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1 CAPTURA DO CORPO COTIDIANO AO CORPO EXTRACOTIDIANO: REFLEXÕES ALBERTO SILVA NETO

CAPTURA DO CORPO COTIDIANO AO CORPO EXTRACOTIDIANO : REFLEXÕES

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CAPTURA DO CORPO COTIDIANO AO CORPO EXTRACOTIDIANO:

REFLEXÕES

ALBERTO SILVA NETO

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CAPTURA DO CORPO COTIDIANO AO CORPO EXTRACOTIDIANO: REFLEXÕES

Neste trabalho, também construí algumas reflexões sobre as relações entre o corpo cotidiano e o corpo extracotidiano no momento da

representação, trazendo para o diálogo o conceito de corpo subjétil, de Renato Ferracini. Depois, abordo a questão da contribuição desse

procedimento de mimetização de ações cotidianas para gerar a organicidade do ator no momento da representação.

1.1.1 Cotidiano e extracotidiano: o corpo entre

A ideia de que ações cotidianas codificadas em repertório podem ser indutores para a criação de um corpo extracotidiano, leva-me a uma

questão: como o corpo cotidiano torna-se extracotidiano no momento da representação, a partir da utilização dessas ações cotidianas?

Para começar, é oportuno trazer uma citação de Renato Ferracini sobre o pensamento de Jerzy Grotowski1, que dá uma ideia da dimensão

paradoxal dessa pergunta:

Grotowski expõe (...) essa questão logo nas primeiras páginas de Em Busca de um Teatro Pobre, chamando esse corpo com comportamento cotidiano de um corpo com “comportamento natural”, um comportamento que engessa e automatiza o corpo mascarando um “verdadeiro” corpo-em-arte. (FERRACINI, 2006, p. 83)

É evidente que Grotowski está se referindo ao corpo do próprio ator, que é também cotidiano. Assim, pode-se pensar que, sendo o corpo

cotidiano também esse corpo com comportamento engessado e automatizado pela rotina da vida diária que “mascara” o corpo-em-arte, seria

adequado que o ator eliminasse esse comportamento cotidiano durante seu processo criativo, para então tornar seu corpo extracotidiano. Mas,

1 Nascido em 1933, em Rzeszów, na Polônia, Jerzy Grotowski foi um dos grandes mestres heréticos e reformadores do teatro do Século XX. Ficou mundialmente conhecido na

década de 60, pelas montagens de Akropolis, O Príncipe Constante e Apocalypsis cum figuris, entre outras, realizadas pelo Teatro Laboratório. Em seguida, desenvolveu as fases

do Parateatro e Teatro das Fontes. Em 1986, a convite da Fondazione Pontedera de Teatro, mudou-se para a Itália, onde desenvolveu as últimas pesquisas sobre a Arte como

Veículo. Morreu em 1999.

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seria isso possível? De acordo com Ferracini, se por um lado o corpo cotidiano torna-se automatizado por esse comportamento que é reflexo de

relações históricas, culturais e econômicas, acaba por ser esse mesmo comportamento de nosso corpo que também nos define como seres

históricos e inseridos num determinado contexto cultural. Portanto, esse comportamento cotidiano do corpo não pode ser simplesmente

eliminado durante a criação, como se existisse outro corpo em estado puro de corpo-em-arte que pudesse ser colocado em seu lugar. Dessa

maneira, o corpo cotidiano do ator estará sempre na base do corpo em estado de representação; ambos estarão sempre coexistindo na cena.

