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O ESSENCIALISMO DE ISMAEL NERY
Bernardo Guadalupe S. L. Brando
Bacharel em Grego Antigo e Lngua Portuguesa pela FALE- UFMG.
Mestre em Filosofia pela FAFICH-UFMG.
Professor de Filosofia na PUC-MG/Betim.
1. Introduo
A arte de Ismael Nery, diz-nos Jorge Burlamaqui, no s uma percepo da
vida pelos sentidos. A grande produo artstica deixada por Ismael obedece a um
conjunto filosfico gerado de um pensamento constantemente preocupado com o
absoluto, o essencial e com a unidade1. Esse conjunto filosfico foi batizado por
Murilo Mendes de essencialismo.
A influncia do essencialismo se estendeu para alm da pintura e poesia de Ismael
Nery. Em mais de uma ocasio, Murilo Mendes reconheceu a base essencialista de alguns
de seus poemas2. Alm disso, percebe-se o uso dessa filosofia no prefcio do romance A
Imaginria de Adalgisa Nery, bem como em alguns poemas de Jorge de Lima publicados
no livro A Tnica Inconstil, notadamente o clebre Poema do Cristo.
Mas, no que consiste o essencialismo? Eis algo que no fcil responder. Ismael
no nos deixou nada substancial escrito sobre o tema: tudo o que temos uma pequena
nota sobre a aplicao da filosofia arte e formao do artista, que foi publicada em
1935 no Boletim de Ariel, e algumas linhas perdidas nas Recordaes de Ismael Nery.
que ele nunca se preocupou em divulgar seu pensamento. Dizia que se suas idias eram
verdadeiras, haveriam de se transmitir na sucesso das idades, no importando que
aparecessem com o nome dele ou de outro3.
1 BURLAMAQUI, J. Ismael Nery Essencialista. Dirio de Notcias, 13 de maio de 1934. 2 A esse respeito, conferir as Recordaes de Ismael Nery (So Paulo: EDUSP, 1996, p. 30) escritas por Murilo Mendes, bem como o artigo Ismael Nery, Poeta Essencialista, publicado no Boletim de Ariel em 1934. 3 Recordaes, p. 35.
Assim, a nossa principal fonte so os textos escritos por Jorge Burlamaqui e pelo
prprio Murilo Mendes, aos quais Ismael de preferncia expunha as suas idias4. Os
principais documentos para o estudo do essencialismo so, desse modo, Ismael Nery
Essencialista e A Abstrao do Espao e do Tempo5, de Burlamaqui, bem como Ismael
Nery, Poeta Essencialista, as Notas e Comentrios aos poemas de Ismael Nery6 e as
Recordaes, de Murilo Mendes.
Nas Recordaes, Murilo sintetiza a filosofia essencialista do seguinte modo:
Ismael tinha apenas 25 ou 26 anos de idade, e j os seus prximos sabiam que havia construdo um
sistema filosfico muito original, apesar de o no escrever. Era o essencialismo, baseado na
abstrao do tempo e do espao, na seleo e cultivo dos elementos essenciais existncia, na
reduo do tempo unidade, na evoluo sobre si mesmo para a descoberta do prprio essencial,
na representao das noes permanentes que daro arte a universalidade. J se v que ele no
improvisou um tal sistema. Suas razes vinham de longe: embora muito pouco dado a leituras, era
Ismael extremamente curioso de todas as experincias humanas, passando sempre em revista as
teorias mais diversas. Sua vida e as poucas notas que deixou provam que Ismael Nery viveu seu
sistema, julgado por ele prprio uma introduo ao catolicismo7.
