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1 a 13 de dezembro de 2015cinemas 1 e 2
confira a mostra completa:
osambapedepassagem.com.brfacebook.com/mostraosambapedepassagemConsulte a ClassifiCação indiCativa dos filmes na programação
acesse www.caixacultural.gov.br | Baixe o aplicativo Caixa Cultural
Curta facebook.com/CaixaCulturalriodeJaneiro
CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultu-
ral brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60
milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos
culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado
para exposições de artes visuais, peças de teatro, espetácu-
los de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em
todo o território nacional, e artesanato brasileiro.
Os eventos patrocinados são selecionados via Programa
Seleção Pública de Projetos, uma opção da CAIXA para tor-
nar mais democrática e acessível a participação de produ-
tores e artistas de todas as unidades da federação, e mais
transparente para a sociedade o investimento dos recursos
da empresa em patrocínio.
A mostra “O Samba pede passagem” selecionou filmes
que relacionam o cinema e o samba e possuem importância
histórica; seja pelos registros raros dos primórdios do gênero
musical, ou pela relevância à época em que foram lançados.
Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e di-
fundir a cultura e retribui à sociedade brasileira a confiança
e o apoio recebidos ao longo de seus 154 anos de atuação
no país, e de efetiva parceira no desenvolvimento das nossas
cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco.
Pede investimento e participação efetiva no presente, com-
promisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar
os melhores resultados para o povo brasileiro.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
A
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“E muito bem representado
Por inspiração de geniais artistas
O nosso samba, humilde samba
Foi de conquistas em conquistas”
Vale crer, a bem da verdade, que quando Cartola, junto com
Carlos Cachaça, concebeu os versos acima – da canção Tempos
Idos – não enxergava os “geniais artistas” do samba apenas
como os compositores que, com letra e harmonia, fizeram o
gênero perpetuar-se da maneira que sabemos hoje. Cartola
atenta para um manifesto do samba como caminho para o
reconhecimento. O samba traria de volta ao seu movimento
central, e para além dele, aqueles que antes foram afastados
da ventura, excluídos do mapa de fluxo. Aqueles que só po-
diam realizar suas aptidões artísticas longe do centro burguês
da capital. Afastados pelo dinheiro e pela cor da pele, seria
nos morros e bairros distantes do subúrbio que formariam o
seu movimento.
Cartola e Cachaça narram com saudade um sentimento
inaugurador. E deixemos de lado o tão propagado e simplista
termo “samba de raiz”, em troca de uma ideia de momento
seminal, que assimila várias referências e, por conseguinte,
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várias raízes. Do samba como proposta agente. A simplicidade
pioneira, cheia da elegância que o fez rei dos terreiros. Uma
sofisticação singela (por mais contraditório que isso possa pa-
recer), que organicamente o assimilou como carro-chefe da
cultura popular. Que vem do povo e vai ao povo. Do malan-
dro de terno de linho ao príncipe da Inglaterra, do bacharel
ao bicheiro, uma instituição altamente democrática que trans-
forma e é transformada.
Esses tais artistas geniais, elevados pelos mestres, se
destacaram ao perceberem o samba não só como vértice da
canção popular, mas como um movimento interessantíssimo
para se contar histórias, chorar e sorrir o amor, descrever o
espaço e almejar o empoderamento. Artistas o fizeram arte, o
fizeram manifestação. Viveram seus movimentos. Apontaram
direções e fizeram história. Dentre os muitos que o descre-
veram, que o vivenciaram, que o criaram com inspiração e
dentre os que observaram, descobriram, exploraram, expan-
diram, alguns encontraram o samba através das lentes.
Foi graças a essa relação que estabelecemos a proposta
dessa mostra. A ideia veio da troca constante entre dois ami-
gos de longa data que permeiam em suas vidas os dois po-
los. Num cineclube, surgiu a ideia de construir essa leitura.
Vieram indagações: de que maneira o cinema testemunhou o
samba? Como essa relação tão mágica se estabeleceu ao longo
do tempo? Debatíamos pelo prazer da troca, pelo testemunho
do universo e da vivência alheia. Isso é o motor de nossas
vidas. Referências distintas que se completam. E é tão extra-
ordinário perceber que não só o cinema observou o samba,
mas foi agente ativo dele e o integrou de maneiras diferentes
aos distintos movimentos que fazem da sétima arte uma rede
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de possibilidades tão fecunda. Abre-se ainda mais o leque de
interpretações quando passamos a entender não só que dife-
rentes movimentos realizaram diferentes leituras do samba,
mas também como distintos cineastas imprimiram e vislum-
braram essa força de movimento popular, cria de Eleguá, à
sua maneira, ao seu olhar.
O Cinema Novo, as chanchadas, o cinema marginal, os
documentários pós-retomada, os líricos experimentalismos
carnavalescos, tudo fez parte de um encontro entre artes.
Assim como o encontro desses dois amigos que, juntos, pen-
saram em tornar pública a união de olhares, o casamento en-
tre as propostas. As forças que agiram entre si para construir
poesia. Assim, Leon Hirzman apresenta Nelson Cavaquinho
no seu cotidiano solitário, circundado daqueles para quem
e por quem sua música era feita; Nelson Pereira dos Santos
faz de Grande Otelo a representação máxima do compositor
de samba brasileiro, ludibriado pela indústria fonográfica;
Rogério Sganzerla esboça diferentes facetas do Mocinho da
Vila, Noel Rosa, encarando-o como um objeto lúdico de estu-
do cultural e social - desse e de outros séculos do progresso.
Além dos muitos títulos que apresentam resgates, perfis,
leituras e fábulas relacionadas ao mundo do samba, a mostra
ainda contará com três mesas que traçarão caminhos temáti-
cos distintos.
A primeira, “A História Social do Samba”, com o historiador
e escritor Luiz Antônio Simas e o compositor, poeta e produ-
tor cultural, Hermínio Bello de Carvalho, faz uma jornada
pelas origens. Assim, partimos do quintal de Ciata, passando
pela “Santa Trindade” (Pixinguinha, Donga e João da Baiana),
pelas histórias da Pequena África, pela polêmica de Pelo
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Telefone, pela turma do Estácio, pelas primeiras escolas, pelo
rádio e seus grandes ícones. Simas contando a história des-
ses e outros momentos, e Hermínio dando seu depoimento
de testemunha ocular da convivência com alguns dos perso-
nagens mais importantes do nosso compêndio: Clementina,
Aracy de Almeida, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho.
A segunda mesa, “Samba, força de subversão”, conta com
a professora de Letras da UERJ Giovanna Dealtry e com o
professor de Filosofia da UFRJ Bernardo Oliveira para traçar
a influência do gênero enquanto força social, representação,
paixão, mudança, revolução, arte e construção de arquétipos.
Esboça um debate em torno da ideia de nacionalidade, tão
difundida nisso tudo. Passando pelos “malandros”, pela fo-
mentação das escolas e sua representatividade no ato de fazer,
nascer, ensinar e perpetuar; até chegar aos herdeiros atuais
das narrativas de revolta, do sentimento de pertencimento e
da mudança social propostas pelo samba seminal. A Lapa de
hoje, a Lapa de outrora, o rap, o funk.
A última mesa, “Noel, a Vila mostrou que faz samba tam-
bém”, conta com o jornalista e escritor da biografia de Noel
Rosa, João Máximo e o cantor e pesquisador Alfredo Del-
Penho, para uma descontraída aula cantada, onde serão nar-
radas as peripécias e histórias das canções emblemáticas do
Poeta da Vila.
Para completar, teremos a exibição do raríssimo “O Rei do
Samba”, filme que resiste em fragmentos e estabelece um per-
fil cinematográfico do compositor Sinhô e a oficina infantil
Burucutum, administrada pelos músicos Pedro Amorim
e Oscar Bolão que, usando um grande mapa todo feito de
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instrumentos, brincarão com as células rítmicas e melódicas
dos diferentes tipos de música popular presentes de norte a
sul do país.
Convidamos todos a abrir os olhos e atentar os ouvidos:
o samba pede passagem para contar, através do cinema e da
tradição oral, os capítulos de sua história.
Gabriel Meyohas e ThiaGo orTManCuradores
A casa da Tia Ciata: espaço de cultura
Por luiz anTonio siMas
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Lugares são espaços de construção de memórias, culturas, for-
mas peculiares de se experimentar a vida e abordar o mundo.
Pensemos nisso considerando também o fato de que as cultu-
ras oriundas da diáspora áfrica — aparentemente destroçadas
pela fragmentação trazida pela experiência do cativeiro — se
redefiniram a partir da criação, no Brasil, de instituições asso-
ciativas (zungus, terreiros de santo, agremiações carnavales-
cas etc.) de invenção, construção, manutenção e dinamização
de identidades comunitárias. A união entre estes dois pontos
talvez consiga contemplar um pouco da importância que a
casa da Tia Ciata teve para a história do samba, do Rio de
Janeiro e da cultura brasileira.
Falar da Tia Ciata é, sobretudo, destacar a importância
mais ampla das tias baianas no ambiente da Pequena África,
um berço por excelência do samba carioca. Estas tias eram, de
modo geral, senhoras baianas que vieram para o Rio de Janeiro,
exerceram lideranças comunitárias — ancoradas muitas vezes
no exercício do sacerdócio religioso — e criaram redes de pro-
teção social fundamentais para a comunidade negra. Além de
Ciata, podemos destacar nomes como os de Tia Prisciliana (mãe
de João da Baiana), Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Veridiana e
Tia Mônica (mãe de Carmem da Xibuca e de Pendengo).
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Em relação à trajetória da mais famosa delas, Tia Ciata,
cabe ressaltar que a história e o mito dialogam o tempo inteiro,
sendo difícil estabelecer alguma fronteira entre estes dois cam-
pos. Em um ambiente marcado pela força das culturas orais,
aquelas em que o sentido do que é falado é mais relevante que
a precisão dos fatos, esse cruzamento é ainda mais vigoroso.
As informações mais precisas que temos indicam que
Hilária Batista de Almeida, a Ciata, nasceu em 1854, na Bahia,
transferindo-se para o Rio de Janeiro pouco depois de com-
pletar vinte anos. O que se conta sobre Ciata no mundo do
candomblé é que ela teria sido iniciada, ainda na Bahia, pe-
las mãos do lendário Bangboshê Obitikô. Radicada no Rio
de Janeiro, ocupou a função de Iyakekerê (mãe pequena) na
casa de João Alabá, babalorixá com casa aberta na Rua Barão
de São Félix, na Zona Portuária, e figura fundamental para a
construção de laços associativos entre a comunidade negra do
então Distrito Federal.
Vale destacar que a distinção entre o sagrado e o profano
não é algo que diga respeito às culturas oriundas das áfricas
que aqui chegaram. O que se percebe o tempo inteiro é a
interação entre essas duas dimensões. A Tia Ciata sacerdotisa
do candomblé é, ao mesmo tempo, a festeira que transformou
a sua casa em um ponto de encontro para que, em torno de
quitutes variados, músicos (profissionais e amadores) e com-
positores anônimos se reunissem para trocar informações
e configurar, a partir dessas trocas, a gênese do que seria a
base do modo carioca de se fazer o samba. João da Baiana,
Pixinguinha, Sinhô, Donga, Heitor dos Prazeres e tantos ou-
tros conviveram intensamente no endereço mais famoso da
história da música do Rio de Janeiro.
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A experiência civilizatória da casa da Tia Ciata mostra
também que a história do samba é muito mais que a trajetória
de um ritmo, de uma coreografia, ou de sua incorporação ao
panorama mais amplo da música brasileira como um gênero
seminal, com impressionante capacidade de dialogar e se re-
definir a partir das circunstâncias.
O samba é muito mais do que isso. Em torno dele, circu-
lam saberes, formas de apropriação do mundo, construção de
identidades comunitárias, hábitos cotidianos, jeitos de comer,
beber, vestir, enterrar os mortos, celebrar os deuses e louvar
os ancestrais. Tudo isso que se aprendia e se ensinava na Rua
Visconde de Itaúna, 117.
Luiz Antonio Simas é mestre em história social pela
universidade Federal do rio de Janeiro e autor, dentre
outros livros, do Dicionário da História Social do Samba,
em parceria com nei lopes.
A CURADORIA INDICA: Cariocas – músicos da cidade, de ariel de bigault
Couro de Gato, de Joaquim Pedro de andrade
Nossa Escola de Samba, de Manuel horácio Gimenez
Pixinguinha, de João Carlos horta
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Sambas do Estácio,a mina de ouro dos rádios e gravadoras
Por ViCTor niGro solis
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O cantor Francisco Alves já os procurava havia algum tempo.
Estava de volta às gravações desde que Frederico Figner o
chamara, no ano anterior, em 1927, para cantar e registrar al-
gumas “chapas” de disco. Fizera sucesso, mas suas ambições
eram agora maiores, o tal do rádio começava a engrenar e se
apresentava como um espaço de divulgação bastante atraen-
te. Estava ali o meio ideal para alavancar de vez sua carreira.
Precisava de novos materiais de trabalho e fontes, isto é, de
novos compositores e, quem sabe, de um estilo musical ino-
vador, que caísse nas graças de seu público.
Desde a última Festa da Penha, em fins de outubro passa-
do, no entanto, ouvira falar de uns jovens que, assim como ele,
por lá estiveram e, no meio de toda aquela agitação, cantaram
algumas canções em um ritmo um pouco diferente do até
então feito pelos músicos da geração anterior, conhecidos por
baianos. Curiosamente, esses garotos novos diziam que aque-
las canções também eram sambas, mas a cadência diferente
intrigava todos os que tiveram seu primeiro contato com a
novidade musical.
Um amigo descobrira e, no fim da tarde, lhe confidencia-
ra que vieram do bairro do Estácio. Chico Alves nem pesta-
nejou e logo se prestou a procurá-los. Afinal, já conhecia por
aquelas bandas o jovem flautista Benedito Lacerda, que, sabi-
damente, gostava de um bom furdunço e provavelmente esta-
ria envolvido na criação desse novo estilo. Entrou em seu au-
tomóvel conversível, de capota abaixada e se dirigiu àquelas
20
cercanias. Parou primeiramente no tradicional reduto dos
batuqueiros, o Café Pavão, mas o movimento andava baixo e
poucas pessoas por lá se encontravam. O indicaram, contudo,
o Bar Apolo, ali pertinho (“aqueles meninos vivem cantando
por lá também, até tarde”), e essa foi a direção tomada.
Lá chegando, a batucada rolava solta. No repertório, co-
nhecidos sambas de Sinhô, Caninha, Donga e do pessoal da
Cidade Nova, até que começaram a cantar um samba inédito
para impressionar Chico Viola, futuro “Rei da voz”. Todos por lá
já tinham letra e melodia na ponta da língua. Benedito coman-
dava com sua flauta imortal. Os outros garotos, próximos dos
seus vinte anos – os quais, depois, Chico Alves ficaria saben-
do se tratarem de Baiaco (Osvaldo Vasques), Edgar Marcelino
Passos (o mano Edgar), Heitor dos Prazeres (também chama-
do Lino do Estácio), Getúlio Marinho (o Amor), João Mina e
sua cuíca, Bucy Moreira (neto de tia Ciata), Nilton Bastos e
Ismael Silva –, lá estavam, tocando violão e uns instrumentos
percussivos de variados tamanhos. Além do tamborim, cha-
mou-lhe atenção instrumento maior, feito de lata de manteiga
cilíndrica, reforçada por aros de madeira, tendo nele um couro
esticado e pregado, no qual eram aplicadas fortes batidas com
uma baqueta, à semelhança de um tambor.
Ao indagar do que se tratava, logo lhe responderam com
um nome que o intrigou. “Surdo”, disseram, “foi criação do
Bide”. Francisco já ouvira falar do sambista Bide, apelido de
Alcebíades Barcellos, irmão do também sambista Rubens
Barcellos, o mano Rubens, mas não o conhecia pessoalmente.
Sabia ser dele uma canção que falava sobre a malandragem e
não poderia deixar que a oportunidade de gravá-la lhe escor-
resse pelos dedos.
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Perguntou por onde ele estava, mas ninguém soubera res-
ponder. Ao que surge, do outro lado da rua, de saída do Café
do Compadre e rumo à zona do mangue, Sílvio Fernandes,
o Brancura, lhe dizendo que provavelmente estaria na casa
de Armando Marçal, pois precisava que este lhe pusesse a
letra em uma de suas melodias, mas que combinara de retor-
nar àquelas cercanias mais tarde. Francisco Alves não tinha
tempo a perder e pediu aos rapazes que avisassem a Bide que
ele queria tratar de negócios, e que, portanto, o encontras-
se à meia-noite na Gafieira Estrela d’Alva, no Rio Comprido.
Ouviu mais uns dois sambas e partiu.
O acordo para a gravação do samba A malandragem foi
firmado já naquela madrugada. No selo do disco, entraria o
nome de Francisco Alves no lugar de Bide, em troca de al-
guns trocados e da divulgação pelo rádio, visando a futuras
parcerias. A partir daí, outras tantas músicas seriam troca-
das, compradas, ou até mesmo os cantores teriam seus nomes
incluídos na parceria das composições, como forma de pro-
movê-las. O samba tornara-se uma mercadoria que poderia
trazer recursos financeiros àqueles rapazes pobres, de ampla
maioria negra, do Estácio. Não precisava ser apenas uma for-
ma de diversão.
