, da arte ou da poesia. A razo por que hoje privilegiamos uma forma de conhecimento assente na previso e no controle dos fenmenos nada tem de cientfico. um juzo de valor (Santos, 2002).

2. CINCIA E MITOEm todas as pocas, a interrogao sobre a origem, a organizao e o sentido do Universo encontra-se no cerne de todas as mitologias, quase sempre apresentadas como cosmologias tentando desvendar o significado do Mundo e de suas leis. Para o homem, trata-se de um desafio fundamental. Porque, ao enfrent-lo, interroga-se sobre a origem de seu ser-no-mundo, seu lugar no Cosmos e o sentido de sua existncia.

Hilton JapiassuPode parecer estranho relacionar Cincia e mito. Pode at parecer contraditrio na medida em que o senso comum considera o mito como antagnico verdade ou Cincia. Entretanto, o mito no se ope verdade como entende a cincia moderna j que responde a diferentes questes, externas ao mbito da Cincia. Se esta procura descrever como os fenmenos acontecem e estabelecem as leis que regem determinados fatos, o mito, como as artes, procura o sentido que transcende o mensurvel, um sentido que d sentido vida do sujeito que pergunta (Mo Sung, 2004).Causas histricas fazem com que pessoas leigas, mas devotas das cincias, defendam que a linguagem racional pode responder as nossas perguntas. Tambm existem aqueles devotos que se apiam nos mitos das grandes religies e, neles pretendem encontrar as mesmas leis que a cincia prope.

Contudo, vivemos hoje em uma cultura pretendendo ter ultrapassado o estdio do mito. Teramos deixado para trs a representao mtica, porque dela nos teria livrado a representao cientfica do mundo (Japiassu, 1999). O mito no antagnico cincia, nem pertence ao passado da humanidade, mas est implcito no fazer cincia e na vida humana. O mito relata e revela sempre verdades simblicas importantes sobre a humanidade.

A Cincia aproxima-se do mbito do mito, especialmente no que se refere s questes da origem. Cada sociedade possui um mito de criao que lhe prprio. Na Grcia Antiga, cujo pensamento contribuiu para constituir a cincia moderna, encontramos um mito que apresenta certas analogias com a Teoria do Big Bang.

