Características Do Cuidado Em Saúde Mental Em Um CAPS

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Neste estudo qualitativo, subprojeto dapesquisa “Avaliação dos CAPSs da região sul doBrasil”, temos o objetivo de conhecer as característicasdo cuidado em saúde mental oferecido por umcentro de atenção psicossocial (CAPS) na perspectivade seus profissionais.

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  • ARTIGO ARTICLE

    Resumo Neste estudo qualitativo, subprojeto dapesquisa Avaliao dos CAPSs da regio sul doBrasil, temos o objetivo de conhecer as caracters-ticas do cuidado em sade mental oferecido por umcentro de ateno psicossocial (CAPS) na perspectivade seus profissionais. A coleta de dados foi realizadapor meio de entrevistas individuais. Utilizou-se aanlise temtica, emergindo dos dados trs temticas.Neste artigo, destacamos a temtica intitulada carac-terizao do cuidado em sade mental prestado pelosprofissionais do CAPS. As caractersticas do cuidadoem sade mental advindas das entrevistas foram au-tonomia do usurio, que, juntamente com a questoda alta do servio, deve ser mais desenvolvida; aten-dimento centrado especificamente na doena comoherana do tratamento hospitalar; e preocupao daequipe com a implementao de prticas psicossociaisinclusivas e cidads.Palavras-chave sade mental; assistncia sade;servios de sade.

    CARACTERSTICAS DO CUIDADO EM SADE MENTAL EM UM CAPS NA PERSPECTIVA

    DOS PROFISSIONAIS

    CHARACTERISTICS OF MENTAL HEALTH CARE IN A CAPS FROM THE PERSPECTIVE

    OF THE PROFESSIONALS

    Fernanda Barreto Mielke1

    Luciane Prado Kantorski2

    Agnes Olschowsky3

    Vanda Maria da Rosa Jardim4

    Abstract In this qualitative study, a sub-project ofthe "Evaluation of CAPSs in Southern Brazil" researchproject, the goal is to get to know the characteris-tics of mental health care offered by a psychoso-cial care center (CAPS) in view of its professionals.Data collection was conducted through individualinterviews. Thematic analysis was used, and threethemes stemmed from the data. In this article, wehighlight the theme titled 'characterization of themental health care provided by the CAPS professio-nals.' The characteristics of mental health care noticedin the interviews were user autonomy, which, to-gether with the issue of discharge from the service,should be further developed; care focused specifi-cally on the disease as a legacy of hospital care; andthe team's concern with the implementation of inclu-sive psychosocial practices.Keywords mental health; health care; health services.

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  • Introduo

    A reforma psiquitrica brasileira, caracterizada como um movimento poltico,social e ideolgico, compreende um conjunto de transformaes de pr-ticas, saberes, valores culturais e sociais, e est pautada na desinstitucio-nalizao e na reabilitao psicossocial. Isso repercute na transformao domodelo assistencial em sade mental, anteriormente pautado na hospitali-zao, na medicalizao e na doena mental (Brasil, 2005; Costa-Rosa, 2000).

    Destacamos a reabilitao psicossocial, entendida como um conjunto deaes que visa a aumentar as habilidades da pessoa, diminuindo o dano cau-sado pelo transtorno mental, e que envolve todos aqueles que fazem partedo processo sade-doena, ou seja, usurios, familiares, profissionais e co-munidade em geral (Lussi, Pereira e Pereira Jnior, 2006). O propsito dareabilitao valorizar, utilizando diferentes recursos e servios, as poten-cialidades e capacidades do indivduo que sofre psiquicamente.

