Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    Síndrome

    do

    Desfiladeiro

    Cássio Corrêa

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    Síndrome

    do

    Desfiladeiro

    Cássio Corrêa 

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    Imagem da capa:

    Belíssima foto encontrada no site Ônibus Brasil,

    atribuída ao Acervo Mário Mendes, postada por

    Eduardo A. Almeida, sob o título “Raridade

    Sorocabana”. 

    1ª impressão –  independente

    dezembro de 2013

    São Paulo / Campinas

    Contato: [email protected]

    As poesias deste livro podem ser reproduzidas

    parcial ou totalmente, desde que não haja fins

    lucrativos e sejam citados autor e fonte.

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     Tenho a sorte de ser amigo das pessoas mais doidas

    do mundo –  cada uma a seu jeito

    mantém pegando fogo essa fogueira

    da poesia-quotidiano.

    Para cada uma delas, vai esse livro.

    E para Jeff, Paulo e Rodrigo.

    E para Daniel e Gera.

    E para Patricia.

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    Índice

    Recebi a nota fiscal da farmácia..............................1

    Há essa coisa meticulosa........................................7

    A menina que trabalha no correio...........................8

    O ecodopplercardiograma......................................12

    O caminhão da prefeitura.....................................14

    O surrealismo não é suficiente..............................16

    Se perguntam como era nosso tempo....................19

    Uma hora a coisa chega no seu normal.................22Vamos sair pela cidade.........................................26

    Eu poderia conseguir falar....................................28

    As senhoras da ocupação......................................30

    O barulho dos helicópteros...................................33

    Acordar com palavras...........................................35

    Poncherello chega em casa....................................37

    O funcionário da prefeitura...................................40

    Não se trata de ter medo de morrer.......................44

    O livro diz o mundo é você....................................46

    Foi na esquina da Bela Cintra...............................48

    A igreja encheu o portão.......................................49

    Encontra, primeiro, teu lugar................................52

    Cuidado, Anne Frank............................................58

    No sábado de aleluia.............................................63

     Já falei de comer o asfalto.....................................68

    Estão pintando uma parede..................................71

    Vemos o cemitério realocado.................................73

    A eficácia desses poemas......................................76

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    O fim do mundo não é mais..................................79

     Tem dias que o precipício transborda....................81

    É difícil fazer de cada poema.................................83

    O mendigo se parece com......................................85

    Nos sonhos com tigres..........................................88

    Faria mistos quentes.............................................90

    Cidade ocupada viaturas.......................................93

    O oficial de justiça................................................95

    Há o túmulo de Apollinaire...................................97

    As carpideiras cantam no The Voice......................99Pedir independência da fila indie.........................100

    A polícia militar estrangula a rua........................105

    Punk rockers que gostam de Guns......................108

    O junkie pobre atravessa a avenida.....................109

    A loja centenária.................................................112

    É dessas paradas de ônibus................................113

    Escolhe os chocolates, pequena..........................114

    Cada segundo a mais o sol queima......................116

    No fundo.............................................................119

    Sobre o autor......................................................120

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    RECEBI A NOTA fiscal da farmácia e atrás dela

    estavam vocês.

    Mas não estavam já encontrados –  eram homens

    paralisadosem fotos velhas, fotos de quando estavam e alguém

    tirava sua foto

    e havia alguém para tirar a foto

    e havia você, para alguém tirar a foto.

    Onde estarão nessa manhã, moços?

     Terão tomado café? Dormido em cama quente?

    Amado mulher? Terão um cachorro?

    Vestirão essas mesmas roupas da foto?

     Terão essa mesma idade? Pararam o tempo?

    Você, Amadeu, 23 anos, desaparecido em 2009

    (semana que vem fará 4 anos),

    ainda olhará com esses olhos de furadeira?

    e ainda veste essa barba?

    e ainda está descalço?Saiu sem sapato na noite aberta?

    Onde aponta

    tua dor esta noite?

    Seu Francisco –  mais velho nesta foto do que

    tua idade diz,

    estará mais velho?

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     Terá sua doença mental passado?

    Estará com mente nova, mente boa?

    E você, Robério? Tinha 20. Quantos anos têm

    agora?

    Você sumiu nesse dia 13 ou antes?

    O dia dessas notas é do desaparecimento ou da

    descoberta de que não estava mais lá?

    Não sei tua idade ou quando sumiu, Fidelço,

    porque o papel cortou bem em cima

    (é que, depois de deixar claro que a transação foi

    feita com senha pessoal, não há mais interesse do

    papel em nos informar)

    Mas você fazia um gesto na foto, menino.

    Era um V ou um paz e amor.Que V ou 2 era esse? Quem venceu? de quem era

    essa paz? Quanto?

    Percebo agora que todos os contatos têm o mesmo

    telefone.

    Será duma mesma mãe a perda de quatro filhos?

    Liga nesse número e ele toca

    como esse telefone maldito que toca de madrugada

    existe a palavra esperança

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    Qual cigarro é esse que foram comprar? Que fumaça

    espalha e cobre o mundo,

    ela vai tampando nossos olhos, não consigo ver

    quem está do meu ladose você esteve do meu lado no ônibus, ou se estava

    sentado na praça,

    a fumaça da besta da noite levando as crianças

    grandes,

    deficiente mental, deficiente químico, deficiente

    emocional, deficiente de atenção, deficiente de

    palavras, deficiente de você, menina, que saiu

    primeiro e me fez sair depois, a rua desconhecida, o

    primeiro ônibus que tiver,

    a cidade que não sei qual é, a noite e a morte, vamos

    falar a verdade agora

    onde estão vocês? na cadeia, mortos, sendo

    estudados na faculdade de medicina,

    esquecidos num hospício, drogados, histéricos, nus,

    são expoentes da minha geração,

    são poetas malditos gritando na madrugada, sãopais ensinando o filho a soltar pipa, são prostitutos

    chupando o pau mole dos velhos da praça

    são políticos odiados, são jagunços ou são

    guerrilheiros, são traficantes ou são usuários, são

    dentistas ou são otários, são garçons ou são

    serventes, são motoristas ou são cadáveres,

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    são bailarinos ou são profetas, são paulos, são

     joãos, são franciscos, são sebastiãos, são anjos ou

    são deuses ociosos, ou são deuses vingativos, ou são

    a chuva, ou são a própria fumaça ou são o tempo

    que parado ficou no simples momento que alguém

    chegou em casa e você não estava

    foto no ponto de ônibus, busca nos hospitais, na

    polícia, na casa dos amiguinhos, no bar da esquina,

    no banco da praça ou no trabalho

    sumiram sem deixar lancheira, sem deixar desenho,

    sem deixar brinquedo espalhado

    sem largar carrinho vazio ou mamadeira pingando,

    sem deixar a porta batendo

    um dia, iam pro trabalho e não voltarama polícia pegou e matou

    roubaram os órgãos

    subiram aos céus, como corpo imaculado que

    ascende com as veias cheias de cocaína

    os olhos roxos da briga do bar, o lombo espancado

    pelo cassetete

    o fogo queimando seu corpo de madrugada e a

    molecada correndo em câmera lenta

    em algum lugar do universo suas cinzas constroem

    vida nova

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    pode ser isso, que começaram vida nova longe,

    não disseram nome, não contaram histórias,

    arrumaram emprego recebendo em dinheiro vivo

    alugaram uma vaga em pensão, falaram pouco,ficou amigo dos imigrantes,

    aprendeu línguas novas, conheceu uma moça no

    baile e inventou nome bonito

    não era mais Amadeu ou Robério ou Francisco ou

    Adelço, mas nomes como Neymar ou Romário

    Edson Arantes Michael Jackson Sílvio Santos

    Abravanel Allen Ginsberg Cássio Corrêa do 8

    tiveram filhos e educaram com vigor

    sem pais, que estavam mortos no passado da cidade

    antiga, do nome antigo,

    e um dia foram comprar aspirina pra criança e

    pegaram a nota da farmácia

    e viraram o papel e viram as fotos dos colegas de

    desaparecimento e viram o rosto antigo

    a barba aposentada e a tristeza que tinham naquela

    épocaa rodoviária e a violência da cidade, cheira cachorro,

    polícia e vingança

    o pessoal do crack, os bêbados velhos deitados nas

    calçadas, com suas histórias

    os noias vivendo na utopia de Atlântida,

    naufragados na manhã,

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    viram a roupa que gastou até o fim

    e a data que perceberam que tinham partido

    a data oficial do sumiço

    esse sumiço cortante

    que faz a vida em duas metades

    que não se juntam

    mais

    como a nota da compra e a nota do cartão

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    HÁ ESSA COISA meticulosa em arrumar cada letra

    da tábua de preços

    apagar com paninho carinhoso e escrever cada letra

    do porpetone com pincelreclamando do tempo e da falta de tempo, 20 anos

    sem tirar férias, sem saber o que é sentar

    fazer a carne com esmero, realizar suas coisas como

    se fossem esses poemas que falam das coisas

    de coisas simples, de ruas cheias de pessoas

    cortando o pão com a faca serrada, o braço

    estendido pra que as cascas caiam fora da roupa

    um casal de velhos sempre passava no açougue

    um dia a esposa caiu da escada e o marido foi

    ajudar levantar e caiu também

    e lá ficaram, passaram a noite caídos,

    um sobre o outro,

    no dia seguinte, ao notar que não passaram no

    açougue, o homem foi olhar na casa deles

    e notou pela janela, os dois caídos no chão

    chamou um colega mais magro, que pulou o muro eabriu a porta e o portão

    e foram acudir o casal

    cada cinema que fechou ou que abriu, cada

    camiseta ou óculos escuros,

    os prédios e o chão, cada poema, eu, você e Allen

    Ginsberg

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    A MENINA QUE TRABALHA no correio e o menino

