Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Caderno Lab. Xeolóxico de LaxeCoruña. 1995. Vol. 20, pp. 213-229
Grutas do Maci~oHespérico de Portugalcomfaunas de grandes mamíferos plistocénicos.
Breve síntese
Caves of the Hesperic basement from Portugalwith Pleistocene large-size mammals.
A review
CARDOSO, J. L.
This study presents a review of the large-sized mammals from the UpperPleistocene of portuguese caves situated at the Hesperic basement. At themoment, only two caves are known: the Lorga de Dine cave (Vinhais, Braganc.;a)and Escoural cave (Montemor-o-Novo, Ivora). Both were excavated at thesixteens and no stratigraphic or horizontal records are published. The presenceofCrocuta crocuta intermedia at Lorga de Dine allows us to suppose an occupationofthe cave during the Mindel-Riss; in that case, it will be the oldest cavity withpalaeontological interest known in Portugal. Nevertheless, we must admit therole ofthe Iberian Peninsula as a refuge-territory, that couldjustify the presenceof several species, later than is known elsewere in Europe.Escoural cave - the most occidental cave with parietal pleistocene art - gave theonly Cuon alpinus europaeus remains known at present in Portugal.Considering the large majority or even the totality of the remains relate to theLate W urm, the ungulates associations ofLorga de Dine and Escoural suggestthe existence oflarge open spaces, with aurochs and horses, with spaced arborealareas, with red deers.
Palavras chave: Hesperic basement; Pleistocene; large-sized mammals;caves
CARDOSO, J. L. (Centro de Estudos Geológicos. Faculdade de Ciencias e Tecnologia da Universidade Novade Lisboa. Quinta da Torre, 2825 Monte de Caparica. Portugal).
214 Cardoso, ]. L.
1. INTRODU<;ÁO
Sao apenas duas as grutas situadas noMaci~o Hespérico com restos de vertebrados plistocénicos, conhecidas até ao presenteem Portugal (Fig. 1).
Naturalmente, foram as condi~oes geológicas favoráveis que determinaram a
conserva~ao de tais restos; em ambos oscasos, trata-se de cavidades cársicas, abertasem calcários paleozoicos embora de idadediferente. Foi a explora~ao de materiais deconstru~ao, que conduziu asua descobertaacidental, justificando ulteriores escava~6es,embora estas nao tenham sido exaustivas e,muito menos, até ao presente alvo depublica~6es adequadas a importancia dosrespectivos achados arqueolóicos. Apenas osmateriais paleontológicos - aqueles queinreressam particularmente a este estudo foram, recentemente, objecto de estudo
sistemático (CARDOSO, 1993).
2. OS SÍTIOS
2.1. Lorga de Dine (Vinhais, Bragátlga)
A explorac;ao de calcários para o fabricode cal esteve na origem da descoberta fortuita desta gruta, a qual é conhecida de hamuito pela popula~aoda pequena povoa~aode Dine.
Do ponto de vista geológico, trata-se decalcarios compactos do Silúrico, desenvolvendo-se em estreita faixa sinuosa, intercalada em metassedimentos (xistos negros, quartzitos, liditos) do Silúrico inferiordo sub-domínio centrotransmontano da
Galiza média-Tras-os-Montes oriental.As coordenadas geográficas sao: 41:
54' 30" lato Norte; 6: 6° 55' 40" long. Oestede Greewich. Dista menos de 4 km da
fronteira luso-espanhola.
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995)
A tradi~ao local, que faz corresponder agruta a «casa de urna moura encantada»,que teria asua guarda prodigiosas riquezas(potes de ouro encantados), justificouo iníciodas explora~6es, em 1964, sabendo-se quetais tradi~oesusualmente estao relacionadascom presen~as humanas pretéritas. Asescavac;oes prosseguiram nos anos seguintes, por urna equipa da Sociedade Portuguesa de Espeleologia (HARPSOE & RAMOS,1885), tendo-se entao identificado diversassalas e galerias. Porém, nenhuma planta oucorte estratigráfico foi, até ao presente publicado; do mesmo modo, o riquíssimoespólio arqueológico, de varias épocas,permaneceu por estudar. Tanto quanto foipossível averiguar pela observa~ao directados materiais, a gruta teria sido utilizadaessencialmente no Calcolítico, comonecrópole.