Essa relação seria vantajosa para os cantores, gravadoras
e emissoras de rádio, que garantiriam um manancial prati-
camente inexplorado. Francisco Alves tratou rapidamente de
firmar um acordo de exclusividade com aquele que viria a
ser o maior nome daquela região, Ismael Silva, fazendo muito
sucesso. No entanto, o prestígio das principais estrelas dos
espetáculos não seria semelhante ao conquistado pelos com-
positores populares. Um ou outro dos músicos daquela região
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conseguiria maior espaço nas gravações, caso de Benedito
Lacerda, o qual constituiria, com sua flauta imortal e músi-
cos de primeiríssima linha, o “Regional do Benedito Lacerda”
(rebatizado, com sua saída, de “Regional do Canhoto”). Mais
tarde, ele faria dupla com o maior nome da música popular
brasileira, Pixinguinha, tornando-se inclusive parceiro dele
(numa dessas trocas de parcerias por outros ganhos) e reto-
mando a carreira do santo mestre do choro, que trocaria sua
flauta de prata pelos contrapontos inovadores de seu saxofone.
Bide e outros conseguiriam empregos regulares, ou seriam
eventualmente chamados para trabalhos nesses meios, espe-
cialmente na função de ritmistas, arte que dominavam com
maestria aqueles garotos, responsáveis ainda pela fundação da
“Deixa Falar” (Escola de Samba ou Bloco? Tanto faz...). Outros se
encaminhariam para a festa carnavalesca, rodando por diver-
sas escolas. Caso de Heitor dos Prazeres, que terminaria a vida
cuidando de seu ateliê próximo à antiga Praça Onze, berço da
região que ficaria mais tarde conhecida por “Pequena África”.
Todavia, o caminho da marginalidade e da contravenção
seria costumeiro. São bastante conhecidas histórias de alguns
deles metidos em armações para enganar trouxas, ou ingênuos,
e pegar para si mesmos as composições dos outros; de Brancura
comandando a movimentação de alguns prostíbulos do man-
gue e morrendo louco por decorrência da sífilis; da morte
precoce de Nilton Bastos por tuberculose; de Ismael Silva se
livrando da prisão por ser o delegado fã de suas músicas; da
morte de mano Edgar por um desafeto do jogo do bicho, no
início da década de 1930. O sucesso artístico seria para poucos.
Inegável, contudo, seria a importância que a música pro-
duzida por esses garotos teria para a consolidação do ritmo
23
Alô, Alô, Carnaval, de Adhemar Gonzaga
24
do samba tanto nas ruas, botequins, festas e casas de espetá-
culo, quanto nas emissoras de radiodifusão e gravadoras. Ao
longo do tempo, ganhariam novas roupagens, orquestrações
e arranjos, sendo, volta e meia, quase descaracterizados por
maestros e cantores pouco familiarizados com o balanço na-
tural da síncope do samba.
Ouçam, por exemplo, a versão de Se você jurar, de Ismael
Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves – provavelmente co-
autor por conta de seu contrato com Ismael – pelo próprio
Francisco Alves e Mário Reis. Comparem com todas as outras
subsequentes e digam se não há uma diferença visível – ou
melhor, audível – em seu ritmo, talvez fruto do desconheci-
mento dos cantores sobre o tempo da canção. Ou comparem o
arranjo melodioso de Pixinguinha para os Diabos do Céu em
Você chorou, de Brancura, com o burocrático de Ando sofren-
do, de mano Rubens, por Simon Bountman para a Orquestra
Odeon, ambos também interpretados por Francisco Alves, e
digam se não é preciso ter conhecimento de causa. Não basta
ter inspiração, o samba se faz com vivência.
Victor Nigro Solis é professor de sociologia no ensino
médio, doutorando em ciências sociais pelo PPCis-uerJ
e músico nas horas vagas.
A CURADORIA INDICA:Alô, Alô, Carnaval!, de adhemar Gonzaga
Berlim na batucada, de luiz de barros
Rio, Zona Norte, de nelson Pereira dos santos
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De Pequeno a Grande Otelo, o homem que nasceu sorrindo
Por Gabriel Meyohas
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O cenário: o velho Cinema 1, na Avenida Prado Júnior, em
Copacabana. Reino dos mais intrigantes discursos artísticos.
Seiscentas cadeiras dispostas na direção da tela, contemplan-
do o suor dos iniciantes. O ano: 1975. Entra nosso Otelo. Os
sessenta anos o perseguem, querendo bater ponto. Mas não
hoje. Hoje era dia de voltar a Uberabinha. Dia de se reencon-
trar com suas travessuras de petiz. Dizer aquele “que queres?”
gostoso do menino Eustáquio para as diabruras que jamais
abandonaram seu espírito. Estavam sempre ali, de menino a
velho. Mas na alma, o mesmo peralta de olhos enormes e sor-
riso cativante. O pequeno Tião jamais abandonara o Grande
Otelo. Uberabinha estava em cada canto do Rio de Janeiro.
Hoje, ali no Cinema 1, faria parte do público. Era dia de
bater as palmas que normalmente eram pra ele. Rir da sur-
presa. Chorar as lágrimas que, em outras ocasiões, brotavam
por sua causa. Sai da casa do parceiro Herivelto e, chegan-
do na Prado Júnior, compra o bilhete pra ver O Garoto, do
Carlitos. Uma sessão especial. O filme estreara de verdade
em 1921, e nessa reexibição do clássico (uma praxe no cine
do Shatovsky), Otelo se encanta novamente com o pequeno
Jackie Coogan. O filme não chega nem à metade e ele já corre
para o banheiro. Lava o rosto. Fecha os olhos. No passado, en-
contros e palcos, caretas e gargalhadas, tragédia e farsa. Mais
atrás ainda, há cinquenta anos, a primeira vez que encontrou
com aquele menino da tela: foi ali que pensou em ser artista.
Aquilo era pra ele! Sabe-se que duas inspirações o fizeram
28
Otelo: o menino Jackie Coogan e o filé a cavalo. Motivos jus-
tíssimos para ser tudo o que foi. Fazer rir e chorar como
aquele menino, ser o astro, o centro das muitas atenções e,
no fim, ainda ter um trocado pra comer um filé acavalo? Não
existiria coisa melhor!
“Mineirinho da Gema”, como se proclamava, o Otelinho
da Companhia Negra de Revistas, o entertainer do Cassino
da Urca, o trapalhão das chanchadas atlanticanas, o como-
vente Espírito de Luz em Rio, Zona Norte, ou a síntese ma-
cunaímica de nossa gente; todos eles sempre foram um só.
O Otelo brasileiro, herói cheio de caráter, fruto daquilo que
mais se vê por aí.
O cineasta Orson Welles em frame do filme Tudo é Brasil, de Rogerio Sganzerla. Welles se encantou com a figura de Grande Otelo em sua vinda ao Brasil.
29
Quando criança, bradava entre os seus desagrupados in-
cisivos centrais a mesma picardia de sua Julieta desguarne-
cida de Carnaval no Fogo (1949). Vale salientar, uma picardia
que reverenciava a inocência. Certa vez, pelos idos de 1927,
entrevistado pelo O Jornal, o maestrinho da gozação, com
doze anos, foi questionado do porquê da alcunha shakespea-
riana e respondeu de prontidão: “Porque adoro Shakespeare e
quero ser o primeiro negro a encarnar Otelo. Só não o inter-
pretei ainda porque é impossível encontrar uma Desdêmona
da minha idade e da minha cor!”.
Um palhaço da cidade, um herói dos sorrisos. Otelo era
artista e regurgitava em fantasia o que observava no asfal-
to nu. Fez-se marginal, fez-se malandro, fez-se poeta, fez-se
sambista. Ouviu, quando criança, do maestro Filippo Alessio,
que na idade certa teria “physique du rôle” para o papel que lhe
deu o nome. Negro, alto, forte, boa voz. Mas não teve. De tudo,
só continuou negro mesmo. Teve foi um metro e cinquenta
de disposição e presença de palco pra fazer todas as outras
coisas que quisesse, com desenvoltura para ser da maneira
que quisesse.
Na Companhia Negra de Revista, Otelo, ainda criança,
deu o ar da graça em São Paulo. Um menino prodígio em
espetáculos para grandes públicos. Antes de morrer, encuca-
va sua cabeça a possibilidade de, ali pelos anos 20, durante
uma de suas apresentações, ter sido assistido por Mario de
Andrade. Que o escritor assistiu à Companhia é certo. Mario
escrevia críticas para o jornal Estado de São Paulo na época.
Mas teria o modernista se impressionado com a notável in-
terpretação do pequeno negrinho? Seria aquele menino de
Uberabinha, que falava em inglês e francês no palco, cheio de
30
graça, a inspiração para a obra definitiva lançada pelo escritor
anos depois? Era Macunaíma de fato Otelo antes de se saber
Otelo? Essa conjectura rondava a imaginação do velho ator,
que jamais conseguiu atestar factualmente a possibilidade.
Corta. O novo cenário é o Cassino da Urca, com sua cor-
tina de espelhos, quatro palcos de grande estrutura. Todo um
requinte que não permitia ao nosso herói, mesmo com sua
presença no/de palco, ao menos nos primeiros anos, entrar
pela porta da frente. O jovem artista tinha que entrar pelos
fundos. A cor da sua pele era uma questão de relevância e
preconceito para os cretinos promotores de seus espetáculos.
Otelo levava isso a sério. Não era de se dobrar ao terrível ra-
cismo do século em que vivia. Mas o otimismo era um de seus
dons. O progresso vinha aí, Noel alertava em Vila Isabel. O
nosso Tião sabia disso. Andava com esses sabedores da vida.
Bebia no Café Nice e era figura considerada na Gafieira Elite.
Os gigantes lábios sorviam álcool “com farinha”, dizia ele. Viu
a Praça Onze acabar, mas não sem antes chorar por ela junto
com Herivelto em Praça Onze, um samba que imortalizou o
carnaval de 1942.
Otelo viveu no olho do furacão. Viu o pandeiro ser crime
de vadiagem e virar mundo. Viu o americano Orson Welles
vibrar com seu gênio brasileiro, e fazer com ele um filme que
acabou por nunca ser assistido. Dormiu em Pensão de Corda
e foi o Sancho Pança do Quixote Paulo Autran. Flashes muitos
de uma vida dedicada à arte e ao riso.
Corta. Ele está na sacada, de peruca e batom. É Julieta.
E lá embaixo está Oscarito, o seu Romeu. Um dos maiores
trabalhos da dupla. Surpreendentemente, Otelo, dias antes,
tinha sofrido a pior desgraça de sua vida. O suicídio de sua
31
esposa, Lúcia Maria, que levou consigo o filho dos dois, o
pequeno Chuvisco. O acontecimento foi um baque para o
nosso Tião. Disse José Lins do Rego, à ocasião: “sua más-
cara se rasgou em público”. A tragédia fez-se presente como
nunca antes, e Otelo, apesar do escudo de representação que
possuía, desabou ao se defrontar com a morte daquele seu
pedaço de vida.
Arraigado no chão de teatros, cenários e picadeiros, a tra-
gédia arquitetou um confronto traumático com a realidade
exterior com que ele era obrigado a lidar. A desventura era
presente na vida de Otelo de maneira tão expressiva quanto
a comédia que representava nos palcos e pras câmeras, mas
ele sempre soube contorná-la. Seguiu, nessa mistura agridoce,
com o dom de encantar que a vida lhe deu. Foi, para Bressane,
O Rei do Baralho em 73; e o mestre de cerimônias em Cariocas,
Músicos da Cidade, da francesa Ariel de Bigault. Tinha essa
característica de mostrar o Brasil, seu e de todos. E de se per-
ceber nos tipos com quem convivia. Era síntese pura. A saber,
Grande Otelo no filme Tudo é Brasil.
32
Otelo dizia que não era um artista dedicado, que, ao invés
disso, fazia tudo ao natural. O que acabou, no fim das contas,
se revelando um baita equívoco. As duas características eram
vivas no menino de Uberabinha.
De Pequeno a Grande Otelo, Sebastião Bernardes de
Souza Prata, que (permitam-me uma fuga) nasceu sorrindo,
tinha o condão da arte e o jeitinho para a sobrevivência. Era
choro com a mesma facilidade que era riso. E não deixa de ser
significativo que o elo perdido do sentimento nacional seja
uma figura negra que, mesmo sem poder entrar pela porta
da frente, venceu a discriminação que tentou lhe fazer menos
gente; pôs fim às mazelas da vida de muitos; e atingiu em
cheio o coração de quem o testemunhou. Muitos filés a cava-
lo para Otelo, expoente máximo da alma brasileira!
Gabriel Meyohas é cineasta, formado pela PuC-rJ,
roteirista, produtor cultural e pesquisador de cultura
popular.
A CURADORIA INDICA:Rio, Zona Norte, de nelson Pereira dos santos
Cariocas – músicos da cidade, de ariel de bigault
Natal da Portela, de Paulo Cesar saraceni
Berlim na Batucada, de luiz de barros
Tudo é Brasil, de rogério sganzerla
33
34
Batucada de bamba,patologiabonita dosamba
Por bernarDo oliVeira
35
Há uma forte expressão política na criação e desenvolvimento
das “escolas de samba”, os antigos “terreiros de samba”, suce-
dâneos dos quilombos. Eram laboratórios de práticas coletivas,
usinas de expressões culturais do povo negro, herdeiros diretos
dos filhos, netos e bisnetos de escravos. Não se tratava de uma
organização ideológica, mas de uma política de remodelação
cultural, único caminho pelo qual os negros poderiam driblar
o racismo institucional e conquistar, de fato, uma vida melhor
— vale lembrar o primeiro sindicato brasileiro, a Companhia
dos Homens Pretos, mais conhecido como Resistência, que,
além de atuar na área sindical, organizava o rancho carnava-
lesco Recreio das Flores, de onde sairia, mais tarde, o Império
Serrano.
Tratava-se, pois, de uma política de ocupação perigosa,
uma aposta de alto risco duplamente experimental, desdobrada
no tempo e no espaço. Migrar para as ruas se configurava como
uma atitude deliberadamente política, um exercício de resis-
tência que se afirmava como uma utilização determinada das
ruas. Aqui, o negro brasileiro inventava um espaço, o “espaço
público”. E o ensinava ao poder.
Mas faltava o artifício sedutor, o feitiço que propiciaria a
conexão dos indivíduos, dispersos, em um só cordão — ali-
nhados não em função de uma obrigação moral ou de uma
pátria, mas em uma espécie de transe, de êxtase. Isso só foi
possível graças a uma atividade civil de importância capital na
história do Brasil: o ato de criação musical, a confecção da can-
ção, a elaboração do batuque, a interpretação vocal particular,
36
a criação de uma harmonia, uma melodia, um tema, uma téc-
nica de apresentação que possibilitasse unir a comunidade de
forma coesa.
Quase em paralelo à Semana de 22, nasce, então, o samba
do Estácio, a invenção do samba urbano carioca: notas mais
longas, andamento mais rápido, cadência marcada, inspirada
na batucada da umbanda. A instrumentação particular, elabo-
rada por personagens fundamentais, como Bide e João Mina
— o primeiro, responsável pela invenção do surdo e, dizem, do
tamborim; o segundo, aquele a quem se atribui a invenção da
cuíca. A dança espontânea, calcada em uma mistura de umbi-
gada e roda de batucada. A inclusão do canto das baianas, do
coro. A invenção do bloco organizado, a “escola de samba”. As
harmonias mais simples e diretas de compositores como Ismael
Silva, Marçal, Bide, Heitor dos Prazeres, Brancura, Baiano,
Baiaco, Amor, Getúlio Marinho, Bucy — todos eles gravados
pelo alta tecnologia da época e veiculados pela nossa incipien-
te “indústria cultural”. Um contexto de extrema particularida-
de, marcado por aquilo que, nos termos criados por Wallace
Lopez, pode ser definido por uma “geossambalidade” particu-
lar. Movimentos de uma vanguarda como até então não se vira
naquela região e que viria a produzir efeitos concretos sobre a
noção de cultura brasileira, a ponto de figurar como pilar da
“identidade nacional”.
Em sua representação oficial, há certo consenso de que o
Samba exprime o ethos da brasilidade, a síntese dos costumes
do povo brasileiro, de que é um traço fundamental da nossa
identidade cultural e “nacional”. Essa visão relaciona-se com
a apropriação política realizada pelo Estado Novo, a institu-
cionalização que conduz aos desfiles e aos sambas-exaltação,
37
mas também com um certo modelo de compreensão histó-
rica que tem suas raízes no cristianismo. Trata-se, portanto,
de uma concepção de “origem”, através da qual se revelaria
“a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua
identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma
imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo”,
como diria Foucault em suas reflexões sobre a “origem”. Mas
a história do samba guarda seus mistérios, suas especificida-
des: não há raiz, apenas invenção e reinvenção para fins de
festa e renovação da vida.
O samba, portanto, como produto de uma vivência especí-
fica e particular, seja do compositor (Ismael Silva), seja do gru-
po social ao qual pertence (o Estácio). Vivência, isto é, “estar
presente em vida enquanto algo acontece”. Trata-se, assim, de
uma experiência que não pode ser compreendida de maneira
fixa e universal. Um indivíduo se torna o que é através de um
trabalho de cultivo de si mesmo, um cultivo que se dá através
de suas vivências, daquilo a que alguns filósofos gregos chama-
vam pathos – uma noção associada às intensidades dos afetos e
das ações, não à precisão do conceito. Assim, o que constitui a
riqueza do samba é a pluralidade de sambistas e de seus modos
e maneiras de compor, muito diferentes entre si. A patologia do
samba, em resumo, corresponde à patologia do sambista, isto
é, à conexão entre quem ele se torna pelo acúmulo singular de
experiências particulares e suas invenções.
