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CC 25 – Cultura Popular e política no Sertão da RessacaCoordenador: Belarmino de Jesus Souza
O BACHARELISMO NA POLÍTICA CONQUISTENSE DOS ANOS 20.
Belarmino de Jesus Souza*
A formação inicial da vida política conquistense.
Vitória da Conquista é uma cidade localizada no sudoeste do Estado da Bahia, numa região
denominada inicialmente pelos conquistadores portugueses como Sertão de Ressaca, compreendida entre
o Rio Pardo, ao sul e o Rio das Contas ao norte (15º de latitude sul / 41º de longitude oeste).
Ao longo de seu processo histórico a localidade contou com diferentes denominações.
Inicialmente, no final do século XVIII, a povoação incrustada no sopé da Serra do Periperi recebeu a
denominação de Arraial da Vitória. Em 1840, após ter sido vinculada a Jacobina, Rio de Contas e, depois, a
Caetité, por meio da Lei Provincial n º 124, foi elevada a condição de vila, recebendo a denominação de
Imperial Villa da Victória. Após a implantação do regime republicano, a vila foi elevada à condição de
cidade, passando a denominar-se a partir de 1º de julho de 1892, Conquista. Por meio do decreto n º 141,
datado de 31 de dezembro de 1943, ocorreu a última modificação, passando finalmente a Vitória da
Conquista.
O processo de ocupação do Sertão de Ressaca por parte de agentes a serviço da Coroa
Portuguesa, não foi uma iniciativa isolada, levada a termo apenas pelo espírito aventureiro dos primeiros
desbravadores. Tratou-se de uma investida sintonizada com as necessidades econômicas lusitanas. A
Coroa Portuguesa enfrentando uma conjuntura de decadência na Segunda metade do século XVIII passou
a desenvolver uma política de intensificação da exploração de sua principal colônia, o Brasil, buscando
descobrir novas fontes de minerais preciosos ou mesmo abrir novas áreas de ocupação e expansão da
pecuária, o que também resultaria na ampliação da receita fazendária. Foi neste contexto histórico que o
Rei D. João V, autorizou ao bandeirante João da Silva Guimarães, desbravar o Sertão de Ressaca. Já eram
conhecidas as potencialidades mineradoras de terras mais a oeste (Chapada Diamantina). Vislumbra-se a
princípio êxito semelhante na área entre o Rio Pardo e o Rio das Contas. Este bandeirante havia recebido
em 1735 a “Patente do posto de Mestre de Campo da Conquista”.
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Na empreitada da conquista, Guimarães contou o auxilio do seu futuro genro João Gonçalves da
Costa, para tanto intercedeu junto ao governo colonial, para que o mesmo recebesse a Patente de Capitão.
Quando da época da conquista, o Sertão da Ressaca era ocupado em considerável extensão por povos
indígenas: Mongoiós ou Camacans e Botocudos. Não se tem número preciso dos indivíduos existentes. Na
fase inicial da conquista, sempre que possível os colonizadores buscavam manter uma relativa relação de
paz. Ao final do século XVIII e início do século XIX, à medida que vão se implantando fazendas ligadas à
pecuária extensiva e rudimentar de gado bovino, vão também, se intensificando as contradições entre os
dois grupos (conquistadores e indígenas). Pois o sistema de criação implantado requisitava cada vez áreas
mais extensas, o que colocava os primeiros pecuaristas da região em rota de colisão com os nativos. Era a
substituição do modelo comunitário primitivo indígena, pela apreensão privada da terra por parte dos
conquistadores. A implantação das fazendas de pecuária, a submissão/eliminação dos nativos e a
implantação do núcleo de povoamento confirmaram o êxito no processo de conquista do Sertão de
Ressaca. Este feito teve o comando inicial da família de João Gonçalves da Costa. A descendência de João
Gonçalves da Costa seria o núcleo inicial em torno do qual se formou um número considerável de
parentelas, base da endogamia conquistense. Estas parentelas, ao longo do século XIX, consolidariam um
controle sobre uma estrutura econômica marcadamente voltada para a pecuária, e exerceriam o controle da
superestrutura por meio de um modelo endogâmico, que teria a sua unidade garantida pela presença de
lideranças carismáticas, oriundas do seio das parentelas.
O tronco familiar formado pela seqüência: Gonçalves da Costa; Oliveira Freitas e Fernandes de
Oliveira serviu de base para a formação de uma organização de poder local firmado na articulação de
famílias que se juntaram a estas. Tal fenômeno é aqui tratado como endogamia conquistense. O poder
endogâmico controlava toda a superestrutura, em seus aspectos políticos, jurídicos e ideológicos
(incluindo aqui a cultura). No âmbito da estrutura, eram estas famílias que controlavam o principal meio
de produção, a terra, e as principais atividades econômicas. Entretanto, tal poder só foi possível, através da
presença de lideranças carismáticas, como força de coesão e articulação, que contavam com
respeitabilidade nas diferentes famílias. A maior expressão disto foi José Fernandes de Oliveira, o Cel.
Gugé. Oriundo do tronco principal da endogamia conquistense contava com relação de parentesco com as
demais famílias da cidade. Este indubitavelmente foi um dos elementos que contribuíram para a primazia
política exercida pelo Cel. Gugé, primazia esta que estava inserida nos parâmetros do coronelismo, forma
típica assumida pelo mandonismo local na Primeira República.
* Professor de História da UESB e Mestre em Ciências Sociais / PUC – SP. E-mail:[email protected]
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Uma reflexão acerca do coronelismo em Conquista.
O coronelismo indubitavelmente foi um dos fenômenos mais marcantes da história política
brasileira, especialmente no período que se convencionou chamar de Primeira República ou República Velha,
compreendido entre os anos de 1889 e 1930. Existem divergências quanto sua continuidade ou não após o
período citado.
Segundo Barbosa Lima Sobrinho1: “A Guarda Nacional, criada em 1831, para substituição das
milícias e ordenanças do período colonial, estabelecera uma hierarquia, em que a patente de coronel
correspondia a um comando municipal ou regional, por sua vez dependente do prestígio econômico ou
social de seu titular, que raramente deixaria de figurar entre os proprietários rurais”.
O historiador e filólogo Prof. Basílio de Magalhães, a pedido de Victor Nunes Leal (1997: 289-290),
apresentou a seguinte origem do vocábulo “coronelismo”: “(...) incontestavelmente a remota origem do seu
sentido translato aos autênticos e falsos ‘coronéis’ da extinta Guarda Nacional. (...) A Guarda Nacional
nasceu a 18 de agosto de 1831, tendo tido o Padre Diogo Antônio Feijó por pai espiritual. Determinou a lei
ficasse ela sujeita ao ministro da Justiça (cargo então desempenhado pelo imortal paulista), declarando-se
extintos os corpos de milícias e de ordenanças (assim como os mais recentes guardas municipais) que
dependiam do ministro da Guerra”.
O coreano Eul-Soo Pang, por sua vez, apresenta a origem da seguinte forma: “A raiz do coronelismo
brasileiro encontra-se no período colonial, entretanto essa forma de poder político atingiu a culminação
entre 1850 e 1950. O termo ‘coronel’ significa literalmente coronel, um posto militar originado nas milícias
coloniais do fim do século XVIII, apesar de muitos acharem que o título provém da Guarda Nacional. O
‘coronel’, de modo geral era o comandante militar de uma brigada da Guarda Nacional ou de um regimento
num município. (...) Em suma, o coronelismo é um exercício do poder monopolizante por um coronel cuja
legitimidade e aceitação se baseiam em seu status, de senhor absoluto, e nele se fortalecem, como elemento
dominante nas instituições sociais, econômicas e políticas, tais como as que prevaleceram durante o período
de transição de uma nação rural e agrária para uma nação industrial. Os anos-limite dessa fase são 1850-
1950” ( PANG, 1979: 20).
Quanto à questão da origem mais remota do coronelismo, a história de Vitória da Conquista
confirma a afirmação do estudioso coreano. A conquista do Sertão de Ressaca, como foi relatado acima, se
deu por meio da investida de uma Capitão, posteriormente, devido aos próprios feitos no território em
questão , elevado a Coronel. João Gonçalves da Costa fazia parte - como foi visto no primeiro tópico do
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presente capítulo – do terço de Henrique Dias, uma milícia criada no período colonial, criada por D. João IV,
ainda no século XVII. Entretanto, as patentes utilizadas pelos seus descendentes (Coronel Pompílio Nunes,
Coronel Gugé, dentre outros), já fazia parte da tradição criada a partir da instituição da Guarda Nacional.
Excetua-se neste caso, a patente de Capitão usada Antônio Dias de Miranda, esta ele herdou de João
Gonçalves da Costa, seu pai, quando aquele ascendeu à condição de Coronel do terço de Henrique Dias.
Em termos de conceito Nunes Leal, concebeu o coronelismo enquanto: “(...) uma forma peculiar de
manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e
exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.
(...) O coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público,
progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores
de terras. (...) Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder
público, e isso se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o
governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável. (...)
Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como
sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços
públicos locais”. (1997: 40-41)
O autor reconhece que nem todos os chefes políticos municipais são autênticos “coronéis”, pois com
a difusão de cursos superiores no Brasil, difundiram-se por toda parte profissionais liberais, destacando-se aí
os bacharéis em direito e os médicos, que com a sua relativa ilustração, somada à dedicação e capacitação de
comando, passam em muitos locais à chefia política. Mas mesmos estes, serão parentes, e/ou aliados dos
coronéis. Neste ponto, Leal vende a idéia do “autêntico coronel” ser apenas o grande proprietário pouco
ilustrado, de certa forma descartando a possibilidade dos “ilustrados doutores” de também serem “autênticos
coronéis”. Com este perfil encontramos na política conquistense do período em questão, nomes como o do
advogado Antônio Agripino Borges e do médico Luís Régis Pacheco Pereira. Abordaremos as atuações dos
mesmos no capítulo seguinte.
O processo de ocupação desenvolvido no Sertão de Ressaca, desenvolvido pelo bandeirante João
Gonçalves da Costa, seus filhos e comandados, foi marcado por uma conduta de verdadeira ocupação e
privatização da área. O território conquistado, foi tratado como área privada, passada nos testamentos para os
herdeiros dos conquistadores, alienada, quando conveniente pelos mesmos. Os compradores, famílias
oriundas de outras regiões, se integrariam ao longo do século XIX, aos troncos familiares já fixados na região
(ver o primeiro tópico). A posse da terra e o controle das atividades econômicas na região, ficaram
1 Prefácio à segunda edição do livro Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal, reapresentado na 3ª
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efetivamente sob o controle privado das famílias potentadas. A cidade, e as questões pertinentes à
administração, também, foram controladas pelas mesmas famílias. Era a consolidação do poder privado,
originado no mandonismo, herdado dos conquistadores da região, ainda no período colonial.
A economia da cidade permaneceu voltada para atividades primárias, tendo maior peso a pecuária,
mas esta, contando com atividades subsidiárias como a agricultura de subsistência. Estas atividades eram
desenvolvidas nos latifúndios controlados pelas famílias, que formavam verdadeiras parentelas. O relativo
isolamento da região, que perdurou até as primeiras décadas do século XX, reduzia as possibilidades da
atividade comercial. O maior volume do que era desenvolvido em termos de comércio, era também
controlado por indivíduos oriundos das parentelas. Estas limitações econômicas, aviltavam as condições de
vida e ampliavam a dependência e a submissão, por parte dos segmentos sociais que estavam à margem das
parentelas.
O poder na Conquista do período em estudo tinha um nítido caráter oligárquico. O poder era
exercido de forma endogâmica, pelas parentelas. Ter o controle do Colegiado Municipal da Imperial Vila da
Vitória, ou ser Intendente, ou Conselheiro Municipal em Conquista (após a implantação do Regime
Republicano), era ter o poder de colocar o público a serviço dos interesses privados das parentelas. As
disputas políticas entre facções, já no período republicano, representava interesses e vaidades individuais, na
busca pelo controle da municipalidade e das possibilidades oriundas de vínculos com os grupos hegemônicos
na política estadual. Em nenhum momento tais disputas representavam diferenças e/ou divergências
ideológicas.
Entre 1840 e 1889, período em que a cidade gozou dos direitos da municipalidade dentro do
Império, fato do poder municipal ser exercido por um Colegiado de cinco membros, gerava a possibilidade
de um equacionamento de tensões individuais. Diferentes membros da parentela compunham no Colegiado, o
poder endogâmico legalmente constituído. O isolamento da cidade, somando à distância do centralizado
poder imperial, garantiam um certo autonomismo para os mandões locais.
O advento do Regime Republicano com o tempo mudou a forma de se encarar o poder na cidade. O
cargo de Intendente personalizava o poder da municipalidade. Tal fato agora suscitava ambições e excitava
as vaidades pessoais. As disputas no seio das parentelas conquistenses tornam-se comuns, gerando o
faccionismo político. Outro aspecto modificado pelo novo regime é a maior proximidade de uma instância
superior de poder. O federalismo republicano reduziu sensivelmente o autonomismo do qual gozavam, os
mandões locais. Agora fazia necessário negociar com o poder estadual. Doravante, seria imprescindível a
articulação com lideranças e grupos políticos da capital. Para a cidade, o poder dos “coronéis” permanecia
edição.