    A reabilitao psicossocial um processo que deve contemplar os trsvrtices da vida humana: casa, trabalho e lazer. uma ao ampliada quese configura como um conjunto de estratgias direcionadas a aumentar acapacidade de trocas e a valorizar a subjetividade, proporcionando contra-tualidade e solidariedade (Saraceno, 2001; Pereira, 2007). E para que esseprocesso seja efetivo, imprescindvel que o indivduo em sofrimentopsquico seja reinserido na vida em sociedade. A reinsero consiste na re-tomada da autonomia e da cidadania, quando a pessoa conquista a sua liber-dade e exercita a subjetividade, circulando nos espaos da cidade e pro-movendo novas relaes sociais.

    Pautada no modo psicossocial, constitudo a partir da crtica ao modomanicomial e com base no exerccio prtico de novas formas de cuidarem sade mental que valorizam e singularizam a subjetividade da pessoaem sofrimento psquico (Costa-Rosa, 2000), a reabilitao psicossocial uti-liza-se dos dispositivos instalados na comunidade, o territrio onde a vidasocial acontece.

    O indivduo compreendido como protagonista do seu tratamento e in-serido em um grupo familiar grupo que tambm atendido pelos serviosde sade (Costa-Rosa, 2000). Assim, as atividades dos centros de atenopsicossocial (CAPSs) incluem o cuidado famlia e esto comprometidas coma insero social do usurio. Para o desenvolvimento das prticas, a reabili-tao se utiliza de aspectos relacionais e dialgicos entre outros, acolhi-mento, escuta e vnculo. Nesses aspectos esto pautadas as aes desen-volvidas nos servios de sade mental.

    A Rede de Ateno Integral em Sade Mental, cuja ampla estruturadestina-se ao atendimento de necessidades diversas, abrange servios detodos os nveis de ateno, desde a ateno bsica at os servios especia-

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  • lizados: centros de ateno psicossocial, servios residenciais teraputicos,ambulatrios de sade mental, hospitais-dia, leitos/unidades em hospitaisgerais, servios de urgncia/emergncia psiquitrica, gerao de renda e tra-balho, centros de convivncia, penso protegida, entre outros (Brasil, 2001).

    Dentro dessa rede, particularizamos os CAPSs: servios de ateno diriaque se responsabilizam pelo cuidado de pessoas com transtornos mentaisseveros e persistentes, trabalhando com a lgica do territrio. O atendi-mento est baseado no acolhimento, no vnculo e na responsabilizao decada membro da equipe multiprofissional (Brasil, 2004). Tendo em vista assuas caractersticas de incluso e a participao do usurio, esses serviostm sido considerados fundamentais para a continuidade do processo dereabilitao psicossocial.

    A reabilitao psicossocial define-se como um saber-fazer que consi-dera o transtorno psquico como um dado a mais na histria de vida do in-divduo, que visto como uma pessoa que vive em um territrio, que man-tm relaes sociais e afetivas e que faz parte de determinada famlia, e que,alm disso, apresenta um transtorno mental que repercute de diferentesmaneiras em seu cotidiano (Kantorski et al., 2006). O foco do trabalho de-senvolvido nos servios substitutivos, e especificamente nos CAPSs, no a doena, mas sim, prioritariamente, o usurio e seu entorno social.

    Os CAPSs so definidos e regulamentados pela portaria ministerialn. 336, de 19 de fevereiro de 2002 (Brasil, 2002), e devem oferecer aten-dimento individual, grupal, oficinas teraputicas, visitas domiciliares, atendi-mento famlia e atividades comunitrias. De acordo com a populao dosmunicpios, os CAPSs so classificados como I, II ou III.

    Para avaliar a eficincia e a eficcia dos CAPSs, necessrio conhecer asprticas desenvolvidas pelos profissionais desse servio e compar-las aospreceitos tericos que as permeiam e que se baseiam no modo psicossocialpara o cuidado em sade mental. No presente artigo, temos o objetivo deconhecer as caractersticas que compem o cuidado em sade mental ofere-cido por um CAPS de tipo II, caractersticas que foram elencadas pelosprofissionais do referido servio.

