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UMA PSICOSE LACANIANA: ENTREVISTA CONDUZIDA POR jACQUES LACAN jACQUES LACAN o texto que se segue é uma tradução da transcrição iné- dita de uma entrevista, conduzida por Jacques Lacan, com um paciente psiquiátrico hospitalizado, diante de grupo de psiquiatras e analistas. Os nomes foram certamente altera- dos, mas, ao mudá-Ios, Jacques-Allain Miller teve o cuidado de manter as ressonâncias que os nomes originais tinham para o paciente. Traduzir tal texto traz alguns problemas especiais. A transcrição retém as particularidades da fala. Eu as con- servei em entrevista do inglês equivalente. Também, o pa- ciente tem modo verdadeiramente especial de usar a lín- gua francesa, particularmente no que concerne ao empre- go dos tempos verbais e neologismos. Em praticamente todos os casos, conservei o tempo verbal empregado pelo paciente, mesmo, por exemplo, nas situações em que o uso dos mais-que-perfeito ou do imperfeito parece estra- nho em inglês. Com respeito aos neologismos, sempre que possível, utilizei um neologismo e coloquei o termo francês entre parênteses. Em resumo, traduzi um bom fran- cês para um bom inglês e o francês quebrado e errado num inglês não tão perfeito. No momento, a transcrição francesa ainda não foi publicada. A apresentação de Gérard Primeau Dr. Lacan - Sente-se, bom homem. Você achará grande interesse aqui. Quero dizer que as pessoas estão realmente interessadas no seu caso. Você falará com seus Psiquiatras. Muitas coisas serão, em parte, clarificadas. Conte-me sobre você (G. Primeau está calado). Não sei por que não lhe dei- xo falar. Você sabe muito bem o que lhe está acontecendo. G. Primeau - Não consigo controlar-me. Dr. Lacan - Você não pode controlar-se? Explique-me o que está acontecendo. G. Primeau - Estou um pouco dissociado da língua, dissociação entre sonho e realidade. Há uma equivalência entre [... ] dois mundos na minha imaginação, e não uma prevalência. Entre o mundo e a realidade - o que se chama realidade, há uma dissociação. Estou constantemente ali- mentando o fluxo imaginário. Dr. Lacan - Fale-me sobre seu nome. Por que Gérard Primeau, não é [... ]. G. Primeau - Sim, eu o decompus, antes de conhecer Raymond Roussel [... ]. Quando estava nos meus vinte anos, estudava maths supérienres [.. Y Desde então, tenho in- teressado-me por fatos físicos, e há muita conversa sobre estrato e substrato intelectual. A língua pode apresentar estrato e substrato. Por exemplo, decompus meu nome em Geai, num pássaro, e Rare, raridade. Dr. Lacan - Geai Rare'. G.Primeau - Prime Au. Decompus, de forma um pouco lúdica, fragmentei o meu nome para criar. O que tenho a lhe dizer é [... ] (silêncio). Dr. Lacan - E então - então o quê? O que você'chama- isto é o que me contaram - de fala imposta? G. Primeau - Fala imposta é uma emergência, que se impõe ao meu intelecto e que não tem significado, se con- siderado o senso comum. São sentenças que emergem, que não são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas são uma emergência, expressando o inconsciente. Dr. Lacan - Vá em frente [... ]. G. Primeau - Emergem como se eu fosse talvez mani- pulado [... ]. Eu não sou manipulado, mas não posso me explicar. Tenho muito problema ao explanar coisas. Tenho problemas para dominar a questão, esta emergência. Não 5

Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

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•UMA PSICOSE LACANIANA:

ENTREVISTA CONDUZIDA POR jACQUES LACANjACQUES LACAN

o texto que se segue é uma tradução da transcrição iné-dita de uma entrevista, conduzida por Jacques Lacan, comum paciente psiquiátrico hospitalizado, diante de grupo depsiquiatras e analistas. Os nomes foram certamente altera-dos, mas, ao mudá-Ios, Jacques-Allain Miller teve o cuidadode manter as ressonâncias que os nomes originais tinhampara o paciente.

Traduzir tal texto traz alguns problemas especiais. Atranscrição retém as particularidades da fala. Eu as con-servei em entrevista do inglês equivalente. Também, o pa-ciente tem modo verdadeiramente especial de usar a lín-gua francesa, particularmente no que concerne ao empre-go dos tempos verbais e neologismos. Em praticamentetodos os casos, conservei o tempo verbal empregado pelopaciente, mesmo, por exemplo, nas situações em que ouso dos mais-que-perfeito ou do imperfeito parece estra-nho em inglês. Com respeito aos neologismos, sempreque possível, utilizei um neologismo e coloquei o termofrancês entre parênteses. Em resumo, traduzi um bom fran-cês para um bom inglês e o francês quebrado e erradonum inglês não tão perfeito. No momento, a transcriçãofrancesa ainda não foi publicada.

A apresentação de Gérard Primeau

Dr. Lacan - Sente-se, bom homem. Você achará grandeinteresse aqui. Quero dizer que as pessoas estão realmenteinteressadas no seu caso. Você falará com seus Psiquiatras.Muitas coisas serão, em parte, clarificadas. Conte-me sobrevocê (G. Primeau está calado). Não sei por que não lhe dei-xo falar. Você sabe muito bem o que lhe está acontecendo.

G. Primeau - Não consigo controlar-me.

Dr. Lacan - Você não pode controlar-se? Explique-me oque está acontecendo.

G. Primeau - Estou um pouco dissociado da língua,dissociação entre sonho e realidade. Há uma equivalênciaentre [... ] dois mundos na minha imaginação, e não umaprevalência. Entre o mundo e a realidade - o que se chamarealidade, há uma dissociação. Estou constantemente ali-mentando o fluxo imaginário.

Dr. Lacan - Fale-me sobre seu nome. Por que GérardPrimeau, não é [... ].

G. Primeau - Sim, eu o decompus, antes de conhecerRaymond Roussel [... ]. Quando estava nos meus vinte anos,estudava maths supérienres [..Y Desde então, tenho in-teressado-me por fatos físicos, e há muita conversa sobreestrato e substrato intelectual. A língua pode apresentarestrato e substrato. Por exemplo, decompus meu nome emGeai, num pássaro, e Rare, raridade.

Dr. Lacan - Geai Rare'.G.Primeau - Prime Au. Decompus, de forma um pouco

lúdica, fragmentei o meu nome para criar. O que tenho alhe dizer é [... ] (silêncio).

Dr. Lacan - E então - então o quê? O que você'chama-isto é o que me contaram - de fala imposta?

G. Primeau - Fala imposta é uma emergência, que seimpõe ao meu intelecto e que não tem significado, se con-siderado o senso comum. São sentenças que emergem, quenão são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas sãouma emergência, expressando o inconsciente.

Dr. Lacan - Vá em frente [... ].G. Primeau - Emergem como se eu fosse talvez mani-

pulado [... ]. Eu não sou manipulado, mas não posso meexplicar. Tenho muito problema ao explanar coisas. Tenhoproblemas para dominar a questão, esta emergência. Não

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•sei como surge, como se impõe no meu cérebro. Tudo sur-ge de uma só vez: "Você matou o passarinho azul". É umsistema anárquico. Sentenças que não têm sentido racionalna linguagem comum e que se impõem no meu cérebro,no meu intelecto. Há também uma espécie de contrapeso.Com o médico chamado Dr. D., tenho uma sentença im-posta, que diz: o Dr. D. é simpático, e, então, tenho umasentença que contrabalança, que é fruto da minha reflexão;há uma disjunção entre a sentença imposta e a minha sen-tença, que é um pensamento reflexivo. Eu digo: mas eusou insano. Digo: o Dr. D. é simpático (sentença imposta),mas eu sou insano (sentença reflexiva).