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intacto, contudo, mais do que nunca, tal poder seria baseado na reciprocidade com as instâncias superiores do
poder de Estado.
No novo contexto republicano, despontaram lideranças no seio das parentelas conquistenses. As
principais lideranças foram os Coronéis Francisco José dos Santos Silva (conhecido como Chico Santos) e
José Fernandes de Oliveira (conhecido como Cel. Gugé). O primeiro nascido em 1848, era filho dos
fundadores da família Santos, Manoel José dos Santos Silva e Ana Angélica de Lima, casal que teve seis dos
seus nove filhos e filhas, se casaram com pessoas da família Fernandes de Oliveira. O segundo como foi
apontado no primeiro capítulo, era filho de Luiz Fernandes de Oliveira e Tereza de Oliveira Freitas (neta do
bandeirante João Gonçalves da Costa), nascido em 1844. A família Fernandes de Oliveira , como já foi dito,
formava o troco inicial e principal, ao qual as outras famílias que formariam a endogamia conquistense se
vincularam. O pai de José Fernandes de Oliveira foi membro já da primeira Câmara instalada na cidade,
quando da emancipação em 1840.
Os Coronéis Chico Santos e Gugé, ao final do século XIX e início do século XX, eram a
corporificação da tradição de poder das parentelas conquistenses, por sua origem seus vínculos familiares e
de amizade. Representavam uma centralidade da endogamia conquistense no tronco Fernandes de Oliveira /
Santos. O poder desses coronéis não emanava apenas da fortuna, mas também do reconhecimento que
gozavam entre seus pares, emanava sem dúvida do carisma que eram dotados para o exercício da liderança,
este último aspecto era muito mais presente no Coronel Gugé.
Ao longo do período republicano até 1918 (ano do seu falecimento), foi a grande liderança política
em Conquista. Dos intendentes do período, apenas o Cel. José Antônio de Lima Guerra, que governou a
cidade no período de 1896 a 1903, era de oposição à liderança do Cel. Gugé. O primeiro Intendente, Cel.
Joaquim Correia de Melo (1872 – 1895), era seu amigo e articulado politicamente. Estevão José dos Santos
(1904 – 1906), também era ligado ao Cel. Gugé e casado com uma sobrinha sua. Dr. João Diogo de Sá
Barreto (1906 – 1907), era seu genro, e com seu apoio tornou-se Deputado Estadual. O Cel. José
Maximiliano Fernandes de Oliveira (1908 – 1911), era sobrinho do poderoso coronel. No período de 1912 a
1915 o Cel. Gugé exerceu pessoalmente a Intendência. Foi substituído por Leôncio Satiro dos Santos, que era
seu genro, e governou a cidade no período de 1916 a 1919.
A liderança de Gugé suscitava oposições. Destacaram nesta posição: o Cel. Pompílio Nunes de
Oliveira e o Cel. Manoel Emiliano Moreira de Andrade (Cel. Maneca Moreira). Estes homens eram os
detentores da primeira e da segunda maiores fortunas da cidade. O primeiro era primo em terceiro grau do
Cel. Gugé. O Cel. Maneca Moreira, por sua vez, era afilhado de Gugé. Tinham a fortuna, talvez faltasse o
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carisma. Os vínculos de parentesco que tinham, reforça ainda mais a hipótese da endogamia defendido neste
trabalho.
A relação entre os partidários de Gugé e seus opositores se dava nos momentos de disputas nos
pleitos, contudo num clima de relativa tranqüilidade, nos intervalos dos mesmos. Esta situação é justificada
pelo carisma e respeitabilidade detidos pelo velho coronel. Mesmo sendo opositor do padrinho, Maneca
Moreira preservava um certo respeito, como mais uma vez aponta Orrico: “Maneca tornara-se adulto,
ouvindo contar estórias a respeito do padrinho e fizera-se seu admirador. Gostava realmente dele. De certa
feita, quando o velho atravessava sérias dificuldades financeiras, auxiliou-o espontaneamente, enviando-lhe
polpudos presentes, através da madrinha. Uma elegante maneira de o auxiliar naquela emergência, sem lhe
ferir o amor próprio” (1982: 55). A figura do velho Gugé, representou um equilíbrio, que conteve iniciativas
violentas, nas disputas no seio da endogamia conquistense nas duas primeiras décadas da República.
O falecimento de José Fernandes de Oliveira, em 9 de agosto de 1918, rompeu o equilíbrio da
endogamia conquistense. A rivalidade gerada pela disputa do exercício de uma nova primazia, levou a uma
radicalização de atitudes, que culminou com um conflito armado entre duas facções políticas das parentelas
conquistenses: os Peduros e os Meletes
A vitória dos peduros consolidou a hegemonia desse grupo na política conquistense, contudo, não
representou a afirmação de uma nova e incontestável liderança na cidade. Vários indivíduos ao longo das
duas décadas seguintes buscariam em diferentes momentos a conquista de uma condição de primazia na
liderança política em Conquista.
A liderança dos peduros, na vitória sobre os meletes em janeiro de 1919, credenciou Ascendino
Melo (Dino Correia) como liderança em Conquista. No dia 12 de fevereiro de 1919, o governador Antônio
Ferrão Muniz de Aragão, nomeou o Major 2 Ascendino Melo dos Santos como Intendente, seria uma
complementação do mandato do Leôncio Satyro dos Santos (VIANA, 1982: 220). O mandato terminaria em
31 de dezembro do mesmo ano. No dia 1º de janeiro de 1920, o Dr. Jesulindo de Oliveira assumiu a
Intendência, por ser na época o Presidente do Conselho Municipal.
Em meados de janeiro de 1919, Ascendino dos Santos Melo foi novamente nomeado Intendente pelo
governador, para exercer o mandato no biênio 1920-1922. No dia 22 de agosto, ocorreu uma eleição que
confirmou Dino Correia no cargo, não existiu outro candidato. O Major governaria a cidade até dezembro de
1921, foi sucedido pelo Cel. Paulino Fonseca, que fora eleito intendente no dia 13 de novembro de 1921,
tomando posse em 1º de janeiro de 1922 (VIANA, 1982: 220).
2 Posto que ocupava na Guarda Nacional.
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Terminado o mandato, Ascendino dos Santos Melo retornou para a sua atividade de pecuarista na
região de Macarani.3
O Cel. Paulino Fonseca4, sucessor de Ascendino Melo na Intendência, era comerciante local,
correspondente do Banco do Brasil e representante de firmas comerciais de Salvador e Rio de Janeiro, antes
era também fazendeiro. Segundo Aníbal Lopes Viana: “Não era homem político no sentido mais amplo da
palavra, porém, para satisfazer aos amigos políticos, exerceu o cargo de Conselheiro Municipal e o de
Intendente eleito em novembro de 1921 como candidato único do povo conquistense, tendo porém,
renunciado o cargo no segundo ano de administração por ‘questão de coerência com seus princípios e
consigo mesmo por não se submeter às exigências dos companheiros políticos’.” (1982:270)
Em sendo verídico o perfil traçado por Viana acerca do Cel. Paulino Fonseca, a indicação de alguém
que não se envolvia diretamente com as questões políticas, aponta para o fato de não existir ninguém que
ocupasse a primazia da liderança política na cidade. Paulino Fonseca seria um candidato de consenso, e sua
indicação prorrogaria disputas mais acirradas entre os pretendentes à condição de líder político da endogamia
conquistense.
Com a renúncia do Cel. Paulino Fonseca, o Dr. Antônio Agripino da Silva Borges, na qualidade de
Presidente do Conselho Municipal, completou o biênio administrativo municipal 1922 / 1923.
Nas eleições de novembro de 1922, o Dr. Agripino Borges seria sufragado para uma cadeira no
Legislativo Estadual, sendo reeleito em 1924 para uma Segunda legislatura. Em Conquista o Dr. Borges
havia despontado como uma das lideranças após a morte do Cel. Gugé (agosto de 1918): ocupou a posição de
Presidente do Diretório local do Partido Republicano Democrata da Bahia, quando se deu a recomposição
daquela instância em outubro de 1918, após a saída do grupo oposicionista liderado por Maneca Moreira; foi
nomeado Delegado de Polícia pelo governador Antônio Muniz, em substituição ao Tenente Júlio Costa
(1919) e como foi escrito acima, tornou-se Conselheiro Municipal, Intendente e Deputado Estadual. Reuniu
em poucos anos dados curriculares dignos de uma liderança, o que aparentemente pode dar-lhe um perfil de
novo chefe político local. Contudo, o Dr. Borges não se enquadraria nas mudanças políticas ocorridas no
Estado a partir de 1924 (mudanças que abordaremos adiante), permaneceria seabrista, porém, na nova
conjuntura J. J. Seabra perderia espaços. Na política local, novas lideranças despontariam e com maior
3 Mesmo afastado da política na sede do município, o Major Ascendino dos Santos Melo ainda teve participaçãomarcante em dois importantes episódios: na emancipação política do arraial do Verruga - que foi elevado a municípioem agosto de 1927 – e no combate ao grupo de jagunços liderados por Olímpio de Carvalho (1925). Por não seremquestões decisivas na construção de uma nova liderança hegemônica em Conquista, tais episódios não serão aquiabordados. Ascendino Melo faleceu no dia 1º de novembro de 1928.4 Paulino Fonseca foi mais legítimo representante da endogamia conquistense. Nascido em julho de 1880, era neto doAlferes de Ordenanças João José de Souza Fonseca, que em 1815 era administrador dos bens da Igreja e homem deconfiança do Capitão Antônio Dias Miranda, filho do Cel. João Gonçalves da Costa, o fundador da cidade.
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capacidade de articulação na nova conjuntura baiana (processo que abordaremos mais adiante). A
combinação desses novos elementos conjunturais minaram a liderança de Agripino Borges (DANTAS,
FONSECA e MEDEIROS, 1995: 19). Ao término da segunda legislatura Dr. Borges se afastaria da política
conquistense, passando a residir a partir de março de 1927 na vizinha cidade de Poções.5
Régis Pacheco e o advento do bacharelismo na política conquistense.
Em 1919, meses após a disputa armada entre peduros e meletes, Conquista foi atingida por uma
epidemia de varíola. Atendendo às solicitações do Intendente Ascendino dos Santos Melo, o governador
Antônio Ferrão Muniz de Aragão, nomeou um jovem médico para combater o surto da enfermidade, tratava-
se do Dr. Luiz Régis Pacheco Pereira, que chegou à cidade em abril de 1922. Fixou-se inicialmente na casa
do Intendente, onde fez amizade com Otávio Santos6. (DANTAS, FONSECA e MEDEIROS, 1995:14)
“Terminada a epidemia, Conquista inteira protestava eviternos agradecimentos ao seu benfeitor,
pedindo-lhe, reiteradamente, que aqui se demorasse, que para sua residência escolhesse esta terra. (...) Fez-
se logo, o Dr. Régis Pacheco o mais procurado clínico em Conquista.” (DANTAS, FONSECA e
MEDEIROS, 1995:17)
Em 1º de maio de 1922, Régis Pacheco casou-se com Enerina Fernandes Pacheco Pereira, filha do
Cel. João Fernandes de Oliveira Santos e dona Sibéria Fernandes Ribeiro (DANTAS, FONSECA e
MEDEIROS, 1995: 18). Com o casamento, o Dr. Régis passou a integrar ao a décadas tronco dominante da
endogamia conquistense, os Fernandes de Oliveira / Santos.
Contando com uma formação superior (coisa rara na região naqueles dias) e com a simpatia popular,
reunida por meio da prática médica, valorizada pela debelação da epidemia de varíola e integrado à
endogamia por meio do casamento, o Dr. Régis Pacheco, passou a dispor de elementos fundamentais para
despontar como uma liderança de peso em Conquista, o que ficou demonstrado com a demanda sobre o seu
nome por parte de políticos locais, como aponta o professor Euclides Dantas: “Os Srs. Paulino Fernandes
Oliveira Gugé, Zeferino Correia de Melo e outros cavalheiros de elevado destaque não cessavam de insistir,
convocando várias reuniões, em que se procurava convencer ao ilustre médico a conveniência de aceitar o
convite.” (1995: 20)
5 Faleceria na Casa de Saúde São Geraldo (Vitória da Conquista) no dia 25 de março de 1969.6 Otávio Santos era filho de José Satiro dos Santos, portanto, irmão de Leôncio Satyro dos Santos (ex-intendente egenro do falecido Cel. Gugé). Era um jovem de 30 anos, que havia sido eleito conselheiro municipal em 23 denovembro de 1919.