Nesse sentido, o samba não é, como se tornou comum
afirmar, um ethos (“síntese dos costumes de um povo”), mas
um pathos (paixão, excesso, catástrofe, passagem, sofrimento...),
fruto de uma perspectiva única e insubstituível. Samba é menos
algo que “ensina, cura, amplia, diverte e delira” – segundo uma
38
“estética” tomada do ponto de vista kantiano do “fruidor” – do
que vivência, excesso, paixão: em suma, singularidade. O sam-
ba não é metafísico porque, noves fora, ele carece do sambista
e do contexto, como qualquer outra manifestação musical. Para
que emirja a grandeza do samba, é necessário o compositor-ins-
trumentista, que produzirá a transfiguração da forma-samba
em uma pluralidade de expressões “sambísticas”.
O Samba, portanto, não tem raiz, não é um traço originá-
rio, mas de invenção. E o termo “invenção”, aplicado ao contex-
to do samba, desempenha um papel fundamental: desenraiza
o samba toda vez que tentam petrificá-lo em uma sonoridade
estabilizada. Destrói as certezas e abre caminho para o novo. O
samba singular opera como estopim, cujo efeito é compartilha-
do com aqueles que se comprazem com sua batida envolvente
e melodia sofisticada. No entanto, seu eixo produtivo e expres-
sivo não depende da aceitação popular, mas da atividade pato-
lógica do sambista, sempre procurando criar um samba que se
equilibre entre tradição e novidade.
A grandeza dos sambistas consiste no fato de que, ao con-
trário dos políticos e intelectuais da época, já anteviam a con-
cepção segundo a qual as forças populares representam um
potencial de cultivo e criação. Neste caso, o negro inventa o
tempo brasileiro: a cadência do samba, as palavras flutuando
sobre o vai e vem épico e sexual da batucada em dois por qua-
tro, o convite ao chacoalhar do corpo, dos gestos; ao gosto pelo
detalhe das vestimentas (a barra da saia, o chapéu coco), dos
passos da dança (o “coladinho”, o “cruzado”, o “corta jaca”). Um
convite, enfim, à exibição, ao jogo. Uma atividade moralmente
superior, pois já celebra a tal “vida sem catracas”, sem pedágios,
sem cobranças.
39
Os compositores são não apenas responsáveis por suas
canções, mas por esse dispositivo unificador, esse evento que
congraça gente de todas as raças numa mesma emoção, entre o
transe subjetivo e a consciência coletiva: a batucada, a melodia,
o canto coletivo, os passos de dança, a roda de samba.“Essa
Kizomba é nossa constituição”.
Praticamente desprezados na atualidade, os compositores
sustentam até hoje a aura de cada terreiro, até mesmo daque-
les que foram convertidos pelos próprios sambistas em “escolas”,
com o intuito de obter legitimidade e aceitação social. Apesar
de tudo, Paulo da Portela, Martinho da Vila, Silas de Oliveira e
Cartola ainda são lembrados. Neste processo de acomodação a
um determinado estatuto social (do malandro ao trabalhador, do
Terreiro à Escola), a trajetória das escolas de samba em geral, e do
samba em particular, sempre se mostrou ambígua, renovando-se
sempre de maneira conciliatória — como eram nossos ancestrais
Bantus, antropófagos culturais ainda no continente Africano,
bem antes de pisarem na América. A partir dos desfiles temáticos
do Império Serrano, passando pela invenção do “carnavalesco”
(Salgueiro, 65), até chegarmos às atuais Escolas de Samba S/A,
que não resistiram ao processo de comercialização do espetácu-
lo. O caráter político não institucional foi se tornando objeto de
administração, até que restou apenas o aspecto visual, colorido,
do desfile, e a figura do carnavalesco se tornou preponderante,
sobrepondo-se à do compositor.
É o carnavalesco que zela pela excelência técnica do desfile,
é ele quem responde pelo pathos e pelo ethos. As arestas, os es-
critórios de samba-enredo aparam com seu know-how subutili-
zado para fins de reprodução. Neste sentido, à parte as questões
políticas e morais, a Beija Flor foi a escola que melhor soube se
40
encaixar nesse modelo de carnaval imposto pelo grande dinhei-
ro e aceito pela maioria do público, que obriga as escolas a se
adequarem ao modelo Super Escolas de Samba S/A, atravessa-
das por todo tipo de atividade, inclusive as suspeitas.
A percepção da obsolescência do compositor migrou para
o carnaval de rua, protagonizado em sua maioria por indivídu-
os que não conhecem outro modelo de carnaval que não seja
aquele fabricado por carnavalescos, com uma abordagem tea-
tral-espetacular e a difusão massiva das Organizações Globo.
Mas com um detalhe curioso: estes Blocos da Zona Sul e do
Centro, blocos corporativos voltados para a “pegação” e para
as piadinhas grotescas, incorporaram o regime extático dos
primeiros carnavais, bem como a tese da inversão, segundo a
qual o carnaval constituiria o período reservado para inverter
práticas e costumes da vida cotidiana. Contudo, o fizeram des-
cartando a figura do compositor e, em última instância, despre-
zando qualquer tendência inventiva, demiúrgica, posta em prá-
tica por autores geniais como Cartola, Carlos Cachaça, Silas de
Oliveira, Mano Décio da Viola, Darcy, Cabana, Wilson Moreira,
Luiz Carlos da Vila, Zuzuca, Geraldo Babão, Luis Grande, Zé
Catimba e o gigantesco Beto Sem Braço.
Me parece que no carnaval carioca do presente, o que se
afirma são os mesmos preconceitos de sempre — raciais, sexu-
ais —, inclusive em relação ao papel do sambista, do composi-
tor. Algo semelhante se pode afirmar da produção musical do
samba contemporâneo, acomodados sobre as formas e sonori-
dades desgastadas, provenientes do samba dos anos 70, 80 e 90.
Se a história do samba nos mostra uma conexão consisten-
te entre a disposição para a invenção e o ímpeto de remodelação
cultural, percebe-se que o desdobramento mais pungente desta
41
história não corresponde ao samba redundante protagonizado
por Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Dudu Nobre e Casuarina,
enclausurados em um conceito estático do samba. Percebe-se
essa inclinação mais claramente na música protagonizada por
MC Catra, MC Carol, RD da Nova Holanda, entre outros artis-
tas ligados ao funk carioca, oriundos dos guetos negros cariocas,
as favelas. Ainda que sobre outras bases rítmicas e culturais, os
funkeiros, assim como os sambistas do Estácio, conservam o
ímpeto experimental característico das comunidades negras
que habitam o Rio desde o século XVI e o canalizam através de
uma síntese particular de festa, invenção e tecnologia.
PS.: E se, por acaso, alguém procurar no Google a autoria
do clássico É Hoje! e se deparar com créditos ao Monobloco, cor-
rija: É Hoje foi escrita pelos esquecidos Didi e Mestrinho.
Bernardo Oliveira é professor de filosofia, crítico de
música, produtor do Quintavant e do selo QTV.
A CURADORIA INDICA:
Partido Alto, de leon hirzman
Heitor dos Prazeres, de antonio Carlos de Fontoura
Tudo é Brasil, de rogério sganzerla
Onde a Coruja dorme, de simplício neto
Guardiões do Samba, de eric belhassen, belisario Franca e Marc belhassen
Agoniza, mas não morre, de Gabriel Meyohas e Maíra Motta
Nas pegadas de Quelé
Por aïCha baraT
43
“No meio-dia branco de luz uma voz que
aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.”
Carlos DruMMonD De anDraDe, inFÂnCia
“Pé do meu samba,
chão do meu terreiro.”
CaeTano Veloso, PÉ Do Meu saMba
O samba pede passagem, mas também imagem. Quando a
música se faz uma das mais fortes e abrangentes expressões
da cultura brasileira, é esperado que o micróbio do samba
contamine não só o cinema – como comprova esta mostra –,
mas também as artes visuais. Já no final dos anos 50, atenta-
se com um zelo muito maior para as capas de disco, tendo
44
muitas delas, inclusive, sido içadas ao nível de verdadeiras
obras de arte. Afinal, o disco é um ponto crucial na comuni-
cação do artista com o público.
Dentre muitos capistas, há o que foi o mais importan-
te para o samba nos anos 1970. Ao conceber inúmeras ca-
pas1, Elifas Andreato – mestre do traço – sempre buscou se
aproximar dos artistas para os quais criou. E, oportunamente,
fez uma bela carreira num momento em que se consolidou a
aliança das gravadoras e dos músicos com artistas plásticos.
Suas criações buscavam ser uma extensão do projeto do artis-
ta. Certa vez, declarou: “eu sou o porta-voz, fazendo a síntese
numa imagem daquilo que é muito maior”.2
As produções de Andreato desenvolvem uma estética
própria, sempre permeada de grande lirismo popular, como
mostram Nação, de Clara Nunes, Rosa do Povo, de Martinho
da Vila, ou, ainda, Nervos de Aço, de Paulinho da Viola. São
capas que muitas vezes conjugam certa narratividade com
dados biográficos. Andreato sempre buscou uma relação com
os artistas que iria retratar: entre chopes e partidas de sinuca,
saíam as ideias para seus trabalhos. A boemia permeava sua
criação e ele se tornava um colaborador, um tradutor visual
do projeto por trás do disco.
1 Elifas ilustrou mais de 300 capas de vinil. Realizou capas de suma importân-
cia de grandes sambistas dos anos 1960 e 1970: Paulinho da Viola, Martinho
da Vila, Clementina de Jesus, João Nogueira, Clara Nunes, Zeca Pagodinho e
muitos outros. Sua carreira de capista começou quando se tornou responsável
pelo projeto gráfico da coleção em fascículo Historia da MPB, da editora abril.
Vendidos em bancas de revistas, os encartes que acompanhavam as coletâneas
traziam uma diagramação revolucionária para a época.
2 Entrevista concedida ao site Panorama Mercantil: http://www.panorama-
mercantil.com.br/as-gravadoras-foram-sempre-um-empecilho-elifas-andrea-
to-designer-grafico-e-jornalista/ (último acesso em 29/11/2014).
45
Mas é uma capa específica que será a menina dos olhos
deste texto: Clementina e Convidados (1979; Odeon), de
Clementina de Jesus (1901- 1984). Uma capa que foge do óbvio
até mesmo se levarmos em conta a trajetória de Andreato, pois
não se trata aqui de um dos seus famosos desenhos. Uma capa
que intriga pela ausência física da intérprete: “Clementina,
cadê você?”, poderíamos indagar. Num momento em que a te-
levisão estava em alta e em que o público clamava por sempre
ligar um artista à sua imagem, o que temos aqui são marcas,
vestígios, pegadas de pés na terra.
As metáforas visuais do samba se cristalizaram, sem dú-
vida, com muita força nas capas de disco. Foram terreno fértil
para representações diversas da diáspora negra. Andreato foge
do óbvio porque em nenhum momento nos faz deparar com
Elifas Andreato, capa do disco Clementina e Convidados, 1979, Odeon.
46
os símbolos com os quais se convencionou retratar o samba:
o malandro, os Arcos da Lapa, os instrumentos percussivos, a
mulata. Em Clementina e convidados, o que atrai é justamente
a imagem da ausência. O artista se apropria das simbologias
estéticas negras. As pegadas sugerem pés que lá estiveram.
Pés que sambaram, pés que sofreram, que dançaram jongo
nos quintais, que tiveram contato com a terra. E, na capa de
dentro, sandálias de prata: pés que dançaram na gafieira. Ou
desfilaram na Avenida?
Há também, e principalmente, a terra pisada e a ances-
tralidade, a escravidão, o contato primitivo com o solo fértil,
que deu samba. A capa expõe essa terra, referência passada,
presente e futura, remetendo à ancestralidade e ao contempo-
râneo. Pensamos em experiências e memórias de escravidão,
colonialismo, exílio, exclusão racial, práticas religiosas e lega-
dos africanistas que contribuem não só para a elaboração de
um imaginário, mas para a construção de uma identidade, de
um Brasil negro.
Encarte do disco Clementina e Convidados, 1979, Odeon.
47
A título de curiosidade, Clementina gostou tanto da capa
que posteriormente pediu que Elias fosse até ela para gravar
seus pés no barro, pois queria que também fosse feito um mol-
de de seus próprios pés. Sobre sua concepção, o capista diria:
“A idéia do pé na terra é porque ela, uma cantora extraordi-
nária, representa a contribuição mais significativa nas raízes
da música brasileira, que é o samba. O samba que nasce no
terreiro, nas senzalas3”. Ainda que pareça uma criação simples,
a beleza aqui mora nos detalhes, no contraste entre a capa e o
encarte: plantas brotando no solo, o afundamento e a intensi-
dade do relevo no chão sugerem passagem de tempo.
A riqueza visual conjuga-se com maestria com seu conte-
údo sonoro. Esse legado, Clementina trazia em si: uma África
– diaspórica – é evocada na voz e nos cantos, que lhe foram
transmitidos por sua mãe, filha de escravos. Sua voz carrega-
va o sofrimento da ancestralidade. Cristalizou um elo com os
3 Entrevista à Veja SP.
Clementina por Elifas Andreato.
48
antepassados. Encarnou uma ponte entre a Mãe África e a cul-
tura moderna brasileira. Verdadeira enciclopédia de caxam-
bus, lundus, jongos e outros cantos negros, aprendeu os cantos
das senzalas ainda muito pequena. Sua forma de transmitir
esse conhecimento se assemelha à dos griots na África.
Como se sabe, Tina, como também era conhecida, foi des-
coberta tardiamente – com mais de 60 anos – por Hermínio
Bello de Carvalho, numa festa em homenagem à Nossa
Senhora da Penha, na Taberna da Glória, no Rio de Janeiro.
Encantou-se por seu timbre rouco único. Tinha uma voz for-
te, rascante e penetrante, trazia uma mistura de pontos de
umbanda e candomblé, cantos de trabalho, jongos cantados
em banto e músicas de coro de igreja católica. Surgiu para o
mundo num momento inusitado, quando o que dominava as
rádios era a bossa-nova, o iêiêiê. Foi trilhando seu caminho de
artista com participações em trabalhos coletivos, como o Rosa
de Ouro e Canto dos escravos, mas também em discos solos.
Em 1979, seguindo as pegadas de Quelé, fez-se este
disco de peso que reuniu um time de gigantes como Dona
Ivone Lara, Cristina Buarque, Roberto Ribeiro, Clara Nunes,
Martinho da Vila e João Bosco. O time de músicos também
não ficou atrás, com Dino e César Faria nos violões, Jorginho
do Pandeiro, Luna e Eliseu na percussão. O que fica é um
disco que deu samba! “É a alegre coragem de viver do povo
que precisamos imitar, e são as pegadas de seus melhores ar-
tistas que devemos seguir4”, escreveria José Ramos Tinhorão
em 1979, referindo- se ao disco em questão.
4 Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, sábado, 29/9/1979, pági-
na 2 Extraído do livro “Tinhorão – O Legendário” de Elizabeth Lorenzotti,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010
49
A CURADORIA INDICA:Clementina de Jesus – Rainha Quelé, de Werinton Kermes
Heitor dos Prazeres, de antonio Carlos de Fontoura
Em som e em imagem, o disco presta homenagem à sua
origem, ao terreiro, à mandinga, ao negro, à mulata, ao sam-
ba, ao gozo, ao sofrimento, ao pé no chão. Hoje, basta ouvir
as músicas deixadas por Clementina para sentir reverberar a
dimensão de seu legado. Basta assistir a suas apresentações
para sentir a inegável pungência do canto forte da mulher.
Basta isso – e não é pouco, não – para se deixar encantar pela
extasiante e fascinante Clementina.
aïcha Barat é produtora, mestre em história da arte
pela Paris i e doutoranda em literatura, Cultura e
Contemporaneidade na PuC-rio.
50
A vida de Noel Rosa, na visão de Sganzerla
Por Jairo Ferreira
51
Rogério Sganzerla, realizador de alguns dos melhores filmes do
cinema brasileiro (O Bandido da Luz Vermelha/68 e A Mulher de
Todos/69), pelo que deflagraram no processo cultural do país, fi-
cou muitos anos afastado das câmeras (“para não me confundir
com a mediocridade dominante”) e só voltou a filmar quando
filmou O Abismu ou Sois Todos de Mu e não Sabeis, inexplicavel-
mente ainda não lançado pela Embrafilme. Esse mesmo órgão,
de forma curiosa, concedeu-lhe, entretanto, um bom financia-
mento para a realização de Papai Noel Rosa, cujas filmagens se
iniciaram há 15 dias no Rio de Janeiro. Sganzerla veio a São
Paulo rever amigos num fim de semana e se manifestou entu-
siasticamente sobre seu novo filme:
“Noel, gênio total, mestre inconteste da língua, nos faz vi-
brar o que de melhor se produziu em termo de texto – com
uma única exceção nesse século: Guimarães Rosa. A sua perfor-
mance linguística é comparável à de um Euclides da Cunha por
exemplo (e quem mais?). Noel aproxima a noção básica do texto
com a mente livre e, em seus ideogramas e epigramas lapidares,
compõe a nova e natural língua milionária de um Brasil menos
burro e mais profundo”.
“Ao contrário do que se pensa, não há em Noel crítica de
costumes, mas apenas o ritmo adequado à construção física do
carioca. Basta citar suas opiniões, transcritas por um pesquisa-
dor, para perceber que o homem, além de escrever bem demais,
pensa diferentemente e propõe algo que os malandros neuras-
tênicos, egocêntricos e inconsequentes da imensa e necessária
52
roda de samba nacional não pensaram fazer: Noel é um pen-
sador e, nesse sentido, só pode ser comparado a Jimi Hendrix”.