Dr. Lacan - Dê-me outros exemplos.G.Primeau -Tenho muitos complexos, às vezes sou muito

agressivo. Freqüentemente, tenho uma tendência [... ].Dr. Lacan - Você é "agressivo". O que isto significa?G. Primem! - Eu já expliquei.Dr. Lacan - Você não parece agressivo.G.Primeau - Quando tenho um contato emocional, fico

agressivo internamente. Não posso dizer mais nada.Dr. Lacan - Você conseguirá, ao contar-me como acon-

tece.G.Primeau - Tendo a compensar. Sou agressivo, não físi-

ca, mas internamente. Tendo a compensar com sentençasimpostas. Estou me expressando mal. Vai ficar mais claroagora: tendo a me recobrar com sentenças impostas; tendoa achar todo mundo simpático ou bonito [... ] enquanto,outras vezes, tenho sentenças impostas, agressivas.

Dr. Lacan - Use seu tempo, use o tempo de que preci-sar, para descobrir onde está.

G. Primeau - Há muitas espécies de vozes.Dr. Lacan - Por que as chama de vozes?G. Primeau - Por que as ouço internamente.Dr: Lacan - Sim.G.Primem! - Então, sou agressivo e ouço as pessoas inter-

namente, por telepatia. De tempos em tempos, tenho senten-ças emergentes, que não têm significado, como já expliquei.

Dr. Lacan - Dê um exemplo.G. Primeau - Ele vai me matar o pássaro azul. É um sis-

tema anárquico. É um assassinato político [... ] um"assas tina to" político, que é a contração das palavras "as-sassinato" [assassinat] e "assistência" [assistanat], que evo-ca a noção de assassinato'

Dr. Lacan - Que evoca [... ]. Conte-me, alguém está as-sassinando você?

G. Primeau - Não, eles não estão me assassinando. Vou

continuar com uma espécie de recuperação inconsciente.Às vezes, ocorrem-me sentenças emergentes, agressivas einsignificantes, ou melhor, sem sentido, sem sentido na lin-guagem comum, e, às vezes, recupero-me dessa agressividadee tendo a achar todo mundo simpático, bonito e assim pordiante. Isto beatifica, canoniza certas pessoas, que chamo desantas. Tenho uma amiga que se chama Bárbara e se trans-forma em "Santa Bárbara". "Santa Bárbara" é uma sentençaemergente, mas eu estou numa fase agressiva. Sempre te-nho esta disfunção entre as duas fases, que se completamsegundo a influência do tempo e que não são da mesma ca-tegoria: uma é emergente e a outra reflexiva.

Dr Lacan - Sim. Então, vamos conversar mais especifica-mente, se você quiser, sobre as sentenças emergentes. Desdequando elas emergiram? Esta não é uma questão idiota [... ].

G. Primem! - Não, não. Desde .que [... ] fui diagnostica-do como tendo crises paranóicas em março de 1974.

Dr Lacan - Quem disse isto?G.Primeau - Um médico àquela época. Essas sentenças

emergentes [... ].Dr. Lacan - Por que você se volta para este homem aqui?G. Primeau - Senti que ele estava zombando de mim.Dr. Lacan - Você sentiu uma presença zombadora? Ele

não está em seu campo de visão.G. Primeau - Estava ouvindo um som e senti [... ].Dr Lacan -Ele não está certamente brincando com você.

Conheço-o bem e ele seguramente não está brincando comvocê. Ao contrário está muito interessado. Foi por esta ra-zão que fez barulho.

G. Primeau - A impressão de sua compreensão intelec-tual [... ].

Dr. Lacan - Sim, penso assim, isto é mais como ele é. Eulhe disse que o conheço. Além disto, conheço todas as pe -soas que estão aqui. Elas não estariam aqui, se não tivessetotal confiança nelas. Bem, continue.

G Primem! - Por outro lado, penso que a fala pode seruma força do mundo, mais do que a escrita.

Dr. Lacan - Exatamente, vejamos. Você acabou de apre-sentar a sua doutrina. E, de fato, é uma tamanha confusãoesta história de [... ].

G. Primeau - Há uma linguagem simples, que uso navida cotidiana, e há, por outro lado, uma linguagem quetem uma influência imaginativa, com a qual desconecto doreal as pessoas à minha volta. Isto é o mais importante. Mi-nha imaginação cria um outro mundo, um mundo que te-ria um sentido equivalente ao sentido do mundo chamado

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•real, mas que seria completamente separado. Os dois mun-dos seriam totalmente separados. Por outro lado, essas sen-tenças impostas, no sentido de que algumas vezes emer-gem para agredir uma pessoa, são pontes entre o mundoimaginativo e o mundo chamado real.

Dr. Lacan - Sim, mas, finalmente, o fato é que vocêmantém uma distinção clara.

G.Primeau - Sim, mantenho uma clara distinção, mas alinguagem, a fluência da imaginação, não é da mesma cate-goria, espiritual e intelectual que disse. É um sonho, umaespécie de sonho acordado, um sonho permanente.

Dr. Lacan - Sim.G.Primeau - Não acho que estou inventando. É separa-

do, mas não tem [... ] Não posso [... ] ao responder-lhe,tenho medo de estar cometendo um erro.

Dr. Lacan - Você acha que cometeu algum erro ao res-ponder?

G.Primeau - Não cometi nenhum erro. Toda fala tem aforça da lei, toda fala é significante, mas, aparentemente,de pronto, não tem sentido puramente racional.

Dr. Lacan - Onde encontrou a expressão "toda fala ésignificante"?

G. Primeau - É uma reflexão pessoal.Dr. Lacan - Certo.G. Primeau - Sou consciente desse mundo separado,

mas não estou certo de estar consciente de que esse mun-do é separado.

Dr. Lacan - Não está certo de [... ].G.Primeau - Não estou certo de estar consciente desse

mundo separado. Não sei se [... ].Dr. Lacan - Se o [... ].G. Primeau - [ ... ] o sonho, o mundo construido pela

imaginação, onde encontro o centro de eu mesmo, não temnada a ver com o mundo real, porque, no meu mundo ima-ginário, no mundo que crio para eu mesmo com a minhafala, estou no centro. Tendo a criar uma espécie de minite-atro, onde seria, ao mesmo tempo, o criador e o diretor,enquanto, no mundo real, minha única função é [... ].

Dr. Lacan - Sim, lá você é, somente, Geai Rare, se, naverdade [... ].

G. Primeau - Não o Geai Rare é do mundo imaginário.O Gérard Primeau é o do mundo comumente chamado dereal, enquanto que, no mundo imaginário, sou Geai RarePrime Au.Talvez seja meu nome Prime, que é o primeiro,aquele que codifica, que tem força. Usei o termo num dosmeus poemas .

Dr Lacan - Um dos meus poemas?G. Primeau - Eu era o centro solitário de um solitário

círculo. Não sei se isto foi dito antes. Achei isto quando erabem jovem. Penso que foi em "Novalis".

Dr Lacan - Precisamente.G. Primeau - Sou o centro solitário, uma espécie de

Deus, o semideus de um círculo solitário, porque este mun-do é emparedado por dentro e não posso fazê-Io passarpara a realidade do dia-a-dia. Tudo que se masturba [... ]bem, que é criado no nível do sonho interior - Estava di-zendo: «que se masturba» [... ] (silêncio).

Dr Lacan - Mas finalmente, o que se pensa sobre isto?Segundo o que disse, parece que você sente que há umsonho que funciona assim, que você é vítima de um cer-to sonho?

G.Prirneau - Sim, é quase isto. Uma tendência na vida,também, para [... ] (silêncio).