Pelos motivos apontados, nao obstanteas marcac;6es conservadas em cada urna daspec;as do espólio paleontológico, torna-semuito difícil destrin~aras plistocénicas dasmais modernas, cuja presen~a se pode, emparte, relacionar· com oferendas funerárias,contemporaneas da instala~aoda necrópolecalcolítica. Deste modo, apenas foram valorizados os restos das espécies extintas nofinal do Plistocénico, e aqueles que possuíampatina ou mineraliza~aoidénticaadaqueles.
Tentativa de data~ao pelo radiocarbononao resultou, por falta de colagéneo nosossoS. A aceitarmos que os restos faunísticosincontestavelmente plistocénicos correspondam a um único episódio de ocupa~ao
da'gruta, a abundancia de rinoceronte (Dicerorhinus hemitoechus) (Fig. 2) indica idadeanterior ao final da última glaciac;ao; comefeito, em Portugal, esta espécie nao se encontra registrada depois do pleniglaciário wurmiano, verificado cerca de 20000a 18000 BP.
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995) Grutas do Macifo Hespérico 215
o~~~
t?Z2l..~~lZ~
~_~V!- ~"- []]]
~.. ~~~-~
Quaternário
Terciário
Cretácico
Jurássico
Triásico
Carbonífero
DevónicoOrdovícico
CambricoPrecambrico
Rochas ígneas
_____ Falhas principais
Fig. 1. Localizac;ao das duas grutas estudadas no território portugués: Lorga de Dine (1); Escoural (2).
216 CardosoJ ]. L. CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995)
Fig.2. Dentes isolados de rinoceronte (Dicerorhinus hemitoechus) da Lorga daDine.
A interpreta~ao sugerida pelo espectrofaunístico identificado deverá atender aslimita~6es já apontadas, bem como a própriarepresentatividade dos restos recolhidos (quenao ultrapassam 70 exemplares). Entre osUngulados -grupo que maior interessereveste para a reconstitui~ao paleoambiental- as espécies mais abundantessao as seguintes (CARDOSO, 1993).
Bos primigenius - 24 %
Cervus elephus - 10 %
Equus caballus - 23 %
Esta associa~ao, especialmente a doauroque ao cavalo, sugere a predominanciade espa\os abertos, pouco florestados eacidentados, cobertos de gramíneas(pradarias), onde aquelas espécies poderiamacircular livremente. Tal situa~ao éincompatível con a verificada do lado norteda gruta, onde os profundos vales reduzem
os interflúvios a píncaros isolados. Para oslados de sul e sueste, os relevos atenuam-se,dando lugar a urna paisagem menos imponente, condizente com os domínios preferidos por aquelas duas espécies. Tal ambienteé compatível com o correspondente ao outrogrande ungulado presente, o rinoceronte(Dicerorhinus hemitoechus)J ao qual corresponde a representa~ao mais importante emjazidas portuguesas (sete exemplares, ou 9,8% do total dos restos). Enfim, o veado sugeremanchas florestais, certamente circunscritas' entrecortando urna paisagem aberta eárida.
Até ao presente nao se recolheu qualquertestemunho da presen~a humana na gruta,no decurso do Plistocénico. Deste modo,considerando a numerosa e diversificadarepresenta~ao de carnívoros, que teriamaproveitado agruta como refúgio, éplausívelque os restos de herbívoros referidos correspondam a animais capturados por estes.
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995) Grutas do Macifo Hespérico 217
Fig. 3. Mandíbula incompleta de Crocuta crocuta intermedia da Lorga de Dine (in CARDOSO, 1994).
218 Cardoso, ]. L. CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (995)
+.10
+.09
+.08
+.07
+.06
+.05
+.04
+.03
+.02
+.01
o
-.01
-.02
-.03
-.04
-.05
-.06
-.07
..J<t:;)1-
.U
g ~I..J ....~
CJ) (,)
<t e
~ ~Iw ....a: ~w uLL o00
//
//
/
" ..............
