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CANETADAS MILITARES COMPILAÇÃO DA LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA PROMULGADA DURANTE O REGIME MILITAR PARA A AMAZÔNIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO QUADRO FUNDIÁRIO PARAENSE ATUAL. THE MILITARY PEN COMPILATION OF THE LEGISLATION ABOUT LAND PROMULGATED FOR THE AMAZON DURING THE MILITARY REGIME AND IT’S CONSEQUENCES FOR NOWADAYS LAND ISSUES ON THE STATE OF PARÁ. Kerlley Diane Silva dos Santos - Universidade Federal do Oeste do Pará/Ufopa [email protected] RESUMO: A análise da legislação promulgada durante a ditadura militar apresenta-se como um importante instrumento para a compreensão da estrutura agrária do Pará e das relações violentas travadas no campo. Pretende-se, com este artigo, proceder a sistematização cronológica da legislação fundiária, visando uma melhor compreensão sobre os seus efeitos. Busca-se mostrar que o Estado brasileiro se utilizou de instrumentos normativos de modo a compatibilizar o aparato legal e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos, ressaltar como a utilização desses instrumentos constitui-se como forma de espoliação de determinados segmentos sociais, em favor do acúmulo e das prosperidades de uns poucos e abriu espaço para abusos, ilegalidades e para a formação de um ambiente propício à grilagem. Palavras-Chave: Legislação fundiária; Ditadura Militar; estrutura agrária; Pará. ABSTRACT: The analysis of the laws approved during miltary rule in Brazil provides an important mean to understand the land structure in the state of Pará, as well as its land conflicts. We intend, with this paper, to build a chronology of land related legislation aiming to reach a better understanding of its effects. It will be demonstrated that Brazil has used official regulations in order to establish compatibility between the canon and the State’s political and economical interests. In this sense, these legal measures resulted in forms of expropriating certain social groups, in favor of others, and it also made way for abuse, illegalities and land grabbing. Key-words: Land legislation; military rule; land structure; Pará.

Canetadas militares: Compilação da legislação fundiária promulgada durante o regime militar para a Amazônia e suas consequências no quadro fundiário paraense atual

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Artigo de Kerlley Diane Silva dos Santos; RESUMO: A análise da legislação promulgada durante a ditadura militar apresenta-se como um importante instrumento para a compreensão da estrutura agrária do Pará e das relações violentas travadas no campo. Pretende-se, com este artigo, proceder a sistematização cronológica da legislação fundiária, visando uma melhor compreensão sobre os seus efeitos. Busca-se mostrar que o Estado brasileiro se utilizou de instrumentos normativos de modo a compatibilizar o aparato legal e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos, ressaltar como a utilização desses instrumentos constitui-se como forma de espoliação de determinados segmentos sociais, em favor do acúmulo e das prosperidades de uns poucos e abriu espaço para abusos, ilegalidades e para a formação de um ambiente propício à grilagem. REFERÊNCIA: Simpósio Internacional de Geografia Agrária (5:2011: Belém) Anais/ V Simpósio Internacional e VI Simpósio Nacional de Geografia Agrária, 7 a 11 de novembro de 2011; João Nahum (Org.) – 1ª ed. – Belém: Editora Açaí, 2011.

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CANETADAS MILITARES

COMPILAÇÃO DA LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA PROMULGADA DURANTE O

REGIME MILITAR PARA A AMAZÔNIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO QUADRO

FUNDIÁRIO PARAENSE ATUAL.

THE MILITARY PEN

COMPILATION OF THE LEGISLATION ABOUT LAND PROMULGATED FOR

THE AMAZON DURING THE MILITARY REGIME AND IT’S CONSEQUENCES

FOR NOWADAYS LAND ISSUES ON THE STATE OF PARÁ.