Dr Lacan - Conte-me.G. Prirneau - Estou cansado. Não me senti muito bem

nesta manhã. ão estou com humor para falar.Dr Lacan - Por que diabos não o estaria?G. Primeau - Porque estava um pouco ansioso.Dr Lacan -Você estava ansioso. Em que lado isto acon-

tece?G.Primeau - Não sei. Estava ansioso. A ansiedade é tam-

bém emergente. Está, algumas vezes, relacionada ao fatode encontrar uma pessoa. Por outro lado, o fato de encon-trar você e [... ].

Dr Lacan - Falar comigo deixa você ansioso? Você sen-te que nada entendo de seus problemas?

G.Primeau - Não estou certo de que a entrevista possaliberar certas coisas. Uma vez, tive uma ansiedade emer-gente, que foi puramente física, sem qualquer relação comos fatos sociais.

Dr. Lacan - Sim, o modo como me apresento nessemundo [... ].

G. Primeau - Não, tinha receio de você, porque tenhomuitos complexos. Você é uma personalidade efetivamen-te bem conhecida. Estava receioso de encontrá-Ia. Era umaansiedade bem natural.

Dr Lacan - Sim. E qual o seu sentimento sobre as pes-soas que se acham aqui, que o estão escutando com tantointeresse?

G. Primeau - É opressivo. É por isso que é difícil falar.Estou ansioso e cansado, e isto bloqueia a minha tendênciade [... ].

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•Dr Lacan - Com quem se tratou em 1974?G. Primeau - Dr. G.Dr Lacan - Dr. G. foi o primeiro psiquiatra com quem

se tratou?G. Primeau - Sim, foi o primeiro. Tratei com o Dr. H.,

quando tinha quinze anos.Dr Lacan - Quem o levou a ele?G. Primeau - Meus pais. Estava me opondo a eles.Dr Lacan - Você é o único filho deles?G. Primeau - Sou o único filho, sim.Dr Lacan - O que faz seu pai?G. Primeau - Vendedor de produtos farmacêuticos.Dr Lacan - Significa que faz o quê?G. Primeau - Ele trabalha para um laboratório farmacêu-

tico. Seu trabalho consiste em visitar médicos e apresentar-lhes os seus produtos; é uma espécie de representante.

Dr Lacan - Ele trabalha para [... ].G. Primeau - Laboratórios D.Dr Lacan -Você teve aconselhamento de carreira? Você

contou-me que estudou maths supérienses.G. Primeau - Sim, certo, no Liceu P.Dr. Lacan - Conte-me um pouco sobre esses estudos.G. Primeau - Em que nível? Sempre fui um estudante pre-

guiçoso mesmo. Fui naturalmente beneficiado. Sempre ten-dia a contar mais com a inteligência do que com o trabalho.Do curso de mathssupérienses me desliguei, por que tive [... ].

Dr Lacan -j'ai'? Tive?G. Primeau - Houve um problema com uma garota.Dr Lacan - Você teve um problema com uma garota?G.Primeau -Estava preocupado com um problema com

uma garota. Comecei as maths supérienses em novembroe, então, dois meses após quebrei, por causa de um proble-ma com uma garota. Depois, abandonei o curso, por quetive um esgotamento nervoso.

Dr Lacan - Você teve um esgotamento nervoso ligadoa [... ]?

G.Primeau - [ ... ] a esse desapontamento com a garota.Dr Lacan - Desapontamento relacionado a quem?G. Primeau - A uma mulher jovem que conheci no

campus, no verão. Eu era um conselheiro e ela também.Dr Lacan - Sim. Não vejo por que não diria seu nome.G. Primeau - Hélene Pigeon.Dr Lacan - Sim. Foi em 1967, então. Onde estava em

seus trabalhos escolares? Digamos assim.G. Primeau - Havia tido problemas, porque era pregui-

çoso. A preguiça é uma doença. Havia tido, ainda, muitos

•problemas desde os quinze anos e estava tendo palpitaçõesafetivas em razão de minhas relações tormentosas commeus pais. Acontece que tive perdas de memória.

Dr Lacan - Você falou de seus pais. E ainda situou seupai um pouco. E sua mãe?

G. Primeau - Fui criado por minha mãe, porque meupai, vendedor de produtos farmacêuticos, trabalhava nasprovíncias. Minha mãe era uma mulher muito ansiosa e ca-lada, e como eu era muito retraído e muito, muito reserva-do, o jantar era muito silencioso. Não havia nenhum verda-deiro contato afetivo da parte da minha mãe. Ela era ansio-sa, seu estado mental era contagioso. Não era um vírus,mas se relacionava ao ambiente. Então, fui criado por estamãe muito ansiosa, hipersensível, exposta a lutas familia-res com meu pai, quando ele vinha para casa nos fins-de-semana. A atmosfera era tensa e ansiosamente provocante.Penso que, por osmose eu também era muito ansioso.

Dr Lacan - Quando você fala de osmose, qual é a idéiaque tem de osmose nesta questão, você que conhece bemcomo distinguir o real [... ].

G. Primeau - Do imaginário?Dr. Lacan - Sim, é isto. Onde há osmose entre um e

outro?G. Primeau - Creio que há, primeiramente, a conscíen-

tização do que é chamado de real [... ]. Há uma tensão psi-cológica criada, ansiedade em relação ao real, mas carnal,quer dizer, em relação ao corpo, e que passa, por osmose,à minha mente [... ]. Porque tenho um problema: é quenão posso [... ] sinto um pouco [... ]. Uma vez escrevi umcarta ao meu Psiquiatra [... ].

Dr Lacan - A que Psiquiatra?G. Primeau - Ao Dr. G.. Por longo tempo, falei sobre o

hiato entre o corpo e a mente, e há uma [... ]. Estava obsecadopor isto. Falei sobre isto naquela épo~a, mas não é mais váli-do [... ]. Eu trouxe à baila uma espécie de [... ] (G. Primeauparece muito comovido) noção de corpos elétricos aparen-temente ligados e que aparentemente se separam. Não con-seguia me controlar em relação à situação corpo-mente.

Dr Lacan - Naquela época - quando era?G. Primeau - Tinha dezessete ou dezoito anos. Estava

dizendo: qual o momento em que o corpo entra na men-te, ou a mente entra no corpo? Não sei estava obsecado -como? - pelo corpo composto por células, por todas asespécies de células nervosas. Como um fato biológico tor-na-se espiritual? De que forma há um compartilhamentoentre corpo e mente? Em suma, como o pensamento

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•interage no nível dos neurônios? Como é que o pensa-mento é formulado? Como, começando pela interação dosneurônios no cérebro, o pensamento chega a emergirdessa interação dos neurônios, desses desenvolvimentoshormonais, desses desenvolvimentos neurovegetativos ouo que quer que seja. Fui levado a pensar [... ].

Dr. Lacan - Mas você sabe que não sabemos nada maisdo que você a esse respeito.

G. Primeau - Eu tinha sido levado a pensar nisso, obser-vando que a Biologia considera que essas ondas estão nocérebro; fui levado a pensar que o pensamento, ou a inteli-gência, era uma espécie de onda projetada, uma ondadirecionada para fora, mas a linguagem [... ]. Isto está rela-cionado ao fato de ser um poeta, porque [... ].

Dr. Lacan - Sim, você é incontestavelmente um poeta.G. Primeau - Tentei, no começo, [... ].Dr. Lacan - Você tem alguma coisa escrita por você aí?G. Primeau - Sim, tenho alguma coisa aqui.Dr. Lacan - Onde?G. Primeau - Aqui no hospital. Dr. Z. pediu-me que trou-

xesse. Mas gostaria de continuar. Tentei, pela ação poética,encontrar um ritmo balanceado, uma música. Fui levado apensar que a fala é uma projeção da inteligência, que emer-ge para fora.

