Carlos Roberto de Castro Jatahy

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UNIVERSIDADE ESTCIO DE S

CARLOS ROBERTO DE C. JATAHY

O MINISTRIO PBLICO E O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO : PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS CONTEMPORNEAS DE ATUAO EM DEFESA DA SOCIEDADE.

Rio de Janeiro 2006

CARLOS ROBERTO DE C. JATAHY

O MINISTRIO PBLICO E O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO: PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS CONTEMPORNEAS DE ATUAO EM DEFESA DA SOCIEDADE.Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Direito, pela Universidade Estcio de S.

Orientador: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck

Rio de Janeiro 2006

VICE-REITORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA

A dissertao

O Ministrio Pblico no Estado Democrtico de Direito: Perspectivas Constitucionais Contemporneas de Atuao em Defesa da Sociedadeelaborada por CARLOS ROBERTO DE CASTRO JATAHY e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial obteno do ttulo de MESTRE EM DIREITO Rio de Janeiro, de de 2006

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Lenio Luiz Streck Presidente Universidade Estcio de S

_________________________________________ Prof. Dr. Universidade

_________________________________________ Prof. Dr. Universidade

A Celeste e Marina, pelas inmeras horas de convvio subtradas.

AGRADECIMEN TOS

Agradeo ao Professor Dr. Lenio Luiz Streck, colega do Ministrio Pblico gacho, pela orientao neste trabalho, com comentrios, crticas e sugestes para a execuo e aprimoramento da pesquisa realizada. Seus profundos conhecimentos jurdicos, apoio incondicionado e interesse pelas questes contemporneas do Ministrio Pblico, durante todo o perodo do mestrado e, principalmente, por ocasio da elaborao desta dissertao, foram inestimveis para a concluso do tema. Agradeo tambm ao Professor Jos dos Santos Carvalho Filho, dileto amigo, que com elegncia e pacincia, procedeu a leitura e reviso do texto, oferecendo, como de hbito, pertinentes comentrios sobre a matria. Finalmente, no poderia deixar de agradecer a Dra. Ana Claudia Teixeira de Melo, pelo inestimvel auxlio para a adequao da presente dissertao aos padres da ABNT.

RESUMO A pesquisa volta-se anlise do Ministrio Pblico no Estado Democrtico de Direito institudo pela Constituio de 1988 e alguns obstculos contemporneos ao pleno exerccio de suas funes institucionais. Demonstra-se a evoluo histrica da instituio e a mudana paradigmtica (de defensora dos interesses do Soberano at a de indutora da transformao social) em seu perfil, para a compreenso dos valores e princpios que norteiam sua atuao. Aborda-se, para a compreenso desta mudana de paradigma, a evoluo do Estado e suas relao com a sociedade, desde o modelo liberal, passando pela instituio do Estado Social e chegando-se ao Estado Democrtico de Direito, com seu potencial transformador da realidade. Desenvolve-se anlise da legislao comparada, para que melhor se aquilate a posio topogrfica do Ministrio Pblico em outros ordenamentos jurdicos, comparando-os com o modelo adotado no Brasil. Critica-se as interpretaes restritivas de carter contemporneo, que no compreendendo as exatas dimenses do Ministrio Pblico neste novo ordenamento constitucional, obstaculizam sua atuao institucional, dificultando o exerccio de seu mister. Enfatiza-se a legitimidade da atuao do Ministrio Pblico na defesa da sociedade, no que concerne a Investigao Direta Criminal; a utilizao da ao civil pblica para o controle difuso da inconstitucionalidade das leis; o combate improbidade administrativa e a proteo do contribuinte. Evidencia-se o perfil constitucional conferido ao Ministrio Pblico aps 1988 e a conseqente relevncia da atividade institucional na consolidao da cidadania no Brasil. Fomenta-se, por fim, o debate terico sobre os rumos da instituio e a correlata responsabilidade social do Parquet no Estado Democrtico de Direito. Palavras-Chave: Ministrio Pblico, Estado Democrtico de Direito, Constituio Federal de 1988, legitimidade.

ABSTRACT

The

survey

is

determined

to

scrutinize

Brazilian

Public

Prosecution

Services

accomplishments for the Democratic State of Law instituted by the 1988s Brazilian Constitution as well as certain present-day obstructions towards the institutional roles perfect practice of law. Initially, the study portrays the institutions historical evolution plus its paradigmatic movements (since as a interests sovereigns defender till as a social makeovers inductor). The topics are analyzed in its profile seeking the values and the principles understanding, which guides the institutes achievements. Also, objecting an upper conception of paradigms transformation, it is pointed up the States progress along with its relation towards the society. The issue regards since the liberal patterns, followed by the Social States institution, and finally the Democratic State of law, considering its high potential to alter reality. Subsequently, it is reported an analysis consisting of preliminarily contrasting different legislations in order to improve the topographys examine on the subject of the Public Prosecution Services location in another Legal System, matching it up to the standard adopted in Brazil. Furthermore, it is underlined an assessment for contemporary features restrictive interpretations, once it denotes an hindrance to the institutional attainment, for that it struggles its mister practice of law given that it misunderstands the Public Prosecution Services accurate scopes within a new Constitutional System. Next and as final point, the essay culminates stressing the legitimacy of the Public Prosecution Services behavior observing the defense of the society. Thus, the issue sketches the Direct Criminal Inquiry; the usage of a criminal and civil action to the diffuse control of laws unconstitutionality; the legal battle against administrative improbity; and also the contributors safeguard question. Ultimately, the dissertation highlights the constitutional profile conferred to the Public

Prosecution Service after the advent of the 1988s Republic Constitution and the consequent relevance of the institutes performance within the Brazilian citizenship consolidation, what encourages the theoretical discuss about the institutions routes and the co-related Parquet s social liability in the Democratic State of law. Key-words: Public Prosecution Service, Democratic State of law, Republican Constitution, legitimacy

SUMRIOINTRODUO: ..................................................................................................................................................... 22 PARTE I: O MINISTRIO PBLICO E O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO. .......................... 26 CAPTULO 1. O MINISTRIO PBLICO E SUA FORMAO HISTRICA: DE DEFENSOR DO REI A DEFENSOR DA SOCIEDADE................................................................................................................. 26 1. A ORIGEM HISTRICA DO MINISTRIO PBLICO:........................................................................... 26 1. 1. O MINISTRIO PBLICO NA ANTIGUIDADE: ............................................................................................. 27 1.2. AS ORIGENS PRXIMAS DA INSTITUIO:................................................................................................. 31 1.2.1. As Origens Francesas ................................................................................................................... 32 1.2.2. As Razes Portuguesas .................................................................................................................. 36 2. O MINISTRIO PBLICO NO IMPRIO ................................................................................................... 39 2.1. A CONSTITUIO DE 1824 ......................................................................................................................... 40 3. O PERODO REPUBLICANO......................................................................................................................... 42 3.1. A CONSTITUIO DE 1891 ......................................................................................................................... 43 3.2. A CONSTITUIO DE 1934 ......................................................................................................................... 43 3.3. A CONSTITUIO DE 1937 ......................................................................................................................... 44 3.4. A CONSTITUIO DE 1946 ......................................................................................................................... 46 3.5. A CONSTITUIO DE 1967 ......................................................................................................................... 46 3.6. A EMENDA CONSTITUCIONAL 01/69 ......................................................................................................... 47 3.7. A TRANSIO DEMOCRTICA: PREPARATIVOS PARA O NOVO MINISTRIO PBLICO .............................. 48 3.8. A CARTA DE CURITIBA. OS ANTECEDENTES DO REGIME CONSTITUCIONAL DE 1988 ............................... 49 3.9. OS TRABALHOS DA ASSEMBLIA NACIONAL CONSTITUINTE ................................................................... 50 4. O MINISTRIO PBLICO E A CONSTITUIO DE 1988: O AGENTE DE TRANSFORMAO SOCIAL ................................................................................................................................................................... 51 4.1. O NOVO PERFIL DO MINISTRIO PBLICO.................................................................................................. 51 4.2. A AO CIVIL PBLICA E O NOVO MINISTRIO PBLICO ........................................................................ 54 4.2.1. O Ministrio Pblico ombudsman............................................................................................ 56 CAPTULO 2. ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO.......................................................................................................................... 59 1. O ESTADO MODERNO: DO ABSOLUTISMO AO ESTADO DE DIREITO ......................................... 59 2. A EVOLUO HISTRICA DO ESTADO DE DIREITO ......................................................................... 63 2.1. O ESTADO LIBERAL DE DIREITO ................................................................................................................ 63 2.2. O ESTADO SOCIAL DE DIREITO .................................................................................................................. 71 2.3 O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO ...................................................................................................... 76 CAPTULO 3. O MINISTRIO PBLICO E O SEU POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO: APONTAMENTOS DE LEGISLAO COMPARADA .... 82 1. APONTAMENTOS NA LEGISLAO COMPARADA ACERCA DA POSIO CONSTITUCIONAL DO MINISTRIO PBLICO: ....................................................................................... 87 1.1. O MINISTRIO PBLICO COMO RGO INTEGRADO AO PODER JUDICIRIO ............................................. 87 1.1.1. Espanha:....................................................................................................................................... 88 1.1.2. Itlia: ........................................................................................................................................ 91 1.2. O MINISTRIO PBLICO COMO RGO DO PODER EXECUTIVO ................................................................ 98 1.2.1. Frana: ......................................................................................................................................... 99 1.2.2. Alemanha:............................................................................................................................... 102

1.2.3. Estados Unidos da Amrica:....................................................................................................... 105 1.3. O MINISTRIO PBLICO COMO RGO VINCULADO AO PARLAMENTO ................................................... 107 1.3.1. Antiga Unio Sovitica (URSS): ................................................................................................ 109 1.3.3. Cuba: ........................................................................................................................................... 111 2. O MINISTRIO PBLICO COMO RGO DE EXTRAO CONSTITUCIONAL DO ESTADO, ESSENCIAL PARA A ADMINISTRAO DA JUSTIA: O AGENTE DE TRANSFORMAO SOCIAL ................................................................................................................................................................. 113 PARTE II. OBSTCULOS CONTEMPORNEOS AO EXERCCIO DAS FUNES DO MINISTRIO PBLICO: PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS ........................................................... 127 CAPTULO 1. A INVESTIGAO DIRETA DO MINISTRIO PBLICO...................................... 127