"
//
//
//
/
AI \
I \I \
\ I \\ I \\ I \\ I \
'\ 1~ \\\ I
, 1/\!IIt
1
---
//
//
//
/
\\\\\\\\\\\
DMD P2 DVL DMD P3 DVL DMD P4 DVL DMD DVL DMD lamina DMD para.proto DMD proto
1Intervalo de variac;;ao de Crocuta crocuta actualJazidas portuguesas
Larga de Dine (mandíbula 115 t)
+++ Larga de Dine(s/n, 20Sp,113d,204t)
(n =1!;)í 16)
Fig. 4. Diagrama de diferen~aslogarítmicas, evidenciando as diferen~as entre a mandíbula de Lorgade Dine e os dentes isolados da mesma jazida, bem como da totalidade das jazidas portuguesas,no respeitante ao tamanho.
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995)
Entre os carnívoros, a ocorrencia maisinteressante é a de Crocuta crocuta intermedia,urna subespécie arcaica de hiena das cavernas, a qual se afirmou plenamente no decursodo penúltimo interglaciário, no Sudoestefrances (BONIFAY, 1971). Este táxoneencontra-se representado por urna hemimandíbula direita (Fig. 3), com a série jugalconservada, constituindo o único testemunhoidentificado até ao presente em Portugal(CARDOSO, 1994). A principal característica que o diferencia do morfotipowurmiano é o tamanho, muito menor que odeste. Tal diferen~aéde aceitar, considerandoa constancia e homogeneidade com que severifica em popula~6es numerosas erepresentantivas, como adas grutas de LunelViel, no sul da Fran~a,do início do penúltimo interglaciário, cujos materiaisconsubstanciaram a identifica~ao destemorfotipo (BONIFAY, 1971). De acordocom os escassos elementos paleontológicosdisponíveis, a subespécie intermedia acantonar-se-ia no referido período interglaciário,sendo substituídapor urna hiena das cavernaspróximo do morfotipo wurmiano, no decursodo Riss estando representada, entre outros,pelos restos de Chatillon-Saint-Jean (Drome,Fran~a) (CARDOSO, 1993a).
Sendo evidente a identidade entre amandíbula da Lorga de Dine e homólogas deLunel-Viel (Fig. 4) -que serviram adefini~ao da subespécie- teriamos dereportá-la ao penúltimo interglaciário. Aser assim, a sua ocorrencia,per si, que a grutajá entao se encontraria formada, representando a cavidade cársicamais antiga registadaaté ao presente em Portugal. Tal conclussaodeverá ser, contudo, aceite com reserva. Defacto, há que atender ao papel de zonarefugio, para espécies de há muito desaparecidas além-Pirinéus, desempenhado pela
Grutas do Macifo Hespérico 219
Península Ibérica e, em especial, pela suafachada mais ocidental, representada peloactual território portugues, no decurso doPlistocénico. Talvez o caso mais frisante, atal respeito, seja o da gruta da Furninhaonde, no final do Wurm antigo, se encontraregistada a presen~a abundante de CanisLupus Lunellensis e de Hyaena hyaena prisca,subespécies características, no Sudoestefrances, do Mindel ou do Mindel-Riss(BONIFAY, 1971).
Com efeito, a substitui~ao de faunas degrandes vertebrados, decorrente de sucessivasaltera~6es climáticas, efectuada alémPirinéus de forma regular e sem sobressaltos,terá conhecido na Península Ibérica maiorcomplexidade. Independentemente da épocaa que a mandíbuladaLorga de Dine perten~a,a longevidade da subespécie encontra-sedemostrada no terri tório peninsular.Conhecida desde o Plistocénico médio, nabacia de Guadix-Baza (ALCALÁ & MORALES, 1989), terá sobrevivido naCatalunha - Cova d'en Mollet 1, Servinya,Girona (MIR & SALAS, 1976), atinguindo,dubitavivamente, o último interglaciário, aatendermos a men~ao a esta espécie nosdepósitos aluvionares de Pinilla del Valle Madrid, cujos restos, porém, jamais foramdescritos ou caracterizados (ALFÉREZ etal.,1982).