Kerlley Diane Silva dos Santos - Universidade Federal do Oeste do Pará/Ufopa

[email protected]

RESUMO: A análise da legislação promulgada durante a ditadura militar apresenta-se como um

importante instrumento para a compreensão da estrutura agrária do Pará e das relações violentas

travadas no campo. Pretende-se, com este artigo, proceder a sistematização cronológica da

legislação fundiária, visando uma melhor compreensão sobre os seus efeitos. Busca-se mostrar

que o Estado brasileiro se utilizou de instrumentos normativos de modo a compatibilizar o

aparato legal e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos, ressaltar como a utilização

desses instrumentos constitui-se como forma de espoliação de determinados segmentos sociais,

em favor do acúmulo e das prosperidades de uns poucos e abriu espaço para abusos, ilegalidades

e para a formação de um ambiente propício à grilagem.

Palavras-Chave: Legislação fundiária; Ditadura Militar; estrutura agrária; Pará.

ABSTRACT: The analysis of the laws approved during miltary rule in Brazil provides an

important mean to understand the land structure in the state of Pará, as well as its land conflicts.

We intend, with this paper, to build a chronology of land related legislation aiming to reach a

better understanding of its effects. It will be demonstrated that Brazil has used official regulations

in order to establish compatibility between the canon and the State’s political and economical

interests. In this sense, these legal measures resulted in forms of expropriating certain social

groups, in favor of others, and it also made way for abuse, illegalities and land grabbing.

Key-words: Land legislation; military rule; land structure; Pará.

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1. INTRODUÇÃO

A legislação fundiária é um dos fatores que contribuíram para a edificação do atual

quadro fundiário do Pará1. Espera-se, aqui, depreender da legislação promulgada durante a

ditadura militar um viés de leitura para compreensão do mosaico fundiário e das violentas

relações travadas no campo no estado do Pará e.2

O objeto de análise deste artigo é, em síntese, a edição de diplomas legais, durante

o regime militar, incidente sobre o Pará e com influência na atual condição agrária do estado.

Para isso, a partir da sistematização cronológica dos principais atos da legislação fundiária

(federal), procedeu-se a análise de seu conteúdo e, também, da relação entre a forma específica

dos instrumentos normativos, a situação de autoritarismo vivida e as consequências de tal

legislação.

Inicialmente, abordamos as políticas e ações dos governos militares voltadas para

a Amazônia e os interesses que as revestiam. No segundo momento, busca-se mostrar como a

legislação fundiária refletia as associações entre as políticas públicas e os interesses econômicos

que cercavam o regime militar. Descreve-se, em seguida, as consequências para o quadro

fundiário paraense advindas da legislação promulgada neste período.

Partindo deste quadro, pretende-se, aqui, inquerir até que ponto os diplomas

legais editados durante o regime militar contribuíram para a atual situação fundiária do Pará,

marcada por abusos, ilegalidade e grilagem de terras.

2. A “TERRA SEM HOMENS” DO REGIME MILITAR

A história da ocupação não indígena na Amazônia é marcada por violentas

expropriações pautadas, em sua maioria, pela sanha de uma “racionalidade desenvolvimentista”

cujos olhos, “cegos” para os povos que habitavam essa terra, sempre estiveram voltados para o

lucro. Progresso e desenvolvimento, construções ideológicas incessantemente alardeadas através

1 Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”. In TORRES, Maurício (org.). Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 67-183. 2 CPT. 2010. Conflitos no Campo Brasil 2010. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php?option =com_jdownloads&Itemid=23&view=viewdownload&catid=4&cid=192. Acessado em: setembro de 2011.

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dos anos, legitimaram a implantação do grande capital e, em nome deste, a degradação do meio

ambiente e a eliminação de um concreto obstáculo: os povos da floresta3. Nesse enredo de saques

e expropriações, interessa-nos, por agora, abordar a etapa recente, marcada especificamente pelas

ações e políticas perpetradas pelos governos militares.4

O golpe de 64, protagonizado pelas Forças Armadas, estabeleceu no Brasil o

período amplamente conhecido como Regime Militar. Época de repressões e arbítrios em

diversas escalas, a ditadura marcou a ferro o imaginário do povo brasileiro e a história do país. Na