    eletricista

    começaram a me assustar

    comprando os móveis para a casa nova, passam por

    cima de tudo

    porque são a certeza –  e não pensarão se tiver gente

    no caminho

    porque são a certeza

    deles mesmos

    e assim, vão, comprando enxoval bom

    pra gente ruim

    é que o rapaz eletricista tem ambições bem grandes

    e está puxando o saco do chefe pra ser como o chefe

    ele diz que quando era criança gostava de carro- mas toda criança gosta, de um jeito de criança

    gostar –  

    e isso justifica tudo, pelo jeito

    a menina que trabalha no correio, como é inteligente

    e bem articulada,

     já está fazendo faculdade e com certeza garantirá

    uma pós

    ela estuda Derrida e já fala bem inglês

    a ideia toda é que daqui a pouco tempo os 4 estejam

     jantando juntos

    a menina e seu rapaz o patrão e sua esposa

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    e os 4 discutirão as soluções fascistas que

    conseguem entender

    para dar jeito em quem entra no meio da música

    para arrancar as ciganas da ruapara controlar suas paranoias de casadinho de novo

    a cidade mesmo já está se tornando isso

    estacionamentos e descaracterização de tudo

    lajotas psdebistas impedindo o flanar, lojas de

    salgados no lugar dos restaurantes

    crianças com brinquedos genéricos, bonecas com

    analista e consultor de multas de trânsito

    Luciano Huck é a voz que ecoa pela rua vazia,

    sábado começo de tarde,

    o cachorro quente pós-moderno, prensado na chapa

    de inox, se faz diante da pregação dele

    o mundo com sotaque de elite, cada viatura

    alucinada tirando finas das pernas dos pedestres

    toda calçada é um navio negreiro,

    cada lanche leva a marca de seu chapeiro, essa

    sabedoria do tempo que o queijo ficadelírios de analistas de padaria, blogs com imensas

    fórmulas de dar gosto ao mundo,

    o velho que cuida do frango assado puxa uma

    pelinha e disfarça

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    a moça levanta da cadeira redonda com uma bunda

    desproporcional

    caminha sua miséria e dor lentamente ao caixa e

    esbarra sem querer nas carolinas

    ela quer que alguém a ame e deve ter quem ame sim

    eu nessa hora a amo e a trago pro meio desse poema

     já somos vários contra os 4 cavalheiros do

    apocalipse e Luciano Huck

    ele vai ser presidente, mas a gente não vai viver a

    vida que

    eles querem

    nem eu, nem as ciganas, nem o velho do frango,

    nem a moça obesa, nem o chapeiro

    um garoto insiste patriótico numa bandeira pro jogodo Brasil

    o avô compra por pechinchados 3 reais e plástico

    que enrola no mastro e estraga logo

    dura uma foto da copa de 90, meu cabelo capacete,

    meu avô forte e meu irmão bebê no colo

    a casa que já foi demolida, a cidade antiga jogada

    pra trás

    os estupradores do bairro que nos metiam medo na

    infância já são cinquentões

    mas o ponto não é a saudade pessoal das esquinas

    ou das coisas de pequeno

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    o problema são os estupradores da vida adulta

    violentando a vida dos outros com suas sanhas de

    maníaco

    decidindo quem vive ou morrecomo quem escolhe entre frutado ou sei lá o quê

    na degustação de vinho maldita

    que fazem toda quarta de noite

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    O ECODOPPLERCARDIOGRAMA

    princípio de ondas e distância, ambulância que

    distorce sirene ao longe de mim,

    e o hospital, paredes pastel, marcas de cores no

    chão, caminhar pros exames, internações, nunca a

    saída,

    seguranças e pulseiras

    se você internado sair fugido é crime, minha mãe

    indo de camburão atrás do pai que sequestrou a

    filha da pediatria,

    nunca sem minha filha, sessão da tarde na TV de

    plasma

    sem som, closed caption desanimado, gestante e

    ultrassom,dona Eliza, parabéns, e os pais futuros andam pelas

    linhas coloridas, logo depois a adolescente mãe sai

    com sua

    criança chorando –  arrependimento, insônia e amor,

    Freud e suas explicações arrancando um copinho e

    bebendo a água com gosto ruim do bebedouro,

    banheiro unissex cheirando doença e sopa da

    cozinha do hospital, a sirene Doppler lá fora, algum

    acidentado no PS, sangue suor e cerveja, briga de

    trânsito e o suicídio tentado que anda pelas linhas

    pretas do chão,

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    lázaro que levanta da maca e arrasta

    as canículas de soro e sangue, bolsa de urina

    pendurada na humanidade, é aí que vemos comosomos poucos,

    fracos e de carne feita de areia de praia, o sopro

    final sai com a morte, espírito do tempo que esvai

    num quarto dos fundos,

    o choro dos mortos fica escondido nas paredes

    veladas das UTIs

    e no jardim psicológico-zen que fica na frente, onde

    os parentes choram as últimas gotas

    as crianças brincam no parquinho e as enfermeiras

    fumam apressadamente.

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    O CAMINHÃO DA prefeitura e a polícia recolhem

    os trapos das pessoas debaixo do elevado

    colchões, sacos, cobertores e caixas de pizza

    Expurgar a sujeira da rua

    A primeira vez que vi

    mas não foi a primeira vez que aconteceu

    E o carro-pipa lava a lajota

    e lava a possibilidade de sentar de novo

    Vai chover

    Começa a chuva

    Vento

    E trovões que soam como bombas

    Bombardeando esse campo de guerra

    Água agente desfolhanteDesentocando os que dormem

    nas praças

    para a ratoeira das marquises

    A água do carro-pipa

    é redundante

    A chuva está do lado da prefeitura

    Água sobre água lavando a cidade

    E os bueiros bulímicos vomitam água

    E os carros jogam água de cima do viaduto

    como se fosse o Playcenter

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    Porque a vida imita o plástico

    Que cobre as cabeças nesse começo de tarde

    Vai passar

    sempre passae suja de novo

    E a gente vai entendendo

    como tudo sempre suja de novo

    O bueiro acaba engolindo a água que tinha vomitado

    antes

    E o mormaço desinfeta a democracia

    Os missionários distribuem mais cobertores essa

    noite

    Porque poemas são muito finos pra cobrir o corpo

    Mal tampam o rosto de quem os escreve

    Quando chovia forte desse jeito

    me diziam que era Deus

    chorando por causa das injustiças do mundo.

     Já sei que não é.

    É que todo mundo aprende

    a seguir em frenteporque a vida

    continua.

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    O SURREALISMO NÃO é suficiente

    o mágico estilhaça o relógio da necropsista no saco

    enfeitiçado

    ela ameaça bagunçar seus órgãos na hora da morte,

    pensa um órgão, mas não fala,

    vai rodopiar pelas marcas de água no chão, o calor

    corta seu palco em dez, na hora do cachê

    as pessoas saem, muita demora pra ver o pinto sair

    do saco na mão do moço,

     já vimos isso tudo mil vezes e ainda estamos

    estupefatos pelo céu, turistas fotografam nossa

    idade média, em campeonatos de damas e duplas

    caipiras desconhecidas, ainda há um país vivo

    debaixo das pedras que a prefeitura larga, há aprostituta iniciante comendo fandangos em sua

    celulite, velhos com camisas floridas e dinheiro

    contado de viúvo procurando xana

    não efetuamos trocas aos sábados, pouco caso e

    sovaco no quarto mal pintado, a mão cheia

    de farelo punhetando SOS na pica velha, viagra por

    14,99, o capitalismo é um sistema

    oferta e procura, ruas temáticas, homens de

    negócios em pé, escora química da cidade devastada

    as putas velhas do jardim da luz em suas fontes

    secas, anfiteatros de tijolos aparentes,

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    bolsas falsificadas e o tempo pendurado nos fios dos

    cabelos de arco-íris, TV telefunken colorida

    passando a novela do dia, o naipe de violoncelos

    atravessa as calçadas desviando dos troços cagadosnos postes,

    partituras penduradas nas janelas dos cortiços,

    vamos assoviando a vida

    debaixo do universo sobre nós, universos de pentes

    de pentear bigode e outras vidas de homem

    vou fazendo a ronda nos bares, assistindo o Brasil

    perder o ouro pro México, falta time

    aqui eles jogam, mas fora tremem, todos nós vimos

    o cara subir pra cabecear sozinho, na falha

    da marcação das coisas, sair desse bar, andar um

    pouco e parar mais a frente, debatendo a falta

    e chacoalhando nossa democracia, virão os clichês

    de ouro de sierra maestra, os clichês

    de cristos caídos na calçada, politeísmo de mendigos

    em posições uterinas, dormindo nas mãos

    de parkinson de nosso senhor, as crianças um diacrescerão e olharão por cima dos muros,

    verão a linha do trem que agora se esconde e

    escreverão foda-se o sistema na parede da ponte,

    e escreverão deus é inseto na parede do céu da

    boca, e escreverão versos repetidos

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    dizendo não se pode beijar a boca do lixo, esse é

    nosso mundo, tem coisa demais acontecendo

    e esqueço, esse poema era melhor no pensamento,

    aconteceu nas ruas, entrava por meus olhos

    e ocupava todos lugares abandonados de mim, a

    cidade me povoa em seus poemas e delírios,

    revoluções abandonadas em estátuas, as pessoas

    sofrem e a poesia não é remédio,

    apenas é algo que carrego aqui, como sacola de

    compra importante feita nesse sábado da eternidade

    termino no balcão de Pfs do Ita, o mundo é muito

    grande pra um só homem entender

    o bar está cheio de barbudos como eu, a cidade é

    imensa e ainda não sei de tudo nem o começo

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    SE PERGUNTAM COMO era nosso tempo