La Lorga de Dine, está também presenteogrande morfotipo wurmiano, Crocuta crocutaspelaea, a que pertencem alguns destesisolados (Fig. 4) (CARDOSO, 1993). Taisrestos comprovam a ocupa~ao da cavidadeno decurso da última glacia~ao,época a quepertencerao a larga maioría dos restos. Entreestes, é de referir tres grandes carnívoros, oleopardo (Panthera pardus), o leao das cavernas (Panthera (leo) spelaea) e o urso (Ursusarctos), os quais evidenciam a ocupa~ao da
220 Cardoso, ]. L.
gruta por grandes predadores, como anteriormente se disse. Tanto o leopardo como oleao das cavernas encontram-se sempreescassamente representados, embora a suadistribui\ao geográfica seja vasta, noterritório hoje portugues, o que concordacom a suas características de grandespredadores; correspondiam-Ihes vastosterritórios povoados por pequeno númerode indivíduos. Na Lorga de Dine, estaorepresentados, respectivamente, por dois eum exemplares ósseos.
Em ressumo, podemos entrever no conjunto de grandes mamíferos plistocénicosdaLorga de Dine, urna ocupa\ao diferenciadada cavidade; a mais antiga, remontará aépoca antewurmiana, estando representada,seguramente, por apenas urna espécie. Amais recente, a que corresponderá a parterestante da fauna, encontra-se documentadapor urna associa\ao diversificada de grandespredadores, responsáveis pela captura dediversos herbívoros, cujos restos para a grutaeram ulteriormente transportados. O homemnao terá ocupado a cavidade no decurso doPlistocénico, nao obstante frequentar aregiao, como documentam as gravuras decavalos, situadas no Douro internacional,perto de Freixo de Espada aCinta (JORGEet al., 1981). Foram integradas no Estilo 11de Leroi Gourhan (GOMES, 1994),correspondendo ao Solutrense, época degrande espansao da arte franco-cantábrica.
2.2. Gruta do Escoural (Montemor-oNovo, Évora)
O segundo sítio que, na parte do Maci\oHespérico actualmente em territórioportugues, revelou testemunhos de vertebrados plistocénicos é a gruta do Escoural,descoberta acidentalmente em 1963, no
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995)
decurso da explora\ao de pedreira. Tal comoa Lorga de Dine, trata-se de urna cavidadecársica, muito ramificada, com numerosasgalerias (Fig. 5), abertas em calcários cristalinos, atribuídos ao Cambrico inferior,interestratificados em micaxistos, leptinitos,gnaisses e anfibolitos (A. B. Carvalhosa,levantamentos geológicos inéditos).
A entrada primitiva, representada actualmente por duas estreitas aberturas,situava-se do lado oposto a actual, a qualcomunica directamente para urna grandesala (Fig. 6) que em determinada época doPaleolítico constituía o fundo da gruta.Contudo, a entrada actual existiria tambémem época paleolítica, como adiante se referirá.
As suas coordenadas sao as seguintes:38° 33' O" long. Oeste de Greenwich.
As escava\oes, iniciadas logo em 1964prosseguiram, até final da década de 1960;priviligiou-se a explora\ao de grande salajunto da actual entrada, onde se indentificouurna notável necrópole neolítica (SANTOS,1971; ARAÚJO & LEJEUNE, 1995;ARAÚJO et al., 1993); os corpos, algunsdepositados em decúbito, eram acompanhados de numeroso espólio. As deposi\oesencontravam-se cobertas, a data dadescoberta, por um manto estalagmítico.No entanto, o que mais celebrizou estagruta, foi a descoberta de arte paleolítica,transformando-a no santuário rupestre maisocidental da Europa e a única ocorrencia dogénero em Portugal (SANTOS, 1964;SANTOS et al., 1980).
Identificaram-se diversas fases naexecu\ao de pinturas e gravuras (GOMES,1994):
- urna primeira fase, solutrense,integrável no Estilo 11 de Leroi-Gourhan,encontra-se representada por animais e símbolos, pintados a vermelho e negro;
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995) Grutas do Macifo Hespérico 221
Fig.S. Planta da gruta do Escoural (in GOMES el al., 1991).
222 Cardoso, ]. L. CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995)
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995)
- urna segunda fase, pertencente aoEstilo III daquele arqueólogo, remontandoao Magdalenense, está representada porgravuras zoomórficas de pequenas dimens6es, por vezes apenas finamenteesbo~adas, ocorrendo em sectores poucovisíveis, e acompanhadas de símbolos geométricos, especialmente os reticulados;
- urna terceira fase, atribuível aoMagdalenense final ou a transi~ao para oEpipaleolítico é corporizada, também, porgravuras muito finas, quase imperceptíveis,organizadas em sinais geométricos ondeavultam os reticulados.