Amazônia, o período não apenas agravou os pontos de uma história secular de espoliação, mas

serviu de propulsor para a configuração de uma região marcada por conflitos violentos e

ilegalidades veladas e explícitas. Nessa linha Loureiro afirma:

[...] O projeto modernizador concebido pelos governos militares para a

Amazônia, posto em prática desde fins dos anos 60 e, especialmente nas

décadas de 70 e 80, deveria atrair grandes investimentos nacionais e

internacionais, criariam uma promissora base produtiva, apoiada em

empreendimentos considerados “racionais” (...) O Estado foi, na época,

o protagonista que engendrou a mudança e com ela, a violência e

conflito na região.5

No final da década de 1960, a Amazônia passa a ser alvo das políticas

desenvolvimentistas promovidas pelos governos militares. Associava-se, aquela época, a

Amazônia a idéia de vazio demográfico e do espaço selvagem subutilizado economicamente e,

ao mesmo tempo, promovia-se a imagem da terra promissora cujas vulnerabilidades ocasionadas

pela “inexistência de gente” deveriam ser suprimidas pela ação desbravadora de árduos

colonizadores.6

3 TORRES, Maurício. “A Pedra Muiraquitã: O caso do Rio Uruará no enfrentamento dos povos da floresta às madeireiras da região”. Revista de Direito Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Brasília: INCRA, 2007, p. 89-119. 4 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 5 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/reflexoes_sobre_a_pistolagem_ e%20a_violencia_na_amazonia.pdf. Acessado em 20.05.2010. 6 NEAPSIDE et al. Avança Brasil: os custos ambientais para Amazônia. Belém: Alves, 2000. Disponível em: http://www.ipam.org.br/biblioteca/livro/AVAN-A-BRASIL-Os-Custos-Ambientais-para-a-Amazônia/127. Acessado em 10 maio de 2011.

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“Terras sem homens para homens sem terra” teria afirmado o General e ditador

Emílio Garrastazu Médici, prometendo conectar “os homens sem terra do Nordeste” às “terras

sem homens da Amazônia”. A frase não apenas reproduzia o velho discurso colonizador de

negação da condição humana e dos direitos dos povos e populações locais, mas também

apresenta a linha de pensamento das justificativas nas quais a colonização oficial foi baseada. Por

trás de discursos carregados de ufanismo e de preocupação social, desconsiderava-se a

humanidade de pessoas, povos e populações, que habitavam a região a séculos e mascarava-se os

reais interesses do Estado.

As justificativas oficiais para a implantação dos programas de colonização na

Amazônia giravam em torno de fatores sociais. Sob o aspecto social, a pobreza e a seca no

Nordeste do Brasil foram anunciadas como uma das principais razões motivadoras para as

políticas de integração. Nesse contexto, a transferência de nordestinos para Amazônia era

apresentada como a solução mais viável para os graves problemas enfrentados no Nordeste.

Problemas que, segundo os registros oficiais, estavam associados principalmente ao excesso

populacional, não sendo mencionados quadros bem mais evidentes, como a concentração

fundiária e a desigualdade no acesso e na distribuição de terras. Falavam-se da seca e encobriam-

se as cercas do latifúndio.7

Sabe-se, entretanto, o programa de colonização oficial na Amazônia servia aos

militares de duas formas principais: válvula de escape de zonas de tensão social como o Nordeste

e o Sul; e a criação de condições que favorecessem a exploração dos recursos naturais da região

pelo grande capital, representado por destacados grupos econômicos.

Sobre as políticas de ocupação oficial da Amazônia, Oliveira afirma:

[...] as justificativas baseavam-se no princípio de que a solução para os

problemas sociais do Nordeste estava na migração para Amazônia. A

estratégia do desenvolvimento passa a ser concebida como

necessariamente concentrada, polarizada, sendo que a tarefa geopolítica

de ocupação das fronteiras do país ficaria por conta das populações

regionais. À iniciativa privada coube um papel singular: deveria atuar em

todos os setores rentáveis das atividades econômicas, ficando para o

7 FEARNSIDE, Philip M. 1987. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. p. 7-25.

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estado as atividades deficitárias, porém necessárias à política de

desenvolvimento.8

A colonização oficial da Amazônia não foi arquitetada em prol das populações

locais e dos migrantes que aqui desembarcaram. Ela foi pensada para o grande capital e para as

elites. Incentivou-se a migração do Nordeste e do Sul, não com a finalidade de integrar e

distribuir terras para os camponeses. Criou-se, na verdade, um simulacro de Reforma Agrária,

para evitar uma real modificação das estruturas e das oligarquias agrárias presentes nas regiões de

ocupação mais antiga.9

De um lado, o Estado promovia a repressão dos movimentos populares de luta

pelo acesso a terra presentes no Nordeste e no Sul e se utilizava dos projetos de colonização

oficial como instrumentos de contenção das convulsões sociais relacionadas a terra que

marcavam essas regiões. Do outro, apoiava os investidores nacionais e internacionais, por meio

de vultosos programas de incentivos fiscais e fazia dos mencionados projetos “viveiros de mão-

de-obra”. Nesse jogo, em que os pesos e medidas foram dados pelo grande capital, os direitos de

agricultores pobres e da população local foram ignorados.10

3. CANETADAS MILITARES: A LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E AS OPÇÕES

POLÍTICAS DO ESTADO MILITAR.

Dentro da dinâmica “desenvolvimentista” que se descortinou na região, o regime

militar se utilizou de inúmeros instrumentos normativos de modo a compatibilizar o aparato legal

e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos e dos grupos aos quais ele estava associado

e concretizar a política de integração nacional.11

8 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 9 Cf., entre outros, OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997. Tese (Livre-docência em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo e IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 10 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 11 MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. “As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia”. In Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, p. 91-122. Disponível em: http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/38/32. Acesso em: 10 mai. de 2011.

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O Plano de Integração Nacional (PIN) foi instituído através do Decreto-Lei n°

1.106, de 16 de junho de 1970 e do Decreto-Lei n° 1.243, de 30 de outubro de 1972. O discurso

no qual se pautou a política de integração nacional promovida pelos militares voltava-se para os

esquemas de colonização oficial e construção de rodovias, ligando a região amazônica a outras do

Brasil.

De outro lado, para garantir o acesso a terra por parte de grandes grupos

econômicos e garantir a propriedade da terra ao grande capital, os governos militares conceberam

facilidades legais e promoveram alterações na legislação existente no país, criando dispositivos

legais extraordinários e de exceção.12

O principal sustentáculo jurídico, para as ações do regime relacionadas à terra foi

a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como o Estatuto da Terra, estabeleceu-se a

colonização pública e particular. Para além da clássica definição de colonização, a lei trazia em seu

bojo a propriedade familiar como uma das principais finalidades da colonização e assim a definia:

Art. 4º - Para os efeitos dessa lei, definem-se:

(...)

II. “Propriedade familiar”, o imóvel rural que direta e pessoalmente,

explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de

trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso econômico, com

área máxima fixada em cada região e tipo de exploração, e eventualmente

trabalho com a ajuda de terceiros.

Conforme o estabelecido no Decreto nº 67.557, de 12 de novembro de 1970, o

Estado por meio da colonização pública arquitetou o assentamento de 100.000 famílias no trecho

paraense entre São João do Araguaia e Itaituba, ao longo de uma faixa de 10 quilômetros de faixa

de cada lado, da, ainda, planejada rodovia Transamazônica. Ressalte-se, a colonização pensada

para o Pará era diferente da, simultaneamente, promovida no Norte do estado do Mato Grosso,

na qual predominava a expansão de centros pré-existentes e as grandes empresas de colonização

12 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado.

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privada. No Pará, a colonização pública associou-se a abertura da floresta, com o trabalho de

migrantes e altos ônus para o Estado.13

Outra ação destacável, entre as facilidades legais promovidas pelos militares, foi a

edição e utilização indiscriminada de decretos-leis. Estes decretos visavam, entre outras coisas,

legitimar os esquemas ilegais orquestrados pelo governo e responder positivamente aos anseios

políticos e econômicos dos grandes capital a quem o Estado associara-se.