Dr. Lacan - Inteligência, fala. O que você chama de in-teligência é o uso da fala.

G. Primeau - Estava pensando que a inteligência era umaprojeção ondulante, direcionada para fora, como se [... ].Não concordo com o senhor, quando diz que a inteligênciaé a fala. Há a inteligência intuitiva, que não é traduzível pelafala, e eu sou muito intuitivo, e tenho grande dificuldadede "logificar". Não sei se é uma palavra francesa; trata-se deuma palavra que inventei. O que vejo [... ]. Algumas vezes,acontece que falo, ao discutir com alguém, "vejo", mas nãoposso racionalmente traduzir o que estava vendo. São ima-gens que passam, e não posso [... ].

Dr. Lacan - Conte-me um pouco sobre estas imagensque passam.

G. Primeau - É como um cinema, o que é chamado "ci-nema" em Medicina. Passa muito rápido, e não saberia for-mular essas imagens por que não consegui qualificá-Ias.

Dr. Lacan - Tentemos ser mais específicos. Por exem-plo, qual a relação entre essas imagens e uma coisa quesei - porque você contou - ser muito importante paravocê: a idéia de beleza? Você centra suas idéias de belezanessas imagens?

G. Primeau - No nível do círculo solitário?Dr. Lacan - Sim.G. Primeau - É isto. Mas a idéia de beleza, no que

concerne ao sonho, é uma visão essencialmente física.Dr. Lacan - O que é bonito, fora você? Porque você se

considera bonito, não?G. Prirneau - Sim, eu me considero.Dr. Lacan - As pessoas por quem você se sente atraído

são bonitas?G. Primeau - O que procuro em uma face é a sua lumino-

sidade, sempre esta projeção, um presente luminoso; procu-ro uma beleza que irradie. Não é estranho ao fato de eu dizerque a inteligência é uma projeção de ondas. Procuro pessoasque têm uma inteligência sensitiva, esta irradiação da face quenos coloca em relação com a inteligência sensitiva.

Dr. Lacan - Falemos sobre a pessoa que o preocupouem 1967, [... ] aquela chamada Hélene. Ela irradiava?

G. Primeau - Sim, ela irradiava. Finalmente encontreioutras [... ].

Dr Lacan - Outras pessoas irradiantes?G. Primeau - Outras pessoas irradiantes, tanto homens

como mulheres. Sexualmente, amo mais uma mulher doque um homem. Estou falando de relações físicas com umhomem. Sinto-me atraído somente em relação à irradiação,ao mesmo tempo intelectual e sensitiva.

Dr Lacan - Percebo muito bem o que você quis dizer. Nãosou obrigado a concordar, mas percebo o que quis dizer. Masrealmente, você não esperou até os dezessete anos para sertocado, assim, pela beleza. Quem o despertou para [... ]?

G. Primeau - Sobre uma questão [... ].Dr. Lacan - Conte-me.G Primeau - [ ... ] A oposição aos meus pais. Minha mãe

era muito calada, mas meu pai, quando vinha para casa nofim-de-semana [... ]. Sobre questões de educação, da vidacotidiana, com os conselhos que costumava me dar, àos quaisera refratário mesmo, revoltado, já muito independente, eficava irritado, pois tinha a possibilidade de ir além deles pormim mesmo, sem os conselhos de meu pai. Era, então [... ].

Dr Lacan - O que seu pai disse sobre H.G. Primeau - Não me lembro mais.Dr. Lacan - Ele disse que você o confrontava.G. Prirneau - Não lembro nada mais do que ele disse.

Ele me fez falar, mandou-me para o quarto e falou commeu pai. Ele não deu o diagnóstico enquanto estava lá.Ele me fez fazer testes nu. Tinha muitos complexos, sexu-almente falando.

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•Dr. Lacan - A palavra "complexo" o que significa para

você? Está especialmente centrada, digamos, na sexualida-de? É isto o que quer dizer? Você já usou esta palavra "com-plexo" umas cinco ou seis vezes.

G. Primeau - Não somente na sexualidade, mas tam-bém nas amizades. Tenho grande dificuldade de me expres-sar e tenho a impressão de ser, não rejeitado, mas [... ].

Dr. Lacan - Mas [... ]. Por que diz "não rejeitado"? Vocêsente que é rejeitado?

G. Primeau - Sim, tenho complexo de falar, de vida so-cial. É medo, é uma certa ansiedade, medo de falar, de [... ].Meu espírito tem efeito retardado. Não sei dar respostas,tenho a tendência de me retrancar por causa disto. Tenhogrande dificuldade [... ]. Refreio-me algumas vezes, nãoposso [... ]. O fato de estar com receio de vê-lo é, antes, umcomplexo de inferioridade.

Dr. Lacan - Você se sente num estado de inferioridadena minha presença?

G. Primeau - Eu disse "antes". Tenho complexos comrelação às amizades. Como o Senhor é uma personalidademuito conhecida, fiquei ansioso.

Dr. Lacan - Como você sabe que sou uma personalida-de muito conhecida?

G. Primeau - Tentei ler seus livros.Dr. Lacan - Ah, sim. Você tentou? (G. Primeau sorriu).

Você os leu. Estão ao alcance de qualquer um.G. Primeau - Não lembro mais. Li quando era bem jo-

vem, quando tinha dezoito anos.Dr. Lacan - Quando você tinha dezoito anos, leu algu-

mas coisas que eu tinha produzido.G. Primeau - Sim.Dr. Lacan - Em que ano isto nos coloca?G. Primeau - Em 1966.Dr. Lacan - Havia justo aparecido.G. Primeau - Não me lembro.Dr. Lacan - Naquela época, você estava [... ].G. Primeau - Na clínica c., para estudantes. Vi na livra-

ria. Devia ter vinte anos.Dr. Lacan - O que o moveu a abrir este livro?G. Primeau - Estava sob a influência de um amigo, que

me falou [... ]. Eu o folheei. Havia muitos termos que eramuito [... ].

Dr. Lacan - Muito o quê?G. Primeau - Muito complexos e não pude continuar a

ler o livro.Dr. Lacan - Sim, isto se deve ao fato de o livro ter ficado

...•

•rodando por aí ultimamente. Isto o impressiona?

G.Primeau -Agrada-me. Não li todo ele, simplesmenteo li rapidamente.

Dr. Lacan - Bom. Vamos, tentemos voltar atrás. "Sujoassassinato político". Qual a razão desses assassinatos?

G. Primeau - ão, há political assistants e há assasti-nation.

Dr. Lacan - Há diferença entre assistani e assassin, outudo isso é um equívoco?

G. Primeau - Equívoco.Dr. Lacan - É um equívoco?G. Primeau - Não posso [... ].Dr. Lacan - [... ] distinguir o assistam do assassinoQuan-

do isto começou, esta mistura que chamarei de "sonora"?Quando as palavras - deixemos de lado toda a história doseu nome (Prime-Au - Geai-Rare), que têm algum peso - orare jay, mas assistant e assassinoSão palavras que desli-zam juntas. Não podemos dizer que as palavras adquirirampeso, porque o "sujo assassinato" [... ].

G. Primeau - Seu peso, até a extensão de que não sejamreflexivas.

Dr. Lacan - O que quer dizer que você não acrescenta aelas sua reflexão.