Para Ferracini, ao se pensar nesse corpo integrado é possível então olhar de outro modo para a dimensão cotidiana do corpo e ver nela

uma potência artística:

Proponho, portanto, não pensar em eliminar esse comportamento cotidiano, mas lutar e trabalhar muito contra a automatização, engessamento e acomodação desse corpo, mas para realizar um mergulho nesses mesmos estratos sociais, históricos, culturais e econômicos que o definem, para, dessa forma, potencializá-lo e transbordá-lo em comportamentos-em-arte. (FERRACINI, 2006, p. 85)

Ao invés de negar as vivências do ator, o que Ferracini propõe é justamente partir desses próprios estratos de vida para chegar ao estado

extracotidiano do corpo-em-arte, que passa a ser uma expansão e transbordamento do corpo com comportamento cotidiano. Mas, segundo

afirma um importante colaborador de Grotowski, Ludwik Flaszen2, em um escrito sobre a trajetória do mestre polonês, alimentar-se da própria

vida impõe ao ator uma condição:

O ato do ator compõe-se das reações vivas do seu organismo, da “corrente dos impulsos visíveis” no corpo. Todavia, para que esse processo orgânico não se desvie no caos, é necessária a estrutura que o canalize, a partitura composta dos movimentos e do som. (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, p. 30)

2 Ludwik Flaszen nasceu em Cracóvia ( Polônia) em 1930. Foi co-fundador do Teatro Laboratório, atuando como colaborador entre os anos de 1959 e 1982, e como diretor geral

nos anos 1980. Atuou como crítico, escritor e colaborador criativo de Grotowski por vários anos.

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Em outras palavras, o diretor polonês acreditava que o ator precisa fazer coexistir em sua arte a precisão formal e o fluxo orgânico de vida,

a organicidade. É preciso evitar duas situações extremas: executar apenas a forma com demasiado rigor poderá resultar artificial demais e pouco

crível para o espectador; mas, por outro lado, trabalhar em demasia sobre o vivo e o espontâneo representa sempre uma ameaça de acabar no

informe, no caótico, sem controle. Em síntese, o artifício da construção deve resultar em algo que pareça verdadeiro, orgânico, vivo.

Ao refletir sobre essa questão, Ferracini entende que, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, não existe dualidade

nesse caso, ou seja, forma/vida não são pontos extremos de uma linha, mas um espaço comum, um ponto de convergência, no qual essa duas

dimensões se fundem. Não são pólos distantes, contraditórios; ao contrário, podem ser trabalhados de maneira conjunta, na prática cotidiana do

ator.

Por compreender o trabalho do ator em duas dimensões – a faculdade operativa de articular sua arte de maneira concreta (técnica) e a

faculdade criadora (que anima a técnica, dando-lhe vida) –, o autor entende que a primeira é o meio para atingir a segunda. O ator técnico,

portanto, é aquele que possui a capacidade de operacionalizar sua organicidade, por meio da organização formal de seu trabalho.

Se o corpo em estado de representação, portanto, não é visto como uma dualidade, mas como um corpo integrado em relação ao corpo

cotidiano, e também da noção de que não existe dualidade na relação entre forma e organicidade no âmbito da arte de ator, Ferracini propõe

chamar esse corpo que abarca as dimensões cotidiana e extracotidiana de corpo-subjétil:

Na prática, um ator que possui técnica, quando em Estado Cênico, busca recriar um comportamento corpóreo que, de certa forma, habite esse espaço “entre”. Nem um corpo somente mecânico e formalizado, nem um corpo somente “vivo”, informe e caótico; nem um comportamento cotidiano puro, nem um comportamento extracotidiano puro, mas um corpo ao mesmo tempo formal e orgânico, um corpo que se autoalimentasse de sua própria potencialidade criando e recriando um comportamento extracotidiano transbordado dele mesmo e nele mesmo. (FERRACINI, 2006, p. 82)

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Nesse sentido, o corpo subjétil, ao superar as dualidades forma/vida e cotidiano/extracotidiano revela-se como uma multiplicidade, como

um espaço que proporciona a possibilidade de inúmeras conexões, que por sua vez podem ser quebradas e reconstruídas, aproximando o corpo-

subjétil do conceito de rizoma. Assim, pode-se entender o corpo-subjétil como uma reterritorialização de um corpo cotidiano desterritorializado,

num movimento de ir e vir simultâneo, como um devir.