    Era o tempo ruim que todo tempo é

    Bombas digitando guerras pelo cosmos

    E outras explodindo nas ruasAs pessoas em tempo de paz

    lutando a vingança de não sermos todos felizes

    como o tempo de paz exige historicamente

    remédios e telefones, para falar com deus enquanto

    se espera na fila

    Elas dizem pra mim: só quero viver minha vida, hey

    Se perguntam como era ser feliz

    sem fome ou com pernas boas

    (o menino com sapatos feios vira inimigo do mendigo

    sem pernas)

    só respondo que cada um vivia sua guerra

    noticiada 24 horas em coberturas especiais -

    a justificativa que os tribunais pedirão de nós

    Os poetas não queriam o fim do Estadoporque dependiam dele para viver sua miséria

    E os jornalistas cínicos duvidavam

    porque não há cosmogonia maior que a deles

    e dos cientistas sociais explicando as relações

    políticas

    entre os diversos atores sociais

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    Mas os poetas só se preocupam

    com a olhada que o político deu para a secretária

    feia

    e com a referência mitológica dos deuses nórdicos e

    seus carros alados

    Me chamo de poeta

    Se não me chamaria do quê?

    Analista para assuntos administrativos

    o Estado comprando minha mão de obra

    que carimba certificados de matrícula e carrega

    mesas provisórias

    Mas se não comprasse, quem compraria?Estudamos para ser professores, mas a escola nos

    cuspiu fora

    Nos arrancou como uva

    desse imenso vinhedo

     jogou num balde e pisoteou

    Pressão alta, obesidade e as noites inteiras

    discutindo

    como o mundo pode mudar através do

    conhecimento

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    (na volta, os pastores acharam o corpo apodrecido

    no espinheiro)

     Talvez já falte argúcia de explicar o mundo

    e se passe por ele apenas porque morrer dá medo

    ainda

    A parábola do semáforo pode ajudar:

    antes, 10 segundos era verde para o pedestre

    atravessar

    e 5 segundos piscava para avisar que o sinal abriria

    para os carros

    agora, o semáforo fica verde para os pedestres por 5

    segundos

    e 10 segundos ele pisca, para garantir a

    segura

    travessia

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    UMA HORA A coisa chega no seu normal

    E assim, hoje, demorou, mas vi, a prefeitura em sua

    velha sanha de perseguir os mendigos

    andava disfarçado demais, noturnamente demais

    os sofás e barracas e mochilas esfarrapados

    convivendo na calçada, com a palavra convivendo

    mas as leis são naturais, caem como a gravidade ao

    chão

    naturais e históricas, históricas e naturais

    naturais como ser a maçã que cai nas observações

    do império britânico, sir Isaac Newton e sua

    opinião sobre a cidade publicada na gazeta do bairro

    E assim, a cena se repete, com a Kombi e a viatura

    da GCM, limpando a rua, o tempo, a veiaescolheram o mais fascista dos motoristas –  e sua

    perua estilizada, carro oficial com rodona

    e rebaixado, vidro com mensagem do evangelho e

    vigilância sanitária

    e chamaram os carregadores –  peões da prefeitura

    que mais se parecem com os mendigos

    do que comigo e com o prefeito, alguns ex-

    moradores de rua, que fizeram supletivo e concurso

    mas guardaram suas tatuagens

    descem do seu navio e passam a carregar os

    espólios

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    sofás conseguidos com trabalho, carregar desde lá

    até aqui, a casa do cachorro e a barraca comprada,

    50 garrafas de rum e homens ao mar

    piratas que cantam e berram enquanto 1, 2 e 3lançam o móvel pra caçamba

    ei La ÔOOO, fifth bootles of rum!

    a cena nos revira os olhos e cresce a raiva

    um dia entram na casa e roubam seu sofá

    levam seu sofá

    mas não é o seu sofá

    é o sofá de um mendigo não é o seu não é o meu

    eles levam o sofá, um dia eles entram e levam seu

    sofá

    o deles, porque o seu e o meu ainda não levaram

    ninguém dá bola, ninguém dá bola

    passos adiante, esse poema sendo pensado

    (o poema já aconteceu),

    vejo uma casinha linda no Bixiga e me permito

    pensar –  coisa de 2 segundos –  como seria bom

    morar nelacom meu sofá e minha poesia e minha indignação e

    minha barba de pirata

    mas não é assim

    as coisas são mais complexas,

    uma das fascistas que passou botando fogo no lixo e

    asfixiando as crianças de colo que moram na rua

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    disse para o pai que na rua não é lugar de criança

    morar

    só moram as da classe média, com seus brinquedos

    de matar

    homo ludens enterrando mendigos, queimando

    mendigos, estuprando e testando vacinas

    com suas câmaras de gás portáteis passam a foice

    em quem é restolho na calçada

    falta a esses nazistas de nosso tempo

    a preta velha que serviu de babá

    e que adoçou a boca dos artistas dos anos 60 com

    suas tetas de negra da mistura

    poetas e cantores entendendo o Brasil pela força da

    antropologiamas sobra a elas o papo furado fascista das

    professoras de escola

    com seus teoremas de exceção e suas fórmulas de

     justiçamento

    assim, entre caminhões que roubam sofás

    (porque pegar o que é de outrem é roubo,

    ainda que sofá velho)

    ou em maçaricos crescidos com danoninho

    em assassinos

    e indignados

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    Volto atrás na fala anterior

    dão bola

     –  bola demais,

    sobra bola,país da bola

    dão bola

    mas precisaríamos dar bombas

    E elas explodiriam a maldade

    e os mendigos, sentados em seus sofás,

    leriam esse poema

    e lamentariam o procedimento discursivo

    mas dariam um desconto pela citação

    à Pessoa

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    VAMOS SAIR PELA cidade

    procurando uma lembrança pra levar pra casa dessa

    visita, renovando memórias em calçadas tortas que

    piso lentamente

    aqui foi um rio e ali é o maior prédio de nossas

    vidas,

    outro foi feito em aposta

    um mundo de tijolos que se afasta de mim e de você

    cinemas com filmes nunca assistidos e PFs com

    provolone ao invés de mussarela

    fotografias novas que me mostram já na decadência,

    montanhas russas que sobem e descem

    pelos fios, corpos mecânicos lutando pra ver as

    profecias escritas nas pedras do chãoo céu é o mesmo de nossas casas,

    mas o tempo passa rápido

    e as folhas verdes ficam marrons

    era uma vez outras teorias que contava, como

    cantigas de ninar sobre viadutos e trólebus

    atacantes que não ficaram pra história e alfajores

    uruguaios que valerão mais quando eu morrer

    faltará muito entre as placas de luto e

    completaremos com nossas projeções

    você ainda viu a polícia abusando das pessoas como

    cartão postal do nosso tempo

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    e me viu brigando com os carros que violentam a

    liberdade das pernas

    quais imagens irão formar os recortes desse dia?

    a cidade e suas lembranças, estive aqui e melembrei de você

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    EU PODERIA CONSEGUIR falar dessas coisas

    mas tudo some e aparece em poesia

    dizer para a moça do PF

    que a batata foi uma das melhores que já comi

    Ao sair, um velho mendigo de Sorocaba,

    com seus óculos de solda e capacete,

    ele que eu invejava ao descobrir Pessoa

    ainda está vivo e forte

    carregando suas tralhas pela cidade

    desfiladeiro

    eu quero o canto daqueles que não fazem diferença

    que como eu não fazem diferença

    o derrotado do rock que troca relógioo velho que pinta as falhas da tinta da parede do

    mercado

    trabalho inútil, que não vai fazer diferença

    cantar cada qual que não faz diferença

    O pastor que foi sonegado no recebimento

    do dom da palavra

    clichês em looping

    Deus dá, Deus tira, digo em resposta

    ao gracejo das meninas da loja

    que falavam de suas repressões

    perversões em sapatos ruins

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    AS SENHORAS DA ocupação São João

    acampam nas calçadas

    cantam e oram

    entra na minha casa

    entra na minha vida

    e eu acredito

    e peço que você entre mesmo, Jesus.

    Mas que não seja um burguês loiro

    amigo do juiz que assina liminares

    playboy que abusa de ser filho do dono

    Que não seja um burocrata divino

    que tem mãos atadas

    apenas por cumprir ordens

    se não perde o emprego.Entra na casa delas que não existe

    e para com seu corpo poderoso na frente dos

    tanques

    carregando sua sacola com o pãozinho francês que

    pegou no extra

    segura os escudos da polícia

    e transforma as balas de borracha em gelecas

    molengas

    que a criançada vai pegar e zoar

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    Entra na casa sem paredes delas

    e ajuda a segurar a chuva do fim da tarde,

    seu próprio corpo a parede

    (inverte: você é a parede, não o quadro)muda a vida com seu poder místico, que seja,

    desvia a chuva

    faz os cegos enxergarem

    Acredita que a intervenção divina se faz importante

    e admite que o livre-arbítrio é uma cagada

    quando misturado com o abuso do poder

    Interfere no mundo do teu pai

    porque o filho será o pai

    põe tua mão em cima, vai,

    esquece que a gente é ateu e que acredita que vai

    derrubar o inimigo maior

    e entra na casa daquelas senhoras

    É que elas são fraquinhas

    e já não podem mais dormir nessa calçada.