Com efeito, uma das mais antigas cosmogonias gregas relata que antes do aparecimento do mundo havia o Caos. Diferente do nada, o Caos um estado indiferenciado, primordial, atemporal, destitudo da ordem universal. Para que se iniciasse a histria do mundo seria necessria a interveno de um poder divino. A este poder, anterior a toda a Antiguidade, chamou-se Eros, que produz a inexplicvel simpatia ou atrao entre os opostos, gerando da o Cosmos. Sua primeira obra foi gerar Gaia e depois Uranos, que a ela se une, envolvendo-a. Da unio amorosa do Cu e da Terra, nasceu Cronos, o tempo. Em seguida, todas as divindades e seres do mundo. Nesse contexto, Eros simboliza o deus do nascimento, esta fora que os filsofos gregos denominam Physys: a fora universal capaz de levar ou unir os homens ao amor divino (Japiassu, 1999).Em contrapartida, uma parte dos cientistas diz que o Universo se formou a partir de uma exploso primordial conhecida como Big Bang. A primeira concepo foi sugerida pelo padre e cosmlogo belga Georges-Henri douard Lematre (1894-1966), que props uma teoria em que o Universo teria tido um comeo repentino. No incio, era apenas uma atualizao de uma arquiconcepo bblica que naturalmente j se abria em duas vertentes nada interessantes para o contexto: o atomismo e o criacionismo. Durante milhares de anos, pergunta-se sobre a existncia do universo. De onde vem tudo isso? Foi criado como ensina a Igreja? Ou ter sempre existido, conforme a tese de muitos filsofos? E quem est correto? Neste sculo uma resposta apareceu no horizonte para iluminar nossas mentes em nosso maior enigma (Saturno, 2008). Em 1917, foi construdo o maior telescpio at aquele momento da histria. Isso ocorreu no Monte Wilson, nos Estados Unidos. Esse aparelho mostrou uma nova viso do cosmos. Simultaneamente, Albert Einstein dedicava-se sua Teoria da Relatividade Geral. Conforme essa teoria, o universo, necessariamente estaria se contraindo ou se expandindo, no podendo ser esttico. Einstein acreditava, como todos os pesquisadores, que o universo era esttico. Passou a utilizar um artifcio, introduzindo em suas equaes a constante cosmolgica. Diversos cientistas contestaram a constante cosmolgica, entre eles um padre catlico belga e tambm astrofsico, Georges-Henri douard Lematre. Conhecia mais sobre as equaes da Teoria da Relatividade do que o prprio Einstein. Acreditava num dilogo entre a cincia e religio e props algo muito ousado: uma idia sobre a criao do Universo, que teria surgido de um ncleo atmico gigantesco que, ao se desintegrar, deu origem a espao, tempo, radiao e matria. Dizia que houve um instante de incio, a partir do que ele denominou de tomo primordial ou ovo csmico. Uma origem cataclsmica, denominada posteriormente de big bang. Afirmava que a matria comprimida naquele tomo se fragmentou numa quantidade enorme de pedaos e cada um acabou se fragmentando em outros menores sucessivamente at chegar aos tomos atuais numa gigantesca fisso nuclear. Lematre foi o primeiro a dizer que seu modelo era mais uma sugesto do que uma teoria.Einstein no aceitava as suas idias, porm Lemaitre corrigiu o maior erro de Einstein. Edwin Hubble, no incio de 1920, foi ao observatrio do Monte Wilson para provar que os borres de luz (as nebulosas espirais) no cu eram exteriores Via Lctea, ou seja, eram outras galxias. Com muito esforo, guiou o telescpio noites seguidas para produzir uma nica fotografia (j que a luz muito fraca) da galxia Andrmeda (Saturno, 2008).De repente, o tamanho do universo foi aumentado em um bilho de vezes, mostrando-nos a nossa tamanha pequenez. Com o tempo ele aprendeu a medir a distncia pelo brilho. Ento, ele descobriu, observando a luz que a galxia emitia, se uma galxia estava em movimento e quo rpidas estavam. Deduziu sua lei: quanto mais longe de ns est uma galxia, mais rpido ela se afasta. E todas estavam se afastando de ns, sugerindo a expanso do universo (Saturno, 2008). Em 1931 Lematre, usando a matemtica de Einstein e as observaes de Hubble, convenceu-os de que a expanso era real e no passado houve um incio, uma grande exploso. Era o incio da cosmologia moderna. Fred Hoyle contestou essa teoria e, em 1948, props a Teoria do Estado Constante, afirmando que o universo no teve um comeo como descrito por Lematre. O seu questionamento era: se ocorreu uma exploso, onde est a radiao de fundo por todo o Universo? Ento, os cientistas adeptos do big bang descobriram o que procurar. Em 1965, Bob Wilson, radioastrnomo dos Laboratrios Bell, descobriu em uma antena em forma de corneta, um rudo que aparecia, independente do local para onde apontasse. Ele e seu colega Arno Penzel descobriram o rudo de fundo que comprovou o big bang. Lematre testemunhou a prova de que a Igreja estava certa ao afirmar que o Universo teve um incio explicado na frmula de Einstein, expressa na matemtica de Deus. Com o passar do tempo, o paradoxo do cosmlogo belga adquiriu status de teoria, em 1948, com o cientista russo, naturalizado norte-americano, George Gamow. Para ele, o Universo teria nascido entre 13 e 20 bilhes de anos atrs, a partir de uma concentrao de matria e energia extremamente densa e quente e tudo o que existe no Universo veio de uma bolha que surgiu em um tipo de "sopa" quentssima e comeou a crescer, dando origem a toda a matria que conhecemos. Embora no explique muita coisa, uma das teorias de origem mais aceitas atualmente, talvez at porque se assemelhe quela relatada no Gnesis.Outra aproximao da Cincia com o mito pode ser vislumbrada no mito de Prometeu, que antecipa os problemas decorrentes do uso da tecnologia, uma transgresso do homem em relao aos deuses (Japiassu, 2005). Conta o mito que, depois de criado o mundo e separada a Terra das guas, Prometeu e Epimeteu, da raa dos tits, foram incumbidos de criar e assegurar a todas as formas de vida a possibilidade de preservao.