1. A DECISO DO STF NO JULGAMENTO DO RHC N. 81326:............................................................. 130 1.1. A INOPEROSIDADE DO MTODO HISTRICO APLICADO:......................................................................... 131 1.2. A INEXISTENTE EXCLUSIVIDADE DA POLCIA JUDICIRIA NA INVESTIGAO CRIMINAL:.................... 134 2. A PREVISO DO PODER INVESTIGATRIO MINISTERIAL: ......................................................... 138 3. O CONTROLE DE LEGALIDADE DOS ATOS INVESTIGATRIOS MINISTERIAIS: .................. 143 3.1. A TEORIA DOS PODERES IMPLCITOS:...................................................................................................... 145 CAPTULO 2. O MINISTRIO PBLICO E O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AO CIVIL PBLICA: UMA HISTRIA INACABADA............................................. 153 1. O CONTROLE DIFUSO E A AO CIVIL PBLICA: FUNO INSTITUCIONAL DO MINISTRIO PBLICO .................................................................................................................................... 155 CAPTULO 3. O MINISTRIO PBLICO E O CONTROLE DA PROBIDADE ADMINISTRATIVA: A ATUALIDADE DO CASO MADISON VS. MARBURY E A LEI 10.628/02.............................................. 165

1. A LEI 10.628/02 E A TENTATIVA (FRUSTRADA) DE CERCEAR A PLENA ATUAO DOMINISTRIO PBLICO:................................................................................................................................... 169 2. A REAO INSTITUCIONAL E A ORIENTAO DO MINISTRIO PBLICO FLUMINENSE: 173 CAPTULO 4. O MINISTRIO PBLICO E A DEFESA DO CONTRIBUINTE: ATRIBUIO INSTITUCIONAL DERROTADA PELA JURISPRUDNCIA.................................................................... 178 1. POSICIONAMENTO DOUTRINRIO E JURISPRUDENCIAL ACERCA DO TEMA ................... 180 2. A DECISO DO STF NO RE 195.056: O PRECEDENTE DA ILEGITIMIDADE.............................. 182 3. OS EQUVOCOS NA DECISO PARADIGMTICA:............................................................................ 184 3.1. DA LEGITIMIDADE DO MINISTRIO PBLICO: ......................................................................................... 184 3.2. DA RELEVNCIA SOCIAL E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES DOS CONTRIBUINTES .................. 190 3.3. A DECISO DO STF NO CASO DAS MENSALIDADES ESCOLARES, DE MANIFESTA RELEVNCIA SOCIAL.. 195 3.4. A INCONSTITUCIONALIDADE DA MP N 2.180-35/2001 .......................................................................... 196 CONSIDERAES FINAIS: ............................................................................................................................. 200 BIBLIOGRAFIA: ................................................................................................................................................. 214

INTRODUO:

Aps a Constituio de 1988, o Ministrio Pblico passou a ter perfil constitucional peculiar, na condio de defensor do regime democrtico e dos interesses indisponveis da sociedade (art. 127).

O Ministrio Pblico, face natureza de seu perfil e de suas funes institucionais tpicas, deve, assim, buscar a justia social, fundado nos princpios fundamentais da Repblica (art. 1, II e III, da Constituio Federal), tais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana, a fim de construir uma sociedade livre, justa e solidria (art. 3, I), objetivo maior da nao brasileira. Portanto, deve atuar como um verdadeiro agente de transformao scial, lutando pela implementao dos direitos e garantias fundamentais no Estado Democrtico de Direito institudo pela nova ordem jurdico-constitucional.

A conjugao dos arts. 127, caput, e 129, II, III e IX, do texto constitucional conferem ao Ministrio Pblico a legitimidade para a tutela de interesses sociais indisponveis, por meio de inquritos e aes civis pblicas (Lei 7.347/85), alm de outros procedimentos investigatrios destinados ao exerccio de suas funes institucionais, o que representa um avano substancial no ordenamento jurdico, j que privilegia a proteo coletiva da sociedade, com maior espectro de beneficirios da tutela jurisdicional, em detrimento das demandas individuais.

Por outro lado, sua atuao no deve se limitar apenas propositura das demandas coletivas perante o Poder Judicirio. O Ministrio Pblico deve, cada vez mais, assumir seu papel de indutor do processo de evoluo social, buscando solues criativas e geis para as mazelas que afligem a coletividade cuja tutela lhe foi outorgada pela Constituio da Repblica.

Apesar disso, inmeras decises judiciais e alteraes legislativas pontuais na Legislao ptria - alm de comentrios doutrinrios vm tentando diminuir o campo de legitimidade do Parquet para a tutela de tais interesses, prejudicando sobremaneira a efetividade de sua atuao, em verdadeira afronta aos princpios constitucionais relativos Instituio.

neste contexto que se insere a presente dissertao, buscando analisar, pelo prisma constitucional e infra-constitucional, o papel do Ministrio Pblico na defesa dos interesses meta-individuais indisponveis, considerando tratar-se de funo institucional que lhe foi deferida pela Constituio da Repblica, como forma de ampliar o acesso da sociedade Justia. Busca-se tambm contribuir para a efetividade da atuao do Ministrio Pblico no mbito do Estado Democrtico de Direito, luz da doutrina e da legislao vigentes.

Justifica-se a escolha do tema, j que, decorridos dezoito anos da promulgao da Constituio de 1988, muitos dos direitos e garantias nela assegurados se encontram ainda sem a devida proteo. Apesar das inovaes trazidas pelo Constituinte, a

atuao do Ministrio Pblico como agente de transformao social tem encontrado entraves para seu desenvolvimento pleno e eficaz.

Uma das causas para tais percalos a forma como parte da doutrina e, notadamente, a jurisprudncia, vm tratando o tema, restringindo a legitimidade para a atuao do Ministrio Pblico em causas que este repute de sua atribuio, face nova ordem constitucional vigente.

Nessa perspectiva, objetiva-se demonstrar, sob a tica constitucional, a legitimidade do Ministrio Pblico para a tutela de tais interesses, contribuindo-se, de igual sorte, para reforar a Linha de Pesquisa Acesso Justia e Efetividade do Processo do curso de Mestrado em Direito da Universidade Estcio de S.

A dissertao desenvolve-se em duas partes, subdivididas em sete captulos.

Na primeira parte, o captulo primeiro aborda a origem e a evoluo histrica do Ministrio Pblico, com suas bases na Frana, onde foi criado para a defesa dos interesses do monarca, at os dias atuais, como defensor da sociedade no Estado Democrtico de Direito. No captulo segundo, analisa-se a evoluo do Estado Moderno, desde sua instituio, com nfase na concepo liberal, passando pelo Estado Social e atingindo o Estado Democrtico de Direito, com suas nuances e caractersticas. No terceiro captulo, procura-se traar o desenho institucional do Ministrio Pblico no Estado Democrtico de Direito, efetuando apontamentos de legislao comparada acerca de sua

posio constitucional dentro dos poderes do Estado, com nfase na perspectiva de que, para uma efetiva atuao na defesa da coletividade, privilegiando sua verdadeira vocao social, deve a Instituio relacionar-se com os trs poderes com independncia e sem qualquer vnculo de subordinao.

Na segunda parte da dissertao so apontados alguns obstculos que se apresentam atuao contempornea do Ministrio Pblico, analisando-se, pontualmente, as decises judiciais e comentrios doutrinrios que procuram cercear suas atribuies na defesa da sociedade, especialmente no que concerne Investigao Direta Criminal (Captulo 1); a utilizao da ao civil pblica para o controle difuso da inconstitucionalidade das leis (Captulo 2); o combate improbidade administrativa (Captulo 3); e a legitimidade para a proteo do contribuinte (Captulo 4).

Finalmente, em consideraes finais, procura-se demonstrar que a Constituio de 1988 reservou ao Ministrio Pblico a verdadeira condio de defensor da sociedade e agente de transformao social, sendo as interpretaes restritivas sua atuao fundadas em perspectivas equivocadas da vontade do constituinte ao redesenhar a Instituio no Estado Democrtico de Direito institudo no Brasil aps 5 de outubro de 1988.

PARTE I: O MINISTRIO PBLICO E O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO.

CAPTULO 1. O MINISTRIO PBLICO E SUA FORMAO HISTRICA: DE DEFENSOR DO REI A DEFENSOR DA SOCIEDADE.

1. A ORIGEM HISTRICA DO MINISTRIO PBLICO:

A compreenso do papel da instituio do Ministrio Pblico na sociedade contempornea deve, necessariamente, levar em conta as razes histricas que permearam sua formao e seu desenvolvimento at a atualidade, bem como as perspectivas futuras para seu aprimoramento. Nesse aspecto, deve-se considerar que a histria do Ministrio Pblico est vinculada evoluo do Estado moderno e construo do aparelho estatal, notadamente as atividades relacionadas com a prestao da Justia. Com efeito, sendo o Ministrio Pblico um mecanismo poltico de proteo social1, indispensvel a digresso histrica para uma melhor compreenso do contexto onde a Instituio se encontra no Estado Democrtico de Direito contemporneo, seus valores e sua finalidade.

1. 1. O MINISTRIO PBLICO NA ANTIGUIDADE:

A tarefa de precisar a gnese do Ministrio Pblico rdua. Com efeito, sua origem controvertida, divergindo a doutrina quanto sua base remota2, havendo, entretanto, relativo consenso quanto sua origem prxima3.

A busca por razes do Ministrio Pblico na Antiguidade tem severos crticos, como Roberto Lyra4, que em suas pesquisas concluiu no sentido de que os gregos e romanos no conheceram, propriamente, a instituio do Ministrio Pblico, apesar de existirem cargos e funes similares quelas atualmente exercidas pela Instituio na Antiguidade5.

De fato, no antigo Egito, h quatro mil anos, segundo Vellani6, havia o Magia, funcionrio real do Fara que deveria ser a lngua e os olhos do Rei, castigando os criminosos, reprimindo os violentos e protegendo os cidados pacficos; acolhendo os pedidos do homem justo; sendo o pai do rfo e o marido da viva. Vislumbram-se nessas atividades, ainda que de maneira remota, funes que hoje so deferidas ao Ministrio Pblico, tais como a persecuo criminal (art. 129, I, da Constituio

SAUWEN Filho, Joo Francisco. Ministrio Pblico e o Estado democrtico de direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p 2. 2 TORNAGHI, Hlio. Curso de Processo Penal. 3a ed. So Paulo: Saraiva, 1993. v. 1, p. 484. 3 SAUWEN Filho, Joo Francisco. op cit, p 38. 4 LYRA, Roberto. Theoria e prtica da promotoria pblica. Rio de Janeiro: Jacintho, 1937. p. 9. 5 SALLES, Carlos Alberto. Entre a razo e a utopia: A formao histrica do Ministrio Pblico.In: VIGLIAR, Jos Marcelo Menezes e MACEDO Junior, Ronaldo Porto (coord.). Ministrio Pblico II:Democracia. So Paulo: Atlas, 1999. pp. 13-14. 6 VELLANI, Mario. Il Publico Ministero nel Processo. Bologna: Zanichelli, 1965, v. 1, p. 16.

1

da Repblica) e a proteo dos rfos e da famlia (art. 82, I e II do Cdigo de Processo Civil) .