    Sei que você está no meio delas,

    mendigo deitado do outro lado,que vem e me pede um dinheiro pra janta

    e eu não tenho

    só cartão, acredita, senhor,

    essa nossa contradição.

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    E sendo poderoso, Jesus,

    com toda humanidade que só quem entra na casa

    de alguém pode ter,

    vê se consegue perdoar

    os filhos duma puta daqueles

    guardas municipais

    que passaram com a viatura no meio da calçada

    e do canteiro

    só pra humilhar

    só pra intimidar

    (como se a casa sem casa não fosse bastante)

    contrariando a ONU

    o mecânico do amortecedor

    e até seu fac-símile de papel Bíblia, Jesus,perdoa esses lazarentos

    porque eu

    não vou perdoar

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    O BARULHO DOS helicópteros da polícia atrapalha

    o dendlenzar chatinho do violão MPB

    passa pela calçada um homem com o cabelo do

    Marighela, raspado do ladoele tem a mesma cara do Marighela

    os bancos são quebrados

    coitados dos bancos, pobres bancos,

    que fazem tanto pelo meio-ambiente, bancos,

    bancos que inverteram as coisas e passaram a ser

    os coitados que são atacados

    bancos que fazem velho chorar, bancos que fazem

    um homem colocar o revólver na orelha

    e explodir sua cabeça

    (no cérebro que voa, os publicitários percebem o

    contraste entre as cores

    e aproveitam no próximo comercial)

    compositores folk, caixas e auxiliares de limpeza, de

    mãos dadas com os helicópteros

    Amarildo desaparecido, estado de exceção

    permanente não é exceçãoassassinos eleitos

    assassinos contratados por concurso público

    descrição das atividades correlatas, cargo amplo,

    cada gerente

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    mas o banco faz mais poesia que esse poema

    ele salva o mundo, ele salva Amarildo só para matá-

    lo de novo, aos poucos

    a PM vai vencer e derrubar os bancos?

    ou os bancos vão vencer e endividar os PMs?

    há a esquina onde Marighela foi morto e haverá a

    esquina onde Amarildo foi morto

    garotos e garotas aprendendo história com um

    professor ateu

    1984 está nas ruas, minha gente

    respeitem as faixas amarelas e não escrevam coisas

    perigosas demais

    os jornais são reescritos e a gente está fudido

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    ACORDAR

    COM PALAVRAS demais na boca, teses com

    laranjada, se a cidade não dorme, ela não para de

    pensarsão discos voadores invadindo a

    universidade de são paulo, objetos cheios de gente,

    ônibus carregados de alteridade, estudar mas não

    acreditar no que se estuda, as ditaduras

    aparecem nos guardas da esquina, dentes afiados

    deslacando regras e alvarás, segurança

    patrimonial, segurança familiar, segurança da

    tradição acadêmica nacional, discutir a direita

    em seminários de croissant, ser a direita no café da

    manhã do departamento,

    a cidade existe, independente de publicarem suas

    teses, a vingança da academia

    é taxar todo pensamento de acadêmico, vampirismo

    maldorento de manter presos os livres

    pra sempre me chamarão de acadêmico, ainda que

    tenha dado com pé na cara deles,a vingança dos reprimidos é expor a vergonha dos

    outros de tirar a calça, mijar no gabinete do WC,

    proteger-se com os mármores anti-urina que muram

    o alcance dos teus músculos excretores,

    estamos andando em ombros de gigantes, só não

    sabemos quais,

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    os gigantes das ruas

    que insistem em existir, mal rompe a manhã, os

    gigantes montando suas barracas de melancia

    os gigantes da literatura universal, do rock, Gérson

    dando lançamentos precisos para Baudelaire,

    os motoristas de ônibus míticos da infância, com

    suas suíças brancas e seus câmbios estilizados,

    a pós-modernidade, baby, é colocar aço inox nas

    alavancas da memória,

    por isso, mãe, eu só to sangrando, mas um sangue

    de outro gosto, que percebido ou não,

    lava, e que entra pelo buraco do sapato e fecunda a

    perna, a rua, o tempo, a luta,

    as formas são fiapos de totalidade, fomos dormir,acordamos e o viaduto ainda liga as décadas

    vemos os prédios que pegaram fogo no passado, mas

    viraram crentes,

    as gretchens com fogo morto, bagaços de cana dos

    anos 70, crenças mantidas,

    mas o carro, esse a gente troca todo ano

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    PONCHERELLO CHEGA EM casa no fim do

    expediente

    hoje meteu uma bala na cabeça de mais uma pessoa

    a primeira já faz tempo, e existem trabalhos porqueprecisam ser feitos, se desculpa,

    a estrada é perigosa, liga aqui até lá e no caminho

    estão os que atrasam

    pobres em suas ocupações

    o mundo já lhe dá razão

    ser americano na TV é mais fácil do que ser

    cavaleiro em sua moto

    os adolescentes se deslumbram com a moto

    rasgando a boiada em revoada

    suas botas, óculos, capacetes, jaquetas de couro e a

    técnica de pilotar com uma mão e

    atirar com a outra

    um dia serão mortos por uma moto dessas, na meia

    noite da chacina

    Poncherello assassino oficial do Estado OCP

    a cidade é uma Detroit privatizada e os executivosviajam em helicópteros com raybans

    um dia, tem vontade,

    matarão as ciganas de cima da ponte

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    elas grudam na mão dos transeuntes, lendo o futuro

    no rosto de medo

    suas saias coloridas e seus olhos sendo espiados de

    dentro do trólebus Machado de Assis,

    uma cigana bonita chama a atenção

    anos 70 e suas mulheres voluptuosas, paraguaias,

    ciganas, galopeiras de cabelo ensebado

    e peitos de Victor Hugo, Poncherello quer matar o

    que não for apocalipse de St. James

    quer destruir o que não for multishow de

    madrugada, soft porn das professoras primárias

    teatro mágico no foursome, o governador dando

    dicas de kama sutra, o coronel explicando

    suas táticas de conquista, o pastor tampando ospelos da buceta de sua esposa, que galopa

    em sua rola pós-moderna, encapada com aço-inox

    da verdade e do presente

    papel de presente que embrulha o sexo das ciganas

    e vende em lojas no mercadão

    nunca a cidade esteve vazia

    ela só se esvaziou da sua burguesia maldita, perdeu

    senhoras de sombrinha e espartilho

    seus esposos ainda restaram nos escritórios de

    advocacia

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    perto dos fóruns, das faculdades, dos restaurantes

    de quepe e espada

    os cafés viraram estacionamentos, onde guardam

    seus veículos de exceçãoao fim do dia viajam para seus cinturões,

    fascist belt

    que vota PSDB

    onde seus filhos usam camisas polos e suas

    empregadas vestem roupas de fetiche

    a cidade está cheia de gente de verdade

    vão embora e não voltem, lazarentos de pasta

    sansonite

    e vade mecum no meio do cu

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    O FUNCIONÁRIO DA prefeitura gentilmente

    arruma uma das sacolas dos acampados

    no caminhão da prefeitura

    Pra qual distância das calçadas históricas vai?

    pra lugares sem história, sem fotos clássicas

    antes, aqui era tudo mato e mato em preto e branco

    não tem nada de mais

    Os garotos australianos descem pela rua que vende

    ferramentas e eu também

    minha cidade, abacaxi gelado no saquinho,

    ouvindo a pluralidade dos chineses, coreanos que

    seguem o mundo

    o brasil é o pior lugar do meu mundo

    cogita patrimônio dos prédios, canonização da pedradar título de santo é comprar o humano,

    tirar seu sangue e encher de gesso.

    Rodela, da TV, faz seu show no viaduto,

    patrimônio, ela é famosa, mãe,

    esse pessoal que para pra ver o show mas não dá

    uma moeda

    dez centavos que seja, irmão, já tá valendo

    o vendedor de gaitas sopra dodecafônico

    ô, madre, mira, pra teu irro

    e o moleque toma um puxão no braço

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    se lembrará de um viaduto na memória,

    falará português, planejará visitar os avós que não

    conhece,

    e, um dia, os trará pra cá, tirará fotos de cima doviaduto com a bandeira da praça

    tremulando internacionalmente atrás,

    porque eles querem destruir a cidade, mas a cidade

    resiste, abuelo,

    eles querem tirar as pessoas na marra e as estátuas

    vivas

    e encher de telhados de shopping,

    e seguranças de paletó e fone de ouvido,

    rádios garantindo que nada vai entrar

    pelas fissuras do asfalto,

    eles querem tombar tudo e fazer seus prédios de

    vidraria,

    formol guardando os esqueletos das meninas do

    telemarketing e seus namorados tarados,

    botas com pelúcia e calças saruel

    o menino toca sua gaitaolhos-tristes garota da baixada,

    que subiu de van pra cidade

    ver o japonês fotógrafo pisar no meu pé

    e dizer sóri

    meu abacaxi gelado no saquinho

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    o brasil é o pior país do meu mundo

    porque vivo perto de gente ruim, e tudo é grave,

    o café do chefe que atrasou e ele fica bravo

    e tem vaga especial e corta caminho pelo corredor do

    ônibus

    mas não porque seu avô toca gaita sobre o viaduto

    ou porque seu país é do outro lado do mundo

    e aqui vamos recebê-lo, com sua mochila e seus

    filhos sem língua

    que falarão português, mas não vai adiantar,

    porque quando o café não chega na hora,

    o chefe nem quer ouvir

    nem quer ouvir essa língua misturada

    que, faz tempo, defenderam na semana de artemoderna

    Nesta semana tem programação especial,

    e a filha do chefe dançará balé no municipal

    mas ele brigará com o manobrista, que por sua vez,

    nem faz ideia

    de quem é o mário de andrade pintado de prata

    que faz seu show no meio da cidade.