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A partir de 1923, o jovem médico passou a atuar de forma destacada na política conquistense, sendo
candidato a Intendente pela Concentração Republicana de Conquista, articulação oposicionista local, criada
em contraposição ao situacionismo seabrista, que era representado na região pelo então Deputado Estadual
Antônio Agripino Borges. Tal adesão é apresentada de forma peculiarmente laureante pelo biógrafo Euclides
Dantas: “Assim é que o Dr. Régis Pacheco, vencido pela vontade dos seus amigos e levado pelo desejo de
concorrer para a restauração de costumes com favor de melhores dias de paz, de tolerância, de respeito
mútuo, o Dr. Régis Pacheco aceita a incumbência, com algumas restrições. (...) Não quisera jamais, assumir
a chefia. (...) Aclamado Presidente da Concentração Republicana de Conquista, o Cel. Zeferino Correia de
Melo, ao Dr. Régis Pacheco foi concedido o posto imediato, dando-se-lhe toda a consideração devida e
ouvindo-lhe com acatamento igual ao se presta a um chefe.” (1995:20)
Na eleição de novembro de 1923 em Conquista, saiu vitorioso o candidato situacionista articulado
com o Deputado Estadual Agripino Borges, o Cel. Justino da Silva Gusmão7 (DANTAS, FONSECA e
MEDEIROS, 1995: 22 – 25).
Após doze anos de hegemonia no Estado, o seabrismo dava mostras de exaustão, o que ficava
demonstrado com as divergências entre J. J. Seabra e Artur Bernardes (o então presidente da República ) e o
reconhecimento do fortalecimento da oposição na Bahia por parte do próprio Seabra, quando inicialmente
aceitou apoiar um nome fora do seu grupo político como candidato a governador, o Dr. Francisco Marques
de Góes Calmon. A situacionismo conquistense, fiel ao seabrismo, também apoiou à candidatura de Góes
Calmon. “Como é sabido, em véspera das eleições governamentais o Dr. José Joaquim Seabra, num gesto
memorável, rompeu com a candidatura Góes Calmon. (...) Em face ao rompimento Seabra – Calmon, a
oposição local de Conquista deliberou também apoiar o candidato Francisco Marques de Góes Calmon”.
(DANTAS, FONSECA e MEDEIROS, 1995: 26).
A eleição de Góes Calmon em 1924 marcou o final da hegemonia seabrista no Estado e abriu
caminho para uma maior centralização política nos anos finais da Primeira República, especialmente com a
fundação do segundo Partido Republicano da Bahia, processo que é apresentado com objetividade pela
professora Consuelo Novais Sampaio: “Nos últimos anos da República Velha, o unipartidarismo foi
restaurado. O executivo atraiu à sua sorte os diversos poderes locais que atuavam isolada e
inconsistentemente. Acelerou a marcha para a centralização do poder. O segundo P. R. B., fundado em
1927, foi o instrumento utilizado. A política do clientelismo foi formalizada e surgiu, então, mais burilada,
7 Nascido no dia 23 de novembro de 1879. Foi aliado do Cel. Gugé e foi eleito Conselheiro Municipal em 9 denovembro de 1919. Eleito em 1923, governou a cidade pelo biênio 1924 – 1925. Contava apenas com a instruçãoprimária. Em 1927 conciliou-se com Dr. Régis Pacheco, apoiando a candidatura de Otávio Santos a intendente. Foipreso por cinco dias em 1932 juntamente com Régis Pacheco, foram acusados de apoiarem a Revolução Paulista que
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pela participação crescente de jovens bacharéis nos postos legislativos e administrativos do Estado. O
governador Góes Calmon (1924 – 1928), financista e advogado, imprimiu uma mentalidade empresarial não
só no setor econômico, mas também no setor político da sociedade.” (1975: 26).
Diferentemente dos seus irmão Antônio e Miguel, que foram políticos presentes ao longo da
Primeira República, Francisco Marques de Góes Calmon primeiro atuou como jurista e financista,
preservando um certo distanciamento da política, só como homem de meia idade, foi que se inseriu numa
disputa eleitoral, sendo o mandato de governador no quadriênio 1924 – 1928, o primeiro por ele exercido.
As articulações políticas em Conquista na década de 1920 estavam inseridas na conjuntura política
baiana. O surgimento de um grupo oposicionista em 1923 foi um indício do enfraquecimento da hegemonia
seabrista na política estadual. A disputa entre Régis Pacheco da Concentração Republicana de Conquista e
Justino Gusmão do Partido Republicano Democrático da Bahia foi versão local do quadro político estadual
apresentado pela professora Consuelo Sampaio: “Verificou-se, a seguir, o retorno ao bipartidarismo com
dissidência, fruto da candidatura de Francisco Marques de Góes Calmon ao governo do Estado. Duas
organizações partidárias se conflitavam: o P. R. D., que congregando os seabristas, surgia agora dividido
em duas facções – os seguidores de Antônio Moniz e os do Coronel Frederico Costa; e a Confederação
Republicana da Bahia (C. R. B.), que, arregimentando as forças oposicionistas, manifestava duas tendências
– a calmonista (Miguel Calmon) e a mangabeirista (Octávio Mangabeira). A instalação do governo de Góes
Calmon, passou o executivo a liderar a corrente calmonista.” (1975: 25) Ao final do biênio do Intendente
Justino da Silva Gusmão (1925 –1925), foi articulado um novo acordo geral no seio da endogamia
conquistense, sendo lançado como candidato único para administrar a comuna sertaneja no período 1926 a
1927 o Sr. Paulino dos Santos Silva. A nova unificação da endogamia conquistense “coincide” com a
articulação e a consolidação do unipartidarismo do Partido Republicano da Bahia controlado pelo então
governador Góes Calmon. Foi mantido o velho pragmatismo oportunista do coronelismo de ficar sempre com
o governo, vínculo preservado pelos líderes da endogamia até o final da Primeira República, Pedro Lago o
candidato oficial (e único) ao governo do Estado, visitou Conquista em campanha no ano de 1930, quando
foi recebido pelos líderes locais – em destaque Dr. Régis Pacheco – e por cerca de cinco mil populares.
Victor Nunes Leal aborda tal pragmatismo político com maestria, se faz necessária uma relativamente longa
citação de um trecho de sua obra-prima: “A rarefação do poder público em nosso país contribui muito para
preservar a ascendência dos ‘coronéis’, já que, por esse motivo, então em condições de exercer, extra-
oficialmente, grande número de funções do Estado em relação aos seus dependentes. (...) Ainda assim, como
a organização agrária do Brasil mantém a dependência do elemento rural ao fazendeiro, impedindo o
havia eclodido a 9 de julho. Foi eleito vereador pelo Partido Autonomista, cujo o chefe local era Régis Pacheco.
12
contato direto dos partidos com essa parcela notoriamente majoritária do nosso eleitorado, o partido do
governo estadual não pode dispensar o intermédio do dono de terras. (...)Sabe, por isso, o ‘coronel’ que a
sua independência só lhe traria desvantagens: quando, ao contrário, são boas as relações entre o seu poder
privado e o poder instituído, pode o ‘coronel’ desempenhar, indisputadamente, uma larga parcela de
autoridade pública. E assim nos parece este aspecto importantíssimo do ‘coronelismo’, que é o sistema de
reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes de eleitores como
quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário,
dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da
desgraça. (...) É claro portanto, que os dois aspectos - o prestígio próprio dos ‘coronéis’ e o prestígio de
empréstimo que o poder público lhes outorga - mutuamente dependentes e funcionam ao mesmo tempo como
determinantes e determinados. (...) em todos esses graus da escala política impera, como não podia deixar
de ser, o sistema de reciprocidade, e todo o edifício vai assentar na base, que é o ‘coronel’, fortalecido pelo
entendimento que existe entre ele e a situação política dominante em seu Estado, através dos chefes
intermediários.(...)Com chefe local - quando amigo - é que se estende o governo do Estado em tudo quando
respeite aos interesses do município. Os próprios funcionários estaduais, que servem no lugar, são
escolhidos por sua indicação. Professoras primárias, coletor, funcionário da coletoria, serventuários da
justiça, promotor público, inspetores do ensino primário, servidores da saúde pública etc.(...)A influência do
chefe local nas nomeações atinge os próprios cargos federais, como coletor, agente do correio, inspetor de
ensino secundário e comercial etc. e os cargos das autarquias ( cujos quadros de pessoal têm sido muito
ampliados), porque também é praxe do governo da União, em sua política de compromisso com a situação
estadual, aceitar indicações e pedidos dos chefes políticos nos Estados. (...)A lista de favores não se esgota
os de ordem pessoal. É sabido que os serviços públicos do interior são deficientíssimos, porque as
municipalidades não dispõem de recursos para muitas de suas necessidades.(...)O critério mais lógico,
sobretudo por suas conseqüências eleitorais, é dar preferência aos municípios cujos governos estejam nas
mãos dos amigos.(...)O apoio oficial revela-se ainda precioso no capítulo das despesas eleitorais, que os
chefes locais não podem custear sozinhos, embora muitos se sacrifiquem no cumprimento desse dever.(...)
assumem relevo especial as figuras do delegado e do subdelegado de polícia. A nomeação dessas
autoridades é de sumo interesse para a situação dominante no município e constitui uma das mais valiosas
prestações do Estado no acordo político com os chefes locais.(...)a regra é o recurso simultâneo ao favor e
ao porrete. recorre-se à violência, quando outros processos são mais morosos, ou ineficazes, para o fim
visado.(...)a situação de oposicionista, no âmbito municipal. É tão desconfortável que a regra é ficar na
Faleceu no dia 5 de outubro de 1936. (VIANA, 1982: 243-245).
13
oposição somente quem não pôde ficar no governo.(...) as correntes políticas municipais se digladiam com
ódio mortal, mas comumente cada uma delas o que pretende é obter as preferências do governo no território
do município, a fim de fortalecer a posição de um partido estadual ou nacional não-governista: batem-se
para disputar, entre si, o privilégio de apoiar o governo e nele se amparar.(...)da parte dos chefes locais,
incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação
estadual, carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em
todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar.” (
1997: 63 – 70)
Uma nova configuração conjuntural se afirmou na Bahia a partir de 1923, marcada pelos seguintes
elementos: final da dominância do Partido Republicano Democrático da Bahia, o partido liderado pelo Dr.
José Joaquim Seabra; uma transição para o monopartidarismo, marcada pelo bipartidarismo com dissidência
do P. R. D. B. e da Concentração Republicana da Bahia; consolidação do monopartidarismo do Partido
Republicano da Bahia, controlado pelo calmonismo e maior espaço para os jovens doutores e bacharéis na
política. Em Conquista os dois chefes políticos que haviam emergido da vitória dos peduros nas acirradas
disputas de 1918 e 1919, não se integraram no novo contexto. Ascendino dos Santos Melo (Dino Correia),
como já foi escrito, havia se retirado do centro da política do município ao final do seu mandato em 31 de
dezembro de 1922, passando a se envolver fundamentalmente com questões pertinentes ao arraial Verruga
(futura Itambé) e à atividade de pecuarista. Agripino Borges não se adaptou às mudanças da política
estadual, permanecendo seabrista, caiu no isolamento na medida em que a endogamia conquistense se
articulava com a nova hegemonia, a calmonista. Borges retirava-se da política conquistense ao final da sua
segunda legislatura em 1927.
O líder que se afirmou em Conquista na nova configuração conjuntural foi o Dr. Luiz Régis Pacheco
Pereira. Como pouquíssimos na Conquista dos anos 20 contava com uma formação superior. A simpatia
popular, reunida por meio da prática médica, valorizada pela debelação da epidemia de varíola, foi ampliada
com o passar dos anos e consolidada com o êxito do combate ao surto de peste bubônica que se abateu sobre
a cidade no final dos anos vinte. Além disso, integrado à endogamia por meio do casamento, o Dr. Régis
Pacheco, passou a ser o principal articulador e vínculo da cidade com o calmonismo hegemônico no Estado,
sendo citado com destaque entre os doutores que compunham o Conselho Geral do Partido Republicano da
Bahia (SAMPAIO, 1975: 157), destaque que até então nunca fora dado a nenhum político conquistense, nem
mesmo ao velho Coronel Gugé.
Apesar de só exercer o seu primeiro mandato legislativo em 1946, o Dr. Régis Pacheco se
enquadrava perfeitamente no perfil do político emergente no período calmonista, apresentado pela professora
14
Consuelo Sampaio: “Em termos amplos, poder-se-ia concluir que o recuo do coronelismo resultou, em
contrapartida, no avanço do bacharelismo. Não que constituíssem forças antagônicas; bem ao contrário,
uma completava e consolidava a outra. Os jovens doutores e bacharéis eram elementos de uma nova
geração, mais vibrantes, detentores de forte poder persuasivo, graças ao melhor domínio da palavra. Eram
os porta-vozes, os elementos intermediários entre as elites políticas locais e o executivo, na conquista de
empregos e favores de cunho pessoal, bem como na defesa dos municípios que representavam no legislativo.