A relao da filosofia essencialista com o catolicismo deve ser notada. Murilo
Mendes nos conta que, nos anos 20 e 30, os intelectuais brasileiros eram, na sua grande
maioria, avessos religio: o catolicismo era sinnimo de obscurantismo, servindo s
para base de reao. No era possvel, sobretudo a uma pessoa de bom gosto, ser
catlica8. Mas, apesar de imerso nesse meio intelectual, Ismael Nery era um catlico
fervoroso9. Sabendo da indisposio existente na poca contra as idias de sua religio,
4 MENDES, M. Recordaes de Ismael Nery, p. 37: Expunha o sistema essencialista de preferncia aos dois amigos que maior interesse lhe dedicavam Jorge Burlamaqui e eu. Burlamaqui era muito dotado para a filosofia; e, por uma natural disposio de esprito, aumentada pela sua quase qualidade de professor, assimilava rapidamente as idias, que condensava em frmulas sintticas e felizes. 5 Publicado na revista A Ordem em 1935. 6 Tambm publicados nos nmeros da revista A Ordem de 1935. 7 Recordaes., p. 65. 8 ibid., p. 24. Deve-se lembrar o papel fundamental que Ismael teve na converso de Murilo Mendes ao catolicismo. Na verdade, percebe-se a partir dos anos 30 uma reao catlica no Brasil atravs de revistas como A Ordem e de intelectuais como Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, pe. Leonel Franca e de escritores como o prprio Murilo Mendes, Jorge de Lima, etc. 9 Ibid., p. 28: Era, portanto, possvel ser em 1930 grande artista, homem moderno e catlico romano de confisso e comunho freqente. Assim foi Ismael Nery.
Ismael resolveu apresentar algumas delas de um modo laico, buscando fundament-las
racionalmente. Eis uma nota sua sobre o assunto, citada nas Recordaes:
A grande e nica tragdia consiste no desvirtuamento do objetivo do homem: eis por que sou
catlico. No catolicismo aprendo a priori o que verifiquei no curso da vida. A vida construtiva e
o homem desvirtuado precisa demolir. Eis por que criei o essencialismo, que no passa de um
mtodo para ajudar o homem a ser homem. Ele sendo homem ser catlico: atingindo a justia
ser santo, desejo mximo de Deus e interesse mximo do homem10.
No se deve, no entanto, pensar a partir dessas consideraes que o essencialismo
seja uma mera repetio de dogmas religiosos. Como escreveu Murilo Mendes:
O essencialismo uma teoria filosfica e artstica criada por Ismael Nery sobre bases catlicas.
Ismael imprimiu-lhe o carter da sua fortssima personalidade, sujeitando-a, porm, aos eternos
princpios do catolicismo.11
De acordo com Jorge Burlamaqui, o essencialismo podia ser dividido em trs
campos: o filosfico, o moral e o artstico. Na verdade, o mtodo filosfico do
essencialismo, baseado na abstrao do espao e do tempo, fundamentava as idias
morais e artsticas de Ismael Nery. esse mtodo que dava unidade ao conjunto da
filosofia essencialista. No entanto, se de acordo com o prprio Nery, o essencialismo
tinha como objetivo ajudar o homem a ser homem, era o campo moral a principal
aplicao essencialista. Por sua vez, foi na arte que a filosofia de Ismael atingiu seus mais
duradouros resultados, ao se concretizar na sua produo artstica, bem como na de
alguns de seus amigos.
2. A Filosofia Essencialista e a Abstrao do Espao e do Tempo
Segundo Burlamaqui, a base filosfica do essencialismo a noo de unidade12.
Para ser mais preciso, o fundamento da filosofia de Ismael Nery a descoberta do
10 ibid., p. 84. 11 MENDES, M. Notas e comentrios aos poemas de Ismael Nery. 12 BURLAMAQUI, Ismael Nery Essencialista.
essencial, do absoluto e da unidade em meio a todo o conjunto de coisas e fatos
existentes. Para Ismael, todas as coisas estavam inter-relacionadas, mesmo que separadas
pelas horas e pela distncia. Desse modo, para que o conhecimento pudesse ser realizado
de uma forma plena, era necessrio um mtodo que deixasse claras tais relaes.
Aqui, afirma Murilo, tocamos o ponto central da doutrina de Ismael Nery: de
fato, o sistema essencialista baseado na abstrao do espao e do tempo13: no mtodo
essencialista, todas as coisas devem ser consideradas estaticamente, no espao, e
dinamicamente, no tempo. A este respeito, Jorge Burlamaqui escreve no seu j citado
artigo A Abstrao do Espao e do Tempo: a observao de todos os campos de ao do
homem ensina que um fato deve ser observado estaticamente no espao justo e
dinamicamente, no tempo justo.
O conhecimento ser imperfeito se o objeto ou fenmeno investigado for
considerado apenas em um ponto do tempo:
Um homem que se estudar em um momento, no se conhecer. Um homem que estudar uma
poca de um pas, no conhecer a evoluo do progresso neste pas. Os momentos e as pocas
no so estanques, so ligadas aos momentos e s pocas passadas.
