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Capítulos de história colonial 1500-1800

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  • ABHKU

    CAPTULOS

    HISTORIA COLONIAL

    (1500 1800)

    IMPRESSOl' M. 0R0SC0 A C - Rua da Assembla, 24

    R I O D E J A N E I R O 1907

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    Historia colonial

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  • Edio de 200 exemplares

    Separata do "O Brasil suas riquezas naturaes, suas industrias"

    Publicao do Centro Industrial do Brasil.

  • CAPTULOS

    DE

    HISTORIA COLONIAL (1500 1800 )

    POR

    J. Capistrano do Abreu

    IMPRESSORES M. OROSCO St C. Kita ila Afsembla, 24

    Rio DI: JANEIRO

    1!07

  • N D I C E

    I Antecedentes indgenas. . . . . 1

    II Factores exticos . . . . . . 13

    III Os descobridores. . . . . . . 19

    IV Primeiros conflictos. . . . . . . 29

    V Capitanias hereditrias.. . . 35

    VI Capitanias da Coroa.. 45

    VII Francezes e espanhoes. . . . 55

    VIII Guerras flamengas... . . . . . . 73

    IX O serto.. . . . 99

    X Formao dos l imi tes . . . . . . . . 177

    XI Trs sculos d e p o i s . . . . . . . . . 193

  • I

    Antecedentes indgenas

    A quasi totalidade do Brasil demora no hemispherio meri-dional, e entre o Equador e o trpico de Capricorneo alcana o paiz as maiores dimenses.

    Cercam-no ao Sul, a Sudoeste, Oeste e Noroeste as naes castelhanas do continente, excepto o Chile, por se interpor a Bolivia, e o Panam por se interpor a Colmbia. Se confrontar algum dia com o Equador ho de decidir negociaes ainda illiqui-das. Desde o alto rio Branco at beira mar seguem-se colnias de Inglaterra, Hollanda e Frana, ao Norte.

    Banha-o ao Oriente o oceano Atlntico, n'uma extenso pouco mais ou menos de oito mil kilometros. Como o cabo de Orange, limite com a Guayana franceza, dista 37 graus do Chuy, limite com o Uruguay, salta logo aos olhos a insignificancia da peripheria martima; repete-se o espectaculo observado na frica e na Austrlia: nem o mar invade, nem a terra avana; faltam mediterrneos, pennsulas, golfos, ilhas considerveis ; os dois elementos coexistem quasi sem transies e sem penetrao; com recursos prprios o homem no poude ir alm da pescaria em jangadas.

  • A borda littoranea dispe-se em dois rumos principaes : Noroeste-Sueste do Par a Pernambuco, Nordeste-Sudoeste de Pernambuco ao extremo Sul.

    A costa' de Noroeste-SE. corre baixa, quasi rectilinea, inter-meadade dunas elenes de ara, aqum do Amazonas; baixa, lama-centa, de contornos variveis, entre o Amazonas e o Oyapok. Os ma-teriaes marinhos, os sedimentos fluviaes do-lhe o aspecto das costas compensadas; os portos raream, as barras dos rios so as verda-deiras entradas, em geral precrias. O desenvolvimento econmico ou as exigncias administrativas mais que as condies naturaes levam a navegao de longo curso para Belm, S. Luiz, Amarra-o, Fortaleza, Natal, Parahyba e Recife. Outros portos servem apenas cabotagem. Tutoya franqueia o Parnahyba a embarcaes de maior porte.

    A costa de Sudoeste desde Pernambuco at Santa Catharina arrima-se serra do Mar, varia de aspecto, aqui extenses areno-sas, alm barreiras vermelhas, encostas cobertas de mattas, ou montanhas que arcam com as ondas. N'ella existem as maiores bahias do Brasil: Todos os Santos, Camm, Rio, Angra dos Reis, Paranagu. A navegao de alto bordo procura as capites dos Estados, excepto as de Sergipe e Paran, mais os portos de Santos, Paranagu e S. Francisco do Sul. Tambm neste trecho se encontram as maiores e mais numerosas ilhas, em geral dentro de bahias, todas de procedncia continental.

    A partir de Santa Catharina a costa se abaixa novamente; no Rio Grande do Sul dominam lagunas, cujo extenso littoral interno s poder verdadeiramente prosperar quando a arte der a sahida franca que a natureza lhes negou para o oceano.

    As ilhas de procedncia vulcnica, Ferno de Noronha, fronteira ao Rio Grande do Norte, Trindade, fronteira Bahia, pouco representam agora. Trindade parece imprpria occupao permanente: a Inglaterra s a disputou nos ltimos annos por se prestar ao amarradio de cabos transatlnticos.

    A facha martima apresenta largura varivel: em geral avantaja-se mais de Pernambuco para o Par, e no Rio Grande do Sul; no restante sua expanso subordina-se aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as chamadas costas concordantes.

  • Ao Norte liga-se com a baixada do Amazonas, muito am-pla sahida, relativamente estreita entre Xingu e o Nhamund, amplissima a Oeste do Madeira e do Negro at o sop dos Andes. As cachoeiras mais septentrionaes do Tocantins, do Xingu, do Tapajs e do Madeira balisam a baixada, pela banda do Sul. Pela banda do Norte, a Este do Negro, logo a algumas dezenas de kilometros da foz, comea o trecho encachoeirado nos rios que descem da Guayana. De Este a Oeste apresenta declive insensivel: mais desce o S. Francisco na cachoeira de Paulo Affonso do que o Amazonas nos trs mil kilometros que vo de Tabatinga ao mar.

    A baixada martima liga-se ainda ao Sul com a do Paraguay que comea no esturio do Prata e prosegue at Mato Gros-so. Cuyab, na gema do continente, pouco mais de duzentos metros ter de altitude. As margens do rio principal, bastante altas no curso inferior, vo se abaixando medida que se marcha para o Norte, at uma regio annualrnente alagada por espao de mui-tas lguas, o chamado lago Xaraes dos primeiros exploradores. Abundam alis os lagos marginaes, conhecidos pela denominao de bahias; por uma serie de bahias passa a linha lindeira com a Bolivia.

    As baixadas amaznica e paraguaya, continuas com a do oceano, approximam-se muito a Oeste: entre o Agua-pehy, affluente do Jaur, tributrio do Paraguay, e o Alegre, affluente do Guapor, um dos formadores do Madeira, inserem-se apenas poucos kilometros de distancia. O governo portuguez pensou em cortar este varadouro por um canal que levaria do Prata ao Amazonas, e d'este, aproveitando o Cassiquiare, ao Orenoco, ilha da Trinidad, ao mar das Antilhas.

    A obra comeada parou logo e parece inexequivel, por-que uma lingua de terras bastante altas apparece e se extende at Chiquitos, na Bolivia, produzindo um desnivelamento pouco favorvel.

    As bacias do Amazonas e do Paraguay com os rios que as cortam, as ilhas numerosas, os lagos considerveis e os canaes sem conta compensam at certo ponto a pobreza do desenvolvimento martimo, e so os verdadeiros mediterrneos brasileiros. A depresso do Paraguay reunida do alto Amazonas

  • separa dos Andes as terras altas do Brasil, que a baixada ama-znica ao Norte aparta do planalto da Guayana, e a baixada martima precede pelos outros lados. A partir do Jaur, o Paraguay no recebe affluentes considerveis em territrio bra-sileiro, direita.

    Desde o rio Uruguay o planalto brasileiro limitado pela serra do Mar, spera e coberta de mattas na falda voltada para o oceano, mais suave na parte interior, de largura entre vinte e oitenta kilometros, com picos que raramente passam de dois mil metros. Serve de divisora das guas entre os rios que procuram directamente o Atlntico em geral de pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape e o Parahyba, rompem a serra, e os outros so rios transversaes ou de meia gua e os rios que se destinam ao Prata, de muito maior extenso e cabedal: o Uruguay per-tencente ao Brasil pelos dois lados at Pepery-guass, limite com a Argentina, e pelo lado esquerdo at Quarahim, limite com o Uruguay; o Iguass, com saltos de maravilhosa belleza, no trecho em que a esquerda pertence Argentina e a direita ao Brasil; o Ivahyr prximo ao salto de Guayra; o Parapanema, o Tiet, de tama-nha significao histrica, e outros affluentes rientaes do Paran.

    Da serra do Mar desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo interior vai desde o estado do Paran at Minas Geraes. N'ella fica o pico mais alto do Brasil, o do Itatiaya, com cerca de trs mil metros de altitude. Vem depois a serra do Espinhao, que acompanha o rio S. Francisco pelo lado direito at ser cor-tada na grande curva traada a Nordeste por elle antes de se lanar no oceano. Ambas representam papel somenos como divisoras das guas : a da Mantiqueira entre o Parahyba do Sul e o alto Paran, a do Espinhao entre o S. Francisco, de que estreita a bacia ao Oriente, logo depois deformado o rio das Velhas, e os rios de meia gua que se dirigem ao mar:Doce, Jequitinhonha, Pardo, Contas, Paraguass.

    Das alturas de Barbacena arranca uma lombada transversal no rumo approximado Este-Oeste, que com varias denomina-es, a trechos rigorosamente montanhosa, alhures mera-mente denudada, o maior divisor das guas dentro do pla-nalto. Chamou-a Serra das Vertentes o benemrito Eschwege, denominao excellente si, deixada de parte a estructura, se

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    attender somente ao papel representado na America do Sul. A um lado as guas vertem para o Paran e para o Pa-raguay, ambos nascidos nesta zona, e, como o Uruguay, termi-nando o curso em territrio estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os tributrios do Madeira, objecto de longas disputas desde que Manoel Felix de Lima, em 1742, foi pela primeira vez das minas de Mato Grosso at sua foz; o Tapajs, antigo caminho dos Cuyabanos para a compra do guaran entre os Maus; o Xingu, cujas ms condies de navegabilidade des-viaram as exploraes por muito tempo e deixaram viver at pou-cos annos numerosas tribus indigenas em pura idade de pedra, cujo estudo impulsionou poderosamente a ethnographia sul-ameri-cana; o Araguaya-Tocantins, o Parnahyba, o S. Francisco.

    O S. Francisco, de grande importncia histrica, formado pelo rio que com este nome desce da serra da Canastra, e pelo rio das Velhas. No trecho superior, os affluentes mais consider-veis correm entre estas duas cabeceiras at sua confluncia; transposto j o salto de Pirapora, a divisora das guas com o Tocantins afasta-se e deixa que se desenvolvam o Paracat, o Urucuia, o Carinhanha, o Corrente, o Grande, ao passo que a serra do Espinhao se approxima. Desde a barra do rio Grande para o mar, nem de uma, nem de outra margem concorre affluente algum considervel; os embaraos encontrados pela navegao accumulam-se, e tolheram as communicaes at ser transposto por uma via frrea o trecho encachoeirado.

    O S. Francisco por assim dizer a imagem de quasi todos os rios do Brasil: no planalto, apenas o volume d'agua o permitte, uma extenso, de centenas de lguas s vezes, perennemente navegvel por embarcaes de maior ou menor capacidade; em seguida a descida do planalto com saltos e corredeiras, como os do Madeira, o Augusto no Tapajs, o Itaboca no To-cantins, o Paulo Affonso no S. Francisco, e tantos outros ; final-mente, as guas se acalmam e aprofundam, e os embaraos de todo desapparecem quando lhes sobra fora sufficiente para impedir a formao de baixios na barra.