    Metodologia

    O presente estudo um subprojeto da pesquisa Avaliao dos centros deateno psicossocial da regio sul do Brasil CAPSUL, aprovada peloComit de tica em Pesquisa da Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Pelotas (UFPel), ofcio n. 068/06. A pesquisa foi realizada pelaFaculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, em parceriacom a Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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    e com o Curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paran(Campus Cascavel). O estudo compreendeu duas etapas de coleta de dados:quantitativa e qualitativa. Os dados foram coletados em municpios dos es-tados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran.

    O subprojeto tambm foi desenvolvido em duas etapas. A primeira, decarter quantitativo, foi desenvolvida com base nos dados quantitativoscoletados no estudo-piloto da pesquisa CAPSUL, realizada em um CAPS doestado do Rio Grande do Sul. A anlise descritiva desses dados permitiu aorganizao e a formulao do instrumento de pesquisa da segunda etapa,essa j de cunho qualitativo, realizada no mesmo servio de sade mentalonde foi feita a primeira etapa. Neste artigo, apresentamos dados parciais daetapa qualitativa, caracterizada como descritiva e exploratria.

    A pesquisa qualitativa fundamental para atingir o objetivo de conhe-cer as caractersticas do cuidado oferecido aos indivduos em sofrimentopsquico em um servio substitutivo conforme o entendimento dos seusprofissionais, pois permite desvelar processos sociais pouco conhecidos econstruir novas abordagens, conceitos e categorias durante a investigao,sendo aplicvel ao estudo das relaes, percepes e opinies da interpre-tao humana (Minayo, 2007).

    Os sujeitos do estudo foram 18 profissionais de um universo de 22 dosdemais, trs estavam em perodo de frias na poca da coleta dos dados e umno aceitou participar. Os profissionais que concordaram em participar doestudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que asse-gura o anonimato dos participantes e autoriza a utilizao e a publicaodos dados obtidos. Os aspectos ticos foram devidamente assegurados, emconcordncia com a resoluo n. 196/1996 do Conselho Nacional de Sadedo Ministrio da Sade (Brasil, 1996).

    A coleta de dados qualitativos ocorreu no ms de dezembro de 2006.Ela se deu por meio de entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas etranscritas na ntegra, partindo da seguinte questo norteadora: Como o(a)sr.(a) caracteriza o cuidado em sade mental prestado ao usurio pelosprofissionais do CAPS?. Os profissionais foram identificados pela letra T,de trabalhador, seguida pelo nmero da ordem de realizao da entrevista.

    Para a anlise dos dados, utilizamos a anlise temtica, operacionali-zada por meio de trs etapas: pr-anlise; explorao do material e tratamen-to dos resultados obtidos; e interpretao (Minayo, 2007). Ao final desseprocesso, obtivemos trs temticas, dentre as quais destacaremos a intitu-lada caracterizao do cuidado em sade mental prestado pelos profissio-nais do CAPS, que ser desenvolvida neste artigo.

    A temtica em destaque aborda questes referentes autonomia dosusurios, ao atendimento centrado especificamente na doena e preocu-pao da equipe com o cuidado aos usurios, aspectos mencionados pelos

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    sujeitos do estudo como caractersticas do cuidado em sade mental desen-volvido no servio estudado.

    Resultados e discusso

    O servio em estudo localiza-se em um municpio da regio sul do Brasil, noestado do Rio Grande do Sul, tendo sido cadastrado em 2002, no Ministrioda Sade, como Centro de Ateno Psicossocial II (CAPS II). Ressalte-se quealguns profissionais da atual equipe realizavam atendimentos em sademental em uma unidade bsica de sade desde 1992.

    A equipe compreende um total de 22 profissionais de nveis mdio esuperior, de diversas categorias profissionais: mdico, enfermeiro, psiclogo,artista plstico, msico, professor de educao fsica, cozinheiro, auxiliarde servios gerais e auxiliar administrativo. O servio funciona das 8 s 12horas e das 13 s 17,30 horas.