De formação tipicamente urbana, ainda que vinculados à velha ordem, por relações de parentesco e
amizade, não contavam os jovens doutores com uma força eleitoral própria. Dos chefes políticos locais
dependiam os votos que os reconduziam ou não ao Legislativo.” (1975: 163 –164)
A projeção política dos doutores e bacharéis, também foi objeto de análise de Victor Nunes Leal,
que considerou tal fenômeno, como algo total e perfeitamente integrado ao contexto do coronelismo: “Os
chefes políticos municipais nem sempre são autênticos ‘coronéis’. A maior difusão do ensino superior no
Brasil espalhou por toda parte médicos e advogados, cuja ilustração relativa, se reunida a qualidades de
comando e dedicação, os habilita à chefia. Mas esses mesmos doutores, ou são parentes, ou afins, ou aliados
políticos dos ‘coronéis’(...)” (1995:41)
A primazia da liderança do Dr. Régis Pacheco, produto dos elementos acima elencados, foi sendo
demonstrada gradativamente pela ocupação de espaços na sociedade conquistense: fora o candidato da
Concentração Republicana de Conquista em novembro de 1923; foi eleito Conselheiro Municipal em 1925 e
como Presidente do Conselho, completou o mandato de Paulino Santos que havia renunciado em 1927; em
1926 foi eleito Vice-Preseidente da primeira Associação Comercial de Conquista (havia comprado a
Farmácia Oliveira); entre 1927 e 1928 exerceu a condição de Provedor da Santa Casa de Misericórdia; no
ano de 1930, ocupava mais uma vez a condição a condição de Presidente do Conselho Municipal, Vice-
Presidente do Diretório Partido Republicano da Bahia, sócio-fundador da Associação dos Fazendeiros e
Agricultores do Sertão e do Sudoeste Baiano (maio) e Presidente da Diretoria do primeiro Tiro de Guerra
(julho). Régis Pacheco se tornou ao longo da década de vinte, a grande liderança política em Conquista,
tendo com seu grupo o controle da municipalidade e o centro político da endogamia conquista, passando a
ser uma referência semelhante a que fora o Coronel José Fernandes de Oliveira Gugé, entretanto, com uma
projeção estadual que o velho coronel não conhecera.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
15
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Vitória da Conquista / Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 1998, 150p.
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Bahia, 1997, 194p.
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1977 a dezembro de 1978.
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Gráficas, 1982, 259p.
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Civilização Brasileira; Tomo III; O Brasil Republicano; 1º volume (estrutura de poder e
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Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1978, 196p.
VIANA, A. L. Revista Histórica de Conquista (dois volumes). Vitória da Conquista, Ba: Gráfica de “O
Jornal de Conquista”, 1982, 783p.
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REZAS E PROCEDIMENTOS CURATIVOS – ASPECTOS DA BENZEDURA EMVITÓRIA DA CONQUISTA
AUTORA: Grayce Mayre Bonfim Souza
A benzeção é um importante elemento que faz parte da cultura popular do nosso país. Fazer uso de orações e simpatias
para curar algumas doenças e ou aflições é um tipo de conhecimento ainda bastante presente e difundida por todo o Brasil, em
especial nas cidades do interior e na zona rural. Esse ofício é normalmente exercido por mulheres8 humildes que possuem um
grande conhecimento das propriedades terapêuticas das plantas medicinais, resultado das observações e classificações de raízes e
ervas benéficas à saúde do homem.
A benzedeira conhece rezas, remédios e simpatias. Por meios desses mecanismos trabalha no sentido de promover a cura
em pessoas que sofrem de alguma doença como erisipela, espinhela caída9, dor de dente, dor de cabeça, mau-olhado10 e outros
tipos de males. Ela é considerada, e também se considera, portadora de um dom investido por Deus. Essas qualidades, dentre
outras, são responsáveis pela legitimação e “eficácia” (mesmo que simbólica) dessa agente da medicina popular e, também, fazem
com que tenha uma credibilidade cada vez maior perante a comunidade em que vivem.
8 Segundo constatações, a maior parte das pessoas que exercem tal atividade é na sua
grande maioria mulheres, porém ainda é possível encontrar homens que benzem.9 A espinhela é o nome vulgar do apêndice xifóide, uma cartilagem localizada na porção terminal do osso esterno. Ocorrendo
anormalidades na calcificação dessa cartilagem, estas estimulariam seu encurvamento sobre o epigástrio, e daí provocando as
alterações relatadas pelos doentes. O mal é identificado vulgarmente como espinhela caída.10 O quebranto e mau-olhado são males para os quais, segundo explicações produzidas
pelas benzedeiras, não existem remédios, apenas a reza pode curar. Os remédios que
podem ser utilizados são apenas mecanismos (por assim dizer, acessórios) para eliminar
os efeitos da força que vem dos olhos: mal estar, moleza no corpo, falta de apetite,
vômito, diarréia e outros.
17
A prática realizada por essas terapeutas populares não é um privilegio do mundo contemporâneo e
nem um fenômeno exclusivamente brasileiro, muito pelo contrário. Essa experiência vem sendo realizada
desde o aparecimento dos primeiros homens, surge junto com os mitos e as magias.
Para muitas pessoas, que tem uma visão fragmentada do fenômeno, a benzedura é considerada apenas como algo rústico,
pitoresco e exótico. Entretanto para outros, ela se traduz em uma questão vital, enraizada nas suas práticas e com uma presença
cada vez mais forte na fé. Além disso, o ato de benzer significa, para estes últimos, prevenir contra “maleficium”, pois as
benzedeiras possuem o dom de evitar e de curar mau-olhado e quebranto e para cada tipo de mal, elas possuem jaculatórias
(orações curtas e suplicantes) e/ou ensalmos que, segundo Laplantine e Rabeyron são:
“Historietas rimadas – às quais se associa o nome do cliente –,
ingênuas e solenes ao mesmo tempo, construídas com palavras sonoras,
esdrúxulas, organizadas conforme uma versificação sincopada, ofegante,
que relatam sempre o combate entre a doença e a cura e a vitória inevitável
desta sobre aquela” (1989:52).
Para que possamos ter uma melhor visão acerca do ofício das benzedeiras, faz-se necessário compreender o marco inicial
desse processo, bem como os mecanismos de aprendizagem/iniciação utilizados. O processo de ensinar e aprender na benzedura
não ocorre de forma aleatória, pelo contrário, existem regras a serem obedecidas, cumpridas, tanto pelo mestre como pelo aprendiz.
No caso das benzedeiras da corrente católica – que é o centro de nossa pesquisa –, constatamos que as principais regras,
ou melhor, as exigências, para iniciar-se no ofício são: acreditar no que está se propondo a fazer, ou seja, na benzeção; o aprendiz
deve ter uma boa memória; reproduzir na íntegra as diversas orações para diferentes males, pois só assim pode ser evitada, na
medida do possível, a mudança no sentido das palavras; socorrer a quem necessitar, independente de quem quer que seja; e a
gratuidade do serviço, pois o dom é dado por Deus, como elas próprias dizem, e, portanto, esse serviço não deve ser cobrado.
A gratuidade da benzedura foi, nas entrevistas realizadas, um aspecto levantado por todas as
benzedeiras frente à pergunta acerca do preço que cobravam pela benzedura. A justificativa para o serviço
gratuito foi quase sempre a seguinte: o dom foi dado por Deus e não lhes pertence, elas são apenas
intermediárias para fazer o bem a quem necessitar. Contudo isso não impede que recebam algumas
gratificações11, um agrado – às vezes ganham mantimento ou pequenos animais – como retribuição pelo
serviço prestado.
Elda Rizzo de Oliveira, em um artigo apresentado no congresso da ANPOCS de
1995, inicia o texto fazendo uma abordagem acerca do “chamamento para o dom”, ou seja, o
11 Segundo nos foi relata, quando a gratificação vem em forma de dinheiro elas a utiliza para comprar vela para os santos: “eu
nunca cobrei, agora quem me dá eu recebo, e eu compro vela e cendo pra minha santa. As vezes de noite eu rezo o terço..., rezo
aquelas oração e cendo uma velinha pra quele santo, Santa Madalena...” (Dona Argemira Calisto, residente na zona rural –
entrevista realizada em junho de 1998).
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processo inicial em que a benzedeira percebe que possui o dom de benzer. Esse processo
pode se dar de várias maneiras, citaremos aqui apenas algumas.
Segundo as apresentações da referida autora, a percepção para as benzedeiras de que elas possuem o
dom de benzer, pode ocorrer em circunstâncias bem diferentes, a saber: a constatação pode acontecer através
de uma visão ou revelação por meio de um espírito ou uma divindade; pode ser mediante um “dom inato”;
uma evidência e uma necessidade; pode iniciar como uma retribuição de uma graça alcançada, pagamento de
uma promessa por exemplo; pode ter recebido um aviso ou escutado uma voz; devida uma necessidade, ou
mesmo uma preocupação em ajudar o próximo; uma herança deixada por sua mãe, avó ou outras pessoas
mais próximas; ou ainda por meio de uma cura obtida.
Diante das observações realizadas no trabalho de campo na região, percebemos que a
grande maioria das benzedeiras relatam que a percepção inicial do dom ocorreu basicamente
de duas maneiras: através de uma revelação, ou seja, mediante uma experiência mística; ou
por meio de um aprendizado, uma herança de família ou mesmo ensinamento por intermédio
de amigos.
No primeiro caso, a aprendizagem mediante uma “experiência sobre-humana”, o chamamento para do dom e o processo
de aprendizagem é atribuído, basicamente, a uma “entidade sobrenatural”, geralmente, através da visita de um ou mais santos.
Quase todas as benzedeiras entrevistadas que fazem menção ao dom adquirido através de uma experiência mística,
acreditam que o fenômeno ocorreu em um momento bastante específico: foram visitadas por santos ou outras entidades (um guia,
por exemplo) que proporcionaram a cura, pois essas pessoas estavam passando por algum problema relacionado à saúde. Essa
percepção do dom vem juntamente com a certeza de que haviam sido escolhidas por Deus para propiciar a cura e levar conforto a
quem precisasse.
A segunda categoria é aquela em que estão inseridas as benzedeiras que receberam o dom por hereditariedade, ou seja, o
poder de benzer e preparar soluções para curar determinadas doenças foi ensinada por um membro da família, ou por meio de
amigos e/ou vizinhos. É bom deixar claro, e elas procuram enfatizar todo tempo, que apesar de terem adquirido o dom através do
ensinamento, não se consideram inferiores àquelas que o receberam de uma divindade ou de um aviso. Apesar de terem sido
ensinadas por outra benzedeira, elas também se julgam portadoras de um dom dado por Deus e se consideram escolhidas, apesar
dele (Deus) utilizar-se de outra pessoa, como mediadora, para o processo da aprendizagem.
Encontramos também, em uma entrevista realizada, um elemento novo, e único em todo nosso trabalho de pesquisa de
campo, acerca da descoberta vocacionada. Ao perguntar uma das benzedeiras que reside na cidade de Vitória da Conquista, quando
foi que ela havia percebido que era possuidora do dom da benzer, ela nos respondeu da seguinte forma:
...com a idade de sete anos... eu vivia só doente... não tinha mais remédio que
me desse, porque aqueles tempo mais era remédio mesmo assim do mato... Aí
um dia eu saí, sentei na beira de uma cacimba, ai veio um sinhô com uma
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roupinha, uma tanguinha de pena... marradinha assim como uma esteira e
agora toda enfiada de pena, marrada assim na cintura e aquela coroinha na
cabeça, também de pena e na mão também... (dona Flora)12
O senhor a que ele se referiu e as descrições que faz (de como ele estava trajado), nos lembram a imagem de um índio, ou
seja, um elemento novo – elemento indígena – que até aquele momento não se fazia presente em nossas constatações.
A experiência vivenciada na descoberta do dom, ponto de partida para a prática da benzedura, é interpretada pelas
benzedeiras como sendo uma dádiva divina, uma graça alcançada, e que por terem sido escolhidas, eleitas, elas passam a ter não
apenas direito, mas também deveres e obrigações para com o grupo que representa (OLIVEIRA, 1983). A benzedeira se julga (e é
efetivamente) um sujeito social de grande valia para o grupo social que ela representa e do qual faz parte.
Segundo constatação mediante conversas informais e entrevista, percebemos que as benzedeiras, após a descoberta do
dom e o processo de iniciação no ofício da benzedura, passam a acreditar que o acesso ao mundo sobrenatural, bem como a
manipulação desse mundo, possibilita criar laços, pactos e contatos no campo do sobrenatural e no meio social, ou seja, uma
relação muito próxima com Deus e com os homens.
O dom para a benzedura não torna a benzedeira “acima ou à margem” das outras pessoas, mas lhe impõe uma sagrada
missão: a de praticar a benzeção a quem procurar e necessitar.
“A percepção do dom é um acontecimento único, sem desdobramento na
vida da benzedeira. Por ser uma acontecimento singular (...) não se repete.
Ele produz ao mesmo tempo uma mudança de estado naquele que o vive e é
pressentido pela comunidade”. (OLIVEIRA, 1983:188-9)
O dom e o ofício da benzedeira são atos de “filosofia popular”, a qual explica a origem, o processo de iniciação, a atuação
no ofício não como algo distante e ultrapassado, mas como um fenômeno “vivido a cada instante” tanto pela pessoa que benze
como por aqueles que as procuram. “A benzedeira é alguém que executa uma profissão popular específica” uma “representação da
realidade concreta”. (OLIVEIRA, 1983). A benzedura, não é uma atividade que ficou no passado, ela é atual, sendo renovada,
modificada e reconstruída a cada tempo, tornando-se uma “realidade dinâmica”.