    Deste typo se apartam o Amazonas, cuja regio tormen-tosa vencida logo nas cabeceiras, muito antes de entrar no Brasil, e seus affluentes situados a Oeste do Madeira e do

  • Negro, no chamado Solimes, nascidos todos em regies pouco elevadas e logo diffundidos por grandes baixadas, quasi nive-ladas. Em menores dimenses reproduz-se o facto com o rio Para-guay e alguns de seus affluentes. O Parnahyba e os rios do Maranho, descendo suavemente por um declive graduado ao longo do seu curso, apresentam uma forma de transio entre o typo dos rios das baixadas e o dos chapades.

    As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divises bem distinctas: o chapado amaznico desde o Guapor ao Tocantins; o do Parnahyba, inserido entre o primeiro e o do S. Francisco, mais vasto, que alcana sua maior expanso margem esquerda desta bacia; finalmente o do Paran-Uruguay, entre a serra do Mar e as montanhas de Guayaz. As relaes existentes entre estes chapades actuaram sobre o povoamento do territrio.

    O planalto das Guayanas apresenta outro chapado ele-vado, com alguns picos graniticos, poucos de mais de mil metros.

    A Oeste alguns affluentes amaznicos nascidos fora do Brasil, o I, Japur, Negro, em seu trecho inferior correm por algum espao parallelamente ao rio principal. Pouco extensas, pouco navegveis correntes de meia gua desembocam a Este do Negro, descendo da borda meridional do chapado das Guayanas.

    O rio das Amazonas vasa uma bacia de sete milhes de kilometros quadrados, a maior do globo, tamanha, quasi, como o Brasil inteiro. Sangram para ella grandes partes dos planaltos brasileiro, guayanez e andino; como a.quadra das chuvas no cae em todos elles ao mesmo tempo, succede que quando come-am a baixar os affluentes de um enchem os do outro lado, e a vasante nunca se d completa. A's vezes tanto se avoluma o rio-mar que represa os tributrios e por seus furos manda-lhes gua a muitos kilometros da foz. Os lagos marginaes, as ilhas numerosas, os furos, os paranamirins permittiriam navegar desde o oceano at os confins do paiz sem nunca penetrar na madre. Suas inundaes alcanam quasi vinte metros acima do nivel ordi-nrio ; por cima das florestas podem ento passar embarcaes, das quaes algumas semanas antes mal se avistava o topo do arvoredo. O Amazonas corre de Oeste para Este, acompanhando a equinocial,

  • e seu clima pde dizer-se proximamente o mesmo em toda esta extenso : genuinamente tropical, pouco varivel, sem differenas sensiveis de temperatura, de atmosphera humida, abundante-mente chuvosa, maxime junto do mar e perto dos Andes. A maior ou menor freqncia relativa de chuvas se designa pelos nomes de vero e inverno ; de inverno s pde dar ida approxi-mada, pelo lado da temperatura, o ligeiro refrigerio sentido noite.

    Ao Sul do Amazonas, entre os rios Parnahyba e S. Fran-cisco, estende-se uma zona periodicamente flagellada por seccas. Quando as estaes correm regularmente ha leves chuveiros, chamados de caju, passagem do. sol para o Sul; cjiuvas maiores caem antes ou depois do equinocio de Maro; So Joo j fins d'agua. No caso contrario seccam os rios, excepto em alguns poos e depresses, murcham os pastos, permanecem nuas as arvores, succumbe o gado sede ou inanio, e a gente morre fome quando s dispe dos recursos locaes. A necessidade de luctar contra a calamidade inspirou a construco de audes, a cultura das vasantes, a retirada do gado, a distribuio de ramas para alimental-o, as grandes levas de retirantes.

    beira mar entre o Oyapok e o Parnahyba, e do So Francisco para o Sul domina igualmente o clima tropical at Santa Catharina: em alguns trechos quasi todos os mezes do anno chove, em outros intervm estiadas maiores, em geral subordi-nadas marcha solar.

    A distancia do Equador avulta as differenas ther-mometricas, alis contidas em extremos pouco apartados. Com o solsticio de Junho, pouco antes ou pouco depois, coincidem o maior abaixamento thermometrico e a diminuio nos precipitados athmosphericos.

    No Rio Grande do Sul as estaes fria e quente j appare-cem melhor delimitadas, as variaes de temperatura tornam-se mais notveis, e a estao das guas tende a emparelhar-se com a do frio.

    Isto se refere ao littoral. No interior do paiz, reina tambm o clima tropical, modificado mais ou menos por factores locaes e revestindo certa feio continental. Geralmente chove no serto menos que beira-mar; as estaes secca e humida andam mais nitidamente descriminadas ; o ar do planalto, facilmente aquecivel

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    durante o dia em conseqncia de sua pouca densidade, rapida-mente esfria noite pelo mesmo motivo, produzindo s vezes variaes bruscas no decurso de vinte e quatro horas.

    Tambm aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em v-rios pontos ha uma estao humida menor e anterior, outra maior e posterior ao solsticio de Dezembro.

    Na depresso amaznica associam-se o calor e a humidade, a vegetao attinge o mximo desenvolvimento, alardeia-se a grande matta terreal.

    A lucta pelo ar e pela luz arremessa as plantas para cima, repellem-se nas alturas as copas do arvoredo, arvores possantes viram trepadeiras, cruzam-se lianas em todos os sentidos. Plantas sociaes como a embaba e a monguba constituem excepo ; em regra n'uma superfcie dada cresce o maior numero possvel de espcies differentes.

    Pouco influe sobre a physionomia do conjunto a distancia do oceano ; muito mais actua o apartamento do rio: no caa-igapo, sujeito inundao annua, avultam palmeiras, muitas d'ellas espinhosas, reduz-se o porte das arvores ; no caa-et, sobranceiro a ella, culminam gigantes vegetaes, triumpham dicotyledoneas e epiphytos; mais adiante comeam os xerophytos.

    A regio flagellada pela secca possue tambm mattas, porm solteiras, nas serras capazes de condensarem vapores athmosphe-ricos, nas margens dos rios, em logares favorecidos pela humidade do subsolo. De dimenses restrictas, sustentam a outros respeitos o confronto com as das regies mais felizes ; no representam, entretanto, fielmente a feio dominante.

    Desde a Bahia comea a matta virgem continua, e com os mesmos caracteres orla a borda oriental da serra do Mar: troncos erectos, ramificao muito acima do solo, folhagem sempre verde-jante, variedade de espcies dentro de pequenas reas, abundn-cia de epiphytos. Os accidentes topographicos introduzem aqui na paisagem uma variedade golpeante, desconhecida na mono-tonia intermina da Amaznia.

    Alm da serra do Mar abrem-se os campos, vastas exten-ses occupadas por gramineas e ervas mais ou menos rasteiras.

    Onde a altitude o permitte surgem araucrias; em certos pontos adensam-se capes, cujo nome indgena est indicando a

  • forma circular. Os campos do Sul explicam alguns pela baixa da temperatura.durante o perodo germinativo. Ao Norte existem igualmente campos, cuja explicao parece outra: o solo, muito quente e pouco humido, requeimando as sementes das ardores, rouba-lhes a vitalidade.

    Catinga, carrasco, cerrado, agreste designam todos varias formas de vegetao xerophila, caracterisada pelas razes s vezes muito profundas, munidas muitas de bulbo que prende a gua, pelo tronco spero, gretado, exiguo, esgalhado, como se procurasse para os lados o desenvolvimento que lhe foge na vertical, pelas folhas mais ou menos midas, que caem numa parte do anno para melhor resistir secca, limitando a evaporao.

    Na regio das seccas esta forma de vegetao chega quasi beira-mar; em quasi todos os estados existe mais ou menos, testemunho e effeito do clima continental. O povo brasileiro, come-ando pelo Oriente a occupao do territrio, concentrou-se prin-cipalmente na zona da matta, que lhe fornecia pau-brasil, madeira de construco, terrenos prprios para canna, para fumo e, afinal, para caf. A matta amaznica forneceu tambm o cravo, o cacau, a salsaparilha, a castanha, e, mais importante que todos os outros productos florestaes, a borracha. Os campos do Sul produzem mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de vegetao xerophila, plantam-se cereaes ou algodo e pasta o gado. A obra do homem chama-se capoeira: terreno privado da vegetao pri-mitiva, occupado depois por vegetaes adventicios cujaphysionomia ainda no assumiu feio bem caracterisada. Os capoeires podem dar a illuso de verdadeiras mattas.

    A fauna do Brasil muito rica em insectos, reptis, aves, peixes, e pequenos quadrpedes. So formas caractersticas as emas, os papagaios, os beija-flores, os desdentados, os marsupios, os macacos platyrhinios.

    Na baixada littoranea, muitas formas de molluscos, peixes e aves ha communs ao Atlntico do Sul; o colorido de alguns por tal modo se assemelha areia que custa descobril-os em repouso.

    A fauna da matta apresenta, ao contrario, o colorido mais vistoso, principalmente nas borboletas, que s vezes attingem tama-nho enorme, e nas. aves. A maior parte das espcies adaptou-se

    Centro Industrial

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    vida arbrea, e algumas, como a archaica preguia, vo desappare-cendo com as derrubadas.

    Mais pallida em colorido e fraca em fora numrica a fauna do serto lembra Goeldi. Sumptuoso uniforme de gala nos descampados no seria desejvel nem proveitoso. Para os animaes sertanejos de mais vantagem sua roupa branco-amarellada e montona que no meio do capim se conserva neutra entre a cr do solo e o colorido da macga torrada pelo sol.

    Si por um lado, no littoral, apparelho til a aza comprida, apropriada ao vo persistente, e, por outro lado, o p trepador, para o morador da matta, torna-se precioso dote para formas animaes que vivem correndo pelo solo uma perna comprida e capaz de cor-responder a fortes exigncias. Ahi esto para attestal-o a sariema de alto cothurno e a gigantesca ema. O prprio lobo brasileiro muniu-se, alm de umas orelhas grandes, a modo de chacal do deserto, de longas pernas a feitio de galgo .

    Entre estes animaes nem um pareceu prprio ao indgena para collabrar na evoluo social, dando leite, fornecendo ves-timenta ou auxiliando o transporte; apenas domesticou um ou ou-tro, os mimbabas da lingua geral, em maioria aves, princi-palmente papagaios, s para recreio. De caa e principalmente de pesca era composta sua alimentao animal. Possuia agri-cultura incipiente, de mandioca, de milho, de varias fructas. Como eram-lhe desconhecidos s metaes, o fogo, produzido pelo attrito, fazia quasi todos os officios do ferro. A plantao e colheita, a cozinha, a loua, as bebidas fermentadas competiam "s mulheres ; encarregavam-se os homens das derrubadas, das pescarias, das caadas e da guerra.

    As guerras ferviam continuas ; a cunha prisioneira aggre-gava-se tribu victoriosa, pois vigorava a ida da nullidade da fmea na procreao, exactamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribus no meio de festas rituaes. A anthropophagia no despertava repugnncia e parece ter sido muito vulgarisada: algumas tribus comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a differena.

    Viviam em pequenas communidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por cima, carregar algumas

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    cabaas e panellas; por isso andavam em continuas mudanas, j necessitadas pela escacez tios animaes prprios alimen-tao.

    De rixas minsculas surgiam separaes definitivas; gras-sava uma fissiparidade constante. Tradio muito vulgarisada explicava grandes migraes por disputas a propsito de um papagaio.