    E assim, vamos construindo tetos abertos

    porque dá pra ver o céu, e ver que ele é grande,

    imenso, subindo como os olhos do avô

    que posa para a foto do neto

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    Na parede da calçada onde o povo acampava,

    um guarda municipal

    vê o desenho

    livreque uma das crianças pintou

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    NÃO SE TRATA de ter medo de morrer e isso travar

    as pernas

    a raiva é do autoritarismo da morte, de vir e parar

    tudo no meio

    quando um carro desgovernado ou tiro ou câncer

    corta a experiência

    E farão epitáfios nos jornais, dizendo poeta e a

    profissão que tiver na época

    Ninguém acreditará na obra do morto, eu não lerei

    sua poesia só pra conhecer,

    E pegarão poemas abandonados da infância e

    publicarão

    só para aumentar o espólio da sua obra –  porque

    sua poesia é universal,mas seu copyright é familiar

    E enterrarão com bandeira de time de futebol ou de

    partido

    Se famoso, os adolescentes treparão em seus

    túmulos

    Ou se cremado, terá uma plaquinha num

    columbário

    ou essa chuva cinza pouca que cai no fim do dia (se

    conseguirmos pagar o caro valor de um

    helicóptero de aluguel) ou termina em clichê de

    praia ou samambaia

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    Se famoso, dirão Faleceu, hoje, aos sei lá quantos

    anos, de falência múltipla dos órgãos,

    no hospital tal, na zona, de que cidade for, o poeta e

    profissão que tiver na época, Cássio CorrêaO Brasil fica mais triste ou o país fica mais medíocre

    ou o que o valha

    O céu ficará mais poético

    Se juntará a Roberto Piva e Syd Barret

    Abertura em jogral de jornal da Globo:

    o país perde uma de suas maiores vozes

    morre o poeta das multidões

    enterrado no Cemitério São João Batista

    com a presença do presidente das Organizações

    Globo, jornalista Algum Marinho da época

     @ presidente declarou em nota que: A raça humana

    perde hoje um de seus maiores cantores

    E assim vai...

    Nada acontecerá.

    Aos amigos mais próximos –  os poucos que

    conhecerão esse poema –  espero, ao menos, que zoem minha cara

    Lendo bem teatralmente as partes grandiloquentes.

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    O LIVRO DIZ o mundo é você e o ônibus para e o

    mundo corre para chegar primeiro

    o ativismo nas ruas celebra o fragmento das coisas,

    as coisas são apenas coisas, a filosofia

    contente com passagens para onde se faz melhor

    poesia, na margem do Minho,

    num pub na Baker Street, as margens célebres do

    Sena, Bleecker Street e muitos dólares a mais,

    assim, não sobrará escolas em Frankfurt, se todos

    se cansam, por que os pensadores não?

    a caverna é um reality show das sombras, e o cerne

    dessa crítica não é a celebridade,

    mas sim o livro que é lido pela moça secretária, ou

    pelo intelectualqualquer Tchecov mal interpretado, todo Kafka lido

    em fila de museu,

    seria minha barba de Cláudio Cunha em

    Oh, Rebuceteio! parte dessa mesma ética?

    sempre apontando para algum lugar que seja fora

    daqui, a realidade é um post crítico

    de um amigo crítico que está cada vez mais

    neurótico ou uma mensagem fanática

    de um parente fariseu –  o ponto é que não há rede

    social que tenha inventado o que já havia

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    busca a cerveja moleque, não mija aí moleque, você

    precisa se emendar moleque,

    se emenda na puta que te pariu, filho da puta, broxa

    fariseu, e toma a cerveja com o catarromoço das primeiras manhãs do século –  a poesia

    ultra-romântica nos fez mais ternos, como a lua,

    como a morte do lateral que não saiu na foto da

    Copa,

    pede-se memória quando o esquecimento é o padrão

    país de mal de Alzheimer, velhos senis gritando pela

     janela como cachorros desguelados

    e tem a mesquinharia nacional, essa raiva de pobre

    que alimenta a classe média

    Baudelaire censurado Poe sua passante você que

    veio do norte Belchior

    (nota para um editor do futuro: procure nos jornais

    do passado a repercussão da contratação de

    médicos

    estrangeiros para trabalhar em buracos que

    nenhum médico brasileiro quis)

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    FOI NA ESQUINA da Bela Cintra com a Fernando de

    Albuquerque

    as bombas vinham zumbindo

    o gás lavava o rosto de cada um

    mas ninguém desistia.

    Num bar largado às pressas,

    garrafas quebradas por toda calçada.

    No meio da correria,

    com os cavalos já em cima do povo,

    uma moça, bem nova, pequena,

    se abaixa

    e pega um caco de vidro.

    Coloca de leve num canto escondido.

    “Imagina se alguém pisa”, seus olhos molhados sussurram.

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    A IGREJA ENCHEU o portão do seu estacionamento

    de arames farpados

    os mandamentos já não convencem, e a comunidade

    não acredita na lei dos homensum dia o sacristão acorda no meio da noite e vai

    tirar um homem empalado de sua rede

    pescador de homens, ladrões de toca-fita GPS, Jesus

    era bom, mas não era frouxo,

    teria seguro hoje, porque o que é de César os

    homens querem,

    ladrão que rouba ladrão morre na cruz lateral,

    explicar pros fieis a morte nos espinheiros

    cruzada contra a Jerusalém simbólica sitiada, são

    Paulo cidade ocupada, olhos de coruja

    espiando os passos das pessoas, raio mortal

    instalado na lua, satélite de observação

    estacionado sobre as calçadas, passando em cima

    da perna dos mendigos e das caixas

    de papelão dos camelôs, as mesas viram cama, as

    fontes secam banhos, são privadas cagadasembalagens de marmita e sopa, deserto árido, não

    se gasta água com essa gente da cidade

    não se corta a grama que é proibido pisar, é proibido

    comer porcaria da rua, a carne podre

    dos churrascos ou hot-dogs faz mal, faz bem o

    cérebro carne-louca buzinando histerias

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    e paranoias, a chapa quente do fascismo torrando

    cada neurônio, a neurologia é o açougue

    científico que explicará os posicionamentos e o

    cósmico, ela vence a psicologia no MMA dos

    campos de concentração, tabela o cérebro nas

    ligações sinápticas interligadas por táxis

    conectores químicos que vencem a carne, a fé e a

    droga, que desarmam a bomba da poesia

    mães mal comidas se masturbam enquanto leem

    suas literaturas de classe, letras certas que devem

    ser tocadas, painéis de neon acesos com as letras

    certas, roletrando

    girando o carrossel desnorteado dos loucos, de todos

    tiposos que tiveram o cérebro lobotomizado, arrancado

    pelo nariz de cocaína, pelo álcool, pelo trabalho, pela

    família, pela polícia, pelo capitalismo, pelo moloch

    gigantesco nas galerias

    oficiais de arte, moloch de cimento arrebentando as

    cabeças e comendo o cérebro como noz

    como gelatina vermelha colocada em copinho

    plástico na festa de aniversário

    aperta o plástico do crânio e engole a gosma que

    passa fria pela garganta do monstro

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     já há o apocalipse racionalizado dos extermínios,

    das desocupações de prédios, da matança dos

    porcos que gritam alto, logo eles virão, chegarão e

    arrancarão nossas cabeças,espanhóis portugueses bandeirantes peregrinos

    proprietários policiais jornalistas neurologistas

    sem metáforas, sem linguagem, canibalizando a

    carne das ruas,

    completando o ciclo do saque: a cidade proibida será

    deles, que comerão nossa carne

    nas ruas, sem legislação nenhuma que impeça que

    arranquem meu coração de um espeto

    e lambuzem de limão e farofa de mandioca torrada

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    ENCONTRA, PRIMEIRO, TEU lugar na barricada

    perdido, saio de casa.

    sei o lado que fica meu trabalho, mas o vento é frio

    essa hora da manhã

    a rua não tem barricadas

    têm carros, motos e gente com medo, mas ainda não

    barricadas

    os leões fogem das jaulas nos circos e comem a

    criança

    depois, a autópsia descobre que seus estômagos

    estavam vazios

    não comiam há meses, como o urso que se

    alimentava de fubáou o elefante que balançava seu corpo neurótico

    Parkinson tonelada, procurando o caminho de casa

    minha bisavó com o vidro de colírio, perguntando

    onde a filha morava

    meu pai a encontrou e levou de volta pra casa,

    ela usava fraldas de pano como proteção de cabeça

    e ganhava, todo natal, um sapatinho novo

    escondia pão duro no armário

    não trocava a roupa de baixo

    e chorava de medo da noite

    que vinha bater em sua janela

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    monstros que estavam naquele quarto

    onde dormi minha adolescência

    ouvindo os mesmos gritos que ela ouvia na janela

    minha mãe dizia que se o leão fugisse,deveríamos entrar em sua jaula:

    único lugar que ele não estaria nunca mais

    o leão achando seu lugar na barricada

    terei Alzheimer na velhice

    perguntando onde é a jaula da vó-filha,

    onde o leão está que posso ficar em sua jaula?