Na grande maioria das entrevistas, ficou bastante claro que o processo de aprendizagem/iniciação, a passagem de
conhecimento e regras, se deram através da transmissão da mãe para a filha ou da avó para a neta e ate mesmo casos de
transmissão da sogra para a nora, bem como por intermédio de vizinhos ou amigos de forma espontânea.
Encontramos benzedeiras que, em um momento de enfermidade, apelaram para os poderes curativos
dos santos, pagando a graça alcançada com uma promessa de aprender rezas preparar remédios para
proporcionar curas em quem tivesse fé. Em uma entrevista realizada na cidade, encontramos um relato muito
interessante acerca do processo de aprendizagem: conta-nos dona Vitória, que quando estava doente fez uma
promessa de que, alcançando a graça da cura, iria procurar, por todos os cantos, pessoas que soubessem rezar
12 Entrevista realizada em julho de 1998 com dona Florita Teixeira Caitite, residente na
cidade de Vitória da Conquista.
20
para todos os tipos de doenças e que pudessem ensinar-lhe, para que a partir daí ela pudesse ajudar a quem
precisasse.
“...eu pedi a Deus pra mode me mostrá uma reza, uma benzedeira e presentasse
lá pra mode rezar nessa mão, pra mode abrandar aquela isipa que eu tava
sentindo e tava toda roxa a mão. Se presentasse e eu ... sarasse dessa mão, eu
saí cansando que me ensinasse rezar, de tudo quanto é reza que eu precisasse.
Bem, de zipa, de conturpação, de dor de cabeça,... de dismitidura, tudo. Eu
pedia a Deus pra ele me mostrar, santo Antônio me mostrar, que ele me
mostrasse daquele dia em diante eu melhorasse. Eu saía procurando quem
sabia, se quisesse me ensinar, ensinasse e fosse pra pará eu parava”. (dona
Vitória)13.
Esse tipo de iniciação, segundo Elda Rizzo de Oliveiras, é denominada de “iniciação autodidata”, pois o ponto de partida
se dá mediante constatação feita pela própria pessoa que pretende iniciar-se e daí passa a procurar – entre vizinhos, amigos e
parentes – benzedeiras que conheçam ensalmos e jaculatórias para que possa ensinar-lhe. Esse tipo de transmissão é fortemente
regido pela tradição oral (1983).
O processo de iniciação do ofício nem sempre se dá no momento da revelação do dom. Muitas
benzedeiras levam meses e até anos para terem clareza de que realmente deve percorrer essa trilha. Muitas,
por receberem a revelação muito cedo, ainda enquanto crianças, só começam a exercer esse ofício depois da
idade adulta. Isso ocorre por motivos bem diversificados: pelo fato de serem muito jovens e não houver um
respaldo por parte da família ou da comunidade e por serem tão jovens, a credibilidade futura pode ficar
ameaçada. Sendo assim, o processo de legitimação social, processo este que garante a sobrevivência da
benzeção, pode ser inviabilizado.
Um outro fator que merece esclarecimento é a insegurança por parte da pessoa que vai iniciar-se. A falta de conhecimento
a assusta, pois para se tornar uma benzedeira, ela precisa ter um vasto conhecimento de rezas para cada tipo de doença, além do
domínio das propriedades terapêuticas de alguns tipos de ervas e raízes. Esse conhecimento só pode ser adquirido com o tempo e a
prática, principalmente no que se refere à preparação de remédio que geralmente são receitados após o ritual da benzedura. Enfim,
a benzedeira não pode ser – e na sua grande maioria não é – uma pessoa desprovida de conhecimentos empíricos dos instrumentos
necessários ao seu ofício.
Mais dois fatores são muito importantes para ajudar a compreender melhor o ofício das benzedeiras
da região que propomos estudar. O primeiro deles é que as formulas oracionais e preparo de medicamentos
não são direcionados apenas para proporcionar o bem estar de pessoas, mas também podem intervir nas
13 Entrevista realizada em fevereiro de 1999 com dona Maria Vitória Oliveira Santos,
residente na cidade de Vitória da Conquista.
21
plantações e nas doenças de animais14. Com isso elas se tornaram essenciais à sobrevivência das pessoas
simples que vivem da terra. O outro fator é a carência que a maior parte da população rural tem em relação a
assistência médica. Hospitais lotados, grandes filas nos postos da Previdência e remédios caros aumenta a
procura dos serviços e da boa vontade das benzedeiras.
As benzedeiras não escolhem tipos de situações nas quais devem interferir. Todas as doenças e
aflições são importantes para elas, caso sejam procuradas. Contudo existem aquelas que elas julgam de
interferência direta do benzedor; aquelas que, segundo depoimentos, médico não resolve.
Na realização da benzeção e do processo de cura mediante administração de algumas fórmulas, a
benzedeira apela para o domínio da religião e o da medicina popular.
Quebranto e mau-olhado, cobreiro15, engasgamento, erisipela16, dores de dente, dores de cabeça e
outras doenças mais, males que afligem uma parte considerável da população brasileira, são também um
campo de atuação das benzedeiras. No ritual da benzeção, através das rezas, elas invocam os poderes
curativos dos santos com a convicção de que estes irão atender os seus pedidos, pondo fim àquelas dores que
maltratam os seus clientes.
Recorrer aos poderes curativos dos santos com o intuito de promover a saúde, como bem coloca
Márcia Moisés Ribeiro (1997), é uma herança do catolicismo medieval – ou mesmo antes disso – e muito
difundido no Brasil durante o período colonial. Essa tradição, como iremos demonstrar a seguir, é ainda
bastante utilizada em nossos dias. Os santos representam uma intermediação entre Deus e os homens.
Os termos contidos nas orações para esses males quase sempre recorrem aos poderes dos santos.
Mediante análises comparativas das entrevistas, com benzedeiras da região, que fazem menção ao sagrado,
podemos verificar que há uma variedade de santos para tipos específicos de doenças e mesmo santos
responsáveis por mais de um mal, a exemplo de São Roque e Santa Apolônia para dores de dente; São Roque
e Santa Maria para as dores de cabeça. Estes são apenas alguns exemplos.
14 Este é uma característica bastante presente na atuação das benzedeiras da zona rural
da região de Vitória da Conquista.15 O cobreiro (ou cobrêro) é uma dermatose, cientificamente identificada como herpes-
zoster. Esta doença é uma infecção gerada pelo herpesvirus varicellae, caracterizada
por erupções de vesículas na pele, com fortes sensações de queimaduras e em alguns
casos dores muito constantes. A herpes-zoster é muito comum em pessoas que tiveram
catapora e que não foram totalmente imunizados, ou seja, o vírus permaneceu em estado
latente no organismo. É uma erupção cutânea.16 Doença é caracterizada por uma inflamação aguda da pele, atingindo na grande maioria
das vezes os membros inferiores, tendo como sintomas febre alta, calafrios e uma
vermelhidão cutânea.
22
Para melhor compreender como se deu (ou ainda se dá) essa variação de santos e especialidades
curativas, achamos por bem recorrer a Marc Bloch – em “Os reis taumaturgos” – pois, ao fazer uma
comparação dos poderes taumatúrgicos dos reis da França e da Inglaterra de curar as escrófulas com as
especialidades curativas dos santos, esclarece que:
“A maioria dos santos verdadeiramente populares também possui seus talentos
específicos: as pessoas dirigem-se a um deles rogando-lhe que cure os males dos
olhos; a outro pedem que remedeie os males do ventre; e assim por diante. Mas,
até onde se pode ver, essas especializações raramente estão lá desde o início; a
maior prova está em que às vezes elas variam. Todo santo passa por médico
junto ao povo; pouco a pouco, em virtude de associações de idéias
freqüentemente obscuras, algumas vezes por um simples calembur, seus fiéis
acostumam-se a atribuir-lhe o dom de mitigar sobretudo esta ou aquela
enfermidade; o tempo faz sua obra; ao fim de certo número de anos, a crença
nesse poder bem determinado tornou-se no pobre mundo dos sofredores um
verdadeiro artigo de fé”. (1993:59)
Como podemos perceber, os santos eram, e ainda são, considerados como miraculosos, portadores de poderes
sobrenaturais capazes de remediar enfermidades e sofrimentos em geral. As pessoas acionam suas crenças com o intuito de
restaurar a harmonia no corpo que foi afetado pela doença. Assim, cada santo possuía poderes para curar males específicos17.
Para melhor elucidar essa questão, optamos por utilizar o exemplo de Santo Apolônia (já
mencionada anteriormente). Santa Apolônia é a santa, protetora dos que sofrem de dores de dente, mais
invocada nas benzeções encontradas. Essa devoção pode ser justificada pela história de sua vida. Segundo
Camara Cascudo (1984), Apolônia viveu em Alexandria e foi condenada a ser queimada viva no ano de 248
e antes da execução todos os seus dentes foram extraído com “seixos e lhe martirizaram todo o rosto”. Os
dentes se tornaram santas relíquias e foram distribuídos por diferentes Igrejas da Cristandade.
O martírio de Santa Apolônia foi tão violento que são encontradas em Breviários de várias Igrejas da
Europa, orações que têm por objetivo pedir a intercessão de Deus para conceder a cura de todos aqueles
sofredores de dores de dente e de cabeça, que supliquem pelos poderes dessa santa. Camara Cascudo
apresenta uma dessas orações encontrada em uma igreja de Colônia, na Alemanha:
17 Santa Luzia para curar doenças dos olhos; São Lázaro protetor dos leprosos e assim
por diante.
23
“‘Ô Deus, por amor de quem a bem-aventurada Apolônia, Virgem e Mártir,
sofreu com tanta constância, que se lhe arrancassem todos os dentes; nós vos
suplicamos nos concedais que todos aqueles que imploram a sua intercessão
sejam preservados das dores de cabeça, e dos dentes, e que depois das
misérias deste desterro, vós lhes façais a graça de chegar à glória eterna. Por
nosso Senhor Jesus Cristo vosso Filho, que sendo Deus vive e reina
convosco em a unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos.
Amém.’” (1984:66).18
Invocar Santa Apolônia para defender seus devotos das dores de dentes é uma tradição antiga e
difundida por toda a Europa e no Brasil (ainda no período colonial), chegou por meio dos Portugueses e
ainda hoje – como pode ser observado através de entrevista que faz referência à santa Pelonha (Apolônia) 19
– resiste ao tempo.
As orações utilizadas pelas nossas benzedeiras, invocando os santos ou não, são geralmente repetidas por três vezes,
como sendo o primeiro procedimento da benzedura. Caso seja necessário, elas pedem aos doentes que retornem para que a
benzeção seja repetida por mais duas vezes em dias determinados por elas. E por fim a administração de medicamentos preparados
– pelas mesmas ou mediante ensinamento – à base de folhas, ervas e raízes para que sejam usados na dependência da gravidade da
moléstia.
É nesse terceiro momento que as benzedeiras colocam em prática os seus conhecimentos medicinais
daquilo que a natureza lhes oferece: propriedades vegetais – em maior escala –, animais e minerais. Esse é o
apelo para domínio da medicina popular. Parte das benzedeiras entrevistadas disseram que são grandes
conhecedoras das propriedades terapêuticas das ervas e raízes.
Vários são males, bem como são seus graus de gravidade, suas interpretações e fórmulas oracionais. Doenças de longa
duração, de duração limitada ou ainda aquelas que não são clinicamente classificadas. Núbia P. de Magalhães Gomes e Edimilson
de Almeida Pereira, no livro Assim se benze em Minas Gerais, têm uma abordagem interessante acerca das chamadas doenças
auto-limitadas, ou seja, aquelas moléstias que têm uma duração específica, com prazo para aparecimento de desaparecimento, a
saber:
18 Oração semelhante a essa foi encontrada no livro de Márcia Moisés Ribeiro, no
capítulo referente Magia permitida e práticas ilícitas do seu livro A ciência dos
Trópicos.19 “Senhora santa Pelonha /estava sentada na sua pedra de ouro fino /chorando e se mal dizendo. /Passou São Clemente /Que é
que tem, Pelonha? /Dor de dente, senhor. /Quer que reze, Pelonha? /Quero sim, senhor. /Pelonha, /assim como o sol é nascente, /o
sol é poente, /vai passar essa dor de dente, /nas horas /de Deus, senhor São Clemente”. (dona Laurência – benzedeira residente na
cidade de Vitória da Conquista)
24
“Podemos considerar doenças de duração específica manifestações
dermatológicas (fogo selvagem, erisipela, sapinho, cobreiro), processos
inflamatórios (unheiro, terçol, bicheira, coqueluche, peito arruinado, dor de
dente) e distúrbios causa-efeito, isto é, as conseqüências óbvias de um fator
determinante (queimadura, destroncamentos, engasgamento, envenenamento,
cisco no olho, sangramento de acidente, azia, dor de cabeça)” (1989: 27).