    O chefe apenas possuia autoridade nominal. Maior fora cabia ao poder espiritual. Acreditavam em seres luminosos, bons *e inertes, que no exigiam culto, e poderes tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar para apartar sua clera e anga-riar-lhes o favor contra os perigos: eram as almas dos avs. Entre elles contava-se o curador, pag ou carahiba, senhor da vida e da morte, que resuscitara depois de finado, e no podia mais tornar a morrer.

    Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de obser-vao da natureza inconcebvel para o homem civilisado. No lhes faltava talento artstico, revelado em productos cermicos, tran-ados, pinturas de cuia, mascaras, adornos, danas e musicas.

    Das suas lendas, que s vezes os conservavam noites inteiras acordados e attentos, muito pouco sabemos : um dos primeiros cuidados dos missionrios consistia e consiste ainda em apagal-as e substituil-as.

    Fallavam lingus diversas, quanto ao lxico mas obedacendo ao mesmo tj^po : o nome substantivo tinha passado e futuro como o verbo; o verbo intransitivo fazia de verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois pronomes, um agente e outro paciente; a primeira pessoa do plural apresentava s vezes uma flexo inclusiva e outra exclusiva ; no fallar commum a parataxe domi-nava. A abundncia e flexibilidade dos supinos facilitaram a traduco de certas idas europeas.

    Fundada no exame lingstico a ethnographia moderna con-seguiu aggregar em grupos certas tribus mais ou menos estrei-tamente connexas entre si. No primeiro entram os que fallavam a lingua geral, assim chamada por sua rea de distribuio. Predo-minavam prximo de beira-mar, vindos do serto, e formavam trs migraes diversas: a dos Carijs ou Guaranys, desde Canana

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    Jequitinhonha, na costa e serto da Bahia, na serra da Ibiapaba; os Tupinambs no Rio de Janeiro, a um e outro lado do baixo So-Francisco at o Rio Grande do Norte, e do Maranho at o Par. O centro de irradiao das trez migraes deve procurar-se entre-o rio Paran e o Paraguay.

    Nos outros grupos fallavam-se as lnguas travadas: os Gs^. representados pelos Aimors ou Botocudos prximo do mar, e ainda hoje numerosos no interior ; os Carirys disseminados do Paraguass at o Itapecur e talvez Mearim, em geral pelo serto, com quanto os Tremembs habitassem as praias do Cear; os-Carahibas, cujos representantes mais orientaes so os Pimenteiras, no Piauhy, ainda hoje encontrados no chapado e na bacia do* Amazonas; os Maipure ou Nu-Aruak, que desde a Guayana pene-traram at o rio Paraguay e ainda apparecem nas cercanias de sua antiga ptria, e at no alto Purs; os Panos, os Guaicurus, etc. etc-

    Si abstrahirmos do Amazonas onde havia muitos Maipure e no poucos Carahibas, s os Tupis e os Carirys foram incorpo^-rados em grande proporo actual populao do Brasil.

    Os Carirys, pelo menos na Bahia e na antiga capitania de-Pernambuco, j occupavam a beira-mar quando chegaram os portadores da lingua geral. Repellidos por estes para o interior,, resistiram bravamente invaso dos colonos europeos, mas os. missionrios conseguiram aldear muitos e a creao de gado-ajudou a conciliar outros. Talvez provenha dos Carirys a. cabea chata, commum nos sertanejos de certas zonas.

    Si agora examinarmos a influencia do meio sobre estes-povos naturaes, no se afigura a indolncia o seu principal caracte-rstico. Indolente o indgena era sem duvida, mas tambm capaz de-grandes esforos, podia dar e deu muito de si. O principal effeito dos factores anthropo-geographicos foi dispensar a cooperao.

    Que medidas conjuntas e preventivas se podem tomar con-tra o calor? qual o incentivo para condensar as associaes? como progredir com a communidade reduzida a meia dzia de familias ?

    A mesma ausncia de cooperao, a mesma incapacidade de aco incorporada e intelligente, limitada apenas pela diviso do trabalho e suas conseqncias, parece terem os indigenas le-gado aos seus successores.

  • II

    Factores exticos

    Ao comear o sculo XVI, Portugal labutav na transio Ia idade media para a era moderna. Coexistiam em seu seio duas sociedades completas, com sua hierarchia, sua legislao e seus tribunaes ; mas a sociedade civil no professava mais a superiori--dade transcendente nem se sujeitava dependncia absoluta da Egreja, despida agora de muitas de suas histricas prerogativas, obrigada a reduzir muitas de suas pretenes.

    O Estado reconhecia e acatava as leis da Egreja, executava -as sentenas de seus tribunaes, declarava-se incompetente em quaesquer litigios debatidos entre clrigos, s punia um eccle-siastico si, depois de degradado, era-lhe entregue por seus supe-riores ordinrios, respeitava o direito de asylo nos templos e mos-teiros para os criminosos cujas penas eram de sangue, abstinha-se -de cobrar impostos do clero.

    A Egreja dominava soberana pelo baptismo, to neces-srio vida civil como salvao da alma; pelo casamento, que podia permittir, sustar ou annullar com impedimentos dirimen-tes; p elos sacramentos, distribudos atra vez da existncia inteira; pela excommunho, que incapacitava para todos elles ; pelo inter-dicto, que separava communidades inteiras da cc>mmunicao dos santos; pela morte, permittindo ou negando suffragios, deixando que o cadver descanasse em logar sagrado junto aos irmos ou apodrecesse nos monturos em companhia dos bichos; domi-nava pelo ensino, limitando e definindo as crenas, extremando o que se podia do que no era licito aprender ou ensinar.

    Contra ella, na esphera estreita ainda em que firmara sua competncia, depois de luctas com o papado e com o clero ind-gena, o. Estado empregava o placet para os documentos emanados -do solio pontifcio, os juizes da coroa para resguardar certos rgos essenciaes ao exerccio normal da soberania plena, as leis de amortisao para limitar as acquisies prediaes, as tmpora-

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    ridades para abolir certas resistncias. Em compensao, repartia sua jurisdico com o outro poder em casos por isto chamados mixti fori, prestava o brao secular para executar, at com morte violenta, os condemnados pelo juizo ecclesiastico, duramente cas-tigava certos actos s porque a Egreja os considerava peccamino-sos; em summa, o mesmo que hoje os interesses econmicos ou fiscaes, pesavam ento inspiraes religiosas e consideraes eccle-siasticas.

    Apesar de tudo occorriam Jrequentes attritos entre 'a Egreja e o Estado, aquella disposta a abrir o menos possvel mo-de suas attribuies antigas, este conquistando ou assumindo-sempre novas faculdades, para arcar com os problemas crescen-tes, legados onerosos do regimen medieval, exigncias inadiveis de uma situao transformada pelo commercio fortalecido, pelas communicaes amiudadas, pela industria renascente, pela reno-vao intellectual, pela circulao metallica em lucta contra a economia naturista, rasgando horizontes mundiaes.

    Como o papa, cabea da sociedade religiosa, o rei torna-ra-se o sujeito jurdico da sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes no admittiam fronteiras definiveis, invoca-dos como um principio de equidade superior, como remdio a casos excepcionaes, graves e imprevistos. De outros poderes susceptveis de definio, podia fazer uso mais ou menos completo, e alienal-os em parte.

    Era direito real bater moeda, crear capites na terra e no mar, fazer officiaes de justia, do nfimo ao pino da carreira, declarar guerra, chamando o povo s armas com os mantimentos necessa^ nos. Para seu servio el-rei tomava carros, bestas e navios dossubdi-tos; pertenciam-lhe as estradas e as vias publicas, os rios naveg-veis, os direitos de passagens de rios, os portos de mar com as por-tagens n'elles pagas, as ilhas adjacentes ao Reino, as rendas das pescarias, das marinhas, do sal, as minas de ouro, prata e quaes-quer outros metaes, os bens sem dono, os dos malfeitores de cer-tos crimes. Nellese concentrava toda a faculdade legislativa : os vo-tos das Cortes s valiam com o seu assenso e emquanto lhe apra-zia, pois as disposies mais precisas podia dispensar, especifi-cando-as; juizes e tribunaes eram delegaes do throno.

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    Abaixo do rei estava a nobreza, numerosa em famlias como nas distinces que separavam umas de outras, comprehehr-dendo desde os senhores donatrios, com honras, coutos e juris-dico, e os gro-mestres das ordens militares, cujo mestrado o rei houve por bem afinal assumir, at simples cavalleiros e escu-deiros. Seu poderio fora grande; agora contentava-se com o monoplio ds cargos pblicos, com o papel saliente, nos tempos de guerra ou nos conselhos da coroa, com a situao privilegiada nas questes penaes, em que o titulo de nobre defendia dos tor-mentos ou acarretava diminuio de pena. A nobreza no era uma casta exclusiva; davam para ella varias portas, entre as quaes a das letras.

    Abaixo da nobreza acampava o povo, a grande massa da nao, sem direitos pessoaes, apenas defendidos seus filhos por .pessoas moraes a que se acostavam, lavradores, mecnicos, merca-dores; os de mr qualidade chamavam-se homens bons, e ru-niam-se em cmaras municipaes, rgos de administrao local, cuja importncia, ento e sempre somenos, nunca pesou decisiva-mente em lances momentosos, nem no Reino, nem aqui, apesar dos esforos de escriptores nossos contemporneos, illudidos pelas apparencias fugazes ou cegados por idias preconcebidas.

    Abundavam pessoas moraes a que o povo se podia filiar corporaes limitadas como as de moedeiros e bombardeiros, col-lectividades maiores, como os cidados do Porto. Os privilgios inherentes a estes foram outorgados a varias cidades do Brasil, Maranho, Bahia, Rio e So Paulo, pelo menos ; pelo que encerram, do bem a idei de direitos regateados a quem tinha apenas para soccorrer-se a mera qualidade de ser humano.

    A estes felizes cidados do Porto concedeu D. Joo II: que no fossem mettidos a tormentos por nenhuns male-

    fcios que tivessem feito, commettido e commettessem e fizessem d ahi por diante, salvo nos feitos e d'aquellas qualidades e nos modos em que o devem ser e so os fidalgos do reino e senhores ;

    que no pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre suas menagens e assim como o so e devem ser os fidalgos;

    que pudessem trazer e trouxessem por todos os seus rei-nos e senhorios quaes e quantas armas lhes aprouvesse de noite e de dia, assim offensivas como defensivas;

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    que no pousassem com elles nem lhes tomassem suas casas de moradas, adegas, nem cavallarias, nem suas bestas de sella, nem outra nenhuma cousa de seu contra suas vontades e lhes ca-tassem e guardassem muito inteiramente suas casas, e houvessem com ellas e fora d'ellas todas as liberdades que antigamente haviam os infanes e ricos homens ;

    que os serviaes agrcolas s fossem guerra com os patres.

    Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escra-vos, etc. etc, cujo direito nico cifrava-se em poderem, dadas circumstancias favorveis, passar classe immediatamente superior, pois, comquanto rentes as separaes, as classes nunca se trans-formaram em castas.

    Os trs braos do clero, da nobreza e do povo, convo-cados em occasies solemnes e a intervallos arbitrrios, consti-turam as Cortes. Meramente consultivas, ou por igual delibe-rativas ? Liquidem entre si este ponto os eruditos de alem-mar; fora de duvida s valeram emquanto os reis consideraram reinar como um officio e precisaram de recursos pecunirios para os quaes no eram sufficientes os copiosos direitos reaes.

    A prosperidade e o povoamento do Brasil provaram fataes a esta veneravel instituio. Por uma coincidncia nada fortuita, reuniram-se as ultimas Cortes em 1697, quando o ouro das Ge-raes comeava a deslumbrar o mundo, e s reviveram com a revo-luo franceza, as guerras napoleonicas e a independncia real do Brasil, depois de trasladada para aqui a sede da monarchia portugueza.