    No servio estudado, so atendidos cerca de 600 usurios por ms, distri-budos nas modalidades intensivo, semi-intensivo e no intensivo, conformepreconizado pela portaria ministerial n. 336/2002. Nele so desenvolvidasatividades como triagem, atendimento em grupo e individual, oficinas tera-puticas, atendimento famlia, assembleia de usurios, visitas domiciliares,atividades fsicas e ldicas e reunio de equipe. O servio possui coordena-o local eleita pelos usurios, sendo que, no perodo da coleta de dados, acoordenadora era uma psicloga que ocupava o cargo h um ano e trs meses.

    A partir da questo norteadora, os sujeitos do estudo indicaram algumascaractersticas do cuidado em sade mental oferecido no CAPS. A primeiracaracterstica refere-se construo da autonomia do usurio, questo fun-damental quando perseguimos a proposta da reabilitao psicossocial.

    Pautamo-nos num conceito de autonomia que a considera como o mo-mento em que o usurio consegue viver a vida, necessitando cada vez menosda assistncia do servio (Santos et al., 2000). Ou seja, trata-se de incenti-var o usurio a ampliar a sua rede social, sem restringi-la exclusivamenteaos vnculos estabelecidos dentro do servio, favorecendo sua incluso nasociedade e estimulando a no dependncia ao servio.

    Os profissionais do CAPS entendem que a construo da autonomia dousurio faz parte do cuidado oferecido nesse servio. Por ser um disposi-tivo do modo psicossocial, o CAPS deve atuar na reinsero social do usurio,tendo como base o resgate da autonomia. As atividades desenvolvidas pe-los profissionais necessitam ir ao encontro desse pensamento, sendo reali-zadas prioritariamente na comunidade.

    Nesse sentido, o CAPS desenvolve ensaios de grupo de dana e ativi-dades fsicas em espaos da comunidade respectivamente, no centro de

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    tradies gachas e em uma quadra de futebol do bairro. Essas atividadespermitem que os usurios circulem nesses espaos sociais e que sejam vis-tos pela comunidade como cidados. Os profissionais tambm estimulam aparticipao dos usurios em festas comunitrias e eventos sociais, dentreos quais se destacam a feira de artesanato da cidade na qual uma banca devenda de produtos produzidos nos CAPS do municpio mantida por usu-rios e seus familiares e as festas temticas Carnaval, Pscoa e Natal , quecontam com a participao da comunidade e so realizadas em clubes ousales de festas da cidade.

    Ainda assim, a construo da autonomia dos usurios prejudicada porvezes por atitudes paternalistas e pelo excesso de cuidado, que se con-trapem s atividades de reinsero social motivadas pelo CAPS estudado:

    (...) a gente, s vezes, cria uma dependncia que no deveria, a tu no tens como

    desenvolver, a pessoa o mximo aqui dentro, faz tudo aqui dentro, pinta, faz

    poema, mas l na rua ela no nada (...). Ah, eu vou ficar no CAPS, porque aqui

    a minha casa outra coisa que eu no gosto de ouvir (...) tu podes at voltar um

    dia, mas vem s nos visitar, no ficar aqui, aqui no lugar. Tem gente aqui que

    nem deveria estar aqui (...) o X [usurio] era para estar dentro de uma oficina aju-

    dando, sendo auxiliar de marcenaria, trabalhando (...) (T5).

    A fala descrita acima demonstra que o servio tem dificuldade de dis-cutir com os usurios a questo de que o CAPS, respeitada a sua especifici-dade, um servio de sade como outro qualquer isto , o tratamento alioferecido tem incio, meio e fim. O atendimento ao usurio deve ocorrer deacordo com a sua necessidade e pautando-se na compreenso de que a altafaz parte do tratamento. No havendo essa compreenso, passa a haver riscode cronificao dos usurios dentro do CAPS. E isso porque, muitas vezes,o servio no visto pelos usurios como um local apenas de suporte tera-putico, mas sim como o nico espao de troca social. Isso gera dependn-cia em relao ao servio e interfere negativamente na construo da auto-nomia do usurio (Mello e Furegato, 2008).