Quanto ao espao, define Burlamaqui:
As observaes dentro do espao so imperfeitas todas as vezes que houver distncias excessivas
ou falta de distncias entre o observador e o fato: a falta de aproximao ou aproximao
exagerada do objeto prejudicam a observao, dando lugar a perspectivas erradas e a
conhecimentos imperfeitos.
No essencialismo, o espao e o tempo justos para a investigao so obtidos
atravs de um processo denominado abstrao do espao e do tempo. Abstrao uma
palavra que vem do verbo latino abstraho, que significa retirar, separar. Designa
comumente um processo utilizado na filosofia, na psicologia e na arte, no qual o objeto
13 MENDES, Recordaes, p. 47.
de reflexo isolado de uma srie de fatores que comumente lhe esto relacionados na
realidade concreta14.
Os fenmenos e objetos do universo existem em um determinado ponto no espao
e momento no tempo. A abstrao essencialista retira-os destas limitaes, colocando em
um mesmo plano os diversos momentos de sua histria e suas relaes no espao.
Por meio desse processo, o essencialista consegue se manter na vida como se
fosse o centro dela, podendo assim ter sempre a perfeita relao das idias e dos
fatos15. Dessa forma, possvel perceber a unidade de todas as coisas e eliminar, pelos
clculos do esprito, todas as superfluidades provenientes da pluralidade dos fatos,
reduzindo tudo ao permanente e ao essencial16.
3. A Moral Essencialista
Em Ismael Nery Essencialista, Jorge Burlamaqui diz que, em moral, a tcnica
essencialista auxiliar da tcnica catlica para o conhecimento do Eu. Baseada na
evoluo sobre si mesmo, uma prpria descoberta para a eliminar os suprfluos em
benefcio do essencial. Burlamaqui ainda nos conta que Nery definia o essencial como
sendo, unicamente, os elementos e princpios necessrios vida.
Bem se v, a partir da, que a moral do essencialismo no era um conjunto de
preceitos e regras prontas: o essencialista no busca aprender sobre a vida nos livros, mas
a partir de suas prprias descobertas17. Na verdade, nota Burlamaqui, o estudo das
mincias humanas feitas por Ismael uma dissecao da personalidade que lembra uma
mistura de Freud e Proust.
Murilo Mendes explica melhor as idias morais do essencialismo em seu resumo
tirado de notas deixadas pelo prprio Ismael18. O homem, segundo a filosofia
essencialista, possui um fim objetivo para o qual ele tende naturalmente:
14 HOUAISS, A. & VILLAR, M., 2001, p. 32. 15 MENDES, Recordaes, p. 52. 16 MENDES, M. O Grande Catlico Ismael Nery. 17 BURLAMAQUI, Ismael Nery Essencialista. 18 Recordaes, p. 53. Esse resumo, publicado inicialmente na Ordem, sob o nome de Notas e comentrios aos poemas de Ismael Nery, reapareceu como a quinta das Recordaes de Ismael Nery.
A vida essencialmente dinmica; ao nascer, partimos logo para a morte, na qual devemos chegar
tendo adquirido no percurso todos os elementos que nos faam aceit-la to naturalmente como
aceitamos todas as transformaes que nos so impostas pelo tempo.19
De acordo com a mentalidade de cada um, estabelece-se um grau diferente de
dinamismo20 para alcanar esse objetivo. Quando esse dinamismo perturbado, surge
um certo desequilbrio. Para o essencialismo, a cincia da vida consiste justamente na
conscincia de que cada um deve se criar para perceber o desequilbrio21 e na
inteligncia de o repor. Quando existe o equilbrio e a vida interior e exterior esto em
harmonia, o homem se torna feliz. E, para o essencialista, a felicidade o nico estado
em que o homem poder comear a compreender as coisas transcendentes22. Alm disso,
o equilbrio buscado no pode se restringir apenas ao indivduo, mas tambm necessrio
uma conscincia social: o nosso equilbrio deve tambm produzir equilbrio para que
haja um equilbrio total na nossa vida, em colaborao com a humanidade.