Essa ligação Noel Rosa/Jimi Hendrix pode parecer pouco
ortodoxa aos estudiosos da música popular brasileira, mas não
assusta a quem teve a sorte de assistir ao Abismu em sessão
especial. Nesse filme, Sganzerla utiliza músicas do genial gui-
tarrista do inicio ao fim. E não faltam pontos de contato entre
ambos, que morreram tragicamente na flor da idade. Mas pros-
segue Sganzerla:
“Som natural e pré-historicamente milionário: samba/em-
bolada. Identificação com o subconsciente coletivo através de
uma nova prosa urbana, livre e bem acabada, onde, como em
Hendrix, não se perde tempo em odes à namorada ou suspiros
pretensamente românticos. Não. Noel como Hendrix pretende
mudar a mente contemporânea (I could change your mind; I
don’t live today, maybe tomorrow/ ‘até manhã se Deus quiser;
quem gosta de mim sou eu’).”
Visionário, Hendrix realmente “não viveu em sua época,
talvez amanhã”. Seu som está muito anos na frente de tudo que
se faz hoje em música pop. E Noel Rosa é um caso raro de poeta,
músico e pensador dos anos 30 que continua atual. Tão atual –
ou à frente – que só agora começa a ser redescoberto. E, como
se vê, através do cinema, arte que às vezes aspira a ser musi-
ca (velho e sempre novo ideal: toda a arte aspira a ser música).
Sganzerla sabe disso há muito tempo.
“Feitiço sem farofa, sem vela, sem vintém. Noel, o gênio
– et pour cause – incompreendido. Vitimado por mal-entendi-
do histórico. Noel, o maior criador rimbaudiano, o surealista
mascarado, o provocador de versos, o homem do silêncio e do
ruído brutal, mestre alquímico do repouso e do movimento,
53
da presença e da ausência. Basta estar atento às musicas como
Malandro Medroso e Maria Fumaça, absolutamente cerebrais e
aparentemente “inconsequentes”. Afora a capacidade do impro-
viso e da gesta épica, cartilha do poder que eu me proponho
a decifrar para a grande massa ignara de intelectuais medío-
cres: poucos ou quase ninguém entendeu ao nível da criação da
obra a importância interna de Noel ou Hendrix, aliás, criado-
res comparáveis não somente pela extensão de sua vida curta,
gênios ceifados em plena flor da idade, mas pela quantidade
e versatilidade de sua obra extensa, da capacidade de tentar e
não conseguir repetir-se (ou autoparodiar-se) no verso polido
ao máximo abissal e sempre ameaçador à mente convencional”.
Para interpretar o papel de Noel Rosa nesse filme, que já
consumiu três anos de pesquisas, Rogério Sganzerla escolheu
Joel Barcelos, cuja semelhança física (Noel/Joel) com o poeta é
flagrante. Mas as semelhanças não param aí: Sganzerla também
tem alguns traços noelinos. O cineasta, que já foi jornalista, não
concede entrevista: ele mesmo senta numa mesa da redação
e produz seus textos deflagradores. Termina de dialogar uma
parte da entrevista (melhor será falar em “inter-vista”) e entrega
ao “repórter” o manifesto que se segue:
“Chegou, senhoras e senhores, a hora de abrir o jogo e ins-
talar imediatamente os pingos nos is do panteão da mente li-
vre, isto é, sem medo do novo homem e da nova humanidade.
Chegou a hora de abrir o jogo após um decênio de fidelidade
e pesquisa em todo sentido encampando as verdades históri-
cas de obras verticais que se elevam por altíssimos páramos até
horizontes insuspeitados ou inalcançados pelos outros conti-
dos viventes. Noel ou Hendrix ou a grande obra de arte – do
deslimite da criação total – gênios, jinas sim, propõem tudo o
54
que um imbecil de classe jamais poderá entender. Mas eu, por
exemplo, entendo a burrice e até faço questão que continuem
assim para mais facilmente caírem do cavalo”.
“Noel, gênio total, morreu a quatro de maio de 1937, isto
é, 9 anos antes de eu nascer, pôs em questão toda a necessária
jogada da obra de arte barroca e moderna milenar e milionário
deslimite da criação... Ponho os pingos nos is da historia e, a
partir de agora, ninguém poderá ignorar a máxima importância
desse soberano do verso e do reverso, artista e homem maior
sim, porque a essa altura no equivoco luso-carioca de dividir o
universo da criação da personalidade do artista necessariamen-
te contigente e complementador. Chegou a hora de gritar alto e
em bom som que o maior, feliz ou infelizmente, nessa terra, se
chama Noel Rosa e que ninguém – ele é grande entre os gran-
des (na década de prodigiosa de 30, entre cartola, Larmatine,
Ary e não sei mas quem) – sequer chegou a seus pés...”
“Noel, o gênio, Noel, o pensador. O criador – da condição
oriental de artista, mesmo e principalmente se nascido nas con-
dições adversas do capitalismo ocidental – artista maior, invejado,
explorado, agredido mas exatamente por isso maior ainda”.
“Não me desculpem se pareço apologético, mas para falar de
Noel é assim mesmo, só com o seus companheiros e amigos sin-
ceros intuíram e o povo de Vila Isabel até hoje intui e se refere
a ele: um cara muito inteligente, um gênio – ou como se referiu
Álvaro Moreira, é muito grande esse pequeno Noel.
“E é isso que eu pretendo erigir: uma concepção nada me-
díocre do artista mais original e profundo de todo século, que
em sã consciência só pode ser comparando – pasmem – com
James Marshall Hendrix em tudo, Orson Welles no cinema
ou Shakespeare no texto e na habilidade (isto é, montagem,
55
ideografia do relacional do personagens...), os grandes e tradi-
cionais exemplos exemplares provindos da mesma linguagem
que produziu os gregos da fase áurea, Homero, Shakespeare,
Dante, Cervantes, Camões, Castro Alves, todos eles, indistinta-
mente gênios totais”.
Sganzerla já se desculpou pela apologia, mas nem era
preciso: quem o conhece sabe que ele é assim mesmo – quando
está filmando mergulha de corpo e alma no assunto, como se
tentando reinventar o mundo através de um filme. A pretensão é
grande, mas o assunto também o é: uma vez terminado o filme,
a visão que se tem da música popular brasileira certamente fi-
cará abalada. Isso porque Rogério é um cineasta de terremotos
– terremotos culturais que um momento como a Bossa Nova, por
exemplo, não teve sismógrafos para detectar. E, no entanto, tudo
são coisas nossas, são nossas coisas – já dizia o gênio.
Jairo Ferreira (1945-2003) foi um diretor e crítico de
cinema brasileiro. a primeira publicação do texto acima
tem data indeterminada. em 1993 foi reeditado pela
editora azougue.
A CURADORIA INDICA:
Isto é Noel Rosa, de rogerio sganzerla
Tudo é Brasil, de rogerio sganzerla
Noel por Noel, de rogerio sganzerla
56
Notas sobre “onde a coruja dorme”, por um de seus diretores
Por siMPlíCio neTo
57
Resumo enfim, num texto, muito do que já conversei ao lon-
go dessas décadas de vida do longa-metragem documentário
Onde a Coruja Dorme. São ideias que fui elaborando, desde o
projeto inicial, até muito depois também, em tantos debates
de festivais, cineclubes, entrevistas de divulgação, interpela-
ção de fãs de Bezerra da Silva, de acadêmicos de humanas etc.
Claro que essa é apenas uma visão pessoal, do copesquisador,
corroteirista, e codiretor Simplício Neto. A minha cara colega
em armas, copesquisadora, coroteirista, e codiretora Márcia
Derraik, obviamente, tem a sua, que já externou em outros
lugares. Mas vale notar: o que deu certo nessa obra tem a
ver com o fato de que compartilhávamos, então intensamente,
visões de mundo. E de cinema. E de música. E discutíamos
muito, a cada etapa da feitura, com toda equipe, no doloroso,
mas sempre compensador, processo do consenso. Ou seja, a
maioria das ideias colocadas aqui sei que é dela e de toda
equipe também. Posto que, muitas das vezes, nessas tantas
ocasiões que citei, as proferimos juntos, em comum acordo.
Então, vamos lá.
Eu, Márcia e nosso grupo de amigos mais próximos – os
que comungavam certos ideais juvenis, rodadas de cerveja e
outras mumunhas mais – ouvíamos muito Bezerra da Silva
desde a adolescência. Fãs de rock e rap, Bezerra era a única
coisa que nos parecia mais contemporânea, radical, urgen-
te e urbana em termos de música brasileira naqueles finais
dos anos 80. Isso se repete no discurso de músicos de nossa
geração, como Marcelo D2 e Marcelo Yuka. Bezerra, na ver-
dade, foi quem abriu minha cabeça de vez para o samba e
58
para, depois de adulto, ouvir MPB. E aí, então, conhecer os
grandes sambistas, que antes dele haviam tematizado o coti-
diano da favela, da violência urbana etc. Como Wilson Batista,
por exemplo, que cantara antes, em alto e bom som, que “em
Mangueira não existe delator”.
E qual o interesse maior, a princípio? Nas letras, na narra-
tiva humorada, cáustica e contundente da realidade brasilei-
ra. Fruto de uma visão genuinamente popular, “de baixo pra
cima”, do que era nossa sociedade. Isso sintonizava com a in-
formação nova trazida pelo rap, de que tanto gostávamos, por
exemplo. Chuck D, líder do Public Enemy, havia dito que, nos
EUA, o rap era a “CNN negra”. Pra nós, Bezerra era o “Jornal
Nacional” da favela. Em meio ao auge do Pagode Romântico
nas rádios regadas a jabá, Bezerra simbolizava tanto a resis-
tência do Partido Alto de Raiz, quanto a tradição artística do
realismo estético – linhagem que, mais tarde, seria meu tema
de doutorado em cinema na UFF. Tema que estava na boca
dele, o tempo todo, quando se gabava de não dar bola para
a musa romântica, de não querer nunca vender disco com
canção de amor, pois “eu não posso cantar o amor quando eu
nunca tive, eu sou realista, eu canto a realidade”.
Em 1998, Márcia, cursando Cinema no IACS UFF e eu,
cursando Ciências Sociais no IFCS-UFRJ, obtivemos reper-
cussão no meio com nosso primeiro trabalho juntos. Ela di-
rigindo, e eu ajudando no roteiro e na montagem de “Dib”,
sobre o câmera mor do Cinema Novo, Dib Lutfi – que, de-
pois, nos deu a honra de colaborar no Coruja. Com os prêmios,
piramos. Tínhamos que fazer outro! Pois é. Mas nosso novo
filme seria sobre o quê? Márcia veio com essa: que tal nos-
so ídolo brasileiro da adolescência? E eu completei: mas qual
59
o recorte mais interessante, para além de um documentário
biográfico, um portrait de um popstar marginal, self-made man
imigrante nordestino?
Bezerra chegou de Recife ao Rio cantando coco de embo-
lada, na sombra de Jackson do Pandeiro, e depois se recons-
truiu mil vezes até chegar ao Bezerra que vemos no filme. A
trajetória heróica, pessoal, anterior, do Bezerra daria um ou-
tro filme, quem sabe de ficção, um épico. Nem cabe comentá
-la aqui, portanto. Propus um outro foco, e Marcinha gosta de
brincar, dizendo que foi aí que eu passei a merecer a direção
também. O plot virou o seguinte: ele apenas encarnava uma
persona, a do malandro de boné, cheio de bordões certeiros
como “malandro é malandro e mané é mané”. Só que, por trás
disso, havia um projeto cultural amplo, um projeto de garim-
po intenso, de escalação de uma seleção brilhante de com-
positores, baseado numa meritocracia, feita à moda própria.
Assim, ele buscava encarnar a verdadeira criação popular, ser,
enfim, a voz do morro.
Poucos sabiam, até então, um dos principais segredos do
sucesso de Bezerra: sua incrível equipe de compositores. Gente
como Popular P, Adelzonilton, Walmir da Purificação, Roxinho,
1000tinho, gente cuja inventividade já brilha em seus próprios
nomes, que fazia os fãs rirem só ao ler os créditos de contra-
capa dos discos. Caso mor de Embratel do Pandeiro e Alicate
de Niterói. Todos eletricistas, trocadores de ônibus, mecânicos,
presidiários, policiais, bombeiros, etc., que conviviam com
uma realidade violenta e trágica, e, por isso mesmo, dionisíaca.
Realidade da malandragem, da bandidagem, que os inspiravam
a compor sambas que eram os mais fiéis retratos desse cotidia-
no. Para nós, as letras e a habilidade poética dos compositores
60
do Bezerra tinham que ser as “estrelas” do filme. Para alcançar
isso, pensamos a estrutura em cima dos temas em jogo. O fil-
me seria um tratado audiovisual cuidadoso sobre essa criação,
leitura inexistente na crítica musical da época, que se limitou
a taxar Bezerra de “sambandido” e a ecoar as acusações de que
ele fazia apologia ao crime, a mesma imputada ao gangsta rap
californiano. Buscamos os pontos de vista dos envolvidos no
processo – qual era a motivação por trás dessa retórica poética?
– e os montamos na batida do samba, na prosódia do malan-
dro, do jeito que ele a “pronuncia, com voz macia”. Buscamos
isso tanto no depoimento de cada compositor, como no depoi-
mento do médium que os incorpora, que é o Bezerra. Ele é o
frontman, ele articula esse discurso, junta as peças. Queríamos
fazer, nesse garimpo, um trabalho análogo ao próprio trabalho
do Bezerra. Mostrar a motivação do Bezerra ao escolher cada
compositor, cada letra, cada assunto.
Essa foi a escolha de lógica narrativa: seguir as histórias
que estão nas letras, que narram tensos arcos dramáticos de
personagens redondos, expressando considerações morais,
O malandro Madame Satã, interpretado por Lázaro Ramos, no filme homônimo de Karim Aïnouz, presente na programação da mostra
61
como os fabulistas da antiguidade ou os griots africanos.
Acompanhar os comentários a respeito feitos pelos compo-
sitores, articulados pelo frontman-narrador-xamã-articulador
cultural Bezerra da Silva. E dois eixos surgiram. Um deles,
o da Língua de Congo, como eles chamam. Trata-se do jeito
próprio de contar e de falar, com gíria, bom humor, na levada
do Partido Alto. É a dimensão estética, poética de sua obra. O
outro é o da Lei de Murici, a discussão moral das formas com-
portamentais da favela. O que define ser malandro, ser otário,
ser colarinho branco, ser trabalhador, ser mané é a dimensão
ética, política.
E nossa felicidade é, revendo cada vez o filme, frente
a cada novo público, perceber que, assim como a obra de
Bezerra e de seus compositores, ele só rejuvenesce, se impõe,
e nos esclarece.
Simplício Neto é documentarista e pesquisador de
Cinema, com Doutorado pela uFF. É professor de roteiro
da escola de Cinema Darcy ribeiro e roteirista de
programas de grade da TV brasil.
A CURADORIA INDICA:Onde a Coruja Dorme, de simplício neto
Malandro, termo civilizado, de sylvio lanna
Moreira da Silva, de ivan Cardoso
Madame Satã, de Karim aïnouz
62
o passo adiante do samba torto
Por JuÇara MarÇal
63
“Vou contar do samba da Paulicéia e de sua gente, que é
do tamanho do mundo porque não se acanha de contar as
histórias de seu pedaço de chão de terra firme. Com licença
dos mais velhos, vamos de samba!”
Plínio MarCos
Em 17 de outubro de 2010, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos
e Romulo Fróes apresentaram, pela primeira vez, na Casa de
Francisca, um show em que tocaram juntos canções dos três.
Ainda não era o Passo Torto. Era simplesmente um show em
que o Romulo achou legal convidar os camaradas pra tocarem
juntos, unir forças. E a empolgação de todos era enorme depois
do show. Havia uma potência diferente ali, e ela vinha dos en-
trelaçamentos possíveis entre eles: do ponto de vista poético, do
cancional e na construção dos arranjos.
Do ponto de vista poético, o que se percebia de cara era a
vocação das letras para falar de personagens carismáticas, at-
mosferas densas, urbanas, verdadeiras canções-filme. Naquele
primeiro show, havia apenas dois sambas com parcerias entre
os três: Da Vila Guilherme até o Imirim, de Rodrigo e Romulo,
e Samuel, de Kiko e Rodrigo. As personagens dessas duas mú-
sicas iniciais vivem o cotidiano da cidade, se deslocam pe-
los bairros, amam, desamam, atuam cheias de astúcia nesse
ambiente pouco amigável que divide o centro e a periferia de
São Paulo (“da Vila Guilherme até o Imirim é um-dois, o Vila
Sabrina 1156 faz a vez”, “mas o Niquimba é cabuloso, desceu
64
a Augusta montado atrás do busão”, “diz Samuel, que que cê
pensou? nem é longe de casa aqui”). As letras refletem o tem-
po presente, as vicissitudes do humano, e falam, sem visões
idílicas, da cidade. A dificuldade, a perplexidade diante das
barreiras que delimitam e destroem os espaços urbanos tor-
nam-se matéria poética, antecipam-se à própria realidade e es-
tabelecem um diálogo profundo com ela, transformando nossa
maneira de enxergá-la.
Do segundo ponto, o cancional, pode-se dizer que o samba
é um grande elo entre esses três compositores (e isso se reforça
com a chegada de Marcelo Cabral ao grupo). Romulo Fróes, que
é apaixonado pelo samba-canção na sua forma mais melancó-
lica, havia gravado à época três discos, entre os quais, Calado,
cujos sambas, tristes, falam das coisas de amor e desilusão e
parecem feitos sob medida para Nelson Cavaquinho interpretar,
com sua voz rouca e seu violão pinçado.