Os decretos-leis foram durantes anos figuras recorrentes da legislação brasileira

até a Constituição de 1988. Foram utilizados em dois momentos da história recente do país: 1937

a 1947, período marcado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1946) e 1965 a 1988, que

engloba boa parte dos anos do regime militar. A maior parte dos decretos-leis editados são

oriundos da época do regime militar.

Denominavam-se, normalmente, como decretos-leis, aqueles decretos que

possuíam força de lei, expedidos em momentos anormais, nos quais o Chefe do Estado

concentrava em suas mãos, também, o Poder Legislativo suspenso14. Sobre os decretos-leis

Aguiar afirma:

No Brasil, a figura típica se encontra nos decretos regulamentares,

interpretação sistemática, desenvolvida pelo próprio Poder Executivo de

norma emanada do Poder Legislativo ou mesmo do próprio Executivo,

dada a existência em nosso Direito da figura do decreto-lei, entidade

jurídica típica dos governos centralizadores e válvula de escape para os

arbítrios em forma de lei.15

A figura do decreto-lei foi amplamente utilizada pelos governos militares para

adequar o ordenamento jurídico brasileiro aos interesses que moviam as engrenagens do regime

posto. Por meio desses decretos, os militares utilizaram-se do direito legal, para estabelecer uma

13 CUNHA, Candido Neto da. "Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará". Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. Nº 10/11, 2009, p. 20-56. 14 Cf. Definição Oficial de Decreto-lei no Glossário Econômico do Tesouro Nacional. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/servicos/glossario/glossario_d.asp. Acessado em: 10 de maio de 2011. 15 AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.

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base jurídica que servisse de sustentáculo as suas ações e políticas e correspondesse aos anseios

do regime despótico e dos grupos ao qual este estava associado.

Obedecendo a esta lógica vieram a lume legislações como o Decreto-Lei n° 1.164,

de 01 de abril de 1971, conhecido por ter federalizado a faixa de 100 km de cada lado das

rodovias federais construídas, em construção ou apenas planejadas na Amazônia. Só no estado

do Pará, o ato federalizou cerca de 70% de sua área16. Dias antes, precisamente em 29 de março

de 1971, o governo havia editado o Decreto nº 64.443, o qual o criava o chamado Polígono

Desapropriado de Altamira. A incidência do novel decreto de abril sobre a área do Polígono foi

notável:

A maior parte do Polígono Desapropriado de Altamira era composta por

terras devolutas e, como todo o Polígono inseria-se na porção

federalizada pelo Decreto-Lei nº 1.164/71, ele foi, a partir da vigência do

decreto, repassado compulsoriamente a União.17

O argumento que pautou o referido decreto foi o da indispensabilidade à

segurança nacional e ao desenvolvimento do país das terras que margeavam as rodovias federais.

Nota-se, o discurso ideológico da “segurança nacional” e do “desenvolvimento” recorrentemente

utilizado durante o regime militar era mais uma das formas de mascarar a abertura das terras da

Amazônia ao grande capital e o conluio deste último com o Estado.

Segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, sob o mote da Doutrina da

Segurança Nacional e do desenvolvimento do país, o governo utilizou-se de instrumentos

normativos como o Decreto nº 1.164/1971 para ordenar o território de modo a tornar possível o

acesso à terra, por parte dos grandes grupos econômicos18. Conjugava-se à referida facilidade

legal, a promoção de programas de incentivos fiscais para motivar investimentos e a implantação

de empreendimentos na Amazônia:

16 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 17 CUNHA, Candido Neto da. “Pintou uma chance legal”, citado, p. 27. 18 OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997, citado.

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A proposta baseava-se em oferecer inúmeras vantagens fiscais a grandes

empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais que

quisessem investir novos capitais (...) na região. Seu principal

instrumento eram os incentivos fiscais, reorientados legalmente em 1967,

principalmente para a pecuária, a extração madeireira, a mineração (...).