Outros idealizam, ainda na Antiguidade, figuras similares ao atual Ministrio Pblico nos foros de Esparta ou ainda nas figuras romanas do "advocati fisci", dos "censores" ou do "defensor civitatis"7.

No que concerne Grcia clssica, parece difcil acreditar que a Instituio pudesse ter existido, num sentido orgnico e funcional, nesse perodo. Isso porque a figura do acusador pblico no existia naquela sociedade, onde se deixava s vtimas dos crimes ou sua famlia a iniciativa do processo contra os criminosos8. A acusao era ento desempenhada por notveis oradores que, movidos pelo interesse na causa ou pela paixo que o delito desencadeava no meio social, nem sempre agiam com a imparcialidade do Ministrio Pblico da atualidade. Lecionando sobre o tema, Roberto Lyra adverte:Os oradores atenienses, constitudos em Magistratura voluntria, conferiam ao debate judicirio o mesmo carter de pugilato intelectual, com o trgico poder de arrastar os acusadores proscrio e ao extermnio. O juramento de acusar de boa f e no interesse da justia no infundia reservas reais at na prerrogativa de formar a culpa.9

No tocante s demais atribuies atualmente deferidas ao Ministrio Pblico, improvvel que, numa democracia direta como aquela cultivada pelos gregos, pudesse vicejar a instituio ministerial. A amplitude do exerccio da cidadania, o respeito aos ideais democrticos, a prtica da democracia direta e a conscincia dos direitos,

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurdico do Ministrio Pblico. 5a ed. So Paulo: Saraiva, 2001. p. 42 Neste sentido, SAUWEN Filho, Joo Francisco. op cit., p. 18; e PAES, Jos Eduardo Sabo. O Ministrio Pblico na construo do Estado Democrtico de Direito. Braslia: Braslia Jurdica, 2003. p. 26. 9 LYRA, Roberto. op cit. p 10.8

7

escrupulosamente garantidos aos considerados cidados, prescindia da existncia de uma instituio para cumprir as atividades hoje confiadas ao Ministrio Pblico.10

No sendo despiciendo trazer colao a peremptria afirmao de Marcel Rousselet e Jean Michel Auboin11: La justice athnienne, comme dalleurs toutes ls justices antiques na jamais connu l Ministre Public.

Quanto existncia da Instituio em Roma, nova controvrsia. Estudiosos da matria12 apontam os procuratores Caesaris e os advocati fisci como precedentes histricos do Ministrio Pblico.

Nesse sentido, parecer elaborado por Joo Monteiro13, destinado Cmara dos Deputados, por ocasio da votao da Lei n 18, de 21 de novembro de 1891, ainda sob a gide da primeira Constituio da Repblica Republicana, assevera:

A instituio do tempo do imprio romano denominada fiscus se apresenta como a primeira criao do Ministrio Pblico; os advocados do fisco, criados pelo Impeador Adriano, foram os seus primeiros representantes. Tambm chamados de procuratores caesares, viram por tal forma crescer o cdigo de suas atribuies, que, na frase de Savigny em sua Histria do Direito Romano na Idade Mdia, caram afinal no dio popular.

PAES, Jos Eduardo Sabo. op. cit. p. 27. ROUSSELET, Marcel e AUBOIN, Jean Michel. Histoire de La Justice. 5. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1976. p.12. 12 FERREIRA, Srgio de Andria. Princpios Institucionais do Ministrio Pblico. Revista do Instituto dos Advogados do Brasil, p. 9; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. So Paulo:Saraiva, 1977. v.1, p 105; VELLANI, Mrio. Op. cit., V. 1, p 11-12, MONTEIRO, Joo. Teoria do Processo Civil. 6 ed. Rio de janeiro: Borsoi, 1956. p. 195. 13 MONTEIRO, Joo. op. cit., p. 195.11

10

Tal assertiva refutada por outros, como Roberto Lyra14, que, ao pesquisar o tema, focado na questo do exerccio da persecuo penal pelos membros da Instituio, afirma que tal funo no era deferida ao Estado:

Ao povo quando no o ofendido competia a iniciativa do procedimento penal e os acusadores eram um Csar, um Hortencio, um Cato, que, movidos pelas paixes ou pelos interesses, abriam caminho sagrao popular em torneio de eloqncia faciosa. A tcnica da funo confundia-se com a arte de conquistar proslitos pela palavra.

No mesmo teor, substancial doutrina mostra-se ctica quanto possibilidade de serem encontradas em Roma as razes do Ministrio Pblico15, sendo interessante ressaltar o trabalho de pesquisa de Jos Narciso da Cunha Rodrigues16, exProcurador-Geral do Ministrio Pblico Portugus, que esclarece serem cinco as magistraturas romanas consideradas como provveis antepassados do Ministrio Pblico e no apenas os procuratore caesaris, como comumente se afirma. Leciona o autor luso:

So cinco as instituies de direito romano em que a generalidades dos autores v traos de identidade com o Ministrio Pblico: os censores, vigilantes gerais da moralidade romana; os defensores das cidades, criados para denunciar ao imperador a conduta dos funcionrios; os irenarcas, oficiais de polcia; os presidentes das questes perptuas; e os procuradores dos csares, instituidos pelo imperador para gerir os bens dominiais.

LYRA, Roberto. op cit., p. 10. PAES, Jos Eduardo Sabo. op. cit., pp. 29-39; MACHADO, Antonio Cludio da Costa, op. cit., p 12; SAUWEN Filho, Joo Francisco. op. cit., p 26. 16 RODRIGUES, Jos Narciso da Cunha . Em nome do povo. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 36.15

14

Terminando por concluir: Examinadas uma a uma, nenhuma evidencia uma instituio reunindo as caractersticas que hoje definem o Ministrio Pblico. No entanto, todas tm desta instituio algum sinal.

Nesse sentido, tambm a afirmativa de Michele-Laure Rassat: a origem do direito de perseguir de ofcio no deve ser confundida com a origem do Ministrio Pblico, acrescentando que pode-se sempre citar, entre todas as legislaes antigas, os exemplos de persecuo de ofcio sem que isto signifique que o Ministrio Pblico, tal como o entendemos, seja de origem persa, ateniense ou romana.17

Em suma, acertado afirmar que algumas funes atualmente exercidas pelo Ministrio Pblico j existiam no Egito, na Grcia e em Roma. Contudo, tratava-se de funes atribudas a pessoas que no representavam uma estrutura nem gozavam de um estatuto semelhante ao que hoje existe no Ministrio Pblico contemporneo. De todo o modo, sempre pertinente lembrar que no se deve incorrer em armadilhas historicistas, ahistricas e atemporais. No se deve olvidar que a distncia temporal, como bem diz Gadamer, sempre um aliado e no um obstculo para a compreenso do fenmeno.

1.2. AS ORIGENS PRXIMAS DA INSTITUIO:

O Ministrio Pblico contemporneo est relacionado a formas especficas de organizao do Estado e em especial, da administrao da Justia. Os

17

RASSAT, Michele-Laure. L Ministre public entre son pass et son avenir. Paris:Librarie Genrale de Droit et de Jurisprudence, 1967. pp. 7-16. Traduo livre do autor.

precedentes histricos que marcam seu surgimento so: I. A superao da vingana privada; II. A entrega da ao penal a um rgo pblico tendente imparcialidade; III. A distino entre o acusador e o Juiz; IV. A tutela de interesses da coletividade e no somente do fisco e do soberano; e V. A execuo rpida e certa da sentena dos Juzes.18

Tais princpios e requisitos so caractersticos do Estado Moderno e, nesse contexto, o surgimento do Ministrio Pblico deve ser compreendido como ligado preexistncia de condies bsicas de organizao poltica da sociedade, vinculadas ao aparecimento e formao do novo aparato estatal. Feitas tais consideraes de se aferir as origens modernas da Instituio, iniciando pelo seu bero: a Frana.

1.2.1. As Origens Francesas

A origem prxima da Instituio comumente atribuda Frana, com a criao dos advocat et procureur du roi no sculo XIV. Tais funes, no obstante a generalizao realizada por parte da doutrina, tinham atribuies diversas na nascente burocracia francesa. Os chamados Procuradores do Rei tinham sua origem nos oficiais chamados saion ou graffion, existentes desde o Sculo VII, que exerciam inicialmente vrias funes administrativas, entre as quais o recrutamento de marinheiros, o controle da populao e dos postos de correio e, sobretudo, atribuies fiscais. Em decorrncia dessa ltima funo, passaram, com o tempo, a desempenhar tarefas criminais, tendo em vista que uma grande parte dos delitos era punida com penas pecunirias, o que

18 ZAPPA, Giancarlo. Il pubblico ministero: apunti di storia e di diritto comparatto. In: La riforma Del pubblico ministero. Milo: Dott. A. Giuffr, 1974. p. 63.

constitua grande parcela do tesouro real19. As funes dos procureur du roi destinavam-se, portanto, no apenas a denunciar quem violasse a lei, mas tambm a executar a sentena proferida pelo Juiz, garantindo o proveito econmico da Coroa. J os avocat du roi eram escolhidos entre os advogados comuns, com atribuio exclusivamente cveis, para a administrao e defesa dos interesses patrimoniais do soberano20. O advocat e o

procureur, embora exercendo atribuies diferentes, respectivamente de natureza cvel e criminal, tinham sua atividade dirigida para um nico objetivo, a defesa do poder e dos interesses do soberano, personificando o poder do Estado. Nesse contexto, em razo de tal semelhana, h a juno dos cargos, com a criao do Ministrio Pblico.

Com efeito, especificamente na Ordonnance de Felipe IV, o Belo, em 1302 , une-se a figura dos advocat et procureur du roi tambm chamados de les gens du roi, numa nica instituio, sendo certo que tais agentes pblicos desempenhavam as funes de persecuo penal e de tutela dos interesses do Estado e do soberano junto ao Poder Judicirio21. A criao de Tribunais e a investidura de magistrados na funo jurisdicional se deve ao Rei Luiz IX que, com a publicao de seus Estatutos, em 1270 (Estatutos de So Luiz), retornou fonte do direito romano, moralizando a distribuio da justia naquele pas22.

SALLES, Carlos Alberto. op.cit., p. 18. SAUWEN Filho, Joo Francisco. op. cit., p.38. 21 MACHADO, Antonio Cludio da Costa. A interveno do Ministrio Pblico no processo civil brasileiro. 2a ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 13. 22 MELLO Junior, Joo Cancio de. A Funo de controle dos atos da Administrao Pblica pelo Ministrio Pblico. Belo Horizonte: Lder, 2001. p. 46.20

19

Felipe IV - o Belo23- cria, portanto, um corpo de funcionrios a quem competiria a tutela dos interesses do Estado, separados da pessoa e dos bens do rei24; e com a finalidade de fiscalizar de perto as atividades dos magistrados, outorga-lhes as mesmas prerrogativas destes, impondo-lhes, inclusive, a vedao do patrocnio de quaisquer outras causas. Apesar de atuar to somente na defesa dos interesses do Estado (que ento se confundiam com os do soberano) - funo que a instituio somente abandonou na Constituio de 1988 - nascia a o Ministrio Pblico.