    Em 1527 a somma total dos fogos em todo o Reino andava por duzentos e oitenta mil quinhentos e vinte e oito ; dando a cada um d'estes um numero de quatro indivduos, a populao do Reino seria n'aquelle anno de um milho cento e vinte e dois mil cento e doze almas. Com este pessoal exiguo, que no bastava para enchei-o, ia Portugal povoar o mundo. Como conseguil-o sem atirar-se mestiagem ?

    A agricultura estava atrazada no Reino; Damio Ges expli-cando em 1541 opinio letrada da Europa a razo dos seus atrazos em Portugal e Hespanha, affirma ser a fertilidade espon-tnea do solo tamanha que a maior parte do" anno os escravos

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    e os homens pobres se podem sustentar lautamente de fructos silvestres, mel e ervas, o que os faz pouco propensos ao trabalho agrcola.

    Alguns traos tomados ao livrp de Costa Lobo mostraro o caracter dominante do povo ao comear a era dos desco-brimentos :

    O portuguez do sculo XV era fragueiro, abstmio, de imaginao ardente, propenso ao mysticismo, caracter indepen-dente, no constrangido pela disciplina ou contra-feito pela conveno; o seu falar era livre, no conhecia rebuos nem eupherriismos de linguagem.

    A tempera era rija, o corao duro. As comminaes pe-naes no conheciam piedade. A morte expiava crimes taes como o furto do valor de um marco de prata. Ao falsificador de moeda infligia-se a morte.pelo fogo, e o confisco de todos os bens.

    Com a rudeza de costumes que assignala aquelles tem-pos,, a segurana da prpria pessoa, familia e haveres, dependia em grande parte da fora e energia individual; d'ahi freqentes homisios, aggresses, feridos e mortes que habituavam contem-plao da violncia e da dor, infligida ou recebida. O espectaculo de penar no repugnava, porque ningum tinha em muita conta o padecimento physico. Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caracter perverso no tinham nesses tempos semelhante signifi-cao. O mal que ellas causavam no se reputava demasia, todos estavam sujeitos a padecel-o. Mas si a dor physica ou moral alcanava mollificar a rijeza da ndole inacostumada pacincia e reflexo ou si a paixo a inflammava, ento o sen-timento irrompia em clamores, prantos e contorses, semelhando os meneios da demncia furiosa.

    A' dureza da tempera correspondia extensamente um as-pecto agreste, a fora muscular era tida em grande apreo. Cercear com um revez de montante uma perna de boi por meia coxa ou decepar-lhe quasi todo o pescoo eram feitos dignos de recordao histrica.

    Ao portuguez extranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente aliengena. A importao comeou desde o estabele-cimento das capitanias e avultou nos sculos seguintes, primeiro por

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    causa da cultura da canna, mais tarde por causa do fumo; das minas, do algodo e do caf. Depois da. suppresso do trafico em 1850, o caf provocou deslocaes considerveis na distribuio in-terna ; o mesmo effeito produziu a abolio.

    Os primeiros negros vieram da costa occiderital, e perten^ cem geralmente ao grupo bant; mais tarde vieram de Moam-bique. Sua organisao robusta, sua resistncia ao trabalho indi-caram-nos para as rudes labutas que o indgena no tolerava. Des-tinados^ para a lavoura, penetraram na vida domestica dos se-nhores pela ama de leite e pela mucama, e tornaram-se indispensveis pela sua ndole carinhosa. A mestiagem com o elemento africano, ao contrario da mestiagem com o americano, era vista com certa averso, e inhabilitava para certos postos. Os mulatos no podiam receber as ordens sacras, por exemplo : dahi o desejo commum de ter um padre na famlia, para provar limpeza de sangue. Com o tempo os mulatos souberam melhorar de posio e por fim impor-se sociedade. Quando reuniam a audcia ao talento e fortuna alcanaram altas posies.

    O negro trouxe uma nota alegre ao lado do portuguez taciturno e do indio sorumbatico. As suas danas lascivas, tole-radas a principio, tornaram-se instituio nacional; suas feitiarias e crenas propagaram-se fora das senzalas. As mulatas encontra-ram apreciadores de seus. desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil inferno dos negros, purgatrio dos brancos, paraso dos mulatos, resumio em 1711 o benemrito Antonil.

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    Os Descobridores

    A posio geographica de Portugal destinava- vida ma-rtima, e data da dominao romana o conhecimento de ilhas alon-gadas ao Occidente. Tradies rabes memoram os Mogharriun, partidos de Lisboa cata de aventuras. A restaurao christ pro-duziu uma marinha nacional, que alentaram e tornaram prospera a escolha d barra do Tejo para escala da carreira de Flandres, e a vinda de Catales e Italianos chamados a ensinar a nutica e a technica. A expedio contra Ceuta em 1415 reuniu j centenas de embarcaes e milhares de marinheiros.

    Depois de tomada esta cidade mourisma infiel, atiraram-se os conquistadores para terras africanas. Navios mandados do Al-garve perlongaram o littoral marroquino, conjuraram os terrores do cabo No, illuminaram o Sahara nos bulces do mar Tenebroso, descobriram rios caudalosos, tractos povoados, e as ilhas de Cabo-Verde, verdes dentro na zona torrida, inhabitavel pelo calor como o seu nome apregoava, inhabitavel por sentena unanime dos philo-sophos antigos, apanhados agora pela primeira vez em falsidade flagrante. Culmina n'esta phase herica o infante D. Henrique, filho de D. Joo I, e gro mestre da Ordem de Christo. Domi-nava-o de um lado o desejo de alargar as fronteiras do mundo conhecido, de outro a esperana de alcanar um ponto onde fene-cesse o poderio do Crescente. Talvez ahi reinasse Preste Joo, o lendrio imperador-sacerdote; de mos dadas realisariam a cruzada suprema contra os inimigos hereditrios da Christandade, j expulsos de quasi toda a Espanha, mais poderosos que nunca nas terras e mares orientaes.

    O decurso dos descobrimentos precisou as aspiraes con-fusas do principio. Nos ltimos annos do infante desenhou-se o problema da ndia, vaga expresso geographica applicada a todos os paizes distribudos da sahida do mar Vermelho ao reino de Cathay e ilha de Cypango. Os rios possantes do con-

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    tinente agora conhecido, como a franquearem vias de penetrao indefinida, a direco meridional da costa, como a encurtar as dis-tancias, os numerosos dizeres de prestigiosas cartas geographicas como a balisarem o percurso a fazer-se, suggeriam a possibilidade de l chegar por novo caminho; e novo caminho era urgente, pois si na Europa germano-latina continuava forte a procura de espe-ciarias, estofos, prolas finas, pedras preciosas, madeiras raras, de productos indianos, em Uma palavra, as potncias mussulmanas, assentes nas estradas histricas que vinham dar no Mediterrneo, cada dia augmentavam as exigncias e requintavam de insolencia, espoliando os intermedirios do commercio do Levante, e atormen-tando os consumidores occidentaes.

    A idia de chegar ndia atravessando a frica, depois de ligeiras tentativas, foi abandonada. Pensou-se lograr o mesmo resultado circumnavegando o continente negro. Contra este plano insurgia-se o veto de Ptolemeu, affirmando a ligao da sia e frica ao Sul, como no isthmo de Suez ao Norte, fechando por aquella parte o mar das ndias e transformando-o em mediterrneo. Mas ainda em dias de D. Henrique um cartographo italiano protestou contra as affirmaes categricas do astrnomo ale-xandrino, e o descobrimento de Cabo-Verde, o contacto directo com a zona torrida tinham comeado a emancipar os espritos, patenteando que o simples facto de proceder da antigidade no consagra inviolvel e intangvel qualquer proposio.

    Emquanto se concatenavam estas noes incertas formu-lou-se outra soluo do problema, j mencionada em escriptores gregos e latinos, e apoiada em autoridades sagradas e pagas. E' idntico, postulava, o oceano occidental da Europa e o oceano oriental da sia ; segundo as escripturas o espao occupado pelos mares representa apenas uma fraco mnima comparado terra firme, e como o nosso planeta espherico, o caminho lgico e mais breve para a ndia consiste em lanar-se impavidamente ao oceano, amarar-se tanto para o poente at chegar ao nascente. Tal viagem, alm de mais breve, seria mais commoda, pois ilhas esparsas pontuavam a derrota, algumas d'ellas tamanhas como a Antilha, representada nos portulanos mais fidedignos.

    Christovo Colombo apresentou tal plano como novo aos portuguezes, que no o acceitaram; menos experientes, os

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    espanhoes acolheram o nauta genovez e deram-lhe os meios de executal-o.

    Partindo em 1492, descobriu algumas ilhas e annos mais tarde o continente cobiado, o reino do gro Khan, segundo suppunha.

    Entre a morte de D. Henrique e o reinado de D. Affonso V (1460-1481) se no arrefeceu o movimento descobridor, prose-guiu com muito menor brilho : a elevao de D. Joo II ao throno deu-lhe vida e calor. Terminava a terra conhecida no cabo de Santa Catharina, 20 S.; com poucos annos avanou-se victoriosamente para o trpico ; em 1487 Bartholomeu Dias tornou com a noticia de ter alcanado o fim do continente africano. J de volta, no extremo Sul, quasi perdera-se junto a um cabo e por isso cha-mou-o das Tormentas. Das Tormentas, no! protestou o rei de Portugal; da Ba Esperana.

    Mais que esperana, sentia certeza agora de gosar breve do resultado de tantos esforos. E tanta confiana nutria D. Joo II de estar afinal achado o caminho da ndia que no procedeu a novas verificaes. Preparou-se com toda a calma, construindo na-vios aptos para os mares agitados do Oriente ; fundiu artilharia capaz de luctar contra os potentados indianos e os navios rabes ; emissrios seus visitaram o mar Vermelho, o golfo Prsico, a costa oriental da frica, a costa de Malabar, inquerindo, obser-vando, reunindo noticias frescas e fidedignas sobre o commercio, a navegao. Um d'elles, Pero de Covilh, esteve no reino de Preste Joo, originariamente procurado na sia central, encarnado agora no dynasta da Abessinia.

    D. Joo II nada confiou do acaso. A volta triumphal de Colombo em 1493 pouco influiu sobre os planos do rei. Si protes-tou contra a diviso do mundo promulgada por Alexandre VI, jul-gando postergados seus direitos ; si mandou alguma expedio clandestina ao Occidente, como parece verificado; bastaram o aspecto dos naturaes e sua barbrie Visvel, os productos recolhidos e os paizes descobertos, to differentes de tudo o que os seus emissrios vinham de apurar, para no lhe deixarem duvida de que a ndia pro-curada pelos portuguezes no se confundia com a ndia achada pelos espanhoes. Ao fallecer em 1495, o Principe Perfeito deixou ao seu successor, D. Manoel, o simples trabalho de saborear o fructo sazonado. Do mesmo modo Vasco da Gama apenas

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    continuou a senda dez annos antes aberta por Bartholomeu Dias

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    mui alto e redondo e "d outras serras mais baixas ao Sul d'elle, e de terra ch com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capito poz nome o monte Paschoal, escreve Pero Vazde Caminha, teste-munha de vista, escrivo da feitoria a fundar em Calecut. Ao sol posto surgiram em 23 braas, ancoragem limpa. O monte Paschoal, no estado da Bahia, visivel a mais de sessenta milhas do mar.

    Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuidadosamente, indo os navios menores adiante, sondando.

    A distancia de meia lgua, em direito boca de um rio, fundearam. Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da Gama, desembarcou e poude observar alguns naturaes, attrahidos pela curiosidade, dar e receber presentes.

    Um Sudoeste acompanhado de chuvaceiros mostrou a convenincia de procurar situao mais abrigada. Sexta-feira vele-jaram para o Norte, os navios maiores mais afastados, os navios menores mais chegados terra: ao por do sol, em distancia de dez lguas, encontraram um recife, abrigando um porto de larga entrada. Ao sabbado pela manh mandou o capito fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era muito larga e alta, de 6 e 7 braas, e entraram todalas naus dentro e ancoraram-se em 5 e 6 braas, a qual ancoragem dentro to grande e to fremosa e to segura que podem jazer dentro mais de duzentos navios e naus. O nome de Porto-Segur, dado pelo capito-mor, resume bem suas impresses: ainda o conserva uma localidade visinha.

    Em um ilho da bahia, construdo um altar, cantou-se missa domingo da Paschoela, 26. Frei Henrique pregou sobre o evan-gelho do dia. A resurreio do Salvador, as apparies mysteriosas aos discpulos, a incredulidade de Thom, o apstolo das ndias, diziam bem com a situao extranha. No fim da pregao o frade tratou da nossa vinda, e do achamento desta terra, confor-mando-se com o signal da cruz, sob cuja obedincia viemos. A bandeira de Christo com que capito-mor sahiu de Belm esteve sempre alta parte do Evangelho.

    Reuniram-se a bordo da capitanea os commandantes dos outros navios, e o capito-mor perguntou si conviria mandar a el-rei a nova do achamento da terra pelo navio de mantimentos, para S. A. a mandar descobrir. Concordaram que sim. Os dias seguintes passaram-se na baldeao dos gneros e na lavrana

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    de uma cruz para assignalar a posse tomada em nome da coroa de Portugal.

    A cruz foi chantada a i de Maio : a 2, partiram o navio mandado ao Reino e a poderosa frota para a ndia, deixando lacri-mosos dois degradados incumbidos de inquirirem da terra e irem aprendendo a lingua; alguns marujos desertaram, segundo parece.

    As seguintes palavras de Caminha representam as reflexes de um espirito superior ante esses dias e espectaculos extraordi-nrios :

    N'ella (terra) at agora no podemos saber que haja ouro, nem prata, nem nemuma cousa de metal, nem de ferro lho vimos ; pero a terra em si de muitos boos ares assi frios. e tem-perados como os d'antre Doiro e Minho, porque n'este tempo de agora assi os achvamos como os de l; guas so muitas infindas e em tal maneira graciosa que querendo a aproveitar dar-se-n'ella tudo por bem das guas que tem ; pero o melhor fruito que n'ella se pode fazer me parece que ser salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente, que Vossa Alteza em ella deve lanar, e que hi non houvesse mais ca ter aqui esta pousada pera esta navegao de Calecut abastaria, quanto mais disposio* para se n'ella cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, se. o acrescentamento de nossa santa f.

    A vantagem da situao geographica da nova terra para as navegaes da ndia, o modo de aproveital-a trazendo sementes do Reino, o problema do indgena, sua incorporao pelo chris-tianismo, ahi ficam definidos com toda a preciso.

    A armada do capito-mor fez-se rumo do cabo de Ba Es-perana, acompanhando a costa da terra nova por largo espao,. duas mil milhas, calculou um companheiro de expedio.

    O navio de mantimento seguiu para o Nordeste, natural-mente sem perder de vista a terra e talvez realisando desembarques.

    E' possivel mesmo haja encontrado Diego de Lepe ou algum outro viajante espanhol. O descobrimento dos Portugue-zes j figura no mappa de Jun de Ia Cosa, terminado em Ou-tubro de 1500.

    Em meiados do anno seguinte, partiu de Portugal uma ar-mada de trs navios a explorar a nova ilha da Cruz ouVera Cruz e encontrou-se em Beseguiche com Pedr'Alvares Cabral, j de volta

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    da ndia. Si o descobridor e os futuros exploradores permutaram impresses, deviam ter reconhecido a existncia no de ilha, mas de continente. Differentedos outros? As respostas no podiam sahir claras, pois o oceano Pacifico estava por descobrir. Duarte Pacheco, o heroe de Cambalo, companheiro de Cabral, alguns annos mais tarde ainda guardava a imagem tradicional do mundo: vastas massas de terra, interrompidas por mediterrneos, abertos em rumos diversos, semelhando lagoas enormes.

    A expedio exploradora depois de travessia tormentosa aportou ao littoral do Rio-Grande do Norte e procurou regies mais temperadas, dando nomes aos logares descobertos, tirados uns do calendrio S. Roque, S. Jeronymo, S. Francisco, bahia de Todos os Santos, cabo de S. Thom, angra dos Reis; tirados outros de impresses e accidentes de viagem rio Real, cabo Frio, bahia Formosa etc. Os exploradores, segundo parece, nunca per-deram de vista a serra do Mar. Durante muitos annos figurou nos mappas como ultimo ponto conhecido Cananor, que bem pde ser a actual Canana, em S. Paulo; calculou-se a extenso percorrida em duas mil e quinhentas milhas. Esta explorifo mais demorada confirmou em quasi tudo as palavras de Caminha. Apenas os naturaes appareceram nova luz, selvagens, rancorosos, sangui-nrios e anthropophagos, material mais prprio para escravatura do que pra a converso.

    Depois de voltar esta armada a coroa resolveu arrendar a terra por um triennio; os arrendatrios comprometteram-se a mandar annualmente seis navios a descobrir trezentas lguas e a fazer e sustentar uma fortaleza. Fundavam seus clculos no lucro produzido por escravos, por animaes curiosos e pelo pau brasil, de que os primeiros exploradores levariam algum carregamento, e tam-bm na vaga esperana de poderem chegar ndia por este caminho.

    Em 1503 veio de facto uma frota de seis embarcaes, redu-zidas logo metade pelo naufrgio da capitanea, junto ilha depois chamada Ferno de Noronha,, e pela defeco de Vespucci, de quem o continente deveria tomar o nome. Talvez algum dos navios restantes iniciasse a explorao do cabo de S. Roque procura do Equador. De certo nada se sabe; no mencionado trecho da costa escaparam ao esquecimento apenas alguns nomes como o de Joo de Lisboa, Joo Coelho, e Corso, desacompanhados

    3 Centro Industrial

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    de qualquer informao. A falta de portos, a difficuldade de nave-gao devida ao regime dos ventos, e a impresso de esterilidade colhida de bordo no provocavam a amiudar visitas n'aquella direco ; os dizeres dos mappas contemporneos ou raream ou apenas indicam passagens de largo.

    Em 1506 a terra do Brasil, arrendada a Ferno de Noronha e outros christos novos, produzia vinte mil quintaes de madeira vermelha, vendida a 21/3 e 3 ducados o quintal; cada quintal custava i/2ducado posto em Lisboa. Os arrendatrios pagavam quatro mil ducados coroa.

    Annos mais tarde, pensou-se em dar liberdade aos que qui-zessem vir tentar fortuna, pagando apenas um quinto dos gneros levados. A este regimen j obedeceu, talvez, a nau Bretoa, armada por Bartholomeu Marchioni, Benedicto Morelli, Ferno de Noronha e Francisco Martins, mandada a Cabo-Frio em comeo de 1511. Sobre ella existem documentos.

    Tinha a nau capito, escrivo, mestre e piloto, responsveis solidariamente pela execuo do regimento ; treze marinheiros, quatorze grumetes, quatro pagens, um dispenseiro. Nem ida nem volta podia tocar em qualquer porto intermedirio, salvo caso de falta de victualhas, temporaes ou desarranjo. Era permittido companha resgatar com facas, tesouras e outras ferramentas depois de estar completa a carga dos armadores da nau. Podia resgatar papagaios, gatos, e, com licena dos armadores, tambm escravos; vedado era o commercio de armas de guerra.

    A' chegada em terra a carga ficava entregue ao feitor; qualquer resgate dependia da autorisao d'este. Recommenda-va-se o maior cuidado em no fazerem mal ou damno aos indge-nas ; no levarem mais naturaes livres para o Reino, porque falle-cendo em viagem cuidavam os parentes terem sido comidos, como era seu costume; no deixarem-que da gente da nau algum se lanasse na terra ou nella ficasse, como alguns j fizeram, cousa muito odiosa ao trato e servio reaes.

    A nau Bretoa partiu do Tejo a 22 de Fevereiro; fundeou de 17 de Abril a 12 de Maio na bahia de Todos os Santos : em 26 de Maio chegou a Cabo-Frio, donde a 28 de Julho partiu para Portu-gal. Levou cinco mil toros de pau-brasil; vinte e dois tuins,

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    dezaseis sagis, dezaseis gatos, quinze papagaios, trs macacos, tudo avaliado em 24220 reis; quarenta peas de escravos, na maioria mulheres, avaliados ao preo mdio de 48: sobre todos estes semo-ventes arbitrou-se o quinto, ainda no Brasil.

    O nome do Brasil j era bem conhecido e figurava em portulanos anteriores s descobertas dos portuguezes : havia um nome procura de applicao, exactamente como o de An-tilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarisou, supplantando outras denominaes, como terra dos Papagaios, de Vera Cruz, ou Santa Cruz, si a abundncia de uma apreciada madeira de tinturaria at ento recebida por via do Levante, e o commercio sobre ella fundado desde o comeo, no collaborassem na propaganda, e talvez com maior efficacia.

    O pau brasil reconheceu-se logo n littoral de Parahyba e Pernambuco, nas cercanias do rio Real, do Cabo-Frio ao Rio de Janeiro ; naturalmente seriam logo estes os trechos mais fre-qentados destes primeiros portuguezes; em outros logares s mais tarde se descobriu.

    Para facilitar os carregamentos, estabeleceram-se feitorias, de preferencia em ilhas; deviam ser caiaras ou cercas, prprias apenas para guardarem os gneros de resgates; algumas sementes de alem-mar podiam ser plantadas roda, e soltos alguns animaes domsticos de fcil reproduco. Uma feitoria conservou-se no Rio durante alguns annos at ser destruda pelos naturaes, indignados com o proceder do feitor e companheiros; entre as plantaes abandonadas entraria a canna de assucar, encontrada por Ferno de Magalhes em 1519.

    No anno de 1513 uma armada de dois navios extendeu muito o horizonte geographico pela zona temperada. Devassou, se-gundo um contemporneo, seiscentas a setecentas lguas de terras novas ; encontrou na boca de um caudaloso rio diversos objectos mtallicos; teve noticia de serras nevadas ao Occidente ; julgou ter achado um estreito e o extremo meridional do continente. O capito, talvez Joo de Lisboa, levou para o reino um machado de prata, e este nome, apegado ao soberbo rio, ainda hoje proclama a primazia dos portuguezes ao Sul, como o das Amazonas per-petua a passagem dos espanhoes ao Norte.

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    Com a viagem d'estes navios, armados por D. Nuno> Manoel e Cristbal de Haro, coincidiu o descobrimento do mar do Sul ou Pacifico, por Vasco Nunes de Balboa.