Eram concedidos (via Sudam e Basa) aos empresários por longos

períodos (...). Além disso, o governo ainda disponibilizava recursos

financeiros a juros muito baixos e até negativos e concedia um sem-

número de outras facilidades.19

Entretanto, os incentivos fiscais promovidos pelo regime militar em favor de

empresas nacionais e internacionais não resultaram na implantação de empresas na região. Uma

parte dos beneficiados por esses programas destinou os recursos repassados para outras

finalidades como a compra de extensas áreas de terra e até mesmo o desvio dos referidos

recursos.

19 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia. Revista de Estudos Avançados. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000200005. Acessado em: setembro de 2011.

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Mapa 1: Polígono Desapropriado de Altamira em relação a área federalizada pelo Decreto-Lei nº

1.164/1971

O Decreto 1.164/71 foi revogado pelo Decreto-Lei n° 2.375, de 24 de novembro

de 1987. Entretanto, este último, apesar de revogar o decreto anterior e devolver para os estados

as terras devolutas ainda existentes nas áreas anteriormente federalizadas, manteve, no oeste

paraense, sob a jurisdição da União as terras correspondentes aos então municípios de Altamira,

Itaituba e Marabá (entre outros municípios em diferentes estados amazônicos) e aquelas incluídas

na faixa de fronteira.

Naquela época, os municípios de Itaituba e Altamira possuíam uma imensa área

que incluía os atuais perímetros dos municípios de Água Azul do Norte, Brasil Novo,

Curionópolis, Canaã dos Carajás, Eldorado dos Carajás, Jacareacanga, Novo Progresso,

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Parauapebas e Trairão que se constituíram como entes municipais anos após a edição do referido

decreto.

Posteriormente, foi sancionado o Decreto-Lei n° 95.859, de 22 de Março de 1988,

que, regulamentando alguns dispositivos do texto do decreto anterior, afetou determinadas áreas

ao uso especial do Ministério do Exército, entre elas oito glebas só contando o estado do Pará.

Após tal afetação, as terras federais devolutas remanescentes, não incluídas na faixa de fronteira,

foram repassadas aos respectivos estados.

Percebe-se, a dinâmica de ocupação e formação de situações fundiária do Pará

associou-se profundamente às políticas adotadas pelo regime militar para Amazônia20. Essas

políticas, sustentadas por um aparato legal constituído no período e baseadas nas facilidades

legais promovidas e na expropriação de direitos das populações locais e migrantes, trouxeram

consequências desastrosas e graves prejuízos sociais.

4. UM ESTADO DE CERCAS E COVAS

O Pará, “porta de entrada” dos pretensiosos projetos de colonização na

Amazônia, foi um dos estados que mais sofreu com o advento dos decretos-leis que se

sucederam durante a ditadura militar. As políticas adotadas e resguardadas por estes decretos

estabeleceram, no estado do Pará, relações de poder e controle da terra por meio da repressão e

violência.

Sobre este processo desencadeado no Pará pelas ações adotadas pelos militares,

Loureiro aduz:

[...] Trata-se de um processo perverso pelo qual o Estado brasileiro tem

historicamente produzido, sem cessar, a miséria social, por mecanismos

legais e administrativos que promovem exclusão das classes

desfavorecidas num extremo, e a concentração da riqueza por grupos

econômicos e setores da elite.21

20 IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia, citado. 21 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado.

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Durante o regime militar, estreitou-se uma relação de convivência e até uma

conivência entre os interesses de grileiros, empresários e órgãos públicos federais com atuação na

região. Esta “aliança” não apenas marcou as ações do governo no período da ditadura, mas

sobreviveu à última e é, hoje, a marca de diversas relações políticas e econômicas que se

desenvolvem no Pará.22

O Estado foi o agente indutor da concentração fundiária de terras nas mãos de

determinados setores como o da pecuária, por meio da Superintendência de Desenvolvimento da