Apesar da sucessao estilística identificada, a gruta-santuário -e talvez por issomesmo- nao foi ocupada de forma nítida emuito menos contínua, no decurso do Paleolítico superior. Dessa época, apenas seidentificaram escassos artefactos (GOMESet al., 1990): um fragmento de folhasolutrense de sílex, de talhe bifacial, e urnazagaia incompleta na base, de osso, talvez damesma idade. Urna concha perfurada deLittorina obtusata, para servir de elemento deadorno; urna primeira falange de veado comduas perfura~6es para suspensao; e, por último, urna tíbia de cavalo cuja diáfise foireaproveitada como superficie passiva, sobre a qual se prepararam matérias moles,poderao ser, igualmente, solutrenses.
Tal escassez de testemunhos da presen~a
humana, além da razao aludida, resulta, poroutro lado, da intensidade com que osgrandespredadores frequentavam agruta, frequenciaobviamente incompatível, como na Lorgade Dine, coma a presen~a humana. Destemodo, teremos de aceitar urna alternanciada ocupa~aoda gruta. Os testemunhos humanos mais antigos remontan ao Paleolíticomédio; trata-se de urna abundante indústriasobre pequenos blocos de quartzo filoneano;
Grutas do Macifo Hespérico 223
os restos animais mais antigos pertencerao,também, a tal época; como no Lorga deDine, salienta-se a presen~a do rinoceronte(Dicerorhinus hemitoechus), bem como a doleopardo (Panthera pardus) e a do leao dascavernas (Panthera (leo) spelaea), táxones cujapresen~a em território portugues, naoultrapassa, de acordo com os conhecimentosactuais, 20000 BP (CARDOSO, 1993).Entre os testemunhos faunísticos de carnívoros que poderao ser, com maior probabilidade, mais recentes, contam-se os de hienadas cavernas (crocuta crocuta spelaea) ,constituindo por vezes leitos de ocupa~ao
contínuos, representados essencialmente porcoprólitos (Fig. 7), abundantes na sala pertoda actual entrada, a qual teria, também,funcionado em determinadas épocas do Paleolítico superior. Assim sendo, podemosconsiderar que a sua ocupa~aoé mais recentedo que as das galerias adjacentes. Urna vezmais, tal como na Lorga de Dine, a falta deregistos cronoestratigráficos impede maiorrigor, porém, algumas datas radiocarbónicasrecentemente obtidas, após o re-início dostrabalhos de campo, em 1989, parecem corroborar anteriores afirma~6es. Com efeito,disp6e-se de um conjunto de datas, urnas doPaleolítico médio, outras do Paleolítico superior, designadamente para a zona decomunica~ao daquela sala com o exterior,entretanto colmatada (SILVA et al., 1993).
Urna das ocorrencias faunísticas maisinteressantes registadas nagruta do Escouralé a de Cuon alpinus europaeus (CARDOSO,1992). Trata-se de carnívoro muito raro nosinventários europeus do Plistocénico superior, extinto antes do final da últimaglacia~ao. Deste modo, a sua ocorrencia nagruta do Escoural poderá ser coeva dasespécies anteriormente referidas,
224 Cardoso, ]. L.
provavelmente desaparecidas em territórioportugues antes de 20000 BP.
A presenc;a deste táxone encontra-seregistada na Europa desde o Riss (grutas doObservatoire, e Isturitz, entre otras). Amaioria das ocorrencias pertence ao últimointerglaciário eaparte da derradeiraglaciac;ao(até cerca de 30000 BP), podendo relacionarse a sua extinc;ao com a degrada\ao climáticaocorrida no decurso do Wurm recente.
Na gruta de Rascaño, recolheu-se restoem nível do Magdalenense 111, correspondendo a mais recente ocorrencia europeiacom contexto estratigráfico bem conhecido(ALTUNA, 1981). Tal ocorrencia vem,assim, refor\ar, a fun\ao de área-refúgiodesempenhada pela Península Ibérica paradiversas espécies extintas anteriormente emterritórios extrapeninsulares.