    o chimpanzé fugiu do zoo e foi encontrado num bar,

    bebendo com 3 pinguços locais

    outro, atravessou o lago e foi apanhar dos macacos

    pregos

    caipira de araçoiaba, domingo no zoológico

    levar lata de goiabada cheia de merda pro exame

    o doutor falou pra cagar na latinha

    e colocar história na internet e levar o riso global na

    cara

    o homem atravessando o rio de caronte, a proibiçãodo primitivo

    indo cobrar dos primatas seu lugar na barricada

    planeta dos macacos pregos

    sociedade desenvolvida,

    exclusão e neurose

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    não faltam relatos de desgraças em circos

    itinerantes

    machucando os bichos, amarrando elefantes com

    correntes

    a diferença entre um elefante africano e indiano

    pode ser descoberta pelas orelhas

    o africano tem a orelha maior, com formato do

    continente

    o indiano é menor, e a orelha parece o mapa da

    índia

    os elefantes de pelúcia de casa

    minha bisavó me deu um

    eu era bebê e ela tinha cérebro

    não era uma pasta degenerativa balançando em seurosto enrugado

    ela ia ao Bamerindus e comprava caminhões de gás

    e elefantes de brinquedo

    recolhia sua aposentadoria de mulher trabalhadora

    teares da Santa Maria apodrecendo na memória da

    terra

    madeira velha e tijolinhos de chaminé

    assistindo a escola Achilles de Almeida e suas

    glórias

    demolição, enterro e alguém sentado em cima de seu

    túmulo, vó

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    gritando que quer sair de casa, que está com medo,

    que sua mãe é sua filha

    que eles estão chegando –  os leões

    eles estão chegando –  os discos voadoreseles estão chegando –  os neurônios que ainda

    funcionam

    eles estão chegando –  meu vô rancoroso jogando

    água na cara enrugada dela

    eles estão chegando –  algum ancestral curando o

    xamanismo

    eles estão chegando –  batem nas janelas

    eles estão chegando –  sobem as escadas do quintal,

    passam pelo chão com lixo grudado

    eles estão chegando –  seu chorume vara a noite,

    como gato no telhado, como leão louco

    como elefante vagando pela madrugada, você chega

    antes da manhã

    lava as louças com esponjas sujas,

    bebe água com sabão

    sai de combinação pela casafede o banho que toma chorando, filho da puta,

    grita

    eles estão chegando –  vá para a puta que o pariu, e

    eu entendo o xingo, vó

    a puta que me pariu te ama e te dá banho de neta,

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    chorando sua enfermagem científica

    distanciamento de sua calcinha suja, ser medicina e

    compaixão

    eles estão chegando –  vão celebrar a missa de

    domingo, virão em suas brasílias

    com adesivos da arquidiocese, perdoarão todas as

    faltas,

    você é católico, mas não é viado, né vô? pode bater

    na cara da sogra

    covarde que teve seu perdão num aperto de mão

    minutos antes da morte dela

    adolescente vendo os dedos dizerem o que a boca

    não pode

    o cérebro se refaz em memória e discernimentoo rosto seca da água suja vingativa e você escolhe

    o perdão?

    piedade, piedade, piedade de nós (2x)

    ó cristo que vieste salvar, os pecadores e

    humilhados

    eles estão chegando

     –  e vão arrebentar as portas

    a senhora pode fugir pra dentro do quarto

    ela nunca voltaria pra dentro

    sua barricada de pão com ovo

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    criando seus netos porque a filha dava aula

    carregando seus bisnetos nas fotos

    e lhes dando esse elefante

    que ele vai carregarem sua barricada própria

    quando a manhã fria

    chegar

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    sobre o gordinho que se esconde com você

    espera! Não, era só alguém que dorme no sofá e se

    mexeu

    fica tranquila, que estamos juntosse eles chegarem, terão que me levar junto

    e terão que me passar tifo, antes que cheguem os

    soviéticos

    eles vão chegar

    eu sei que você estará morta, mas talvez não

    talvez esteja viva numa outra dimensão

    aqui não se preocupam com seu nariz de judia,

    fica aqui, se quiser

    mas não ande de bicicleta que te matam

    te matam a pé também

    ou de ônibus

    te matam de qualquer jeito, mas com mais

    dignidade?

    a gente te matricula numa escola boa e você acaba a

    escola

    depois vai estudar numa boa faculdade e fazer pós eviajar pra Amsterdam

    seus amigos estarão mortos, mas você não

    fica quieta! Eles não podem passar por aqui,

    reescrevemos a história

    e podemos te levar conosco

    se disfarce com minha boina

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    e vá nos contando sobre suas brigas com sua mãe e

    seu pai e esse seu lance freudiano barato

    não, isso é normal, todo mundo briga, siga

    escrevendo

    dando esperança que eles não te pegarão

    mas eles te pegaram e não tem palavra que refaça

    isso

    e você morreu de tifo e logo depois a guerra acabou

    morreu todo mundo, mas seu pai não

    a moça guardou o diário e ele foi lançado em várias

    línguas, isso é legal, admita

    também escrevo e ninguém dá muita bola

    se você puder dá uma lida

    eu aprendi alguma coisa de holandês e vou falar issopros meus amigos, confirma por favor,

    daí a gente vai pra Sorocaba e come uma coxinha

    ótima que tem lá

    e você morre assim, que nem diz o cartaz, mas você

    sabe porque já está morta

    sua casa está cheia de novo, é não é sua casa, mas

    chama mais atenção

    está cheia e tem gente de todo lugar e dessa vez não

    vamos te matar

    porque somos melhores que os nazistas e não temos

    motivos,

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    pelo menos,

    e você cresce e te esquecem logo, aparece num

    programa de TV de tarde,

    dá seu depoimento, posa pra Playboy,ou fica na sua, mas viva, sem tifo,

    sei lá, no fundo, isso tudo é um papo furado

    não tem nada de nada: se você fica viva e me beija

    ou se sai pelada ou se sai na TV

    ou se fica na sua e ninguém se lembra, alguém vai

    lembrar,

    sua vizinha vai, porque te vê sempre

    tem um filho, ele vai te amar,

    e se ficar feia e não achar ninguém, sei lá, vem em

    casa

    seja minha amiga, tenho poucas, escreve algo pro

    sarau,

    aprende a cantar e entra na banda, sei lá,

    mas você morreu mesmo

    os caras eram soldados e os cartazes explicam tudo

    direitoa gente morre

    alguns dessa forma que você morreu

    e isso é horrível, Anne

    e só quero agora chorar pra caramba

    mas não dá porque a casa está cheia de gente

    e ficariam me olhando

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    como se meu choro fosse seu tifo, mas não é

    nunca te vi, mas gosto da tua história

    a Patricia leu teu livro e te adora

    e ensina tua história pra seus alunos

    eles são pessoas boas

    e acreditamos que serão pessoas boas

    mas não dá pra dizer mais que isso

    e vamos embora, porque os canais lá fora são lindos,

    desculpa, isso não se fala, desculpe, Anne

    não tem o que fazer, são experiências, todos nós

    vamos

    e não posso acreditar que você virá pegar na minha

    mão

    porque são muitos os que virão, sei lá pra ondeé isso que angustia, não?

    Sei que o que te angustia é saber que eles estão lá

    embaixo,

    e isso não é uma metáfora não

    não sei, o melhor é acabar esse poema logo, Anne

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    NO SÁBADO DE aleluia a cidade cheia dos crentes,

    ônibus lotados de viagem longa

    a sagrada família em suas excursões, perder o

    pequeno num banheiro químicoassistir a palestra dos doutores que trocam relógio

    na praça, debater política com os aposentados

    da lei mais dura que arranca as pernas duas vezes,

    uma em máquina outra em texto de sentenças,

    são tantas palavras com a loira tingida do banco de

    trás, a madrinha comendo cheettos falsificado

    coca-colas abertas de madrugada não dá pra dormir

    nesse ônibus, só jesus, jesus chegando no domingo

    de ramos em seu jumento com suspensão a ar e

    toilete a bordo, dvd e microfone para

    a liturgia dos videokês, balançando os ramos das

    praças, arquitetos de elite chumbando cercas

    nas praças: se é praça acho graça, se é prédio acho

    tédio, diz o poeta que nos abocanha

     jesus comendo milho cozido, eu também sou um

     jesus cristo da poesia, exagerovou caminhando com minha cruz de isopor

    pregada com palitos gina, essa cruz de não ser lido,

    nem comprendido

    se jesus não agradou, para sempre estaremos salvos

    do fracasso, mas são várias missões

    são aqueles que vão redimir os pecados,

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    aqueles que vão passar naturalmente

    pelos letreiros

    do sex shop, cristo procurando calcinhas

    comestíveis para os pobres, sabe o que eu queria

    multiplicar, Pedrera?,

    descendo a São João pelo caminho contrário, minha

    poesia tem esses

    marcos geográficos, queria ter um mapa de

    arredores do meu livro, mas como Cesário Verde

    lamento minha Lisboa de idiotas, poetastros nos

     jornais, motoristas católicos carregando crentes

    a prefeitura da estância climática de norungaba

    cedeu gentilmente o ônibus laico das estrelas

    dinossauro nielsen, câmbio invertido do tempo, umdia serei lido pelos busólogos por essa citação,

    cristo me diz em conforto não esquenta, cada um

    com sua cruz, velho, e vamos caminhando

    se fosse o poema VIII do guardador de rebanhos,

    teria que explicá-lo que o dinheiro não dá pra

    coxinha, coca e brinquedo, um ou outro,

    um power ranger ou um hot weells falsificado

    e assim vamos seguindo, a bandeira dos sem-teto

    diz que o prédio é mais que um cimento em

    caderneta de poupança, a bandeira paulista sobre o

    teto do banespa,

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    um dia ele estará ocupado de

    gente de verdade, e a bandeira nova vai tremular,

    com mais cores que o preto e o branco racista dos

    colonizadores que chegaram no flor de maioportuguês, rio tamanduateí de merda e ranço,

    quando meu pai vem me visitar nós comemos nos

    restaurantes da memória dele,

    quando formos velhos, amigos da banda e poesia,

    nossas memórias terão 20 anos a mais que nós

    ou vamos lembrar de cadeados gourmet nas

    calçadas experiences, o passado será um dia de lona

    e barraca de um sábado de chefs na praça, meus

    restaurantes são balcões doloridos,

    a perna balança e não sou conhecido dos garçons,

    apesar de falar deles na poesia,

    não recebo a caipirinha cortesia dos amigos, nem o

    pudim de brinde das noivas dos clientes,

    nem sei o nome de todos que ainda não ouvi

    chamarem pelo nome, no entanto estão na poesia

    mas dizem, cá entre nós, senhor, de que adianta sercitado numa poesia sem leitor?