Kiko Dinucci também mergulhou fundo no universo do
samba. Mas seu interesse maior se volta para o samba duro
paulista. Durante cinco anos, comandou as quartas-feiras do
bar Ó do Borogodó, uma casa reconhecida pelo repertório de-
dicado ao samba e ao choro em São Paulo. Kiko, além de seus
próprios sambas e das parcerias com Douglas Germano, trazia
músicas de Geraldo Filme, Raul Torres e Adoniran Barbosa, evi-
denciando um sotaque mais caipira e uma levada bem diferen-
te daquela corrente nas rodas de samba. Também definia essa
levada diferente o fato de ele ter lançado dois discos até então:
Padê (em parceria com esta que aqui escreve) e Pastiche Nagô,
com o grupo Afromacarrônico; ambos incluem no repertório,
além dos sambas, composições inspiradas em outros ritmos de
herança africana.
65
Rodrigo Campos participou por muito tempo das rodas de
samba de seu bairro, São Mateus, e depois tocou também no
Ó do Borogodó e outros bares voltados ao samba, na região
mais central da cidade. Exímio no cavaquinho, no violão e na
percussão, seu repertório vai dos clássicos antigos aos sambas
e pagodes mais recentes. Em seu disco de estreia, “São Mateus
não é um lugar assim tão longe”, apresenta um repertório auto-
ral, primordialmente de sambas, e já mostra uma forma muito
refinada de composição, com personagens emblemáticos.
Marcelo Cabral foi instrumentista por vários anos em bares
de samba da capital paulista: Ó do Borogodó, Traço de União,
Bar Samba. Além do baixo, Cabral também toca violão de 7
cordas, e essa desenvoltura do baixista no universo do samba
foi importantíssima no momento de constituição da sonorida-
de do grupo.
Mas se o samba pode ser considerado o alicerce do Passo
Torto, acima de tudo está o gosto pela invenção e a desconstru-
ção. Talvez por isso, o “torto”, talvez por isso, o passo: adiante.
É necessário, portanto, esmiuçar a terceira (e não menos impor-
tante) potência do grupo: os arranjos. O que se apresenta de
início são os riffs marcantes e a soma de vozes e instrumentos,
que revela sempre uma sonoridade singular. Mas não bastasse
tudo isso, o arranjo é também personagem, cenário, plano, mo-
vimento de câmera dessas canções-filme. E é por meio de um
jogo constante de construção e desconstrução que isso se faz. O
arranjo pode mudar o clima da narrativa, desfazer o riff que se
firmou, levantando do zero uma outra engrenagem, estabelecer
diálogos entre um verso e uma resposta da guitarra, entre uma
abertura de voz e um efeito de pedal. E, para além do efeito
de camadas que vão se estruturando com a trama de ostinatos
66
e contrapontos, também os temas, os versos, se tornam mais
irônicos ou violentos ou líricos, por esse jogo recorrente de per-
gunta e resposta, oposição e encaixe.
Entretanto, é no modo como produzem seus trabalhos que
os artistas do Posso Torto revelam-se sambistas à vera, fazendo
valer a máxima de Nelson Cavaquinho, que diz a certa altura do
filme de Leon Hirszman sobre ele: “gosto mesmo é de palestrar
com os amigos, de brincar...tristeza, só nas músicas”. Valho-me
ainda de outro exemplo dessa maneira de criar semelhante à
dos sambistas da antiga: em seu livro “Desde que o samba é
samba”, Paulo Lins refaz o cenário efervescente em que se esta-
beleceu o samba carioca no início do século passado. Trata-se
de um romance de ficção baseado, no entanto, em pesquisa
extensa a respeito do cotidiano daqueles viventes. Uma das
coisas mais marcantes da narrativa é a roda de samba perene,
presente em todos os principais momentos da trama, servindo
de ponto de encontro das personagens, lugar onde estouram e
se resolvem as pendengas, ponto de reflexão, de inspiração, e,
principalmente, de diversão. É ali que Brancura, a personagem
principal, malandro característico, tem ideias e cria parcerias
para seus sambas. Muitas vezes, o mote vem da briga com a
mulher ou do desencanto com a prostituta preferida, mas é na
roda de amigos, ali, sempre reunida num boteco, que a síntese
se faz em samba.
Os tempos e o contexto são bem outros, claro, mas percebo
certa equivalência entre aquele vigor e efervescência das rodas
dos sambistas lendários e a forma como vejo serem constituídas
as parcerias e criações do Passo Torto. A posição estratégica
da roda de samba, instalada dia e noite no boteco central, com
visão para tudo o que acontecia na Zona do Estácio daquela
67
época, possibilitava a seus integrantes uma perspectiva muito
arguta das relações humanas, do seu entorno. E aqui, nesses
anos caóticos do vigésimo primeiro século, os compositores do
Passo Torto também encontraram um posto estratégico para
observar, debater, reconfigurar e transformar em arte o que
captam do Brasil e do mundo. A cidade de São Paulo é o boteco
bem localizado no meio do caos, de onde falam e produzem
(“a cidade é o centro do cerco”, verso de Helena). A dúvida, o
desconforto, o vazio, que por vezes se instauram, são ingredien-
tes inerentes às construções, porque, de certa forma, também
revelam o tempo em que vivem, a cidade em que vivem (“um
rádio por dentro”, verso de Helena), o estar no mundo, no fim do
O compositor paulista Paulo
Vanzolini no filme Paulo Vanzolini,
um Homem de Moral, de Ricardo Dias, presente na programação da
mostra
68
mundo (“vai, José! vai saber como é que é cair, a cidade inteira
até sumir, a cidade inteira cai”, verso de A cidade cai). E o traba-
lho flui sem a necessidade do gesto programático, da partitura,
da forma fechada.
Há muitos exemplos dessa movimentação fluida e inquieta,
e o resultado potente que tiram dessa troca de ideias: uma letra
que chega com dezenas de versos, e é burilada até restar apenas
um. E é assim, com apenas um verso, que irá se consolidar,
como em Adeus, de Romulo e Rodrigo: “Eu vim determinado a
lhe dizer adeus”. Ou um verso que espera até o último instante
para se definir, como em Rá rárá, de Kiko e Rodrigo: “Desculpe
a dignidade de lhe dizer atrocidades”. Ou uma capa de disco (o
primeiro – Passo Torto), sair sem retratar um dos componentes
do grupo, e este mesmo integrante – no caso, Marcelo Cabral –
ser o único retratado na capa do segundo disco. Uma brincadei-
ra, sem dúvida. Mas o que prevalece mesmo são a xilogravuras
de Kiko Dinucci, que transformam em traço a poesia contida
em cada disco. Uma brincadeira levada a sério acaba por virar,
ela também, matéria poética.
Sem fórmulas prontas em nenhuma etapa da produção dos
discos, sem apego a uma sonoridade (o que se revela na diferen-
ça entre o primeiro e o segundo disco), chegaram a pensar que
não haveria mais como continuar depois do Passo Elétrico. Até
porque os projetos são muitos, as demandas são muitas. Nesse
meio tempo (entre 2010 e 2014), vários outros discos foram lan-
çados, individuais ou projetos paralelos. Mas, aí, surge o con-
vite para a residência com Ná Ozzetti, que trouxe seus saberes,
sua voz e cores novas para o som do Passo Torto (a residência
aconteceu no SESC Santo Amaro, em São Paulo e consistia em
apresentar ao público o processo de criação das canções, com
69
os artistas elaborando o arranjo ali, ao vivo, diante da plateia).
O nome do disco que surge desse encontro é Thiago França, que,
ao contrário do que se pensa, não pertence ao Passo Torto; o
que, de certa forma, confirma um dos motores do grupo: o gos-
to pelo jogo, pela brincadeira, que embaralha as ideias: as que
os outros têm deles, as que eles mesmos têm de si. Thiago França
é, por essas e outras, o nome exato para um disco que escancara
o diálogo, o destemor e o amor pelo ato de inventar. Além de
ser outra brincadeira: uma brincadeira afetiva, poética. E, ao
mesmo tempo, uma maneira de reinventar a atitude libertária
dos sambistas que os inspiraram.
Juçara Marçal é cantora. Também é formada em
jornalismo, mestre em literatura brasileira pela usP e
escreve nas horas vagas.
A CURADORIA INDICA:
Paulo Vanzolini, um homem de moral, de ricardo Dias
O mistério do samba, de lula buarque e Carolina Jabor
Batatinha e o samba que toca na alma
Por ViCTor uChôa
71
Ele falava baixo e com pausas entre as frases. Exibia cabelos
alvos e caminhava parecendo não querer chegar - mas sem-
pre chegou. Então, com a delicadeza de um artesão, Oscar da
Penha aninhava uma caixa de fósforos entre os dedos da mão
esquerda. Daí, com os dedos da mão direita, tamborilava sam-
bas que jamais morrerão. Em suas letras, deu vazão à saudade,
trouxe à tona o passado e revelou desenganos. Tamborilando
na caixa de fósforos, deu ritmo à própria vida. E foi desse jeito,
bem ritmado, que Oscar da Penha virou Batatinha.
“Não existe razão que um samba não vença / É toda minha
ilusão e também minha crença”. Os versos da canção Pra todo
efeito personificam quem os escreveu. Nascido a 5 de agosto
de 1924 em Salvador (BA), Batatinha acreditou na ilusão do
samba até ser vencido por um câncer, em 1997, aos 72 anos.
Por acreditar (e mergulhar) na ilusão do samba, construiu
uma obra tão preciosa que levou Paulinho da Viola a colocá-lo
no mesmo patamar de Cartola e Nelson Cavaquinho, como
representante da “poesia popular mais pura”, em texto para o
encarte do disco Samba da Bahia, de 1973.
No mesmo encarte, Maria Bethânia, que àquela altura já
havia gravado diversas composições do conterrâneo, resumiu
sua admiração: “Gosto de Batatinha como gosto da luz da lua,
do som do tamborim, do samba em tom menor, das coisas tris-
tes e simples. Batatinha pra mim é uma pessoa rara, um artista”.
72
Samba-crônica
Gráfico profissional, Oscar da Penha torna-se oficialmente sam-
bista em 1944, no Campeonato de Samba da Rádio Sociedade
da Bahia. Nas suas apresentações, o jovem alternava músicas
do paulista Vassourinha com as próprias composições, mesmo
sem coragem de dizer que eram suas.
Em dois tempos, o público passa a chamá-lo também de
Vassourinha. Até que, certo dia, o locutor anuncia: “Com vocês,
Oscar da Penha, o sambista Batatinha!”. Depois de cantar um
dos seus sambas, Oscar quis saber de onde saiu tal alcunha.
“Ah, o pessoal só te chama de Vassourinha! Vassourinha está lá
em São Paulo. Aqui é Batatinha”, teria dito o apresentador ao
próprio Batata, que, devidamente rebatizado, fez muxoxo para
o novo nome fantasia.
Fez muxoxo porque teve que aturar a galhofa: diziam que
Batata era apelido para gordo, adjetivo que, definitivamente,
não lhe cabia. Devido à fina silhueta, ouviu que deveria cha-
mar-se Bacalhau. Houve ainda quem sugerisse Aipim, mas nada
disso pegou. A contragosto do dono, o tempo fez questão de
fixar Batatinha.
Nascido e criado no Pelourinho, entregador de marmita e
aprendiz de marceneiro aos 10 anos e office-boy do Diário de
Notícias aos 14, Oscar cresceu vendo Salvador crescer. Andou
livre pelas ruas do Centro, pongou no bonde, zanzou entre
carroças na Cidade Baixa, mergulhou no lusco-fusco da baía,
subiu as ladeiras estreitas da velha capital e pegou amor pelo
Galícia Esporte Clube. Estudou música com o maestro Alfredo
Serra, admirou a Capoeira Angola de Pastinha, dançou nas fes-
tas de largo e, na barra do dia, descansou aos pés da estátua de
Castro Alves. Na boca da noite de uma cidade outrora pacata,
vagou livre por ruas cheias de histórias.
73
Assim, capturando a alma das pessoas em volta, lapidou
versos simples para compor sambas como quem escreve crôni-
cas. O olhar sobre o cotidiano é latente na sua obra, até mesmo
em canções jamais gravadas em disco. Um exemplo é Feijoada
do Samba, que ele apresentava como a segunda receita culiná-
ria da história da MPB, perdendo somente para a do vatapá,
cujos macetes de preparo foram devidamente universalizados
por Dorival Caymmi. “A feijoada baiana é gostosa pra chuchu,
melhor do que o vatapá e o saboroso caruru / Feita por um ca-
brocha que tem lá na roça, conhecida por Sinhá / Melhor do que
ela nunca vi ninguém que uma feijoada saiba preparar / Carne
de sertão, feijão mulatinho, carne de sal preso e o saboroso toi-
cinho / Meio quilo de chupa-molho e linguiça um pedacinho /
tudo isso temperado, vai pro fogo cozinhar / Vem provar a ape-
titosa feijoada de Sinhá/ Não tem preguiça no corpo, vai ficar
forte e disposto para trabalhar”, versou Batatinha na década de
1940, muito antes, por exemplo, de Chico Buarque encomendar
a Feijoada Completa.
Sofrer também é merecimento?
Com humor, olhar crítico e sutileza, Batatinha delineava a vida
e tocava quem lhe ouvia. Na MPB, tocou artistas do quilate de
Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. O
primeiro a gravá-lo comercialmente foi Jamelão, que em 1960
entoa a satírica Jajá da Gamboa, sobre um rapaz interesseiro
que se envolve com uma “cabrocha boa, apesar de ser coroa”.
Dois anos mais tarde, Firmino, personagem do ator Antonio
Pitanga em Barravento, primeiro longa-metragem do cineasta
Glauber Rocha, cantarola um trecho de Diplomacia, parceria de
Batatinha com J. Luna: “Meu desespero ninguém vê. Sou diplo-
mado em matéria de sofrer”.
74
O prestígio entre artistas, no entanto, não foi suficiente para
que Oscar da Penha conseguisse viver da música. Trabalhando
como gráfico, passou a vida ao pé da linotipo, exibindo habilida-
de artesanal semelhante a que ostentava com a caixa de fósforos.
Com dedos ágeis, dava forma às palavras antes que as páginas
fossem à rotativa. No samba, Batatinha imprimia episódios da
vida. Na labuta com as notícias, Oscar da Penha fazia o mesmo.
Aposentou-se no serviço gráfico e foi dali que sempre tirou
o sustento dos nove filhos, todos nascidos da união de 37 anos
com Marta dos Santos Penha. Os ganhos modestos e a pouca
fama fora da Bahia nunca o paralisaram, mas lhe conferiam algu-
ma frustração – e, por que não dizer, muita inspiração também.
Em 1971, numa conversa com o jornalista Ademir Ferreira, re-
velou que a canção Diplomacia nasceu num período em que es-
tava “atormentado, sem dinheiro”. “Aí eu gritei, falei alto. Cantar
é o melhor jeito de dar vazão aos sentimentos”, definiu. Mas, na
mesma entrevista, Batatinha expõe sua maneira de equilibrar a
dor e o contentamento. “Mesmo cantando triste, me sinto alegre.
Mesmo com tanta agonia, ainda posso cantar”.
Descendentes do músico Oscar da Penha, conhecido como Batatinha, relembram os sambas do compositor em Batatinha, o poeta do samba, de Marcelo Rabelo.
75
Para rir e chorar
O Inventor do Trabalho, seu primeiro samba, nasceu quando ti-
nha 15 anos. Ainda adolescente, exibe ironia e tino crítico para
contestar a relação entre patrões que pouco pagam e operários
que, reféns da necessidade, apenas cumprem tarefas. A crítica
social permeia sua obra, assim como sambas e marchas cele-
brando a boemia e a alegria do bom malandro. Finos exemplos
são De Revólver, Não!, sobre uma pescaria que, para dar resulta-
do, termina na bala, e Bebê Diferente, aquele que em vez de leite
queria aguardente.
Pioneiro na introdução de elementos rítmicos da capoeira
no cancioneiro popular brasileiro, Batatinha teve a música Bossa
Capoeira gravada em 1968 pelo grupo Inema Trio. Na canção, o
berimbau que ouviu com Pastinha dá o tom e abre a roda para
mais uma obra ao lado de J. Luna: “A moçada vai gostar / Quando
eu der do meu samba uma prova / E ouvir o berimbau no balanço
da bossa-nova”.
Batatinha não compunha ao violão, mas, tamborilando na
caixa de fósforos - que levava sempre, para acender a cigarrilha
-, encontrou um caminho harmônico próprio. Mais a mais, foi
premiado com um dom que a poucos contempla: o de expressar
com elegância e precisão aquilo que não se pode ver ou tocar.
Navegando entre temas, não demorava a esbarrar na própria
intimidade. Ali, rendia-se ao lirismo, alcançava as mais ocultas
incertezas e, nos sambas, libertava as angústias.
Quem bem conheceu o sambista recorda-o como um ho-
mem sereno, de voz quase sempre baixa. Em que pesem as pró-
prias aflições, Batatinha se mostrava como um conciliador, um
mediador de conflitos que à boca miúda foi virando o Diplomata
do Samba, muito também em virtude da canção Diplomacia.
76
Foi, na verdade, um elo entre gerações do samba. Na sua
faixa etária, figuram Tião Motorista, Panela e Riachão. Entre os
mais novos, pintam Ederaldo Gentil, Walmir Lima, Edil Pacheco
e Nelson Rufino. O que alguns poderiam ver como uma disputa
por espaço, Batatinha via como uma chance de fusão. Mesmo
mais velho, incentivou e virou amigo dos sambistas que então
surgiam. Para muitos, deu parceria em canções, com um quê de
catapulta artística. Assim, foi um dos pilares de um grupo que
era alma e resistência do samba da Bahia.
Juntos, estes artistas fizeram nascer a Noite do Samba, sem-
pre a 2 de dezembro, que atualmente é o Dia Nacional do Samba
graças à Câmara Municipal de Salvador, que, em 1940, rendeu
homenagem a Ary Barroso, quando ele fez sua primeira visita à
Bahia. Ary, veja só, havia composto Na Baixa dos Sapateiros antes
mesmo de pisar no mágico solo do terreiro de Oscar da Penha.