G. Primeau - Não, elas emergem, vêm espontaneamen-te, em explosões, às vezes, espontaneamente.

Dr. Lacan - Em explosões?G. Primeau - Em explosões. Exatamente. Pensei que

talvez houvesse uma relação racional, mesmo se isto nãoemergisse, entre sujo "assassinato", sujos assistants e sujoassastination. Mas finalmente, essas contrações de pala-vras entre "assassino" e "assistente" [... ]. Estava tambéminteressado na contração de palavras. Por exemplo, conhe-ci Béatrice Sarmeau, que é uma cantora. Fui vê-Ia na teatroV, onde a conheci. A festa de Santa Béatrice é no dia 13 deFevereiro. Descobri isto, procurando no meu dicionário -não no meu dicionário, no meu calendário - e, desde queme pediu para voltar para vê-Ia novamente, porque dissecoisas agradáveis sobre o concerto dela, escrevi um desejo:«Do lugar onde a leio, não é Béatrice festiva». Escrevi dixt,dez dias: ao mesmo tempo o fato de estar desejando os dezdias - a distância entre treze e vinte três, dez e a formula-ção; não disse isto, porque os dez dias não passariam, semque houvesse uma festa.

Dr. Lacan - O que é festivo? Isto é a festa?G. Primeau - Era a festa. No desejo, havia esta palavra,

que era uma contração. Há uma outra palavra, como

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•écraseté,que é ao mesmo tem po écrasé (esmagado) e éclaté(esplendoroso). Escrevi um poema que se chamava "Vénure'',

uma contração de Vénus e Mercure. Era uma espécie de ele-gia. Mas não o tenho aqui, porque [... ]. Há, também, a pala-vra choir (cair), que costumava escrever choixre, para ex-pressar a noção de "cair" e de cboix (escolha).

Dr. Lacan - Quem mais, além de Hélêne - chamando-apelo nome - e Vénure, quem mais "Venurizou" você? Con-te-me.

G.Primeau - Então, houve Claude Tours; conheci-a no C.Dr. Lacan - Era ela também luminosa?G. Primeau - Quando a conheci, tinha uma espécie de

beleza. Ela era muito marcada pela medicação que estava to-mando. Sua face estava muito inchada. Mais tarde, continuei avê-Ia, depois que deixou a clínica; ela perdeu peso, tinha umabeleza luminosa. Sempre me senti atraído por essas belezas.Estou procurando por uma personalidade aqui no quarto. Tal-vez esta senhora de olhos azuis, que está usando lenço nopescoço. É uma pena que esteja usando maquiagem.

Dr. Lacan - Ela parece com aquela moça?G. Primeau - Sim, ela se parece um pouco. Só que

Claude não usava maquiagem. Esta senhora pôs maquiagem.Dr. Lacan - Você algum dia já se maquiou?G. Primeau - Sim, aconteceu de eu ter me maquiado.

Aconteceu comigo, sim (ele sorri). Aconteceu quando ti-nha dezenove anos, porque tinha a impressão [... ]. Tinhauma porção de complexos sexuais [... ], pois a natureza medotou de um falo muito pequeno.

Dr. Lacan - Fale-me um pouco sobre isto.G. Primeau - Tinha a impressão de que meu sexo havia

encolhido e que parecia que me tornaria uma mulher.Dr. Lacan - Sim.G. Primeau - Tinha a impressão de que me tornaria

um transsexual.Dr. Lacan - Um transsexual?G. Primeau - Digo: um mutante sexual.Dr. Lacan - O que quer dizer com isto? Você tinha o

sentimento de que se tornaria uma mulher.G. Primeau - Sim, tinha certos hábitos; costumava usar

maquiagem; tinha impressão de que o sexo encolhia e, aomesmo tempo, desejava saber como era uma mulher, tentavaentrar no mundo de uma mulher, na psicologia de uma mu-lher, na formulação psicológica e intelectual de uma mulher.

Dr. Lacan -Você tinha esperança [... ]. É, ao menos, umtipo de esperança.

G. Primeau - Era uma esperança e uma experiência.

Dr. Lacan - Sua experiência é [... ] que, entretanto, ain-da tem um órgão masculino, sim ou não?

G. Primeau - Sim.Dr. Lacan - Bem, então como isso é uma experiência? É

mais como esperança. De que maneira isso é uma experi-ência?

G.Primeau - É na esperança de que fosse experimental.Dr. Lacan - O que quer dizer que você está esperando

pela experiência, se podemos brincar com as palavras no-vamente. Isso permanece no estado da esperança [... ]. Fi-nalmente, você nunca se sentiu uma mulher?

G. Primeau - Não.Dr. Lacan - Sim ou não?G. Primeau - Não. Pode repetir a pergunta?Dr. Lacan - Eu lhe perguntei se se sentia uma mulher.G. Primeau - O fato de senti-lo psicologicamente, en-

tão sim. Com este tipo de intuição de [... ].Dr. Lacan - Sim, perdoe-me, de intuição. Desde que as

intuições sejam imagens que passam através de você. Vocêjá se viu como uma mulher?

G. Primeau - Não, eu me vi como uma mulher num so-nho, mas estou tentando [... ].

Dr. Lacan - Você se viu como uma mulher num sonho.O que você chama de um sonho?

G. Primeau - Um sonho? Sonho à noite [... ].Dr. Lacan -Você deve perceber que não são o mesmo,

um sonho à noite [ ].G. Primeau - [ ] e um sonho acordado.Dr. Lacan - E o sonho que você chamou de "acordado"

tem, se entendi, uma linguagem imposta. O que acontece ànoite, aquelas imagens que vemos, quando estamos ador-mecidos - é isto semelhante à linguagem imposta? É umamaneira muito aproximada de dizer isto, mas talvez tenhasuas próprias idéias a respeito.

G. Primeau - Não, não há relação.Dr. Lacan - Então, por que chama sua fala imposta de

sonhos?G. Primeau - A fala imposta não é um sonho; o Senhor

não me entendeu.Dr. Lacan - Desculpe-me, por favor. Ouvi-o muito bem,

quando usou a palavra "sonho" no contexto. Mesmo quandoacrescentou a palavra "acordado", foi você quem usou a pala-vra "sonho". Não se lembra de ter usado a palavra "sonho"?

G. Prirneau - Sim, usei a palavra "sonho", mas as sen-tenças impostas estão entre o círculo solitário e o que agri-do na realidade. Desconheço o que é uma pane de [... ].

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Page 8: Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

•Dr. Lacan - Bom. Então. O que é esta ponte que agride?G. Primeau - Sim, é a ponte que agride.Dr. Lacan - Então, essas palavras ou falas [... ].G. Primeau - Não, são sentenças.Dr. Lacan - Essas falas que passam através de você ex-

pressam seu assassinato. É muito próximo do que você diza si mesmo, como por exemplo: «Querem me governar».Isto é algo que disse, mas é uma fala imposta.

G. Primeau - É uma fala imposta.Dr. Lacan - Bom. "Eles", em questão, são as pessoas

que você fere e às quais imputa o desejo de governar o seuintelecto. Você concorda?

G. Primeau - Sim, mas desconheço se é [... ].Dr. Lacan - Desse modo, quando as falas emergem as-

sim, elas o invadem.G. Primeau - Sim, elas me invadem.Dr. Lacan - Sim.G. Primeau - Elas me invadem, emergem e não são re-

flexivas.Dr. Lacan - Sim. Então, há uma segunda pessoa que re-

flete sobre elas, que acrescenta ao que você acrescenta, aoreconhecer que você representa esta parte. Você concorda?

G. Primeau - Sim.Dr. Lacan - O que você acrescenta em, por exemplo,

«Eles querem governar o meu intelecto»?G. Primeau - Jamais aconteceu de eu acrescentar uma

sentença a esta sentença: «Eles querem governar o meuintelecto. Mas a realeza não está derrotada ou está derrota-da». Não sei se [... ].

Dr. Lacan - Foi você que fez a distinção entre a fala im-posta e a reflexão que a ela acrescenta, e, em geral - estenão é o único exemplo -, você acrescenta um "mas". Vocêjustamente disse: "Mas a realeza não está derrotada".