    Os profissionais dos CAPS tm mostrado preocupao com a institu-cionalizao velada do usurio que decorre de sua longa permanncia ematendimento nesses locais (Mello e Furegato, 2008). Com isso, estaria ocor-rendo um retrocesso ao modo hospitalocntrico, no qual a alta no efeti-vada pela incapacidade de o doente mental, por causa dos longos anos deexcluso, levar uma vida em sociedade.

    No CAPS estudado, o usurio tem a liberdade de ir e vir no espaosocial, mas sua postura ante a sociedade no a de um cidado com autono-mia para levar a vida. importante o entendimento de que a reinserosocial no consiste em devolver o usurio sociedade, e sim que implica a

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    inveno de novas possibilidades de inscrio dos sujeitos no corpo social(Amarante, 1996). Alm disso, preciso ter em conta que a alta no signi-fica desassistncia; ao contrrio, reflete a possibilidade de articulao comos demais servios da rede de sade mental que atendam ao usurio em suasnecessidades, no momento em que ele deixa de necessitar do atendimentointensificado e especializado do CAPS.

    primordial discutir com o usurio os benefcios e as oportunidadesque a alta lhe proporcionar, mostrando a ele que no ser um sofrimentodeixar de ir ao servio e sim a conquista de outra fase importante do trata-mento proposto no CAPS, que lhe permitir construir novos vnculos comoutros servios e pessoas, ampliando sua rede social.

    Entendemos que prticas voltadas autonomizao do usurio devemser perseguidas pelos profissionais do CAPS, uma vez que esse recurso desade tem condies de contribuir para que o usurio retome a sua vidade maneira mais independente e autnoma. Sabemos que no se trata de ta-refa fcil, mas ela no deve ser esquecida no cotidiano do trabalho do CAPS.

    Outra caracterstica do cuidado em sade mental oferecido no CAPSestudado o fato de o atendimento ao usurio ainda ser voltado para adoena. Consideramos que essa prtica herana do tipo de tratamento quea maioria dos usurios conheceu nos manicmios e tambm da formaodos profissionais no modelo biomdico.

    A formao dos profissionais de sade centrada nos aspectos tcnicose cientficos, tendo como referncia o diagnstico, o cuidado, o tratamento,o prognstico, a etiologia e a profilaxia de doenas e agravos, sem estarintegrada s necessidades de sade das pessoas e populaes, gesto seto-rial e ao controle social em sade (Ceccim e Feuerwerker, 2004). A atenoesperada em sade mental, de acordo com os princpios da reabilitao psi-cossocial, exige dos profissionais novas habilidades e competncias que noso encontradas no cotidiano da formao em sade, ou que esto inseridasde forma aleatria, pontual e precria nos currculos (Oliveira, 2007).

    Da mesma forma, o usurio tambm tem a doena como aspecto centralde sua existncia, pois o saber mdico psiquitrico institudo nos manic-mios destina sua ateno doena mental e sua sintomatologia. Os profis-sionais do CAPS tm buscado incentivar o usurio para que fale de suasade, de suas conquistas com relao ao transtorno mental, fazendo-operceber que o essencial o ser humano, ele, e no sua doena.

    (...) eu penso que o cuidado aqui est um pouco mais direcionado para a resoluo

    de problemas; muito mais para o cuidado com o sintoma em si do que para o

    cuidado com a vida como um todo (...). Nos grupos que eu atendo, eu procuro

    direcionar um pouco mais o trabalho para esse lado da prpria pessoa cuidar da

    vida dela como um todo, procurando mostrar que esse cuidado com a vida como

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    um todo faz que a pessoa melhore a sade mental (...), e que isso seja valorizado

    de uma maneira absoluta (...) (T9).