Memória
No palco, na boemia, nas entrevistas ou dentro de casa,
Batatinha referia-se a si mesmo como “Batatinha”, assim, na ter-
ceira pessoa. Era como se mantivesse até o fim da vida alguma
birra com o apelido e quisesse se enxergar fora do corpo de
artista. Desta forma, conseguia até olhar em perspectiva para
o próprio processo criativo, como quando discorreu sobre a
amargura que derramava nas canções: “O sofrimento nem sem-
pre está no compositor. Está nas coisas que ele vê. Ele vive um
pouco desta realidade, dessas agonias”.
Encarando cada agonia de frente, Oscar da Penha viu seu
nome artístico pela primeira vez na capa de um disco em 1969,
no compacto duplo Batatinha e Companhia Ilimitada. Neste,
ele não canta, mas é o compositor de três das quatro canções,
77
gravadas por Inema Trio e Carlos Gazineo. Depois do Samba
da Bahia de 1973, lançou Toalha da Saudade (1976) e 50 Anos de
Samba (1996), no qual regravou composições suas já famosas
em outras vozes. Mas é em Diplomacia (1997), que Batatinha
deixa transbordar tudo que guardava também como cantor.
Como se antecipasse a despedida, expele toda a dor que preser-
vava dentro de si e deposita na voz a inteira emoção de suas le-
tras. Lançado somente após a morte do homenageado, o álbum
venceu o Prêmio Sharp de Melhor Disco de Samba em 1998.
Com a caixa de fósforos aninhada numa das mãos para
tamborilar com a outra, Batatinha fez da simplicidade um lu-
xuoso artifício poético. Observando as relações que lhe cerca-
vam e dando passagem aos mais profundos sentimentos, fincou
bandeira na história do samba.
Cantando, fez valer seu próprio verso de que não existe ra-
zão que um samba não vença. É bom acreditar nesta assertiva,
pois nem só de razão se constitui a vida. Batatinha, para nossa
sorte, sabia muito bem disso.
Victor Uchôa é jornalista e pesquisador. assina uma
coluna semanal no jornal Correio (ba) e atua também em
projetos culturais.
Texto editado pelo autor para o catálogo. retirado do songbook Batatinha: direito de sambar, a versão integral encontra-se no acervo virtual www.acervobatatinha.com.br
A CURADORIA INDICA:
Batatinha, o poeta do samba, de Marcelo rabelo
78
Damas da portela
Por Áurea alVes
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“Das pastoras que aqui trago,
eu sou a que menos tem.”
anÚnCio Da MesTra Do PasToril Do CaTeTe CerCa De 1910,
CF. Velha GuarDa Da PorTela, De JoÃo baTisTa VarGens
Em Oswaldo Cruz, é melhor se deixar levar pelo olhar expres-
sivo de Yolanda de Almeida Andrade, a Dona Neném. Ela é
quem me apresenta, sem saber, em ligeiras pinceladas, alguns
nomes que marcaram a história da Escola de Samba Portela, a
grande campeã do carnaval carioca e dona de um vasto e rico
acervo de sambas, cantados até hoje pelo Brasil. É esse olhar
que me faz celebrar as mulheres da agremiação.
Essas damas são mulheres negras de histórias comuns
àquelas da sociedade de então: tinham muitos filhos, eram
operárias, lavadeiras, empregadas domésticas, cozinheiras,
costureiras, balconistas. São histórias de carisma, como a de
Dona Neném, viúva do compositor Manacéa, frequentadora
dos sambas portelenses desde os catorze anos e testemunha
ocular da evolução da presença feminina na escola.
Sambou e cantou com pastoras e cabrochas que, vestidas
de gala, marcavam o desfile na escola. Viu a organização de
muitos carnavais, com suas disputas e brigas, e sempre soube
que era a uma mulher que cabia a missão mais nobre e de
maior responsabilidade no desfile: a porta-bandeira.
80
A águia vitoriosa, sobre o fundo azul e branco de cetim,
voou baixo pelas mãos fortes e pelos meneios delicados de
Maria das Dores Rodrigues, a Dodô, campeã já na estreia,
em 1931, aos catorze anos. Em 1956, o estandarte foi para
os braços de Wilma Nascimento, igualmente campeã e forte,
igualmente graciosa. Ambas cruzaram o asfalto espremidas
entre o público, sob chuva, sol e qualquer condição adversa.
Levaram a águia em seu belo vôo às alturas. Inesquecíveis.
E como foram memoráveis as rodas de samba no quintal
de Dona Neném! Promovidas pelo marido, ali reuniam todos
os nomes da pesada e os da ativa ala dos Compositores da
Portela, encontros com a presença fundamental das pastoras,
para o canto e para o ofício.
Tradição herdada dos pastoris natalinos, o timbre femini-
no era fundamental para a audição das melodias, fator rapida-
mente absorvido pelos blocos carnavalescos, que desaguaram
nas Escolas de Samba. Era o coro das pastoras: sem elas, o
terreiro não se iluminava, mesmo que os sambas entoados
fossem tantos daqueles que hoje exaltamos. Sem elas, o sam-
ba não pegava.
Dona Neném viu, nos anos 1970, a criação da Velha
Guarda da Portela, consagrando a presença especial do coro
feminino, formado por Vicentina, Iara e Lourdes. Pouco
tempo depois, Vicentina - famoso feijão! - se afastou para
assumir a condução da cozinha da quadra da escola. Iara e
Lourdes sairiam a seguir, cedendo lugar a Eunice Fernandes
da Silva, a melhor voz de todas as pastoras, e Doca (Jilçária
Cruz Costa), de timbre forte e bonito. Mais tarde, Tia Surica
(Iranete Ferreira Barcellos) e Áurea Maria, filha de Manacéa
e dona Neném, foram agregadas, assim como Neide Santana,
81
filha de Chico Santana, e a mais recente integrante, Jane Carla
Araújo, diretora da ala das baianas e filha da passista Hilma.
Vozes fortes e afirmativas da história que carregam.
Caladas as vozes de Doca (2009) e Tia Eunice (2015), fi-
caram as lembranças do samba no pé, da elegância das roupas
e das histórias de vida dessas pastoras. O coro e o miudinho
continuam no palco, as roupas e sapatos para as apresenta-
ções continuam sendo escolhidas em conjunto, mantendo a
elegância: afinal, são damas da Portela.
Algumas rodas de samba contam, ainda hoje, com pas-
toras, mas já sem a mesma importância. Hoje é pequena a
preocupação em cativar, nesses encontros, o coro de vozes
femininas para interpretar novos repertórios. É uma pena.
Sentada em seu quintal, testemunha majestosa de mo-
mentos únicos, Dona Neném, 90 anos, elegantemente ratifi-
ca o lamento registrado no documentário Mistério do Samba
(Lula Buarque, Carolina Jabor, 2008): tudo está muito quieto
nos dias de hoje.
Áurea Alves é jornalista, formada pela eCa-usP,
colaborou para os jornais oPasQuiM21, brazilian Press
e sites como algo a Dizer. atua como produtora cultural
no campo da Música Popular brasileira.
A CURADORIA INDICA:O Mistério do Samba, de lula buarque e Carolina Jabor
Damas do Samba, de susanna lira
Natal da Portela, de Paulo Cesar saraceni
Paulinho da Viola, meu tempo é hoje, de izabel Jaguaribe
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Nitrato de purpurina: à sombra do espírito do carnaval
Por Fabian CanTieri
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I.
“Não se mate, tem carnaval ano que vem.”
PiChaÇÃo eM uM Muro CarioCa
Dezembro de 1941: um ataque aéreo japonês a Pearl Harbor
surpreende o mundo e os Estados Unidos entram na Segunda
Guerra Mundial. Washington achava que Getúlio Vargas ti-
nham simpatizantes nazistas em seu governo e temia a influ-
ência alemã na América do Sul. Duas semanas depois, Jock
Whitney, embaixador americano e acionista da Technicolor, e
Nelson Rockfeller, vice-presidente dos EUA e um dos sócios
da RKO Pictures, intimam Orson Welles a ir ao Brasil gastar
um milhão de dólares filmando o carnaval carioca: era seu
“dever patriótico”. Welles se tornou, então, “embaixador es-
pecial no Brasil” e faria tal viagem como um gesto de “solida-
riedade hemisférica”. Ao desembarcar, um repórter pergunta
sobre o que seria o filme, ao qual ele retruca de imediato:
“pergunte-me de novo em seis meses”. Não precisaria de tanto
tempo para o cineasta compreender a monumentalidade da
tarefa, logo concluiria: “filmar o carnaval é como tentar cap-
turar um furacão”.
Os curtas Carnival in Rio, produzido pela Warner Brothers
em 1954, e Carioca Carnival, distribuído pela 20th Century-
Fox em 1955, evidenciam o quão escorregadio pode se mos-
trar a missão de definir o que vem a ser o carnaval carioca. O
primeiro, dirigido por Andre de la Varre, mostra, em grande
84
parte, pessoas fantasiadas pulando e dançando em bloco nas
ruas e nos bailes de gala do Rio de Janeiro. Também fotógrafo,
la Varre filma assumindo seu olhar estrangeiro: o tom do fil-
me se dá pelos planos abertos, para mostrar a grandiosidade
da coisa, impressionar pela multidão e, nessa distância neces-
sária para abarcar a abundância, filma-se quase sempre em
plongée, sem pisar no mesmo chão que é dançado pelo povo,
sem esbarrar com o imprevisto dos passistas, sem sentir de
perto o agudo dos metais ou o tremor grave das percussões.
O segundo, dirigido por Anthony Muto, tenta construir uma
dialética entre o estágio de intensa modernização da cidade e
o período em que o ritmo arrefece para desabrochar a alegria
do Mardi Gras: o carnaval como “folgas merecidas”. A certa
altura, o narrador em off arrisca dizer que “a verdadeira razão
para a prosperidade (da cidade) pode ser a feliz mistura de
prazer com o progresso” de seu povo, insinuando que o car-
naval é apenas uma evidência condensada desse espírito good
vibe do carioca, uma conflagração que está lá, de forma dilu-
ída, no restante dos meses. De duas explanações, uma não
quis se aproximar de sua gente criadora; outro, usa-o para
disseminar o ethos protestante de seu próprio país – o traba-
lho como doutrina recompensadora.
Diferente do exotismo turístico dos curtas cinquentis-
tas, quando vemos as poucas cenas restantes de The Story of
Samba, é possível reparar de imediato que ali há um rascunho
promissor de encenação. Em uma cena do alto, com inserts no
meio da muvuca, vemos Grande Otelo abraçar duas passistas
com o estandarte; o homem que dançava com elas puxa-o e
a briga, em questão de segundos, vira uma espécie de mosh
carnavalesco. Welles não só mergulhara em uma pesquisa
85
histórica – acreditava que para filmar o carnaval era preciso,
antes de tudo, compreender o samba –, inserindo a famosa
canção Praça Onze de Herivelto Martins como forma de ade-
são à luta política do povo, mas havia percebido sobretudo as
fagulhas de uma vivência carnavalesca: o descontrolado tor-
por, a fluidez nuançada de estados emocionais que atravessa
um bloco, do indivíduo ao coletivo e vice-versa. Depois de
meses da estadia de Orson Welles no Rio, a direção da RKO
pediu para ver o que ele havia filmado até então. Sem som, o
que eles viram em The Story of Samba foi determinante para
o fim do projeto: segundo eles, apenas “um monte de crioulos
pulando de cima para baixo”. O preconceito é cristalino nesse
olhar, mas aqui não se trata apenas de racismo, mas de uma
dificuldade evidente diante da representação do carnaval:
como torná-lo imagem?
II.
“Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o
que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”
ClariCe lisPeCTor
“Custei a compreender que a fantasia
É um troço que o cara tira no carnaval
E usa nos outros dias por toda a vida.”
alDir blanC e JoÃo bosCo
O carnaval não é mais do que a espuma das coisas. É o des-
velamento de uma linguagem outra, uma fenda temporal que
nos acomete de sermos outros que não nós mesmos, mas ser-
mos nós, em profundeza. Clarice dizia que é “como se enfim o
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mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate”.
O carnaval é despir-se da cultura diária, e nesse sentido, é
a mais translúcida fantasia de nós mesmos, é mascara sob
nudez, assemblage de vivências cruas. É narrativa costura-
da em nossos corpos, ficção real de um tempo que estanca
e corre de peitos abertos e escancarados para a duração do
agora. É a consciência de estar-aí, presente, no mundo, em
seu concomitante esquecimento. É gestalt do desbunde, é um
foda-se generalizado, é a despreocupação no sentido preciso
do termo – ocupar-se com nada, além de si mesmo e com o
outro em frente, este egoísmo caridoso de só querer estar-se
consigo, com o outro e tomar tal prospecção como prioridade
das horas. O carnaval é tudo isso, sua extrapolação e mais um
pouco. É o trato com o inefável, logo um pouquinho de nada
disso também.
O que ouvimos em eco desde que nascemos é que o
carnaval é uma grande festa, no caso brasileiro, a maior do
mundo. O que seria uma festa? Festa implica a reserva de
um tempo coletivo para o lazer, para desvencilhar-se de um
tempo de trabalho, de produção de coisas. “Festa é comunhão
e apresentação do próprio âmbito comum em sua forma ple-
na”, escreveu Gadamer. Para ele, a melhor forma de definir é
por sua significação negativa: “não trabalhar”, visto que o tra-
balho “nos separa e divide”. A etimologia da palavra brincar
é controversa: pode vir do germânico blinken, que significa
agitar-se, mas também especula-se que venha do latim, tendo
o radical brinco e raiz morfológica vinculum – envolve laço, al-
gema, pôr brinco – com o verbo derivado vincire, significando
prender, seduzir, encantar. Brincar é divertir-se com alguém,
envolve uma atividade de ligação. Já o ato de festejar é uma
87
arte de reunir-se em vista de algo que ninguém sabe, efetiva-
mente, o quê. A festa é sempre uma celebração, muitas vezes
sem propósito aparente. Traduzida literalmente do alemão, a
palavra “celebração” (begehung) indica uma radicalização do
verbo gehen, um modo de se encontrar plenamente em algum
lugar. Filosoficamente, o carnaval é a maior tentativa humana
de encontrar-se pleno a partir de sua própria comunidade. É
curioso notar que a plenitude na tradição cristã tem sua chave
de realização no amor, mas o carnaval, esta celebração cristã-
profana, surge por outra lógica: dentro do calendário litúrgico,
o carnaval era “o mundo às avessas”, era um tempo de rever-
são da ordem, celebrava-se não a “cidade de Deus”, mas a do
“Demônio”. Carnislevale: “retirar a carne” da mesa, do cardá-
pio, como preparação para a quaresma, ou seja, um intervalo
para o período de jejum e abstinência, resguardo do cristão
aos prazeres mundanos. Mas eis que, antes deste período de
acolhimento espiritual, decidiram os homens e mulheres que
os três dias anteriores seriam então regados pelo excesso, um
elogio ao descomedimento, uma espécie de descarrego, esta
palavra tão anticatólica, ao sacrifício vindouro.
Parece estranha aos olhos distantes a condescendência
da Igreja à existência dessa dicotomia tão clara entre a mais
lasciva encarnação do pecado e uma consequente purificação
da alma. Isto acontece porque a Igreja não funda as festivi-
dades, mas as incorpora, e este detalhe é crucial em termos
políticos. Na Babilônia, dois mil anos antes de Cristo, sabe-se
das Saceias, festas anuais de verão onde a própria brincadeira
consistia em inverter a hierarquia vigente: servos tornavam-se
iguais aos mestres e junto a eles havia sempre um prisioneiro
que assumia o lugar do rei por cinco dias, comendo à mesa
88
real, deitando-se com suas mulheres para, ao fim da festa, ser
chicoteado e posteriormente enforcado ou empalado. Em ou-
tro ritual, no ano novo babilônico, o rei era destituído de seus
poderes, arrastado e surrado para então depois, ante a cidade,
se humilhar e declarar que não abusara de sua força. Com
o ato, era reestabelecida a ordem vigente do reinado, como
acontece ao mundo, ao fim de cada carnaval. Da Antiguidade
à Idade Média, do Renascimento ao Iluminismo, é possível
vislumbrar inúmeras tradições festivas que incorporam e
inauguram novas crenças, rituais, procedimentos e brincadei-
ras. Da festa de Ísis, divindade egípcia, onde seus adoradores
marchavam em alegre procissão, introduzindo o costume das
máscaras, às Saturnálias, um festival romano de cinco dias no
solstício de inverno, onde tudo era permitido e os senhores
usavam chapéus dos escravos para lhes servir; dos carnavais
medievais, onde jovens rapazes europeus vestiam-se como as
mulheres, dizendo-se habitantes da fronteira entre o mundo
dos mortos e dos vivos, assustando as pessoas, tacando pe-
dras nas janelas, perseguindo garotas, tudo sob o auspício do
silêncio, aos cortejos no Renascimento imiscuídos pelo espíri-
to da commedia dell’arte italiana com canções próprias para o
evento, evocadas ao longo do percurso dos carros mitológicos
pelos pierrôs, colombinas e arlequins.
O carnaval chega no Brasil com os portugueses através
dos entrudos, que se dividiam em familiares e populares.
Enquanto nos entrudos familiares, as pessoas, dentro de suas
casas, jogavam limões de cheiro umas nas outras – pequenas
bolas recheadas com água perfumada, precursores dos lança
-perfumes –, os entrudos populares aconteciam nas ruas da
cidade, de forma mais despudorada, pelas classes mais pobres
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90
com líquidos variados, farinhas e o que mais houvesse à mão.