Epimeteu ficou encarregado da obra e Prometeu, de examin-la. Assim, Epimeteu, no ato da criao, atribuiu um dom a cada ser vivo: fora, velocidade, resistncia, garras, asas, carapaas...

Porm, Prometeu, ao observar o estado da criao at aquele instante, percebeu que nenhum ser era capaz de investigar, aprender, usar as foras da natureza, comunicar-se com os deuses, compreender no apenas o mundo visvel, mas o princpio de todas as coisas. Um ser superior deveria ser criado. Do barro, resultado do casamento sagrado da Terra e do Cu, Prometeu fez o homem. Coube a Epimeteu atribuir-lhe um dom, contudo percebeu que nada mais restava, j que usara todos os recursos de que dispunha.

Perplexo com o descuido de Epimeteu, Prometeu roubou, com a ajuda de Minerva, o fogo divino e o deu aos homens como presente. Com ele, o homem lanou as bases da civilizao e assegurou sua superioridade sobre os outros animais.

Prometeu foi condenado a conviver com Epimeteu e a remediar o custo de seus atos impensados, os problemas resultantes do uso da tecnologia, cujos efeitos sobre o Planeta so geralmente, em um primeiro instante, incompreendidos e cujos resultados nefastos s so percebidos, s vezes, tarde demais. Um paralelo interessante encontramos na bomba atmica que roubou o fogo do interior da matria e promoveu a destruio. Mesmo essa energia, quando utilizada para fins pacficos, como a produo de energia eltrica a partir da energia nuclear, tem nos trazido srios problemas, como o grave acidente de Chernobyl.

Por isso, uma formao cientfica adequada deve visar formao de um cidado que possa compreender que a tecnologia no devia pertencer a um domnio tcnico e, sim, a um domnio social de modo que seus produtos sejam obra do Previdente e no do Irrefletido.

Habitualmente, tambm no consideramos que, provavelmente, o smbolo, a imagem, o rito anteciparam e, muitas vezes, tornaram possvel suas aplicaes utilitrias. Em outras palavras, antes de modificar a face do mundo, essas descobertas deixaram marcas na histria espiritual da humanidade. Se da argila os deuses criaram o homem, com ela o homem moldou a figura dos deuses. O fogo e os metais serviram s divindades e o martelo e a bigorna tornaram-se smbolos dos deuses da criao. Assim, um ferreiro, ao malhar sua bigorna, imitaria um gesto divino.

O ouro, cobiado pela humanidade, nunca foi um metal essencial: no teve utilidade como ferramenta ou arma, no participou das revolues tecnolgicas, tampouco o metal mais raro ou de custo mais elevado. A importncia que lhe atribuda talvez possa ser explicada pelo seu simbolismo, j que foi o primeiro metal descoberto, o metal ancestral, sincretizado com o deus Sol, o doador da vida.

Ainda hoje no h quem ignore a correspondncia dos sete metais mais conhecidos desde a Antiguidade com os astros e suas associaes com as constelaes zodiacais e muitos tm consigo um fragmento de um metal que lhes seja favorvel, determinado pela poca do seu nascimento. Poder-se-ia argumentar que tais atitudes sejam comuns entre os menos esclarecidos. No entanto, Japiassu (1999) relata que o fsico Lvy-Leblond, ao visitar Neils Bohr em sua casa de campo surpreendeu-se ao ver, pendurada sobre a porta de entrada, uma ferradura. Perguntando-lhe se acreditava naquilo, obteve como resposta: parece que estas coisas funcionam mesmo quando no se acredita nelas. Bohr foi uma das mentes mais brilhantes do sculo XX.