G.Primeau -«Elesquerem governar meu intelecto» é umaemergência. «Masa realeza está den-otada» é uma reflexão.

Dr. Lacan - O que quer dizer que é sua, que você a ela-borou?

G. Primeau - Sim, enquanto a emergência se impôs so-bre mim. Acontece em mim assim: são como direcionadoresintelectuais que vêm a mim, que nascem brutalmente e seimpõem ao meu intelecto.

Dr. Lacan - Durante nossa conversa?G. Primeau - Tive uma porção delas.Dr. Lacan - Talvez possa reconstruí-Ias.G. Primeau - Querem matar-me os bluebirds.Dr. Lacan - Querem matar-me os birds [ ... ].

•G.Primeau - Os bluebirds. Querem apoderar-se de mim,

querem matar-me.Dr. Lacan - O que são os bluebirds? Estão os bluebirds

aqui?G. Primeau - Os bluebirds.Dr. Lacan - O que é isto: os bluebirds?G. Primeau - No começo, era uma imagem poética, re-

lacionada ao poema de Mallarmé L'Azur; então, o bluebirdera o céu, o infinito azul. O bluebird era o infinito azul.

Dr. Lacan - Sim, vá em frente.G. Primeau - É uma expressão de infinita liberdade.Dr. Lacan - Então, o que vem a ser isto? Deixe-nos tra-

duzir bluebirds como "liberdade infinita". São essas "infini-tas liberdades" que querem matá-Io? Temos que descobrirse as "infinitas liberdades" querem matá-lo. Vá em frente.

G.Primeau - Eu vivo sem fronteiras, não tendo fronteiras.. .Dr. Lacan - Precisamos descobrir se você vive 'sem fron-

teiras ou está num círculo solitário, porque a palavra "cír-culo" implica a idéia de uma fronteira.

G. Primeau - Sim, e de uma tradição em relação a [... ].Dr. Lacan - A imagem de um círculo solitário [... ].G. Primeau - Em relação ao sonho - às coisas não ima-

ginativas criadas pelo meu intelecto?Dr. Lacan - Não, mas precisamos ir à origem disto.G. Primeau - É muito difícil, porque [... ].Dr. Lacan - O que você cria? Porque, para você, a pala-

vra "criar" tem um sentido.G. Primeau - No momento em que isto emerge de

mim, é uma criação. É um pouco como isto: é precisoque a gente não fique íntimos. O fato de falar desses cír-culos solitários e de viver sem fronteiras não implica con-tradição. Na minha cabeça não vejo uma contradição.Como posso explicar isto? Estou num círculo solitário,porque estou fora da realidade. É por isso q~e falo deum círculo solitário. Mas isto não evita que eu viva numnível imaginativo, sem fronteiras. É precisamente porquenão tenho fronteiras que tenho a tendência a explodirum pouco, a viver sem fronteiras, e, se não se tem fron-teiras para dar um basta nisto, não se pode mais lutar.Não há mais luta.

Dr. Lacan - Antes, você distinguia o mundo da realida-de e que a realidade são coisas como esta mesa, esta cadei-ra. Bom. Você parece indicar que pensa nisto como todomundo faz e que apreende isto mediante o senso comum.Deixe-nos trazer a pergunta em relação a este ponto. Vocêcria outras palavras? A palavra "criar" [... ] .

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Page 9: Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

•G. Primeau - Eu crio palavras através da minha poesia,

através do meu discurso poético.Dr. Lacan - Sim, e as falas impostas criam palavras?G. Primeau - Sim.Dr. Lacan - Isto era uma questão.G. Primeau - Sim, elas criam palavras. Elas criam pala-

vras e a prova é que [... ].Dr. Lacan - A prova é que [... ]?G. Primeau - Eu apenas lhe falei que a sentença «Eles

querem matar-me os bluebirds» implica um mundo ondeestou sem fronteiras. Volta-se, eu volto ao meu círculo soli-tário, quando estou sem fronteiras. É confuso, eu sei, masestou muito cansado.

Dr. Lacan - Eu apenas lhe indiquei que o círculo solitá-rio não implica viver sem fronteiras, por que está limitadopor este mesmo círculo solitário.

G. Primeau - Sim, mas, em relação ao círculo solitário,vivo sem fronteiras. Porém, em relação ao real, vivo comlimites, se somente por causa do meu corpo.

Dr. Lacan - Sim, isto tudo é muito verdadeiro, se sabe-mos que o círculo solitário tem limites.

G.Primeau - Ele tem limites em relação à realidade tan-gível, mas isto não impede que se viva no meio dele semfronteiras. O senhor pensa em termos geométricos.

Dr. Lacan - Penso em termos geométricos, é verdade, evocê, você não pensa em termos geométricos? Mas viver semfronteiras produz ansiedade, não? Isto não o deixa ansioso?

G. Primeau - Sim, isto me deixa ansioso. Sim, mas pos-so controlar o fato de sair deste sonho ou deste hábito.

Dr. Lacan - Bom, isto diz muito. Você teve um problemaque determinou a sua vinda para cá. Se entendi, uma tentati-va de suicídio. O que o levou a isto? Foi a sua amiga Claude?

G. Primeau - Não, não. Foi por causa da telepatia.Dr. Lacan - Precisamente. Nós ainda não tínhamos to-

cado nesta palavra. O que é telepatia?G.Primeau - É a transmissão do pensamento. Sou trans-

missor telepata.Dr. Lacan - Você é um transmissor?G. Primeau - Talvez o senhor não possa ouvir-me.Dr. Lacan - Não, eu o ouço muito bem. Você é um trans-

missor telepata. Em geral, a telepatia envolve recepção, não?A telepatia o previne do que acontece?

G. Primeau - Não, isto é clarividência. Telepatia é atransmissão de pensamento.

Dr. Lacan - Então, para quem você transmite?G. Primeau - Não transmito nenhuma mensagem para

ninguém. O que passa pelo meu cérebro é ouvido por cer-tos receptores telepatas.

Dr. Lacan - Por exemplo, eu sou um receptor?G. Primeau - Não sei.Dr. Lacan - Não sou muito receptivo, pois estou lhe

mostrando que estou inconfortável no seu sistema. As per-guntas que lhe fiz provam que era precisamente de vocêque eu queria ouvir as explanações. ão recebi, portanto, aparte importante do que chamaremos, provisoriamente, de"seu mundo".

G. Primeau - Um mundo à minha imagem.Dr. Lacan - E essas imagens existem?G. Primeau - Sim.Dr. Lacan - São alguma coisa que você recebe, porque

às vê.G. Primeau - Telepatia diz respeito à fala. A sentença

emergente e as reflexões que possa ter, porque as tenho dequando em vez [... ].

Dr. Lacan - Sim, você reflete todo tempo sobre suassentenças.

G. Primeau - Não, não reflito todo tempo sobre as sen-tenças, mas tenho reflexões sobre vários assuntos. Não seio que é dado pela telepatia, mas essas imagens não são trans-mitidas pela telepatia. Finalmente, eu suponho isto, por-que não sou, ao mesmo tempo, eu e um outro.

Dr. Lacan - Sim, mas como acha que os outros as rece-bem?

G.Primeau - Por suas reações. Se for agressivo com elas,se disser coisas que não se parecem comigo [... ]. Os médi-cos sempre me fizeram a pergunta. É um raciocínio que faço.Quando vou ver alguém, vejo se sua face está fria ou se temexpressões diferentes, mas não tenho objetividade perfeitaou noção científíca acerca de que as pessoas me recebam.

Dr. Lacan - Por exemplo, eu o recebi?G. Primeau - Não acho.Dr. Lacan - Não?G. Primeau - Não.Dr. Lacan - Porque as perguntas que lhe fiz mostraram

que eu estava em dificuldades. Quem, além de mim aqui,o recebeu?