A benzedura, enquanto um fenômeno presente na mentalidade de parte da população de nossa
região, resiste às transformações e à modernidade que os novos tempos apresentam. Ensalmos, jaculatórias e
procedimentos curativos à base, essencialmente, de plantas medicinais rompem preconceitos, barreiras de
espaço e de tempo, e perpassam gerações – através da transmissão oral – com pequenas modificações. A
valorização da vida, a defesa e reflexão das tradições e das crenças, uma visão de mundo partilhada com seus
pares, são formas de veiculação do saber acumulado pelos agentes da benzedura. Penetrar nesse universo foi
essencial para a compreensão que hoje temos dos seus significados e representações.
Enveredar por esse mundo da benzedura foi o que mais nos permitiu perceber os motivos que levam quotidianamente
pessoas de deferentes segmentos sociais procurarem os serviços das benzedeiras e acreditarem que elas possuem poderes
sobrenaturais dados por Deus, e por isso mesmo capazes de interceder junto a ele, para aliviar os seus problemas, sejam de ordem
física, emocional ou social.
A legitimação e conseqüentemente a sobrevivência desse tipo de prática na região está intrinsecamente ligada às ações
diretas dessas terapeutas populares, bem como a forte religiosidade presente na sua clientela.
Apesar de todo avanço da medicina hoje nas sociedades modernas, a benzedura ainda é um elemento forte na cultura das
regiões do interior do Brasil, e, não obstante todas as dificuldades de perpetuação, ainda são bastante procuradas. Percebemos que
o oficio não está sendo transmitido. A filiação “mágica” que antes era uma constante, hoje já não está ocorrendo com a mesma
freqüência. Ao perguntarmos às benzedeiras acerca da reprodução do conhecimento, as respostas foram quase sempre às mesmas: a
juventude moderna não crê mais nos conhecimentos dos antigos; a fé nos nossos ensinamentos não está mais presente na realidade
vivida da juventude de nossos dias.
Em todo o corpo do trabalho, fizemos referências às benzedeiras ao invés de
benzedeiros. Isso se deve ao fato (como justificado no início) de que a benzedura,
comprovadamente, é um ofício exercido majoritariamente por mulheres – na grande maioria,
senhoras com idades acima de cinqüenta anos; fato comprovado pelo nosso diagnóstico. O
perfil feminino da benzedura é inquestionável não apenas na localidade em estudo, mas em
quase todas as regiões do Brasil com que tivemos contato através livros e relatos de
experiências. No levantamento cadastral dos agentes da benzedura na zona rural e na cidade
de Vitória da Conquista, encontramos alusões a apenas quatro homens, sendo três destes
25
moradores da zona rural. É, sobretudo em função deste quadro, que optamos por usar
benzedeiras e não benzedeiros.
Todos os passos da nossa pesquisa – leitura de obras que tratam pontualmente dessa temática, informais com as
benzedeiras e seus depoimentos – foram essenciais para a compreensão da benzedura e conseqüentemente a concretização deste
trabalho.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
França e Inglaterra. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1984.
GOMES, Núbia Pereira de Magalhães & PEREIRA, Edimilson de Almeirda. Assim
se benze em Minas Gerais. Juiz de Fora. EDUFJ / Mazza Edições, 1989
(Minas & mineiros, 2).
LAPLANTINE, François & RABEYRON, Paul-Louis. Medicinas paralelas. Tradução de Ramon Américo
Vasques. São Paulo: Brasiliense, 1989.
OLIVEIRA, Elda Rizzo de. Doença, cura e benzedura: um estudo sobre o ofício da benzedeira em
Campinas. Campinas: s.n., 1983. (dissertação de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas).
RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos – A arte médica no Brasil
do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letra, 1997.
PALAVRAS-CHAVES: Benzimento, religiosidade popular, medicina popular.
DADOS PESSOAIS: Professora da Área de História Moderna do Departamento de História da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC - SP). E-mail: [email protected].
26
Mandos e desmandos: juízes, vereadores e delegados da Imperial Vila da Vitória doséculo XIX.
Isnara Pereira Ivo. Professora Assistente do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia/UESB. Mestre em História/UFMG. [email protected]
A conquista da região que deu origem a Imperial Vila da Vitória, atual município de Vitória da
Conquista, foi iniciada pelo bandeirante João Gonçalves da Costa e sua família. A maioria de seus
descendentes, proprietários de terras, ocupou as funções da administração local durante todo o século XIX.
Os limites entre as instâncias públicas e privadas mostram-se com tênues quando se analisa a justiça local na Imperial Vila
da Vitória. Assuntos de família e assuntos de polícia misturavam-se. Pequenos delitos ganhavam amplitudes de perseguições a
desafetos e inimigos “políticos”. A arbitrariedade, imprecisão e parcialidade foram os preceitos que guiaram a aplicação da justiça
pelos donos do lugar.
Os homens encarregados de julgar e punir a população da Imperial Vila da Vitória investiram-se desse poder desde o
processo de conquista. A família do Capitão-mor João Gonçalves da Costa, novo dono da terra, foi também pioneira nas funções de
dominar e subjugar a população primitiva, formada por grupos indígenas que habitavam a região.
A ocupação e a conquista empreendidas pela bandeira dos Gonçalves da Costa, como as demais bandeiras brasileiras,
tiveram um caráter eminentemente militar (QUEIROZ, 1976a, p.48). A cada território incorporado, a cada região conquistada,
reorganizava-se o serviço militar.
A historiografia tem demonstrado que o processo de ocupação da terra, no Brasil, por chefes de famílias, garantiu a
criação de normas de controle para a comunidade em formação, vinculando-a, em seguida, ao Estado organizado com o
estabelecimento de normas jurídicas (OLIVEIRA, 1988/89).
De membros das Ordenanças, os Gonçalves da Costa e seus descendentes passaram a ocupar funções policiais, jurídicas e
administrativas no Arraial da Conquista e, posteriormente, na recém criada Imperial Vila da Vitória.
O estudo das localidades brasileiras tem demonstrado que as atividades jurídicas foram definidas por componentes
inerentes ao imaginário social e político das elites locais: a indefinição das atividades públicas e privadas – condição da qual
27
germina o embaralhamento desses dois setores – articula-se à dominação pessoal, o princípio mais geral de regulamentação das
relações sociais (FRANCO, 1983, p. 129-130).
O desprezo eminente pelas garantias e liberdades civis e sociais sempre esteve presente no comportamento dos homens
encarregados de julgar e punir. Os direitos privados, sempre comprometidos com o Estado, a escravidão e o latifúndio foram
empecilhos para a consolidação dos direitos civis, pouco se realizando em matéria de assistência social (CARVALHO, 1995,
p.39,45), fazendo com que os donos da justiça e da política se tornassem o único recurso da população alijada de suas garantias
pessoais.
Visitando um pouco o cotidiano da justiça da Imperial Vila da Vitória, é possível constatar, com alguns exemplos, como a
extensão do poder privado às funções públicas permitiu que a aplicação da justiça fosse utilizada para resolver questões
particulares. Pendências do mundo privado transformaram-se em problemas políticos, posto que anular um processo, ou “provar” a
inocência de um capitão, de um tenente ou de um coronel, pertencentes aos bastidores da política local, fosse como delegado,
conselheiro e, acima de tudo, um grande proprietário, era garantir o funcionamento “correto” da justiça, uma vez que romper com
esses obséquios significava romper com os donos da política e da justiça do lugar.
O exemplo a seguir refere-se a um fato ocorrido em 13 de março de 1895, que envolveu Saturnino Nunes Bahiense e seu
cunhado Sebastião Muniz de Faria, ambos homens públicos que já tinham exercido funções de Delegado de Polícia. O primeiro foi
Juiz Municipal e Delegado de Polícia em 1878 e o segundo fora nomeado em 1897, dois anos após esse fato. Registrando uma
queixa-crime contra Sebastião Muniz de Faria, diz o autor da denúncia que
“nas noites de 19,20 e 21 deste corrente mês andavam em roda de sua casa e em sua mediação SebastiãoMuniz de Faria acompanhado de Augusto José de Souza, Pedro José de Mello, Máximo de tal, conhecido porCunha e outros (cita-os) (...) avisado que os referidos indivíduos queriam assassiná-lo, pelo que tratou detrazer sempre a casa fechada desde que escurecia, mas que às 10 horas da noite do dia 21 deste mês tendoparado em frente da sua casa um grupo de desordeiros, cantando acompanhadas de harmônica e violãoimoralidades inauditas(...), arrebentaram o quintal (...) com algazarras o insultava[m], bordejava[m] efazia[m] todo o possível afim dele respondente abrir a porta do quintal e ser pelos mesmos assassinado (...)que é do domínio público a atroz inimizade de Sebastião Muniz de Faria para com ele tanto assim que portrês vezes tem vindo a casa dele para assassiná-lo do que também Pedro José de Mello é seu inimigo porqueele respondente tem dado denúncia contra o mesmo como criminoso em Ilhéus e Canavieiras e Augusto Joséde Souza e Eloy de tal são jagunços bem como aqueles de Sebastião Muniz de Faria são reconhecidos nestacidade como escareadores e bandidos (...)” 20.
Foi instaurado um inquérito policial no qual foram arroladas e ouvidas sete testemunhas que, em seus depoimentos,
demonstraram que nada queriam confirmar e nada disseram saber sobre o ocorrido, numa atitude clara de descomprometimento
com quaisquer das partes envolvidas. Ora, percebe-se que é praticamente impossível numa pequena Vila, onde um homem público
teve sua casa cercada por grupos inimigos por três vezes, que este fato não tenha chegado ao conhecimento da população da
cidade.
Por outro lado, foi notória a rapidez da justiça em solucionar o problema. Pouco mais de um mês após o registro da
denúncia, os autos foram remetidos ao Promotor da comarca, Camilo de Azevedo Lima, que em 20 de abril de 1895, “baseado no
que dispõe a nossa legislação penal no § 1o da exceção feita ao art. 407, deixa de proceder no presente feito por julgar
incompetente a sua intervenção em crimes de tal natureza”.21
20 Queixa-crime contra Sebastião Muniz de Faria. AFJM - Arquivo 1a Vara Cível. Caixa Diversos: 1890- 1899.21 Ibid.
28
O Promotor concluiu que, não se tratando de um caso de flagrante delito, o réu não pode ser pronunciado. Pode-se
perceber que essa também foi a leitura feita pelo comissário de polícia da Vila, pois não convidou o denunciado a depor no
processo. Assim, concluiu o Promotor da comarca que
“a denúncia por parte da junta pública não tem cabimento porquanto não está provada a última parte docitado §, isto é, “não havido prisão em flagrante” condição sine qua non22 não tem lugar a intervenção dajustiça pública nos crimes de dano (...) solicita o arquivamento”23.
Um outro exemplo faz perceber como a justiça, “com base na lei”, anulava processos, além de ignorar denúncias de
tentativas de homicídio, assassinatos consumados e de domínio público. Foi o caso de denúncia do assassinato de Firmino da Silva
Gusmão por mandado do capitão Antônio Ferraz de Araújo Catão.
O acusado era um homem de família tradicional, filho do patriarca Joaquim Ferraz de Araújo, grande proprietário e ex-
Delegado de Polícia. Recebeu a patente de capitão da 3a companhia do Batalhão nº 93 da Infantaria da comarca da Vitória em
188024.
Nesse inquérito, mais uma vez é percebida a brevidade do encaminhamento processual que, como no primeiro caso,
envolvia membro da elite local. O fato se deu no dia 14 de dezembro de 1891 conforme queixa do pai da vítima. Quando Firmino
da Silva Gusmão passava
“pela rua dos veteranos (...) e daí partiram três tiros dois dos quais produziram os referidos ferimentos, temcerteza que fora mando de Antônio Ferraz de Araújo Catão que foi tudo presenciado por Militão Soares daRocha pelo Dr. Promotor Público Bel. João Alves Pedreira França e pelo preto por nome Clementeconhecido por Bocauina e por mais outras pessoas que não pode recordar-se”25.
Segundo o auto de corpo de delito, foi encontrado no ofendido
“um ferimento no ombro esquerdo, outro n[a] omoplata de traz para diante de fora para dentro produzidospor chumbo e bala outro ferimento grande sobre a espinha dorsal região renal produzido por bala. Umgrande número de ferimentos nas pernas e nádegas um outro ferimento no punho da mão esquerda um outrono braço direito, todos de fora para dentro e de trás para adiante produzidos por chumbo grosso”26.
O acusado (suplicante), por sua vez, usando do conhecimento de que possuía da justiça, escreve ao Juiz Municipal e
Delegado de Polícia, orientando-o como deveria proceder no encaminhamento do processo. Informava a inviabilidade de o mesmo
instaurar processo contra ele,
“1o, por ser inimigo capital do suplicante tanto que em um dos números do Diário da Bahia do ano passadofez as maiores injúrias ao suplicante atacando até a sua honra e dignidade, 2o por que V. S., não pode servirde juiz neste termo pelo parentesco de que existe entre V. S. e o escrivão do juízo não obstante que este tenhajurado suspeito por quanto a petição de queixa já estava despachada por V. S. e a lei de 18 de julho de 1843indica o modo de proceder em tal caso finalmente por que V. S. é parente em grau proibido da mulher dosuplicante (...)”27.