    Esses daqui não são poetas mas têm facebooks lidos

    e colegas de escritório,

     jesus tímido olha a alça de gel do sutiã da prima

    biscate do luizinho

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    guarda carros na esquina do lado de lá, e anda com

    os amigos da pós mostrando o centrão velho,

    esconde uma montanha russa de medos,

    cantarolando Vieira, experimenta óculos com lentes

    verdes

    cristo john lennon na galeria do rock fuma cigarro

    com as meninas, cristo menina tatuada

    que queria ir no the cure mas tá sem grana,

    mendiga que mija na rua o fio fino da urina cheia de

    sopa

    que empilha nuvens sobre o carro, que embrama

    fios e sepulta rios debaixo desse vale do

    anhangabaú, que nada pelos canos das águas

    embalsamadas, dos prédios suicidas, dos prédiosconformados e dos prédios que se converteram, o

    pastor é um trompete de bebop convertido,

    imagina se deus fosse um fascista? Desses que

    dizem que cansaram de ser empregado e

    abriram seu próprio negócio, e que preferiam, com

    perdão da palavra, ter filho pregado na cruz

    do que filho viado, cristo chora com as crianças

    abandonadas da praça, cuidado cidadão,

    área cheia de pickpocketes, fãs de rolling stones

    também se mijavam nas calças,

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    queria dizer mais uma coisa, para vocês que não

    entendem minha obra

    o que mais me iguala a Bukowski é a porra do

    desprezo pela poesiae o erro de vocês é focar a porra

    no livro de Enzensberger, edição da brasiliense,

    1985, há uma referência a um livro que fala

    da militarização do cotidiano e a implosão das vidas

    e da bomba que ia explodir

    qual é a bomba? pergunto para todos que cruzo

    nesse poema

    vejo o Martinelli –  eu sou o último mamífero do

    martinelli,

    copacabana essa semana sou eu: como é perversa

    a juventude do meu coração

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     JÁ FALEI DE comer o asfalto que solta do chão, de

    cavar até bem fundo, debaixo de tudo

    onde tem as cidades do passado e os rios de história

    e gente que vagam

    e agora vou mais longe e abro essa cratera que

    atravessa o planeta, vazando pelo espaço

    até mais que o fim de mundo, nessa ferida vou

    micróbio até a carne do universo

    buraco vermelho de lava e sonho, estrelas, dúvidas e

    coisas que não vemos porque estão

    debaixo das pedras que choveram a noite toda, o

    lado escuro do sol –  não há um lado escuro

    do sol, ele é todo escuro, brilha como helicóptero em

    perseguição nesse deserto chamado tempoas poesias são as mesmas, amigo, só trocamos as

    palavras de efeito, há um mundo e sua cadeia

    o sistema solar foi aceito, mas o sistema social ainda

    causa geocentrismo,

    hoje, só hoje,

    queria deixar o fardo de explicar o país e ficar nessa

    ioga o dia todo, posição do arado que apanho

    a sensação de que o sol pode ser mais vitamina D e

    menos polícia militar do céu,

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     Trotski foi fazer algo em Genebra,

    os estudantes do meu lado no ônibus especulam se

    morariam

    lá, sem sovietes (você quase leu sorvete?), jaquetasgrossas para aguentar o frio,

    não queria pensar isso mas é inevitável: quem pode

    escolher onde morar? eles

    mas eu boto a mão no coração porque acordar muito

    cedo pode fazer mal pra saúde, e olho a massa de

    cardíacos

    com mochilas de aluno presente do estado,

    bolsas falsificadas e perfumes, o dia começa em

    ondas, vai acordando aos poucos, vai dormindo aos

    poucos, fim da novela, do jogo,

    do poema

    que horas o dia vai começar a ficar ruim?

    sonho com a vida chamada mais simples, queria

    mais, Snyder guardando florestas

    mas o capitalismo está no ar que passa em tudo,

    o supermercado de vila é fascista como a maiorcorporação, e as empregadas nas cidades pequenas

    ganham até menos do que nas grandes

    não posso me surpreender com o que já sei, polícia

    sempre será ruim

    e exército só serve pra

    exceção,

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    quando abandonei a universidade não tive dúvidas,

    mas sei que isso é pouco

    para ser budista, deixar de ser cristão, é possível

    mudar mas não consegui ainda

    escrever poemas é uma forma de eu estar

    acompanhado, esse você renitente que aparece

    são todos vocês que leem e os que leem por cima e

    os que nem leem

    mas sou eu também, desfazendo a poesia de minha

    época em copos americanos de casa

    os bares hoje me repugnam –  quero as histórias que

    conto aqui,

    não aquelas

    um motorista de ônibus encosta o veículo e começaa chorar

    no trânsito parado e tudo mais

    me faz chorar o homem que chora

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    ESTÃO PINTANDO UMA parede de prédio onde fica

    uma pixação que falei num poema

    escuto Belchior ao escrever esse poema

    acabei de ouvir as músicas que Paulo feze escrevi para Jeff em Montevidéu

    com Ibero Gutierrez na alma

    li um e-mail antigo que dizia que São Paulo estava

    me fazendo bem

    hoje me faz mal

    estamos, meu amigo, na espera da mudança que em

    breve vai acontecer

    lutando com as palavras contra essa América do Sul

    de gângsters

    na rua, nas veias, na mente, nos dentes, no sexo e

    nas tripas

    quero falar mais do mundo, da minha doença de

    festim e da palavra esquina

    porque se somos poetas da rua, malucos que gritam

    pela rua

    da Consolaçãonosso mundo está na lua,

    mas está no chão

    a luta é palavra polissêmica, fecundando meu olho,

    minha mão

    e meu inconsciente

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    lutar contra os camburões,

    contra a solidão, contra a varíola que se alastra por

    dentro

    arrancar a fraqueza que nos injetam logo cedo e

    falar mais alto

    mais alto que as sirenes e as mesquinharias do fim

    do dia

    porque eu sei que quem me dá a ideia

    de uma consciência e nova juventude

    está na rua,

    lutando também

    e assim nossos poemas são facas

    que cortam os arames farpados as paranoiasdescascam as laranjas

    abrem a lua no meio,

    tiram fiapos da carne,

    rasgam o mundo no meio

    e, daí, saem as luzes que trazemos nos olhos

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    VEMOS O CEMITÉRIO realocado: translado de

    ossos que viram muros

    muros que viram torrones para a burguesia

    túneis de carpo varando a morte e separando os doislados da mente

    São todas essas estações fantasmas largadas dentro

    da nossa terra

    vivos remanejados para que o osso vire ouro

    alquimia simbólica dos planos econômicos –  só deus

    sabe

    Os muros vão cair quando estiverem maduros para

    serem vendidos

    lascas de pedra embrulhadas em jornal para que

    amadureçam a visão histórica dos turistas

    Os muros vão cair no meio do sábado, chuva da

    madrugada, filme proibido,

    pijamas da copa de 90: só deus sabe o que a gente

    vai ficar sem

    A bomba de cobalto da Santa Casa vai explodir e o

    leão vai fugir de sua jaulae a morte vai levar nossas vós e nossas escolhas,

    a menina que gostava da gente e era feia

    vai ficar bonita e a bonita vai ficar com seu cabelo

    pintado na sua ecosport

    buscando os filhos nas varizes da cidade, a cidade

    destruída pela bomba

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    amendoim e nougat e cal branca, guaritas e guardas

    pela noite,

    arrastando as lanternas dos opalas sobre as árvores

    da rua

    (quando a esposa morrer, cortar todas as árvores

    que lembrem ela

    e morar num pedaço de pedra branca, tijolo velho,

    ser escorpião em luto,

    até que deus saiba a hora de me levar também)

    O psiquiatra expõe o paciente dizendo que toma

    rivotril

    os poetas se expõem dizendo que tomam rivotril ou

    psiquiatras

    as casas velhas da Vila Alice viram o córrego sermodernizados e elas não

    incubadoras de homens esperando a explosão do

    cobalto em seus sacos com câncer

    Dona Eva é chamada para a mamografia e o garoto

    X-men sai do

    raio-X

    com seu dedo quebrado, entalado com alumínio

    gelado e um gibi do Donald de suborno

    a vida vai indo assim assim, hoje estou feliz,

    amanhã não, mas quem sabe?

    pra que lado vai nosso olhar essa noite, Walt?