Note-se, entretanto, que a definio institucional do Ministrio Pblico na Frana, nos padres do que hoje, s ocorreu aps o conturbado perodo que se seguiu Revoluo Francesa de 1789, com o movimento de Codificao patrocinado por Napoleo, adotando-se o perfil atualmente existente naquele pas25.

A origem das expresses Parquet e Ministrio Pblico decorrente do exerccio funcional pelos prprios procuradores do rei, que em correspondncias trocadas entre si, denominavam sua funo como um ofcio ou ministrio pblico, visando distingui-lo do ofcio privado dos advogados,26 sendo certo que, a expresso Parquet, utilizada atualmente como sinnimo da Instituio, tem origem no estrado existente23

Alto e dotado de grande beleza fsica, o que lhe valeu a alcunha, Felipe IV de Frana conhecido na histria universal como um monarca tirano, responsvel por inmeras atrocidades jurdicas com requintes de perversidade. Joo Francisco Sauwen Filho relata em sua obra (pp. 44-46), que ao tomar conhecimento do adultrio cometidos por suas noras, as princesas e irms Margarida e Branca Artois, conseguiu-lhes a condenao, juntamente com sua irm mais nova, que inocente, sabia do ilcito, trancafiando-as num convento at a morte. Os amantes, os irmos Gautier e Felipe Aunnay, escudeiros de nobres da corte, os fez condenar morte precedida de brbaras torturas, como castrao em praa pblica(a pretexto de resgatar a honra da famlia) e esfolamento, com a retirada de toda a pele por seus carrascos e a queima de seus rgos genitais em fogueira. Jamais o povo tinha visto espetculo to horripilante. Felipe quis deixar o exemplo gravado para sempre, conclui o autor. 24 REZENDE Filho, Gabriel. Direito Processual Civil. 4a ed. So Paulo: Saraiva, 1954. v . 1, p. 91. 25 Cdigo de Instruo Criminal e Lei de 20 de Abril de 1810. 26 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 52; e SAUWEN Filho, Joo Francisco, op. cit, p. 38, citando Henri Roland e Laurent Boyer, em Ls Institutions Judiciares.

nas salas de audincia, onde os procuradores do rei podiam sentar-se lado a lado com os magistrados.

Como bem leciona Hlio Tornaghi27:O Ministrio Pblico constituiu-se em verdadeira magistratura diversa da dos julgadores. At os sinais exteriores dessa proeminncia foram resguardados; os membros do Ministrio Pblico no se dirigiam aos juzes do cho, mas de cima do mesmo estrado ("parquet") em que eram colocadas as cadeiras desses ltimos e no se descobriam para lhes enderear a palavra, embora tivessem que falar de p (sendo por isso chamados "magistrature debout", Magistratura de p).

No mesmo teor, Mauro Capelletti e J. A. Jolowicz28, indicando o status de magistrados dos membros do Ministrio Pblico e o local especial onde tinham assento na corte:Like the judges, they were(and are) member of the magistrature, although called magistrats debout(standing judges) rather than magistrats assis or magistrates du sige(sitting judges, to indicate that they made (ad make) their arguments standing before the sitting court). Likewise, they were (and are) also called parquet, to indicate that, when arguing in court, they did (and do) not sit on the bench but rather, like the normal attorneys, stand on the floor parquet.

A evoluo histrica do Ministrio Pblico francs demonstra como a Instituio, nascida para sustentar os interesses dos monarcas, lenta e gradualmente transformou-se num baluarte da democracia, como conseqncia lgica da transformao da mentalidade poltica dos povos. Com efeito, seria ingnuo imaginar que, desde sua criao em 1302, o rgo tivesse se constitudo num guardio dos direitos indisponveis do cidado. A

TORNAGHI, Hlio. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. v.1, pp. 277/278. 28 CAPPELLETTI, Mauro e JOLOWICZ, J. A. Studies in a Comparative Law Public Interest Parties and the Cative Role of the Judge in civil Litigation Milano Dott. A. Giuffr Editore.

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mentalidade da poca, marcantemente autoritria, por si s impediria qualquer tentativa nesse sentido. Cidadania e direitos do cidado eram coisas impensveis no mundo de ento. 29

Criado e desenvolvido na Frana, o Ministrio Pblico penetra em quase todas as legislaes europias, inclusive na portuguesa, de onde, atravs das ordenaes, chegou at ns, alcanando sua plenitude com a Constituio de 1988.

1.2.2. As Razes Portuguesas

No Brasil, as razes do Ministrio Pblico repousam, inicialmente, no Direito Portugus, vigente no pas no perodo colonial.

Fundada a monarquia portuguesa, com a ascenso ao trono de D. Joo I, aps a batalha de Aljubarrota, comearam a aparecer em documentos e textos legais referncias aos procuradores e advogados do rei, que se ocupavam dos interesses do fisco e da coroa, tal como ocorrera na Frana, antes da Ordonnance de Felipe IV em 130230.

No pas ibrico, a primeira meno existente acerca do assunto um diploma legal de 14 de Janeiro de 1289, em que se criava a figura do Procurador do Rei, cargo de natureza pblica e permanente31, sem entretanto constituir ainda uma magistratura, o

SAUWEN Filho, Joo Francisco. op cit., pp. 38-46. LOPES CARDOSO, Isabel. Breve Memria sobre a Procuradoria-Geral da Repblica. Lisboa. Ed. Procuradoria-Geral da Repblica. Gabinete de Relaes Pblicas e Informao. p.9. 31 MRTENS, Joo B. da Silva Ferro de Carvalho. O ministrio pblico e a procuradoria-geral da Coroa e Fazenda. Histria, natureza e fins. In: Boletim do Ministrio da Justia. Lisboa: Ministrio da Justia, fev. 1974, n 233.30

29

que s ocorreria mais tarde, com a criao dos tribunais regulares e a publicao de leis que viriam a substituir o primitivo direito dos forais de cada regio.

Como cedio, em Portugal (e at a independncia, no Brasil), vigoraram trs grandes monumentos legislativos: as Ordenaes Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, tendo esta ltima perdurado parcialmente at a entrada em vigor do Cdigo Civil de 1916, no Brasil.

Evidenciada no reino de Portugal a necessidade de se estabelecer uma instituio que apoiasse os vassalos que reclamassem por Justia, bem como defendesse o interesse geral, surge, nas ordenaes Afonsinas, publicadas entre 1446 e 1447, em seu Ttulo VIII, Livro I, a figura do Procurador da Justia, nestes termos ... E veja, e procure bem todos os feitos da justia, e das vivas, e dos rfos, e miserveis pessoas que nossa Corte vierem32.

Com o advento das Ordenaes Manuelinas, em 1521, nos Ttulo XI e XII do Livro I, foram estabelecidas as obrigaes relativas aos ofcios dos Procuradores dos Feitos do Rei, da figura do "Promotor da Justia da Casa de Suplicao" e dos Promotores da Justia da Casa Civil. Estabelecia ainda a existncia, na Casa de Suplicao de Lisboa, de um Procurador dos Feitos da Coroa e um Procurador dos Feitos da Fazenda, certamente seguindo o clssico modelo do Parquet francs, onde as gentes do rei,RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministrio Pblico: Dimenso constitucional e repercusso no processo penal. So Paulo: Saraiva, 2003. p. 16. Note-se que o sentido democrtico na instituio dos Procuradores da Justia do reino portugus deve-se ao especial contexto histrico em que nasceu a monarquia lusa, numa poca em regra absolutista. O signo da liberdade era evidente entre os portugueses que venceram a batalha de Aljubarrota e coroaram o primeiro soberano (D. Joo I, o mestre de Aviz), tanto que em suas lanas estava escrito, por ordem do prncipe: Os vassalos portugueses so livres, como informa Joo Francisco Sauwen Filho em sua obra, em nota de rodap da p. 104, citando Alexandre Herculano.32

no alvorecer da Instituio, deixaram de defender apenas os interesses privados do monarca passando tambm defesa dos interesses do Estado.

Finalmente, nas ordenaes Filipinas de 1603 que se cria, de maneira mais sistemtica, a figura de um Promotor de Justia. H diversos Ttulos referindose instituio do Ministrio Pblico, com referncias a um "Procurador dos Feitos da Coroa" ou ao "Procurador dos Feitos da Fazenda", ao "Promotor da Justia da Casa da Suplicao e ao "Promotor da Justia da Casa do Porto", todos no Livro I33.

As atribuies do Promotor de Justia, descritas no ttulo XV merecem ser transcritas, por descreverem, de maneira ainda incipiente, funes que at hoje so caractersticas da Instituio:

Ao Desembargador da Casa da Suplicao, que servir de Promotor de Justia, pertence requerer todas as coisas, que tocam Justia, com cuidado e diligncia, em tal maneira que por sua culpa e negligncia no perea. E a seu Ofcio pertence formar libelos contra os seguros, ou presos, que por parte da Justia ho de ser acusados na Casa de Suplicao por acordo de Relao...Nos casos onde no houver querela nem confisso da parte, por sua ateno na devassa, parecendo-lhe, que se ela no deve proceder, para com ele dito promotor se ver em relao, se deve ser acusado, preso ou absolvido. E assim far nos ditos feitos quaisquer outros artigos e 34 diligncias, que forem necessrias ao bem da Justia.

Ressalve-se que a evoluo do Ministrio Pblico portugus est muito relacionada a evoluo dos rgo judiciais junto aos quais atuava, que, por sua vez, acompanharam a organizao do Poder Poltico em Portugal. Sua feio atual origina-se do Decreto n 24, de 16 de maio de 1832, conhecido como decreto sobre as reformas das Justias, assinado em Ponta Delgada pelo ento Prncipe Regente, Dom Pedro, Duque de33

MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 46.

Bragana (D. Pedro I do Brasil), em nome da Rainha Infanta, Dona Maria II de Portugal, sua filha. O primeiro texto legislativo genuinamente brasileiro a prever a figura do "Promotor de Justia"35 datado de 1609, tratando-se do diploma que regulava a composio do Tribunal da Relao da Bahia e que dispunha: "A Relao ser composta de 10 (dez) desembargadores, 1 (um) procurador de feitos da Coroa e da Fazenda e 1 (um) promotor de justia".

Em 1751 foi criada outra Relao na Cidade do Rio de Janeiro, que viria a tornar-se a Casa de Suplicao do Brasil em 1808, cabendo-lhe julgar recursos da relao da Bahia. Nesse novo Tribunal, o cargo de promotor de justia e o cargo de procurador dos feitos da Coroa foram separados, passando a ser ocupados por dois titulares. Pela primeira vez em terras brasileiras, separam-se as funes de defesa do Estado e do fisco da Defesa da Sociedade, finalmente implementada em definitivo na atual Constituio da Repblica.