Esse simbolismo mgico resistiu s eras, ao advento da cincia moderna e nos deparamos com ele ainda neste incio do terceiro milnio, quando a prpria Fsica fornece fundamentos tericos para que se interprete o Universo em termos de conscincia. No quero dizer com isso que a magia est presente nas cincias, mas no pode ser considerada antecessora desta, como querem alguns historiadores da Cincia, j que convive com ela. Alm disso, ela no se preocupa em explicar o fenmeno. Para ela, basta que funcione. A magia pressupe a existncia de regras na natureza, as quais, com atos adequados, podem ser usadas pelo homem (Dampier, 1961). Sua finalidade no a compreenso ou o controle da natureza, tal qual Bacon preconizou, mas torn-la favorvel ao homem. Alm disso, muito do que poderia ser considerado mgico, em uma poca ou em uma sociedade em particular, hoje est includo em nossas atividades. Da mesma forma, o conhecimento cientfico de hoje pode ser, em um futuro bastante prximo, ser tomado como mito.

Ser que o saber racional e objetivo da cincia moderna realmente substituiu a representao mtica do mundo? Considerada a melhor contribuio do Ocidente para promoo do Homem, a Cincia, tal como o novo Prometeu, ilumina os caminhos do futuro, liberando o Homem de todos os dogmatismos? Contudo, continuamos fascinados pelos nossos mitos de origem e freqentemente, em momentos de crise, as antigas questes cosmolgicas vm tona.

No h dvida de que a cincia moderna, herdeira da racionalidade grega, adotou como um dos seus objetivos fundamentais separar-se da religio e instituir-se como a nica verdade possvel de ser aceita; no entanto, essa hegemonia no mundo atual parece obrig-la a assumir funes que no so suas e que eram outrora desempenhadas pelos mitos e pela religio. Nestes tempos de triunfo da Cincia, com seus importantes resultados, ela ainda est longe de nos fornecer um quadro abrangente da realidade. Precisamos reconhecer que, neste aspecto, a explicao mtica prevalece sobre a cientfica.

3. CINCIA E RELIGIOO cientista de hoje escala as montanhas da ignorncia e, quando se aproxima da rocha mais alta, prestes a conquistar o cume, saudado pelos telogos, que estavam l, sentados h sculos.

Robert Jastrow Astrofsico da NASAO mito de Prometeu sugere que o homem se diferenciou da natureza ao dominar o fogo. A partir de ento, passou a desenvolver a crena de que poderia compartilhar com os deuses do mundo divino. Essa idia expressou-se na magia e consolidou-se nos rituais. A par disso, o conhecimento acerca do mundo material comeou a se expandir. Se aceitarmos a tese de que tal saber tinha a conotao de revelao divina, seus mistrios, bem guardados, revelavam-se nas narrativas mitolgicas das civilizaes antigas.As tcnicas nas civilizaes mticas preservariam o carter mgico de sua pr-histria, mas adquiririam o carter ritualstico. Tanto a arquitetura como a medicina, como a minerao, a cermica e a tinturaria basear-se-iam na crena de que a alma humana poderia participar dos desgnios dos deuses e demnios, repetindo ritualisticamente suas aes, roubando-lhes seus segredos, assim assegurando a simultaneidade entre a ao do tcnico mtico e a ordem csmica (Vargas, 2001). Contudo, entre o stimo e quinto sculo anterior nossa era, algo novo surgiu. Provavelmente da unio das tcnicas mgicas e dos segredos divinos, uma nova forma de conhecimento mais elaborado apareceu. Procurava estabelecer a relao entre o anmico e o material. O que h de novo nessa sabedoria que ela se constituiu em um corpo de conhecimentos que tem um autor e traz suas marcas.

De maneira aparentemente independente, a humanidade foi encontrando outros caminhos. Na China, a sabedoria floresceu dos ensinamentos de Kung-fu-ts e Lao-ts; na ndia, de Mahavira e Sidarta; na Mesopotmia foi sob os ensinamentos de Zoroastro. No mundo grego, com Tales de Mileto e Pitgoras. S que ali, diferente do que ocorreu em outros locais, essa sabedoria ligou-se mais s coisas materiais do que s divinas. Pitgoras, que marcou o pensamento moderno na crena de que as operaes ltimas do Universo podem ser descritas em termos numricos, foi um grande matemtico e Tales talvez tenha sido o primeiro pensador a especular sobre a origem, a natureza e as transformaes da matria sem invocar o poder sobrenatural.