Por outro lado, ao se configurar como um corpo que abarca as dimensões cotidiana e extracotidiana ao mesmo tempo, o corpo-subjétil

pode ser compreendido como um corpo que dá ao ator a capacidade de utilizar a pulsão de vida de seu próprio corpo cotidiano para imprimir

organicidade a esse mesmo corpo, quando em estado cênico. Nas palavras de Ferracini:

O corpo e a energia extracotidianos vem do corpo-cotidiano, mais precisamente de sua (re)construção, ou ainda, de sua desautomatização. O corpo cotidiano é a base e primeira célula do corpo expandido. (...) O corpo-subjétil é uma espécie de vetorização e transbordamento do corpo cotidiano em direção ao uso artístico desse mesmo corpo. (FERRACINI, 2006, p. 91)

Voltando à pergunta inicial, afirmo que não existe propriamente um “tornar-se” extracotidiano, no sentido de que, nesse processo, o

corpo cotidiano deixe de existir. Na verdade, o corpo cotidiano, ao armazenar todos os extratos históricos, sociais e culturais determinados pelo

contexto em que está inserido, torna-se fonte de organicidade para o corpo-em-arte e, por essa razão, condição essencial para a existência deste.

Dessa forma, entendo que o corpo extracotidiano nada mais é que o adensamento de toda a potência expressiva que transborda do corpo

cotidiano para fazer dele corpo-em-arte, num processo contínuo que se realimenta a cada instante, e onde o orgânico e o inorgânico, o artifício e

a vida, são coexistentes.

Ao trazer esse pensamento para o contexto desta pesquisa, reconheço duas dimensões de corpo cotidiano: o corpo das pessoas

observadas para a captura das ações cotidianas e o corpo do ator que mimetiza essas ações. Se já sei que o corpo cotidiano do ator alimenta de

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organicidade seu corpo-em-arte, preciso agora explicar de que maneira a mimetização de ações cotidianas pode canalizar para o processo criativo

do ator essa organicidade inerente à vida, a mesma que alimenta seu corpo. Reflito sobre essa questão no próximo item.

1.1.2 A mimese do corpo cotidiano como estratégia para atingir a organicidade

A organicidade é um elemento indispensável à arte do ator e uma das maneiras de chegar a ela é extraí-la da vida cotidiana. Exemplo

recente de um método baseado nesse princípio é a técnica da mímesis corpórea, do grupo Lume. Mas esse pensamento não é exatamente novo,

e já aparecia nas primeiras reflexões sobre a arte do ator, datadas do início do Século XX, segundo nos explica Ferracini:

Para Stanislávski3 a organicidade está localizada na vida normal e cotidiana e o ator, mediante um estudo aprofundado desse mesmo cotidiano, estruturando-o e recompondo-o por meio de ações físicas, pode, de certa forma, recriar essa mesma organicidade na cena. (FERRACINI, 2006, p. 103)

Ao se fazer uma analogia entre esse pensamento de Stanislavski e o processo criativo investigado, é possível deduzir que a ideia de um

estudo aprofundado capaz de estruturar e recompor o cotidiano por meio de ações físicas, de que fala o mestre russo, corresponde à construção

do repertório codificado de ações cotidianas e à utilização desse repertório como matéria-prima para a criação da cena. Mas o que se pode

compreender exatamente dessa ideia de estruturação e recomposição? Comparando essas expressões com as etapas do processo de mimetização

das ações cotidianas, conforme as vivi no processo de criação da personagem Homem, associo a estruturação à codificação das ações, ou seja, à

memorização e apropriação pelo ator-pesquisador, em seu próprio corpo, das ações já observadas e imitadas. Já a ideia de recomposição citada

3 O ator, diretor e escritor russo Constantin Siergueieivitch Alexeiev (1863-1938), cujo nome artístico era Constantin Stanislavski, é um dos nomes mais importantes do teatro

mundial em todos os tempos. Fundador do Teatro de Arte de Moscou, criou o primeiro método de interpretação para atores, que influenciou e continua a influenciar grupos e

artistas em todo o mundo.