2. O MINISTRIO PBLICO NO IMPRIO

Com a independncia do Brasil, em 1822, a Constituio de 1824 atribuiu ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional, a acusao criminal, ressalvadas as hipteses de iniciativa da Cmara dos Deputados. J a partir de 1828, existia

34 35

SALLES, Carlos Alberto. op. cit., p. 20. MELLO JUNIOR, Joo Cancio de. op. cit., p. 46.

um promotor de justia junto a cada tribunal de relao, inclusive o da corte e em cada comarca. O Cdigo de Processo Criminal do Imprio, datado de 1832, foi o primeiro diploma brasileiro a dedicar tratamento sistemtico ao Ministrio Pblico. Com efeito, havia uma seo inteira destinada instituio, notadamente aos promotores, com os principais requisitos para sua nomeao e com suas principais funes institucionais. A reforma processual de 1841, consubstanciada na Lei 261 de 03 de dezembro, ao reformular o Cdigo de Processo Criminal, estipulou em dois artigos a figura do promotor de justia:

art. 22: Os promotores pblicos sero nomeados e demitidos pelo Imperador ou pelos Presidentes das Provncias preferindo sempre os bacharis formados, que forem idneos, e serviram pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento, sero nomeados interinamente pelos juzes de direito. art. 23: Haver pelo menos em cada comarca um promotor que acompanhar o juiz de direito; quando, porm, as circunstncias exigirem, podero ser nomeados mais de um. Os promotores venceram o ordenado que lhes for arbitrado, o qual, na corte, ser um conto e duzentos mil ris por ano alm de mil e seiscentos por oferecimento do libelo, trs mil e duzentos ris por cada sustentao no jri, e dois mil e quatrocentos ris por arrazoados escritos.

2.1. A CONSTITUIO DE 1824

A Constituio de 1824 no fazia qualquer meno ao Ministrio Pblico, mas em seu art. 48 afirmava: "No juzo dos crimes cuja accusao no pertence Cmara dos Deputados, accusar o Procurador da Coroa e Soberania Nacional."36 Depreende-se de tal dispositivo que havia, sob a gide da Constituio do Imprio, dois rgos com atribuio para a persecuo criminal, o Procurador da Croa e a Cmara de Deputados. O Procurador da Croa e Soberania Nacional detinha legitimidade para acusao dos crimes de autoria das pessoas que no fossem ministros e conselheiros de36

CAMPANHOLE, Adriano. Constituies do Brasil. 11a ed. So Paulo: Atlas, 1994. p. 762.

estado, j que, nessas hipteses, a competncia era da Cmara dos Deputados, conforme previsto no art. 38 daquela Constituio da Repblica.

Como j asseverado, durante a vigncia dessa Constituio foi editado o Cdigo de Processo Criminal do Imprio, em 1832, que continha uma seo reservada aos promotores, com os primeiros requisitos para sua nomeao e principais atribuies. Foi editada tambm, em 1841, a Lei n 261, regulada pelo Decreto n 120, de 31 de Janeiro de 1842, estabelecendo que os Promotores seriam nomeados pelo Imperador no Municpio da Corte e pelos Presidentes de provncias, naquelas unidades do Imprio, devendo servir por tempo indeterminado, enquanto conviesse ao servio pblicos, livremente demissveis pelas autoridades que o nomearam. Destaque-se nesse perodo, que a Lei do Ventre Livre (Lei n 2040, de 28-9-1871)37 conferiu ao Promotor de Justia a funo de protetor dos fracos e indefesos (que futuramente viriam a ser definidos como hipossuficientes)38, estabelecendo tambm que lhe competia velar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados conforme matrcula especial que se criou na poca. Chegando ao seu conhecimento a existncia de crianas em tal condio, cabia-lhe dar a eles matrcula, numa funo que at hoje desempenhada especialmente pelos Promotores de Infncia e Juventude.

37 38

PAES, Jos Eduardo Sabo, op. cit, p.170 SALLES, Carlos Alberto. op.cit., p. 41.

3. O PERODO REPUBLICANO

Proclamada a Repblica e institudo o Governo Provisrio, Campos Salles, Ministro da Justia nesse perodo, edita os Decretos 848, de 11 de outubro de 1890 e 1030, de 14 de novembro de 1890, que deliberaram, respectivamente, acerca da justia federal e da justia do Distrito Federal, reservando captulos prprios para o Ministrio Pblico. Para a Instituio, o primeiro decreto, que realiza a reforma do Poder Judicirio no Brasil, lapidar. Com efeito, ressalva a Exposio de Motivos:

O Ministrio Pblico, instituio necessria em toda organizao democrtica e imposta pelas boas normas da justia, est representada nas duas esferas da Justia Federal. Depois do ProcuradorGeral da Repblica, vm os procuradores seccionais, isso , um em cada Estado. Compete-lhe, em geral velar pela execuo das leis, decretos e regulamentos, que devam ser aplicados pela Justia Federal e promover a ao pblica onde ela convier. A sua independncia foi devidamente resguardada.

Por sua vez, o art. 164 do Decreto 1030 assim dispunha: O Ministrio Pblico perante as justias constitudas o advogado da lei, o fiscal de sua execuo, o procurador dos interesses gerais do Distrito Federal e o promotor da ao pblica contra todas as violaes do direito.39

Tais decretos, que reconheciam o Ministrio Pblico como instituio democrtica e lhe davam acentuada importncia na organizao do Estado, foram a primeira feio institucional do Ministrio Pblico na legislao infraconstitucional, sendo, por essa razo, Campos Sales o patrono da Instituio.

PALMA, Enos da Costa. Programa de Princpios Institucionais do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986. p. 22.

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3.1. A CONSTITUIO DE 1891

A Constituio de 24 de fevereiro de 1891 tambm no mencionou a instituio do Ministrio Pblico, mas em seu art. 58, 2 fazia nascer a figura do Procurador-Geral da Repblica, que seria nomeado pelo Presidente da Repblica entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, com atribuies a serem definidas em lei. Deve-se ressalvar, como asseverado, que o Decreto n 1030/90 j fazia meno ao Ministrio Pblico e ao Procurador-Geral da Repblica, enumerando suas atribuies, sendo certo que o art. 81, 1., da Constituio, por sua vez, dava legitimidade ao chefe da Instituio para a propositura da reviso criminal. Esse segundo dispositivo no de maior relevncia, mas o primeiro o , pois fixa a forma de investidura do Procurador-Geral da Repblica e faz nascer indiretamente a Instituio, no captulo referente ao Poder Judicirio.

Sob essa gide constitucional foi editado o Cdigo Civil de 1916, que deferiu ao Ministrio Pblico, alm de outras atribuies, a funo institucional de velar pelas Fundaes; a legitimidade para a propositura de ao de nulidade de casamento; e a defesa de interesses de menores.

3.2. A CONSTITUIO DE 1934

A Constituio da Repblica de 16 de julho de 1934 foi a primeira a constitucionalizar o Ministrio Pblico, inovando o tratamento institucional, ao reservar ao Parquet captulo prprio, absolutamente independente dos demais poderes do

Estado, situando-o entre os "rgos de Cooperao nas Actividades Governamentaes" no Captulo VI, seo I40.

Com efeito, o art. 95 disciplinava a instituio do Ministrio Pblico, sendo o mesmo organizado na Unio, no Distrito Federal e nos Estados por leis prprias. Foram fixadas tambm, pela primeira vez, garantias e prerrogativas aos membros do Parquet, entre as quais a estabilidade funcional e a investidura, obrigatoriamente, por concurso pblico. Criou-se ainda, no art. 98, o Ministrio Pblico perante as justias militar e eleitoral, bem como, ratificando o art. 81, 1., da Constituio anterior, concedeu-se ao Ministrio Pblico a legitimidade para a reviso criminal (art. 76). O constituinte de 1934, inspirado na Constituio alem de Weimar (1919), que instituiu o Welfare State, fortaleceu, de forma pioneira, o Ministrio Pblico Nacional, numa ntida compreenso de sua

importncia em um Estado preocupado com a questo social, onde a atuao ministerial primordial para a efetivao das promessas de Justia social.

3.3. A CONSTITUIO DE 1937

A Constituio de 1937, editada sob a ditadura de Vargas, gerou severo retrocesso na Instituio, eis que apenas alguns artigos esparsos, como o artigo 99,40

CAMPANHOLE, Adriano. op. cit., p. 655.

dispunham sobre a figura do Procurador-Geral da Repblica (livremente nomevel e demissvel pelo presidente da Repblica), dando-lhe algumas atribuies, tais quais oficiar junto ao Supremo Tribunal Federal, sendo esta Corte competente para o seu julgamento (art.101, I, b). Havia, ainda, referncia no art.105 sobre a participao do Ministrio Pblico no chamado "quinto constitucional", forma de ingresso derivado na magistratura. Intuitivo concluir que, nos Estados onde a democracia no floresce e onde no se privilegiam os direitos fundamentais do homem, o Ministrio Pblico no tem contornos constitucionais fortes.

Apesar disso, no perodo do Estado Novo de Vargas, foi editado o Cdigo de Processo Penal de 1941, de influncia italiana, conferindo ao Ministrio Pblico o poder de requisitar a instaurao de inqurito policial e diligncias em seu bojo, bem como a titularidade da ao penal pblica. Na rea processual civil, o Cdigo de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da interveno do Ministrio Pblico em diversas hipteses jurdicas, na qualidade de custos legis, oficiando na proteo de alguns interesses considerados relevantes para o legislador, tais como o direito de famlia e a proteo aos incapazes. Inicia-se a o fenmeno da interveno como fiscal da lei, com a emisso de pareceres quanto ao mrito das demandas (que at ento no havia), pois os Cdigos de Processo Civil estaduais no davam maior ateno ao Ministrio Pblico41.

41

MACEDO JUNIOR, Ronaldo. op. cit., p. 43.

3.4. A CONSTITUIO DE 1946

Com a promulgao da Constituio de 1946, o Ministrio Pblico retornou ao texto constitucional em ttulo prprio, aps a organizao das Justias dos Estados (arts. 125 e 128), prevendo-se a Instituio tanto no mbito federal como no estadual e sua atuao nas Justia Comum, Militar, Eleitoral e do Trabalho. Foram asseguradas aos seus membros estabilidade e inamovibilidade, alm de ser outorgada, nessa ocasio, a representao da Unio aos Procuradores da Repblica, que podiam delegar tais funes, nas comarcas do interior, aos Promotores de Justia, numa atuao de ndole fazendria que somente foi afastada em 1988.