No mundo ocidental, a Cincia surgiu no interior das religies, principalmente na Igreja Catlica. O perodo da longa noite de mil anos, chamado de Idade Mdia, era herdeiro direto da cultura greco-romana, mas sua sociedade assentava-se em bases estritamente crists, portanto religiosas; dirigida e organizada pela Igreja Catlica, tinha como lei os textos bblicos. Dessa forma, os textos clssicos foram adaptados, ou cristianizados, para serem aceitos. Aristteles era considerado o filsofo pela Igreja e sua idia de que a Terra era o centro do Universo, foi associada de que o ser humano era o centro da criao divina, portanto, plenamente aceita.

As tenses entre Cincia e religio so antigas. Santo Agostinho, o primeiro grande telogo do Catolicismo, dizia que o pensamento aplicado conduzia ao pecado e perdio e que, para atingir a redeno, o importante era dedicar-se adorao do eterno.

A Igreja assumiu a funo de pensar pelos homens, dizendo o que era certo e errado, o que era o bem ou o que era o mal. Portanto, o clero assumiu a funo de elaborar e divulgar o conhecimento surgiram as universidades. Neste mundo, o espao destinado s cincias naturais tornou-se muito reduzido. Resistia apenas s margens de uma sociedade impregnada de religio. Os poucos cientistas daquela poca eram alquimistas e, alguns deles, paradoxalmente, estavam ligados Igreja Catlica.

O declnio do regime social medievo e de suas idias nos levaram ao limiar da modernidade, onde a magia e a Cincia constituram-se num corpo nico que no pde ser separado facilmente. A cincia ocidental esteve sempre relacionada com o universo cristo. A histria das cincias nos mostra a participao importante da religio na origem e no desenvolvimento da cincia moderna (Japiassu, 2005).

Se considerarmos a religio uma concepo geral do mundo na qual o universo material e o destino humano so governados por um poder divino e sagrado, torna-se claro que se fundamenta em explicaes sobre a origem e o movimento de todas as coisas. Decorre ento que a Histria da Cincia sempre encontra a barreira do fenmeno religioso ou das formas culturais religiosas do passado. As mais altas personalidades concordam em dizer que, ao menos no que concerne ao Homem, urge reunir em uma sntese slida a multiplicidade de nossas aquisies cientficas. O mundo religioso, por sua vez, aspira a essa sntese que por em plena luz a grandeza e a beleza da Criao. O esprito humano, com efeito, no se contenta com uma cincia dividida e fragmentada ao infinito (Rossi, 1992).No surpresa para ningum que existem tenses entre Cincia e religio. Historicamente, as relaes entre Cincia e religio foram permeadas por desentendimentos e disputas. No entanto, devemos lembrar que muitos filsofos naturais, hoje chamados cientistas, eram crentes e at mesmo cristos convictos. Toda tentativa de Galileu foi colocar as suas teses sob a autoridade das escrituras sagradas (Rossi, 1992). Newton dedicou mais tempo da sua vida aos estudos teolgicos do que Fsica. Ao dividir o mundo em matria e mente, a inteno de Descartes foi estabelecer um acordo bem definido: no atacaria a religio, que reinaria soberana em questes relacionadas com a mente, em troca da supremacia da Cincia sobre a matria. Durante mais de dois sculos, o acordo foi respeitado. Por fim, o sucesso da Cincia em prognosticar e controlar o meio ambiente direcionou os cientistas ao questionamento da validade de todo e qualquer ensinamento religioso (Goswami, 2003).Em recente entrevista, o Dalai-Lama foi questionado sobre a importncia da interao entre a religio e a Cincia e assim se manifestou:

Alguns amigos j me disseram que a cincia assassina da religio e me recomendaram que tivesse cuidado no trato com cientistas. Mas um dos princpios budistas analisar, investigar. Se alguma descoberta vai contra nossas escrituras, temos a liberdade de ter uma interpretao diferente (das escrituras) ou de descart-la. Tambm h o campo da psicologia. A psicologia budista parece mais avanada que a ocidental, pois est relacionada com as emoes. Meu interesse pelas cincias s cresce. H cinco anos introduzimos estudos em cincias bsicas para monges (Revista poca, 2006).A religio no est inserida explicitamente no conhecimento cientfico, nem no seu mtodo, nem faz parte da sua epistemologia, mas inerente ao homem, portanto se faz presente quando o cientista formula sua hiptese e, assim, direciona o sentido da sua pesquisa. No entanto, se indagarmos um cientista sobre a relao das suas pesquisas com o irracional, com o sagrado ou com o mstico, certamente responder indignado:

A cincia no se interessa pelo irracional, pelo sagrado ou pelo mstico. Ns, os cientistas, nada temos a ver com os telogos, com os msticos ou com os artistas, porque nosso saber objetivo e claro. Nosso trabalho metdico, racional, rigorosamente controlado (Japiassu, 1999).

Mas isto verdade? Quando vamos para as questes da origem, no nos deparamos com os mitos e com as religies?

Atualmente, diversos livros que responsabilizam as religies pelos males da humanidade reforam a discusso filosfica sobre o atesmo. O grupo de novos atestas causa uma grande confuso, pois exacerbam a j arraigadas posies anticientficas dos mais religiosos e cria novos opositores em razo arrogncia. Marcelo Gleiser diz:

Acho perigoso que eles sejam vistos como porta-vozes da comunidade cientfica. Do ponto de vista da cincia, a posio de ateu radical no faz sentido. Para se afirmar que Deus no existe, necessrio supor que detemos a totalidade do conhecimento, algo que inatingvel pelo fato de a cincia ser uma criao humana e limitada.

Para ele, o mximo que cientistas podem dizer que a existncia de um Deus judaico-cristo contrria ao que conhecemos do mundo. Por outro lado, no podemos afirmar que a informao atual da ausncia de uma divindade definitiva, pois no temos informao sobre tudo. A nica posio consistente com a Cincia o agnosticismo ou, no mximo, um atesmo liberal, pronto a aceitar evidncia em contrrio, caso ela ocorra .4. CONSIDERAES FINAIS

No proposta da Cincia tirar Deus das pessoas. O que ela pode fazer proporcionar uma forma alternativa de espiritualidade ligada ao mundo natural e no ao sobrenatural, cativante magia da descoberta. esse naturalismo, essa entrega natureza e aos seus mistrios, que confere Cincia a dimenso espiritual que a torna humana. Ela pode no ter todas as respostas, porm proporciona autonomia ao indivduo, fornecendo os instrumentos de sua liberdade. E, ao faz-lo, ensina-nos a respeitar a vida e a lutar pela sua preservao (Gleiser, 2005). A Cincia possibilita-nos uma aproximao com a natureza e nos encaminha a uma percepo de mundo que pode, com certa liberdade, ser denominada de espiritual. Einstein justificava sua devoo Cincia como algo que ele conceituou como o sentimento religioso csmico, associando ao estudo racional da natureza uma dimenso espiritual.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASCAPRA, Fritjof (2001). O ponto de mutao. 22 ed. So Paulo: Cultrix.

CHARDIN, Teilhard (1994). O fenmeno humano. 3 ed. So Paulo: Cultrix. DALAI-LAMA (2006). Entrevista. Revista poca, n. 413.

DAMPIER, William C (1961). Pequena Histria da Cincia. So Paulo: IBRASA.

GLEISER, Marcelo (2005). Micro Macro: reflexes sobre o homem, o tempo e o espao. So Paulo: Publifolha._________. A viso de um padre cosmlogo. Disponvel em: Acesso em: 14/4/2008.

GOSWAMI, Amit (2003). O universo autoconsciente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.

HERBERT, Nick (1989). A realidade quntica. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

JAPIASSU, Hilton (1999). As paixes da cincia. 2 ed. So Paulo: Letras e Letras.