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por Stanislavski relaciono, em meu processo criativo, à transformação das ações cotidianas codificadas em ações corporais realizadas no

momento da representação.

Começo pela estruturação do cotidiano por meio do repertório codificado. Neste, as ações são organizadas numa estrutura rigorosa, na

qual estão descritas a extensão, o percurso e a duração exata de cada uma delas – elementos aos quais se somam a memória e as sensações

subjetivas do ator-pesquisador no ato da captura – de modo que este pode se servir concretamente desse material no processo de criação da

personagem. A utilização do repertório se dá, conforme já demonstrado, pela livre utilização de fragmentos ou elementos constituintes das ações,

porém organizados numa determinada estrutura.

Ao considerar a ideia de que o ator deve equilibrar em sua construção cênica a precisão formal e o fluxo orgânico de vida, compreendo

que é justamente esse procedimento de recomposição do cotidiano estruturado a partir de um repertório que contribui para que esse objetivo

possa ser mais facilmente atingido. Isso acontece na medida em que, nesse método, a construção cênica do ator passa a ser uma escritura feita a

partir de uma espécie de alfabeto corporal, cujas letras são justamente os fragmentos e elementos que compõem as ações. Por essa razão,

entendo que um repertório codificado tomado como matéria-prima, e sua utilização para a construção de uma escritura cênica das ações de uma

determinada personagem, minimiza o risco de se cair no informe, no caótico, sem controle. Isso acontece porque já temos as letras com as quais

podemos começar a escrever palavras e frases – ainda que estejamos falando aqui de uma escrita que, na medida em que se desenvolve, é capaz

de recriar continuamente, por si mesma, novas letras, que por sua vez passam a ser incorporadas ao alfabeto pré-existente, ampliando-o.

Existe outra questão: como capturar a organicidade da vida cotidiana sem trazer junto o aspecto mecanizado e automatizado do

comportamento cotidiano, aquele que não serve à criação do ator? De fato, analisando por essa ótica, ações de meu repertório codificado como

“Espremendo mandioca” ou “Socando pimenta” (Foto 6), por exemplo, que claramente se referem a ofícios de natureza monótona e repetitiva,

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representariam um risco de se levar para a cena o automatismo e não a organicidade. Acontece que esse raciocínio só é procedente se a captura

abarca apenas o aspecto formal exterior de cada ação, sua dimensão puramente física, ou seja, sua fisicidade. De outro modo, a organicidade de

uma ação está impressa na multiplicidade de elementos que a compõem, como forma, intenção, impulso, ritmo e qualidade de energia, cujas

relações são responsáveis pela corporeidade da pessoa observada, ou seja, sua dimensão vibratória, energética. Dessa forma, entendo que

capturas feitas com ênfase na fisicidade das ações provavelmente tenderão mais à automatização do que à organicidade, ao passo que capturas

capazes de abarcar a corporeidade das ações tenderão a preservar mais sua organicidade. Porém, é importante ressaltar que, com isso, não estou

afirmando aqui que não se possa também extrair organicidade do aspecto puramente formal de uma ação.

Portanto, para ampliar as possibilidades de apropriação da organicidade, mais que capturar a forma exterior da ação (tal como é realizada

de maneira aparentemente igual por várias pessoas), o ator-pesquisador deve buscar a captura da maneira específica de executar determinada

ação pela pessoa que está sendo observada. Isso vai representar a de um modo pessoal e intransferível de realizar aquela ação, a partir da

corporeidade da pessoa que a executa diante do ator-pesquisador. Esse aspecto amplia consideravelmente a complexidade dessa matéria-prima

para o âmbito da natureza psicofísica das ações humanas.