G. Primeau - Não sei, não tive tempo de olhar para aspessoas. Por outro lado, são Psiquiatras que habitualmenteestão concentrados e não reagem [... ]. É especialmente emrelação aos pacientes que vejo.

Dr. Lacan - Seus amigos no hospital?G. Primeau - Exatamente .

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Page 10: Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

$

•Dr. Lacan - Há quanto tempo isto vem acontecendo,

esta telepatia, esta expressão fria com a qual você nota quealguém recebeu alguma coisa?

G. Primeau - Começou em março de 1974, quando G.diagnosticou meus delírios paranóicos.

Dr. Lacan - Você acredita neste delírio paranóico? Nãoacho que você seja delirante.

G. Primeau - Naquela época era isso. aquela épocaestava muito excitado, eu queria [... ].

Dr. Lacan - Você queria?G. Primeau - Eu queria livrar a França do facismo.Dr. Lacan - Sim, vá em frente.G. Primeau - Estava ouvindo um programa de rádio na

France-Inter às dez horas e estava falando ao mesmo tem-po. Pierre Bontellier disse, durante o programa: «não sabiaque tinha ouvintes com esses talentos». Foi quando meconscientizei do fato de que podia ser ouvido pelo rádio.

Dr. Lacan - Você teve, nesse momento, o sentimentode que podia ser ouvido pelo rádio?

G. Prirneau - Sim. E tenho outra anedota, quando ten-tei me suicidar. Havia um programa chamado "Radiosco-pia". Estava refletindo [... ]. Eles falaram, por um momen-to, e riram juntos, como se entendessem alguma coisa; eeu estava falando, eu não me lembro mais do que dizia,mas, finalmente, eles disseram: «é o que quero dizer a umpoeta anônimo». Não era exatamente isto; era uma indife-rença que não era indiferente; indiferença não existe. Elesfalaram de um poeta anônimo. Em outra época, no "Radi-oscopia" havia um outro convidado, que era Roger Fressoz,o editor do Canard Encbaénéi. Isto aconteceu antes daminha tentativa de suicídio. Justo no final da entrevista,eles estavam falando sobre o antidericarismo e eu disse:«Reger Fressoz é um santo». Eles morreram de rir, ambosno rádio, de uma maneira que não tinha relação com oque eles estavam dizendo, e então, ouvi algo mais suave:«Ele poderia trabalhar no Canard Encbaéné». É isto purofruto da minha imaginação, ou eles realmente me ouvi-ram? Eram ambos telepatas receptores, ou é pura imagi-nação, uma criação?

Dr. Lacan - Você não pode ajustar a sua mente?G. Primeau - Não posso.Dr. Lacan - Desse modo, foi por causa dessa telepatia,

claramente distinta da clarividência, que você fez essa ten-tativa de suicídio?

G. Primeau - Não, não foi por causa [... ]. Eu estava abu-sando dos meus vizinhos, estava muito agressivo.

•Dr. Lacan - Você estava abusando deles?G.Primeau -Porque havia, freqüentemente, discussões

familiares. Uma tarde estava voltando de O., e [... ].Dr. Lacan - E o quê?G. Primeau - Eu tinha uma porção de remédios.Dr. Lacan - Sim.G. Primeau - Eu já tinha muita ansiedade com o fato de

que as pessoas pudessem ouvir alguns de meus pensamentos.Dr. Lacan - Sim. Por que esses abusos aconteceram com

os seus pensamentos?G. Prirneau - Sim, através dos meus pensamentos. Não

era cara-a-cara. Era o apartamento acima do nosso. Eu osestava agredindo. Ouvi-os gritarem: «O senhor Primeau élouco; ele deveria ser posto num hospício etc. e tal».

Dr. Lacan - Foi isso que determinou seu [... ].G. Primeau - Estava muito depressivo. Já estava muito

ansioso com o fato de me dar conta de que certas pessoaspodiam perceber alguns de meus pensamentos ou algu-mas de minhas fantasias mais ou menos barrocas. Estava,ao mesmo tempo, ouvindo o rádio e dizendo coisas insig-nificantes e banais. No rádio, tinha a impressão de que al-guém me ouvia, debochava de mim. Estava, realmente, nomeu limite, porque, com essa telepatia, que durou aindaalgum tempo, ainda abusei de outros vizinhos, que me olha-vam de forma muito estranha. Não mais do que de repen-te, eu quis me suicidar e peguei [... ].

Dr. Lacan - ão, mas o que resolveria essa tentativa desuicídio?

G. Primeau - É um escape. Escapar da minha ansieda-de. Intelectualmente, era contra a mente suicida. Tinha umafrase: «a vida como forma de conhecimento». Sempre mesenti desesperançoso depois de ficar doente aos quinzeanos. Esta frase voltava à minha cabeça: «se morrer, haverácoisas que desconhecerei». Acredito em reencarnação, masnão em céu.

Dr. Lacan - Você acredita em reencarnação?G. Primeau - Acredito em metempsicose. Houve um

tempo, quando tinha dezoito, em que acreditava ser a re-encarnação de Nietzsche.

Dr. Lacan -Você pensava ser a reencarnação de Nietzsche?Sim [... ] por que não?

G. Primeau - Sim, e, quando tinha vinte anos, descobri"Artaud". Quando tinha dezessete anos, li L'Ombilic desLimbes e comprei todos os livros de Artaud. E, por voltados vinte anos, tinha a impressão de que era a reencarna-ção de Artaud. Artaud morreu no dia 4 de março de 1948.

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•Nasci no dia 10 de setembro, Virgem. Ele nasceu no dia 4 desetembro de 1896; ambos nascemos sob o mesmo signo deVirgem. Como sabia da duração de tempo entre março e se-tembro, tive a impressão de que sua alma e corpo emigra-ram por 6 meses e reencarnaram em mim, quando nasci.

Dr. Lacan - Você realmente acredita nisso?G.Primeau -Agora, não penso mais ser a reencarnação

de Artaud ou Nietzsche, mas continuo acreditando na re-encarnação, pois, quando era pequeno, tive um sonho queera uma espécie de dupla reencarnação, um sonho à noite,noturno. Tinha seis ou sete anos. Nessa idade, não lemoslivros sobre metempsicose. Nesse sonho, achava-me na Ida-de Média e tinha a impressão de já ter vivido nessa época.Ao mesmo tempo, eu me encontrava num "castelo em ruí-nas" e também estava sonhando.

Dr: Lacan - Um sonho dentro de um sonho, sim.G.Primeau - E pensei que tinha conhecido este castelo

antes, quando tinha uma outra vida, antes da Idade Média.Lembro que conheci este castelo, mesmo quando era ape-nas uma ruína.

Dr. Lacan - Então, este castelo data de antes da IdadeMédia.

G. Primeau - Talvez, durante a Idade Média, a expectati-va de vida não fosse mais do que trinta e cinco ou cinqüen-ta anos. O sonho dentro do sonho talvez fosse do tempoda Idade Média também, e talvez tenha levado cinqüentaou cem anos para que o castelo tenha se tornado uma pe-quena ruína. Esta, porém, é uma hipótese que formulei,mas que não foi formulada no meu sonho.

Dr. Lacan - É uma hipótese que você formulou.G. Primeau - Tive experiências com levitação. Desen-

volvi-me muito cedo, quando tinha onze anos. Um dia [... ].Dr. Lacan - O que você chama de "desenvolvimento", o

que é? Ter ereções?G. Primeau - Exatamente.Dr Lacan - Então?G. Primeau - Tive um sonho com levitação.Dr Lacan - Sim, conte-me.G. Primeau - Estava me masturbando e senti um extre-

mo prazer. Tive a sensação de levitar no ar. Levitei realmen-te, ou foi uma ilusão de orgasmo? Do ponto de vista dopensamento, realmente creio que levitei.