Segundo Ismael Nery, a conscincia do desequilbrio e a inteligncia para o repor
eram adquiridas atravs da abstrao do espao e do tempo aplicados prpria vida: isso
a evoluo de si mesmo. Em A Abstrao do Espao e do Tempo, Burlamaqui mostra
como esse procedimento pode ser aplicado moral. Na filosofia essencialista, os
imperativos de conservao da vida23 nunca so contra a moral. Esta s repele as
necessidades suprfluas da vida sensitiva24. No entanto, em um espao e tempo restritos,
o suprfluo pode parecer imperativo. Alm disso, suas conseqncias funestas, por
exemplo, a transformao negativa no carter que sua escolha acarreta, parecem ser to
distante que nem ao menos so percebidas.
Quando o espao e o tempo so abstrados, e todos os momentos e relaes de um
indivduo so simultaneamente considerados, possvel perceber com clareza aquilo que
suprfluo e o seu prejuzo:
19 Ibid., p. 48. 20 Ibid. 21 Ibid. 22 Ibid., p. 52 23 BURLAMAQUI, A Abstrao do Espao e do Tempo. 24 Ibid.
Assim, as vises de irresistvel diante de uma mulher ou diante de uma fortuna a roubar, so produtos de julgamento de um espao restrito, porque s o bem indispensvel para a vida
irresistvel, pois a o instinto de conservao o exigir. Acontece, porm, que todo o homem sabe
que o valor de uma mulher ou do prazer e uma fortuna varia no espao e no tempo.25
O essencialista, desse modo, descobre qual deve ser a conduta distinguindo, a
partir da abstrao do espao e do tempo aplicados sua vida, o que essencial daquilo
que dispensvel. Ainda para a filosofia essencialista, a repulsa sinal de erro: ora, ser
em um dado momento indispensvel ou somente indiferente, toda atrao que no causar
nenhuma repulsa moral por mnima que seja.
A abstrao do espao e do tempo aplicados vida: nisso consiste a evoluo
sobre o eu. Podemos ter uma idia de como ela era praticada no poema Mapa26 de Murilo
Mendes:
Estou com os meus antepassados, me balano em arenas espanholas,
por isso que saio s vezes pra rua combatendo personagens imaginrios
depois estou com os meus tios doidos, s gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassis no jardim.
estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populaes...
me desespero porque no posso estar presente a todos os atos da vida.
Percebe-se nessa passagem como alguns dos momentos importantes para a sua
existncia, inclusive aquelas coisas que aconteceram com seus antepassados, antes de seu
nascimento, ou as coisas que acontecero por sua influncia, so colocados em um
mesmo plano.
Com relao moral essencialista, deve-se notar tambm que, para Ismael, a
encarnao de Cristo era a irrupo da eternidade no tempo27. Assim, a conduta de
Jesus era, por excelncia, o modelo de vida essencial: o valor permanente e definitivo,
valor que o tempo no ataca, o trazido pelo Cristo. Eis a ponte entre o essencialismo e
o catolicismo.
25 Ibid. 26 MENDES, 1994, p. 116. 27 Recordaes., p. 43.
Ismael divida a vida do homem em cinco perodos: infncia, puberdade,
mocidade, madureza e velhice. Apenas da terceira para a quarta fase era possvel a
autodeterminao: os outros perodos eram apenas construtivos e determinados pela
hereditariedade. Alm disso, segundo ele, a vida da humanidade possui as mesmas
caractersticas da vida de um homem28 e deve comear agora a entrar no perodo de
seleo dos elementos adquiridos na infncia e na mocidade.
Para o essencialismo, tudo o que aconteceu durante a histria tem o seu valor e
utilidade, nem que seja apenas como experincia. No entanto, na fase atual da
humanidade, j necessrio selecionar e ordenar as experincias: o homem essencialista
portanto o homem que, tendo esgotado as experincias que a vida oferece, procura
extrair uma filosofia funda nos resultados de suas selees.
4. A Arte Essencialista
De acordo com Nery, o artista contemporneo no podia ser mais um simples
cultor de temperamento29. Ao mesmo tempo, tambm no poderia ser um mero
reprodutor da natureza: seu papel fundamental era ser um estabelecedor de relaes30.
O artista essencialista deveria ser um ser harmnico, sbio e vidente31 que aplicaria
abstrao do espao e do tempo primeiramente sua vida e, em seguida, sua arte,
buscando relaes que, de outra forma, permaneceriam desapercebidas.