O inquérito policial foi instaurado e foram ouvidas oito testemunhas que confirmaram a denúncia de mandado do
assassinato pelo capitão Antônio Ferraz de Araújo Catão. A primeira testemunha foi Terêncio Nunes Bahiense, parente em 3o grau
do acusado. O depoimento dessa testemunha, repetido pelas demais, exceto pelo Promotor Público que também presenciara o
22 Grifo do original.23 Ibid.24 Patente de capitão da 3a companhia do Batalhão nº 93 da Infantaria da comarca da Vitória. 21.06.1880. APEB. Seção Colonial eProvincial. Série: Militares, Patentes, Registros. 1879-1883. Maço 5408.25 Queixa-crime contra Antônio Ferraz de Araújo Catão. APEB. Seção Judiciária. Autos Crimes. 38.1351.14.26 Ibid.27 Ibid.
29
assassinato, esclarece que o capitão Catão, o acusado, já havia comentado em outras ocasiões sobre a possibilidade de agressão a
membros da família Gusmão:
“(...) ele perguntara ao Sr. capitão Catão se não se achava horrorizado com o que se havia passado, teve emresposta que não, que o sentimento que lhe restava era ter ficado em frente de sua casa (...) que daquela dataem diante não desceria camarada algum seu às ruas da cidade e que também não passaria membro algum dafamília Gusmão em frente de sua casa sob pena de receber tiros (...) perguntado ao Cap. Catão se porventura passasse Mathias Gusmão, homem de avançada idade o que faria (...) teve em resposta que mandar-lhe-ia dar um tiro nas pernas (...) que os queixados estiveram com o Cap. Catão na ocasião que viu oestampido dos tiros (...) que no dia do conflito a cidade estava alarmada esperando graves conflitos e porisso achavam-se quase todos armados”28
Em 3 de agosto de 1892, menos de um ano do fato ocorrido, o promotor público João Alves Ferreira França, que, segundo
a vítima, fora uma das testemunhas do crime, em seu depoimento revelou que não considerava como crime o fato presenciado e
também não vira como contravenção a ameaça de assassinato aos membros da família Gusmão proferida pelo capitão Catão:
“conquanto os tiros houvessem partido de uma casa de propriedade do queixado Cap.Catão nenhuma prova direta ou indireta existe no presente processo que mostre a suaculpabilidade no fato de que se trata (...) nenhuma prova estabelece em direito maximé emmatéria criminal, como ensinam os fatos pátrios e foi decidido pelo supremo tribunal dejustiça por acórdão de 6 de julho de 1861 e portanto nenhuma força probante tem odepoimento de testemunhas que assim deporam em juiz (...)” ;
Continua a defesa do acusado, afirmando a inocência do Capitão Catão e pronunciando como culpados os autores dos
tiros:
“dissera que daquela data em diante não passaria membro algum da família Gusmão pela rua daIndependência sem sofrer alguma agressão, foi posterior aos acontecimentos do dia 12 de dezembro eportanto não poderá servir de base para demonstrar que achava-se ele possuído de intenção criminosaquanto ao fato de que se trata e quando muito poderá sê-lo para fatos que corressem posteriormente(...) nãohá criminoso sem má fé, isto é, em pleno conhecimento do mal e intenção de o praticar e destes autos colige-se a falta de intenção do queixado.(...) Como mandatários apenas há no presente sumário de culpa veemente indício contra João de tal eGustavo de tal, de terem sido os autores dos tiros que ofenderam a Firmino (...) por que são os únicos que hácerteza de se acharem na dita casa na ocasião em que os tiros foram disparados”.29
Após a conclusão do processo criminal, feita pelo Promotor Público, foi anexado o atestado de óbito do Capitão Catão
que, de acordo sua esposa Zeferina Maria de Oliveira, “fora barbaramente assassinado com um tiro nas costas ao chegar na
porteira da Fazenda em 02 de junho de 1893” ,30 ou seja, menos de um ano, após a conclusão do Promotor Público.
Ora, se O Capitão Catão fora absolvido da acusação de mandante do crime e acusados apenas os autores, por qual motivo
a justiça teria anexado o atestado de óbito do Capitão nos autos do processo? Apesar de não haver nos autos solicitação de recurso
por parte da família da vítima, é possível que a conclusão do Promotor tenha provocado polêmica entre os moradores da Vila, uma
vez, que após a morte do Capitão, um outro juiz de direito, Augusto Vergne de Abreu, em 24 de fevereiro de 1894, anulou o
processo crime usando outros argumentos:
“(...) considerando que a queixa só compete ao ofendido, seu pai ou mãe, tutor ou curado sendo menor,senhor ou cônjuge (art. 72 do Cód. do Processo Crime); Considerando que a queixosa deu a presente queixa
28 Ibid.29 Ibid.30 Ibid.
30
no caráter de mãe do ofendido que é maior e não menor, caso em que não tem a mãe tal competência e queesta tem sido a doutrina seguida pelos juízes e tribunais do país”31 .
Observe-se que a justificativa para a anulação da culpa do Capitão não é feita em função de sua inocência, mas da
improcedência legal do registro da queixa.
Como pode ser visto, a parcialidade no julgamento de crimes pelos homens públicos era uma constante da justiça local da
Imperial Vila da Vitória. É perceptível a falta de precisão dos juízes de direito à frente da comarca e também dos juízes municipais
em julgar e punir as contravenções cometidas pela população, seja no julgamento e punição dos homens comuns, seja nos
inquéritos envolvendo homens públicos. Por qualquer motivo, a queixa-crime poderia ser considerada improcedente.
Foi o que aconteceu com a denúncia de agressão física que recebeu Severiano Ângelo Rodrigues por José de tal,
conhecido por José Correio, morador na cidade de Caetité, em 4 de março de 1882. De acordo com o auto de corpo de delito as
agressões recebidas foram:
“cinco facadas sendo uma entre as clavículas mais pendendo para o lado direito que teráuma polegada de extensão e mais de ½ de profundidade, outra facada no vão da clavículajunto ao pescoço vizinho a artéria que terá de extensão meia polegada que sendoempregada do lado direito do lugar mencionado parece ter perpetrado até o véu do vãooutra facada sobre as costelas do lado esquerdo acima da boca do estômago que terá umapolegada de extensão de três partes de profundidade outra facada na ponta do queixo dolado esquerdo que tem 2 polegadas de extensão que poderá ter profundidade de 3 ou 4partes e outra facada sobre a parte externa do fulcro do braço esquerdo que terá umapolegada de extensão, que ofendera apenas a pele”.
A descrição contida no auto de corpo de delito comprovou os inúmeros ferimentos recebidos pelo autor da queixa-crime.
Acrescente-se o fato de que após a abertura do inquérito policial, as testemunhas que foram arroladas confirmaram também a
denúncia. Ocorre que, apesar de todas essas evidências, ou melhor, provas do crime, o promotor público da comarca, Antônio
Querobim Luiz Lopes afirmou
“pelas respostas dos ditos peritos do auto de corpo de delito e mais provas que se coliguem do inquérito vê-se que os ferimentos recolhidos por Severiano Ângelo Rodrigues são leves (...) esta promotoria deixa deoferecer a denúncia por não caber procedimento oficial”32.
É importante registrar que, nesse inquérito policial, o Juiz Municipal e Delegado de Polícia era o capitão Antônio Ferraz
de Araújo Catão, o mesmo acusado de autoria do crime perpetrado contra Firmino da Silva Gusmão, cujo processo-crime fora
anulado pela justiça. É importante registrar ainda, que, num processo crime instaurado, cabe ao Juiz Municipal e Delegado de
Polícia33 remeter ao Juiz de Direito da comarca ou Promotor Público do termo os autos de todos os inquéritos policiais, cuja
direção e conclusão são de sua responsabilidade.
Pode-se deduzir desse fato que a conclusão dos autos com parecer do Juiz Municipal da Vila influenciou a decisão da
Promotoria. Isso não quer dizer que em todos os casos a Promotoria ou o Juiz de Direito da comarca se orientassem sempre pela
conclusão do Juiz Municipal da Vila, uma vez que foram vários os inquéritos em que a Promotoria assumiu uma decisão
processual completamente diferente da tomada pelo Juiz Municipal e pelo Delegado de Polícia.
Por lei, os cargos de Juiz de Direito, de Juiz Municipal e de Promotor Público deveriam ser ocupados por advogados
formados em universidades. Era muito difícil esse critério ser obedecido nos grotões do sertão da Bahia, daí o suplente de Juiz
31 Ibid.32 Inquérito Policial. 04.03.1882. AFJM - Arquivo 1a Vara Cível. Caixa Diversos: 1890-1899.
31
Municipal ter escrito ao Presidente da Província, solicitando esclarecimentos acerca do seu ofício, demonstrando, por falta de
formação acadêmica, incapacidade em exercer sua função:
“porque não sou bacharel e nem tenho preparatório algum acadêmico, difícil se torna nesse meu juízo aresolução de dúvidas (mesmo até pela falta absoluta de jurisconsultos ou advogados) permita V. Exª que euroube a V. Exª o tempo em dar-me o esclarecimento que passo a pedir e que me servirá de linha de conduta(...)” 34.
A “falta absoluta de jurisconsultos e advogados” para servirem à justiça não foi uma situação sui generis na Imperial Vila
da Vitória. A falta de bacharéis em direito nas vilas e cidades do interior do Brasil verificou-se desde o período colonial e estendeu-
se até os fins do século XIX.
Somadas à falta de preparação acadêmica dos juízes, os elos de parentesco existentes na Vila forjaram um aparato judicial
longe de ter a qualificação inerente ao ofício de julgar e punir. Os postos de comando judicial e policial da Imperial Vila da Vitória,
como se vê no anexo I, foram revezados entre os membros das parentelas que comandavam a política local: Fernandes de Oliveira,
Oliveira Freitas, Lopes Moitinho, Ferraz de Araújo.
A instrumentalização das instâncias públicas pelo mandonismo local definiu o caráter da
administração da Vila. As querelas inerentes às disputas eleitorais, conforme indica a documentação
consultada, ocorriam, na maioria das vezes, durante as eleições primárias quando, através da mesa
paroquial, eram eleitos os eleitores.
A ocasião das eleições indicava sempre uma possibilidade de modificação de interesses e de posição
dos grupos na sociedade, motivo pelo qual a medição de forças se fazia com todos os meios, o que levava
algumas vezes à inviabilização do próprio processo eleitoral, e, no limite dos dissídios e rivalidades, a
Câmara era deposta com o acirramento das contendas entre os grupos. Foi o que ocorreu em dezembro de
1860, conforme relataram os oficiais da Câmara ao Presidente da Província:
“(...) A parcialidade política criada neste Município na Igreja Matriz pelo Doutor CasemiroPereira de Castro, Juiz Municipal deste termo, que esquecido das funções de seu cargo, de suaposição, aproveitando-se da ausência do delegado, e do Juiz de Direito, que já o havia arredadoda discussão, em que com acrimônia tomou parte sem ser eleitor, pôs tudo em conflagração,dando o sinal de alarme com as seguintes palavras anunciadas em altas vozes: tome-se, ourasgue-se o livro!!! (...) se lançaram sobre o eleitor Tenente José Nunes Bahiense, Presidente daCâmara, para tomarem o livro, o que conseguiram, tomando igualmente o que pertencia à mesa[Paroquial], colocado ali pelo mesmo Presidente para as atas das eleições (...) sendo levementeferidos o capitão José Lopes e o vereador Francisco de Paula Moreira Gigante”.35
O legislativo municipal havia sido eleito em 12 de setembro de 1856 para o próximo quatriênio. O mandato legislativo
dessa administração encerrar-se-ia após as eleições realizadas em dezembro de 1860. Ocorre que a ação do grupo liderado pelo
Juiz Municipal, que agrediu a mesa paroquial durante as eleições primárias em dezembro, resultou na deposição do executivo e
legislativo locais ainda em outubro de 1860.
33 Neste momento, as funções de Juiz Municipal e Delegado de Polícia acumulavam-se numa só pessoa.34 Correspondência do 1o suplente de Juiz Municipal ao Presidente da Província. 15.11.1855. APEB. Seção Colonial e Provincial.Série: Juízes. Maço 2647.
32
Em correspondência ao Presidente da Província, em 1860, os vereadores legalmente eleitos, e posteriormente depostos
relataram ao Presidente da Província que os cargos da Câmara foram assumidos à força por um “grupo partido enviado e
declarado pelo Doutor juiz municipal Casemiro Pereira de Castro”:
“Protestam contra o abuso e violência praticada pelo Procurador de papéis Ladislau da SilvaMello, o escrivão Ludovico G Chaves e os vereadores João Fernandes de Oliveira e JoaquimCarlos Andrade, por haverem no dia 8 do corrente mês, por insinuações malignas, formadoCâmara artificiosa para seus fins, sendo todos do grupo partido enviado e declarado peloDoutor juiz municipal Casemiro Pereira de Castro (...)”.