O resto recuperado na gruta do Escoural-fragmento de osso mandibular, conservando o último pré-molar eparte do primeiromolar inferior (Fig. 8)- mara o límitemeridional da distribui\ao europeiaplistocéncia da espécie, conhecida até aopresente. A regiao afasta-se, porém, pelassuas características, daquelas onde, actualmente, a espécie habita, na Ásia Central eOriental, onde priviligia os domíniosmontanhosos e florestais. Há que atender,porém, a eventuais modificac;oes na suadistribuic;ao geográfica natural, induzidaspelo Homem, fenómeno bem conhecido emoutras espécies.
Um ensaio de reconstituic;ao das características climáticas e paleoecológicas da áreaenvolvente da gruta do Escoural, no decursoda última glacia\ao, depara com as mesmase decisivas limita\oes, anteriormente apontadas para o caso da Lorga de Dine: o desconhecimento da proveniencia estratigráficados materiais, impeditivo da considera\ao
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (995)
de urna ou várias associac;oes faunísticas deépocas diferentes.
Considerando que o conjunto pertencetotalmente o Wurm recente, mesmo o deépoca mustierense, atendendo a provávelmodernidade das indústrias respectivas,tipologicamente semelhantes as da gruta daFigueira Brava (Arrábida, Setúbal), ondeforam datadas de certa de 3000 BP(ANTUNES, 1990/1991); CARDOSO,1993), as características paleo-ambientaisfornecidas pela fauna, para este dilatadoperíodo de tempo, podem ser obtidas atravésde representac;ao das tres espécies malSfrequentes de ungulados, a saber:
Cervus elaphus - 21 %
Equus caballus - 20 %
Bos primigenius - 7 %
A atribui\ao destes materlalS aoPlistocénico é, nalgunas casos, problemática. Atendeu-se, tanto as profundidades derecolha, invariavelmente registadas em cadape\a bem como apatina e mineralizac;ao queostentam, muito diferente da verificada nosmateriais neolíticos.
A referida associac;ao sugere um climasuficientemente húmido para suportarmanchas florestais, favoráveis a presenc;a doveado, pontuando zonas abertas, do tipopradaria parque arborizado, povoadas porcavalos e auroques -alguns destes dosmaiores reconhecidos em jazidas portuguesas- que encontrariam, nos relevos suavesda regiao, condic;oes propícias a vida emmanada.
A ocorrencia das referidas espécies nointerior da gruta -a par do rinoceronte,Dicerorhinus hemitoechus, já referido -explica-se, sobretudo, pela sua captura pelos carnívoros mencionados anteriormente, tendo
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (995) Grutas do Macifo Hespérico 225
Fig. 7. Fragmento de placa estalagmítica da gruta do Escorial, conservando parte de cúbito e coprólitode Crocuta crocuta spelaea.
226 Cardoso, ]. L. CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (1995)
Fig.8. Fragmento mandibular de Cuon aJpinus europaeus da gruta do Escoural, com P/4 e por~ao deMIl direitos (in CARDOSO, 1992, PI. 1).
CAD. LAB. XEüL. LAXE 20 (995)
em considera~aoa escassez da presen~ahumana, contrastando com a abudanciadaqueles. Com efeito, o Escoural foi a grutaque, em território portugues, mais restos deleopardo (Panthera pardus) forneceu: 18exemplares, correspondendo a 4,6 % dototal dos restos recolhidos.
3. CONCLUSAO: LORGA DE DINEE ESCOURAL: SEMELHANC;AS EDIFERENC;AS
Muito afastadas geograficamente-constituem, mesmo, os extremossetentrional e meridional da distribui~aodegrutas em território portugues com faunasplistocénicas sao mais as semellan~as que asdiferen~as que se podem observar entre asduas grutas em apre~o.
Além de corresponderem as duas únicasocorrencias cársicas em calcários paleozóicos,evidemciam-se diversos paralelismos, unsextrínsecos outros intrínsecos.
Entre os primeiros, salienta-se acoincidencia de terem ambas sido escavadasna década de 1960, mediante a realiza~ao denumerosas campanhas plurianuais as quais,infelizmente, permaneceram no essencialinéditas. SÓ muito recentemente tallacunafoi em parte colmatada no respeitante aoEscoural. Nao foi publicada a estratigrafiaobservada, em ambos os casos, tal como naose valorizou a posi~ao dos materiais nasrespectivas camadas, apesar de as escava~6es
terem, aparentemente, recorrido ao métodoestratigráfico.