A aplicao imediata do essencialismo arte foi feita atravs da pintura. Ismael
acreditava que a pintura estava em crise com o advento do cinema, que podia reproduzir a
vida sensvel32 de um modo muito mais adequado. Competia pintura achar o seu
campo exclusivo, se quisesse sobreviver. E, para Ismael, esse campo era a representao
das idias permanentes realizadas pela abstrao essencialista. por isso que
encontramos freqentemente nos seus quadros e desenhos figuras humanas reduzidas aos
seus traos essenciais.
28 Ibid., p.52 29 Ismael Nery, Arte e Artista. 30 Ibid. 31 Recordaes, p. 22. 32 Ismael Nery Essencialista.
A aplicao do essencialismo pintura, no entanto, no se restringe s idias
permanentes. A abstrao do espao e do tempo foi utilizada dos mais diferentes modos
por Ismael em suas criaes. No Auto-retrato, por exemplo, quadro seu que em 1972
atingiu em um leilo o maior preo pago at ento no Brasil, encontramos a sua figura
com o Po de Acar de um lado e a Torre Eiffel de outro. Nesse contexto, os cartes-
postais do Rio de Janeiro e de Paris so smbolos de momentos diferentes de sua vida,
colocados em um mesmo plano.
Nos trabalhos de sua fase surrealista, possvel perceber uma interessante
aplicao no ser humano da abstrao essencialista. O homem um composto por
diversos elementos: possui uma aparncia externa, mas tambm uma configurao
interna -veias, rgos, ossos, etc. e elementos morais (ou espirituais, mentais,
psicolgicos). Geralmente, pensamos em cada um desses elementos de cada vez, mas
assim, obtemos uma imagem fragmentria do homem. Com a abstrao, tudo colocado
em um mesmo plano, possibilitando uma viso integral.
O quadro Desejo de Amor (1932) um bom exemplo de uma srie de obras de
Ismael em que a forma exterior aparece misturada com estruturas interiores. Deve-se
notar que, neste quadro, Ismael aplica a abstrao do espao de tal forma a no apenas
colocar no mesmo plano os elementos materiais externos e internos do corpo humano,
mas tambm seus elementos morais: o desejo amoroso da figura colocada em primeiro
plano representado no alto esquerda, onde temos o desenho de um casal que inicia
um enlace de amor.33
Apesar de ser mais conhecido como pintor, Ismael Nery tambm se interessou
pela poesia. Murilo Mendes nos conta que punha mesmo a sua qualidade de poeta acima
da de filsofo e muito acima da de pintor34. Ismael, diz-nos ainda Murilo, era poeta
contumaz, e ningum conheci mais poeta que ele35. que, para ele, a poesia no
consistia no cultivo dos estados de alma, nem na contemplao das formas exteriores,
nem em divagaes abstratas, mas era a antecipao de um estado sobrenatural que o
33 BENTO, A. Ismael Nery. So Paulo: Brunner, 1973, p. 154. 34 MENDES, 1996, p. 29. 35 Ibid.
homem s atinge depois de passar por todas as experincias da sensibilidade e da
inteligncia36: uma experincia essencialista.
Em Ismael Nery Poeta Essencialista, artigo dedicado teoria da poesia segundo
Ismael Nery, Murilo Mendes sintetizava a equao da poesia do amigo: sensibilidade
micromtrica mais viso intemporal dos acontecimentos. Para Ismael Nery, era
necessrio a organizar a matria potica obtida atravs dos sentidos pelo mtodo
essencialista, que no apenas possibilitaria a contemplao da totalidade, mas tambm a
realizao da vida essencial, na qual o repulsivo moral e o suprfluo seriam
eliminados. Dessa forma, acreditava que, melhor que escrever poesia, era pratic-la. A
vida de Ismael Nery o maior monumento de sua poesia.37
por isso que passou a escrever poemas apenas nos ltimos anos de vida, a partir
de 1931. Antes disso, quando interpelado por Murilo Mendes a respeito da possibilidade
de escrever poesia, dizia que no desejava ser poeta oficial.38 Em alguns desses
poemas, encontramos uma ntida influncia do essencialismo. Esse , por exemplo, o
caso do Poema Post-Essencialista (1931). Feito em prosa, a primeira criao potica de
Ismael que chegou at ns. Apresenta uma clara aplicao do mtodo essencialista. A
abstrao do espao empregada j nas primeiras frases:
O silncio provocou-me uma necessidade irreprimvel de correr. Abalei como uma flecha atravs
dos mares e montanhas com incrvel facilidade e sem cansao.