    Os espanhoes apanharam a importncia d'estes successos, mandaram em 1515 procurar o estreito annunciado pelos portu-guezes, e incumbiram Joo Dias de Sols de ir pelo novo caminho s espaldas das terras de Castella de Ouro. Sols foi morto apenas desembarcou no rio da Prata; seus companheiros voltaram sem detena para o Reino. Em 1520 Ferno de Magalhes explo-rou o grande esturio meridional, procura do estreito cobiado-afinal descoberto mais para o Sul, e navegou pelo oceano Pacifica at alcanar as famosas Molucas, as ilhas das especiarias por excellencia.

    Assim se cumpriu o plano de Colombo: chegar ao Levante navegando sempre para o Occidente. Acompanharam Magalhes-em sua expedio incomparavel Joo Lopes de Carvalho, piloto da nau Bretoa, e um mamaluco, filho seu, havido de uma india do Rio de Janeiro.

    Pau brasil, papagaios, escravos, mestios condensam a obra das primeiras dcadas.

    Da parte das indias a mestiagem se explica pela ambio de terem filhos pertencentes a raa superior, pois segundo as idas entre ellas occorrentes s valia o parentesco pelo lado-paterno. Alm disso pouca resistncia deviam encontrar os millio-narios que possuam preciosidades fabulosas como anzoes, pentes, facas, tesouras, espelhos. Da parte dos aliengenas devia influir sobretudo a escassez, si no ausncia de mulheres de seu sangue E' facto observado em todas as migraes martimas, e sobrevive ainda depois do vapor, da rapidez e da segurana das travessias.~

    Estes primeiros colonos que ficaram no Brasil, degradados,, desertores, nufragos, subordinam-se a dois typos extremos : uns succumbiram ao meio, ao ponto de furar lbios e orelhas, matar os prisioneiros segundo os ritos, e cevar-se em sua carne ; outros insurgiram-se contra elle e impuzeram sua vontade, como o bacharel de Cananea, que se obrigou a fornecer quatrocentos escravos a Diogo Garcia, companheiro de Sols, um dos descobridores do Prata -

    Typo intermdio apresenta-nos Diogo Alvares, o Caramur, que habitou na Bahia de 1510 a 1557, data de seu fallecimento..

  • IV

    Primeiros conflictos

    Com a chegada dos portuguezes coincidiu, quasi, a dos rancezes, que comearam logo o mesmo commercio de resgate. Na vastido do littoral podiam ter passado annos sem se encontrar, mas o encontro era fatal, e no havia de ser amigvel.

    Portugal considerava a nova terra propriedade directa e exclusiva da* coroa, pelas concesses papaes, pelo tratado de limites concludo com a Espanha e pela prioridade do descobri-mento. O rei tirava porcentagem dos gneros levados para alm-mar; os armadores queriam auferir lucros de seus esforos e capites.

    A presena dos intrusos prejudicava-os a todos os respeitos: nos mercados europeus, offerecendo os gneros a preos mais vantajosos, pois no tinham quintos a deduzir, e levando-os directa-mente aos mercados consumidores, pois no eram obrigados a parar em Lisboa; nas terras brasilicas, conciliando as sympathias dos naturaes, que s agasalhariam com maior carinho, poupar-lhes-iam traies e aleives, dariam preferencia nos carregamentos e se habituariam s mercadorias francezas. Ainda por cima havia a questo de principio: Portugal no admittia que os filhos de outra nao puzessem o p em terras suas no alm-mar.

    Desde a Parahyba ao Norte at S. Vicente ao Sul, o littoral estava occupado por povos falando a mesma lingua, proce-dentes da mesma origem, tendo os mesmos costumes, porm profundamente divididos por dios inconciliveis em dois grupos; a si prprio um chamava Tupiniquim, e outro Tupinamb. A mi-grao dos Tupiniquins fora a mais antiga ; em diversos pontos os Tupinambs j os tinham repellido para o serto, como no Rio de Janeiro, na bahia de Todos os Santos, ao Norte de Pernambuco; em parte de S. Paulo, em Porto Seguro e Ilhos, nas proximidades de Olinda, na serra de Ibiapaba havia, entre-tanto, Tupiniquins habitadores do littoral.

  • 30

    Porque os Tupinambs se alliaram constantemente aos francezes e os portuguezes tiveram a seu favor os Tupiniquins, no consta da historia, mas o facto incontestvel e foi importante; durante annos ficou indeciso si o Brasil ficaria pertencendo aos Per (portuguezes) ou aos Mir (francezes).

    Ainda nos ltimos tempos de D. Manoel, comearam os pro-testos contra a presena dos Mair ; com a accesso de D. Joo III a situao aggravou-se Reconhecida a inutilidade de embaixadas corte de Frana, e de promessas compradas a peso de ouro e jamais cumpridas, o rei de Portugal resolveu desforar-se Uma armada de guarda-costa veio em 1527 ao Brasil commandad por Christovo Jaques, que j estivera antes na terra e deixara uma feitoria junto a Itamarac, de volta de uma expedio ao Prata. Desde Pernambuco at Bahia e talvez Rio de Janeiro, Christovo Jaques deu caa aos entrelopos; segundo testemunhos interes-sados, no conhecia limites sua selvageria, no lhe bastava a morte simples, precisava de torturas e entregava os prisioneiros aos anthropophagos para os devorarem. Mesmo assim ainda levou trezentos prisioneiros para o Reino. Devia ter causado um mal enorme aos francezes.

    As armadas de guarda-costa eram simples palliativos; s povoando a terra, cortar-se-ia o mal pela raiz. Christovo Jaques offereceu-se a trazer mil povoadores; offercimento semelhante fez Joo de Mello da Cmara, irmo do capito-mr da ilha de S. Miguel. Indignava-se este vendo que at ento a gente que vinha ao Brasii limitava-se a comer os alimentos da terra e tomar as indias por mancebas, e propoz trazer numerosas famlias, bois, cavallos, sementes etc.

    Preferiu-se a estas propostas praticas e rasoaveis apparelhar nova e mais poderosa armada, s ordens de Martim Affonso de Sousa, meio termo entre armada de guarda-costa e expedio povoadora. Apenas alcanou a costa de Pernambuco, em Janeiro de 31, comeou a faina de guarda-costa; em poucos dias foram to-madas trs naus francezas.

    Diogo Leite com duas caravelas foi mandado de Pernambuco para a costa de Este-Oeste, mais desconhecida ento que trinta annos antes, quando por ellas passara Vicente Yanez Pinzon. Com os outros navios, o capito-mr seguiu para o Sul. Demorou na

  • 31

    bahia de Todos os Santos, na de Guanabara, em Canana ; conti-nuava para o rio da Prata, e devia entrar em seus planos acompa-nhar-lhe o curso, pois desde a Europa trazia desarmados bergantins prprios para a explorao, quando a perda da capitanea fel-o arripiar caminho para o porto de S. Vicente. Aqui esperou o irmo, Pero Lopes, que em seu logar mandara s guas platinas.

    Desde 1514 chegaram Europa, levados pela armada de D. Nuno Manoel, os primeiros specimens de metaes preciosos, encontrados nas guas do grande rio. Alguns companheiros de Sols, escapos sanha dos ndios, e depois tolerados, confirmaram estes indcios vagos. Na costa dos Patos alguns delles falavam com enthusiasmo em taes riquezas.

    Taes noticias nos Patos ou no prprio rio, colheu-as Christovo Jaques, cerca de 1522, elevou-as ao Reino. Na feitoria de Itamarac ento fundada cursavam com tamanha insistncia que, em 1526, Se-bastio Cabot, ouvindo-as ao aportar em Pernambuco, decidiu logo navegar para Santa Catharina a ir tomar os nufragos de Sols e realisar o descobrimento dos metaes annunciados com tanta certeza e insistncia. Viera mandado para as Molucas, mas sabia que si trium-phasse ningum lhe lanaria em rosto o desvio, e tanto se capa-citou da realidade das minas que no hesitou em transgredir as instruces mais restrictas.

    Apesar do insuccesso final de Cabot, persistiu inabalvel a crena nos thesouros platinos; por isso quando, em Canana, Fran-cisco de Chaves, grande lingua do gentio, pediu gente para fazer uma entrada e prometteu voltar no fim de dez mezes com qua-trocentos escravos carregados de prata, Martim Affonso no conheceu hesitaes.

    A idia parecia pratica, pois dispensava de acompanhar o littoral at foz do Prata e subir por este alm da fortaleza fundada por Cabot para procurar o Occidente, onde taes thesouros existiam. O capito-mr deu quarenta besteiros e quarenta espin-gardeiros, que sob as ordens de Pero Lobo partiram a 1 de Setembro de 1531. Morreram s mos dos ndios, sabe-se vaga-mente. Pelo mesmo tempo, navegando o oceano Pacifico, Fran-cisco Pizarro alcanou por caminho mais directo as terras dos Incas, procuradas at ento pelo lado cisandino.

  • 32

    Depois da perda da capitanea passou Martim Affonso a tratar da segunda parte da sua misso: o povoamento da terra. Em S. Vicente fundou a primeira villa, beira-mar; algumas lguas para o interior, depois de transposta a serra do Mar, fundou segunda villa, na borda do campo de Piratininga, margem de um rio cujas guas fluiam para o Occidente Repartiu a gente nestas duas villas, escreveu Pero Lopes, e fez n'ellas officiaes, e poz tudo em boa obra de justia, de que a gente tomou muita consolao, com verem povoar villas e ter leis e sacrifcios e celebrar matrimnios e viverem em communi-cao das artes, e ser cada um senhor do seu e vestir as injurias particulares, e ter todos os outros bens da vida segura e conversavel.

    A situao geographica d'estas villas explica-se pela proxi-midade das famosas riquezas cobiadas, pela facilidade de fazer as entradas, dez mezes apenas para ir e voltar, garantia Fran-cisco de Chaves. Deslumbrado por taes vantagens, Martim Affonso esqueceu-se dos francezes ou julgou arredados os motivos para temel-os depois da campanha energicamente conduzida por Chris-tovo Jaques e por elle continuada com tanto xito e vigor.

    Diogo de Gouveia, portuguez residente em Frana, seguia desde muito o movimento dos negcios naquelle Reino e pensava de modo diverso. Em' cartas a el-rei dava-lhe noticias pouco tranquillisadoras, e instava por uma soluo real. A soluo era no uma villa afastada da zona freqentada, mas diversos povoados na regio appetecida do pau brasil. Quando l houver sete ou oito povoaes, conclua, estas sero bastantes para defenderem aos da terra que no vendam o brasil a ningum e no o vendendo as naus no ho de querer l ir para vir de vasio .

    Dir-se-ia que os francezes leram estas palavras previdentes. At ento contentavam-se com o simples resgate, quando muito alguma feitoria. Trataram agora de fundar uma fortaleza, artilhada e com guarnio numerosa. S assim considerou a corte lusitana com quanto trabalho se lanaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentado na terra e ter n'ella feitas algumas foras, como j em Pernambuco comeava a fazer .

    Estes factos foram conhecidos no Reino graas nau La P-Icrine, de Marselha, que, procedendo de Pernambuco aonde deixara

  • 33

    gente e artilharia, arribou a Malaga. Achava-se no porto uma ar-mada de Portugal, de 10 navios, destinados a Roma; D. Martinho, embaixador, informado da falta de mantimentos que obrigava a arribada, forneceu trinta quintaes de biscoutos aos francezes, e convidou-os a navegarem de conserva at Marselha. A cinco milhas de Malaga sobreveio calmaria ; a pretexto de concertar a derrota a seguir foram convidados o capito e o piloto de La Plerine para vir a bordo da capitanea portugueza e, logo, presos, tomado o navio e remettido para Lisboa.