Até meados do século XIX, havia uma clara separação entre os
carnavais: festas que aconteciam nos teatros, salões e bailes de
máscaras da aristocracia, inspirados no carnaval de Veneza e
da França e os entrudos, derivados da medieval “Festas dos
Loucos”, com os jogos de mela-mela dos escravos. A anarquia
dos entrudos não demorou para ser contida, primeiro com as
constantes repressões policiais e, depois, com sua proibição
em 1853. Poucos anos depois, as grandes sociedades já desfi-
lavam pelas ruas, cenário de outras manifestações populares
como os Zé Pereiras anunciando as festividades com seus gra-
ves bumbos, os cortejos dos ranchos, os cordões da Rua do
Ouvidor, os corsos ou os marginalizados cucumbis.
Até o começo do século XX não havia um ritmo especí-
fico carnavalesco, mas uma confluência de sons típicos: cô-
cos, lundus, modinhas, tangos, maxixes e polcas eram alguns
deles. Chiquinha Gonzaga estreia as marchinhas cantadas
com a composição Ó abre alas em 1899 para o cordão Rosa de
Ouro. Mais à frente, Pixinguinha, Donga e João Pernambuco
formam o grupo Caxangá, o vindouro Oito Batutas, e se tor-
nam figuras essenciais no processo de oxigenar o samba como
vertente enraizada aos temas carnavalescos. Até os anos 20,
quem tinha calos na mão esquerda e unha grande na direita,
vulgo qualquer violonista na praça, podia ser preso por va-
diagem e boemia. O samba era expressão local dos morros e
era ainda um tanto baiano, amaxixado. Em 1928, a turma da
Estácio, entre eles Ismael Silva, mestre Marçal, Bide, Baiaco,
Brancura, Bucy Moreira, Mano Edgar e Mano Rubem, que já
tinham o costume de fazer rodas de samba nos botecos Apolo
e Cumpadre, ali na subida do morro de São Carlos, com gente
91
de fora como Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça,
Paulo da Portela, Manacéia, Aniceto do Império, entre outros,
criam o bloco Deixa Falar, considerado a primeira escola de
samba do Rio de Janeiro. O nascimento ganha pleno apoio do
Estado: seu primeiro desfile conta com a presença de cavalos
da polícia militar e seu samba enredo era auto-evidente: “A
primavera e a Revolução de Outubro”. Nos anos 30, o plano
político-ideológico de Vargas vê no samba a possibilidade de
reforçar seu projeto trabalhista – curiosa ironia com a imagem
de vadiagem dos sambistas – e nacionalista. As letras dos sam-
bas-enredos são voltadas para a história do Brasil e os instru-
mentos de sopro, de origem europeia, são limados (até hoje isso
prevalece nos desfiles das escolas). Villa Lobos foi incumbido
de reformular o ensino musical no período do Estado Novo. O
samba vira manifestação cultural nacional: nas transmissões
de rádio, Orlando Silva, Francisco Alves, Mário Reis, Aracy de
Almeida e Dalva de Oliveira não cantavam o samba carioca de
Noel, Ary Barroso, Lamartine Babo, Ataulfo Alves e Braguinha,
mas a música de um país. Em Hollywood, Carmem Miranda
exportava esse “símbolo de brasilidade” ao mundo: terra de
samba e pandeiro, do mulato inzoneiro.
Vimos que a inversão da ordem social acontece não pela
tradição cristã, mas muito antes na Antiguidade, pelo menos,
desde o Egito e a Babilônia. No Brasil, esta tradição foi histo-
ricamente forçada a contragosto: escravos e seus descenden-
tes iam para as ruas sem um consentimento genuinamente
sereno de seus senhores, da população mais abastada ou das
autoridades. A filosofia cristã nunca prezou pelos prazeres da
carne, a Igreja jamais sorriu para o carnaval, apenas nunca
conseguiu reprimi-lo a ponto de sua extinção. Essa torrente
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93
de um povo em arrebatamento sempre conseguiu aflorar so-
bre quaisquer determinações da ordem regular do mundo.
Em tempos medievais, reinados europeus tentavam enxergar
o lado positivo – “quem sabe o extravaso não arrefece vindou-
ros protestos sociais?” – no Brasil, Vargas, ao invés de coibir,
se apropria e, hoje, o Estado se junta com a iniciativa privada,
não mais para a difusão de uma ideologia, mas para aprovei-
tar cada insumo que o negócio-carnaval possa oferecer. Fica-
se bêbado bebendo todos a mesma cerveja.
Mas o que poderíamos falar sobre o carnaval carioca de
hoje? Seria apenas este mar azul capitalizado? O carnaval é
resistência e também bem mais do que apenas uma luta polí-
tica tradicional. O carnaval é, em última instância, experiên-
cia. Um pacto de êxtase. Em sua absoluta carnalidade, é um
desprendimento do corpo, em sua irrestrita transcendência,
imanência. É um estrangulamento do binarismo de gênero,
que sufoca e expira a diversidade apolínea. Por mais que as
zonas da cidade se fechem em nichos – Zona Oeste é uma
coisa, Zona Sul, outra, Centro uma terceira e ainda carecemos
de muitos blocos na Zona Norte – ainda assim, quando se
chega e se ouve a primeira marchinha, ecoa-se o terreno da
igualdade. A música – marchinha, samba-choro, xote, jazz,
nem sempre executada com maestria – é, em ocasiões, ritmo
de transe. Transantes imiscuídos de alucinogenia. Agora, por
nove dias, o mundo é outro e é aquele que, sentimos, deveria
ser o avesso do avesso. E isso não está nos lugares-comuns do
sensualismo, da fritação e da multidão ensandecida, mas nos
detalhes: na senhora na varanda entusiasmada com seu velho
Carinhoso a atravessar os paralelepípedos, numa troca de olhar
que acomete um sorriso mútuo, na Beyoncé ecoando sob as
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ruínas de uma perimetral, emblema das transformações da
cidade, num set piece cinematográfico com a ocupação do
Monumento aos Pracinhas, na divisão do último pedaço de
um salgado-almoço ao amigo-sempre-mais-louco, num beijo,
suor, confete à contraluz, nas trovoadas apocalípticas que só
causam mais euforia, no desconhecido que é cada instante.
III.
“Eu reaprendo que a vida se aproveita enquanto dura, que a
vida dura só um dia, um porre, um gesto, um gemido, um
canto, um pulo, um delírio.”
Paulo CÉsar Pereio eM a lira Do Delírio
Diante do indizível, do idiossincrático e do incapturável, reto-
mo: como representar tamanha experiência?
Nada seria mais injusto do que se este texto só trouxes-
se referências de um cinema deslocado de todo um contexto
local – afinal, quem vive o carnaval ano após ano, em tese,
deve ter, no mínimo, mais purpurina no sangue. E quando
falamos desses sangues tão diversamente coloridos, creio ser
difícil traçar um paralelo mimético. Orfeu Negro, de Marcel
Camus, é esta mimesis, mas sua preocupação está menos no
carnaval e mais na tragédia. Assim, desloca o cenário grego
para o contexto do Rio urbano de samba, negritude e morro.
Como Disney animando Branca de Neve, Camus desenha o
drama grego sobre o pano de fundo carioca. O carnaval é
apenas aquarela.
Mas, então, quem alcançou o coração do carnaval? Este
escriba, que está longe de ter visto muita coisa, só conhece
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dois filmes no cinema brasileiro. Antes deles há um interes-
sante atravessamento: Ladrões de Cinema, incorpora o espíri-
to do carnaval ao seu artesanato, entende que festejar é uma
arte e faz de seu desdobrar, uma festividade. Dentro e fora de
cena – metalinguisticamente. Invertem as relações de poder
ao roubarem uma câmera – não são mais os índios objetos da
cena, mas os favelados que encenam; roubam para brincar
e criar – laços e arte; se fantasiam de um outro Brasil – o
de um peculiar Tiradentes; tudo contra a vontade de Silvério
(Lutero Luís), aquele da ordem mundana do capitalismo que
preferia simplesmente vender os equipamentos e lucrar com
a aventura.
Paulo Cesar Saraceni, em Amor, Carnaval e Sonhos, faz
um percurso incomum e instigante: insere a câmera no olho
do furacão e vai sem medo ou trajeto certo “documentando”
o carnaval. As aspas são traiçoeiras – havia thelos: Tristão e
Isolda, mas diferente de Orfeu Negro, a lendária história grega
não determina o filme, é apenas um fio (narrativo?) que se
curva, estica e esvai. A percepção de que estamos diante de
um documentário vai se esvaziando aos poucos, vamos conhe-
cendo personagens que brotam e se perdem na multidão. Não
há primeiro ato mais promissor. Depois, caímos em uma outra
dimensão com o destroncamento do corpo fílmico à origem
africana. Vemos Oxossi, orixá da contemplação, das artes, do
belo e Iansã, a “mãe do céu rosado”. Carnaval: da genealogia
de matriz negra, do povo oprimido, um alvorecer de um novo
tempo lapidado pela arte de festejar. A sabedoria poética é pre-
cisa. O que falta ao filme é carpintaria, rigor formal, precisão
nos cortes, nos tempos dilatados, fantasmáticos que acabam
por ruir o transe conjunto que Saraceni tão bem entendeu.
96
A Lira do Delírio, de Walter Lima Jr. começa com a possível
cena mais carnavalesca já filmada. Ao som de A malandrinha,
de Martinho da Vila, uma lenta panorâmica chega até um pe-
queno bloco, um zoom vai se aproximando de Anecy Rocha
estatelada num monumento público. Nara Leão se aproxima,
senta, dá uns tapinhas na cara para Anecy acordar. Anecy
senta, ainda grogue, o zoom se aproxima ainda mais e Nara
oferece um cigarro. Corta para um close das duas e Anecy
beija-a. Nara se afasta de leve e volta, parece indecisa entre
o querer e não querer, mas não precisa decidir, alguém no
fora de campo assovia e o que hoje poderia despertar contra-
riedade, rende apenas risos das duas. Anecy olha para Nara,
beija seu ombro e a cartela-título entra em seguida. Ninguém
samba em primeiro plano, não há marchinha, alto batuque,
nem cuíca chorando – o canto de Martinho é sereno, assim
como a câmera, nenhum símbolo ou insígnia coreografando
o feriado e, no entanto, aquilo é a pura experiência do carna-
val. Walter havia mandado Nara chegar lá e... “vê o que ela
faz”. A estória é relativamente conhecida: Walter pergunta aos
atores que marchinhas eles gostam e eles então desfilariam
em 73 em Niterói com as fantasias de cada música escolhida.
Resultado: todo mundo alucinado com Walter e Dib Lutfi no
encalço. Ali, vemos nascer outro lampejo típico de carnaval:
um cara tentando agarrar Aracy. Eles se estranham, os atores
chegam para tirá-la dali, junto a Walter, e toda a centelha bad
vibe resplandece em película: poderia ser uma encenação pri-
morosa, mas o olhar indica uma verdade. O registro daqueles
momentos de um verão passado viram força centrífuga para
o filme nascer. Não necessariamente “serve” para empurrar a
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narrativa, mas vira um arcabouço fantasmagórico que assom-
bra risonhamente, seduz nostalgicamente.
Amor, Carnaval e Sonhos e A Lira do Delírio incorporam, de
fato, o espírito do carnaval, mas em dado momento peram-
bulam para fora dele, seja por questões formais ou escolhas
narrativas. Sentimos faíscas que empolgam e se esvaem.
Em fevereiro, não sentimos nada, apenas uma transfor-
mação pesável. A muita coisa falta nome. A literatura não al-
cança. Quem sabe a imagem? O cinema é novo e o carnaval é
fênix. Enquanto isso... pulemos!
Fabian Cantieri é formado em Cinema pela PuC-rio e
mestre em Filosofia pela uFrJ. É cineasta e crítico da
revista Cinética.
A CURADORIA INDICA:
Amor, carnaval e sonhos¸ de Paulo Cesar saraceni
Nossa Escola de Samba, de Manuel horácio Gimenéz
Isto é Noel Rosa, de rogério sganzerla
98 sino
pses
sino
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aldir BlanC, dois pra lÁ dois pra CÁdireção: André Sampaioelenco: Aldir Blanc, João Bosco, Moacyr Luz, Guinga, Sueli Costa, Melo MenezesDoc. 54 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2004. LIVREMúsico, compositor, cronista, jornalista, poeta e, sobretudo, letrista. Aldir Blanc, disse Dorival Caymmi, “é carioca mesmo!”. Imagens de arquivo, depoimentos dos parceiros e do próprio sintetizam vida e obra do Bardo da Muda.
alÔ, alÔ, Carnaval!direção: Adhemar Gonzagaelenco: Jaime Costa, Barbosa Júnior, Pinto Filho, Oscarito, Lelita Rosa, Heloísa Helena, Carmen Miranda, Aurora Miranda, Francisco Alves, Lamartine Babo, Linda BatistaFic. 75 minutos, P&B, Sonoro. 35mm. 1936.LIVREO filme narra as peripécias de dois autores na tentativa de levantar fundos para a produção da revista teatral “Banana da Terra”. O clássico musical de Adhemar Gonzaga conta com a participação de nomes como Francisco Alves, Elvira Pagã, Lamartine Babo e as irmãs Aurora e Carmem Miranda.
amor, Carnaval e sonHosdireção: Paulo Cesar Saracenielenco: Arduíno Colassanti, Ana Maria Miranda, Leila Diniz, Hugo CarvanaFic. 80 minutos, Colorido, Sonoro, DVD. 1972. 12 anosÀs vésperas dos quatro dias de carnaval, uma jovem suplica um milagre a uma santa de sua devoção: quer um rapaz com quem possa brincar durante a folia. E, quando todas as esperanças parecem perdidas, o milagre acontece: um malandro surge pela janela. O carnaval está começando, e nas ruas já se ouve o batuque da Cacique de Ramos.
as aventuras amorosas de um padeirodireção: Waldyr Onofreelenco: Paulo César Pereio, Maria do Rosário, Haroldo de Oliveira, Ivan Setta, Procópio MarianoFic. 103 minutos. Colorido. Sonoro. 35mm. 1975. 14 anosRita, casada com Mário, desiludida e estimulada pelas colegas, passa a levar uma vida mais livre e aceita uma aventura com o português Marques, dono de uma padaria. Sua inquietação amorosa não se satisfaz e ela o abandona quando encontra Saul, um crioulo malandro, pintor e poeta, por quem se apaixona. Por vingança e desrespeito, o padeiro avisa o marido da traição da esposa e prepara um flagrante de adultério, na própria casa de Saul, na praia, do qual participa a população local.
BatatinHa, poeta do samBa direção: Marcelo Rabeloelenco: Batatinha, seus filhos, parentes e amigos.Doc. 62 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2008. LIVREEntre imagens de arquivo e depoimentos de amigos e familiares, o filme segue a jornada dos filhos do compositor baiano Oscar da Penha, conhecido como Batatinha, em busca das pessoas que foram importantes na vida do pai.
Berlim na BatuCadadireção: Luiz de Barroselenco: Procópio Ferreira, Delorge Caminha, Francisco Alves, Solange França, Alfredo Vivianne, LysonGaster, Leo Albano.Fic. 75 minutos, P&B, Sonoro. 35mm.1944LIVREUm produtor norte-americano chega ao Brasil para conhecer o carnaval carioca e em busca de artistas e motivos para um filme. Satiriza si
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a passagem de Orson Welles pelo país, além de exibir sequências passadas no Morro da Mangueira: registros de como era a Estação Primeira naquela época.
CarioCas, mÚsiCos da Cidadedireção: Ariel de Bigaultelenco: Grande Otelo, Martinho da Vila, Pixinguinha, Joel Rufino dos Santos, Nelson Sargento, Wilson Moreira, Tia Carmen.Doc. 58 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 1987. LIVREUma viagem pela história do samba, conduzida pelo ator Grande Otelo. O documentário expõe, através de entrevistas e encontros históricos, diferentes tipos e influências dessa manifestação cultural tão relevante para o Brasil.
Cartola, mÚsiCa para os olHosdireção: Lírio Ferreira e Hilton Lacerdaelenco: Cartola, Velha Guarda da Mangueira, Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho.Doc. 88 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2006.O documentário conta, por meio de imagens de arquivo e depoimentos, a vida do sambista Cartola, um dos compositores mais admirados da música brasileira.
Clementina de Jesus - rainHa QuelÉDireção: Werinton KermesElenco: Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, João Bosco, Cristina BuarqueDoc. 56 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2011. LIVREUma homenagem à cantora Clementina de Jesus, força afro-brasileira em forma de voz e presença de palco. Descoberta aos 67 anos por Hermínio Bello de Carvalho, cantou com Paulinho da Viola, João Bosco, Pixinguinha e
outros. Usando depoimentos e material de ar-quivo coletados ao longo de mais de dez anos, o filme traduz a ideia de que “é um direito de todo cidadão brasileiro conhecer a figura e a voz única de Clementina de Jesus”.
Coração do samBadireção: Theresa Jessouronelenco: Integrantes da bateria da Estação Primeira de MangueiraDoc. 72 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2002. LIVREUm passeio pelos bastidores da bateria Surdo Um, da Mangueira. Narrado por Elmo dos Santos, filho do fundador da bateria, o documentário se debruça sobre um exuberante universo de musicalidade e paixão pela percussão.
damas do samBadireção: Susanna Liraelenco: Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Alcione, Mariene de CastroDoc. 75 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2013. LIVREMusas, pastoras, tias, compositoras, passistas, madrinhas, carnavalescas, mulatas, intérpretes e até mesmo como operárias, elas formam um painel de cores, sentimentos e sons. Este filme, reverenciando e reconhecendo sua força, faz um breve passeio pela vida de algumas das mulheres que são parte da história do samba.
fala mangueira!direção: Frederico ConfalonieriDoc. 51 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1983. 12 anosRessaltando a importância cultural do Morro da Mangueira, o documentário aborda a influência que o carnaval exerce sobre o seu cotidiano.