A abstrao do tempo usada a partir do segundo pargrafo: o poeta contempla a
Terra em seu incio onde o nico ser vivo que existe o poeta essencialista - e seu
desenvolvimento:
...No h lees nem elefantes nos desertos da frica. No existem pirmides nem a Torre Eiffel.
Existe apenas eu mesmo, que me percebo inversamente por uma idia que chamo mulher e que
paira rarefeita sobre a superfcie do globo idia incompreensvel porque nada existe na terra
alm de mim mesmo. Volto a percorrer novamente o espao, porm, desta vez, com a lentido do
36 MENDES, 1934. 37 Ibid. 38 MENDES, 1996, p. 29.
crescimento das plantas, multiplicando-se progressivamente na minha idia para mostrar-me a
mim mesmo...
Em seguida, o poeta volta ao presente. A viagem pela da histria do mundo feita
com a abstrao do espao e do tempo traz uma nova lucidez e um aumento da
sensibilidade. Esse , alis, a razo para o presente emprego do mtodo essencialista:
...Aparecem lees e elefantes nos desertos da frica. Construram pirmides no Egito e levantaram
a Torre Eiffel, em Paris, no ano em que um outro eu nascia em Belm do Par. Tudo se povoou
transbordantemente. Acho-me agora sentado na priso, olhando sereno atravs das grades,
aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo na minha me,
mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada...
O poema termina com uma premissa bsica para a aplicao do mtodo
essencialista: deve o essencialista procurar manter-se na vida sempre como se fosse o
centro dela, para que possa ter sempre a perfeita relao entre as idias e fatos: 39
Nada existe, alm de mim mesmo, seno para mim.
Silncio.
Algumas das criaes de Murilo Mendes tambm so fundamentadas nos
procedimentos essencialistas:
Conforme escrevi na poca de seu falecimento, em artigo para o Boletim de Ariel, tambm o poeta
Murilo Mendes muito deve ao grande amigo. De fato, uma parte do meu primeiro livro, a que
chamei, salvo engano, Poemas sem Tempo (no tenho o volume mo), bem como diversas peas
de O Visionrio, nasceram das contnuas conversas de Ismael sobre sucesso, analogia e
interpenetrao de formas.
39 MENDES, 1996, p. 52.
Murilo usa a abstrao, por exemplo, no poema Biografia do Msico40, que
narrando os momentos essenciais da vida de um msico, do seu nascimento sua entrada,
no cu, coloca esses acontecimentos em um mesmo plano. Eis um trecho elucidativo:
O guri nasceu no morro aniquilado de sambas
bebeu leite condensado
soltou papagaio de tarde
... mais um astro que desponta no horizonte da arte nacional
botou sapato camuflagem terno de xadrez
casou com a filha do vendeiro da esquina...
...chegando no cu os anjinhos de cala larga e gravata borboleta
deram um concerto de ocarina onde figurava a oitava nota
e ele desmaiou de comoo.
J no poema O Av Descobre Analogias41, Murilo nota, atravs da abstrao
essencialista que coloca a vida de uma me e uma filha em um mesmo plano, como as
formas se repetem em uma famlia:
A cabea da minha nora que morreu
est no corpo da minha neta.
s vezes meu filho olha pro corpo da sua filha
e rev a cabea da mulher...
5. Concluso
Percebe-se, a partir dessas consideraes sobre a arte essencialista, a importncia
da filosofia de Ismael Nery para uma compreenso mais adequada da produo de alguns
dos grandes artistas brasileiros.
O essencialismo estendeu-se para alm das pinturas de Ismael. Encontrou ecos
nas produes de seus amigos, Murilo Mendes e Jorge de Lima, e de sua esposa,
Adalgisa Nery. Tambm um testemunho da enorme criatividade e efervescncia
cultural do Brasil nas primeiras dcadas do sculo XX. 40 MENDES, 1994, p. 90. 41 MENDES, 1994, p. 119-120.