    A conscincia da equipe sobre esse aspecto importante e demonstra anecessidade de mudanas em relao ao enfoque dado nos atendimentos,abrindo espaos e instigando o usurio a falar de suas potencialidades.

    Pautada nos aspectos relacionais, a reabilitao psicossocial exige dosprofissionais uma nova prtica em sade mental que leve em consideraoos diferentes fatores envolvidos na vida humana poltico, econmico,social, cultural e familiar, alm do biolgico , modifique os conceitos decura, doena e tratamento, e enfoque o cuidado na subjetividade. O olhardeixa de ser exclusivamente tcnico e clnico, o que, na tradio basagliana,seria colocar a doena entre parnteses (Amarante, 1996).

    No podemos negar, porm, a existncia da doena concreta nem negli-genci-la, como defendem algumas linhas de pensamento. Negar as dificul-dades impostas pela convivncia com o sofrimento psquico no constricuidado em sade mental, pois a idealizao do sofrimento, o que noauxilia verdadeiramente o usurio em sua vida social.

    A ltima caracterstica do cuidado em sade mental a preocupao daequipe com os usurios. A equipe do servio vem trabalhando junta halguns anos, o que facilita o entendimento entre os profissionais, apesar dadiversidade de concepes sobre sade mental.

    O trabalho em equipe na ateno psicossocial permite ao usurio rece-ber assistncia de qualidade, pois o objeto de cuidado no se limita doenamental, mas envolve relaes sociais, aspectos emocionais, afetivos e biol-gicos (Tavares, 2005).

    As prticas teraputicas que tm como objetivo a reabilitao da pessoaque sofre psiquicamente exigem um trabalho coletivo no qual esto previs-tas intervenes multidisciplinares que incluem a participao do usurio eda famlia (Kantorski, Mielke e Teixeira Jnior, 2008; Brasil, Jorge e Costa,2008) e, por isso, implicam criatividade e a interao de vrias reas.

    O envolvimento da equipe com as atividades do CAPS faz extrapolarmuitas vezes quando, por exemplo, levam para casa tarefas que no foipossvel concluir no servio a carga horria desses profissionais:

    (...) eu acabei fazendo o restante das bombachas, aprendi a fazer bombacha, ia at as

    trs horas da madrugada fazendo, (...) a maior realizao, porque, na realidade, todas

    as horas que eu doei a mais, indo at a madrugada costurando, at envolvendo a

    minha famlia porque [at] trs horas da madrugada (...) a famlia ficava acordada,

    por causa do barulho da mquina, mas poder ver que eles esto arrumados e feli-

    zes compensa o trabalho que a gente faz de corao (...), que no recompensado por

    dinheiro, mas sim pela satisfao de ver que aquele objetivo foi concretizado (T13).

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    A fala de T13 remete ao compromisso que os profissionais do serviotm com a proposta de ateno psicossocial e, especialmente, com os usu-rios, pois de nada adiantaria ter todo o aparato clnico se no houvesse acomunicao, a preocupao e o afeto em cada ao dos profissionais. A rea-bilitao psicossocial implica a responsabilizao dos profissionais nas ativi-dades de reinsero social dos usurios, sendo a equipe um apoio na recons-truo dos laos sociais fragilizados (Schneider, Camatta e Nasi, 2007).

    Compreendemos que fundamental para a efetividade do trabalho emsade mental, na perspectiva da reabilitao psicossocial, que o profissionalacredite na sua prtica teraputica, desenvolvendo-a com habilidade, res-ponsabilidade e satisfao para a promoo do cuidado.