As duas grutas correspondem a rede desalas e galerias, de época provavelmentemais antiga que a generalidade das grutasexistentes na bordadura mesosóica. Comefeito, é de salientar em ambas a presen~a dorinoceronte (Dicerorhinus hemitoechus) , espécie
Grutas do Macifo Hespérico 227
que nao terá ultrapasado 2000 BP noterritório portugues, tal como outras,igualmente presentes, como o leopardo(Panthera pardus) e o leao (Panthera (leo)spelaea), A especificidade destas duas grutas,no contexto das que continham restosfaunísticos plistocénicos encontra-se,também, sublinhada, pela ocorrencia detáxones únicos, no corcernente ao territórioportugues. Trata-se, para a Lorga de Dine,de Crocuta crocuta intermedia, cuja presen~a
sugere ocupa~aoda cavidade em época antewurmiana; porém, a aceitarmos o papel deárea-refúgio desempenhado pela PenínsulaIbérica no decurso do Plistocénico superior,é de admitir a sobrevivencia daquelasubespécie sem que possa afirmar, porém, asua coexistencia com o grande morfotipoespeleano típico. No concernente ao Escoural,de salientar a ocorrencia de um resto de Cuonalpinus europaeus, espécie também muito rara,extinta na Europa antes do fim do Wurm.
A abundancia de carnívoros em ambas asgrutas sugere que estas foram, sobretudo,ocupadas por predadores gregários (Crocutacrocuta spelaea), ou mais ou menos isolados(Panthera (leo) spelaea, Panthera pardus), quepara aqueles refúgios transportariam partedas suas presas, constituídas, sobretudo, porgrandes herbívoros.
O espectro de ungulados, globalmentereportado ao W urm recente, indicacondi~6espaleoecológicas e climáticas semelhantes; astres espécies mais abundantes sao as mesmas-veado, cavalo e auroque- sugerindo aexistencia~ em zonas adjacentes, de espa~os
abertos, pontuados por manchas florestaisesparsas.
Enfim, as duas grutas foram ocupadas,na Pré-história recente, por importantesnecrópoles. A deliberada escolha de estasduas cavidades como lugares de sepul-
228 Cardoso, ]. L.
tamentos colectivos nao será estranha á sua~ingularidade e raridade, nas respectivasregi6es onde se localizam, merce decondicionalismos diversos que, acima detodos os outros, sao de carácter geológico.
Considera-se, deste modo, tarefaprioritária, no seguimento da explora~ao eestudo do conteúdo paleontológico exumadonestas duas grutas do Maci~o Hespérico,
BIBLIOGRAFIA
ALCALA, L. & MORALES,]. (1989) - Los carnivorosdel Pleistoceno medio de Cullar de Baza - 1 eHuiscar - (Cuenca de Guadix-Baza). In Geologia yPaleontologia de la Cuenca de Guadix-Baza (M. T.Alberdi & F- P. Bonadonna, edts.). Trabajos sobreel Neogeno- Cuaternario, 11, p. 215-222.
ALFEREZ, F.; MOLERO, G.; MALDONADO, E.;BUSTOS, V.; BREA, P. & BUITRAGO, A. M.(1992) - Descubrimiento del primer yacimientocuaternario (Riss-Wurm) de vertebrados con retos humanos en la provincia de Madrid (Pinilladel Valle). COL-PA, 37,p. 15-32. Editorial Universidad Complutense, Madrid.
ALTUNA, ]. (1981) - Restos sseos del yacimientoprehistorico del Rascaño. In El Paleolitico superior de la Cueva del Rascaño, Santander (G.Echegaray, I. Barandiaran et al., Edts.). Centro deInvestigación y Museo de Altamira, 3, p. 223-269.
ANTUNES, M. T. (1990/91) - O HomemdagrutadaFigueiraBrava (ca. 30000 BP). Contexto ecológico, alimenta~ao, canibalismo. Mem. Acad. Cienciasde Lisboa, 31, p. 489-536.
ARAU]O, A. C. & LE]EUNE, M. (1995) - Gruta doEscoural: necrspole neolmtica e arte rupestrepaleolmtica. Trabalhos de Arqueologia, 8, 252 p.IPPAR, Lisboa.