3.5. A CONSTITUIO DE 1967

A Constituio de 24 de janeiro de 1967 disps sobre o Ministrio Pblico na seo IX do Captulo VIII (Poder Judicirio) do Ttulo I (Da Organizao Nacional), inserido dentro do mbito desse Poder. Ao vir a integrar o Poder Judicirio, o Ministrio Pblico deu importante passo na conquista de sua autonomia e independncia, afastando-se do Poder Executivo e, por assemelhao com os magistrados, conquistando garantias e prerrogativas para o pleno exerccio das funes institucionais que somente seriam consagradas efetivamente com a Constituio de 1988. Havia, nos arts. 137 a 139 daquela Constituio da Repblica, meno expressa s garantias de estabilidade e

inamovibilidade e a existncia de dois ramos da Instituio, o Ministrio Pblico da Unio e o Ministrio Pblico dos Estados.

3.6. A EMENDA CONSTITUCIONAL 01/69

A Emenda Constitucional n. 1/69, fruto da ruptura da ordem constitucional ento vigente, retornou o Ministrio Pblico ao mbito do Poder Executivo, topograficamente posicionado ao lado dos funcionrios pblicos e das Foras Armadas, mantendo, entretanto, a autonomia de organizao e a carreira conforme os preceitos do ordenamento anterior. O regime de exceo que se instaurara no Estado Brasileiro, de cunho autoritrio, no podia permitir que o Ministrio Pblico estivesse afastado do Executivo, convivendo intimamente com o Judicirio, que possua relativa autonomia.

Nesse perodo foi editado o Cdigo de Processo Civil de 1973, que consolidou a posio institucional do Ministrio Pblico no Processo Civil, nas clssicas funes de Autor (rgo agente) e fiscal da lei (rgo interveniente).

Com a Emenda Constitucional n. 07/77, que acrescentou pargrafo nico ao art. 96, houve previso de lei complementar de iniciativa do Presidente da Repblica estabelecendo normas gerais a serem adotadas na organizao do Ministrio Pblico estadual, o que terminou ocorrendo com a edio da Lei Complementar n 40, de 14 de dezembro de 1981, primeira legislao que organizou em nvel nacional os Ministrios

Pblicos estaduais. Tal diploma legal fixou as linhas gerais do Ministrio Pblico em todo o pas, criando rgos colegiados dentro da instituio e estabelecendo tratamento orgnico para todo o Ministrio Pblico Estadual. Nesse diploma legal j foi traado um novo perfil Instituio, que foi definida como permanente e essencial funo jurisdicional do Estado, e responsvel, perante o Judicirio, pela defesa da ordem jurdica e dos interesses indisponveis da sociedade, pela fiel observncia da Constituio e das Leis, texto praticamente repetido na Constituio da Repblica de 1988.

Outro importante marco na histria institucional foi a promulgao, em 1985, da Lei 7.347, que, ao disciplinar a ao civil pblica, conferiu ao Ministrio Pblico a legitimidade para a tutela de interesses transindividuais. A partir de tal diploma legal, foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questes do direito de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de carter urbano, conferindo-se ao Ministrio Pblico o poder de instaurar e presidir inquritos civis sempre que houvesse dano a interesse ambiental, paisagstico ou do consumidor. Nessa nova fase, o membro do Ministrio Pblico passa a atuar como verdadeiro advogado da sociedade, na proteo a interesses transindividuais e na qualidade de indutor da transformao social, como ser adiante demonstrado.

3.7. A TRANSIO DEMOCRTICA: PREPARATIVOS PARA O NOVO MINISTRIO PBLICO

Com as mudanas polticas ocorridas no Brasil, face eleio de Tancredo Neves no pleito presidencial indireto de 1984, fortaleceu-se a idia de convocao de uma Assemblia Nacional Constituinte para o pas, a fim de conferir uma nova e legtima ordem jurdica nao. Foi instalada uma Comisso de Notveis, com cinqenta componentes, que elaborou o denominado Anteprojeto Afonso Arinos submetido chefia do governo42. Paralelamente, setores da sociedade organizada discutiam seu papel numa nova ordem constitucional, sendo realizado em So Paulo o VI Congresso Nacional do Ministrio Pblico (1985), que teve por objetivo preparar teses em matria constitucional visando a formular propostas preparatrias aos trabalhos da Constituinte, no que concerne ao Ministrio Pblico.43 Havia j uma conscincia nacional para a classe e foi tambm se solidificando, no seio da corporao, a idia de que o Ministrio Pblico, para atingir os ideais preconizados num Estado Democrtico de Direito (que se avizinhava com a nova ordem), deveria ter tambm uma conscincia social. Fruto de trabalho pioneiro de Carlos Siqueira Neto44, a denominada conscincia social do Ministrio Pblico traduzia a idia de que a atuao desinteressada e dinmica da Instituio poderia trazer benefcios sociais coletividade. Para tanto no poderia o Parquet ser servil a governo ou governante algum, necessitando de estrutura e princpios definidos, contornos precisos, norteando sua atuao na verdadeira funo institucional: a defesa dos direitos e interesses indisponveis da sociedade.

3.8. A CARTA DE CURITIBA. OS ANTECEDENTES DO REGIME CONSTITUCIONAL DE 1988

SAUWEN Filho, Joo Francisco. op. cit., p. 168. As teses do encontro foram publicadas na revista Justitia, do Ministrio Pblico de So Paulo, n. 131 e 131A, em Junho de 1985, como nos informam Hugo Nigro Mazzilli, na obra citada Regime Jurdico do Ministrio Pblico, p. 101, e Joo Francisco Sauwen Filho, op. cit., p. 171.43

42

Tal conscincia nacional e social do Ministrio Pblico cristalizou-se no 1 Encontro Nacional de Procuradores e Promotores de Justia, realizado em Junho de 1986, na Cidade de Curitiba. Com efeito, analisando as fontes legais ento existentes: o anteprojeto apresentado pelo ento Procurador-Geral da Repblica Comisso Afonso Arinos; as teses aprovadas no VI Congresso Nacional; e o questionrio distribudo toda a classe acerca do novo perfil constitucional, providenciado pela Confederao Nacional do Ministrio Pblico (CAEMP, hoje CONAMP), consolidou-se a idia da vocao social do Ministrio Pblico, definindo-se o Promotor de Justia como rgo agente em favor dos interesses sociais45 e sedimentando-se a idia do Ministrio Pblico como defensor do povo46. O documento aprovado no consenso institucional foi denominado Carta de Curitiba e orientou a classe nos trabalhos da Assemblia Nacional Constituinte47 .

3.9. OS TRABALHOS DA ASSEMBLIA NACIONAL CONSTITUINTE

Os trabalhos relativos ao Ministrio Pblico na Assemblia Nacional Constituinte iniciaram-se em 1987, na Subcomisso da Organizao do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico48. O relator da matria foi o constituinte Plnio Arruda Sampaio, que em seu trabalho assentou os princpios e garantias essenciais nova vocaoSIQUEIRA Neto, Carlos. Ministrio Pblico Uma nova estratgia para seu aperfeioamento. In: Justitia, 99. p.189. 45 SALLES, Carlos Alberto. op. cit., p. 43. 46 Art. 3, 2, letra a, da Carta de Curitiba. 47 A ntegra da Carta de Curitiba encontra-se na obra de Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurdico do Ministrio Pblico. 48 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 117.44

social da Instituio, nos termos da Carta de Curitiba. A seguir, o texto foi encaminhado Comisso de Organizao dos Poderes, que produziu novo texto, com menores avanos que o anterior. Entretanto, na Comisso de Sistematizao, o relator da Assemblia Nacional Constituinte, Deputado Bernardo Cabral, consolidou, em linhas gerais, as teses ministeriais, apresentando texto favorvel ao Ministrio Pblico. Ocorre que foras retrgradas aos avanos sociais idealizados, conhecidas na poca como Centro, inviabilizaram o texto elaborado pela Relatoria, aprovando substitutivo que no continha as modificaes necessrias consolidao do Parquet como o defensor da sociedade. Finalmente, em acirrada sesso realizada em 12 de abril de 1988, foram aprovados inmeros destaques ao texto ento prevalente, consolidando-se, em definitivo, o novo perfil constitucional do Ministrio Pblico Brasileiro49.

4. O MINISTRIO PBLICO E A CONSTITUIO DE 1988: O AGENTE DE TRANSFORMAO SOCIAL

4.1. O NOVO PERFIL DO MINISTRIO PBLICO

A Constituio da Repblica de 1988 dotou o Ministrio Pblico de novo perfil. Conferiu-lhe uma precisa e avanada definio institucional, estabelecendo critrios formais para a escolha e destituio dos Procuradores-Gerais, assegurando autonomia

Para uma melhor compreenso do processo de institucionalizao do Ministrio Pblico na Assemblia Nacional Constituinte, remetemos o leitor a MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., captulo 5.

49

funcional e administrativa Instituio, outorgando garantias aos seus membros e impondolhes vedaes, tudo para o bom desempenho da vocao social que lhe foi cometida.

O art. 127, caput, da Constituio, ao definir o Ministrio Pblico, foi claro ao asseverar ser o Parquet instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis.O tratamento foi claro, mas no despiciendo trazer colao a interpretao desse dispositivo:Instituio no sentido de estrutura organizada para a realizao de fins sociais do Estado. Permanente, porquanto as necessidades bsicas das quais derivam as suas atribuies revelam valores intrnsecos manuteno do modelo social pactuado (Estado Democrtico de Direito Constituio, art. 1). Essencial funo jurisdicional do Estado, de vez que a atuao forada da norma abstrata ao fato concreto, quando envolver interesse pblico, deve sempre objetivar a realizao dos valores fundamentais da sociedade, razo pela qual a interveno do Ministrio Pblico se faz sempre 50 necessria.

A Constituio de 1988 elegeu tambm princpios e valores fundamentais para que o Estado Democrtico de Direito fosse consolidado. Fazia-se necessrio, portanto, escolher quem zelasse por esses valores e princpios, sendo escolhido o Ministrio Pblico, que tem sua atuao, neste aspecto, comprometida com a defesa do Estado Democrtico de Direito, da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, no deve ser outra a interpretao do dispositivo constitucional antes referido, para assentar o perfil e a funo maior do Ministrio Pblico:

GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. O Ministrio Pblico e os direitos das crianas e adolescentes. In: ALVES, Airton Buzzo, RUFINO, Almir Gasquez e SILVA, Jos Antonio Franco da (org). Funes Institucionais do Ministrio Pblico. So Paulo: Saraiva, 2001. p. 312.

50

A defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveiscaracteriza a Instituio como verdadeiro guardio das liberdades pblicas e do Estado Democrtico de Direito, na medida em que o exerccio de suas atribuies, judiciais ou extrajudiciais, visa, em essncia, o respeito aos fundamentos de modelo social pretendido(soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo poltico Constituio, art. 1) e a promoo dos objetivos fundamentais do Pas (construo de uma sociedade livre justa e solidria, garantia do desenvolvimento nacional, erradicao da pobreza e da marginalidade e reduo das desilguadades sociais e regionais, promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminao 51 Constituio, art. 3).