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guardiÕes do samBadireção: Eric Belhassen, Belisário Franca e Marc Belhassenelenco: Nelson Sargento, Nei Lopes, Claudio Camunguelo, Walter Alfaiate, Gilberto Gil, Zeca Pagodinho, Martinho da VilaDoc. 80 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2014.LIVREFilmado em 2005, o filme permaneceu “engavetado” durante mais de oito anos. Com o falecimento de alguns dos personagens principais, renasceu, em 2013, para ser finalizado com a missão de honrar a memória de quem merece. O projeto dá espaço às vozes dos maiores gênios do samba, no seu cotidiano ou reunidos em rodas.
isto É noel rosadireção: Rogério Sganzerlaelenco: João Braga, João GilbertoDoc./Fic. 46 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1990. 12 anosApós Noel por Noel (1981), o sambista carioca é novamente retratado por Rogério Sganzerla. Imagens documentais se intercalam com o ator João Braga representando o músico em uma caminhada trôpega, já tomado pela tuberculose, pelas ruas do Rio de Janeiro, durante o Carnaval.
madame satãdireção: Karim Aïnouzelenco:Lázaro Ramos, Flávio Bauraqui, Marcélia Cartaxo, Renata Sorrah, Emiliano Queiroz, Ricardo Blat, Guilherme Piva, Floriano Peixoto e Gero CamiloFic. 105 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 2002. 16 anosBandido, amante, rebelde, homossexual, pai adotivo, marginal. João Francisco dos Santos foi rei absoluto nas vielas da Lapa carioca dos anos 30, onde inventou sua própria mitologia, tornando-se, por sua vontade, o ‘Madame
Satã’. A história se passa em 1932, momento em que o sonho de João Francisco - tornar-se uma estrela do palco - se transforma em realidade.
o mistÉrio do samBadireção: Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollandaelenco: Marisa Monte, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Monarco, Velha Guarda da Portela.Doc. 90 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2008. LIVREO filme apresenta o trabalho de pesquisa de campo realizado por Marisa Monte nos idos de 1998, junto aos sambistas da Portela, no bairro de Oswaldo Cruz, zona norte do Rio. A cantora percebeu que, além dos cancioneiros inéditos que buscava resgatar, algo mais estava ali. O documentário é um registro desse percurso, que mostra não apenas os bastidores de uma empreitada musical, mas a descoberta de uma relação muito preciosa entre a música, o pertencimento e a história daqueles senhores e senhoras que fazem da Portela suas vidas.
natal da porteladireção: Paulo Cesar Saracenielenco: Milton Gonçalves, Grande Otelo, Adele Fátima, Almir Guineto, Zezé Motta, Monarco, Zózimo Bulbul, Maria Gladys, Jamelão, Paulo Cesar Peréio. Fic. 85 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1988. 12 anosO filme conta a vida de Natal da Portela, o “homem de um braço só”. A trajetória do jovem humilde que perdeu um braço nos trilhos de uma ferrovia e que se tornou um poderoso banqueiro de jogo do bicho, sustentando uma escola de samba, hospitais e orfanatos.
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onde a CoruJa dormeDireção: Simplício Neto e Márcia DerraikElenco: Bezerra da Silva e seus compositores.Doc. 70 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 2006. 12 anosO documentário revela a relação de Bezerra da Silva com seus compositores, egressos dos mor-ros cariocas e da Baixada Fluminense - muitos deles, profissionais de segmentos populares do mercado de trabalho, como carteiros, trocadores de ônibus, pedreiros e biscateiros. Segundo Bezerra, reconhecido por sua malandragem, essas pessoas eram sambistas genuínos.
paulinHo da viola -meu tempo É HoJedireção: Izabel Jaguaribeelenco: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Velha Guarda da Portela, Zeca Pagodinho, Marisa Monte, Amélia Rabello.Doc. 83 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 2002. LIVREPerfil afetivo do cantor, instrumentista e compositor Paulinho da Viola. Apresenta seus mestres e amigos, suas influências musicais, e percorre sua rotina discreta; sua vida particular com atividades e hábitos peculiares, desconhecidos do grande público.
paulo moura - infinita mÚsiCadireção: Ariel de Bigaultelenco: Paulo Moura, Grande Otelo, Joel Rufino dos Santos, Djalma Correa, Turibio Santos, Fundo de Quintal, GRES Imperatriz Leopoldinense.Doc. 58 minutos. Colorido. Sonoro. DVD. 1987. LIVREO filme nos revela este imenso músico, saxofonista, clarinetista, pianista, compositor, arranjador, chefe de orquestra. Paulo Moura multiplica os encontros e diálogos com músicos de diferentes formações e horizontes. E mantém sempre a sua forte ligação com asmúsicas populares urbanas.
paulo vanZolini, um Homem de moraldireção: Ricardo Diaselenco: Paulo Vanzolini, Paulinho da Viola, Márcia, Inezita Barroso, Adoniran Barbosa, Chico BuarqueDoc. 90 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 2008. LIVREPerfil musical de Paulo Vanzolini, compositor e cientista paulista. O documentário apresenta seus sambas, seus amigos e a cidade de São Paulo, tema permanente de suas canções.
o rei do samBadireção: Luiz de Barroselenco: Bené Nunes, Wahita Brasil, Nelly Rodrigues, Carlos Cotrim, Filomena Bandeira, Valéria Amar, Zé Trindade, João Celestino, Carlos Barbosa, De Carambola, Sidália Sales, Antônio Leite, Del Carmen, Costinha, Hélio Chaves, Hélio Ribeiro, Roberto Paiva, Felicitas e Bruno, Elizete Cardoso. Fic. 62 minutos, P&B, Sonoro. DVD. 1952. Fragmentos. 12 anosA obra rara de Luiz de Barros é uma cinebiografia de José Barbosa da Silva, o Sinhô, um dos mais famosos compositores de música popular nos anos 20, e também a última produção de Carmen Santos. Mesmo fragmentada*, é possível entender o desdobramento da história, além de contemplar imagens do Rio de Janeiro nos anos 50. *(a exibição contará com uma conversa posterior com Hernani Heffner, professor de cinema da PUC e da FASP e diretor de conservação da cinemateca do MAM.)
rio, Zona nortedireção: Nelson Pereira dos Santoselenco: Grande Otelo, Jece Valadão, Paulo Goulart, Malu Maia, Haroldo de Oliveira, Ângela Maria e Zé KétiFic. 82 minutos, P&B, Sonoro. 35mm. 1957. LIVRE
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O humilde sambista carioca Espírito da Luz cai de um trem lotado da Central do Brasil. Enquanto agoniza, ele se lembra dos últimos meses de sua vida: a luta para ver seus sambas gravados e interpretados por grandes artistas, como Ângela Maria; as trapaças do falso parceiro Maurício; o filho adolescente que se envolve com criminosos perigosos; o seu relacionamento com a mulata Adelaide.
o samBadireção: Theresa JessouronDoc. 55 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2000. LIVREUm documentário sobre a dança do samba e sua relação com o cotidiano dos moradores do Morro da Mangueira.
saravaHdireção: Pierre Barouhelenco: Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Pixinguinha, Raul de Souza, Baden Powell, João da Baiana e Luiz Carlos Vinhas.Doc. 61 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1972. LIVREO cineasta francês Pierre Barouh registra o efervescente cenário da música popular brasileira nos anos 70. Entre acordes e canções, o diretor enfatiza os nomes de grandes artistas da MPB, como Pixinguinha (então octogenário), Maria Bethânia, Paulinho da Viola e Baden Powell.
tudo É Brasildireção: Rogério Sganzerlaelenco: Orson Welles, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, Linda Batista, Herivelto Martins, Grande OteloDoc. 82 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1995. 12 anosO documentário reúne uma colagem de depoimentos sonoros e imagens e aborda a visita do cineasta Orson Welles ao Brasil em 1942. Conta os bastidores do filme It’s all
true, que nunca chegou a ficar pronto. Retrata os jangadeiros e seu líder Jacaré; Carmen Miranda entrevistando Welles; Grande Otelo e outros. Além disso, é um relato do Rio de Janeiro dos anos 40. Reconhecido como “a afirmação definitiva da obsessão de Sganzerla pela obra de Welles”.
Curtas-metragens
agoniZa, mas não morredireção: Gabriel Meyohas e Maíra Mottaelenco: Nelson Sargento, Dona Ivone Lara, Moacyr LuzDoc. 15 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2011 LIVREBaseado na canção homônima de Nelson Sargento, o documentário traz depoimentos de diversos sambistas a respeito de uma única pergunta: o samba mudou? Os entrevistados analisam o caminho traçado pelo gênero desde sua origem até as mudanças trazidas com a espetacularização do carnaval.
Couro de gatodireção: Joaquim Pedro de Andradeelenco: Francisco de Assis, Riva Nimitz, Henrique César, Napoleão Muniz FreireFic. 12 minutos, P&B, Sonoro. 35mm. 1961. LIVREÀs vésperas do carnaval, garotos de uma favela roubam gatos para fabricantes de tamborins. Exercício de realismo lírico, síntese de ficção e documentário, o filme narra o amor de um menino por um angorá e seu dilema ao ter que vender o bichano.
guilHerme de Britodireção: André Sampaioelenco: Guilherme de Brito, amigos e familiaresDoc. 22 minutos, Colorido, Sonoro. DVD. 2008. LIVRE
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Passeio cinematográfico pelas memórias e pelo universo de Guilherme de Brito: poeta, compositor, cantor e artista plástico, autor de clássicos e um dos maiores nomes da nossa música popular, cujo grande parceiro musical foi Nelson Cavaquinho.
Heitor dos praZeresdireção: Antonio Carlos Fontouraelenco: Heitor dos PrazeresDoc. 13 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1965. LIVREMemórias do sambista popular e pintor naïf Heitor dos Prazeres em seu ateliê na Cidade Nova, berço do samba no Rio de Janeiro. Heitor reflete sobre sua vida, seus sambas, seus quadros e suas recordações.
malandro, termo CiviliZadodireção: Sylvio Lannaelenco:Moreira da Silva e Luiz MelodiaDoc. 25 minutos, Colorido, Sonoro. 16mm. 1986.LIVREO filme registra um encontro musical entre os cantores Moreira da Silva e Luiz Melodia.
maXiXe, a dança perdidadireção: Alex VianyDoc. 32 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1980. LIVRENo início, o maxixe era uma forma de dançar certas músicas europeias, popularizadas no Brasil. Depois, adquiriu personalidade própria, impondo por 40 anos seu predomínio no teatro de revista, bailes e carnaval. Ganhou fama e espalhou-se pelo mundo, nos pés de marinheiros, viajantes e dançarinos. O samba de salão, música mais simples e mais fácil de dançar, fez o maxixe cair no esquecimento. O filme recupera a história dessa dança.
meu Compadre, ZÉ Ketti direção: Nelson Pereira dos Santoselenco: Monarco, Guilherme de Brito, Wilson Moreira, Délcio Carvalho, Jair do Cavaquinho, Walter Alfaiate, Elton Medeiros, Nelson SargentoDoc. 12 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 2001. LIVREHomenagem de Nelson Pereira dos Santos ao sambista Zé Kéti, numa roda de samba em sua memória que reúne amigos saudosos.
moreira da silvadireção: Ivan Cardosoelenco: Moreira da SilvaDoc. 10 minutos, P&B, Sonoro. DVD. 1973. LIVREDocumentário musical que focaliza a figura ímpar do compositor e cantor Antonio Moreira da Silva, o popular Kid Morengueira, responsável por popularizar o “samba de breque”. De terno de linho branco e chapéu panamá, Morengueira interpreta seus antigos sucessos em cenários frequentados pela antiga malandragem, como o Morro de São Carlos, o Hipódromo da Gávea, o Cinema íris e a Gafieira Elite.
nelson CavaQuinHodireção: Leon Hirszmanelenco: Nelson CavaquinhoDoc. 13 minutos, P&B, Sonoro. 35mm. 1969. 12 anosO cotidiano do sambista Nelson Cavaquinho. Sua casa, sua família e sua música melancólica.
nelson sargentodireção: Estevão Ciavatta Pantojaelenco:Nelson Sargento, Carlos Cachaça, Paulinho da ViolaDoc. 26 minutos, Colorido, Sonoro. 35mm. 1997. LIVRE
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Um dos compositores mais carismáticos da Estação Primeira de Mangueira, o sambista Nelson Sargento sobe o morro neste documentário para falar de sua música, de sua escola e também de suas outras atividades, como a pintura e a poesia.
noel por noeldireção: Rogério SganzerlaDoc. 10 minutos, P&B, Sonoro. DVD. 1981. 12 anosEnsaio documental sobre a música e o tempo de Noel Rosa, com colagens de imagens de arquivo, fotografias de época e filmagens de blocos carnavalescos em Vila Isabel.
nossa esCola de samBadireção: Manuel Horácio Giménezelenco: Integrantes da Escola de Samba, Unidos de Vila Isabel. LIVREDoc. 29 minutos, P&B, Sonoro. DVD. 1965.A escola de Samba Unidos de Vila Isabel entra na avenida no carnaval de 1965. Por meio de texto construído a partir de declarações de Antônio Fernandes da Silveira, o China - um dos fundadores da escola -, é possível conhecer um pouco da vida de alguns moradores do morro do Pau da Bandeira, no Rio de Janeiro. Além de todos os passos da preparação para o desfile com o enredo “Rio, Epopeia do Teatro Municipal”.
partido altodireção: Leon Hirszmanelenco: Candeia, Paulinho da Viola, Casquinha, ManaceiaDoc. 22 minutos, Colorido, Sonoro. 16mm. 1982. LIVRECom raízes na batucada baiana, o Partido Alto sofre naturais variações porque, ao contrário do samba comprometido com o espetáculo, é uma forma livre de expressão e comunicação imediata, com versos simples e improvisados,
de acordo com a inspiração de cada um. Partido Alto é uma forma de comunhão, reunindo sambistas em qualquer lugar e hora, pelo simples prazer de se divertir.
piXinguinHadireção: João Carlos Hortaelenco: PixinguinhaDoc. 13 minutos, P&B, Sonoro. 35mm. 1969. LIVREO compositor fala de sua iniciação musical, dos velhos amigos e de seu ambiente caseiro - o piano, as partituras, os remédios. Na varanda, os cascos de bebidas vazios, resultado de reuniões com amigos. Os antigos sucessos são relembrados no saxofone que Paulo Bitttencourt lhe deu de presente.
CoorDenaÇÃo GeralDiogo Cavour | Lúdica Produções
CuraDoriaThiago Ortman e Gabriel Meyohas ProDuÇÃo eXeCuTiVaAïcha Barat assisTenTe De ProDuÇÃoGabriela Ciuffo | Lúdica Produções assessoria De iMPrensaAlex Teixeira iDenTiDaDe Visual e ProJeTo GrÁFiCoAna Dias e Julieta Sobral estúdio \o/ malabares reVisÃoNatalia Francis TeXTosAïcha Barat, Áurea Alves, Bernardo Oliveira, Fabian Cantieri, Gabriel Meyohas, Jairo Ferreira, Juçara Marçal, Luiz Antonio Simas, Simplício Neto, Victor Solis, Victor Uchôa
oFiCinaBurucutum | Pedro Amorim e Oscar Bolão
PalesTranTesAlfredo Del-Penho, Bernardo Oliveira, Giovanna Dealtry, Hermínio Bello de Carvalho, João Máximo, Luiz Antonio Simas
iMPressÃo Do CaTÁloGoJ.Sholna
VinheTa Virginia Primo
FoTo De CaPa Evandro Teixeira
Com excessão dos fotogramas de filmes reproduzidos, as fotografias reproduzidas aqui e listadas abaixo são todas da autoria da fotógrafa francesa Martine barrat (todos os direitos reservados). as imagens são um registro de sua imersão no Morro da Mangueira e no carnaval carioca no ano de 1989
FOTOS MARTINE BARRAT:
p.2-3 – ala das baianas: as rainhas do sambap.4 – Morro da Mangueira: crianças ouvindo e dançando samba. eram dançarinos incríveis.p.6 – Morro da Mangueira: Paulo ramos (grande amigo de hélio oiticica e hoje vice diretor cultural da Mangueira), se preparando para o desfile. p.11 – Findado o carnaval e a folia de três dias, hora do descanso. p.23 – nininha: era a rainha da morro da Mangueira. Costumava carregar o estandarte da escola. era uma dançarina fantástica e grande amiga de hélio oiticica. p.31 – Caindo na folia.p.87 – Paulo ramos dançando.p.90 – sambando.p.96 – a volta do desfile.
AGRADECIMENTOS
Cinemateca brasileira, Cinemateca do MaM, arquivo nacional, alice Cavour, lúcio Cavour, ariane Figueiredo, Paulo ramos, Cecilia rabello, Felipe Tostes, Tiago rios, luiz antonio simas, hernani heffner, João Paulo horta, luiz boal, adryana almeida, Claudia Freitas, Flora beer, regina ortman, Marcio ortman, nelson Ferreira (seu nelson), Guilherme Tostes, Tiago rios, Pedro henrique Ferreira, Julianne Tenório, ana bolshaw, Thiago britto, isabella raposo, Carlos Meyohas, noêmia Meyohas, Victor solis, lula buarque, Duda bouhid, Mariana Marques, Manuelle rosa e Clara Chaves.
nossa equipe agradece carinhosamente a hernani heffner pela generosidade. nosso muito obrigado também a Martine barrat pelas belas fotos que ilustram este catálogo.
Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente os detentores dos direitos autorais das imagens publicadas. Teremos prazer em creditar as fontes caso se manifestem.
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