ARAU]O , A. C.; SANTOS, A. I. & CAWE, N.(1993) - Grutado Escoural- a necrspole neolmtica.Actas do 1.°: Congresso de Arqueologia Peninsular(Porto, 1993), 2, p. 51-90.
BONIFAY, M.-F. (1971) - Carnivores quaternairesdu Sud-Ouest de la France. Mem. Mus. natn. Hist.nat., Paris, N. S., 21 (2), p. 43-377.
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995)
que se venham a efectuar levantamentossistemáticos de cavidades homólogas, existentes em depósitos carbonatados, de épocasdiferentes, especialmente do Cambrico inferior, no Alentejo, e do Silúrico na regiaoduriense e transmontana, as únicas que, nosoco paleozóico do território portugues, saosusceptíveis de conservarem enchimentosplistocénicos com potencial interessepaleontológico.
CARDOSO, ]. L. (1992) - Cuon alpinus europaeusdans le Plistocénico du Portugal. Ciencias daTerra (UNL), 11, p. 65 -76.
CARDOSO, ]. L. (1993) - Contribuifao para oconhecimento dos grandes mamíferos do P listocénicosuperior de Portugal. Disserta~ao de doutoramentoapresentada' Universidade Nova de Lisboa. Cámara Municipal de Oeiras, 567 p.
CARDOSO,].L.(1993a)-LaHyénedes«Oubliettes»de Gargas, Crocuta crocuta spelaea (Mammalia,Carnivora).Bull. Mus. natn. Hist. nat., Paris,4sir.,15, section C, n. 1-4, p. 79-104.
CARDOSO,]. L. (1994) - Crocuta crocuta intermedia (M. de Serres, 1828) (Mammalia, Carnivora)no Plistocénico de Portugal. Comunico Inst. Geológico e Mineiro. Lisboa (no prelo).
GOMES, M. Varela (1994) - Escoural et Mazouco.Deux sanctuaires paleolithiques du Portugal. LesDossiers de l'Archeologie, 198, p. 4-9.
GOMES, M. Varela; CARDOSO,]. L. & SANTOS,M. Farinhados (1990) - Artefactos do Paleolmticosuperior dagrutado Escoural (Montemor-o-N ovo,Ivora). Almansor, 8, p. 15-36. Cámara Municipalde Montemor-o-Novo.
HARPSOE, C. &RAMOS,M. (1985) - Lorgade Dine(Vinhais, Braganga). Arqueologia, 12, p. 202-204.Grupo de Estudos Arqueológicos do Porto.
]ORGE, S. O.;]ORGE, V. O.; ALMEIDA, C. A. F.;SANCHES,M.]. &SOEIRO, T. (1981) - Gravurasrupestres de Mazouco (Freixo de Espada á Cinta).Arqueologia, 3, p. 3-12. Grupo de Estudos Arqueológicos do Porto.
CAD. LAB. XEOL. LAXE 20 (1995)
MIR,A. & SALAS, R. (1976) - Tres nuevos carnivorosdel yacimiento cuaternario de la Cova d'en Mollet1, Servinyá (prov. de Girona). Inst. Inv. Geol. Dip.Prov. Barcelona, 31, p. 98-123.
SANTOS, M. Farinha dos (1964) - Vestígios depinturas rupestres descobertos na gruta do Escoural. O Arqueólogo Portugues, S. 2, 5, p. 5-47.
SANTOS, M. Farinha dos (1971) - Manifesta<;6esvotivas da necrópole da gruta do Escoural. Actasdo 11 Congresso Nacional de Arqueologia (Coimbra,1971),1, p. 95.
SANTOS, M. Farinha dos; GOMES, M. Varela &
MONTEIRO, ]. Pinho (1980) - Descobertas de
Grutas do Macifo Hespérico 229
arte rupestre na gruta do Escoural (Ivora, Portugal). Altamira Symposium, p. 205-242. Madrid.
SILVA, A. C.; OTTE, M.; ARAU]O, A. C.; CAWE,N.;LEOTARD,].M.LE]EUNE,M.;LACROIX,P. & COLLIN, F. (1991) - A gruta do Escoural,novas perspectivas para o seu estudo e valoriza<;ao.Actas das IVJornadas Arqueológicas da Associafaodos Arqueólogos Portugueses (Lisboa, 1990),p. 173-181.
Recibido: 21/6/95
Aceptado: 29/9/95