    Entendemos que as caractersticas do CAPS elencadas pelos profissio-nais acenam para a proposta de reabilitao psicossocial, destacando, tam-bm, a vinculao e a afetividade entre profissionais e usurios. Apesar dea questo da alta e do atendimento estar centrada na doena o que vemoscomo obstculos a serem transpostos , percebemos que o servio tem bus-cado incentivar os usurios a ampliar sua rede social, o que pode facilitar aconstruo da autonomia, da cidadania e da reinsero social.

    Consideraes finais

    A realizao deste estudo possibilitou que se conhecesse a preocupao dosprofissionais do CAPS em relao proposta de reabilitao psicossocial. importante destacar que este estudo foi realizado no ano de 2006. Devemser levados em considerao, assim, os aspectos que compunham o cenriodo local do estudo na poca da coleta de dados. possvel que j tenhamocorrido mudanas em nvel local, e at mesmo nacional, que levaram amodificao de alguns aspectos aqui destacados.

    A equipe do CAPS estudado tem desenvolvido atividades que visam reabilitao psicossocial do usurio para a retomada de sua vida na socie-dade, como oficinas em espaos da comunidade, mediante parcerias e a par-ticipao em eventos do municpio, entre outros.

    Entendemos que a questo da alta e a centralidade ocupada pela doenanos atendimentos so obstculos a serem transpostos pelo servio. Podemosdizer que essas questes so prprias do processo de reforma, ou seja, nes-sa construo h diferentes concepes e atores que, por meio do enfrenta-mento e da troca de ideias, implantam mudanas na ateno psicossocial.Destacamos a importncia do reconhecimento desses aspectos por partedos profissionais do CAPS estudado, que tm refletido e buscado trans-formar as condutas estabelecidas, favorecendo a reabilitao psicossocialdo usurio.

  • Notas

    1 Enfermeira assistencial da Secretaria Estadual de Sade do Rio Grande do Sul, PortoAlegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutoranda do Programa de Ps-graduao da Escola de En-fermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Correspondncia: Rua Coronel Fernando Machado, 851, apt. 504, CEP 90010-321, Centro,Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

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    O fato de a equipe estar valorizando uma fala dos usurios com outrocontedo que no seja a doena em si mesma j demonstra uma mudanaem relao ao modelo biomdico, visando superao dele, que, pelo quevimos, no atende todas as necessidades dos sujeitos em sofrimento psquico.

    A preocupao dos profissionais ante a proposta de reabilitao psicos-social aponta para o compromisso que assumem, cotidianamente, com atransformao do modelo assistencial em sade mental, por acreditarem emprticas teraputicas inclusivas e reabilitadoras, centrando seu cuidado naexistncia do usurio com sua histria de vida.

    O trabalho em sade mental na concepo da reabilitao psicossocial coletivo e demanda novas habilidades de todos os atores envolvidos:profissionais, usurios, familiares e comunidade. As conquistas do movi-mento de reforma psiquitrica se devem a esses atores, que acreditam e pra-ticam uma forma de cuidado pautada no respeito ao outro e na valorizaodo ser humano.

    Nota do Editor

    Este artigo parte da monografia O cuidado em sade mental no entendi-mento dos profissionais de um CAPS, requisito para concluso do curso degraduao em Enfermagem, na Faculdade de Enfermagem e Obstetrcia daUniversidade Federal de Pelotas (UFPel), de autoria de Fernanda BarretoMielke. Contou com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-tfico e Tecnolgico (CNPq). As autoras declararam que trabalharam em con-junto em todas as etapas de produo do artigo.

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    2 Enfermeira e professora adjunta da Faculdade de Enfermagem e Obstetrcia da Uni-versidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutora em En-fermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeiro Preto, da Universidade de So Paulo(EERP/USP).

    3 Enfermeira e professora adjunta da Escola de Enfermagem da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutora em Enfer-magem Psiquitrica pela Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo (EE/USP).

    4 Enfermeira e professora adjunta da Faculdade de Enfermagem e Obstetrcia da Uni-versidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutora em Enfer-magem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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    Recebido em 18/11/2010Aprovado em 22/12/2010