Quanto a isso, cabe aqui uma crítica ao processo de criação investigado. Analisando a construção de meu repertório a partir das reflexões

produzidas neste estudo, compreendo que em parte de meu trabalho de observação e mimetização houve mais a captura da fisicidade que da

corporeidade das ações. Hoje concluo que a explicação para isso está relacionada tanto à falta de experiência do ator-pesquisador na utilização da

técnica de observação e mimetização de ações cotidianas quanto à finalidade específica daquela pesquisa. Naquela oportunidade, o objetivo era

construir um repertório codificado de ações cotidianas coletado de um grande número de pessoas, que pudesse ser utilizado para construir um

único corpo, mas que fosse representativo daquele universo humano. Por essa razão, a pesquisa acabou se concentrando demasiadamente no

aspecto exterior de movimentos e gestos que poderíamos chamar de coletivos ou culturais, já que são conhecidos e utilizados pela maioria

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daqueles indivíduos, em detrimento da corporeidade específica da pessoa que realizava cada ação capturada. Por essa razão, muitas ações

capturadas infelizmente não ultrapassaram a superficialidade de seu aspecto formal, puramente físico, que afinal é bastante semelhante quando

realizado por muitas pessoas, mesmo em situações e contextos diferentes. Por outro lado, também em função da natureza da pesquisa, as ações

foram coletadas num universo muito amplo, em locais e circunstâncias também bastante diversos. Não havia o interesse de aprofundar as

relações entre pesquisador e pesquisado, e sim de capturar a maior diversidade possível de ações.

Esse aspecto determinou duas características que, embora nunca tenham correspondido à totalidade, se aplicam a boa parte das ações

codificadas: movimentos que tem o tempo de duração muito curto, e também restritos a pequenas partes do corpo. Em ambos os casos houve

dificuldade na apreensão da corporeidade.

Quando relaciono amplitude corporal e tempo de duração das ações com a ideia defendida por Burnier de que a fase de observação deve

compreender a imitação da corporeidade das pessoas, observo que esses fatores determinam diferentes qualidades (ou níveis) de apreensão das

corporeidades, no momento da captura das ações cotidianas. Enquanto que ações mais curtas (como é o caso de várias ações da categoria

“gestos isolados”) trouxeram pouca corporeidade para sua codificação, ações mais longas (como é o caso da ação “Seu Euclides”, na categoria

“personagens”) facilitaram uma apreensão bem mais precisa das corporeidades. O mesmo aconteceu em relação à amplitude corporal das ações:

quanto menores, menos corporeidade apreendida.

É fato, portanto: a pesquisa analisada aqui resultou num repertório que tendia mais à fisicidade do que à corporeidade das ações

codificadas – muito embora não deixassem de existir em algumas delas elementos mais subjetivos da ação, que também foram utilizados na

construção rizomática da personagem Homem.

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Mas, ainda assim, é possível refletir, a partir do processo estudado, a respeito da contribuição desse método para gerar a organicidade

desejada para o ator no momento da representação. Em princípio, pode-se pensar que esse método em nada poderá favorecer a busca da

matéria desejada, na medida em que, ao imitar as ações cotidianas de outra pessoa, o ator-pesquisador estaria, na verdade, apenas se afastando

cada vez mais de toda e qualquer organicidade – tanto da sua própria (já que não executa verdadeiramente suas próprias ações) quanto daquela

pessoa observada (em razão de que jamais poderá possuir a organicidade pura que é própria dela). Mas Luís Otávio Burnier, ao analisar as etapas

da técnica de mímesis corpórea, constrói, segundo meu entendimento, uma ideia que coloca em xeque essa concepção e, para mim, se

transforma numa chave para compreender de que maneira a organicidade do ator é gerada nesse processo. Referindo-se à segunda etapa da

referida técnica, nominada por ele de codificação, o autor explica:

Se considerarmos o processo como um todo, ou seja, observação-imitação-memorização-codificação, teremos que no início se está mais próximo do modelo observado e, à medida que se avança no sentido da codificação, afasta-se naturalmente do modelo. (BURNIER, 2001. p.186).