Amazônia (Sudam); o da soja, embalados pelos incentivos locais e, atualmente, pelos

financiamentos do Banco da Amazônia (Basa); o da madeira, pela liberação de planos de manejo

em áreas públicas e na destinação de terras para grupos que visam a especulação futura e veem na

aquisição de terras públicas na Amazônia uma poupança de longo prazo.23

Neste cenário, a obscuridade da legislação fundiária não apenas serviu de pano de

fundo perfeito para o agravamento dos conflitos e disputas de terra na região, mas também

constitui-se como um dos obstáculos à compreensão dos conflitos existentes no Pará e da

condição agrária do estado. Quando, por exemplo, o Decreto-Lei n° 1.164/1971 veio à luz, o

estado paraense já havia alienado parte das suas terras. No entanto, o estado não mantinha uma

sistematização eficiente das terras que haviam sido alienadas antes da federalização e não possuía

um controle efetivo sobre essas alienações.24

Além disso, as sucessivas sobreposições legislativas e as imprecisões cartográficas

trouxeram uma perigosa dificuldade para o cenário: a indefinição sobre determinadas porções de

terra. Assim, tornava-se difícil estabelecer efetivamente qual o status fundiário dessas áreas e,

consequentemente, qual o ente público com jurisdição sobre elas.

A revogação dos decretos editados no período militar trouxe problemas ainda

maiores. As situações fundiárias que haviam se consolidado foram mantidas e resultaram no

acirramento dos conflitos fundiários já existentes e o surgimento de outros.

Ressalte-se que o governo pouco fez para conter a grilagem de terras. Pelo

contrário, pautou suas ações na tolerância às irregularidades e desmandos e manteve uma política

de silêncio e omissão frente às inúmeras ilegalidades existentes no Pará, situação que estimulou e

22 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia, citado 23 BENATTI, José Heder. “Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. In Novos Cadernos NAEA. Belém: UFPA, p. 85-122. 24 TORRES, Maurício. “Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão social nos municípios paraenses do eixo da BR-163”. In Amazônia revelada, citado. p. 271-319.

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manteve um quadro violento, de iniquidade e de graves usurpações de direitos que se mantém até

hoje.25

Nesse contexto, tornou-se prática frequente das autoridades tornar obscura ou

translúcida a dinâmica dos conflitos e das relações violentas que se estabelecem em solo paraense

e acomodar os direitos de terra dos posseiros, ou de outros segmentos, e deixar que as partes

interessadas resolvam a disputa pela força e violência para depois regularizar o suposto direito do

vencedor.26

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Já se passaram mais de 20 anos do fim do regime militar e início da abertura

democrática do Brasil. Os decretos-leis já não são figuras usuais, apesar da existência de alguns

ainda em vigor no ordenamento jurídico. O Estado repressor cedeu lugar ao Estado Democrático

de Direito. Entretanto, o que mudou no quadro fundiário do Pará?

As marcas estabelecidas e as tensões acirradas e criadas no período militar

continuam presentes. A violência no campo, conflitos por terra, impunidade, trabalho escravo e

grilagem são palavras recorrentemente pronunciadas quando se fala da situação fundiária do Pará.

Estado, Justiça, Lei continuam, em muitos casos, os interesses políticos e econômicos de

determinados grupos.

Travam-se batalhas violentas entre “despossuídos” e expropriadores, nas quais

muitos já tombaram. Em todos os recantos deste estado reproduz-se o desumano, contam-se os

mortos, multiplicam-se os expropriados. O Estado permanece silente frente às ilegalidades e

continua a abrir as portas para o “racional” desenvolvimento promovido pelo grande capital.

A legislação agrária editada durante o regime militar continua a ser um importante

instrumento para compreensão da estrutura agrária estabelecida, das violentas relações travadas

no campo e das consequências e prejuízos que a obscuridade e a confusão dessa legislação

acarretaram através dos anos, tanto social, como ambientalmente.

Neste estado de cercas e covas, o governo e os códigos continuam servindo a

poucos e voltando-se contra muitos, o progresso é o audaz “herói” e os camponeses aqueles aos

quais as revoltas reprimidas, as vozes silenciadas e os direitos sufocados.

25 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia, citado 26 FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25.

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