JAPIASSU, Hilton (2005). Cincia e destino humano. Rio de Janeiro: Imago.

MO SUNG, Jung (2003). Cincia, mito e o sentido da existncia. In: Pugliesi, Mrcio. Mitologia greco-romana: arqutipos dos deuses e heris. So Paulo: Madras.ROSSI, Paolo (1992). A cincia e a filosofia dos modernos. So Paulo: UNESP.SANTOS, Boaventura de Sousa (2002). Um discurso sobre as cincias. 13 ed. Porto: Afrontamento.SATURNO, Mrio Eugenio. O padre que corrigiu Einstein. Disponvel em: Acesso em 14/04/2008.

TRINDADE, Diamantino Fernandes (2007). O olhar de Hrus: uma perspectiva interdisciplinar do ensino na disciplina Histria da Cincia. Tese de Doutorado. So Paulo: PUC-SP.VARGAS, Milton (2001). A origem da Alquimia: uma conjectura. In: Alfonso-Goldfarb, Ana Maria. Da alquimia Qumica. So Paulo: Landy.Resumo

O objetivo deste trabalho mostrar as interfaces da Cincia com o mito e com a religio. A cincia no a nica explicao possvel da realidade e no h sequer uma razo cientfica para consider-la melhor que as explicaes alternativas da metafsica, da astrologia, da arte ou da poesia. A razo por que hoje privilegiamos uma forma de conhecimento assente na previso e no controle dos fenmenos nada tem de cientfico. O mito no se ope verdade como entende a cincia moderna j que responde a diferentes questes, externas ao mbito da Cincia. Diferentemente da linguagem analtica e racional da cincia moderna, os mitos so expressos em uma linguagem analgica e simblica que permite as conexes, as significaes, s associaes, a afetividade, e a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da existncia. Devemos lembrar que muitos filsofos naturais, hoje chamados cientistas, eram crentes e at mesmo cristos convictos. A religio no est inserida explicitamente no conhecimento cientfico, nem no seu mtodo, nem faz parte da sua epistemologia, mas inerente ao homem, portanto se faz presente quando o cientista formula sua hiptese e, assim, direciona o sentido da sua pesquisa.

Palavras-chave: Cincia, mito, religio, filosofia.

Diamantino Fernandes Trindade

Doutor em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

Professor de Histria da Cincia do Centro Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo

Professor de Epistemologia da Cincia e do Ensino do Centro Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo

Ultimas publicaes

Os Caminhos da Cincia e os Caminhos da Educao: Cincia, Histria e Educao na Sala de Aula (co-autoria com Lais dos Santos Pinto Trindade) Madras Editora (2007). Poluio e Energia: discusses na atualidade, publicado no nmero 27 da Revista Augustus, UNISUAM (2008). Uma anlise histrica da Educao Brasileira (co-autoria com Lais dos Santos Pinto Trindade), publicado no nmero 1, vol. 7, da Revista Sinergia (2007).

Elementos de contato

e-mail: [email protected]: 11-9916-0317 Vertente do pensamento pr-socrtico (sculo V a.C.); baseia-se na teoria dos tomos, criada por Leucipo e desenvolvida, posteriormente, por Demcrito de Abdera. Para o pensamento atomista, o princpio (arch) da realidade (phsis) reside nos tomos, elementos invisveis, de nmero ilimitado, cada um possuidor de uma forma prpria; sendo o nmero de formas presentes nos tomos, igualmente, ilimitado. A natureza destes elementos unitria e plena, uma vez que eles so indivisveis (em grego, o termo -tomos significa sem diviso).

O Gnesis, o primeiro livro do Antigo Testamento, descreve a origem do mundo da seguinte forma: No princpio, Deus criou o Cu e a Terra. Ora, a Terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as guas. Deus disse: Haja luz e houve luz. algo muito parecido com a Teoria do Big-Bang.

Colunista da Folha de So Paulo e professor de Fsica do Dartmouth College (EUA). Reportagem de Sylvia Colombo e Marcos Strecker no caderno Ilustrada da Folha de So Paulo, p. 6, 22/07/2007.

Ibid, p. 6.

PAGE 7