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    vagando pelas ruinhas da vida, com muros

    descascando pixações velhas,

    o asfalto com as marcas das copas antigas, pipas

    enroscados nos fios,bares abandonados no tempo, patrocinados por

    novas cervejas, jogo de mesa e cadeira

    a maioria dos clientes morreu ou não pode mais

    beber

     Top Stop passa o ponto e o pregador discute com

    Bon Jovi

    o diabo gosta de rock dos anos 80 –  o tempo passa e

    a gente fica pra trás

    nossas referências sendo ridicularizadas pela neta

    que curte Adelle

    Mas ele diz que pelo menos viu o Muro subir e

    descer,

    e viu mesmo –  não ficou sabendo por museu ou pela

    Wikipedia,

    e diz que sua vida tem polêmicas mais importantes

    do que saber se a pronúncia das coisasé pédia

    ou pídia

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    A EFICÁCIA DESSES poemas tem sido prejudicada

    por meu olho enguiçado

    são radares que percorrem as frases e manchas

    espalhadas em garfos de plástico e teologias de

    calçada,

    fixam em paranoias e mastigam nervosamente o bife

    duro da marmitex

    a rua segue com suas únicas doze notas,

    distribuídas randomicamente em suas planilhas

    apresentadas em reuniões de mitologias, as estrelas

    azuis espalhadas em minha camiseta, abóboda-

    pança, planetário de Kepler

    (Pepe, de Portugal e do Real, se chama Kepler)

     Thyco Brye sendo elogiado por Carl Sagan, osmoleques pobres vendem livros de colorir,

    astrologias poderosas que dão a corda em nossas

    pernas.

    a poesia e as babás vestem branco e carregam filhos

    dos outros,

    sangue-corretivo sujando a lapela, bebês ateus

    criados por mulheres evangélicas, violino rompido

    nos toques de celular de sintetizador, super mário

    rogai por nós que recorremos a vós,

    princesa sara nossa terra, compra nossos livros,

    experimenta nossos sapatos

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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     jesus cristo redentor mostra o tamanho do peixe que

    pescou e pedro duvida

    os poetas amam os mendigos, aprendem suas

    filosofias e escutam suas baboseirasouvidos esquizofrênicos ouvindo teorias sem

    conspiração, lógica, custo e benefício

    ei, seu guarda, o senhor assiste os filmes que

    confisca do camelô cult?

    ou curte mais charles bronson e dirty harry

     –  são filmes cult –  

    o GM do prefeito fuma só em lugares abertos e toma

    sukita que rouba do ambulante

    no meu sonho eu já vivi um lindo conto infantil tudo

    era magia era um mundo fora do meu

    e ao chegar desse sono acordei foi quando correndo

    eu vi um cavalo de fogo ali, que tocou meu coração

    quando me disse então que um dia rainha eu seria,

    se com a maldade pudesse acabar no mundo dos

    sonhos pudesse chegar e tirasse os sapatos e lesse

    nossos livrosnão somos os 20 escritores mais promissores do

    país, amigo

    mas temos nossas poesias de abdução, fazemos a

    palavra dar esses baques

    como o horário planando sobre nossas cabeças

    a chuva que não vai cair pelo jeito

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    não tenho cara de babá, nem de judeu, nem de

    poeta, nem de nada

    sei lá o que pensam se me olham parado nessa guia

    cheio de livros de colorir na cabeça –  quando parar

    de me deslumbrar com os brinquedinhos com

    elástico que os caras vendem vou embora

    eles sobem azuis sobem sobem e caem

    não somos esses brinquedinhos, na metáfora de

    planeta orbitamos algo que não deu pra pensar

    verdade é que sobra esse enfado do poema

    o poema já aconteceu e na cabeça era melhor

    abra minha mente, baby, a noite escapando dos

    neurônios, feixes elétricos explicados por

    fórmulas que não entendi –  fui até bem na prova pramaquinista do metrô

    exceto nessa parte de elétrica –  mas falando a

    verdade, acho que não trabalharia nisso

    o poema acabar de repente divide opiniões

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    O FIM DO mundo não é mais o chapéu do burguês

    ventando pela cidade

    nas ruas de burguês antigo,

    imigrantes vendendo bolsas falsase fones de ouvidos

    o fim do mundo é a nota de 10 que voa de alguma

    mão e vai flanando pelos bulevares,

    comprando canetas de famílias deficientes,

    comprando esfirra de promoção,

    a nota vai parando nas lojas,

    só dar uma olhadinha

    assiste o show dos malabaristas,

    ora com os crentes,

    e passa encarando os PMs

    na base comunitária com garrafão de água e café,

    a nota toma uma bomba energética

    compra sapatos no outlet, rodopia,

    destruindo o mundo, parando a ação do filme

    botão de pause, dá pra juntar qualquer valor

    - se diz agregar valor - à palavra apocalipsetodos saturnos de exceção

    e poéticas de milho verdejantes

    qualquer um pode ser poeta,

    todos cavalos de estátua

    entraram na história de tabela

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    a nota vai descendo e antes de chegar ao chão, um

    pai de família pega e taca no bolso

    sem cerimônia ou sequer procurar o dono em volta,

    sem contar pra esposa,

    ou resolver o doce da filha, embolsa a nota

    e o mundo acaba, se reconstrói, e os bondes saltam

    dos viadutos e as bolsas caem

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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     TEM DIAS QUE o precipício transborda

    cidade interditada

    os passeios viram veias entupidas de

    paranormalidadesmolochs destroem os prédios

    cavam minha carne

    São obras profundas operando na galeria paranoica

    por onde escoam as coisas de psicanálise,

    extraterrestres e delírios

    andares pra dentro do chão, pro fundo do asfalto,

    da gordura, da china

    essa prisão de filme B,

    me intestinando o medo da

    loucura

    da cidade que vira bairro e do retardado na saída da

    escola

    cuspindo nas crianças e correndo atrás de quem

    chama de louco

    ele perdeu tudo coitado, era moço inteligente,

    nem te contovai Corinthians! brasilsilsil!

    grita no eco das profundezas,

    Macário chegando em Sorocaba vê os prédios e fica

    sentido

    sua calça de moletom metonímica

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    é que as calçadas estão cheias de ferros de alicerce,

    pontudos dirigidos ao céu

    ereções tampadas por garrafas pet, casas desistidas,

    geminamento das coisas

     janelas que abrem padarias, escrever na parede com

    barro do chão

    o que ofende as elites nos letreiros dos pobres é a

    desproporção das letras

    a mensagem começa grande e vai acabando o espaço

    antes da palavra

    sempre sobra uma letra na linha de baixo, na

    anarquia da separação das sílabas

    meu coração é esse macaco-prego correndo pela ilha

    no meio do lagoe todos os pássaros do mundo são as mensageiras

    que vêm ver se a água abaixou

    uma das melhores lições que aprendi da minha mãe:

    se o rinoceronte te perseguir, pula pro lado que sua

    visão é ruim

    e ele vai demorar pra perceber e fazer a volta

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    É DIFÍCIL FAZER de cada poema o último

    que diga tudo e seja o fecho que amarra a poesia e a

    vida

    porque não sou agradável nem bonitoe nas festas fico no canto e nos lançamentos prefiro

    ficar em casa e ver a Premier League

    mas vi os expoentes da minha geração nas sarjetas

    loucos histéricos e nus, perdidos entre suas vacas

    de apertar e requebrar e suas dúvidas

    e cantei a melancolia com Simon and Garfunkel

    e encontrei Belchior no Uruguay, rio e mar e sol,

    chimarrão e alfajor,

    sentados na grama do parque Rodó

    e eu lhe disse seja meu Woody Guthrie, e serei seu

    Dylan,

    mas o avião não caiu na volta

    Agora escrevo de uma sala genérica, com paredes de

    dry-wall

    pintadas num homofóbico salmão degradê

    Não resta sequer a beleza de madeira de umarepartição de pornochanchada

    e as secretárias fornecem apenas pós-modernismos

    e corpos de sigla

    MILFs no anoitecer, o dia já passou tanto, mas

    ainda faltam 3 horas,

    minha geração e suas iniciais de punheteiro

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    Como te contar, menina, que essa noite o mundo

    acabou e hoje começou de novo?

    Só resta o silêncio que não consigo ficar.

    Porque os sábios são os que calam

    e morrem entendendo a miséria humana

    Arrumar os poemas na pasta do computador, como

    um Sá-Carneiro bunda-mole

    que escreve e-mails para os Pessoas do mundo não

    responderem agora

    minha arca da aliança estará cheia de bons poemas

    e amigos dispostos a publicarem

    em edições caseiras, dadas de graças para amigos

    que não vão ler,

    como diria Paulo José Vieira, poeta

  • 8/20/2019 Cássio Corrêa - Síndrome Do Desfiladeiro

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    O MENDIGO SE parece com um bailarino soviético

    seus olhos como fumaças e seus cabelos sujos

    debaixo do capuz

    anda pelo meio da rua, numa linha reta ao universo,os carros fazem filas irritadas atrás de seu corpo

    magro

    ele ocupa as faixas, ocupa os olhos, ocupa as linhas

    do poema

    ocupa a língua, a carne, ocupa a conversa

    ocupa a língua e suas variantes, ocupa a culpa,

    preocupa, toma os céus como avião

    da esquadrilha, deixa marcas com seus pés,

    sapatilha de asfalto riscando o palco

    pega ladrão! Grita o homem de camisa de crente,

    correndo atrás do punguista,

    as pessoas assistem o espetáculo, bufões em

    correria, o homem furtado vai ter um enfarte

    e o ladrão vaga pelos vãos de gente incrédula, sem

    saber se arma ou rasteira,

    é brincadeira dos dois ou é a cidade que não brincanunca,

    e lá seguem, atraindo nossos periscópios, meteroros

    rabiscam o negativo das fotos,

    e o homem gordo se so