    No foi mais feliz a fortaleza gallo-pernambucana. Pero Lopes, terminada a explorao do Prata, e ja de vjagem para a Europa, bombardeou-a durante dezoito dias, e obrigou-a a ren-der-se. Da guarnio parte foi enforcada; outra, transferida ao Reino, passou longos mezes de captiveiro nos calabouos do Algarve

  • v

    Capitanias hereditrias

    A tomadia de La Plerine, a feitoria franceza fundada em Pernambuco, noticias de preparativos para fundarem-se outras, espan-caram finalmente a inrcia real. Escrevendo a Martim Affonso de Sousa a 28 de Setembro de 32, annuncia-lhe el-rei a resoluo de demarcar a costa, de Pernambuco ao rio da Prata, e doal-a em capitanias de cincoenta lguas: a de Martim teria cem; seu irmo Pero Lopes seria um dos donatrios.

    A chegada do joven guerreiro victorioso em Pernambuco, mostrou mais uma vez a imminencia do perigo. Talvez a isto se devam certas medidas desde logo tomadas ou pelo menos discutidas: liberdade ampla de emigrar para o Brasil, preparo de uma armada de trs caravelas, cada uma com dez a doze condemnados morte, per farli dismontar injerra, azi habiano a domestigar quel paese, rispetto per non metter boni homini a pericolo, assegurava, a 16 de Julho de 33, o veneziano Pero

    'Caraldo, a quem devemos esta noticia. Tal armada veio effec-tivamente ?

    Sua vinda explicaria uma poro de pontos obscuros. Os documentos mais antigos da doao das capitanias

    datam de 1534. A demora entre o projecto e a execuo pde explicar-se

    pela vontade regia de esperar a volta de Martim Affonso, ou pela difficuldade de redigir as complicadas cartas de doaes e os foraes que as acompanham, ou, finalmente, pela falta de preten-dentes posse de terras incultas, imprprias para o commercio desde o comeo. Admira, at, como houve doze homens capazes de empresa to aleatria. A nem um dos membros da alta fidalguia tentou a perspectiva de semear povos.

    Os donatrios sahiram em geral da pequena nobreza, dentre pessoas praticas da ndia, afeitas ao viver largo da con-quista, porventura coactas nas malhas acochadas da pragmtica metropolitana. Muitos nunca vieram ao Brasil, ou desanimaram

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    com o primeiro revez. El-rei cedeu s pessoas a quem doou capi-tanias alguns dos direitos reaes, levado pelo desejo de dar vigor ao regimen agora organisado; muitas concesses fez tambm como administrador e gro mestre da Ordem de Christo.

    Em tudo agiu considerando quanto servio de Deus e meu e proveito dos meus reinos e senhorios, e dos naturaes e subditos d'elles ser a minha terra e costa do Brasil mais povoada do que at agora foi, assim para se n'ella haver de celebrar o culto e officios divinos, e se exaltar a nossa santa f catholica, com trazer e provocar a ella os naturaes da dita terra infiis e idolatras, como por o muito proveito que se seguir a meus reinos e senhorios, e aos naturaes e subditos d'elles de se a dita terra povoar e aproveitar.

    Os donatrios seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdico civil e criminal, com alada at cem mil reis na primeira, com alada no crime at morte natural para escravos, indios, pees e homens livres, para pessoas de mr qua-lidade at dez annos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia (se o herege fosse entregue pelo ecclesiastico), traio, sodomia, a alada iria at morte natural, qualquer que fosse a qua-lidade do ru, dando-se appellao ou aggravo somente si a pena no fosse capital.

    Os donatrios poderiam fundar villas, com termo, ju-risdico, insignias, ao longo das costas e rios navegveis; seriam senhores das ilhas adjacentes at distancia de dez lguas da costa; os ouvidores, os tabellies do publico e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatrios, que poderiam livremente dar terras de sesmarias, excepto prpria mulher ou ao filho herdeiro.

    Para os donatrios poderem sustentar seu estado e a lei de nobreza, eram-lhe concedidas dez lguas de terra ao longo da costa, de um a outro extremo da capitania, livres e isentas de qual-quer direito ou tributo excepto o dizimo, distribudas em quatro ou cinco lotes, de modo a intercalar-se entre um e outro pelo menos a distancia de duas lguas; a redizima ('/ da dizima) das rendas pertencentes coroa e ao mestrado; a vintena do pau brasil, (declarado monoplio real, como as especiarias) depois de forro de todas as despesas; a dizima do quinto pago coroa por. qual-quer sorte de pedraria, prolas, aljofares, ouro, prata, coral, cobre,

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    estanho, chumbo, ou outra qualquer espcie de metal; todas as moendas d'agua, marinhas de sal e quaesquer outros engenhos de qualquer qualidade, que na capitania e governana se viessem a fazer; as penses pagas pelos tabellies; o preo das passa-gens dos barcos nos rios que os pedissem; certo numero de es-cravos, que poderiam ser vendidos no reino, livres de todos os direitos; a redizima dos direitos pagos pelos gneros ex-portados etc.

    Os foraes asseguravam aos solarengos : sesmarias com a imposio nica do dizimo pago ao mestrado de Christo ; per-misso de explorai" as minas, salvo o quinto real; aproveitamento do pau brasil dentro do prprio paiz; liberdade de exportao para o reino, excepto de escravos, limitados a numero certo, e certas drogas defesas (pau brasil, especiarias, etc); direitos differen-ciaes que os protegeriam da concorrncia estrangeira; entrada livre de mantimentos, armas, artilharia, plvora, salitre, enxofre, chumbo e quaesquer cousas de munies de guerra; liberdade de communicao entre umas e outras capitanias do Brasil.

    Representantes do poder real s havia feitores, almoxarifes e escrives, incumbidos de arrecadar as rendas da coroa. Para varias capitanias existem nomeaes de um vigrio e vrios capel-les: sempre el-rei ao lado do gro-mestre de Christo.

    Nas terras dos donatrios no poderiam entrar em tempo algum corregedor, alada ou outras algumas justias reaes para exercer jurisdico, nem haveria direitos de siza, nem imposies, nem saboarias, nem imposto de sal.

    Em summa, convicto da necessidade d'esta organisao feudal, D. Joo III tratou menos de acautelar sua prpria auto-ridade que de armar os donatrios com poderes bastantes para arrostarem usurpaes possveis dos solarengos vindouros, anlogas s occorridas na historia portugueza da media idade. Ao ouvidor da capitania, com aco nova a dez lguas de sua assistncia e aggravo e appellao em toda ella, caberia o mesmo papel histrico dos juizes de fora no alm-mar.

    Para evitar luctas como as que grassaram entre a coroa ainda enfraquecida e os vassallos prepotentes, prohibiu-se de modo absoluto partir a capitania e governana, nem escambar, espedaar, nem de outro modo alienar, nem em casamento a filho

  • 38 f ou filha, nem a outra pessoa dar, nem para tirar pai ou filho ou outra alguma pessoa de captivo, porque minha inteno e vontade que a dita capitania e governana e cousas ao dito governador nesta doao dadas andem sempre juntas e se no partam nem alienem em tempo algum. As dez ou mais lguas de terras dadas aos donatrios, espaadas entre si e alienaveis em fateotas, corresponderiam aos reguengos lusitanos.

    A capitanias foram doze, embora divididas em maior nu-mero de lotes. Comeavam todas beira-mar, e proseguiam com a mesma largura inicial para o occidente, at a linha divisria das possesses portuguezas e espanholas accordada em Tordesilhas, linha no demarcada ento, nem demarcavel com os conheci-mentos do tempo. Tacitamente fixou-se o limite na costa de Santa Catharina ao Sul, e na costa do Maranho ao Norte. A testada littoranea agora dividida estendia-se assim por 735 lguas.

    No plano primitivo a demarcao devia ir de Pernambuco ao rio da Prata, meta de que afinal ficou cerca de 12 graus afastada; nelle no entrava a costa de Este-Oeste que, entretanto, foi demarcada. Para a ultima deciso possivel influissem as noticias de Diogo Leite, incumbido de explorar aquella zona. S po r con-sideraes internacionaes se poderia explicar a fixao tcita dos limites do Brasil em 28o 1/3. O rio da Prata fora descoberta portu-gueza ; mas os espanhoes j ahi .tinham estado bastante tempo, derramado sangue e arriscado empresas : a elles competia por todos os direitos, a comear pelo tratado de Tordesilhas.

    A diviso das donatrias ainda no foi descripta to con-cisa e geographicamente como nos seguintes termos de D'Avezac, o nico que conseguiu dar certa frma a esta matria essencial-mente refractaria :

    O limite extremo da mais meridional destas capitanias, concedida a Pedro Lopes de Sousa, determinado nas prprias cartas de doao por uma latitude expressa de 28o 1/3; con-frontava, um pouco ao Norte de Paranagu, com a de So Vicente, reservada a Martim Affonso de Sousa, e que se esten-dia do lado opposto at Macah, ao Norte de Cabo-Frio, desen-volvendo assim mais de cem lguas de costa, mas em duas partes que encravavam, desde S. Vicente at embocadura do Juquiri-

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    quer, a de Santo Amaro, de dez legoas, adjudicada a Pero Lopes, o irmo de Martim Affonso.

    Ao Norte dos domnios deste estava a capitania de So Thom, cujas trinta lguas iam expirar junto de Itapemirim; era o lote de Pero de Ges, irmo do celebre historiador Damio de Ges.

    Em seguida vinha a capitania do Espirito Santo, outor-gada a Vasco Fernandes Coutinho, cujo linde ulterior era mar-cado pelo Mucury, que a separava da capitania de Porto Seguro, attribuida a Pero de Campo Tourinho ; esta proseguia pelo espao de cincoenta lguas at dos Ilhos, obtida por Jorge de Figuei-redo Corra, igualmente de cincoenta lguas, cujo termo chegava rente Bahia.

    A capitania da Bahia, doada a Francisco Pereira Couti-nho, se extendia at o grande rio de S. Francisco; alm estava a de Pernambuco, adjudicada a Duarte Coelho, e que contava sessenta lguas at o rio Iguara, junto ao qual Pero Lopes pos-suia terceiro lote de trinta lguas, formando sua capitania de Itamarac at bahia da Traio.

    N'este logar comeava, para se extender sobre um lit-toral de cem lguas at angra dos Negros, a capitania do Rio-Grande, dada em commum ao grande historiador Joo de Barros e a seu associado Ayres da Cunha; da angra dos Negros ao rio da Cruz quarenta lguas de costas constituiam o lote concedido a Antnio Cardoso de Barros : do rio da Cruz ao cabo de Todos os Santos, vizinho do Maranho, eram adjudicadas setenta e cinco lguas ao vedor da fazenda Fernand'Alvares de Andrade : e alm vinha emfim a capitania do Maranho, formando segundo lote para a associao de Joo de Barros e Ayres da Cunha, com cincoenta lguas de extenso sobre o littoral, at a abra de Diogo Leite, isto , at cerca da embocadura do Turyass .