Dr: Lacan - Sim, a gente espera, conte-me o que vai fa-zer agora?

G. Primeau -Vou continuar tentando ficar bem. Agora?A curto ou longo prazo?

Dr. Lacan - A longo prazo.G.Primeau - Não tenho idéia. Não formulo para o futuro.Dr Lacan - Você está fazendo algum curso?G. Primeau - Não, não sou mais um estudante.Dr Lacan - Você está trabalhando agora?G. Primeau - Não, não estou trabalhando.Dr. Lacan - Um dia você vai ter que deixar o hospital.

Como encara o fato?G. Primeau - Se conseguir superar a minha ansiedade,

tendo a possibilidade de dialogar [... ]. Sempre haverá estefenômeno da telepatia, que me machuca, porque não sereicapaz de agir, todas as minhas ações serão imediatamentereconhecidas pela telepatia da parte daqueles que me ou-vem, sem que eu mesmo possa ouvi-los. Não serei capaz deviver em sociedade, enquanto essa telepatia existir. As pes-soas ouvem os meus pensamentos, não serei capaz de tra-balhar, não é possível. O que mais me tortura é [... ].

Dr. Lacan - Desde quando você se sente um poucomelhor?

G. Primeau - De duas semanas para cá. TIve inúmerasdiscussões com os Psiquiatras e isto me aliviou um pouco.Mas o fato de o meu jardim secreto ser percebido por cer-tas pessoas, que meus pensamentos e reflexões sejam [... ].

Dr. Lacan - Seu jardim secreto seria o círculo solitário?G. Primeau - Um jardim secreto, onde as reflexões e as

imagens que posso ter de diferentes objetos, e daí por di-ante [... ]. Como você pode ter uma atividade profissional,se algumas das pessoas à sua volta percebem a sua reflexãoe sofrem assim como que um curto-circuito? Mesmo se agente vive de maneira absolutamente correta, há coisas [... ].Se estivesse num grupo estudantil e tivesse que dirigir pes-soas, e elas me ouvissem, seria invivível. Há um mês atrás,estava muito doente. Ficava na minha cama dormindo cons-tantemente. Estava muito arrasado. Tive idéia de cometersuicídio uma vez, porque não podia viver com essa telepa-tia, que nem sempre existiu, que nasceu no momento [... ].

Dr. Lacan - O que nem sempre existiu? A fala impostaveio primeiro?

G. Primeau - A fala imposta e a telepatia começaramem março de 1974 [... ], na ocasião do delírio paranóico,quando quis lutar com os fascistas, e assim por diante, compensamentos.

Dr. Lacan - Naquela ocasião você estava vendo H.?G. Primeau - Eu só o vi uma única vez.Dr: Lacan - Nessa época, você vivenciou algo como a

fala imposta ou a telepatia?

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Page 12: Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

G. Primeau - Não, não está certo. Além disso, quandovi meu Psiquiatra G., novamente, quando retomei do O.,ele me disse: «Sua Telepatia» [... ]. Deram-me 25 eletro-choques, 13 em N. e 12 em O. Estou mais e mais ansioso.Não consigo concentrar-me. Com os eletrochoques, ascélulas são afetadas.

Dr. Lacan - Isto é o que pensa. O drama de estar doen-te, para você, é o eletrochoque.

G. Primeau - Esses eletrochoques foram feitos para mecurar, porque estava realmente delirante. Fiz um monte detestes na minha vida. Quando me levaram para a clínica emM., estava delirante. Intelectualmente, estava ouvindo vo-zes, que me indagavam sobre a França fascista. Tinha a im-pressão de que estava estudando Filosofia ou Matemáticaelementar - não sei, não posso me concentrar por muitotempo. Pensava que os fascistas haviam tomado o poder,que haviam tomado, pela força, o centro de comunicaçõesde rádio e televisão. Utilizando os pensamentos, fiz comque Jean-Claude Bouret e jean Ristat se matassem, estran-gulando-se. Naquela época, estava também obsecado pelafraternídade. Estava respondendo com símbolos matemá-ticos. Tinha a impressão de que eles estavam fazendo per-guntas. Era necessário que respondesse, para salvar a Fran-ça do fascismo. Eles me fizeram perguntas e as respostasque Ihes dei foram muito sinceras; eram séries matemáti-cas ou símbolos poéticos. Não posso me lembrar. Foi porisso que disseram que era delirante.

Dr. Lacan - Finalmente, quem está certo: você ou osmédicos?

G. Primeau - Não sei [... ].Dr. Lacan - Você se coloca nas mãos dos médicos.G. Primeau - Coloquei-me nas mãos deles, tentando

conservar minha vontade livre.Dr. Lacan -Você sente que a vontade livre é importante

na sua vida? No que acabou de contar, você experimentoucoisas que não compreendeu.

G. Primeau - Sim, mas [... ].'Este termo se refere ao primeiro dos dois anos de estudo preparatório para entrarnuma das melhores universidades privadas da França. Um estudante deste curso jáse graduou em um curso equivalente ao High School americano, com distinção.'Pronuocíado exatamente como "Gérard",3Num hospital psiquiátrico francês, um ''Assistente'' é um médico que completou asua residência e é membro da equipe que presta os primeiros cuidados a um paciente.Um Psiquiatra que procura posição, na França, é obrigado à fazer um examecompetitivo, chamado ''Assistanato''.40 termo francês j'ai é homófono de "Geai" ou "Gé".'Um jornal político satírico.

IDr. Lacan - Sim, mas?G. Primeau - Tenho esperança, a esperança de encon-

trar meu poder de julgamento novamente, meu poder dediálogo, o poder de controlar a minha personalidade. Pen-so que isto é um problema crucial. Como lhe contei no prin-cípio, não consigo controlar a mim mesmo.

Dr. Lacan - Bem, meu amigo, até logo. (Dr. Lacan aper-tou a sua mão). Ficaria feliz de ter alguns exemplos de seus[ ... ].

G. Primeau - De meus escritos?Dr. Lacan - Estaremos juntos em poucos dias.G. Primeau - Obrigado, Senhor (Este deixa o quarto).Dr. Lacan - Quando descemos aos detalhes, vemos que

os tratamentos clássicos não exaurem a questão.Alguns meses antes, examinei alguém que foi rotulado

como um psicótico freudiano. Hoje, vimos um psicótícolacaniano [... ] muito claramente identificado. Com essas"falas impostas", o imaginário, o simbólico e o real. É poreste fato que não estou muito otimista com respeito a estejovem. Ele tem o sentimento de que a fala imposta ficoupior. O sentimento do que ele chama "telepatia" é um de-grau a mais. Além disto, o sentimento de estar sendo vistoo coloca em desespero.

Não sei como se livrará dís o. Há tentativas de suicídioque acabarão por acontecer, imo

Este é um quadro clássico, que não se encontrará des-crito, mesmo por bons clínico , como Chaslin. É para serestudado.

Jacques Lacan é Diretor e Fundador da Escola Freudianade Paris. Ele pratica psicanálise em Paris.

Texto publicado com a amávelautorização de )acques-Alain Miller

Texto extraído de EIAnaliticón, nO 1, Campo Freudiano da Espanha -Barcelona,

Editorial Correo Paradiso. Traduzido para o espanhol por Vicente Palomera e

para o português por Ana Lúcia Paranhos Pessoa.

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Page 13: Caso Primeau - apresentação de paciente de Lacan0001

Uma psicose lacaniana:entrevista conduzida por [acques Lacan

Abril 2000 26/27