Como cedio, a Constituio de 1988 traduz o resultado de conflitos e discusses entre classes, cujos valores, aps os debates realizados, passaram a integrar o texto maior. Os valores constitucionais so a materializao da preferncia do constituinte, expressando as prioridades e fundamentos da convivncia coletiva. So as opes que devem presidir o ordenamento poltico, jurdico, econmico e social. Os valores so, portanto, os critrios bsicos para ajuizar aes, ordenar convivncia e estabelecer fins52.

O Estado Democrtico de Direito instaura perspectivas de realizao social profunda pela prtica dos direitos sociais que ela inscreve e pelos instrumentos que oferece cidadania para concretizar as exigncias de um estado de Justia social, fundado na dignidade da pessoa humana.53

A observncia dos princpios da dignidade da pessoa humana e da igualdade fundamental no processo da emancipao do homem. O princpio da

igualdade pressupe a justia social. Por sua vez, o princpio da dignidade da pessoa humana

GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. op. cit., p 313. PEREZ LUO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constituicion. Madri: Tecnos, 1984. p. 228. 53 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9 ed. So Paulo: Ed. Malheiros, 1994. p. 109.52

51

deve comprometer, tambm, o exerccio da atividade econmica do Estado, realizando-se polticas pblicas voltadas para a promoo da existncia digna. A no promoo de tais polticas vulnera o princpio acima referido, como observado por Eros Roberto Grau54:

Concebida como referncia constitucional unificadora dos direitos fundamentais, o conceio de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificao valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional, e no uma qualquer idia apriorstica do homem, no podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos dos direitos sociais, ou invoc-la para construri uma teoria do ncleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de diretos econmicos, sociais e culturais.

Os valores emancipatrios consignados na Constituio devem, portanto, pautar a atuao do Ministrio Pblico na sociedade. sua funo utilizar o direito como instrumento de transformao da realidade social, fazendo com que os fatores que ensejam e mantm a injustia social sejam eliminados.

4.2. A AO CIVIL PBLICA E O NOVO MINISTRIO PBLICO

O perfil constitucional do Ministrio Pblico e sua legitimidade perante a sociedade o vinculam primordialmente a sua atuao como rgo agente, atravs dos poderosos instrumentos previstos na Constituio da Repblica, em que se destacam o Inqurito Civil e a Ao Civil Pblica (art. 129, III).

GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988 (interpretao e crtica). So Paulo: RT, 1990. p. 217.

54

O papel do Ministrio Pblico, como agente de transformao social est diretamente relacionado, portanto, implementao dos princpios e valores insertos no texto constitucional, sendo o Parquet o defensor direto dos interesses de relevncia social (sejam eles coletivos, difusos ou individuais homogneos imbudos de interesse social).

E para que os valores constitucionais acima descritos se sobreponham, no se pode conceber que o ordenamento jurdico existente seja visto apenas como um amontoado de normas. O Direito deve ser operado atendendo-se ao ideal de justia social retratado na Constituio. Isso perfeitamente possvel sob uma perspectiva sistemtica, compreendida a superioridade da Constituio e de suas normas sobre todo o ordenamento jurdico infra-constitucional. Incumbe ao Parquet, como assevera Mrcia Piatigosky55 ter como fonte primeira de interpretao a Constituio, afastando o absolutismo legal formal e defendendo a legalidade democrtica, visando o bem comum. Operando o direito possvel transformar a realidade e concretizar o Estado Democrtico.

Face a tal modificao conceitual, instituda pelo novo regime constitucional, determinadas concepes, voltadas ao passado, acerca de suas atribuies

no se coadunam com o novo paradigma democrtico, devendo-se compreender as funes ministeriais em consonncia com as transformaes operadas pelo sistema constitucional vigente.

Tal mudana de paradigma no passou despercebida a Clmerson Merlin Clve56, que afirma ser preciso sintonizar a legislao com o texto constitucional, operar a sua constitucionalizao, fazer vazar as conseqncias da filtragem constitucional, realizar, enfim, a leitura da lei com os olhos voltados para a Constituio e o futuro.

A ao civil pblica e o inqurito civil, previstos no art. 129, III da Constituio da Repblica so os mais importantes instrumentos de transformao social que o constituinte colocou disposio do Ministrio Pblico para realizar os valores constantes do Pacto Social de 1988, em especial a defesa e promoo dos direitos sociais.

4.2.1. O Ministrio Pblico ombudsman

Finalmente, no se pode olvidar da funo de ombudsman conferida ao Ministrio Pblico. Com efeito, ao remontarmos histria econmica e social do Brasil, percebemos momentos de grandes abalos Democracia, ao respeito pela coisa pblica, descrena popular em seus prprios governantes, enfim, momentos marcados pela corrupo, injustia social e imoralidade.

Merece destaque, pois, a disposio do art. 129, inciso II da Constituio, que, de forma indita (a ao civil pblica foi idealizada ainda sob a ordem55 PIATIGORSKY, Mrcia. O papel do Ministrio Pblico em prol da efetividade dos direitos humanos, luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos Interamericano e do ordenamento Jurdico Interno.Rio de Janeiro: UERJ, [s.d.]. (Dissertao de Mestrado). p. 98. 56 CLVE, Clmerson Merlin. Investigao criminal e Ministrio Pblico. Disponvel em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5760. Acesso em 16/08/2004

jurdico-constitucional anterior), estatuiu como funo do Ministrio Pblico zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Pblicos e dos servios de relevncia pblica aos direitos assegurados nesta Constituio, promovendo as medidas necessrias a sua garantia. Essa atividade de controle dos atos do poder pblico abriu um grande e importante campo de atuao institucional, na esteira de conferir mecanismos hbeis a dotar o Parquet para promover os valores sociais constitucionais.

Essa funo, denominada de ombudsman, tem origem remota na Constituio sueca de 1809, que criou a figura do justitieombudsman, expresso traduzida para o vernculo como comissrio de justia, com a funo de supervisionar a observncia dos atos normativos pelos juzes e servidores pblicos. Sua estrutura foi abraada tambm

pelas Constituies espanhola de 1978 (que instituiu el defensor del pueblo, no art. 54) e portuguesa de 1976, que acolheu o provedor de justia no art. 24, mantido, alis, no art. 23, aps a reviso de 1982. Na Assemblia Nacional Constituinte, verificando-se que o

Ministrio Pblico j estava estruturado em carreira e existia em todo territrio nacional, foilhe deferida tal funo, que consiste no controle dos diversos controles (parlamentar ou poltico, administrativo e judicirio), atinente aos trs Poderes, sobretudo ao Poder Executivo (Administrao Pblica). Objetiva, em sntese, remediar lacunas e omisses, bem como assegurar que os Poderes respeitem as regras postas e no se imiscuam nos direitos e liberdades pblicas dos cidados. De fato, as funes executiva, legislativa e judiciria, atribudas aos trs Poderes Constitudos, realizam controles especficos (controle administrativo, controle poltico e controle judicirio), mas apresentam entre si separao excessivamente rgida e insuficincias. O controle parlamentar, por sua natureza poltica, deixa de penetrar em

vrias zonas cinzentas e em situaes concretas de omissividade ou negligncia dos agentes pblicos. O controle jurisdicional tambm insuficiente, por sua natureza casual e individualizada, porquanto depende de provocao da parte interessada. O controle administrativo interno, por sua vez, exatamente por remanescer ao alvedrio de autoridades pblicas da Administrao ativa, freqentemente menosprezado, quando no solapado. Em funo exatamente da insuficincia dos diversos controles, fez-se necessrio o surgimento de um rgo que se encarrregasse do controle residual, buscando associar as vantagens das diversas espcies de controle. Assim, coube ao Ministrio Pblico exercer tais funes, velando pela atuao da Administrao Pblica dentro dos primados constitucionais determinados, podendo aduzir medidas judiciais e extrajudiciais para concretizar tal atividade, como ser aduzido no curso desta dissertao.

Sem embargo das caractersticas e atribuies destinadas pela nova Constituio ao Ministrio Pblico, a perfeita compreenso da magnitude de suas funes no Estado Democrtico de Direito e a exata dimenso da sua vocao social carecem de uma abordagem histrica sobre a evoluo do estado moderno e de sua relao com o direito e a sociedade, que ser desenvolvida no captulo seguinte.

CAPTULO 2. ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO.

O conceito de Estado, atualmente utilizado na doutrina contempornea, foi consolidado no sculo XVI, quando a comunidade poltica se definiu fundamentalmente em virtude da sujeio a um poder poltico, que exerce suas funes em um mbito determinado sobre todos aqueles que nele se situam.

De fato, a expresso Estado (do latim status = estar firme) significando situao permanente de convivncia e ligada sociedade poltica, aparece pela primeira vez em O Prncipe de Maquiavel, escrito em 1513, passando a ser utilizada pelos italianos sempre ligada ao nome de uma cidade independente, como no caso do stato di Firenzi, exemplifica Dalmo de Abreu Dallari57.

No mbito deste captulo proceder-se- anlise do Estado Moderno, seu surgimento e evoluo histrica, notadamente sua relao com o Direito e a sociedade de que, como demonstrar-se- no captulo seguinte, mandatrio constitucional. o Ministrio Pblico

1. O ESTADO MODERNO: DO ABSOLUTISMO AO ESTADO DE DIREITO57

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 51.

O Estado Moderno surge com o rompimento do perodo medievo, onde o sistema feudal e sua forma concentrada de organizao do poder poltico sofre um profundo desgaste, fazendo nascer uma nova ordem, atravs da passagem das relaes de poder (autoridade e administrao de justia), at ento nas mos do senhor feudal, para a esfera pblica, ou seja, do Estado.

A necessidade de superao do sistema feudal e sua permanente instabilidade poltica, econmica e social, despertara a conscincia para a busca de uma unidade, que seria concretizada com a afirmao de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitao territorial.58

Surgia um novo tipo de Estado, caracterizado pela unidade territorial, dotada de um poder soberano. Era o Estado moderno, cuja autoridade se prendia figura do monarca, o Prncipe, espcie de divindade temporal e terrena, que num lento processo dissolvera a constelao de poderes desiguais e privilegiados do sistema feudal at se transformar no soberano titular de um imprio, donde se irradiavam todas as competncias e atribuies governativas.