Segundo os vereadores, a deposição da Câmara, liderada pelo Juiz Municipal, ocorreu porque o
Presidente deste órgão havia faltado a uma sessão ordinária no mês de outubro
“(...) em conseqüência da calamidade pública, com a enorme seca, que cuja causa se acham retirados para oTermo diferente (...) aproveitando-se disso aqueles ditos senhores e com a chegada do próprio Doutor juizmunicipal, e o seu partido enviara a capital, eleva-se o 3o vereador em Presidente, e sem nenhum aviso ou ciênciaajunta, digo ciência de efetivo Presidente, se alguma urgência havia, ajunta com mais dois vereadores; e suplentese [formaram] ontem 8 do corrente, Câmara, sem que tivesse em pedido, ou oficiado o Presidente efetivo a seusubstituto legal (...)”.
Nota-se que os momentos de renovação do legislativo, além de serem a ocasião de disputas e
medição de forças, era também o momento de aflorarem as divergências e acusações mútuas entre grupos
que estavam em flagrante oposição e em situação de confronto. É o que se percebe no relato dos vereadores
depostos, ao registrarem que, desde que o grupo do Juiz Municipal e seu fiel substituto, João Fernandes de
Oliveira, assumiram a comarca, desapareceu
“(...) a tranqüilidade que então gozava este Município. Sendo alterado o sossego público de dois anos a esta parte;pois que reina a intriga, a discórdia que todos lamentamos. Está esta Vila passando por uma terrível crise onde sãoameaçadas com mortes pessoas, como o Presidente desta Comarca pelo mesmo Dr. juiz municipal João Fernandesde Oliveira”.36
O secretário da Câmara, Ladislau da Silva Mello, que fora acusado de ter ficado com o livro de atas,
defende-se trazendo à tona acusações ao então Presidente da Câmara deposta, o coronel José Nunes
Bahiense:
“Ainda meu maior inimigo (...) já tendo anteriormente há esse tempo, alguma aversão contramim por ter sido eu um do número dos que desaprovaram o assassinato que o representantemandou fazer barbaramente por seu primo Dimas Gonçalves na pessoa de seu agregado ooctogenário Domingos Patuá; pelo que e por outros fatos de igual natureza e que orepresentante e seus parentes há muitos anos me perseguem para poder obter prescriçãoescandaloso meio de defesa (no crime) e que deveria ser riscado de nossas leis!!! (...) é um dos
35 Correspondência da Câmara ao Presidente da Província. 17.02.1861. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:Correspondências para o Presidente da Província. Câmaras. Maço 1463.36 Correspondência dos vereadores da Vila ao Presidente da Província. 09.10.1860. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:Correspondências para o Presidente da Província. Câmaras. Maço 1463.
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chefes ou subchefe graduado do Partido Munheca37 e que ao mesmo tempo advoga neste foro,intrigou-se comigo por que fui advogado numa causa contra ele (...)”.38
Em 11 de fevereiro de 1861, os oficias da Câmara informaram ao Presidente da Província que
membros eleitos legalmente haviam reassumido seus postos.
No entanto, parece que a situação ainda não estava resolvida, pois, em 2 de abril do mesmo ano, o delegado Antônio
Coelho Sampaio escreveu ao Presidente da Província confirmando a ação dirigida pelo Juiz Municipal da Vila quando, num ato de
violência, agrediu o Presidente da Câmara, tomando-lhe o livro de atas destinado ao registro da eleição. Ao mesmo tempo, o
delegado registrou que a instauração do processo por ele empreendida, como se esperava, não teria resultado:
“Devolvo a representação de alguns eleitores e votantes desta Paróquia sobre os fatos ocorridos no dia 30 dedezembro do ano passado por ocasião das eleições É exato tudo que alegam os representantes, pois de fato foramos representados autores do conflito havido na Igreja Matriz, do qual resultou não haver eleição; (...) O resultadodo processo instaurado pelo delegado foi nenhum como se esperava (...)”.39
De fato, decorridos quatro meses após a deposição da Câmara, os eleitos legalmente ainda não haviam assumido suas
funções. Posteriormente, em correspondência ao Presidente da Província, o então delegado Irênio Ramos defendeu-se diante das
acusações do então juiz municipal, Theôtonio Gomes Roseira, de não ter resolvido a situação justificando-se, junto ao Presidente,
“que tem se mantido com estranheza às intrigas locais e ao processo eleitoral” do Município, algo quase impossível pela função
que exercia:
“Não me surpreende (...) a inação de que sou acusado pelo representante, porque, desrespeitado com a exoneraçãodo cargo de delegado donde tirava toda a influência com que estava preparando o terreno para a nova lutaeleitoral,40 não vê um minha atitude senão um obstáculo aos seus desígnios.
Meu procedimento aqui tem sido o que V. Exª me recomendou tendo sempre me conservado com a maiorestranheza às intrigas locais e [ao] processo eleitoral (...).41
Não foi encontrado registro que confirme se a Câmara deposta conseguiu retomar suas funções, mas esses
acontecimentos demonstram o quanto era conturbada e disputada a renovação dos postos da administração local. As eleições
primárias foram adiadas para o mês de julho, ainda em 1861, e o pleito “correu placidamente”, em função da ajuda militar cedida
pela presidência da Província:
“(...) que a eleição de Eleitores desta [Paróquia] correu placidamente no designado dia 30 de julho e seguinte; epara o que muito concorreu o Tenente comandante da força policial Antônio Pedro da Costa, que essa presidênciamandou em comissão da capital assistir a eleição desta Freguesia (...)”.42
Não é difícil compreender porque as arbitrariedades faziam parte do processo eleitoral durante todo
o século XIX. As rédeas de todo o processo estavam nas mãos dos chefes locais. Controlavam desde o
37 Partido Munheca. Neste momento liderado pelo Tenente José Nunes Bahiense e em oposição ao “Partido da Vereda”, reduto dosFernandes de Oliveira e Ferraz de Araújo.38Ata da Câmara Municipal datada de 14 de abril de 1861. AFJM. 1ª Vara Cível. Caixa Diversos. 1860-1869.39 Correspondência do delegado, Antônio Coelho Sampaio ao Presidente da Província. 02.04.1861. APEB. Seção: Colonial eProvincial. Série: Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.40 Grifo da autora41 Correspondência do delegado Irênio Ramos ao Presidente da Província. 26.03.186. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.42 Correspondência da Câmara ao Presidente da Província. Julho de 1861. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:Correspondências para o Presidente da Província. Câmaras. Maço 1463.
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alistamento dos eleitores até a apuração dos votos. Eles também estavam encarregados de indicar a
composição das mesas eleitorais e os locais de votação.
Durante muito tempo, na Imperial Vila da Vitória, por falta de prédios públicos, as eleições foram
realizadas na sede da Igreja Matriz. Nos Arraiais, os pleitos eram realizados na casa de residência do
subdelegado do distrito ou de algum Juiz de Paz, isto é, dos chefes locais.
Essa situação propiciava ao mandonismo local usar de seus instrumentos de intimidação e repressão sem maiores
problemas. As milícias privadas, sempre a postos nos períodos de eleição, eram arregimentadas a serviço de seu comandante. Nas
eleições primárias de 1862, essa situação configurou-se quando Paulino Fernandes de Oliveira usou sua gente armada para tentar
roubar a urna, conforme descreveu o 1o suplente de juiz municipal, Theôtonio Gomes Roseira, ao Presidente da Província:
“Não podendo o queixoso Paulino Fernandes de Oliveira, levar a efeito com os de seu lado político ossanguinolentos planos eleitorais que haviam preparado para a eleição de eleitores em agosto do ano próximopassado (...) É verdade que na noite do dia 11 de agosto do dito ano o delegado 1o suplente Joaquim GonçalvesLimoeiro fez sobrar patrulhas de gente armada com espingardas das 10 horas dessa noite às 6 horas da manhã ereforçar a força da polícia que estava de guarda da urna dentro da Igreja Matriz dessa Vila, porque há essa horarecebi da pessoa fidedigna a denúncia de que um grupo de homens a cavalo do lado político do queixoso tentaramde assalto roubar a mesma urna (...)”.43
Diante da situação, o juiz municipal, titular do cargo, Virgílio Silva Faria, tentando mostrar a sua
autoridade junto ao Presidente da Província, justificou-se esclarecendo que
“(...) Esta localidade está dividida em dois partidos, de um é chefe o Tenente coronel TheôtonioGomes Roseira, e de outro, o representante Paulino Fernandes de Oliveira; a informação destetornou-se suspeita, tanto mais quanto a primeira, porque os fatos são muitos exagerados (...)” 44.
O talento dos chefes locais em fazer cumprir seus desejos era medido pela capacidade que possuíam
de arregimentar pessoas armadas para cumprir, através da força, suas decisões. As milícias privadas, também
símbolos de prestígio, demonstravam, para o chefe local, a capacidade de mobilizar o maior número de
homens (jagunços) sob suas ordens.
A ocasião das eleições era um momento privilegiado para pôr em ação grupos armados que cometiam as mais variadas
arbitrariedades e formas de violência. As autoridades, por sua vez, redobravam a segurança da sede do Município, aumentando o
efetivo da patrulha como forma de agir diante das ações de violência já aguardadas para o momento. Foi essa a medida adotada
pelo juiz municipal, José Cardoso da Cunha, durante as eleições de 1876, conforme descreveu em 1o de outubro do mesmo ano, ao
Presidente da Província:
“(...) na data de ontem às 10 horas da noite, (...) um fato revoltante qual o do assassinato doinfeliz Aprígio : o fato passou-se pela forma seguinte. Sendo hoje o dia designado para asEleições de Eleitores, Juízes de Paz e vereadores, como era natural compareceu um númeromais ou menos considerável de [cidadãos] para votarem. O delegado de polícia do termoformou uma patrulha composta de quarenta a cinqüenta indivíduos para policiar a Vila (...) apessoa encarregada de capitaneá-la foi Antônio Vieira da Costa tido e havido por um homem de
43 Correspondência do juiz municipal de Órfãos, Theôtonio Gomes Roseira ao Presidente da Província. 21.01.1862. APEB. Seção:Colonial e Provincial. Série: Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.44 Ibid.
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má índole, desordeiro e de [maus] precedentes, e alguns dos indivíduos que [compunham] a ditapatrulha eram de reconhecida incapacidade para o mister de policiar: patrulha que deveria serpoliciada, policiosa, como um acinte à moralidade pública!”.
Os desmandos afloravam também as divergências entre os dirigentes locais. Observa-se que o Juiz Municipal denunciou
o Delegado de Polícia de ter posto no comando da patrulha “um homem de má índole, desordeiro e de [maus] precedentes”. Da
mesma forma, acusou o delegado de ter formado a patrulha com indivíduos “de reconhecida incapacidade para o mister de
policiar: patrulha que deveria ser policiada”.
Da acusação do Juiz Municipal pode-se até concluir que os ditos indivíduos que compunham a patrulha eram também
homens em débito com a polícia e a justiça do lugar. Da mesma forma, conclui-se que ao Juiz Municipal nada restava, senão
queixar-se ao Presidente da Província, assinando o atestado de incapacidade de resolver problemas de tal natureza e lamentar o
crime, resultante do desmando, cometido pela patrulha no exercício de “garantir a ordem” do processo eleitoral:
“Semelhante patrulha desenfreada, tendo encontrado na referida rua o infeliz Aprígio, bruscamente ordenou-lheque lhe fizesse pronta entrega de um facão que trazia à cintura e como não fosse de pronto obedecida, enfurecidacolocou-se sobre ele, e o assassinaram, não obstante haver o infeliz corrido, o que foi presenciado por pessoasfidedignas desta Vila, tanto que sofreu uma facada nas costas.!” 45
No entanto, parece que o Juiz Municipal se identificava com algum grupo político no Município, pois justificou o não-
agravamento da situação “graças à prudência de alguns indivíduos que pertencem ao lado liberal desta Vila”.46 Possibilidade
provável, uma vez que o cargo de Delegado de Polícia era destinado a alguém de confiança de algum chefe local.
É certo, porém, que as práticas do mandonismo não se manifestam somente nos períodos de eleição,
estão imersas nas correntes do cotidiano da vida política e social durante todo o século XIX e também nos
anos republicanos. Apenas se expandem nesses momentos, sendo instrumentalizadas em benefício dos
grupos locais que disputam o controle dos órgãos da administração pública do Município.
Estando esses homens no comando dos postos de mando não é muito difícil imaginar o quanto era
arbitrário e pessoal o exercício dessas funções, que, pelo seu caráter, deveriam ser exercidas de forma pública
e impessoal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO, J. M. de. Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995.
FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. 3. ed. São Paulo: Kairós Livraria Editora Ltda, 1983.
OLIVEIRA, F. A. M. de. Famílias proprietárias e estratégias de poder local no século passado. Revista brasileira de história, São
Paulo, v. 9, nº 17, p. 65-85, set. 88 / fev. 89.
QUEIROZ, M. I. P. de. O mandonismo local na vida política brasileira. In: __. O mandonismo local na vida política brasileira e
outros ensaios. São Paulo: Editora Alfa Ômega, 1976a.
45 Correspondência do juiz municipal, José Cardoso da Cunha, ao Presidente da Província. 01.10.1876. APEB. Seção: Colonial eProvincial. Série: Judiciária. Vitória. 1874-1889. Maço 2648.
36
46 Ibid.