Quando diz que, à medida que avança na codificação, o ator afasta-se do modelo, ou seja, da pessoa observada, entendo que Burnier está

tentando explicar que, ao mimetizar as ações de outra pessoa, o ator-pesquisador, na verdade, não deve buscar atingir a organicidade daquela

pessoa observada (que é própria dela e, portanto, de natureza intransferível), mas encontrar nele mesmo uma espécie de equivalência da

organicidade da pessoa observada e imitada, ou seja, um espaço comum entre esta e sua própria organicidade. Dessa maneira, a matéria

resultante já não seria mais nem a organicidade pura da pessoa observada, nem a organicidade pura do ator, tornando-se um devir organicidade

pessoa observada/ator-pesquisador, abarcando uma multiplicidade capaz de criar um elo entre as duas dimensões de corpo cotidiano envolvidas

no processo (o da pessoa observada e do próprio ator-pesquisador).

Ao descobrir um equivalente em si mesmo da organicidade da pessoa observada, por meio da mimetização da corporeidade dela, o ator-

pesquisador acaba por alcançar a fonte daqueles estratos históricos, sociais e culturais que existem na dimensão cotidiana do corpo, de que fala

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Ferracini, e que são responsáveis não pelo aspecto mecanizado e automatizado da vida cotidiana, mas, ao contrário, pela centelha de vida, de

organicidade, que emana de todo e qualquer corpo cotidiano e faz dele uma potência de corpo-em-arte. Do mesmo modo, ao agenciar sua

própria organicidade a fim de encontrar em seu corpo cotidiano alguma equivalência da organicidade da pessoa observada, o ator-pesquisador

também faz um mergulho e ativa, nele mesmo, esses mesmos estratos históricos, sociais e culturais, tomando contato com a essência de suas

histórias de vida e de sua própria natureza humana.

Dessa maneira, chega-se, afinal, à ideia da coexistência de três dimensões de corpo na construção do corpo extracotidiano criado a partir

da mimetização de ações cotidianas. A primeira dimensão corresponde ao corpo cotidiano da pessoa observada. Desse primeiro corpo cotidiano

(se posso chamá-lo assim), o ator-pesquisador, por meio da captura da corporeidade, é capaz de extrair a pulsão de vida, ou seja, a organicidade

acumulada nos estratos históricos, sociais e culturais que habitam esse corpo e o definem, ao mesmo tempo em que elimina todo o aspecto

mecanizado e automatizado deste, determinados pela rotina da vida diária. Para realizar essa tarefa, porém, o ator-pesquisador precisa agenciar

um segundo corpo cotidiano (o dele mesmo), na medida em que somente em seu próprio corpo o ator-pesquisador poderá tomar contato com os

estratos históricos, sociais e culturais que o definem, e, dessa forma, ativar sua própria organicidade, sem cair também na própria mecanização e

automatização de seu comportamento. É nesse momento em que o ator-pesquisador busca uma equivalência da organicidade da pessoa

observada em seu próprio corpo, agenciando os estratos de ambos os corpos cotidianos, que se torna capaz de potencializá-los, para então

transformá-los num devir corpo-em-arte como um transbordamento para o nível extracotidiano, da organicidade existente em seu próprio corpo

cotidiano (que, afinal, continua a existir durante a representação). É esse devir organicidade pessoa observada/ator-pesquisador, portanto, que se

torna a terceira dimensão de corpo envolvida no processo. Nessa dimensão, já estamos falando de uma natureza extracotidiana do corpo, porque

sua construção (ou criação) é resultado da operacionalização técnica que o ator-pesquisador faz, através da organização formal das ações

cotidianas, que por sua vez acumulam as corporeidades e os estratos históricos, sociais e culturais armazenados no corpo da pessoa observada e

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no dele mesmo. O resultado é a recriação cênica da pulsão de vida em seu próprio corpo que se torna, dessa maneira, ao mesmo tempo orgânico

e inorgânico, vivo e artificial, cotidiano e extracotidiano, como um verdadeiro corpo-em-arte, em estado de representação.

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MANGIFERA 2010