O conceito de soberania uma das bases desse novo Estado, tendo seu escoro terico sido criado por Jean Bodin, autor dos Seis Livros da Repblica,58

DALLARI, Dalmo de Abreu. op.cit., p. 70.

em 1573, como instrumento poltico de um poder absoluto que se incorporava no prncipe como se o prncipe fora o prprio Estado59. A estratgia de construo da nova forma estatal, alicerada na idia da soberania, vai levar concentrao de todos os poderes nas mos dos monarcas, permitindo-se personificar o Estado na figura do rei e tornando histrica, como lembrado por Lenio Luiz Streck60, a clssica frase de Lus XIV, o Rei-Sol: O Estado sou eu. Os monarcas absolutistas se apropriam dos Estados como o proprietrio o faz com o objeto de sua propriedade e tal estratgia serviu fundamentalmente para, na passagem do modelo feudal para o moderno, assegurar a unidade territorial dos reinos, sustentando um dos elementos fundamentais da forma estatal moderna: o territrio.61

Instauram-se, pois, as Monarquias absolutistas, numa sociedade em que, robustecido o Estado Nacional, sobreviviam ainda as camadas sociais da antiga nobreza feudal, transformada em aristocracia decadente, com uma nova classe emergente, favorecida pelas polticas mercantilistas implantadas e usufruturias da expanso colonialista: a Burguesia.

O absolutismo teorizado por Hobbes, que em seu Leviat obra clssica daquele momento histrico o mais engenhoso tratado de justificao dos poderes extremos do soberano, servidos, de uma lgica perversa, em que a segurana sacrifica a liberdade e a lei aliena a justia, conquanto que a conservao social de que fiador o monarca seja mantida a qualquer preo.62

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. So Paulo: Malheiros, 2004. p. 30. STRECK, Lenio Luiz e MORAES, Jos Luiz Bolzan de. Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 44. 61 Idem, p. 45.60

59

No regime do absolutismo, o homem, que em seu estado de natureza era belicoso, desconfiado e com ferocidade contumaz, segundo Hobbes, abriria mo de sua liberdade em prol do Estado, mas ganharia, em troca, a certeza da conservao63.

Mas o regime absolutista estava fadado ao insucesso, em razo da crescente ascenso da burguesia, que, como corpo social de vanguarda, estava a um passo de tomar o poder e a autoridade, que se esvaziava da nobreza e do clero. Na virada do Sculo XVIII, a burguesia no mais se contentava em ter o poder econmico; queria sim, agora, tomar para si o poder poltico, at ento privilgio da aristocracia64.

Inicialmente aliada dos monarcas absolutistas, essa classe se tornou o eixo e o centro vital da sociedade, para, insuflada pelo pensamento de vrios e influentes pensadores, como Montesquieu, Siyes e Rousseau65, tomar o poder pela via revolucionria, com o movimento social de 1789, conhecido por Revoluo Francesa. Encerra-se, nesse momento, a primeira etapa do Estado Moderno, de contedo absolutista, para instaurar-se o Estado de Direito, com a converso do Estado absoluto em Estado Constitucional, momento histrico que no passou despercebido a Paulo Bonavides66: o poder j no de pessoas, mas de leis. So as leis e no as personalidades que governam o

BONAVIDES, Paulo. Teoria, cit., p. 32. Para Hobbes, o estado de natureza humano propicia o amplo uso da liberdade, que passa a ser irrestrito, a ponto de uns lesarem, invadirem e usurparem uns aos outros. No Estado de Natureza h o estado de guerra de uns contra os outros, e o homem pode ser chamado de lobo do prprio home (homo homini lupus), conforme BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de Filosofia do Direito. So Paulo: Atlas, 2005. p. 235. 64 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, Jos Luiz Bolzan de. op.cit., p. 46. 65 Para Paulo Bonavides (Teoria, cit., p. 38): A Filosofia poltica expendida em livros de quilate do Contrato social de Rousseau ou do Esptito das Leis de Montesquieu, teve na poca sentido altamente subsversivo, porquanto inspirando a ao revolucionria, traou a linha mestra das transformaes profundas da sociedade, sendo a cartilha por onde rezaram os teoristas da liberdade. 66 BONAVIDES, Paulo. Teoria, cit., p. 37.63

62

ordenamento social e poltico. A legalidade a mxima de valor supremo e se traduz com toda sua energia, no texto dos Cdigos e das Constituies.

Mas a noo de Estado de Direito no nasceu completa, tendo sofrido uma longa evoluo histrica. No esqueamos, alis, que o Estado Moderno nasce sem Constituio.

2. A EVOLUO HISTRICA DO ESTADO DE DIREITO

2.1. O ESTADO LIBERAL DE DIREITO

O Estado Liberal nasce com o crepsculo do absolutismo, cujo momento culminante foi a Revoluo Francesa. Tal manifestao social, de ndole revolucionria foi marcante para fazer nascer a idia da necessidade de se sociedade. transformar a

A revoluo francesa de 1789 pode ser considerada como o termo inicial de uma nova estrutura do Estado, verdadeiro bero de um novo pacto social, pois, reduzindo em conceitos jurdicos as idias polticas e a realidade econmica da burguesia emergente, gerou una prsion directa e indirecta que los pases angloamericanos

com sus ejemplos y modelos de Estado Constitucional no haban producido em tal grado.67

Pela primeira vez na histria dos povos, verificou-se a universalizao de um princpio poltico, como percebido por Paulo Bonavides:Escreveram os ingleses a Bill of rights, o Instrument of government; os americanos, as Cartas coloniais e o Pacto federativo da Filadlfia, mas s os franceses, ao lavrarem a Declarao Universal dos Direitos do Homem, procederam como o apstolo Paulo com o cristianismo. Dilataram as fronteiras da nova f poltica. De tal sorte que o governo livre deixava de ser a prerrogativa de uma raa ou etnia para ser o apangio de cada ente humano; em Roma, universalizou-se uma religio; em Paris, uma ideologia. Do homem-cidado ao homem-sdito. 68

O Estado de Direito, tambm chamado de Estado Liberal de Direito, emergiu aliado ao contedo prprio do liberalismo, que imps ao Estado a concretizao do ideal Liberal, com base na consagrao dos direitos humanos e na prioridade que se deve outorgar tutela desses direitos, acima de qualquer outra razo de Estado.

Desde a queda do poder feudal na Europa, a forma desptica e absoluta do poder poltico, fundamentada na vontade divina, gradativamente vai perdendo fora, permitindo, assim, o aparecimento de novas teorias, como a do contrato social, que, embasada na idia de que o homem est no centro da teoria poltica, define o Estado como o resultado de um pacto celebrado entre indivduos livres e iguais, que a ele delegam a funo de assegurar a sua liberdade e os seus direitos. Para os contratualistas, o pacto social, feito

HBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como histria, actualidad y futuro Del Estado Constitucional. Madrid: Trotta, 1988. p. 59. 68 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. So Paulo: Malheiros, 2004. p. 30.

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pelos cidados, que d poder poltico ao Estado, sendo tal poder limitado, no podendo ultrapassar os limites da conveno geral69.

O conceito de Estado de Direito tem sua origem em uma expresso alem Rechtstaat e equivale aproximadamente a outra expresso inglesa, rule of law. Lenio Luiz Streck registra que:

A idia de Estado de Direito carrega em si a prescrio da supremacia da lei sobre a administrao...o Estado de Direito no mais considerado somente como um dispositivo tcnico de limitao de poder, resultante do enquadramento do processo de produo de normas jurdicas; tambm uma concepo que funda liberdades pblicas e democracia...O Estado de Direito , tambm, uma concepo de fundo acerca das liberdades pblicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurdica.70

O Estado no uma criao de Deus nem uma determinao divina, mas uma comunidade (res pblica) a servio do interesse comum de todos os indivduos. Assenta-se sobre o princpio da legalidade, atravs da submisso da soberania Estatal Lei, com a diviso tripartite dos seus poderes e a garantia dos direitos individuais, chamados de direitos de primeira dimenso, inclusive contra o prprio Estado.

Os direitos de primeira gerao primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional so os direitos de liberdade, direitos civis e polticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histrico, instaurao do Estado Liberal e quela fase inaugural do Constitucionalismo no Ocidente. Tm por titular o indivduo, sendo

RITT, Eduardo. O Ministrio Pblico como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 30. 70 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, Jos Luiz Bolzan de. op. cit., p. 87.

69

oponveis ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa. Ostentam uma subjetividade que seu trao mais caracterstico, com o intuito de resistir ou opor-se aos arbtrios do Estado. Privilegia-se, nesse novo momento histrico, o homem-singular, das liberdades abstratas, inserido na sociedade civil, tambm chamada sociedade mecanicista. Tais direitos possuem ntido carter anti-estatal, a retratar a absoluta separao, poca, entre sociedade e Estado.

No havia qualquer compromisso do Estado com a realidade poltica, social e econmica da integralidade de seu povo, mas somente com a classe dominante, a burguesia. A ndole maior desse Estado apresentava-se como uma garantia dos cidados frente a uma eventual ao estatal, isto , uma limitao jurdico-negativa do Estado.

De fato, todo esse processo de instaurao do Estado Liberal movido pelos interesses da burguesia, consoante princpios iluministas de racionalismo e antropocentrismo. Nesse contexto histrico, parte-se do pressuposto que o homem anterior ao Estado, sendo, portanto, seu fundamento. D-se, ento, uma inverso na perspectiva da garantia dos direitos do cidado e dos deveres do Estado, que regido, nesse aspecto, por dois princpios fundamentais: o princpio da distribuio e o princpio da organizao. Pelo primeiro, partindo-se da idia de que a liberdade individual anterior formao do Estado, possui esse, em princpio, carter ilimitado, ao passo que a faculdade que o Estado tem para restringi-la, , em princpio, limitada. Tal premissa resulta na circunstncia que ao indivduo permitido fazer tudo aquilo que no lhe seja proibido e ao Estado, somente aquilo que lhe permitido. 7171 LEAL, Monia Clarissa Henning. A Constituio como princpio: os limites da jurisdio constitucional brasileira. Barueri, So Paulo: Manole, 2003. p. 4.

O segundo princpio mencionado, por sua vez, d origem tcnica da separao dos poderes, forma ideal encontrada para pr em prtica o princpio da distribuio, segundo o qual o poder se divide em competncias circunscritas (sistemas de freios e contrapesos), o que acentua ainda mais o carter limitado da atuao estatal.

Nessa tica, o Estado passa a ter atribuies bem delimitadas, marcado pela limitao em seu atuar, sendo a lei o melhor instrumento para ordenar esses regramentos sobre competncias e atribuio, alm de assegurar de forma genrica e impessoal os direitos individuais.

Como assevera Ernst Bockenforde72:Todos los princpios essenciales para el Estado de Derecho estn includos institucionalmente em este concepto de ley. (...)el assentimiento de la representaciona del pueblo garantiza el principio de la libertad y la poscion de sujeito del ciudadano; la generalidad de la ley impiede ingerncias em el mbito de la libertad civil y de la socied ms All de suas limitaciones o delimitaciones de carter general, est s, vlidas para todos por igual; el procediemento determinadoa por la discusion y la publicidad garantiza la medida de racionalidad que el contenido de la ley puede humanamente alcanzar.

Entretanto, para poder vincular o Estado nessa nova ordem