    Das setecentas e trinta e cinco lguas de littoral demar-cado para as capitanias podemos desde j apartar as duzentas e sessenta e cinco doadas a Joo de Barros, Fernand"Alvares, Ayres da Cunha e Antnio Cardoso de Barros. Os esforos para oc-cupal-as mangraram ; o povoamento fez-se mais tarde, com gente nascida ou estabelecida em outros pontos do Brasil: representam uma formac secundaria na historia ptria. Convm tambm

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    apartar as duzentas e trinta e cinco lguas demarcadas entre o extremo da capitania dos Ilhos na Bahia de Todos os Santos e o rio Curupac, e mais quarenta lguas de Canana para a terra de Sant'Anna. Aqui houve logo tentativas de povoamento : ainda hoje existem villas fundadas na quarta dcada do sculo XVI; mas os colonos tiveram pela frente a matta virgem, os rios enca-choeirados, as serranias invias, no souberam vencel-os e s im-pulsionaram a historia do Brasil quando os venceram. A primeira victoria decisiva foi ganha no rio de Janeiro, j no sculo XVIII, com o auxilio dos paulistas ; desde ento o Rio figura como factor cada vez mais importante. Outros pontos, como Victoria, Porto Seguro, Ilhos, esperaram ou esto esperando as vias frreas.

    Restam as cento e quarenta lguas extendidas da bahia da Traio de Todos os Santos, as cincoenta e cinco lguas inseridas entre o Curupac e Canana, em outros termos: a capi-tania de Duarte Coelho, parte da de Martim Affonso de Sousa, os troos da capitania de Pero Lopes de Sousa, que acompa-nharam a de Duarte Coelho ou a de Martim Affonso, e a capi-tania da Bahia depois da morte, do primitivo donatrio.

    A historia do Brasil no sculo XVI elaborou-se em trechos exguos de Itamarac, Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vi-cente, situados nestas cento e noventa e cinco lguas de littoral.

    Martim Affonso conservara-se na villa de S. Vicente espera da gente mandada s minas, que, segundo a tradio, trucidaram os Carijs do Iguau, quando tornava da sua arris-cada expedio. Uma carta regia trazida por Joo de Sousa infor-mou-o dos novos planos de colonisar, deixando-lhe ao arbitrio permanecer ou tornar para o Reino. Em comeo de 33 partiu para Portugal. Desde ento seus feitos pertenceram a outras partes do mundo.

    Em seu logar ficou governando no civil, concedendo sesma-rias, provendo officios, o padre Gonalo Monteiro, tambm vigrio. O governo das armas exerceram-no Pero de Ges e Ruy.Pinto. O primeiro quiz expulsar do Iguape alguns espanhoes que ali se refu-giaram, vindo do Paraguay. Surtiu-lhe mal o lance. Os espanhoes derrotaram a fora, aprisionaram o commandante, invadiram e saquearam So Vicente. Ou achasse meio de fugir, ou aos ini-migos bastasse o escarmento, j estava no velho mundo em

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    1536, como se conclue do foral de sua capitania datado de 26 de Fevereiro.

    Desde Bertioga at o Cabo-Frio continuavam implacveis os Tupinambs, combatendo e atacando por terra e por mar contra os Per, e a favor dos Mir. N'um dos combates succum-biu Ruy Pinto. Cunhambebe, truculento maioral tamoyo, guar-dava entre os outros tropheus o habito e a cruz de Christo d'este cavalleiro.

    Apparece-nos entre os primeiros povoadores Braz Cubas, joven criado de Martim Affonso que aportou aS. Vicente em 1540 governou mais de uma vez a terra, guerreou contra s Tamoyos, fortificou Bertioga, entrada preferida por estes inimigos, e fundou a villa de Santos, que possuia melhor porto e facilmente superou a primognita de Martim Affonso. Mais tarde empenhou-se na cata de minas, e consta haver achado algum ouro.

    A' roda d'estas villas fundaram engenhos, alm dos por-tuguezes, os flamengos Schetz ou Esquertes, como o pronunciava o povo, e os Dorias, genovezes. Diz-se at, porm no deve ser exacto, que d'esta procedem as cannas plantadas em outras capitanias. Taes engenhos, com as distancias e a raridade de communicaes, deviam ter desenvolvimento mediocre

    Da villa fundada em Piratininga conhecemos a mera exis-tncia ou pouco mais. A situao no descampado difficultava surpresas inimigas. O transito do Paraguay dava-lhe algum movimento. As cabanas de Joo Ramalho e dos mamalucos seus filhos e parentes, no outro lado da serra donde as guas j cor-riam para o Prata, apregoavam a victoria alcanada sobre a matta virgem do littoral, victoria obtida aqui mais cedo que em qualquer outra parte do Brasil, porque os colonos apenas continuaram a obra dos indgenas, j achando aberto por cima de Paranapiacaba e aproveitando a trilha dos Tupiniquins.

    Na capitania de Pernambuco, depois de estabelecido Igarau, Duarte Coelho passou algumas lguas mais ao Sul, e assentou a capital de seus domnios em Olinda. O porto de some-nos capacidade bastava s pequenas embarcaes. A visinhana dos Tabajaras (Tupiniquins) compensava as investidas constantes dos Potiguares (Tupinambs). A energia do donatrio continha a turbulncia dos colonos. Nas vrzeas surgiam cannaviaes e

    Centro Industrial 4

  • 4 2_

    engenhos; a lavoura de mantimentos aproveitou os altos : pau-brasil existia no littoral e no serto; e estando esta capitania, de todas a mais oriental, a menor distancia do Reino, aqui mais que alhures freqentavam os navios de alm-mar, e prosperava o commercio. Os mares piscosos traziam a fartura, e alentavam a costeagem; caraveles espantavam os francezes, que desde ento comearam a evitar aquellas para-gens. O nome de Nova Lusitnia dado pelo donatrio sua colnia, si por um lado figura esperanas de futuro, symbolisava por outro o orgulho da prpria obra. Nas armas concedidas por D. Joo III em 6 de Junho 1545 cinco castellos representavam os cinco centros de povoaes creadas por Duarte Coelho. Infe-lizmente conhecemos s Igarau, Olinda e, qui, Paratibe

    Da capitania de Itamarac foram recursos para a de Pernambuco, quando os Potiguares puzeram cerco em Iguarau e levaram-no aos ltimos apuros. Mais tarde as relaes estre-meceram. Queixa-se Duarte Coelho de desrespeitos constantes sua autoridade; de Itamarac teve de retirar-se um capito, por Duarte Coelho haver mandado dar-lhe uma cutilada: a pequena distancia gerou dissenses. Comtudo, os colonos de Pero Lopes tiveram a habilidade de conciliar os Tupinambs da serra, e como no avanaram pelo littoral para as terras do Parahyba, centro dos Potiguares amigos dos francezes, seu desenvolvimento correu pacifico e continuo por algum tempo.

    Largos recursos naturaes facilitavam a obra de Francisco Pereira Coutinho: bahia vasta como um mediterrneo, esteiros numerosos franqueando entrada a cada passo, correntes nume-rosas para moverem engenhos, mattas virgens ao lado de terrenos mal vestidos, onde o gado podia medrar lei da natureza, situao vantajosa no centro das outras capitanias.

    Faltava pau-brasil na visinhana, mas o afastamento dos francezes, d'ahi resultante, compensava bem a pobreza, e, no instigados pelos francezes, os Tupinambs mostrariam disposies menos malvolas. Porque no foi avante, com tudo isto, Francisco Pereira Coutinho?

    No soube dominar os elementos que importou, nem se impoz indiada das adjacncias. Taes apuros soffreu que pere< ceria sem os soccorros mandados dos Ilhos.

  • 43

    Mais tarde recolheu-se a Porto Seguro, cansado e velho, pouco disposto a continuar; mas os nimos serenaram na Bahia, e tornava esperanado, quando foi morto ao desembarcar. Nas luctas com os ndios mandara matar um dos cabecilhas: prisio-neiro agora, foi ritualmente sacrificado por um irmo do finado, de cinco annos, to pequeno que foi preciso segurarem-lhe a massa do sacrifcio, segundo tradio conservada num escripto jesuitico.

  • VI

    Capitanias da Coroa

    A morte de Francisco Pereira apenas se divulgou no Reino, devia convidar os polticos a meditar sobre o systema de colonisa-o vigente.

    Sem duvida satisfazia a alguns dos primitivos intuitos que o inspiraram. As fortalezas espalhadas pelo littoral estorvavam, si no supprimiam de todo, o trato entre os indgenas e os entre-lopos. Os francezes, expulsos de Pernambuco, procuravam outros pontos, e delles seria possvel excluil-os com o tempo. Iam nas-cendo filhos de portuguezes, a populao crescia com a mesti-agem, regularisava-se a produco e o commercio.

    Mas um vicio constitucional minava o organismo. Os dona-trios entravam para a empresa com recursos prprios ou em-prestados : si os primeiros tempos corriam bem, a remunerao natural permittia-lhes continuarem com mais efficacia; no caso con-trario perdia-se todo o esforo, como succedra a Pero de Ges, a Francisco Pereira, a Antnio Cardoso, a Joo de Barros, a Ayres da Cunha, a Fernand'Alvares; ou as capitanias vegetavam mofinas como, as dos Ilhos, Porto Seguro, Espirito Santo, Santo Amaro e So Vicente.

    Accrescia que, sendo iguaes os poderes dos donatrios, es-tando as capitanias na condio de estados estrangeiros umas re-lativamente s outras, impossibilitava-se qualquer aco collectiva : os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia como unco normal. As cartas de Duarte Coelho illustram de modo pungente esta anarchia lastimosa. E a anarchia intercapitanial conjugava-se com a anarchia intestina. Autoridades e mais auto-ridades, leis claras, prescripes restrictivas havia: qual o meio de pol-as em actividade e dar-lhes fora? Como immobilisariam os donatrios em funces de governo recursos que no sobejavam para misteres econmicos ?

    O remdio preferido por D. Joo III consistiu em tomar posse da capitania deixada devoluta pela morte de Coutinho, com os

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    recursos da coroa estabelecer uma organisao mais vigorosa*, crear um governo geral, forte bastante para garantir a ordem interna e estabelecer a concrdia entre os diversos centros de populao.

    Rasgaram-se assim doaes e foraes, onde s estavam pre-vistos conflictos entre solarengos e senhores hereditrios, e s se fitava equiparar a situao d'estes dos reis contra os pode-rosos vassallos medievaes. Os poucos protestos dos interessados passaram desattendidos, e em 1549, sem abolir de todo o systema feudal, instituiu-se novo regimen.

    Constava de um capito-mr, incumbido da administrao civil e militar, de um provedor-mr, encarregado dos negcios da fazenda, de um ouvidor-mr chefe da justia. Exerciam a auto-ridade primariamente na Bahia; nas outras capitanias tinham dele-gados ; quando iam a qualquer d'ellas, competia-lhes conhecer de aco nova; na ausncia agiam s por meio de recursos. Nume-rosos, excessivos officiaes distribuiam-se por estes trs ministrios ou desfructavam magras sinecuras.

    Acompanhado por quatrocentos soldados, seiscentos degra-dados, muitos mecnicos pagos pelo errio, partiu de Lisboa em Fe-vereiro o primeiro governador, Thom de Sousa, com Pero Borges, ouvidor geral, Antnio Cardoso de Barros, procurador mr da fazenda, e aportou bahia de Todos os Santos em fins de Maro de 1549.

    Saltando em terra tratou logo de escolher local apropriado para a cidade que vinha fundar, de fortalecel-a contra os ataques da gente de terra e construir os edifcios mais urgentes.

    A gente ia desembarcando medida que se preparavam as accommodaes. Caraveles mandados a diversos pontos da costa, em constante escambo com os naturaes, traziam algum mantimento. O peixe abundante variava os gneros conservados ou, mais provavelmente, avariados, procedentes de Portugal. De Cabo-Verde veio algum gado, para cuja propagao o terreno provou admiravelmente Os pagamentos faziam-se em gneros, principalmente ferramentas e avellorios, que depois os int